True Crime
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FRAMING CRIME: THE TRUE CRIME AESTHETIC AND ITS ARRIVAL IN BRAZIL WITH O CASO
EVANDRO (2018)
Resumo
O artigo aborda a consolidação do gênero true crime no Brasil com a terceira temporada do podcast
Projetos Humanos e sua adaptação na série documental O Caso Evandro, investigando o interesse
crescente pelo gênero do Brasil na forma de produções investigativas. Será traçado um retrospecto
desde as narrativas inspiradas por crimes reais de Edgar Allan Poe, livros de não-ficção como A
Sangue Frio e os adventos do podcast e das séries de streaming. No caso brasileiro se investigará
das crônicas-reportagens de João do Rio, os romances-reportagens de José Louzeiro e os podcasts
de Ivan Mizanzuk. Por fim, discute-se, a partir da noção Seltzer do “true crime ser crime factual que
parece crime ficcional”, o uso de estratégias narratológicas semelhantes às obras de ficção do gênero
suspense e a relação do gênero com os campos do jornalismo, justiça e entretenimento.
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Crime em quadro 208
Abstract
The article approaches the consolidation of the true crime genre on Brazil with the third season of
the Projetos Humanos and its adaptation on the docuseries O Caso Evandro, investigating the
crescent interest for the genre in Brazil on the form of investigative productions. It will be draw a
retrospective since the narratives inspired by real crimes of Edgar Allan Poe, non-fiction books like
In Cold Blood and the rise of podcasts and streaming series. In Brazil’s case, it will be investigated
from the chronicle-reportages of João do Rio, the reportage-novels of José Louzeiro and Ivan
Mizanzuk’s podcasts. In the end it will be discussed, according to the nation of Seltzer of “true crime
being factual crime that looks like fiction crime”, the use of narratological strategies similar to
fictions of the thriller genre and the genre relation with the fields of journalism, justice and
entertainment.
Ao escrever sobre o gênero ensaio, Steiner (1988, p. 105) reflete sobre o “caráter urbano
e tecnológico” da cultura ocidental dar origem ao que chama de “gênero transicional
representativo”, que chama de “poética documentária” ou “pós-ficção’, com um encontro de
elemento factual e uma “retórica específica de apresentação vívida” (STEINER, 1988, p. 106).
Para o autor, há “uma enorme quantidade de obras de não-ficção cujas qualidades particulares
de vivacidade, de ritmo dramático e apelo psicológico derivam do fato de que têm, em sua
retaguarda, a época máxima do romance” (STEINER, 1988, p. 107).
No gênero hoje entendido como true crime, o norte-americano Edgar Allan Poe (1809-
1949) é considerado um pioneiro por Winans (2019, p. 36), que o aponta como pai do conto
das histórias de detetive. Para a autora, o clássico conto Os Assassinatos da Rua Morgue (1841)
introduz os elementos basilares do gênero whodunit (contração de who done it? ou "quem fez
isso?", em tradução livre), como o detetive C. Auguste Dupin que Ross (2004) define como o
“protótipo do detetive amador talentoso” que “descobre pistas que a polícia e investigadores
deixaram passar” (WINANS, 2019, p. 37). A autora ressalta a importância de Poe ao definir
que ele lançou o “modelo para futuros escritores seguirem”.
O pioneirismo de Poe (2008; 2021) no gênero influencia na típica narrativa de
investigação criminal: Dupin se envolve no caso ao ler um artigo no jornal, uma trilha que o
próprio seguiria ao escrever O Mistério de Marie Rogêt (1842), história onde Dupin investiga
o assassinato da personagem-título. Foi uma das primeiras histórias de solução de assassinato
a ser baseada em um crime da vida real: a morte de Mary Rogers, encontrada sem vida às
margens do Rio Hudson, em 1841. A proposta do autor, como expressou em cartas, seria de
Essa estrutura pode se parecer com uma história, particularmente com uma história de
detetive: o filme começa propondo um problema ou tópico; em seguida, transmite
alguma informação sobre o histórico desse tópico e prossegue com um exame da
gravidade ou complexidade atual do assunto. Essa apresentação, então, leva a uma
recomendação ou solução conclusiva, que o espectador é estimulado a endossar ou
adotar como sua. (NICHOLS, 2005, p. 54)
Clausen e Sikjær (2021, p. 146; 149-150) notam que apesar do gênero ser categorizado
como um ramo do jornalismo, muitos percebem o seu surgimento como entretenimento de baixa
cultura, veículo para narrativas sensacionalistas e exageradas.
Correndo em paralelo com o documentário cinematográfico, as raízes do true crime
floresciam em outras mídias: a revista True Detective publicou relatos de crimes reais entre
1924 e 1995; no pós-guerra, o jornalismo investigativo passa a se aproximar dos crimes reais:
o argentino Rodolfo Walsh (2021) escreve Operação Massacre (1957), no qual relata a
execução de doze civis acusados de conspirar contra a ditadura militar do país para restaurar o
governo de Juan Domingo Perón; Link (2007, p. 220) define que o livro desestabiliza gêneros
literários ao antecipar o que seria chamado de ficção testemunhal, narrando a história real com
técnicas literárias como narração a partir de pontos de vista e uso de diálogo.
Em 1966, o autor Truman Capote lança A Sangue Frio, trabalho com grande recepção
internacional influente no que seria chamado de “romance de não ficção”, narrando os
assassinatos dos quatro membros da família Clutter e o julgamento, condenação e execução dos
acusados Perry Smith e Richard Hickock. O romance foi fruto de um trabalho de seis anos,
várias entrevistas com residentes do Kansas e investigadores e cerca de 8.000 páginas de
anotações. Influenciou o que veio a ser chamado de New Journalism, praticado por nomes
famosos como Tom Wolfe, Joan Didion, Hunter S. Thompson, Norman Mailer e Gay Talese,
entre outros (CAPOTE, 2003).
Em 1974, o promotor Vincent Bugliosi lançou em parceria o escritor Curt Gentry Helter
Skelter, sobre o caso mais famoso que já trabalhou: os assassinatos Tate-Labianca, onde a atriz
Ainda segundo Xavier (2003), nosso crime é o do criminoso, “o crime por procuração”.
Ou seja, percebe-se aqui que há um grande interesse voyeurístico de se testemunhar o crime da
maneira mais detalhada possível (“realismo forense”, intimidade com os envolvidos etc.); a
montagem, junto com os recursos utilizados, estabelece um “aspecto autoritário”, conferindo
um ritmo próprio de gênero. O documentário nos deixa desejosos de saber, ainda que a
alteridade esteja limitada pela organização da montagem. No final das contas, seriam a epítome
dessa “cultura ferida” de Seltzer (2007, p. 2-3), “a nação como um grupo de apoio”, onde somos
unidos através do sofrimento. No true crime, então, estamos mais próximos do que nunca do
crime, guiados pelo labirinto de pistas e narrativas. Como chega o true crime no Brasil, um país
de desigualdades sociais estruturais e históricas?
É com esse pano de fundo histórico das raízes históricas do gênero que pretende-se nesse
artigo justamente abordar especificamente como se dá no Brasil a tradição de retratar histórias
de crimes reais, como O Caso Evandro embarcou nessa tradição utilizando-se da estética true
crime, bem como as complexidades formais e éticas de incorporar a estética narrativa do
suspense em narração factual.
2 O caso brasileiro
No Brasil, o jornalista e cronista João Paulo Barreto, conhecido como João do Rio
(1881-1821) ou Paulo Barreto, entre outros pseudônimos se tornou um destaque quando, de
Considerando tudo isso acima, o podcast Projetos Humanos (2016-), do jornalista Ivan
Mizanzuk, teve impacto semelhante no cenário brasileiro semelhante ao que Serial teve no
mundo anglófono. Em 2018, sua terceira temporada aborda o assassinato do menino Evandro
Ramos Caetano, um episódio conhecido como as bruxas de Guaratuba, tornando-se um
fenômeno de audiência e ganhando adaptação televisiva (BRODBECK, 2019).
3 Dilemas formais
As minhas expectativas foram muito mais simples, de certa forma. Eu não comecei
falando que faria um true crime, sempre falei que eu queria fazer uma boa história,
que tenha ganchos poderosos, que tenha um mistério muito grande e que instigue as
pessoas a seguir naquilo até o fim” (...) Caso Evandro, para mim, era um exercício
estético quase, eu via muita matéria sobre o caso, mas eu percebia que os textos não
conseguiam contar a história da maneira como ela exigia, como deveria ser contada,
completa. (MIZANZUK, 2021 apud IBARRA, 2021).
Tem a questão da ossada de menina que para mim ainda é inacreditável essa história.
A parte do falso Leandro, do menino Diogo, eu acho cinematográfico aquele negócio.
É uma coisa assustadora de se imaginar mesmo. Acho que esses são os momentos que
eu disse assim: ‘mas não é possível que isso tenha acontecido!. (MIZANZUK, 2021
apud OS DONOS DA RAZÃO, 2021)
Nos dois casos, seja a história ter um caráter que o autor do projeto chama de
“cinematográfico” ou a preocupação de, acima de tudo “contar uma boa história”, podemos
aferir a influência do que é entendido storytelling no desenvolvimento do projeto; para Toy
(2019) a história impacta pelo storytelling infundido ao jornalismo. A autora vê como uma
resposta aos avanços tecnológicos da década de 90, onde “a relevância do conteúdo jornalístico
passou a ser mais valorizado que a velocidade em que ele era publicado” (TOY, 2019, p. 40).
Assim como no new journalism, o podcast e a série documental se utilizam de técnicas que
humanizam o conteúdo, criando uma história onde se cria uma conexão com o conteúdo e gere
engajamento (TOY, 2019, p. 41).
Este engajamento pode ser tão poderoso que Boling (2019, p. 168) lembra que o juiz
Martin P. Welch ordenou novo julgamento de Adnan Syed por assassinato da namorada Hae
Min Lee colocando o podcast Serial (KOENIG, 2014) como um fato, e, além disso, os fãs do
programacomeçaram a se enfileirar às 6 da manhã em frente à corte, antes mesmo da família
do réu e advogados de defesa chegarem ao local.
4 Considerações finais
Esse trabalho pretendeu demonstrar, como uma fase da cultura ocidental moderna cria
uma nova forma de expressão que é denominada de “pós-ficção”, onde uma determinada linha
da literatura, que vai de Edgar Allan Poe a Truman Capote, influenciaria na criação de um
gênero que se utiliza de fatos cotidianos para criar ficção interessante - seja de maneira
disfarçada, seja de maneira explícita. Com isso, o true crime torna-se um gênero à parte, sempre
proporcionando grandes vendas e sendo uma força motriz por trás de novos modelos de mídia,
como o podcast e as séries de streaming. A força do gênero transitório que chamamos de “pós-
ficção”é infundir em documentos uma força ficcional, admitindo a influência da literatura no
jornalismo.
A MÁFIA dos Tigres. Direção: Rebecca Chaiklin, Eric Goode. Produção: Cassie Sagness.
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A TÊNUE Linha da Morte. Direção: Errol Morris. Produção: Mark Lipson. Roteiro: Errol
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BANDIDOS na TV. Direção: Marcelo Galvão, Daniel Bogado, Suemay Oram. Produção:
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