A Vida Bela
A Vida Bela
A Vida Bela
" E a vida?
E a vida o que é?
Diga lá, meu irmão!
Ela é a batida de um coração,
Ela é uma doce ilusão. "
(Gonzaguinha)
1
Vários são os episódios em que Guido tenta enganar a si mesmo, mais
do que a qualquer outro: A cena do ataque que o tio sofre quando de
sua chegada a cidade. O cavalo do tio que é pintado de verde pelos
fascistas. A placa no restaurante “Proibido para cães e judeus”, cujo
significado Guido minimiza para o filho. " Cada um coloca a placa que
quiser”, diz ele. Eu odeio visigodos e aranhas. Vou colocar uma placa
em nossa livraria: "Proibido para visigodos" . Quem engana quem?
Quando a serpente dá seu bote e os agarra, levando-os para um
campo de concentração, Guido cria a versão de que tudo aquilo é um
jogo, uma gincana que premiará o vencedor com um tanque de guerra.
Tudo supostamente para evitar que o filho sofra, para protegê-lo. Mas
quem protege quem?
Em uma cena dramática, talvez uma das melhores do filme,
Guido encontra Josué chorando, por ter descoberto que vão todos
virar sabão. Guido minimiza a história, diz que é uma tentativa dos
outros concorrentes em eliminá-los da gincana. Confunde Josué a tal
ponto que este desacredita, ( ou pelo menos tenta) no que vê e ouve,
para acreditar no pai, de quem depende física e emocionalmente.
Um jogo perverso instala-se entre os dois. Josué fica preso em
uma armadilha. Se acredita em si mesmo, ele nega o pai. Se acredita
no pai, nega a si mesmo. Uma situação paradoxal, aparentemente sem
saída, que faz lembrar a cantiga infantil americana que inspirou o título
original do filme "Um estranho no ninho" : One flew over the cuckoo's
nest.
2
dedicava-se a pesquisar a Comunicação entre os seres vivos, de um
modo geral, e que acabou colocando seu foco nas questões
relacionadas com a Comunicação entre pessoas de uma família, que
tinha um de seus membros diagnosticados como esquizofrênicos.
Ao longo de um elaborado e minucioso projeto de pesquisa,
baseado nas então novas teorias da comunicação, da cibernética e
também da Teoria dos Tipos Lógicos (de Russel e Whitehead), eles
criaram a primeira teoria sobre a gênese das doenças mentais ,que não
era apenas biológica , ou ligada à questões do mundo interno individual.
Ao observar famílias com um paciente diagnosticado como
esquizofrênico, Bateson e equipe perceberam um padrão de interação e
comunicação, que pode ser descrito assim, de forma bem simplificada e
esquemática:
Tomemos uma situação em que estejam envolvidos o paciente e
um ou mais membros de sua família. Em um nível , em geral da
linguagem verbal, algo é comunicado. Por exemplo: "Meu filho eu te
amo." Em outro nível, em uma linguagem não verbal, nega-se a
afirmação inicial. Junte-se a isto uma proibição não explícita de se falar
a respeito do que está acontecendo. E uma impossibilidade de que a
pessoa, por ser muito dependente (um paciente internado, ou uma
criança pequena), possa abandonar o campo onde tudo isto está se
passando. Não se trata de uma situação isolada, mas de um padrão
daquela família. Ou seja, este é o meio em que aquela pessoa, que
mais tarde pode se tornar o paciente identificado, vive desde sempre.
A equipe formulou a seguinte hipótese: "Há uma causa para a
chamada esquizofrenia, que não seja apenas biológica ou resultante de
questões psicológicas individuais e internalizadas? Uma causa que fosse
comunicacional, relacional?
3
Voltando ao filme: Vejo Guido como um pai amoroso, que queria
o melhor para Josué, mas que em minha opinião, foi guiado em seus
atos, muito mais por seus problemas e limitações, do que por uma
atitude altruísta de proteger o filho. Podemos pensar que ele atribuiu ao
filho, as mesmas dificuldades em suportar as frustrações e angústias da
vida, que ele, Guido, apresentava. Ao olhar para o filho, via antes de
mais nada suas necessidades inconscientes.
No final, Guido deixa o filho escondido( abandonado) e vai em
busca de sua "principessa". Morre em busca de seu sonho. O filho fica
só, mas ao mesmo tempo é libertado da prisão paradoxal, do "duplo nó
" que o prendia, e que poderia enlouquecê-lo. É resgatado pelos
soldados americanos, e reencontra sua mãe.
Aliás, penso que a importância da mãe é subestimada ao longo de
filme. Ela era a âncora, o "princípio de realidade" que tentava trazer
Guido de volta a Terra, assim como a Josué.
Não sabemos o que o futuro reservou para Josué. Pela fala em
"off " no final, podemos supor que cresceu e tornou-se um adulto, capaz
de relembrar o passado com crítica e emoção. Talvez não o tivesse
conseguido sem sua mãe.
Enfim, o que apresento são apenas reflexões inspiradas por um
belo filme, que acima de qualquer interpretação , traz a beleza da arte,
que sempre diz muito mais que qualquer tentativa de entende-la. Como
escreveu Edmund Wilson: " O artista diz mais do que sabe", e o crítico
sabe mais do que diz.
A vida é bela?
( Gonzaguinha)