O Lugar Dos Poetas Tradutores No Sistema
O Lugar Dos Poetas Tradutores No Sistema
O Lugar Dos Poetas Tradutores No Sistema
In: Germana
Henriques Pereira; Thiago André Verissimo. (Org.). História e historiografia da tradução:
desafios do século XXI. 1ed. Campinas: Pontes, 2017, v. 3 , p. 227-242.
Marlova Aseff1
INTRODUÇÃO
Wilhelm von Humboldt defendia que “a tradução, sobretudo a dos poetas, é uma
das tarefas mais necessárias dentro de uma literatura”, pois dá acesso a “formas de arte e
de humanidade que de outro modo permaneceriam desconhecidas” a quem não conhece
a língua; e também por propiciar um “aumento da capacidade expressiva da própria
língua” (HUMBOLDT, 2001, p. 93). Ao longo da história da literatura ocidental, poetas
e prosadores estiveram envolvidos, em maior ou menor grau, com a tarefa da tradução.
E há várias evidências que comprovam como a atividade tradutória não só contribuiu
para promover renovações no interior das literaturas nacionais, mas também está na
gênese das mesmas.2 É bem difundido, por exemplo, o impacto que teve a tradução dos
escritos de Edgar Allan Poe por Charles Baudelaire, que mais tarde repercutiria no
movimento simbolista e, em seguida, no modernismo hispano-americano.3
David Connolly lembra que sempre houve uma conexão muito próxima entre
escrever poesia original e traduzi-la, e que os maiores poetas geralmente são tradutores
preocupados com os problemas teóricos envolvidos (CONNOLLY, 2001, p 175). No
século XX, a tradução foi uma atividade exercitada por poetas de ponta, como o francês
Paul Valéry, o italiano Giuseppe Ungaretti, o norte-americano Ezra Pound e, na
América Latina, por nomes como Jorge Luis Borges e Octavio Paz. Para os poetas
modernos, o diálogo com a tradição por meio da tradução foi fundamental para a
1
Programa Nacional de Pós-doutorado/Capes | Universidade de Brasília.
<http://lattes.cnpq.br/0457146307858365>. E-mail: [email protected].
2
Ver DELISLE; WOODSWORTH (1998).
3
Conforme resumiu Jorge Luis Borges, “os norte-americanos Edgar Allan Poe e Walt Whitman
haviam influenciado a literatura francesa com suas obras e também com suas teorias; Darío
recolheu esse influxo através da escola simbolista e o levou até a Espanha” (BORGES, 1979,
p. XIV).
1
configuração e afirmação de seus modelos. Pode-se supor que os poetas que escolhem
exercitar a tradução de poesia o façam, em geral, tendo em mente pelo menos duas
intenções: demarcar as sua s filiações ou afinidades em relação a determinada família
poética e proceder a um exercício de crítica e de criação que tem como finalidade
imergir na experiência da linguagem do outro. No entanto, tal faceta do seu labor
literário nem sempre foi devidamente reconhecida e valorizada.
Buscando responder, entre outras questões, em que medida a atividade dos
poetas como tradutores (ou vice-versa) assume de fato relevância para o sistema
literário brasileiro e quais as consequências do seu trabalho, realizei uma pesquisa que
resultou na tese Poetas-tradutores e o cânone da poesia traduzida no Brasil (1960-
2009).4 O objetivo principal foi o de dimensionar o trabalho dos poetas-tradutores e o
peso de suas escolhas tradutórias no universo da tradução de poesia no Brasil no
período citado. A partir do conjunto dos dados colhidos, foi possível chegar a uma ideia
clara do espaço conquistado não somente pelos poetas-tradutores, mas também pela
própria tradução de poesia no sistema literário brasileiro.
4
A tese foi defendida em 2012 na Pós-graduação em Estudos da Tradução da Universidade
Federal de Santa Catarina. Os números apresentados aqui são levemente distintos, pois os
dados passaram por complementação após a defesa.
2
fisionomia de uma fase [da literatura brasileira]” (CANDIDO, 2006, p. 28). Candido
chama a atenção para o fato de que esses poetas eram, em sua maioria, “secundários”,
jovens rebeldes que usaram Baudelaire como “um instrumento libertador”.
“Deformavam [a poesia de Baudelaire] segundo as suas necessidades expressivas,
escolhendo os elementos mais adequados à renovação que pretendiam promover e de
fato promoveram” (CANDIDO, 2006, p. 28-31). Nas primeiras décadas do século XX,
um poeta-tradutor importante foi Eduardo Guimaraens (1892-1928), que formou, com
Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, a “trindade simbolista” do Brasil. Ele
dedicou-se à tradução de 84 poemas de As flores do mal, de Baudelaire, além de obras
de Francis James, Dante, Tagore, Heine, Verlaine, entre outros.
Na década de 1930, o mercado editorial brasileiro começava a se organizar, e a
editora Globo foi pioneira na tradução de romances policiais norte-americanos. Os anos
entre 1942 e 1947 constituíram a época de ouro da tradução para essa editora de Porto
Alegre, época em que importantes poetas brasileiros, como Manuel Bandeira, Carlos
Drummond de Andrade e Mario Quintana, atuaram como tradutores para a casa
editorial. Wyler destaca que nesse período
3
Grünewald, Mário Faustino, José Paulo Paes, Sebastião Uchoa Leite, Mariajosé
Carvalho, Ivo Barroso, entre outros. Nos anos de 1970 e 1980, Ivan Junqueira, Paulo
Leminski, Jorge Wanderley, Claudio Willer, Olga Savary, Fernando Mendes Vianna,
Anderson Braga Horta, José Jeronymo Rivera, Leonardo Fróes, Glauco Mattoso, Paulo
Colina e Carlos Nejar foram alguns dos poetas engajados na tradução de poesia. Na
última década do século XX e na primeira do XXI, o ímpeto tradutório ganhou ainda
mais força entre os poetas do Brasil, que se dedicaram à tradução como uma atividade
paralela e complementar à criação. Nessa fase, pode-se citar Josely Vianna Baptista,
Marco Lucchesi, Paulo Henriques Britto, Rodrigo Garcia Lopes, Virna Teixeira, Carlos
Felipe Moisés, Horácio Costa e dezenas de outros.
Mas como os críticos e historiadores da literatura perceberam e analisaram esse
fenômeno? Alfredo Bosi, na História concisa da literatura brasileira, um dos manuais
mais usados no país, no capítulo “Tendências contemporâneas”, reconhece que “em um
tópico de literatura brasileira não poderia faltar a referência a algumas versões de
grandes poetas que começaram a falar em português à nossa sensibilidade” (BOSI,
2006, p. 489, grifo nosso). Ele reconhece a importância do surgimento de “numerosas
traduções de poesia” na década de 1980 e afirma que os bons tradutores continuavam
sendo poetas e ensaístas que já haviam provado seu “concentrado labor textual em seus
escritos originais” (BOSI, 2006, p. 490). Bosi lista de forma aparentemente aleatória 23
traduções de poesia e seus tradutores, sem indicar a editora nem o ano da edição. No
corpo do livro propriamente dito não menciona a atividade como tradutores de
escritores e poetas como Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade ou Érico
Veríssimo. Mas há algumas exceções, nesse sentido, como Manuel Bandeira, de quem
Bosi menciona a sua atividade como tradutor, bem como os autores que ele traduziu. No
caso isolado de Guilherme de Almeida, as referências estão mais completas: as
traduções desse poeta-tradutor estão listadas, com título e ano da edição, na nota de
rodapé biográfica.
Ítalo Moriconi, por sua vez, em meados da década de 1990 também ressaltou o
lugar conquistado pela tradução entre os poetas brasileiros contemporâneos e
sentenciou:
4
Chama a atenção que quando historiadores e críticos desejam delimitar a
relevância da atividade dos poetas como tradutores, pelo menos no caso do sistema
literário brasileiro, deem ênfase aos que conquistaram certa fama autoral na vida
literária. No entanto, como bem demonstrou Candido, por vezes a atuação dos poetas
ditos “menores” pode ser ainda mais relevante para configurar uma determinada fase da
história da literatura. É importante que historiadores e críticos tenham observado que
são muitos os poetas que traduziram ou traduzem poesia no interior do sistema literário
brasileiro, mas é necessário também quantificá-los para, assim, determinarmos com
maior precisão a abrangência coletiva do seu trabalho.
METODOLOGIA
5
Enquanto nos anos de 1940 e 1950 era raro encontrar a reflexão dos poetas-tradutores
sobre o seu labor, nas décadas mais recentes esse quadro mudou bastante.
Em meados da década de 2000, John Milton avaliou que o número de trabalhos
publicados era de tal forma considerável que “esta área [poesia traduzida] deveria ser
seriamente considerada um gênero da literatura brasileira contemporânea” (MILTON,
2004, p. 183). A pesquisa que desenvolvi confirmou essa percepção geral de que, no
Brasil contemporâneo, a tradução de poesia apresenta números ascendentes e tem
assumido um papel significativo na renovação da literatura local.
O levantamento bibliográfico da poesia traduzida levantou 583 títulos5
publicados no período de 1960 a 2009, entre obras de um só autor e antologias de
autores, assim divididos:
250
216
200
158
150
114 Vo
auto
100
53
42
50
Fonte: elaboração própria.
5
Os dados aqui apresentados foram atualizados em dezembro de 2015.
6
dos lucros. Em seguida, em 1973, sobreveio a crise mundial do petróleo, que foi sentida
também pela indústria do livro, causando um enorme aumento nos custos de produção
e, consequentemente, no preço de capa. A crise econômica, somada ao ambiente
político do Regime Militar que teve início em 1964 e recrudesceu-se em 1968, com o
Ato Institucional Nº 5 e a censura prévia, podem ser apontadas como fatores que
provocaram a retração refletida nos números da tradução de poesia no período. A
conjuntura repressiva levou os novos escritores, poetas e artistas a buscarem meios
alternativos de difusão. Surge a chamada “Geração Marginal” ou do “Mimeógrafo”, que
usou essa tecnologia disponível para distribuir a sua criação poética em publicações
artesanais. Assim, formou-se um circuito de produção cultural “marginal”, ou seja, às
margens do sistema formal.
Já nos anos de 1980, a edição de poesia traduzida deu um salto no Brasil. A
redemocratização, sem dúvida, foi um fator que favoreceu várias empreitadas editoriais
e um mercado para a poesia. Moriconi afirma que:
6
Ver, por exemplo, o Relatório da Administração da Saraiva no Ano Fiscal de 1999. Disponível
em: <http://www.saraivari.com.br/port/infofinan/demonstrativo.asp?id=47>. Acesso em: 20
mar. 2011.
7
valorização da moeda estrangeira inflaciona os insumos e também os direitos autorais
pagos aos autores estrangeiros, o que encarece a publicação de livros traduzidos. Como
consequência, em 2000 e 2001, verificou-se um aumento do preço dos livros no Brasil:
houve crescimento do faturamento das empresas, mas queda nas vendas. Em 2003, Luiz
Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência da República, permanecendo até 2010.
Houve continuidade do crescimento econômico, com redução das taxas de juros e da
inflação e, o mais importante para o setor livreiro, com uma expansão da classe média,
que é sabidamente a grande consumidora de livros em qualquer país. Durante o seu
mandato, em 2003, foi promulgada a Lei do Livro,7 que instituiu uma política nacional
para o setor, além de promover a desoneração fiscal do produto. Os números dos anos
de 2000, segundo os dados do levantamento bibliográfico de tradução de poesia,
confirmam a tendência ascendente da prática desse tipo de tradução no país e a contínua
expansão do seu mercado. Verificou-se que não apenas o número de obras editadas
cresceu, mas houve também grande diversificação das línguas e das literaturas
traduzidas, além do aumento do número de poetas envolvidos com a tradução de poesia.
Podemos dizer que se assistiu, nesses 50 anos, ao amadurecimento de um mercado para
poesia traduzida no país, embora esta pesquisa não o tenha dimensionado em termos de
tiragens e vendas.
OS TRADUTORES DE POESIA
A partir do levantamento foi possível constatar que pelo menos 2898 tradutores
de poesia atuaram no país nesse período, dado esse que serve como mais um indicador
para se mapear o sistema literário e cultural brasileiro e que pode e deve ser analisado
em conjunto com os demais indicadores. Para Casanova, o número de tradutores
literários e de “poliglotas” que atuam num dado sistema literário é um aspecto a ser
destacado, pois a presença de “intermediários transnacionais” dá a medida do poder e do
prestígio da literatura. No caso das literaturas periféricas, eles seriam os responsáveis
por ligar essas línguas e literaturas ao “centro” (CASANOVA, 2002, p. 37). Nesse
universo de tradutores de poesia, 130 foram identificados como poetas.9 Ou seja, os
7
Lei no 10.753, de 30 de outubro de 2003.
8
Foram excluídos os nomes daqueles que assinaram no período apenas a tradução de um
número muito pequeno de poemas em antologias.
9
O critério para ser considerado “poeta” foi o de ter pelo menos um livro de poemas publicado.
8
poetas representaram 44,9% do universo pesquisado. No entanto, surpreendeu o fato de
que, mesmo em minoria numérica, os poetas-tradutores foram responsáveis pela
tradução de 69,4% dos títulos de poesia traduzida publicados (edições de autores
individuais) no período. Do universo de 472 obras poéticas de autores individuais
traduzidas e editadas no período entre 1960 e 2009, 328 delas tiveram a sua tradução
assinada por pelo menos um poeta.10 Esse é um forte indicador quantitativo da
produtividade e do engajamento dos poetas na tarefa da tradução de poesia no Brasil.
A influência dos poetas-tradutores é ainda maior no universo das antologias.
Constatou-se que das 111 antologias mistas de poesia estrangeira publicadas entre 1960-
2009, 86 delas, o equivalente a 77%, foram organizadas e/ou traduzidas por poetas, 23
foram organizadas e/ou traduzidas por tradutores que não eram poetas e de apenas duas
não se encontraram as referências do tradutor ou organizador. A antologização é um
relevante fator para a canonização de uma obra ou modelo literário, uma vez que ao
selecionar e organizar os textos, editores e tradutores procedem a uma manipulação que
interfere fortemente em sua recepção. Elas também têm grande poder de refletir,
expandir ou redirecionar o cânone de determinado período (GOLDING, 1984, p. 279).
O gráfico a seguir mostra o número total de antologias publicadas por década e
demonstra a parcela que foi traduzida e/ou organizada por poetas-tradutores.
10
Por vezes, uma tradução é assinada por mais de um tradutor.
9
Fonte: elaboração própria.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
10
como uma forma de intervenção e de poder exercida pelo tradutor. Além disso, o ato de
escolher passou a ser entendido como um ato de crítica.
Ao selecionar certas obras para traduzir, os poetas trabalharam pela continuidade
ou pelo rompimento de determinado cânone, e, ao mesmo tempo, buscaram as suas
filiações poéticas e caminhos para a sua produção autoral. As escolhas dos poetas-
tradutores contribuíram para a configuração dos atuais cânones poéticos no Brasil, não
somente o cânone da poesia traduzida, mas também novas formas e/ou dicções poéticas
da poesia brasileira. Conforme Even-Zohar (1990), quando um modelo é inserido no
repertório de recursos poéticos de uma língua, ocorre um tipo de canonização de maior
relevância para o sistema literário do que a simples presença de um texto traduzido. Por
isso mesmo, quando o tradutor é também poeta, são maiores as chances da assimilação
de novos recursos estilísticos no repertório poético local. Ao usar a tradução como
forma de exercício poético, o poeta quase sempre levará algo dessa experiência para a
sua produção autoral. Além disso, conforme foi possível perceber, boa parte dos poetas,
além da tradução, esteve envolvido em outras atividades que preparam as obras para a
canonização, como a antologização e a crítica exercida nos prefácios das traduções.
Tendo tudo isso em vista, é inegável que o trabalho de tradução realizado pelos poetas
brasileiros tem sido bastante influente na configuração do sistema literário local.
REFERÊNCIAS
11
FRANK, Armin Paul. Anthologies of translation. In: BAKER, Mona (Ed.).
Encyclopedia of translation studies. London/New York: Routledge, 2001. p. 13-16.
GOLDING, Alan. A history of American Literature and the Canon. In: HALLBERG,
Robert. Canons. University of Chicago Press, 1984. p. 279-307.
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Tradução de Maria da Penha Villalobos et al.. São Paulo: Edusp, 2005.
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(Org.). Clássicos da teoria da tradução. Tradução de Susana Kampff Lages.
Florianópolis: UFSC, Núcleo de Tradução, 2001. p. 90-103.
MILTON, John. Translated Poetry in Brazil 1965-2004. Revista Brasileira de
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CÂNONES E CONTEXTOS: ANAIS DO 5º CONGRESSO DA ABRALIC. Rio de
Janeiro: Abralic, 2007. P. 303-309.
PAES, José Paulo. Tradução: a ponte necessária. São Paulo: Ática, 1990.
PAZ, Octavio. Literatura e literalidade. In: _____. Convergências – ensaios sobre arte e
literatura. Tradução de Moacir Werneck de Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 148-
160.
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