O Lugar Dos Poetas Tradutores No Sistema

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ASEFF, M. G. O lugar dos poetas-tradutores no sistema literário brasileiro.

In: Germana
Henriques Pereira; Thiago André Verissimo. (Org.). História e historiografia da tradução:
desafios do século XXI. 1ed. Campinas: Pontes, 2017, v. 3 , p. 227-242.

O LUGAR DOS POETAS-TRADUTORES NO SISTEMA


LITERÁRIO BRASILEIRO

Marlova Aseff1

INTRODUÇÃO

Wilhelm von Humboldt defendia que “a tradução, sobretudo a dos poetas, é uma
das tarefas mais necessárias dentro de uma literatura”, pois dá acesso a “formas de arte e
de humanidade que de outro modo permaneceriam desconhecidas” a quem não conhece
a língua; e também por propiciar um “aumento da capacidade expressiva da própria
língua” (HUMBOLDT, 2001, p. 93). Ao longo da história da literatura ocidental, poetas
e prosadores estiveram envolvidos, em maior ou menor grau, com a tarefa da tradução.
E há várias evidências que comprovam como a atividade tradutória não só contribuiu
para promover renovações no interior das literaturas nacionais, mas também está na
gênese das mesmas.2 É bem difundido, por exemplo, o impacto que teve a tradução dos
escritos de Edgar Allan Poe por Charles Baudelaire, que mais tarde repercutiria no
movimento simbolista e, em seguida, no modernismo hispano-americano.3
David Connolly lembra que sempre houve uma conexão muito próxima entre
escrever poesia original e traduzi-la, e que os maiores poetas geralmente são tradutores
preocupados com os problemas teóricos envolvidos (CONNOLLY, 2001, p 175). No
século XX, a tradução foi uma atividade exercitada por poetas de ponta, como o francês
Paul Valéry, o italiano Giuseppe Ungaretti, o norte-americano Ezra Pound e, na
América Latina, por nomes como Jorge Luis Borges e Octavio Paz. Para os poetas
modernos, o diálogo com a tradição por meio da tradução foi fundamental para a

1
Programa Nacional de Pós-doutorado/Capes | Universidade de Brasília.
<http://lattes.cnpq.br/0457146307858365>. E-mail: [email protected].
2
Ver DELISLE; WOODSWORTH (1998).
3
Conforme resumiu Jorge Luis Borges, “os norte-americanos Edgar Allan Poe e Walt Whitman
haviam influenciado a literatura francesa com suas obras e também com suas teorias; Darío
recolheu esse influxo através da escola simbolista e o levou até a Espanha” (BORGES, 1979,
p. XIV).

1
configuração e afirmação de seus modelos. Pode-se supor que os poetas que escolhem
exercitar a tradução de poesia o façam, em geral, tendo em mente pelo menos duas
intenções: demarcar as sua s filiações ou afinidades em relação a determinada família
poética e proceder a um exercício de crítica e de criação que tem como finalidade
imergir na experiência da linguagem do outro. No entanto, tal faceta do seu labor
literário nem sempre foi devidamente reconhecida e valorizada.
Buscando responder, entre outras questões, em que medida a atividade dos
poetas como tradutores (ou vice-versa) assume de fato relevância para o sistema
literário brasileiro e quais as consequências do seu trabalho, realizei uma pesquisa que
resultou na tese Poetas-tradutores e o cânone da poesia traduzida no Brasil (1960-
2009).4 O objetivo principal foi o de dimensionar o trabalho dos poetas-tradutores e o
peso de suas escolhas tradutórias no universo da tradução de poesia no Brasil no
período citado. A partir do conjunto dos dados colhidos, foi possível chegar a uma ideia
clara do espaço conquistado não somente pelos poetas-tradutores, mas também pela
própria tradução de poesia no sistema literário brasileiro.

TRADUÇÃO, PROSADORES E POETAS-TRADUTORES NA


LITERATURA BRASILEIRA

No caso da literatura brasileira, há notícia de que ainda no período colonial o


baiano Gregório de Matos fez paráfrases e imitações de poemas dos espanhóis
Francisco de Quevedo e Luis de Góngora. Já no fim do século XVIII, poetas do
Arcadismo foram buscar na Itália as normas estéticas e os modelos para a vida literária.
Nessa época, o poeta Cláudio Manuel da Costa traduziu em rima e em prosa sete peças
de Metastásio; e também José Basílio da Gama verteu o poema “A liberdade”, do
mesmo poeta, em tradução que foi publicada em Lisboa, em 1776 (PAES, 1990, p. 12).
Sabemos também que durante o Romantismo, Machado de Assis, Gonçalves
Dias e Castro Alves se dedicaram à tradução literária, principalmente de gêneros como
o romance-folhetim, o drama e a poesia. Antonio Candido demonstrou, no ensaio “Os
primeiros baudelairianos”, a influência das traduções de Baudelaire por poetas
brasileiros no decênio de 1870, na passagem do Romantismo para o Simbolismo. Tais
traduções, segundo o crítico, “definiram os rumos da produção poética, traçando a

4
A tese foi defendida em 2012 na Pós-graduação em Estudos da Tradução da Universidade
Federal de Santa Catarina. Os números apresentados aqui são levemente distintos, pois os
dados passaram por complementação após a defesa.

2
fisionomia de uma fase [da literatura brasileira]” (CANDIDO, 2006, p. 28). Candido
chama a atenção para o fato de que esses poetas eram, em sua maioria, “secundários”,
jovens rebeldes que usaram Baudelaire como “um instrumento libertador”.
“Deformavam [a poesia de Baudelaire] segundo as suas necessidades expressivas,
escolhendo os elementos mais adequados à renovação que pretendiam promover e de
fato promoveram” (CANDIDO, 2006, p. 28-31). Nas primeiras décadas do século XX,
um poeta-tradutor importante foi Eduardo Guimaraens (1892-1928), que formou, com
Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, a “trindade simbolista” do Brasil. Ele
dedicou-se à tradução de 84 poemas de As flores do mal, de Baudelaire, além de obras
de Francis James, Dante, Tagore, Heine, Verlaine, entre outros.
Na década de 1930, o mercado editorial brasileiro começava a se organizar, e a
editora Globo foi pioneira na tradução de romances policiais norte-americanos. Os anos
entre 1942 e 1947 constituíram a época de ouro da tradução para essa editora de Porto
Alegre, época em que importantes poetas brasileiros, como Manuel Bandeira, Carlos
Drummond de Andrade e Mario Quintana, atuaram como tradutores para a casa
editorial. Wyler destaca que nesse período

os tradutores não eram mais, como nos séculos anteriores, poetas


poliglotas e diletantes. Eram escritores consagrados em ascensão, ou
seja, os responsáveis em qualquer cultura pela criação e reprodução
dos padrões linguísticos do idioma (WYLER, 2003, p. 117).

Ao reconhecer a lucratividade do mercado de literatura traduzida, e por sentir


dificuldades para importar livros do continente europeu em decorrência da Segunda
Guerra Mundial, a editora José Olympio também decidiu apostar em literatura
traduzida. Com esse objetivo, recrutou um time de escritores para atuar como
tradutores, entre eles Lúcio Cardoso, Vinícius de Moraes, Guilherme de Almeida,
Raquel de Queirós e José Lins do Rego, que traduziram para essa editora nos anos de
1940 (HALLEWELL, 2005, p. 459-460). Também os poetas pertencentes à chamada
Geração de 45 engajaram-se com entusiasmo na tradução. Podemos citar Péricles
Eugênio da Silva Ramos, Geir Campos, Idelma Ribeiro de Faria, Dora Ferreira da Silva,
Darcy Damasceno, Paulo Mendes Campos, Dante Milano, Stella Leonardos, Lêdo Ivo,
Jamil Almansur Hadad e Foed Castro Chama.
Nos anos de 1960, ponto de partida da pesquisa aqui apresentada, entram em
cena os irmãos Campos e Décio Pignatari, nomes centrais da poesia concreta e que
tinham um projeto tradutório bem definido. Além deles, atuam nesta década José Lino

3
Grünewald, Mário Faustino, José Paulo Paes, Sebastião Uchoa Leite, Mariajosé
Carvalho, Ivo Barroso, entre outros. Nos anos de 1970 e 1980, Ivan Junqueira, Paulo
Leminski, Jorge Wanderley, Claudio Willer, Olga Savary, Fernando Mendes Vianna,
Anderson Braga Horta, José Jeronymo Rivera, Leonardo Fróes, Glauco Mattoso, Paulo
Colina e Carlos Nejar foram alguns dos poetas engajados na tradução de poesia. Na
última década do século XX e na primeira do XXI, o ímpeto tradutório ganhou ainda
mais força entre os poetas do Brasil, que se dedicaram à tradução como uma atividade
paralela e complementar à criação. Nessa fase, pode-se citar Josely Vianna Baptista,
Marco Lucchesi, Paulo Henriques Britto, Rodrigo Garcia Lopes, Virna Teixeira, Carlos
Felipe Moisés, Horácio Costa e dezenas de outros.
Mas como os críticos e historiadores da literatura perceberam e analisaram esse
fenômeno? Alfredo Bosi, na História concisa da literatura brasileira, um dos manuais
mais usados no país, no capítulo “Tendências contemporâneas”, reconhece que “em um
tópico de literatura brasileira não poderia faltar a referência a algumas versões de
grandes poetas que começaram a falar em português à nossa sensibilidade” (BOSI,
2006, p. 489, grifo nosso). Ele reconhece a importância do surgimento de “numerosas
traduções de poesia” na década de 1980 e afirma que os bons tradutores continuavam
sendo poetas e ensaístas que já haviam provado seu “concentrado labor textual em seus
escritos originais” (BOSI, 2006, p. 490). Bosi lista de forma aparentemente aleatória 23
traduções de poesia e seus tradutores, sem indicar a editora nem o ano da edição. No
corpo do livro propriamente dito não menciona a atividade como tradutores de
escritores e poetas como Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade ou Érico
Veríssimo. Mas há algumas exceções, nesse sentido, como Manuel Bandeira, de quem
Bosi menciona a sua atividade como tradutor, bem como os autores que ele traduziu. No
caso isolado de Guilherme de Almeida, as referências estão mais completas: as
traduções desse poeta-tradutor estão listadas, com título e ano da edição, na nota de
rodapé biográfica.
Ítalo Moriconi, por sua vez, em meados da década de 1990 também ressaltou o
lugar conquistado pela tradução entre os poetas brasileiros contemporâneos e
sentenciou:

Hoje, o ato de batismo do poeta brasileiro não é mais a publicação dos


seus primeiros poemas em suplementos literários – estes deixaram de
existir ou foram substituídos por suplementos “culturais”. A certidão
do poeta passou a ser dada pela publicação de tradução de poema
estrangeiro (MORICONI, 1997, p. 304).

4
Chama a atenção que quando historiadores e críticos desejam delimitar a
relevância da atividade dos poetas como tradutores, pelo menos no caso do sistema
literário brasileiro, deem ênfase aos que conquistaram certa fama autoral na vida
literária. No entanto, como bem demonstrou Candido, por vezes a atuação dos poetas
ditos “menores” pode ser ainda mais relevante para configurar uma determinada fase da
história da literatura. É importante que historiadores e críticos tenham observado que
são muitos os poetas que traduziram ou traduzem poesia no interior do sistema literário
brasileiro, mas é necessário também quantificá-los para, assim, determinarmos com
maior precisão a abrangência coletiva do seu trabalho.

METODOLOGIA

Todos os dados aqui apresentados foram extraídos de uma bibliografia elaborada


especialmente para a pesquisa e que compilou títulos de poesia traduzida e editada no
formato livro no Brasil entre 1960 e 2009, perfazendo cinco décadas. As fontes para a
constituição dessa bibliografia foram variadas, primárias e secundárias, desde os bancos
de dados de editoras e da Biblioteca Nacional, sebos online, até artigos especializados
que reúnem a obra traduzida de determinado autor ou a obra tradutória de determinado
tradutor. Os dados continuaram sendo atualizados e revisados após a conclusão da tese.
Somente as primeiras edições foram computadas, salvo quando a reedição trouxesse
acréscimos ou outras mudanças significativas. A partir daí, levantou-se o nome dos
tradutores e depois foi feita uma investigação biográfica sobre cada autor para saber
mais de suas atividades além da tradução.

UMA ATIVIDADE EM ASCENSÃO

No seu conjunto, os 50 anos analisados na pesquisa marcam o início e o


desenvolvimento do projeto tradutório dos poetas concretos, projeto esse que mudou os
paradigmas de tradução de poesia no país ao reivindicar maior liberdade criativa na
tradução e ao defender que a tradução de poesia não deveria buscar primordialmente a
literalidade ou o conteúdo (informação semântica), mas sim restituir a função poética do
texto. Esses poetas levaram adiante o primeiro projeto de tradução no Brasil de caráter
meditado, com o claro objetivo de promover mudanças no cânone vigente. À época, o
debate provocado pelos poetas concretos também conduziu a que se refletisse muito
mais sobre a tarefa da tradução, seja em artigos ou nos paratextos das publicações.

5
Enquanto nos anos de 1940 e 1950 era raro encontrar a reflexão dos poetas-tradutores
sobre o seu labor, nas décadas mais recentes esse quadro mudou bastante.
Em meados da década de 2000, John Milton avaliou que o número de trabalhos
publicados era de tal forma considerável que “esta área [poesia traduzida] deveria ser
seriamente considerada um gênero da literatura brasileira contemporânea” (MILTON,
2004, p. 183). A pesquisa que desenvolvi confirmou essa percepção geral de que, no
Brasil contemporâneo, a tradução de poesia apresenta números ascendentes e tem
assumido um papel significativo na renovação da literatura local.
O levantamento bibliográfico da poesia traduzida levantou 583 títulos5
publicados no período de 1960 a 2009, entre obras de um só autor e antologias de
autores, assim divididos:

Gráfico 1: Traduções de poesia, Brasil (1960-2009)

250
216
200
158
150
114 Vo
auto
100
53
42
50
Fonte: elaboração própria.

Ao comparar o número de publicações de poesia traduzida entre a década de


60 70 80 90 00
1960 e a de 2000, verifica-se um aumento significativo nesse período. Como dissemos,
nosso ponto de partida (os anos 1960) marca o início do projeto de tradução dos poetas
concretos, tendo em vista a difusão do seu paideuma. Já na década de 1970, verifica-se
uma retração que pode ser explicada por fatores políticos e econômicos. É importante
lembrar que entre 1968 e 1973 a economia brasileira teve uma forte expansão, com
crescimento anual entre 9% e 11%. No entanto, esse foi um período de repressão no
qual, segundo Hallewell (2005), a indústria editorial teve aumento das vendas, mas não

5
Os dados aqui apresentados foram atualizados em dezembro de 2015.

6
dos lucros. Em seguida, em 1973, sobreveio a crise mundial do petróleo, que foi sentida
também pela indústria do livro, causando um enorme aumento nos custos de produção
e, consequentemente, no preço de capa. A crise econômica, somada ao ambiente
político do Regime Militar que teve início em 1964 e recrudesceu-se em 1968, com o
Ato Institucional Nº 5 e a censura prévia, podem ser apontadas como fatores que
provocaram a retração refletida nos números da tradução de poesia no período. A
conjuntura repressiva levou os novos escritores, poetas e artistas a buscarem meios
alternativos de difusão. Surge a chamada “Geração Marginal” ou do “Mimeógrafo”, que
usou essa tecnologia disponível para distribuir a sua criação poética em publicações
artesanais. Assim, formou-se um circuito de produção cultural “marginal”, ou seja, às
margens do sistema formal.
Já nos anos de 1980, a edição de poesia traduzida deu um salto no Brasil. A
redemocratização, sem dúvida, foi um fator que favoreceu várias empreitadas editoriais
e um mercado para a poesia. Moriconi afirma que:

Na primeira metade da década de 80, o mercado editorial não só


sofreu expansão como também diversificação, registrando-se uma
nova demanda por publicações de formação cultural básica e abrindo-
se espaço para autores importantes que nunca tinham sido traduzidos
anteriormente no Brasil. Talvez essa demanda e essa oferta tenham
sido provocadas pelos próprios editores, interessados na segmentação
do mercado. Talvez o contexto de abertura e democratização política
tenha favorecido o surto momentâneo de cosmopolitismo na cultura
brasileira, que buscava sintonizar-se com a forma histórica da
globalização neoliberal. Em qualquer caso, uma consequência positiva
desse processo, na área da literatura, foi o surgimento de algo até
então inédito no Brasil: mercado para a poesia traduzida
(MORICONI, 1997, p. 306).

Nos anos de 1990, os números seguiram crescendo, apesar dos problemas


econômicos do início da década. Após as turbulências representadas pelo episódio do
confisco da poupança pelo governo Collor, em março de 1990, e pela instabilidade
política que culminou no impeachment do presidente, o Brasil viria a conquistar em
seguida a estabilidade da sua moeda com o Plano Real. A década de 2000 começou com
o presidente Fernando Henrique Cardoso já em seu segundo mandato. A desvalorização
da moeda brasileira, o Real, que ocorreu em 1999, causou um impacto negativo nas
finanças das editoras6 e uma retração brusca no mercado. É preciso ter em mente que a

6
Ver, por exemplo, o Relatório da Administração da Saraiva no Ano Fiscal de 1999. Disponível
em: <http://www.saraivari.com.br/port/infofinan/demonstrativo.asp?id=47>. Acesso em: 20
mar. 2011.

7
valorização da moeda estrangeira inflaciona os insumos e também os direitos autorais
pagos aos autores estrangeiros, o que encarece a publicação de livros traduzidos. Como
consequência, em 2000 e 2001, verificou-se um aumento do preço dos livros no Brasil:
houve crescimento do faturamento das empresas, mas queda nas vendas. Em 2003, Luiz
Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência da República, permanecendo até 2010.
Houve continuidade do crescimento econômico, com redução das taxas de juros e da
inflação e, o mais importante para o setor livreiro, com uma expansão da classe média,
que é sabidamente a grande consumidora de livros em qualquer país. Durante o seu
mandato, em 2003, foi promulgada a Lei do Livro,7 que instituiu uma política nacional
para o setor, além de promover a desoneração fiscal do produto. Os números dos anos
de 2000, segundo os dados do levantamento bibliográfico de tradução de poesia,
confirmam a tendência ascendente da prática desse tipo de tradução no país e a contínua
expansão do seu mercado. Verificou-se que não apenas o número de obras editadas
cresceu, mas houve também grande diversificação das línguas e das literaturas
traduzidas, além do aumento do número de poetas envolvidos com a tradução de poesia.
Podemos dizer que se assistiu, nesses 50 anos, ao amadurecimento de um mercado para
poesia traduzida no país, embora esta pesquisa não o tenha dimensionado em termos de
tiragens e vendas.

OS TRADUTORES DE POESIA

A partir do levantamento foi possível constatar que pelo menos 2898 tradutores
de poesia atuaram no país nesse período, dado esse que serve como mais um indicador
para se mapear o sistema literário e cultural brasileiro e que pode e deve ser analisado
em conjunto com os demais indicadores. Para Casanova, o número de tradutores
literários e de “poliglotas” que atuam num dado sistema literário é um aspecto a ser
destacado, pois a presença de “intermediários transnacionais” dá a medida do poder e do
prestígio da literatura. No caso das literaturas periféricas, eles seriam os responsáveis
por ligar essas línguas e literaturas ao “centro” (CASANOVA, 2002, p. 37). Nesse
universo de tradutores de poesia, 130 foram identificados como poetas.9 Ou seja, os

7
Lei no 10.753, de 30 de outubro de 2003.
8
Foram excluídos os nomes daqueles que assinaram no período apenas a tradução de um
número muito pequeno de poemas em antologias.
9
O critério para ser considerado “poeta” foi o de ter pelo menos um livro de poemas publicado.

8
poetas representaram 44,9% do universo pesquisado. No entanto, surpreendeu o fato de
que, mesmo em minoria numérica, os poetas-tradutores foram responsáveis pela
tradução de 69,4% dos títulos de poesia traduzida publicados (edições de autores
individuais) no período. Do universo de 472 obras poéticas de autores individuais
traduzidas e editadas no período entre 1960 e 2009, 328 delas tiveram a sua tradução
assinada por pelo menos um poeta.10 Esse é um forte indicador quantitativo da
produtividade e do engajamento dos poetas na tarefa da tradução de poesia no Brasil.
A influência dos poetas-tradutores é ainda maior no universo das antologias.
Constatou-se que das 111 antologias mistas de poesia estrangeira publicadas entre 1960-
2009, 86 delas, o equivalente a 77%, foram organizadas e/ou traduzidas por poetas, 23
foram organizadas e/ou traduzidas por tradutores que não eram poetas e de apenas duas
não se encontraram as referências do tradutor ou organizador. A antologização é um
relevante fator para a canonização de uma obra ou modelo literário, uma vez que ao
selecionar e organizar os textos, editores e tradutores procedem a uma manipulação que
interfere fortemente em sua recepção. Elas também têm grande poder de refletir,
expandir ou redirecionar o cânone de determinado período (GOLDING, 1984, p. 279).
O gráfico a seguir mostra o número total de antologias publicadas por década e
demonstra a parcela que foi traduzida e/ou organizada por poetas-tradutores.

Gráfico 2: Antologias por década

10
Por vezes, uma tradução é assinada por mais de um tradutor.

9
Fonte: elaboração própria.

A disponibilidade de textos traduzidos reunidos em antologias também traz


consequências às instituições de ensino, visto que as antologias costumam ser bastante
usadas com fins didáticos. E do ponto de vista editorial, por meio desse tipo de
publicação, os editores têm um instrumento para captar a atenção de determinado
público e testar a aceitação de novos autores e mercados. Portanto, o protagonismo dos
poetas-tradutores na organização e/ou tradução de antologias é um forte indicativo da
sua interferência no sistema literário brasileiro. No Gráfico 2, pode-se observar que em
todas as décadas estudadas é alta a proporção de antologias em cujos projetos estavam
envolvidos poetas-tradutores, não baixando de 70%, na década de 1960, e alcançando o
nível máximo de 81% na década de 1980. Nas décadas de 1990 e 2000, 79% e 72%,
respectivamente. Isso demonstra igualmente uma preocupação dos poetas em
disponibilizar a poesia estrangeira para o público leitor doméstico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a análise dos dados e informações, chegou o momento de se pesar quais as


consequências do trabalho tradutório dos poetas-tradutores para o sistema literário
brasileiro. Em primeiro lugar, por meio do levantamento das traduções realizadas pelos
poetas- tradutores, foi possível demonstrar a intensidade da prática da tradução entre
eles. Os poetas-tradutores representam 44,9% dos tradutores de poesia que publicaram
entre 1960 e 2009, mas foram responsáveis por quase sete entre 10 traduções de poesia
publicadas no período (obras de autores individuais). No caso das antologias, eles
estiveram envolvidos em 77% dessas publicações como tradutores ou organizadores.
Podemos afirmar com segurança que a atividade tradutória dos poetas no Brasil nas
cinco décadas estudadas não apenas ampliou o contato das letras brasileiras com
diversas literaturas estrangeiras, bem como esse trabalho foi fundamental em termos
coletivos.
Essa relação entre poetas e tradução intensificou-se a partir do projeto dos poetas
concretos, por isso a sua experiência e o seu paideuma são um referencial para se
analisar a poesia traduzida no Brasil a partir dos anos de 1960. Assim como para Ezra
Pound, para os irmãos Campos, a escolha tradutória foi vista como o fruto de uma
“militância” em prol de um projeto estético para o presente. O aparentemente simples
ato de escolha de um título e da maneira como se iria traduzi-lo começou a ser encarado

10
como uma forma de intervenção e de poder exercida pelo tradutor. Além disso, o ato de
escolher passou a ser entendido como um ato de crítica.
Ao selecionar certas obras para traduzir, os poetas trabalharam pela continuidade
ou pelo rompimento de determinado cânone, e, ao mesmo tempo, buscaram as suas
filiações poéticas e caminhos para a sua produção autoral. As escolhas dos poetas-
tradutores contribuíram para a configuração dos atuais cânones poéticos no Brasil, não
somente o cânone da poesia traduzida, mas também novas formas e/ou dicções poéticas
da poesia brasileira. Conforme Even-Zohar (1990), quando um modelo é inserido no
repertório de recursos poéticos de uma língua, ocorre um tipo de canonização de maior
relevância para o sistema literário do que a simples presença de um texto traduzido. Por
isso mesmo, quando o tradutor é também poeta, são maiores as chances da assimilação
de novos recursos estilísticos no repertório poético local. Ao usar a tradução como
forma de exercício poético, o poeta quase sempre levará algo dessa experiência para a
sua produção autoral. Além disso, conforme foi possível perceber, boa parte dos poetas,
além da tradução, esteve envolvido em outras atividades que preparam as obras para a
canonização, como a antologização e a crítica exercida nos prefácios das traduções.
Tendo tudo isso em vista, é inegável que o trabalho de tradução realizado pelos poetas
brasileiros tem sido bastante influente na configuração do sistema literário local.

REFERÊNCIAS

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