Fastplay - Malditos & Mirongas (1.0)
Fastplay - Malditos & Mirongas (1.0)
Fastplay - Malditos & Mirongas (1.0)
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Editora: Craftando Jogos
Selo: Gynga
Texto e diagramação: Daniel Pirraça
Capa: Mike Zairos
Ilustrações internas: Felipe Faria
Design gráfico: Bárbara Lucena
Direção de marketing: Pablo Powrosnek
Direção de produção: Geliard Barbosa
SOBRE O FASTPLAY
Sawubona, povo bonito! Daniel Pirraça falando.
Esse aqui é um arquivo de testes do suplemento
Malditos e Mirongas, feito para o sistema/cenário
do Kalymba RPG, que, se você não conhece, é um
jogo de RPG inspirado na África e suas histórias. O
suplemento não está pronto ainda. Na verdade, falta um
bocado de coisa, e eu ainda nem decidi se Malditos e
Mirongas vai ser o título oficial mesmo. O livro completo
terá mais ilustrações, histórias, orixás, habilidades
especiais, equipamentos e monstros, além de um
capítulo exclusivo para auxiliar o Griô (o mestre) antes
e durante as sessões de jogo. Tem muito conteúdo que
está quase pronto, inclusive com as ilustrações feitas,
mas que eu não consegui corrigir/lapidar ainda, então
não coloquei no arquivo.
Axé!
O UNIVERSO POR OUTROS OLHOS a Pirâmide se encheu de luz. A luz era boa aos olhos
de Ptum, mas ela deixava o vazio ainda mais evidente
Aiyê é um mundo habitado por povos incontáveis, – afinal, qual é sua função, se não iluminar as coisas?
cada um com suas especificidades no que tange o Então Ptum criou o Mar e a Terra, e eles preencheram
comportamento, a organização social, a religião, o aquele vácuo. Ptum achou tudo muito bom, mas ainda
folclore, a arquitetura, a alimentação, os padrões de não era hora de parar. O silêncio ainda precisava de
beleza e tudo mais. Não há um povo sequer que seja solução! Ptum então decidiu dar voz às coisas que
igual ao outro, pode acreditar. Mas não é incomum ver criara, e assim surgiram os deuses, chamados neteres.
grupos distintos de pessoas convivendo em harmonia Rhaak, o deus-sol, aquele que vigia do alto, foi o
mesmo com todas as diferenças culturais. Até espécies primeiro de todos e passou a governar os que vieram
morfologicamente distantes podem coexistir e cooperar depois. Logo após ele, surgiu Sotnak, que é o dono
entre si. No entanto, nem sempre as diferenças são das águas e guardião do abismo onde as trevas ainda
toleradas – os conflitos também existem e, de forma habitam. Em seguida, veio Aptenat, que é a senhora
geral, são a regra. Reinos e tribos de todas as raças da terra e da lama, sem a qual nenhuma criatura pode
caçam e dominam uns aos outros. Guerras sangrentas crescer. E Ptum amou os três profundamente e tomou-
se estendem por séculos, perpetuadas através das os como filhos. Nesse instante, o Grande Arquiteto
gerações. percebeu que havia realizado seu desejo. Já tinha ali
Os motivos de tanta discriminação e violência são tudo de que precisava. Mas ainda existia em sua mente
dos mais variados – desde fé, como no caso de povos uma palavra não proferida – uma que escorreu para a
servindo orixás antagônicos ou disputando o domínio ponta da língua, querendo sair. Logo ela escapuliu da
de terras sagradas, até outros tipos de discordâncias boca, e Ptum não pôde evitar. Dessa palavra, que era
socioculturais, como casamentos entre etnias e a o próprio Desejo, nasceu Sunt, a neter do querer, e só
prática de certas tradições incompatíveis entre si. A aí o coração de Ptum ficou livre da ambição.
seguir, falaremos a respeito de diferentes sociedades e Mas os neteres também eram munidos do mesmo
cosmovisões ainda não apresentadas (ou muito pouco impulso criativo de seu pai, e em pouco tempo
exploradas) no livro básico de Kalymba. O mundo começaram a trazer à existência as coisas que tinham
é vasto, heterogêneo e cheio de mistérios – e nesse vontade. E em cada coisa eles punham um nome
cenário não existem verdades absolutas. diferente e secreto, para que os outros irmãos não
pudessem comandá-las. Logo surgiram novos deuses,
e esses serviam aos primeiros. Mas Sunt sempre os
TRADIÇÃO KULVITA atiçava, dando a eles vontade própria e espírito de
conspiração, e um a um foram se rebelando. Rhaak
Antes de Ptum criar o mundo, havia apenas o Caos. era rei entre os deuses, mas vivia ocupado, voando
Um oceano infinito de desordem e loucura onde não pelos céus em sua barca mágica, vigiando a Grande
existia lei e nem pensamento: Mun-He. Mas Ptum, Pirâmide para que nada saísse do controle, e não tinha
emergindo das trevas absolutas, decidiu fazer algo tempo para tratar dos assuntos do panteão. Se uma
diferente. Ele, em toda sua sabedoria, ergueu uma única rachadura na Pirâmide passasse despercebida,
pirâmide perfeita, dentro da qual a entropia não poderia ser o fim de tudo, pois o Caos, que ainda estava
mais poderia reinar, e deu a ela o nome Aamenat, lá fora, queria entrar a qualquer custo.
que significa “ordem oculta”. A Grande Pirâmide de
Aamenat era sustentada pelos três pilares de toda a Quando Rhaak estava sobrevoando um lugar, era
existência – o tempo, o espaço e a magia, sendo este dia naquele local. Quando ele se afastava, vinha a noite,
último o maior dos três. Os pilares mantinham o caos e somente os olhos vigilantes do deus-sol – as luas –
afastado, e Ptum se agradou da obra que fez, passando ficavam para se impor contra a escuridão. Mas certo
a morar dentro dela. Esse foi o princípio do universo. dia, a confusão feita por Sunt foi tão escandalosa que
Rhaak, ouvindo os berros revoltados dos outros neteres
Mas Ptum ainda não estava satisfeito. Sentia-se que estavam sobre a terra, acabou olhando lá para baixo
solitário, vagando por aquela imensidão escura, vazia na intenção de ver o que se passava. Nesse instante,
e silenciosa. Algo mais precisava ser feito. Então enquanto o guardião do universo estava distraído,
Ptum, pelo poder de sua voz, criou o Sol, e logo toda Mun-He aproveitou a oportunidade e começou a atacar
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a Grande Pirâmide. Um, dois, três baques. Quando absorver e exterminar eram seus únicos objetivos. Os
Rhaak voltou outra vez a atenção à Pirâmide, já era povos do mundo, desunidos como eram, não tiveram
tarde – a estrutura começara a rachar, e apenas o qualquer chance, e nem os deuses podiam combater
próprio Ptum poderia reparar os estragos. Só que a tantos demônios.
essa altura, Ptum já havia se retirado do mundo e não
habitava mais entre os deuses. As hordas caóticas dizimavam as criaturas do
céu, da terra e do mar, absorvendo a essência de
Rhaak, fervendo de fúria, castigou os deuses com o tudo o que Ptum e seus filhos haviam criado, desde
calor do Sol, fazendo rios secarem (até sobrar só um) e as pedras até as aves. Os demônios mais poderosos
a selva virar deserto (um deserto sem fim). Ele também tinham planos ainda maiores. Khek Ah-Pep tentava
ordenou que Sunt passasse a acompanhá-lo em suas incansavelmente devorar o Sol, e Shoracta Mun e seus
viagens na barca celeste, para que não mais causasse irmãos conseguiram derrubar lá do alto uma das luas,
confusão lá na terra, e assim foi feito. O tempo passou, cegando para sempre um dos olhos de Rhaak. Masoba
e Rhaak continuou vigiando a Grande Pirâmide, porém Ah-Pep, o Pai Fome, devorou um deus numa só bocada,
cada vez mais preocupado com as rachaduras e cada e Liu-Bob-Ni-Dumdum derrotou a muitos outros. Foi
vez mais irritado com a irmã, que o atazanava dia e uma era terrível de medo, massacre e escravidão.
noite, exigindo coisas e mais coisas, pois é a deusa
do querer. Insatisfeita, Sunt chorava, e suas lágrimas Em certo ponto, os deuses e os mortais haviam
caíam na terra e no mar, dando origem às criaturas perdido toda a esperança de vitória. Só o desespero
mortais, tão cheias de desejos e necessidades. restava. As sombras da noite sem luar cobriam o
mundo, e tempestades de sangue e caos devastavam
E as relações entre as criaturas e os deuses lá cidades inteiras, causando naquelas pobres almas
embaixo eram reflexo da relação dos dois deuses que atormentadas um sem-número de mutações e delírios.
estavam na barca – viviam sempre divididos entre Mas então se levantou entre o povo do glorioso Reino
o dever sagrado, a ambição pessoal e o conflito. E de Kulve, o único na terra que ainda resistia ao mal,
quando, num fatídico dia, Sunt tentou tomar o controle um senhor de linhagem nobre e bravura inigualável
da barca de Rhaak, e os dois começaram a brigar, os chamado Kashtalara, o segundo de seu nome. Ele
povos lá no chão também deram início a uma guerra, começou a reunir homens corajosos dispostos a lutar,
e uma guerra sem precedentes. As batalhas no céu e tanto soldados quanto feiticeiros e mestres da ciência
na terra se prolongavam. No alto, a Grande Pirâmide ancestral, de todas as origens e raças. Sua voz e sua
se fragmentava; e embaixo, milhões perdiam suas presença eram inspiradoras, e sob seu comando foi
vidas, destruindo uns aos outros com armas grandiosas construída a mais potente arma que o mundo já viu –
abastecidas com a energia dos mesmos fragmentos que Sakra, a maior das pirâmides de guerra, feita de aço,
caíam lá de cima. Dever, inveja, morte, caos. Fratura. ouro branco e magia.
Quando Rhaak e Sunt, no meio da briga, empurraram- Conta-se que uma única rajada do olho da pirâmide
se ambos para fora da barca, a estrutura da Grande flutuante esgotava a energia de dez mil quilos de kiini e
Pirâmide enfim cedeu, permitindo a entrada do Caos. era capaz de converter a mais imponente das montanhas
Mun-He invadiu o mundo pela enorme brecha que se em pó. Com ela, Kulve pôde repelir os ataques a Naptara
formou no céu. Ele, que é a própria Entropia, uma e a Argagona, e essa foi a primeira grande vitória do
entidade amorfa e desprovida de raciocínio, absorveu povo de Aamenat contra os invasores de Mun-He. A
para si o espírito de contenda, as figuras e as ideias notícia se espalhou pelo mundo, acendendo mais uma
que pairavam sobre aquelas terras, e se materializou vez a chama da esperança nos corações dos mortais e
de milhares, milhões, bilhões de formas diferentes – dos deuses. Até mesmo o neter devorado por Masoba
desde as pequeninas, que nem podemos ver, até as se revirava no estômago, e o Pai Fome teve que vomitar
colossais, maiores que reinos inteiros. E dentre as metade do poder que tinha, para não explodir. O nome
maiores, reinava Khek Ah-Pep, o Pai Treva, a grande de Kashtalara II se tornou tão grande sobre a terra que
serpente de caos e ruína que os leigos chamam hoje até Apamanek, o deus protetor dos guerreiros, enviou
de Apófis, no idioma comum, para evitar de pronunciar seus batalhões de búfalos loucos para lutar ao lado dele.
o nome verdadeiro.
Sakra atraiu também as frotas remanescentes de
Enquanto os povos do mundo brigavam entre si, os outros muitos reinos do mundo, e em nenhum outro
demônios nascidos de Mun-He chegaram para destruir momento da história houve exército tão poderoso. Os
a todos. Eles eram um só no Caos Exterior. Possuíam a povos de Aamenat, bem como seus neteres e espíritos
mesma vontade poderosa de Sunt, porém presa a uma antigos, estavam unidos debaixo de um único estandarte
mente profana, distante do amor e da lógica, e que só e sob o comando de um único general, Kashtalara, a
pensava em ter, conquistar e roubar. Possuíam também quem foi prometida a vida eterna como recompensa. As
o mesmo senso de dever de Rhaak, mas voltado para histórias das batalhas que se seguiram e que libertaram
a tortura e a aniquilação de todo ser vivente. Dominar, a Grande Pirâmide dos demônios de Mun-He não
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cabem neste livro. Nos dias finais da opressão, quando sempre. Em pouco tempo, os segredos de Kashtalara
o Carrapato caiu dos céus e Khek Ah-Pep foi enfim foram revelados e novos reis múmias surgiram. Mesmo
derrotada, sete neteres deram suas vidas para selar a assim, o grande Império de Kulve começou a ruir, pois
fenda na estrutura da Grande Pirâmide, para que as eram muitas as revoltas entre os povos dominados,
criaturas do Caos não mais entrassem. Seus nomes além dos ataque de bárbaros, deuses e monstros
foram esquecidos pelo mundo, mas seu sacrifício será sem fim. Sem mais kiinis, Kulve voltou ao deserto e
para sempre lembrado pelos filhos de Kulve. lá permaneceu. Ainda é grande sua riqueza, e muitos
neteres passaram a viver entre eles como juízes e
Quando a guerra terminou, o nome de Kashtalara deuses-reis, mas o poder dos Átons decaiu ao longo
foi exaltado acima de todos, e ele se tornou um deus das eras.
entre os mortais. Kashtalara foi o primeiro Áton de
Kulve, aquele que manda sobre todos os reis de todas As dinastias kulvitas, em seus altos e baixos, já
as cidades kulvitas, desde o Reino Alto até o Baixo, e se contaminaram com a feitiçaria fraturiana, com a
até os neteres são passíveis de seu julgamento. Mas alquimia adroanzi, com as culturas dos escravos e
os deuses que lhe haviam prometido a imortalidade, com as filosofias terugas, que pregam a rebelião e
temendo o poder que ele tinha nas mãos, recusaram-se a imoralidade. Mas ainda existe a esperança de que
a dar o que era dele por direito, pois sem a morte para surja um Áton capaz de restaurar a glória do Império
pará-lo, Kashtalara certamente dominaria o mundo Solar e mais uma vez unir o mundo. O que será dos
inteiro. Revoltado, o grande Áton amaldiçoou os neteres povos de Aamenat se Mun-He retornar e Kulve não for
que o traíram, e o culto a eles foi proibido em toda capaz de combatê-lo? Que a sabedoria guie os passos
terra de Kulve. (A proibição durou apenas dois anos, do grande líder rumo ao progresso, abençoe as mãos
pois a fé do povo nos divinos era forte e não pôde ser dos soldados e dos artesãos e proteja as cabeças dos
suprimida. Mas nesse período surgiram os primeiros camponeses, pois há muito a ser feito e muito mais
cultos organizados que adoravam a figura do Áton, e para conquistar.
que cresceram a ponto de tornarem-se as religiões
dominantes nas terras kulvitas, tempos depois).
» VIDA E MAGIA PARA OS KULVITAS «
Kashtalara, em sua revolta, decidiu que jamais iria
para o Neter-Khertet, o Reino dos Mortos, onde vivem Os seres vivos são compostos por cinco unidades
os deuses e os espíritos. Ele seria imortal a qualquer básicas. A primeira delas é khat, o corpo, a forma física
custo e reinaria para sempre entre os vivos. Então frágil e perecível que serve de recipiente para os demais
o Áton ergueu uma cidade em torno da pirâmide de elementos. Em seguida, vem ib, o coração, que é onde
Sakra, que havia sido desativada, e enviou para morar ficam os sentimentos e o caráter. Ib é a fonte do bem e
nela cinco mil sábios, feiticeiros e estudiosos, todos do mal que existem em cada indivíduo. Então vem akh,
dedicados a encontrar uma solução para a velhice e que é o espírito, a essência imortal de todo ser vivo.
a morte – a maldição suprema dos deuses, até então Depois vem ren, que é o nome verdadeiro e secreto
inevitável. Após doze longos anos, estava pronto o ritual que todo ser possui, seja ele vivo ou inanimado. Por
da mumificação perfeita, do qual todos já ouviram falar, último vem shwt, a sombra, que é a protetora tanto do
mas que apenas os sacerdotes mais próximos do Áton corpo quanto da alma.
conhecem profundamente.
Após a morte, khat (o corpo) se desfaz, e então akh (a
Kashtalara se tornou o primeiro Rei Múmia, e Sakra alma) é levada por Abnur, a Morte, até o Neter-Khertet.
foi a primeira de todas as necrópoles sagradas de Kulve. Lá, ib (o coração) é pesado pelos deuses na Balança
Os sábios, feiticeiros e estudiosos que participaram do das Três Verdades, e eles julgam se a pessoa viveu
desenvolvimento do ritual, bem como seus familiares, uma vida digna ou indigna. Após o julgamento divino,
foram executados com honrarias e cremados para que há três destinos possíveis para a alma de um morto. Se
jamais revelassem o segredo do soberano Áton. Sob a durante a vida o indivíduo tiver feito mais bem do que
liderança de Kashtalara, Kulve se tornou a maior de mal, sua alma será enviada para os Campos de Junco,
todas as nações de Aamenat. O próprio Apamanek, ou seja, o paraíso, onde habitará entre os neteres e as
deus guerreiro, invejando o Rei Múmia, tentou destruí- estrelas do céu até o momento da reencarnação. Se o
lo com seus búfalos e assassinos, e Sekhnim, deus das indivíduo tiver feito tanto bem quanto mal na mesma
doenças e tormentos, enviou dez pragas para punir o medida, será mandado para o Submundo, onde lhe
povo – mas tudo em vão. Por muitos séculos, Kashtalara serão negados os prazeres do pós-vida até que aprenda
reinou sobre a terra, e só o mar não foi conquistado. o dom da virtude.
Foi depois da Crise dos Fractais (que culminou na Já os criminosos, rebeldes e profanadores serão
destruição completa de Naptara, a antiga capital civil tragados por Ahmait, a diabesta devoradora de almas,
dos kulvitas) que os sacerdotes do Áton conspiraram e em seu estômago serão atormentados dia e noite por
contra ele, aprisionando sua alma e seu corpo para legiões de espíritos malignos. Seja qual for o destino do
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indivíduo, sua alma imortal jamais é destruída, a não Para os kulvitas, as estrelas revelam o destino – tanto
ser que seu ren (o nome secreto) seja apagado. O ren o das pessoas, individualmente, quanto do mundo
é o nome dado à própria alma, e que é mantido mesmo como um todo. Dessa forma, a astrologia de lá substitui
após a reencarnação. Ele é a palavra absoluta que o jogo de búzios, mas funciona melhor para prever
descreve toda a essência de um ser. Se for descoberto, eventos distantes (que acontecerão dali a dezenas ou
pode ser usado para praticar coisas terríveis contra seu centenas de anos) do que eventos próximos (como os
proprietário. Se for apagado, a alma (akh) do dono deixa da semana seguinte).
de existir para sempre. Os neteres conhecem os rens
de seus filhos e das coisas que criaram, e é assim que A explicação que outros povos dão para isso é que, na
os controlam, abençoam ou amaldiçoam. Mas só Ptum verdade, os kulvitas estariam olhando para os galhos de
pode apagar um ren por completo, pois a ele pertence Kokori, o Tempo, que alcançam as alturas do infinito,
o Livro dos Eternos, onde todos os nomes sagrados chegando até as estrelas. Como os galhos contêm o
estão escritos, inclusive os dos próprios deuses. futuro e todas as suas possibilidades, os kulvitas são
capazes de observar, através de suas máquinas de
Para os kulvitas, o ren também é importante na lentes, o destino que seria revelado pelo Dezesseis.
prática da magia. Se fazer feitiço nada mais é do que Mas esse não foi o método ensinado por Moyla, então
comunicar-se com o universo ao redor, muito mais os astrólogos pagam um preço alto por quererem ver
poderoso é o feitiço que inclui o nome secreto de cada mais do que deviam. Ao longo dos anos, eles vão
coisa. Para melhor compreensão, imagine-se em meio ficando cegos por passarem tanto tempo olhando para
a uma multidão de pessoas, e imagine que, lá longe, o céu, e muitos deles também enlouquecem, pois não
você avista um amigo de quem gosta muito, ou talvez podem compreender as coisas lá de cima. E esse seria,
um sujeito que lhe deve dinheiro. Então você começa supostamente, um castigo dos deuses pela ousadia
a assoviar, a bater palmas e a gritar, tentando chamar dos kulvitas.
a atenção dele. Com sorte, ele pode até olhar para trás
tentando ver o motivo do barulho, mas no meio da Os sábios de Kulve retrucam dizendo que a leitura
muvuca, isso seria um tanto difícil. Seria muito mais dos astros foi-lhes ensinada por Shukon, a deusa que
efetivo se você simplesmente o chamasse pelo nome, habita a lua, o olho restante de Rhaak. Shukon, para
não concorda? Decerto ele procuraria saber quem o está eles, é quem guarda o Livro das Eras e, por isso, é a
chamando, e então vocês poderiam enfim conversar. única que pode acessar o futuro. (Em Kulve, inclusive,
O mesmo acontece com o universo. Palavras comuns utiliza-se o calendário lunar por conta disso). Os magos
e palmas podem funcionar, mas chamá-lo pelo nome das estrelas também afirmam que a cegueira e a loucura
é garantia de sucesso. não são castigos divinos coisa nenhuma. O que cega
mesmo é a luz de Rhaak e dos neteres que vivem lá
Por isso os magos de Kulve se dedicam tanto ao no alto, e é uma honra perder a visão dessa maneira,
estudo dos rens, e por esse mesmo motivo até aqueles contemplando diretamente o divino. E o que de fato
que não têm dom para a magia podem realizar grandes causa a loucura dos astrólogos é observar as fendas
proezas ao proferir os nomes secretos das coisas. Na na estrutura de Aamenat, a Grande Pirâmide, por
sociedade kulvita, os nomes ocultos dos Átons são de onde é possível contemplar Mun-He, o oceano de
particular importância, pois se tornam essenciais no Caos. A exposição a ele é o que corrompe a sanidade.
processo de mumificação. As inscrições feitas no vaso Ainda assim, esse preço é ínfimo se comparado às
canópico e nas paredes da pirâmide de um Áton jamais vantagens de saber o que acontecerá no porvir. Com
podem ser apagadas, ou ele perderá para sempre sua esse conhecimento, o Áton pode guiar o grande povo
imortalidade, pois é o nome que o prende ao mundo de Kulve no caminho da prosperidade e da conquista.
físico. Graças a isso, a maioria dos reis múmias nunca
se afastam de suas cidades sagradas, construídas
para abrigá-los no pós-vida. Apenas lá eles se sentem » SOCIEDADE KULVITA «
verdadeiramente protegidos.
A sociedade kulvita é dividida em um sistema rígido
Os kulvitas também creem que a vida só pode existir de castas. Na base da pirâmide social ficam os escravos,
enquanto houver equilíbrio entre as forças cósmicas tanto os trazidos de outras regiões quanto os cidadãos
do céu (o divino, que é eterno) e da terra (o mundano, de Kulve que, por conta de dívidas, foram acorrentados
perecível). Como, para eles, o reino dos deuses fica e vendidos para compensar seus credores. Quanto à
entre as estrelas, os sábios de Kulve têm a prática de questão das raças dos escravos, ela pouco importa
observar os astros constantemente, procurando neles para a maioria dos senhores. O que interessa é se o
algum significado. Acredita-se que tanto os neteres sujeito trabalha bem, mesmo que o chicote precise
quanto os espíritos ancestrais podem se comunicar estalar de vez em quando. Acima dos escravos estão
com os mortais através deles, e que qualquer catástrofe os camponeses, aqueles que trabalham nas lavouras,
pode ser predita pelas distorções nos corpos celestes. na pesca em outros tipos de trabalhos braçais. Depois
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vêm os artesãos, que fazem todo tipo de instrumento margem sul são o Reino Baixo. Os treze afluentes do
útil no dia a dia, seja esculpindo em pedra, modelando Tanar abastecem todas as terras sob o domínio do
barro, tecendo roupas e tapeçarias ou trabalhando Áton, e se algum rei se rebela contra a soberania de
metal, por exemplo. Merión, os feiticeiros logo desviam o curso dos rios para
cortar o suprimento de água da cidade insurgente. Nas
Já as castas superiores são compostas pelos escribas, terras áridas do deserto, o Tum-Tanar e seus filhos têm
que registram histórias, fórmulas e documentos em importância vital. Em Kulve, os períodos de transição
tabletes de argila ou papiros; pelos soldados, que entre as cheias e vazantes são determinantes para o
protegem as cidades e os reis, além de darem um sucesso das colheitas e da pescaria.
jeito nos vagabundos; pelos sacerdotes e magos, que
administram os templos e os rituais mágicos; e, enfim,
pela nobreza, que está no comando de tudo. Mas o
Áton, é claro, está acima de qualquer um, e a palavra A FÉ EM OLODUM
dele é a lei absoluta. Ele é como um deus entre o povo,
A vasta maioria dos povos de Aiyê reconhece a
e a cada vez que é glorificado por seus súditos fiéis,
soberania de Olodum sobre o universo e sobre todas
adquire mais honra e poder.
as formas de vida que ele contém. Olodum criou as leis
Um Áton, durante todo seu reinado, deve trabalhar da realidade, criou os orixás e, portanto, é proprietário
nos preparativos para sua morte e mumificação. Isso de tudo o que veio depois. Seja qual for o nome que
inclui a construção de uma cidade sagrada própria cada povo dá a ele, Olodum é Deus, aquele que sabe
onde poderá reinar para sempre após a ressurreição de todas as coisas desde o princípio até o fim, e os
(ou seja, uma necrópole). Quando o Áton sente que orixás são apenas seus subordinados, as entidades
é hora de partir, já tem tudo pronto para o ritual. Ao que gerenciam o mundo enquanto o Supremo não
ser morto, ele leva consigo uma parcela considerável está. As pessoas creem que a vontade de Olodum é
dos principais membros das castas superiores que cumprida através de seus filhos divinos, e que todo
o serviram em vida – dessa forma, quando forem ebó e canção oferecidos a eles estão sendo, em última
também mumificados, poderão servir o grande rei instância, oferecidos ao pai que os criou.
múmia durante toda eternidade.
Mas nem todos os povos concordam com essa
Nas eras passadas, as pirâmides dos Átons, erguidas ideia. Para alguns grupos, os chamados olodumistas,
para servir-lhes de palácios no pós-vida, eram muito é sim possível prestar culto diretamente ao Supremo,
mais imponentes, feitas de materiais como ferro, prata sem ter que recorrer aos orixás ou a quaisquer outras
e ouro, imitando a grande pirâmide de Sakra. Mas entidades para tal. Se Olodum conhece todas as coisas,
com o passar do tempo, ao tornarem-se escassos os ele é capaz de ouvir as preces dos mortais, e se é
recursos e as tecnologias, os metais foram substituídos onipotente, é também capaz de atendê-las se quiser.
por pedra, e o ouro ficou reservado apenas para os Para os olodumistas, a mandinga nada mais é do que
sarcófagos atônicos. Ainda assim, os corpos dos Átons comunicar ao Supremo as vontades de seu coração
são sepultados junto a muitas riquezas, desde pedras e, com isso, fazer com que a realidade (criada por ele
preciosas e vestes de luxo a escravos. próprio) se modifique – ou seja, qualquer pedido feito
a Olodum da maneira correta pode ser realizado.
As muitas cidades kulvitas espalhadas pelas fronteiras
do Deserto-sem-fim são fortamente guardadas. Cada Como, na visão olodumista, o Supremo não é bom
uma é governada por um rei subordinado ao Áton, mas nem mau, e sim absolutamente neutro em relação ao
que tem autonomia para mandar e desmandar nos universo e às pessoas, ele atende os pedidos tanto
assuntos internos de sua jurisdição. Kulve também daqueles que almejam o bem comum quanto daqueles
conta com 42 juízes, que são todos neteres que ali vivem que usam a magia para fins egoístas e perversos. A
e continuam a ser adorados pelo povo. Para serem mente determinada e bem instruída agrada Olodum,
facilmente reconhecidos quando estão em público, e isso basta para convencê-lo a atender suas súplicas.
os juízes vestem elmos com formatos de cabeças Segundo essa visão, o julgamento dos mortos no Orun
de animais – falcões, chacais, íbis, vacas, carneiros, separaria apenas os fiéis dos infiéis – aqueles que
crocodilos, escaravelhos ou outros bichos conhecidos verdadeiramente adoraram o Criador daqueles que,
na região, cada um com seu simbolismo próprio. O em seus corações e atitudes, o rejeitaram.
Áton, soberano, reina na capital (hoje, Merión), e exerce
Não que seja errado cultuar os orixás – afinal, o
influência sobre todas as cidades, estando acima até
próprio Olodum os instituiu como seus representantes –
dos próprios deuses.
mas é certo que o ori jamais deve se desviar da adoração
Há um grande rio chamado Tum-Tanar que corta ao Supremo. E em suas intrigas e exigências fúteis, os
ao meio o Reino de Kulve. As cidades construídas na orixás por vezes acabam sendo empecilhos para o povo,
margem norte formam o Reino Alto, enquanto as da que se perde em meio aos conflitos, aos rituais e às
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crendices que nublam a mente e a tornam incapaz de pó brilhante e de aparência mágica, e que grandes
perceber a verdade. Os orixás deveriam ser um canal formações cristalinas apareciam sob a terra, feitas do
para que os mortais alcançassem Olodum, mas, de mesmo material. No começo, era tudo muito estranho
acordo com essa cosmovisão, ambos se corromperam – uma parte do povo dizia ser mau presságio, outra
ao longo das eras. Os orixás acabaram por se tornar o parte cria ser bênção dos orixás. Mas com o passar
fim, não o meio, e isso contraria os planos originais do dos anos, os kiinis se tornaram tão comuns quanto
Divino, que é o único merecedor da honra e dos ebós. a chuva e as tempestades de areia. Isso até o dia em
que foi descoberta uma nova função para os cristais, e
Enquanto uma parte dos olodumistas tenta eles viraram fonte de energia para todas as máquinas
manter o equilíbrio e a essência verdadeira do culto metálicas que os reinos do mundo criavam.
aos orixás, que é a fé em Olodum, as vertentes mais
extremas pregam que os deuses falharam e devem ser Hoje em dia, a maioria das pessoas nem sabe o
descartados, completamente eliminados da prática que é um kiini. Muita gente nunca ouviu falar, e quem
religiosa, para que as pessoas não corram o risco de ouviu, nunca chegou a ver de fato. É o tipo de coisa que
se perderem em meio a tantas crenças conflitantes e só se encontra em posse de aventureiros loucos, que
desígnios duvidosos. Atualmente, os povos do deserto exploram ruínas antigas e terras distantes em busca
são os maiores bastiões do olodumismo, e o povo do de riquezas, e de contrabandistas, sempre dispostos
Califado de Singa é o que assume a posição mais radical a usar os segredos do passado para obter lucro. São
quanto ao panteão. Em Singa, essa fé recebe o nome poucos os kiinis que ainda espalhados por aí, menos
de alihadismo, pois lá Olodum é chamado Alihad (ou ainda os que de alguma forma preservaram sua energia
Alisif), e os líderes espirituais são chamados marabs. ao longo das eras. E mesmo quem os tem nas mãos não
Embora haja fiéis contrários à existência desses gurus, sabe explicar direito como esses cristais funcionam.
eles continuam à frente de quase todos os cultos e É mistério.
templos do Kalabaya, mantendo vivas as tradições
dos antepassados. Mas mistérios nunca foram problema para as
criaturas das profundezas. Elas conhecem segredos
que as civilizações da superfície há muito perderam, e
A FÉ NOS ESPÍRITOS elas sabem melhor do que ninguém que os kiinis não
são algo com que se deve brincar. Os cristais escondem
muitos perigos. Os bobalhões que os usavam para
Uma prática quase onipresente em Aiyê é o culto
fazer tinturas para cobrir a pele e as casas acabaram
aos espíritos. Na visão de muitos, os ancestrais,
contaminados com aquela energia estranha. Com o
os guardiões e outras entidades menores do Orun
tempo, o pó entrava pela pele e pelas narinas e passava
estão mais próximas do dia a dia dos mortais do que
a correr no sangue, causando doenças e loucura. Os
os próprios orixás e, portanto, podem interceder
dentes amoleciam, a pele ressecava, a visão ficava turva
pelos seres mundanos junto ao panteão. Por isso, é
e o ori se tornava mais confuso e irritável.
necessário fazer com certa frequência ebós dedicados
aos antepassados e aos espíritos protetores do Outro Quem usava kiini como ingrediente tinha destino
Mundo. Essa prática de forma alguma exclui a fé nos pior – a língua ficava dormente, feridas surgiam no
orixás – ela a complementa, pois fortalece a conexão estômago, os rins petrificavam, os intestinos passavam
entre os mortais e os divinos. Para os curandeiros de a se mover como serpentes e cagar era dolorido.
todas as tribos e nações, faz-se essencial o conhecimento Os meninos cresciam com voz fina e as meninas
acerca da invocação e incorporação dos eguns, não tinham cólicas anormais. Mas como os sintomas da
importa o quão diferentes sejam suas crenças sobre contaminação só eram visíveis a longo prazo, as pessoas
a vida, sobre os deuses e sobre o futuro. Até o mais não os associavam aos kiinis e continuavam a usá-los.
sangue-ruim dos espíritos tem lições valiosas a ensinar. Demorou para que os malefícios fossem descobertos,
e em aldeias inóspitas, eles continuaram sendo usados
dessa maneira. Por sorte, nem todos os lugares do
A FÉ EM KONULO mundo tinham kiinis, e muitos vilarejos atravessaram
a crise ilesos.
Nos dias remotos da Primeira Era, os kiinis, os
cristais de poder, caíam do céu e brotavam do solo, Ainda assim, os danos foram severos na maioria
e as pessoas os colhiam de tempos em tempos e os dos reinos de Aiyê. Bilhões foram afetados. E o uso
armazenavam em recipientes de metal. Depois disso, dos cristais não parou, mesmo que agora eles fossem
eles poderiam ser dedicados aos mais diversos fins – dedicados a outras coisas (dentre as quais a principal
viravam desde ingrediente para tinturas até tempero era energizar as máquinas). E quanto mais os povos
para comida. Conta-se que em algumas regiões as usavam os kiinis, mais se tornavam dependentes deles.
casas e as plantações amanheciam cobertas de um Tornaram-se o pilar central de todas as grandes cidades,
e a cultura do aço e do instantâneo se espalhou pelos
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cantos do mundo. Isso também afetou a forma como na visão de muitos, foi apenas uma sombra pálida
os povos faziam guerra. As novas lanças podiam cortar da Primeira, mas que, para os povos do mar, foi um
aço como se fosse manteiga de carité, e os novos tempo de restauração e paz. Isso até que veio a profecia
arcos disparavam dezenas de rajadas por segundo, final de Moyla, a que afirmava serem os humanos os
obliterando os alvos num piscar de olhos. Levar a culpados pela Última Hecatombe. O fim do mundo
morte ao inimigo era muito mais fácil, pois mesmo novamente batia à porta.
um soldado comum tinha mais poder de destruição
que um feiticeiro das antigas. Algo precisava ser feito. Então, enquanto os outros
orixás discutiam entre si, completamente desorientados,
Até as tochas foram substituídas por esferas brilhantes Konulo agiu. Ele enviou suas dezoito esposas para
de kiini, e as fogueiras que cozinhavam a comida, e espionarem os humanos na tentativa de descobrirem o
ao redor das quais os griôs contavam histórias, foram que eles estavam tramando. As damas abissais, todas
trocadas por caixas-quentes e quadros mágicos de vidro. feiticeiras habilidosas, assumiram a forma de belas
Mandinga se tornou ciência, feiticeiro se tornou mago humanas (das mais lindas que se pode imaginar), e
e inventor. Era aquele o princípio do fim. Mesmo sem cada uma foi para um reino diferente. Passado um
Fratura, o mundo teria sido arruinado. Todo o suposto tempo, se não houvesse mais suspeitas, elas partiam
progresso daquela era cobrava um custo alto, mais alto para outras regiões à procura das informações de que
do que o universo estava disposto a sustentar. Os griôs precisavam. Levou uma década até que o segredo
da superfície hoje contam sobre muitas das catástrofes maldito viesse à tona. Um segredo terrível, de fato.
que a tecnologia causou. Ainda assim, algumas foram Impronunciável, inconcebível, deve-se dizer. O ápice
esquecidas. Ou melhor, propositalmente apagadas, da ganância humana!
pois eram inconvenientes.
Quando soube a respeito da Coisa que poderia
O que os terrestres ignoram, o povo da água lembra destruir Aiyê, e que de fato estava nas mãos de um
– em especial, aqueles que vivem nas profundezas, onde certo Povo, Konulo se encontrou diante de uma difícil
Konulo habita. As máculas da Primeira Era também decisão: se deveria acabar com o tal Povo naquele
quase extinguiram a vida no mar, e isso não foi culpa momento ou se deveria permitir que o mundo todo
dos demônios do além, mas culpa das criaturas da acabasse. (Bem, talvez não tenha sido uma escolha tão
superfície. Muitos dos resíduos e do lixo despejados no difícil assim. Qualquer um com ori forte e um pouco
oceano naquela época ainda contaminam as águas de de miolo faria o mesmo). No entanto, como a Coisa
Aiyê, que hoje não abrigam nem metade das espécies não era uma coisa só e estava em posse de muitas
que nelas habitavam nos tempos de glória. As grandes mãos e muitas mentes em vários lugares diferentes –
civilizações marinhas que outrora dominavam o mundo era ainda uma ideia, um projeto incompleto – Konulo
submarino foram cruelmente envenenadas, e quando viu-se obrigado a descumprir a sagrada lei de Olodum,
tentaram reagir, foram mortas por meios ainda mais seu pai, e usar seus próprios poderes de orixá para
covardes. resolver o caso.
Konulo, de seu palácio no abismo, viu seus filhos O tempo era curto, e o Senhor das Profundezas
sofrerem e perecerem como se suas vidas não tivessem se recusava a colocar os povos marinhos, seus filhos
valor. Isso enfureceu o Rei Abissal, e sua fúria foi queridos, em meio a uma outra guerra sangrenta, mesmo
tremenda. Ele declarou guerra contra a superfície, que o destino do mundo dependesse disso. Ele preferiu
destruindo todas as máquinas profanas que os terrestres agir por conta própria e corajosamente suportar todas
puseram no mar, tanto as de batalha quanto as de as consequências de sua decisão. Konulo levantou as
ciência. Konulo também retirou sua barbatana protetora ondas do mar – ondas de dimensões jamais vistas – para
de sobre os povos da terra, abandonando quaisquer destruir a ameaça de uma só vez. O segredo sombrio
devotos que não tivessem nas veias sangue de criatura relativo à natureza da Coisa, não iremos revelar. Aliás,
aquática. Os filhos do oceano ficaram proibidos de somente o próprio Rei Abissal e suas esposas têm esse
habitar a terra, e as praias passaram a ter ondas para conhecimento. As almas daqueles que foram levados
devolver à superfície o lixo que os boçais atiravam no pelas águas de Konulo foram arrastadas para o abismo,
mar. Laços cortados, mundos separados. Konulo é para que jamais pudessem revelar aos outros orixás e
salvador. mortais o segredo da Coisa.
O tempo passou e muitas outras mudanças Tendo desobedecido a regra de Olodum, Konulo foi
chegaram. O desfecho todos já sabem (ou ao menos acorrentado por seus irmãos ao fundo do oceano, e lá
pensam que sabem). Aiyê caiu nas mãos dos fraturianos, permanece até hoje. Preso injustamente por fazer o
e o próprio Senhor das Profundezas concordou em que era necessário. O rei do mar, agora tratado como
ajudar na batalha, unindo-se aos exércitos terrestres criminoso. Mesmo assim, é compreensível que os
para expulsar os invasores vis. Então o mundo se ergue ignorantes da superfície tenham propagado a ideia
novamente, dando início à Segunda Era – período que, de Konulo ser algum tipo de entidade sádica e sem
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sentimentos – afinal, foram as cidades deles que ruíram enquanto seres da superfície, não são burros nem
perante as ondas da Hecatombe. É fato que não apenas desinformados – sabem muito bem que não receberão
os humanos do Povo sofreram as consequências da qualquer bênção de seu orixá. O que os leva a cultuá-lo
inundação. Terras incontáveis foram devastadas e é, na verdade, uma causa maior – a mesma defendida
raças inteiras deixaram de existir. Um mal necessário, pelo Rei Abissal e sua prole – a saber, a destruição da
no entanto. Todas as formas de vida corriam risco de humanidade e a salvação do mundo material.
extinção, tanto na superfície quanto nas águas do mar.
Konulo apenas concluiu que era melhor que algumas Esses “filhos ilegítimos” de Konulo, sendo poucos e
perecessem do que todas fossem aniquiladas. mal vistos pela sociedade, preferem agir pelas sombras,
sem revelarem suas verdadeiras intenções. Formam
Mesmo que o Povo fosse destruído, Konulo sabia que pequenos grupos sectários que se reúnem em segredo e
o mundo jamais estaria a salvo enquanto existisse um conspiram contra a humanidade e seus aliados. Assim
único humano sobre Aiyê. A praga precisava ser contida como qualquer devoto do Senhor das Profundezas,
a qualquer custo. Mas o Senhor das Profundezas eles almejam a total e absoluta destruição dos homens.
não teve tempo bastante para concluir seu plano. Os sectários de maior influência, aqueles mais ricos e
Os outros orixás interferiram. As regiões costeiras sabidos, podem até mesmo tramar planos grandiosos
foram eliminadas com sucesso, mas as do interior para depor reis favoráveis aos humanos e levantar
permaneceram a salvo. Konulo caiu, e o segredo da outros que os reprimam. Nas cidades em que os seres
Coisa afundou com ele, mas os humanos sobreviveram e humanos são proibidos ou mortos, é certeza que tem
puderam se reproduzir. A população cresceu, e cresceu cultista de Konulo envolvido.
mais do que a de qualquer raça, e hoje essa gente é
uma peste que se alastrou pelo mundo inteiro. Pouca Alguns sectários acreditam que, se a praga humana
esperança resta para o futuro, a menos que o grande for contida antes de Konulo se libertar da prisão
Rei Abissal se erga novamente e termine seu trabalho. submarina, não será mais necessário que o mundo seja
varrido pelas águas, e as criaturas da superfície serão
Mas da próxima vez, decerto tudo será mais fácil – todas poupadas (tanto da Última Hecatombe quanto
afinal, a Coisa agora pertence a ele, e nenhum outro de um segundo dilúvio). Outros servos do Rei Abissal,
orixá tem esse poder. Aiyê precisa de salvação, e ela não vendo mais esperança para o mundo, buscam uma
está no abismo, onde os Senhor dos Segredos aguarda. forma de libertar seu mestre o mais rápido possível,
Embora muitos de seus filhos tenham debandado, e alguns deles contando com a misericórdia do Senhor
até algumas de suas esposas tenham sido mortas ou dos Segredos, que, por gratidão, supostamente os
cometido traição, Konulo permanece firme em seu transformaria em criaturas marinhas antes de fazer
dever de livrar o mundo da humanidade. Os devotos a “limpeza” da terra. Há, no entanto, um outro tipo de
que continuam fiéis carregam a mesma missão e têm sectário: aquele que caça humanos por ódio, por sede
no peito o ódio por tudo aquilo que ameaça a vida de vingança, ou até por tesão. Sectários desse tipo
marinha. Mesmo que as próprias jengus já tenham costumam ser pouco discretos e, por agirem somente
esquecido de seu pai, chegará o dia em que Konulo as por interesses pessoais, também pouco leais à causa.
chamará pelos nomes, e nenhuma delas poderá resistir Ainda assim, não deixam de ser um perigo, e servem
à voz muda e poderosa do Deus do Escuro. Até lá, que de ferramenta útil para os líderes do movimento, que
os nommos conspirem, matem, roubem, dominem e ainda sonham com a salvação mundial.
façam tudo o que for necessário para proteger o grande
reino de água, custe o que custar, da mesma forma
que seu senhor o fez. A TRADIÇÃO ESCRITA
Para a vasta maioria dos povos de Aiyê, a escrita
» SECTÁRIOS DE KONULO « não é uma prática comum, e alguns deles até a veem
com maus olhos, pois, na visão deles, ela chega para
As correntes mágicas que prendem obá Konulo ao substituir a palavra falada, que é sagrada, e para tirar
fundo do oceano podem até suprimir seus poderes, a autoridade dos mestres e dos mensageiros, já que o
mas não são capazes de contê-los por completo. O conhecimento pode ser passado friamente através de
Rei Abissal continua a abençoar seus filhos, dando a símbolos estranhos e sem vida. Numa aldeia pequena,
eles a força para combater qualquer um que ameace encontrar uma só pessoa que saiba ler e escrever é
o equilíbrio marinho. Só que, embora Konulo ofereça um verdadeiro milagre. Mesmo os reis e os babas
proteção apenas para os seres que habitam a imensidão usam somente a voz como ferramenta de poder, e as
azul do mar, a fé no Senhor das Profundezas também letras não fazem falta. Nas grandes cidades, a escrita
é, algumas raras vezes, praticada fora d’água, e por também é rara, dominada apenas pelos escribas e por
espécies que nada têm a ver com os reinos oceânicos. alguns nobres e comerciantes. Em média, apenas uma
Esses terrestres, os que adoram Konulo mesmo em cada duzentas pessoas é capaz de ler e escrever
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textos simples, e apenas os escribas dominam de fato herbalísticas, e é inegável que alguns deles (como a
a arte das letras. Estela dos Reis de Areia e o Livro dos Desmortos)
possuem auras místicas que qualquer um é capaz de
Nesse contexto, Mendan, que é o maior dos reinos sentir, bastando contemplá-los, mas ninguém pode
da Costa da Safira, é uma bela exceção. A cidade de de fato explicar.
Timbuk abriga a grande Universidade de Korsane, o
que talvez seja hoje o maior polo intelectual de toda É preciso comentar também a relação dos povos
Aiyê. Muitos milhares de professores e alunos redigem terugas com a língua escrita, pois talvez sejam eles
montanhas de cartas e informativos todos os dias, os que dão maior valor às letras, tratando-as como
tratando dos mais variados assuntos, e a produção forma de arte e atestado de nobreza. Entre as tribos do
e venda de livros é para Mendan um negócio mais deserto, a escrita é uma tradição associada a sabedoria
lucrativo que o próprio mercado de ouro e pedras e status social, embora a leitura seja ensinada até à
preciosas. Os tomos são levados para vários cantos classe servil. (A ralé pode ler, mas escrever é tabu).
do mundo e abastecem as bibliotecas de reis, buanas Os terugas fabricam pergaminhos com pele de animal
e feiticeiros. É através dos portos, principalmente, que e os usam para redigir tratados de paz, acordos de
esse material se espalha pela Costa da Safira e chega casamento, poesias, lendas, divagações filosóficas,
também a cidades mais distantes. E enquanto em genealogias, cartas para amigos, diários, recibos de
outros reinos o acesso à palavra escrita é monopólio compra e venda e até literatura de lazer. Nas culturas
dos poderosos, em Mendan uma a cada quatro pessoas de alguns desses povos, a caligrafia é uma atividade
é letrada, e por isso placas e murais de avisos podem que toda mulher deve desempenhar bem, e tanto o falar
ser vistos nas ruas. quanto o escrever com perfeição são obrigações de todo
indivíduo de sangue nobre. Graças a essa tradição, o
Na Necrópole de Kulve a língua escrita também é majin sofreu menos mudanças estruturais ao longo
comum, e os escribas são mui respeitados entre o povo. dos milênios se comparado às demais línguas.
As crianças da nobreza desde cedo aprendem com
eles a ler e a escrever, e os soldados, os mercadores, Por último, falaremos a respeito dos anões, que
os advogados e os líderes locais também devem saber desde muito tempo praticam a língua escrita. Aliás, há
o básico para exercer suas funções adequadamente. histórias que afirmam ser eles os criadores do primeiro
Muitas vezes essas pessoas ensinam a língua escrita alfabeto, o já mencionado koptum, que é usado até
aos seus familiares, e é assim que ela chega às camadas hoje. Mas como os anões têm forte preferência por
mais baixas da sociedade. O alfabeto utilizado por eles coisas duradouras, e para eles nada que é perecível
no dia a dia é o inaguê, criado pelos povos terugas do tem verdadeiro valor ou beleza, não se utilizam de
Deserto-sem-fim e assimilado também por Mendan. papiros, pergaminhos ou tabletes de argila. Na verdade,
Os escribas também aprendem o alfabeto koptum, toda escrita é entalhada em pedra ou feita no metal,
que caiu em desuso na região, mas ainda se mostra para que as palavras jamais se percam no tempo. As
útil para consultar textos antigos. Mas em Kulve há encostas e paredes das montanhas e câmaras que
outro conjunto de caracteres usados na escrita – os abrigam cidades anãs estão sempre enfeitadas com
hieróglifos, que são uma linguagem secreta dominada dizeres antigos, nomes famosos, palavras de incentivo e
apenas pelos sacerdotes e pela família real de cada histórias de todo tipo. Quando começam a virar pedra,
cidade, com uso exclusivamente religioso. os anões mais velhos pagam escribas para esculpirem
frases de poder em sua pele, e isso é sinal de prestígio
Enquanto o alfabeto comum é visto nos tabletes de e boa sorte. Nas cidades anãs, os textos dos sábios são
argila, nos papiros e afins que circulam entre o povo, escritos ao longo de túneis enormes, com quilômetros
os hieróglifos estão presentes apenas nos templos, de extensão, e os anões que quiserem ler esses “livros”
nos livros sagrados, em certas áreas dos palácios precisam percorrer todo o caminho.
e nos sarcófagos da nobreza. Nas paredes internas
das pirâmides funerárias dos Átons, esses símbolos Mas a tradição escrita, embora presente e praticada
cobrem quase todas as paredes. Eles narram conquistas por esses e outros povos de Aiyê, tendo parte importante
gloriosas do passado e, segundo as lendas, também em algumas sociedades, nunca chega a substituir a
expressam fórmulas mágicas de proteção capazes de tradição oral, que é a norma desde os tempos imemoriais.
preservar as riquezas dos reis múmias e dar cabo de Na esmagadora maioria dos reinos e aldeias do mundo
quaisquer invasores. Embora seja comprovadamente material, as letras não estão presentes e não fazem
possível fazer mandinga através da palavra escrita falta. Todo o conhecimento necessário é transmitido
– as obras do grande inventor Alihasan são o maior dos mais velhos para os mais jovens através da fala, e,
exemplo disso – esse é um feito tão ridiculamente difícil mesmo que as pessoas em geral não disponham das
que as pessoas acreditam ser um mero boato. Ainda facilidades trazidas pelos papiros ou da durabilidade
assim, os textos sagrados dos kulvitas são úteis para das inscrições nas rochas, a essência dos saberes dos
descrever magias, divindades, rituais antigos e misturas ancestrais é sempre passada adiante. Ao contrário do
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que acontece com os livros, os mestres podem escolher padrão”, pois cada população se desenvolve conforme
a quem irão ensinar, e assim o conhecimento tem a necessidade.
menos chance de parar nas mãos de alguém perverso
e sem juízo. A voz tem alma, a letra tem tinta. A diversidade entre as variantes de raças pode ser
vista facilmente nos yumbos da Mosotúnya, que têm
apenas um par de asas; nos povos lêmures-ratos, que
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Como existem não-sei-quantos milhares de povos da comunidade, correto? Sim? Não? Talvez? Mais ou
diferentes, cada um com sua própria cultura, fica difícil menos?
estabelecer um padrão. Cada comunidade tem um
conjunto específico de regras sociais. O que aqui é Como conciliar então as necessidades individuais
tabu, ali é obrigação; e o que ali é tarefa de homem e as demandas coletivas? Essa é uma pergunta que
valente, lá em outro canto são as moças que praticam. ninguém até hoje respondeu de maneira satisfatória.
Isso se aplica também às vestimentas, às relações É certo que, se existisse uma solução fácil, não haveria
amorosas, aos rituais diários, ao convívio com outras tantas noivas fugindo de casamentos forçados, tantos
raças e assim por diante. Quando se leva em conta rapazes escondendo do mundo seus namoricos com
todas as nuances étnicas dos povos de Aiyê, a única outros rapazes e nem tantos filhos inconformados por
regra universal é que não há regras universais. Cada terem que seguir as mesmas profissões dos pais. Por
aldeia e cidade se organiza da forma como entende acaso essas pessoas têm culpa por serem quem são
que as coisas devem ser, muitas vezes perpetuando e quererem o controle sobre as próprias vidas? E o
as tradições que os antigos passaram adiante. resto do povo é mesmo mau por querer mais casórios,
mais bebês e mais ferreiros dentro da aldeia? Que
Ninguém em sã consciência nega que os tradições vale a pena seguir, afinal? Quais devem ser
ensinamentos dos ancestrais são de suma importância abandonadas? E a que preço? Só mesmo Olodum para
para a manutenção de uma sociedade saudável. Toda saber essas coisas.
civilização foi construída sobre os ombros de gigantes –
heróis, mestres e pessoas de todos tipo que trabalharam Falaremos agora sobre os costumes relativos a idade,
para entregar aos seus filhos e netos um mundo melhor gênero e classe social mais frequentemente vistos em
do que aquele que receberam ao nascer. Por isso, os Aiyê. Vamos por partes.
costumes antigos são o legado dos que já se foram e
seguir a tradição é honrar os nomes daqueles cujas
mãos abriram a trilha que leva ao futuro. » IDADE «
Há, no entanto, um grande problema nisso tudo. As Quando um espírito reencarna, vindo novamente ao
regras e as responsabilidades atribuídas às pessoas mundo na forma de uma criança, ele não traz consigo
não levam em consideração um fator de extrema nenhuma memória das vidas passadas, pois são todas
importância e que jamais deveria ser ignorado: a levadas pelos ventos de Uyá rumo ao oblívio. Os recém-
individualidade. Cada um é cada um, isso é fato. Cada nascidos são como folhas em branco. Todo o texto foi
pessoa vê, sente, pensa e deseja de forma diferente apagado, e só o papiro (a essência) permanece. Nessa
da outra, e é isso que torna a união uma escolha tão nova existência, qualquer conhecimento deverá ser
bela. Veja: nós todos sabemos que no mundo é crucial readquirido através da interação com os mais velhos.
haver o equilíbrio entre o bem e o mal. Essas duas É por isso que em Aiyê a relação com os pais e os
forças estão presentes no universo desde sua criação, e anciãos tem tanta importância – sem eles, nenhuma
toda entidade, seja ela mortal ou divina, possui ambas alma poderia voltar ao mundo e evoluir.
agindo dentro de si. Se uma força sobrepujar a outra e Se numa vida passada certo espírito foi um humano,
o equilíbrio for perdido, abre-se uma porta de entrada mas agora reencarnou em um bouda, ele precisará
para o caos. Da mesma maneira, é necessário que haja aprender a ser bouda com a ajuda de seus ancestrais.
uma equivalência entre aquilo que é comum e aquilo O conhecimento dos boudas que foi passado de geração
que é individual, senão toda a sociedade estará fadada em geração será transmitido a ele para que possa viver,
à desordem e ao conflito. prosperar e, no futuro, quem sabe, educar a próxima
Sendo assim, não basta simplesmente impor regras geração de boudas que virá após ele. Os ancestrais são
às pessoas e esperar que todas estejam igualmente parte essencial do ciclo das coisas e, por esse motivo,
dispostas a segui-las. Cada ori tem necessidades qualquer pessoa com bom senso trata com respeito os
distintas, destino próprio, essência não compartilhada. mais velhos, não importa a raça ou origem. Em uma
Uma mulher de espírito guerreiro, por exemplo, quando vida futura, esses anciões podem ser seus ancestrais
impedida de lutar por isto ser “coisa de homem”, viverá – seus bisavós, pais dos seus sogros, líderes dos seus
insatisfeita – se não revoltada – e jamais poderá alcançar líderes, mestres dos seus mestres. É na sociedade
o ápice de seus dons, o destino que no princípio Olodum que eles construíram que você vai viver, então seja
e os orixás traçaram para ela. Ao mesmo tempo, sabe- gentil e humilde. Ouça-os, proteja-os, honre-os com
se que uma sociedade com poucas mulheres torna-se suas palavras e ações. Uma aldeia sem crianças é uma
estéril, triste e deturpada, e por isso não é conveniente aldeia sem futuro, mas uma aldeia sem idosos não tem
que elas todas se exponham aos perigos da guerra. nem futuro nem passado.
Conclui-se, portanto, que os homens é que deveriam ser Só que, para evitar a soberba dos mortais, os orixás
os encarregados pela proteção dos demais membros decidiram que toda criatura deve um dia morrer. Então
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os anciões de hoje, cem anos depois de partirem, comunidade. Todas as fases da vida são valiosas, mas
se tornarão as crianças de amanhã, e assim o ciclo é na terceira idade que se colhe os frutos dos anos de
continua. Nascer, aprender, gerar, ensinar e morrer – trabalho árduo e aprendizado e se planta os saberes
esse é o destino de toda gente. Os mais velhos tomam que serão herdados pelas próximas gerações.
conta daquilo que será das gerações posteriores e os
mais novos honram seus antepassados ao administrar
bem o que lhes foi entregue por eles. Teu nome não » GÊNERO «
pertence a ti, mas àqueles que vieram antes de ti. Tua
honra e teus bens não são teus, mas daqueles que virão Em Aiyê, de forma geral, os machos e fêmeas de
depois. Aquele que cuida das dádivas que recebe é raças inteligentes desempenham papéis distintos a
sábio, e o sábio é abençoado nessa vida e nas próximas, depender da sociedade em que estão inseridos e da
pois deixou para trás um mundo no qual gostaria de posição que ocupam nela. Via de regra, as tradições
viver. são bastante claras ao determinar quais privilégios e
responsabilidades cabem a cada um dos sexos, bem
Todavia, mesmo que todos os seres do mundo fossem como a maneira que devem transcorrer os rituais
sábios, ainda haveria conflito, pois cada um trabalharia de passagem para a idade adulta e as cerimônias
em prol de sua própria concepção de futuro perfeito. matrimoniais.
Para o espírito guerreiro, o amanhã demanda sangue.
Para o espírito de paz, melhor seria o fim da guerra. O que se espera de um homem adulto costuma ser
Para o espírito justiceiro, castigar os malfeitores é muito diferente daquilo que se espera de uma mulher de
imprescindível. Para o espírito libertino, a boa vida é mesma idade, porque foi assim, através das tradições,
o crime impune. E não importa o quanto os seres vivos que as sociedades encontraram uma maneira prática
evoluam, sempre haverá a disputa entre as forças do de se organizarem e dividirem as tarefas do dia a dia.
bem e do mal. Essa é a vontade de Olodum, o dono do Não importa a raça, o local e a época – alguém terá
mundo, aquele que é todas as coisas em uma só. Se que caçar, cozinhar, cuidar da casa e dos filhos, ir à
não houver equilíbrio, haverá o fim, haverá Fratura, guerra, cumprir os deveres religiosos, construir as
ou até coisa pior. casas, colher os inhames e as mangas, cortar lenha,
etc. Quem fará o quê, aí já depende dos costumes
E essas histórias e muitas outras devem ser passadas particulares de cada povo.
adiante pelos anciões, babas e griôs para que os jovens
nunca se desviem do caminho ideal, aquele que está Para exercer a plenitude dos direitos e deveres
arraigado na alma e foi desde o princípio idealizado que competem ao seu próprio gênero e, assim, serem
pelos orixás. Por isso não é surpresa que em Aiyê aceitos como membros efetivos da sociedade, os jovens
os velhos estejam nas posições mais elevadas da precisam, quase sempre, concluir ritos de passagem.
sociedade. Mesmo o mais pobretão e matusquela dos Esses podem envolver festas, peregrinações, marcações
tiozinhos sabe mais da vida que o príncipe que veio corporais (como tatuagens, alargadores, escarificações,
ontem ao mundo. Há lugares em que os anciãos não etc), desafios físicos e/ou mentais, dentre outras coisas.
precisam sequer curvar-se perante o rei, e outros onde Aqueles indivíduos que continuamente fracassam
os coroas têm poder até para tirá-lo do trono caso nesse tipo de ritual, ou que se recusam a fazê-lo, são
necessário. Nos dias santos, os pais nunca ficam sem vistos como párias da sociedade, moleques que nunca
visita. Em dias fúnebres, não há quem não chore pelos amadureceram.
avós falecidos. Esse método de organização social é tão antigo
Com o passar do tempo, tanto as mulheres quanto quanto a civilização. Alguns podem não achá-lo justo
os homens passam a deter mais autoridade e prestígio, ou ideal, mas as coisas são como são. Tem gente que
de forma que às vezes mais vale ter uma vida longa e não gosta, não se ajusta, e gente que não é homem
comedida do que ouro em abundância. Para muitas nem mulher e, se quiser viver em paz, precisa achar
das raças de Aiyê, basta uma noite de nheco-nheco e seu próprio lugar nesse mundão de ai-ai. Em nenhuma
alguns poucos meses de espera para se fabricar uma época a vida foi fácil para quem ousou ser diferente,
criança. Um sábio, no entanto, demora vários e vários e essa norma, por mais desagradável que seja,
anos para ser formado, e por isso o povo dá a ele tanto permaneceu inalterada ao longo da história.
valor. São poucas as comunidades que não têm a idade Existem reinos nos quais as pessoas que fogem aos
como fonte de status – em geral, somente aquelas que padrões já conquistaram seu espaço, como na cidade
precisam mais de soldados ferozes do que de conselhos kulvita de Emon, governada pela rainha Btah, uma
prudentes. Em geral, é de suma importância que as bufaura que nasceu com pinto, mas foi feita mulher.
crianças gastem tempo com os velhos, e os rapazes e Por sua honra e sabedoria, Btah foi declarada pelo
as moças realizem devidamente os ritos de passagem grande Áton como sua vassala mais leal, ganhando
que no futuro lhes garantirão privilégios e respeito na assim o coração dos plebeus, que a adoram. Em Emon,
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o conselho da rainha é formado apenas por gente que A autoridade que não conta com o apoio das vozes
tem khat de homem, mas ib de mulher, ou o contrário. do povo tende a definhar e desaparecer tal qual uma
planta que não é regada pela chuva. Através dos boatos,
Outros exemplos desse tipo são os povos de Kisamê, das fofocas, das canções, das lendas e das bênçãos
Imany e Abun-Notoro, que permitem o casamento proferidas pelo povo, a palavra do rei ganha força, torna-
entre pessoas do mesmo sexo, e os povos de Gibô, se mágica, feitiço poderoso. É por isso que os líderes
Reun, Maelê e toda área circunvizinha, que, além disso, não devem mentir ou pronunciar palavras vãs. Se um
elevam pessoas do chamado “terceiro sexo” a um ancião quebra uma promessa, o destino cobrará dele de
status sagrado, dando a elas cargos sacerdotais ou de uma forma ou de outra, afetando a ele próprio e aos seus
governança. Há outras muitas regiões de Aiyê em que as subordinados. Se uma rainha xinga e amaldiçoa, pode
diferenças de ori são amplamente aceitas (ou ao menos acabar atraindo pragas para si e para toda a população,
toleradas), mas em certos lugares o preconceito e a causando abortos nas mulheres ou convocando nuvens
violência ainda imperam – basta deixar transparecer de gafanhotos para destruir as plantações.
algum trejeito para ser recriminado com rigor pelos
conterrâneos menos amigáveis. Um bom líder, que usa o poder com sabedoria,
conquista a afeição do povo, recebe mais bênçãos
e adquire ainda mais poder. Um mau líder, porém,
» CLASSE SOCIAL « precisa forçar as pessoas a falarem bem dele, por
vezes instituindo feriados e erguendo monumentos
O valor de um indivíduo é medido pela posição em homenagem própria, contratando feiticeiros para
que ele ocupa na sociedade. Via de regra, tal posição, abençoar seu reino, ou punindo qualquer um que ousar
bem como os deveres e privilégios inerentes a ela, criticar sua administração. Em muitos lugares, falar
são adquiridas no momento da concepção. Se corre mal do rei e sua corte é crime passível de morte ou
nas tuas veias sangue de nobre, parabéns, vais ser exílio. Em outros, o rei se esforça para tocar o terror
nobre. Se de plebeu, é melhor que te acostumes logo – línguas são cortadas, terras são tomadas, filhos são
a segurar uma enxada, porque será esse o teu destino vendidos como escravos, e assim ao menos o povo
até a próxima encarnação. Essa é a dinâmica social passa a ter medo de blasfemar contra a autoridade real,
em boa parte das comunidades de Aiyê. Escapar dela e a palavra temerosa basta para fortalecer os tiranos.
é possível, mas improvável, e geralmente as grandes
mudanças dependem daqueles que ocupam os cargos É claro que, se o povo tivesse noção da influência
mais elevados nessa hierarquia. de suas próprias palavras, seria capaz de facilmente
destituir líderes podres e substituí-los por gente melhor.
Como cada sociedade funciona de um jeito, e em Mas isso também exigiria a capacidade de trabalhar
Aiyê elas são muitas e muito diferentes, não vale a pena em equipe e com foco no bem coletivo, algo que não
gastar tempo entrando em detalhes. Aqui, portanto, passa nem perto do ori de certas pessoas. Com raras
vamos dividir as pessoas em dois grupos: os líderes e exceções, a palavra do povo é um poder descentralizado,
o povo. Os líderes são os reis, a corte real, os anciões, desordenado e inconstante, porque cada um fala o
os sacerdotes, os babas, os generais e afins – aquela que quer, o que acha e o que convém. As palavras têm
gente que manda nos outros, seja por ter muito dinheiro, pesos distintos a depender do momento, do indivíduo
muito conhecimento, muito carisma, ou simplesmente e da direção para a qual apontam. O povo, ao contrário
por ter nascido com o fiofó virado pra lua. O povo é todo de um feiticeiro, não tem a habilidade de manipular o
o resto – os fazendeiros, caçadores, ferreiros, pastores, poder da voz de forma orientada para canalizar o axé
cozinheiros, mendigos, escravos, comerciantes… Enfim, e fazer mandinga. É inconcebível, portanto, prever os
quem obedece. resultados da mistura de milhares (ou milhões) de
Os líderes têm a tarefa de manter a ordem, garantir a diferentes vozes. O povo, na prática, é um gigante burro.
segurança e guiar o povo pelos caminhos dos ancestrais.
E, para que isso seja possível, o povo concede aos
líderes o poder necessário para tomar as decisões DESBRAVADORES E GRIÔS
importantes e gerenciar recursos. São vários os tipos
de poder, mas só um importa para nós agora: aquele Um aldeão comum passa a vida inteira sem jamais
que vem da palavra e é instrínseca a ela, a magia. O se distanciar da comunidade onde mora. O local em
poder do povo vem das palavras de muitas vozes, e que ele nasceu será também, muito provavelmente, o
dessas vozes deriva-se o poder dos líderes. Se a palavra local em que ele morrerá. O mundo de um camponês é
que o rei fala tem peso, é porque o povo fala do rei, restrito a uns poucos quilômetros ao redor do vilarejo.
e quem é muito falado tem muito poder. Quando o O rio a oeste, as montanhas ao norte, e o começo das
príncipe faz juramento, ele jura por si mesmo e pelo terras inimigas ao sul são suas fronteiras finais. O fluxo
povo. Quando o general dá uma ordem, o brado dos de informações e mercadorias entre povos depende de
soldados a sustenta. caravanas de comerciantes e de grupos de aventureiros
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destemidos o bastante para cruzar os territórios hostis » AS BORDAS DO MUNDO «
de Aiyê em nome do lucro ou da emoção. A maioria das
viagens são feitas a pé ou no lombo de um jumento, e a No princípio, houve guerra entre os deuses. Disso todo
jornada entre uma cidade e outra pode levar semanas mundo já sabe. Mas os griôs também contam que, naquela
ou até meses. época, Aiyê já era habitada por criaturas antigas de todos
os tamanhos e formas. Muitas delas eram monstros
Bandos de salteadores espreitam às margens das vorazes comedores de carne e ossos – tinham bocarras
estradas; feras e monstros de todos os tipos atacam os medonhas que poderiam engolir homens inteiros, sem
viajantes indefesos; bruxos das trevas sequestram dúzias mastigar. Outras tinham pescoções cinco vezes mais
de andarilhos para usar seus corpos em experimentos compridos que os das girafas e pesavam o equivalente
macabros; exércitos de diferentes tribos massacram a dez elefantes adultos – mas esses, acredite ou não, só
uns aos outros diariamente, cobrindo os campos de comiam folhas das copas das árvores. E havia também
batalha com sangue e desesperança. Aiyê é um lugar monstros miudinhos que mordiscavam as canelas dos
perigoso para os fortes e mortal para os despreparados, maiores, monstros corpulentos que saíam chifrando o
e só são capaz de enxergar sua real beleza aqueles se que viam pela frente, monstros armadurados e feiosos,
atrevem a cruzar os limites da segurança e deixar para monstros emplumados, monstros voadores e de tudo
trás o conforto do lar. quanto é jeito. Eles eram todos como lagartos terríveis,
São esses os heróis, mercenários e griôs que vagam bichos assustadores e magníficos em igual medida.
pelas terras mais inóspitas à procura de trabalhos e Só que a tal batalha dos orixás causou tanta destruição
histórias. Vão de cidade em cidade, aldeia em aldeia, e barulho que esses monstros antigos, temendo por suas
levando consigo os relatos das aventuras que viveram no vidas, fugiram para longe – para as bordas do mundo,
caminho. Quando chegam a um novo lugar, o povo logo longe da fúria divina. A terra se abria, as rochas viravam
se reúne ao redor deles para ouvir das coisas incríveis pó. Os mares ferviam e os rios mudavam de curso. As
que testemunharam. Essas histórias alimentam a fé criaturas que ficaram para trás foram mortas pelos
das pessoas nos orixás e nos espíritos; alertam-nas terremotos, os vulcões, os gêiseres e os meteoritos que
dos perigos das matas e dos desertos; estimulam sua caíam. As que conseguiram fugir acabaram isoladas
imaginação ao falarem do mar azul, das câmaras do resto do mundo, presas em ilhas recém-formadas,
escuras do fundo do chão, das enormes torres da cidade pequenos continentes esquecidos a milhares de
tal e as roupas estranhas e coloridas que os cidadãos quilômetros de distância dos maiores pedaços de terra,
de lá usavam. Os aldeões não vão ao mundo, mas o ou então barradas por cânions ou florestas em outras
mundo vai a eles sempre que um novo viajante aparece. regiões que os povos que vieram depois não se deram
E, de pouco em pouco, esses desbravadores valentes ao trabalho de explorar. A partir daí, os monstros que
que se dispõem a explorar o mundo e desvendar seus um dia reinaram sobre Aiyê ser tornaram meros relictos,
mistérios vão conquistando um lugar especial na espécimes remanescentes restritos apenas a alguns
memória daquela gente. Ganham fama, tornam-se o poucos lugares do mundo.
assunto dos homens nas baiucas, os mais comentados Atualmente, são poucas as pessoas ousadas o bastante
pelas mulheres que se reúnem na beira dos rios, as para desbravar esses territórios selvagens, e menos
inspirações das brincadeiras das crianças e também ainda aquelas que têm coragem para chamá-los de lar.
das primeiras aventuras de novos aspirantes a herói. Na Primeira Era, foram construídas bases de pesquisa
Os desbravadores mais corajosos e de feitos mais e coleta em pontos estratégicos das bordas do mundo,
marcantes acabam convertidos em verdadeiras lendas, mas com o advento da Hecatombe e o declínio dos
daquelas contadas pelos anciãos à noite quando a kiinis, elas foram todas deixadas para trás. Hoje em dia
vila inteira se aconchega ao redor da fogueira, e suas tem gente que usa essas construções como templos,
histórias são repetidas de pais para filhos ao longo de palácios, quartéis e sabe-se lá mais o quê. Embora muitos
muitas gerações. povos de Aiyê considerem a invasão de ruínas e o uso
de artefatos antigos da Primeira Era como tabu, os
povos das bordas do mundo chegaram à conclusão de
LUGARES MÍTICOS que fica bem mais fácil defender-se das bestas-feras que
querem devorá-los quando se está cercado por muralhas
Aiyê é repleta de terras encantadas envoltas em lendas enormes pré-hecatômbicas.
e mistérios. Algumas poucas já foram apresentadas no
livro básico, outras poucas serão mostradas a seguir. Quem vai pras bordas do mundo o faz na intenção de
Que essas histórias de alguma maneira sirvam de caçar relictos para então vender suas partes a preços
inspiração para as suas. exorbitantes, ou então pela promessa de encontrar restos
de kiini em regiões ainda intocadas pela civilização. É
claro que muitos desses doidos jamais voltam para casa.
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Só um ou outro não acaba no estômago de um nguma- Príncipes e sacerdotes famosos daquela época
monene, afogado por um kongamato ou empalado por ofereciam montanhas de ouro e joias para que
algum emela-ntouka furioso. Ou, ainda, morto de fome Gudamonida projetasse seus palácios, seus templos,
e sede, perdido em um ambiente inóspito onde não há seus mosteiros – mas o mago só aceitava os trabalhos
quem possa ou queira ajudá-lo. É por isso que para o que lhe inspiravam e não temia levar à falência seus
povo de Aiyê em geral as histórias sobre as bordas do patrocinadores com a compra de materiais caros e
mundo ainda são tão escassas. Quase ninguém retorna obras em terrenos inusitados. Ainda assim, ao longo
de lá para contá-las, são um grande mistério. Nem o de centenas de anos, Gudamonida ergueu sua arte em
mais esperto dos griôs desconfia dos segredos que vários cantos do mundo, dando aos vivos o privilégio
permanecem guardados naquelas bandas. de vislumbrar a arquitetura do paraíso. Mas a Segunda
Hecatombe chegou e as ondas, mais altas que qualquer
torre ou prédio, levaram para o fundo do mar a maior
» CASTELO DOIDÃO DE GUDAMONIDA « parte dos monumentos do Velho Artífice, e o próprio
construtor foi uma das vítimas do grande dilúvio.
Surgiram durante a Segunda Era inúmeros inventores
que tentavam resgatar os avanços da ciência do passado Por sorte, sua obra-prima sobreviveu à tragédia. O
e reproduzir os artefatos que moviam as sociedades de Castelo Doidão, como hoje o chamam, permaneceu de
outrora. Outros, ainda, se dedicavam a criar algo novo: pé, intocado. Depois de tanto tempo, ele foi redescoberto
tecnologias alternativas que não dependessem da energia por um pequeno grupo de exploradores que, guiados
dos cristais do poder e, de preferência, que não pusessem por um mapa antigo, chegaram a um desfiladeiro onde,
o mundo em risco mais uma vez. Dentre esse último segundo eles próprios, “o sol está sempre nascendo”.
grupo, destacam-se nomes como Alihasan, inventor das E a notícia se espalhou tanto pelo mundo acadêmico
armaduras vivas e espadas animadas, Guntau, mestre quanto pelo mundo do crime, atraindo ao mesmo tempo
das bugigangas movidas a choque, Nagarat, criadora pesquisadores ávidos por desvendar os mistérios do
das armas barulhentas do pó preto, e Gudamonida, o castelo e saqueadores que desejam apenas roubar seus
maior dentre os magos arquitetos, também chamado tesouros milenares.
Velho Artífice, aquele cujas casas e castelos tinham
vida própria. Mas Gudamonida não era nenhum bobo. Jamais
deixaria seus bens mais preciosos desprotegidos!
Ainda hoje, muito se fala sobre as construções do Então fez um castelo louco, onde nada é o que parece
sujeito, de sua engenharia perfeita, o capricho impecável, e coisa alguma fica no mesmo lugar por muito tempo.
as proporções estonteantes que até hoje viram do avesso Aqueles que ousam entrar quase nunca acham o caminho
as cabeças dos acadêmicos mais respeitados. Mas a arte de volta, pois se perdem nos corredores móveis, nos
de Gudamonida ia além do que os olhos podem ver. cômodos invertidos, nas torres combinatórias, ou
Havia magia em cada tijolo, em cada haste de metal, na acabam presos nas escadas infinitas, nos salões da
madeira das portas e no brilho dos pisos. As torres que morte, nos jardins-vivos e nas masmorras sem entrada e
ele erguia tinham uma aura mística, um encanto que nem saída. Lá dentro, tudo é majestosamente labiríntico
dava para sentir na pele de qualquer um que entrasse. e alucinadamente encantador. Os tesouros, coleções de
Os muros altos e de curvatura impossível pareciam artefatos únicos das eras passadas, estão escondidos
esconder detrás de si uma legião de diabos famintos, em salas mais escondidas ainda e que só podem ser
e os ladrõezinhos que passavam por perto, sentindo acessadas por quem o castelo julgar digno o bastante.
o frio na espinha, evitavam até olhar. As janelas das Ou esperto o bastante. Ou sortudo o bastante. Ou por
mansões davam a impressão de terem sempre alguém quem tiver a senha secreta.
observando, vultos que só surgiam no canto do olho.
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seres mundanos, aquelas que os fazem sorrir e chorar, » LEMÚRIA «
valham a pena ser sentidas.
Usilosimapundu, a grande besta da terra, é maior
Mas lá do céu, não dá para saber, não dá para que qualquer cidade, maior que qualquer montanha.
experimentar, e também é muito distante da terra para Suas costas são tão largas que formam uma ilha inteira,
poder enxergar os detalhes do dia a dia das pessoas ou cheia de baobás, rochedos e cachoeiras, lar de muita
ouvir suas fofocas. E é por isso que algumas estrelas gente, muitos bichos, muitos monstros. Mádaga é o
se desprendem da escuridão da noite, carregando nome que deram para o lugar, mas trata-se apenas da
consigo apenas seu brilho, sua magia e a vontade de superfície do enorme corpo de Usilosimapundu, a besta
aprender, e caem lá de cima em Aiyê, onde, acreditam colossal. O que pouca gente sabe é que no interior da
elas, muitas emoções as aguardam. Só que o pouso fera existe vida também, pois lá dentro de suas tripas
nunca é dos mais tranquilos, e várias delas acabam ocas foram forjados todos os elementos que, no início
parando em lugares inóspitos, longe de tudo e todos, e dos tempos, vieram à superfície – as colinas, os rios,
às vezes até no fundo do mar. Essas estrelas solitárias os matagais, as pessoas, os monstrengos… Tudo, tudo
podem passar milênios sem que ninguém as encontre, veio das entranhas de Usilosimapundu, a ilha viva.
morrendo de saudades de casa e, ao mesmo tempo, Nisso creem os lêmures.
de curiosidade sobre as coisas e as gentes.
Só que as lendas que chegaram ao continente
Elas ficam lá, flutuando bem no lugar onde caíram. ainda hoje despertam a curiosidade (e a ganância) de
Não sabem para onde ir, não sabem a quem recorrer e desbravadores, que, loucos por emoção e aventura,
nem podem voltar para o céu, porque seu coração ainda partem em busca dos tesouros perdidos nas tripas do
está do mundo dos mortais, preso pela vontade e pelo colosso. Contando com o auxílio de mapas antigos
feitiço que elas mesmas fizeram para se soltarem do e dos guias locais, esses desbravadores procuram
além. Quando uma estrela cai, a cratera abaixo, cavada alguma entrada que leve ao interior da ilha – uma
com a força do impacto, enche-se de magia estelar, e o caverna sem fundo, algum túnel escondido sob um
lugar todo fica parecendo um grande espelho quebrado lago, uma passagem secreta pelas montanhas… Querem
em um montão de pedacinhos flutuantes, tantos que ser os primeiros a explorar as câmaras ocultas da
nem dá para contar. Dizem as lendas que, quando um Lemúria, que é como os estrangeiros chamam o local, e
sortudo se depara com uma dessas estrelas perdidas também os primeiros a ter contato com as civilizações
por aí, ela pode conceder-lhe um desejo. Em troca, esquecidas que habitaram (ou ainda habitam) o lugar,
a estrela pede apenas uma coisa: a memória mais ou até com a deusa que supostamente descansa lá
esplêndida que a pessoa tiver. Uma vez feito o acordo, a embaixo.
estrela logo acha o caminho de casa e sai voando para
o céu numa velocidade que os olhos mal conseguem Muitos dos moradores de Mádaga não gostam de
ver. Final feliz. ter forasteiros bisbilhotando suas terras. Alguns se
recusam a ajudá-los empreitada, outros tentam expulsá-
Mas também há aquelas estrelas que, de tanto los a força. Mas também há aqueles que, aproveitando-
esperar, foram perdendo seu brilho. Quando se apagam, se da ambição dos visitantes, extorquem-nos em troca
tornam-se emeres, estrelas negras, e saem por aí de informações falsas e quinquilharias inúteis, como
desembestadas, flutuando em qualquer direção, cheias mapas que não levam a lugar nenhum e amuletos
de raiva e arrependimento. Aí não tem mais conversa! para espantar os “demônios-da-ilha”. E mesmo se
Se encontrarem alguém, vão roubar todas as memórias não tivesse essa gente tentando atrapalhar, a maioria
da pessoa, as boas e as más, desde o nascimento até dos exploradores acabaria sendo comida por algum
o presente, e vão continuar surrupiando as mentes monstro medonho ou sequestrada por piratas antes
de qualquer um que surgir no caminho, até que enfim mesmo de chegar ao litoral. E os que de alguma forma
apareça uma memória boa o bastante para fazer toda conseguem invadir as entranhas de Usilosimapundu
aquela espera valer a pena. Pronto! Só aí elas voltam não costumam voltar – acabam perdidos na imensidão
pra casa. Quer dizer, tentam voltar. Como estão cheias daquele novo mundo de caminhos, magia e mistérios
de memórias conflitantes, as estrelas negras nunca e jamais encontram a saída.
encontram o caminho certo (e, mesmo se encontrassem,
não seriam aceitas de volta no céu, entre as irmãzinhas
esnobes), então elas sempre acabam caindo de novo
em Aiyê, num lugar qualquer, e o ciclo recomeça. ORGANIZAÇÕES
No livro básico de Kalymba, foram apresentadas
algumas das organizações de Aiyê, mas ainda existem
muitas outras a serem mostradas. Esse mundo está
repleto de sociedades secretas, ordens religiosas,
fraternidades, gangues criminosas e associações
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comerciais – e você, seja Griô ou Jogador, pode criar onde há a necessidade de defender os direitos das
as suas próprias. A seguir, daremos mais alguns noivas, e cada uma tem suas próprias regras e desafios
exemplos de organizações que exercem influência a administrar. Há bastiãs que nascem como ordens
sobre as terras e pessoas de Aiyê, para que possam secretas que agem por debaixo dos panos para facilitar
inspirar suas futuras aventuras. a emancipação ou a fuga de mulheres violentadas,
e que podem, vez ou outra, desafiar diretamente a
autoridade dos reis e líderes, seja através de palavras
» BASTIÃ DE KWELÊ « conscientizadoras ou de facadas na garganta. Outras
bastiãs, no entanto, se separam das sociedades civis e
Ao longo da história, a prática de selar acordos entre formam comunidades cem por cento femininas, quase
famílias através da união matrimonial mostrou-se uma sempre militarizadas e aptas a receber noivas fujonas
constante. O mais comum é que os pais prometam que precisem de abrigo.
as filhas em casamento em troca de gado, ouro ou
outros bens variados, sendo as mulheres, na maioria Seja como for, toda bastiã é diferente, e não há de fato
dos casos, as partes mais frágeis dessas negociações uma união entre elas. Tudo o que essas organizações
– aquelas que têm o dever de casar, queiram isso ou têm em comum é o desejo de lutar pela liberdade das
não, e não podem dar pitaco, pois seria desonroso mulheres vulneráveis, reféns da tradição. Muitas bastiãs
para a família. E aqui e acolá, quando uma noiva se têm princípios religiosos e rituais próprios, e todas
recusa a cumprir o trato, ela é arrastada a força para dispõem de regras mais ou menos claras para reger
a cerimônia (por vezes aos prantos e até amarrada) e, seu funcionamento. Em alguns lugares, as membras
no fim, entregue ao novo marido, que tem permissão de bastiãs usam vestimentas especiais e se comunicam
para esbofeteá-la caso se mostre por demais rebelde. por idiomas secretos. Em outros, formam grupos de
Quando amor! Final feliz. guerreiras que se manifestam abertamente contra
a opressão e ateiam fogo às casas dos infelizes que
Nas culturas de certas tribos de Aiyê, as mulheres vendem as próprias filhas por meia dúzia de cabras. É
têm pouca serventia além de gerar filhos e cuidar dos comum que essas mulheres estejam ligadas aos cultos
afazeres domésticos. São vistas pelos pais como objetos das já mencionadas orixás protetoras das damas, sendo
de troca e, depois, pelos maridos como criadas a serviço o culto a Bao o mais popular de todos. (Embora Yami
do lar. Algumas têm os genitais mutilados ainda na seja a orixá do poder feminino, as bastiãs associadas
juventude para que se tornem incapazes de sentir a ela não são tão frequentes. Isso porque nos lugares
prazer e, portanto, ter pensamentos libidinosos com em que Yami é a lei, quase sempre são as fêmas as
outros homens – o que, segundo essa ideia, certamente opressoras).
levaria à traição e à quebra dos acordos feitos entre as
famílias. (Às vezes o medo de ser corno sobrepuja a E dentre todas as bastiãs de Aiyê, a maior e mais
lógica, e daí esses doidos fazem todo tipo de barbárie conhecida é a de Kwelê-Buyu, fundada a cerca de cento
na tentativa de amenizar a própria insegurança. No e cinquenta anos atrás. Ela acolhe fêmeas de todas as
final, para mascarar a crueldade de seus atos, chamam raças e povos, sem distinção, e dá a elas paz e segurança
isso de “costume” ou “tradição milenar”, achando que dentro de suas muralhas. No princípio, essa bastiã
dessa forma poderão se livrar da ira dos deuses). era nada mais que um acampamento improvisado
para mulheres refugiadas, em especial as noivas
Parece que as pessoas esquecem que, acima de obonianas do povo Silisili, uma tribo guerreira que
tudo, o casamento é união sagrada e, como tudo o que tinha abandonado o código do Rei Macaco havia muito
é sagrado, está sob o olhar vigilante dos orixás. E para tempo. Mas com o passar dos anos, fêmeas fugitivas de
as orixás protetoras das damas, como Bao, Uyá, Yami outras espécies e origens foram chegando, e então o
e várias outras, não há nada mais enfurecedor que as lugar começou a crescer. A história conta que, certo dia,
lágrimas e orações desesperadas de uma noiva obrigada o rei de Minyororô, que naquela época era a principal
a casar. Ninguém tem o direito de acorrentar uma alma cidade do povo Silisili, ao descobrir o paradeiro das
a outra contra a vontade desta ou daquela, não importa mulheres que estavam sumindo, enviou dez batalhões
que estejam em jogo montanhas de dinheiro ou a paz de soldados para capturá-las e levá-las de volta a seus
entre reinos. E desse princípio surgiram, há muito respectivos maridos. Todavia, ao chegarem lá, os
tempo, as irmandades femininas que hoje chamamos de soldados se depararam com uma fortaleza enorme,
bastiãs, cujo objetivo é desafiar o status quo e proteger toda murada, e um verdadeiro exército de guerreiras
as mulheres da pressão física, psicológica e econômica valentes que logo os espantaram com uma saraivada
por parte daqueles que querem forçá-las a contrair de flechas, lanças e feitiços.
matrimônio.
Mas é claro que as tentativas de destruir a bastiã não
As bastiãs não pertencem à mesma organização pararam por aí. Durante quase oitenta anos, a fortaleza
e não estão debaixo de um poder centralizador. Elas resistiu às investidas de um sem-número de reis de
surgem espontaneamente em várias partes do mundo,
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diferentes nações, e nenhum inimigo jamais conseguiu o comércio de mercadorias proibidas e até influenciar
penetrar a terceira muralha. É claro que, vez ou outra, decisões políticas importantes. Já financiaram guerras
as guerreiras da bastiã recorriam a ajuda externa, como em troca da promessa de receberem espólios e escravos,
na batalha em que foram acudidas por mercenários já chantagearam príncipes e já venderam princesas
pagos pela Musa Arucas, de Mendan, hoje lembrada sequestradas. Se tiver algum lucro envolvido, os Irmãos
como heroína dessas mulheres. Mas o importante é Marabu topam qualquer parada.
que, por todo esse tempo, a bastiã de Kwelê foi abrigo
para quem precisava de socorro e nunca desistiu de A alta cúpula da organização é formada por ricaços
lutar contra a tirania casamenteira. Atualmente, as de vários cantos do mundo, mas que nunca se reúnem
refugiadas desfrutam de um período de paz sem pessoalmente, preferindo comunicar-se através de
precedentes. Isso se deve, principalmente, à presença mensageiros de confiança ou de representantes
do Reino Bouda do Buyu, que conquistou quase toda a capacitados para tratar dos assuntos mais essenciais.
região de Kwelê, destruindo e escravizando os povos Os Irmãos Marabu não são exatamente uma sociedade
nativos, mas permitindo que a bastiã continuasse a secreta. Na verdade, muitos de seus membros são
existir mediante o pagamento de tributo. figuras conhecidas pelo povo. Em Waduga, os Nove da
Noite, como são chamados os nove principais líderes
Ainda hoje a bastiã de Kwelê-Buyu é um exemplo da do crime na cidade, são temidos como reis tanto
luta pela liberdade, e sua história inspirou a fundação pelos cidadãos comuns quanto e pela bandidagem.
de uma dúzia de outras bastiãs ao redor de Aiyê. Todos Em Jimbura, na Cordilheira Branca, o velho Zimuzô
os anos ela recebe mais e mais refugiadas, muitas delas é dono de metade das águias-colossos que fazem o
vindas de terras distantes onde as fêmeas não têm transporte de mercadorias. Em Laliba, a Cidadela das
voz, e nunca vira as costas para aquelas que precisam. Mil Pontes, Jayamma Cheirosinho revende perfumes,
Por isso, a bastiã de Kwelê continua a ser ricamente entorpecentes e também animais raros capturados nas
abençoada pelas orixás, que dão às suas moradoras florestas altas da Etiéria. Em Dolmé, a bouda Ngora
alimento abundante e chico sem cólicas. Nem todas Kovahaza virou lenda urbana depois que a notícia sobre
as mulheres que vão para lá de fato permanecem – sua feira canibal secreta se espalhou.
algumas realmente sonham em casar e ter filhos,
embora a seu próprio tempo e com a pessoa escolhida, Os Irmãos Marabu lucram com negócios que são
e outras sonham com metas diferentes como viajar pelo tecnicamente contra a lei, mas para os quais os guardas
mundo e aprender coisas novas. Mas as mulheres que e governantes aceitam fazer vista grossa em troca da
ficam na bastiã recebem abrigo, trabalho e no mínimo propina (ou da ameaça) certa. Quando um defunto
algum treinamento de combate, e podem até casar umas aparece aqui ou ali, basta pagar umas ganas a mais
com as outras, se assim desejarem. E assim, através e tudo volta ao normal. Não tem segredo. O povo
da irmandade e do esforço, todas encontram seu lugar. todo sabe o que aconteceu e quem foi o culpado, mas
ninguém ousa apontar o dedo pra um comerciante
rico e protegido pela rainha. Melhor deixar pra lá.
» IRMÃOS MARABU « Ignore as crianças desaparecidas, os jovens viciados em
khola, os canibais, os monstros enjaulados, os vizinhos
Uma antiga associação de mercadores cujos mirongueiros e as meretrizes assassinas, e você não
negócios flertam constantemente com o crime e a terá problemas para conviver com os empreendimentos
profanidade. Os Irmãos Marabu patrocinam dezenas dos Marabu.
de caravanas que passam de cidade em cidade levando
mercadorias comuns como papiro, joias, ferramentas,
especiarias, armamentos, roupas, obras de arte, etc » MAMA SABÁ «
– mas também outras dezenas que comercializam
artigos menos convencionais como criaturas exóticas, Dezoito eram as esposas de Konulo, megeras
artefatos de eras passadas, escravos, bens roubados e dadas por Ninã como presente ao Deus Abissal. Na
até partes de corpos de fraturianos, tudo bem debaixo escuridão do oceano elas viviam, e viviam para servir
dos narizes das autoridades. aos planos de seu mestre. Tinham autoridade sobre
todas as criaturas das profundezas – os nommos, os
Em muitos lugares, os Irmãos Marabu também dragões, as jengus pelagianas e toda espécie de peixe,
gerenciam casas de prostituição e jogos de azar. Dessa molusco, crustáceo, esponja e medusa cuja beleza as
maneira, conseguem manter uma ampla rede de contatos sombras escondem. Nove megeras cuidavam do palácio
e informações, o que facilita o fechamento de acordos de Konulo, enquanto as outras nove receberam, cada
tanto com chefões do crime quanto com os próprios uma, uma cidade para governar. Para nove megeras, era
governantes locais, que, não raras vezes, tornam- boa a vida lá embaixo. Para as outras nove, nem tanto.
se seus clientes. Com os acordos certos, os Irmãos
Marabu conseguem suprimir a concorrência, facilitar Todavia, passada a Primeira Era e a guerra contra a
Fratura, os povos da superfície começaram a se reerguer
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e a descobrir novas formas de alcançar o progresso que história do mundo e que varreria do mapa a humanidade
tanto sonhavam. Os reinos se expandiram para os lados e todos os seus aliados, porque era grande a fúria do
e para cima, os meios de fazer violência se aprimoraram, Senhor das Profundezas e maior ainda o perigo que
a ciência voltou à moda. Coisas maravilhosas foram os terrestres ofereciam aos seres das águas. Sabendo
criadas, mas também outras muitas terríveis, e essas disso, Siri e Kunga partiram no mesmo dia para uma
últimas venciam pelos números. Tudo o que era podre e terra distante do litoral, acompanhadas apenas de suas
venenoso, as pessoas da terra jogavam no mar, matando amigas mais íntimas: Imani Olho-de-sangue, as bruxas
os peixes, os corais, as algas, os monstros. Em pouco gêmeas Petagara e Eijin, a feiticeira Keara Keiwê,
tempo, a comida que caía até águas profundas para dona da lendária Torre Pernuda, e as três aprendizes
alimentar os seres do abismo se tornou escassa, então de Keara. Temilade, que ficou para trás no intuito de
os nommos e demais filhos de Konulo passaram a salvar mais pessoas, jamais foi vista outra vez.
atacar os navios e as cidades costeiras.
Ao longo da viagem, juntaram-se ao grupo outros
Então veio a profecia de Moyla, aquela sobre os nove mandingueiros conhecidos de Keara (que era
humanos e o fim dos tempos. Destino cruel para um muito, muito famosa naquele tempo), totalizando
mundo outrora tão belo! O Senhor das Profundezas, dezoito. E quando a Torre Pernuda chegou a um
temendo o pior, enviou suas dezoito esposas à superfície lugar seguro, na terra que atualmente todos chamam
para que descobrissem qual era a ameaça e como de Caldeirão, os dezoito mandingueiros selaram um
poderiam eliminá-la. Usando poções e feitiços, as pacto de irmandade que deu origem ao Mama Sabá, o
megeras assumiram as formas de outras raças e se terreiro dos bruxos. Juntos, eles dominaram com magia
espalharam pelas principais cidades humanas do as nove cidades da região (na verdade, eram onze, mas
mundo. Passaram a agir como espiãs, coletando Keara Keiwê fez questão de destruir duas para ficar
informações e eliminando qualquer um que pudesse um número mais bonitinho), e cada cidade passou a
atrapalhar. ser governada por um membro do Sabá enquanto os
outro nove permaneciam na Torre Pernuda, que é até
Nos anos seguintes, duas delas, tendo sido traídas hoje a sede da irmandade.
por aliados e desmascaradas pelas autoridades, foram
executadas diante do povo, causando histeria entre os A história é bem mais comprida, já que muita coisa
humanos, que, por sua vez, passaram a caçar toda e mudou com a Segunda Hecatombe. O Mama Sabá
qualquer megera que descobrissem viver entre eles. enfrentou inúmeros desafios ao longo desse período –
(Aliás, foi nessa época que as megeras ganharam esse os nommos, os piratas, os terremotos, a fúria dos orixás,
nome, que hoje é conhecido e falado, porém ainda a loucura de Keara Keiwê… Mas o importante é que
ofensivo. Na verdade, o nome que elas dão à própria o Sabá não somente resistiu ao dilúvio, mas também
raça é ajé, então use esse caso queira parecer educado). cresceu em fama e poder, de forma que não há hoje
Nesse ínterim, outra das esposas de Konulo, a que em dia uma viva alma em Aiyê que não estremeça ao
estava em Porto Pó quando o grande dragão-pimenta ouvir do terreiro dos bruxos. Todos conhecem a história
Kuchoma atacou, também foi morta, incinerada pela dos feiticeiros que vagam pelo mundo numa torre com
fúria do monstro junto com metade das casas e pessoas pernas de avestruz, recrutando os melhores feiticeiros
do lugar. Só quinze das dezoito espiãs restavam. para sua irmandade diabólica e realizando verdadeiras
proezas com mandinga. Com o passar das gerações, os
Mas logo que elas descobriram o segredo que membros do Sabá podem ter mudado, mas os mestres
poderia destruir o mundo, enfim retornaram ao mar do Caldeirão jamais perderam sua relevância.
e para Konulo – exceto por três delas: Siri, aquela
que um dia governou sobre a cidade abissal de Chão
D’água; Temilade, a que cuidava do Salão Naufrágio, » MAVARAK «
onde eram guardados os tesouros do palácio do
Senhor das Profundezas; e Kunga, aquela que antes Não é raro ver uma raça se achando superior às
representava Konulo diante dos demais orixás. Essas outras, se gabando que é a mais bonita, mais esperta,
duas não quiseram voltar, pois a vida na superfície ou por conseguir fazer isso ou aquilo melhor que as
tinha mais brilho e calor, e elas poderiam ser e ter demais. Só que, quando a questão é a falta de modéstia,
quem desejassem, fosse entre os humanos ou entre os azizas sempre saem na dianteira. Muitos acreditam
qualquer outra raça, bastando apenas fazer as poções ser o auge de toda a criação dos orixás, feitos com
e mandingas certas para se transformarem. asas para permanecerem sempre acima e com coroas
de penas para poderem governar os néscios. Talvez
Mas a alegria durou pouco, pois logo Olanma, outra apenas os dooshuras tenham um orgulho maior que
das esposas de Konulo, contrariando a vontade do Rei o dessa gente – e, mesmo assim, eles não costumam
Abissal, saiu do mar para dar às irmãs um aviso que causar tantos problemas ou despertar tanto o ódio das
salvaria suas vidas. Olanma anunciou o grande dilúvio outras raças quanto o povo pássaro.
que estava por vir, uma inundação sem precedentes na
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Nas vielas escuras de muitas cidades, nos lugares » A SEIVA «
em que a lei não adentra, quando se fala de aziza,
se pensa logo em Mavarak. Esse é um nome que os A comunhão com a natureza, o equilíbrio entre o
meliantes mais bem informados conhecem bem, mas ambiente e a civilização e a morte de quem discordar
evitam comentar. Sabem que não é boa ideia, porque – esses são os princípios da Seiva, a seita que tem
sempre tem alguém ouvindo, e nem nos passarinhos aterrorizado cidades e vilarejos em várias regiões.
dá pra confiar. O Mavarak pode ser uma pessoa, um Supostamente fundada há mil e duzentos anos pelos
grupo… Vai saber. Só uma coisa é garantida: Mavarak seguidores de Jamahid, um profeta olodumista exilado
tem penas e voa. É uma máfia secreta, mas que dá as da própria terra por levar um modo de vida contrário
caras quando é a hora e vem à tona para tomar o poder às tradições, a Seiva tem como objetivo primeiro a
das mãos dos fracos e ignóbeis e dá-lo aos azizas, os preservação do mundo natural – as plantas, os rios,
verdadeiros merecedores. as rochas, os animais e todos os elementos e criaturas
selvagens que não têm voz para falar por si mesmos.
Mavarak é como uma figura misteriosa que ninguém
nunca viu, mas que tem sob seu comando uma legião Embora os integrantes da Seiva se autodeclarem
de azizas trabalhando nas sombras para pôr em prática parte de uma instituição milenar, a verdade é que os
dezenas de planos maquiavélicos. Talvez Mavarak seja ensinamentos de Jamahid foram esquecidos pouco
um indivíduo de carne e osso – um ricaço dando ordens após a morte dele, já que seus principais discípulos
aos outros do conforto de seu palácio, ou um criminoso foram caçados e capturados pelos governos da época,
mal-encarado escondendo-se num covil distante que e os demais seguidores rapidamente abandonaram
só quem tem asas consegue acessar. Talvez Mavarak a fé e se dispersaram. A filosofia do profeta só foi
seja um título de prestígio, um cargo de autoridade, resgatada cerca de quarenta anos atrás por estudiosos
uma elite de azizas. Mas é possível que Mavarak nem obonianos, que levaram a pesquisa a Mendan e a
exista e seja uma entidade inventada só pra assustar, publicaram para o mundo. Mais do que nunca, as ideias
para fazer os bandidinhos molharem a cama e, dessa de Jamahid se popularizaram, reunindo muitos adeptos
forma, impor a ordem no mundo do crime. e simpatizantes. Alguns deles, no entanto, assumiram
uma postura extremista quanto à defesa do ambiente
Seja como for, o objetivo do Mavarak parece ser natural, fundando células que passaram a reprimir com
um só: financiar atos criminosos – corrupção, roubos, violência as cidades e vilas que tentavam se crescer
sequestros, terrorismo – para desestabilizar os e se expandir.
governos locais e, daí, oferecer soluções para o caos
que ele mesmo causou. Essas soluções, é claro, sempre Esses grupos já sabotaram grandes construções,
envolvem, em última instância, entregar o poder nas mataram o gado, queimaram plantações, lançaram
mãos de supremacistas azizas. Controle é a chave. No pragas sobre as mulheres grávidas, enviaram inárvores
fim, nomes e rostos não importam, somente o poder. para derrubar as muralhas, fizeram raízes gigantes
Isso, sim, é Mavarak. Provocar a doença, vender o brotarem e tomarem palácios, atiçaram monstros
remédio e então tomar o corpo inteiro. São poucos os adormecidos, e o que mais você puder imaginar, tudo
reis que compreendem o esquema antes de ser tarde na intenção de conter o avanço civilizacional, a extração
demais, e também poucos os heróis e bandidos que de recursos naturais e a poluição das paisagens de
se atrevem a entrar no caminho. Aiyê. Assassinatos, sequestros, terrorismo – todos
crimes praticados pelo bem maior. Porém, é claro, tanto
Mavarak tem como principal símbolo o calau, e os nobres e mercadores que viram seus bens serem
quem sabe disso treme na base sempre que avista um reduzidos a cinzas quanto as famílias dos fazendeiros
desses pássaros por perto. Os azizas mandingueiros e pedreiros mortos pela Seiva não gostaram muito
que trabalham para ele costumam usar essas aves como dessa abordagem e passaram a odiar a tal “filosofia
vigias e, assim, manter-se atentos ao que acontece nas da harmonia”.
ruas, pois têm olhos e ouvidos em todos os cantos.
Aliás, os subordinados do Mavarak, em geral, são Enquanto os adaptos mais moderados se reúnem
personalidades admiráveis e cheias de truques – azizas com monarcas e anciões para negociar e sugerir
nobres, belos, estudados, poliglotas e de excelente projetos sustentáveis que beneficiem ambas as partes,
retórica, que ou entendem de mandinga, ou dominam os extremistas ameaçam a paz e promovem o medo
alguma outra área do saber, mas sempre se utilizam entre a população. Muitos pregam uma espécie de
de seus dons para praticar o engano e o mal. Sob as primitivismo radical, ou seja, o abandono de todas
garras dessa gente, as cidades que o Mavarak dominou as estruturas e tradições provenientes da civilização.
raramente encontram a libertação. Outros, ainda, apoiam ideias anti-humanas, alimentados
pelo ódio contra a raça que, por suas constantes
agressões à natureza, causou a ira dos orixás e provocou
a Segunda Hecatombe. Os druidas obonianos, sendo
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a maioria entre os fiéis da Seiva, repetem seu lema posses, açoitam-nos em público e, nos casos mais
com veemência: “Rejeitai a humanidade! Retornai ao graves, cortam fora suas línguas para que jamais voltem
macaco!”. a cometer o mesmo erro. “Vozes e ideais profanos
devem ser silenciados! Calem-se, loucos! Calem-se
para sempre!”.
» SILENTES «
Conforme a tradição mais comum entre os silentes,
Shhhh! É melhor ficar calado. Os silentes estão por alguns membros vivem em meio ao povo, integrados ao
perto! Eles são a patrulha da voz, aqueles que impedem dia a dia da comunidade e sempre atentos às palavras
que palavras inconsequentes tragam a ruína da aldeia. alheias, enquanto outros permanecem reclusos nos
Não pode falar abobrinha, não pode espalhar boato, mosteiros das colinas, onde passam o tempo lendo e
não pode praguejar sem motivo, não pode jurar sem copiando livros, redigindo conselhos aos líderes civis
a intenção de cumprir. Palavra faz mandinga, queira e religiosos e enviando cartas para células silentes
você ou não. E um monte de palavras juntas, quando de regiões mais afastadas. Certos grupos contam
misturadas e proferidas sem nenhum critério, podem com membros versados em mandinga – magos que
atrair monstros, azar e maldições. Se o povo começa dominaram com louvor a arte da palavra, tornando-se
a repetir demais coisa que não deve, algum problema capazes de contrabalancear os efeitos negativos da voz
vai dar, isso é certeza! popular e assim proteger as pessoas de si mesmas.
Se falam que tal casa é assombrada sem ela ser de Os silentes ditam o que pode ou não ser falado,
fato, uma hora ou outra os maus espíritos vão tomá-la estabelecem tabus, instituem feriados de silêncio e
para si. Se alguém confunde um tronco boiando no ainda fiscalizam se todos estão cumprindo as regras.
lago com um monstrengo e o boato se espalha, corre o Isso é pelo bem comum, pela a segurança do povo, pela
risco de um dingonek aparecer para afundar os barcos manutenção da ordem, pela honra dos ancestrais, pela
e comer os pescadores. Se alguém jura pela vida do autoridade do rei. Para garantir tudo isso, o controle
rei e não mantém a palavra, é capaz de o monarca cair se faz necessário. E, se você duvida, basta olhar
do trono e quebrar o pescoço. Só desgraça! E o pior para as cidades em que as leis dos silentes não são
é que pouca gente se atenta ao poder da própria voz, respeitadas. Nelas reinam o caos, a fofoca, a blasfêmia
pouca gente pensa nas consequências daquilo que e a insubordinação. A liberdade da palavra precisa ter
fala, mesmo que os babas e as velhinhas nunca deixem limites, senão o mundo se tornará um mar de ofensas,
de alertar. “Meçam suas palavras!”, eles repetem aos maldições, mentiras e degeneração. Então shhhh!
jovens insensatos, balançando o dedo no ar enquanto
franzem a testa com genuína preocupação.
» ORDEM DA BESTA «
Mas essas coisas acontecem com menos frequência
onde os silentes exercem sua função. Eles são membros Era uma vez, num lugar bem longe daqui, um
não de uma única ordem, mas de várias ordens secretas monarca muito rico e famoso, conhecido em toda a
que compartilham de uma mesma função: censurar região por sua extravagância. Seu nome era rei Ekpê,
palavras irresponsáveis e remediar seus efeitos e ele era proprietário de meio milhão de cabeças de
adversos. Esses fiscais da voz fazem votos de silêncio, gado, vinte mil escravos e de terras a perder de vista.
jurando nunca mais proferir palavra impensada ou que Ekpê esbanjava dinheiro a torto e a direito – promovia
não seja estritamente necessária. Muitos cobrem as banquetes e feriados em homenagem própria, mandava
bocas com panos escuros ou põem discos de madeira erguer estátuas de si mesmo por todo o reino, tinha
nos lábios para simbolizar esse compromisso. Dedicam- na coroa as maiores pérolas e mantinha um harém
se, então, a estudar a palavra falada e a magia que de mais de trezentas concubinas que, segundo ele
ela carrega, e aprimoram-se também na leitura e na mesmo, eram as mulheres mais belas de todo aquele
escrita. Em suas bibliotecas sagradas, eles conservam, pedaço do mundo. Apesar disso, Ekpê nunca se dava
decodificam, transcrevem e resumem muitos livros por satisfeito.
todos os anos. Não há um silente sequer que não seja
letrado. Certo dia, o monarca resolveu construir um novo
palácio. Mandou erguer torres enormes que tocavam
As pessoas os temem, pois sabem que eles estão os céus, corredores sem fim cheios de quartos
sempre ouvindo o que elas dizem, às vezes até em desnecessários e salões tão imensos que demorava
locais privados, e não pensam duas vezes antes de quase dez minutos para andar de um lado ao outro.
recriminar alguma fala ou denunciar ideias indecentes Ekpê contratou os melhores arquitetos e ordenou a
às autoridades. Nas comunidades em que os silentes compra dos melhores materiais, vindos de várias partes
detêm mais influência, alguns de seus membros andam do mundo. Os gastos eram absurdos, qualquer um
armados e podem punir de forma mais severa aqueles podia ver, e a cidade estava uma bagunça por causa das
que não moderam a própria boca. Tomam-lhes as obras. Mas o povo aturava todos os problemas, porque
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aquele era de fato um tempo de muita abundância e Perguntai, então, às mulheres dos trastes que eu matei,
progresso, e até a ralé tinha carne para comer. viúvas dos teus caçadores e dos teus soldados”, falou o
leopardo num rosnado, a saliva escorrendo por entre
E a cada dia que se passava, o novo palácio ficava os dentes e encharcando o tapete.
maior e mais majestoso, de fazer inveja a qualquer
ricaço de qualquer nação. Quando ele estava perto de Ekpê gritou pelos guardas, mas não teve resposta
ficar pronto e o tesouro real estava prestes a esvaziar, além da gargalhada cruel da fera que estava diante
as pessoas acharam que o rei enfim se aquietaria. Mas dele. No mesmo instante, o rei sentiu todos os pelos do
Ekpê ainda não estava feliz. Para o salão principal, onde corpo arrepiarem e teve a certeza de que os servos do
ficaria seu trono, o monarca queria algo especial: chão palácio estavam mortos, todos eles, e ninguém havia
e paredes totalmente cobertos por pele de leopardo, restado. E, cessando a risada, Osebo continuou a falar:
coisa chique! Só que, como não tinha mais dinheiro para “Mas tu, grão-mestre dos ignóbeis, és, muito mais do
comprar dos estrangeiros, Ekpê emitiu um decreto que que eu, um monstro, e um da pior espécie. Te escondes
obrigava cada caçador do reino a pagar como tributo por detrás de um manto colorido, debaixo duma coroa
uma pele de leopardo por mês. Quem não cumprisse de pérolas e dentro dum castelo que não devia existir.
a lei teria todos os bens confiscados e os familiares Andas e falas como rei, mas não és sequer um homem.
vendidos como escravos. És besta! És bicho! Tomas dos mais fracos, chafurda
nos prazeres da carne e jamais pensas no amanhã. Pois,
Tomados pelo desespero, os caçadores passaram de hoje em diante, serás por fora o que és por dentro:
a abater todos os leopardos da região, os adultos e os um caçador voraz, um monstro que nunca se sacia,
filhotes, e em poucos meses já não havia mais nenhum uma fera que fere os próprios irmãos e se alimenta da
para caçar. Mas o rei Ekpê manteve-se irredutível – carne e do sangue dos miseráveis! Noite após noite,
queria as peles a qualquer custo, então não revogou assumirás tua verdadeira forma, e assim será para
o decreto. Pelo contrário: ele pressionou ainda mais todo o sempre, até que Iku dê fim à tua vida. Teu reino
os pobres caçadores, que agora tinham que passar acabará em chamas e teu nome será maldito entre os
semanas longe de casa na tentativa de encontrar homens, e o mal que corre nas tuas veias será passado
alguma presa. Todavia, em determinado momento, aos teus filhos e de geração em geração”. Dito isso,
vários desses homens começaram a aparecer mortos Osebo pulou pela janela e desapareceu na escuridão.
na mata, o que levantou a suspeita de haver um monstro
rondando aquelas terras. E tudo se cumpriu conforme a palavra do velho gato
prateado. Nos dias que se seguiram, a cidade sofreu
Alguns boatos falavam de um espírito leopardo que, com os ataques de uma criatura que era meio homem,
revoltado com o assassinato de seus irmãos, passou a meio leopardo e cem por cento monstro – uma besta
buscar vingança. Outros falavam de um druida malvado sanguinária que despedaçava mulheres e crianças com
que enviava uma fera das sombras para atacar quem suas garras, espalhava pelos galhos das árvores e pelos
entrasse na mata. Mas logo o povo concluiu que a culpa, telhados das casas as entranhas do gado e devorava
no fim das contas, era do rei ganancioso e gastador que a carne dos guerreiros mais valentes. Toda noite, o
havia levado aquela gente à morte nas garras da besta. homem-leopardo surgia e ia embora deixando para
E os homens que o tal rei mandava para acabarem trás um rastro de destruição e luto. O povo chorava
com a criatura misteriosa também não retornavam, e e clamava por ajuda diante dos portões do palácio,
a tragédia alimentava ainda mais os boatos, lançando o sem nem desconfiar que Ekpê, o rei maldito, era na
nome de Ekpê de vez na desgraça. A partir de então, o verdade seu algoz, o responsável direto por todo aquele
monarca tornou-se muito mal falado por seus súditos, sofrimento.
e sua riqueza e saúde foram se degradando graças ao
poder da palavra. Incapaz de controlar a besta que vivia dentro de si,
Ekpê se escondia nos salões mais profundos do palácio
Certa noite, porém, Ekpê recebeu uma visita vazio. Sozinho, o rei gritava como louco, talhava as
inesperada. Dormia um sono profundo, mas um barulho próprias costas com um chicote e tentava prender a
o fez despertar na madrugada. Ao abrir os olhos, deu si mesmo com cordas e correntes na esperança de
de cara com a fera: um animal enorme de pelos cor evitar outro um massacre. Mas quando anoitecia, a
de prata e pintas pretas, olhos vermelhos e presas besta tomava o controle e sempre dava um jeito de
famintas – Osebo, o leopardo de dentes terríveis, a encontrar a saída. Farejava o medo, o sangue dos
ronronar e caminhar ao redor da cama, encarando o inocentes, e não voltava ao palácio até que estivesse
rei que se mijava de medo. “Pois então mandastes teus totalmente saciada. Depois de uma semana e milhares
homens para me tirar a vida e arrancar meu couro, de vidas ceifadas, o povo começou a debandar. Quem foi
é? Acaso achas que sou um gatinho assustado? Ou, esperto pegou tudo o que podia carregar e foi embora
talvez, um pedaço de pano imundo para lhe servir de antes do cair da noite. Mas os filhos mais velhos de
roupa? Grande príncipe dos tolos, tu és! Rei dos néscios! Ekpê, muito preocupados, foram até o palácio para
Chefe dos canalhas! Desconheces o nome de Osebo?
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cobrar do pai alguma providência, porque, se os plebeus vontade, mostrou que é possível dominar os instintos
abandonassem a cidade, eles não teriam mais em mais primitivos e manter a consciência (ou ao menos
quem mandar. parte dela) mesmo enquanto na forma monstruosa.
Reunindo um pequeno grupo de amaldiçoados ávidos
Ekpê fez de tudo para impedir que os jovens por aprender a controlar a besta, Bongam se isolou na
entrassem ali, em seu covil, e, quando entraram, fez de floresta e passou a ensiná-los os segredos da mente
tudo para expulsá-los – até revelou seu segredo, porém e do espírito. Passados doze anos, estava formado o
eles não acreditaram até ser tarde demais. Assim que primeiro bando de homens-leopardos conscientes,
escureceu, eles foram os primeiros a ser estraçalhados capazes de conter a ira selvagem dentro do peito e até
pela besta, não tiveram nenhuma chance. Minutos controlar os graus da transformação física, podendo
depois, no entanto, todos eles se levantaram como assumir também a forma de leopardos comuns.
recém-convertidos homens-leopardos e, como ordenava
a maldição, saíram à caça. A carnificina daquele dia Com a morte do líder, os discípulos de Bongam se
foi mais terrível que a de todos os dias anteriores espalharam pelo mundo e passaram a transmitir a
somados, e, dentre os que ficaram na cidade, apenas outros amaldiçoados os ensinamentos de seu mestre.
os filhos das esposas, das concubinas e das amantes Esse foi o nascimento da Ordem da Besta. Hoje em
de Ekpê sobreviveram, pois tinham também o sangue dia, muitos homens-leopardos se reúnem em bandos
amaldiçoado do pai. O reino de Ekpê foi consumido para exercitar o controle do “eu-selvagem” através
pelas chamas e nada restou senão o palácio. da meditação e da mandinga. Alguns deles vivem nas
longe da civilização, onde não podem ferir ninguém.
A maldição, porém, ainda vive nos descendentes do Outros, porém, sentem prazer na caça e na matança e
rei ostentador, que se espalharam pelo mundo como preferem trabalhar em conjunto com a besta interior.
praga. Por muito tempo, centenas de cidades ao redor Eles perseguem, emboscam e abatem alvos específicos,
de Aiyê sofreram com os ataques dos homens-leopardos. que podem ser escolhidos por acaso ou por votação –
De dia, os amaldiçoados são pessoas comuns, mas à heróis, bruxos, príncipes, descendentes de Ekpê ainda
noite viram feras assassinas incapazes de controlar não convertidos ou até outros homens-leopardos que,
os próprios impulsos. Saem pelas ruas num frenesi sem bando, acabam causando confusão demais.
atroz, rasgando e devorando pessoas e animais, e só
param ao nascer do sol. Para subjugá-los, os líderes Pelas divergências filosóficas entre os bandos, a
das comunidades mais ricas enviam esquadrões de Ordem da Besta acaba sendo mais um estilo de vida
guerreiros de elite ou contratam caçadores de monstros do que uma organização propriamente dita. Todos os
profissionais. Nas regiões mais pobres, o próprio povo grupos acreditam que a prole de Ekpê deve aprender a
organiza turbas e inquisições para encontrar e dar fim controlar a maldição por meio do exercício da vontade,
ao amaldiçoado antes que se transforme outra vez. porém cada um usa a besta do jeito que acha melhor,
seja para o bem ou para o mal. Os conflitos violentos
Mas a maldição do leopardo não está ativa em todos entre bandos são raros. Normalmente, os territórios
os descendentes de Ekpê. Para que a besta desperte, ficam longe demais uns dos outros para gerar qualquer
o indivíduo precisa ser ferido (ou até morto) por um disputa. Cada bando costuma ter de dois a seis homens-
outro amaldiçoado. Daí, em poucos instantes o corpo leopardos, embora grupos maiores já tenham se
se regenera e se converte no de um novo homem- formado. Em seus rituais, eles dançam pelados na
leopardo. Está feita a desgraça. Às vezes, famílias selva e fazem sacrifícios a Osebo e ao ancestral Ekpê.
inteiras são transformadas, e você já pode imaginar o Alguns homens-leopardos visitam as aldeias durante
resultado. E até hoje não se sabe se existe uma cura o dia, vestidos com peles de animais ou de gente, e as
para a maldição, já que ninguém, em sã consciência, pessoas tremem de medo ao vê-los.
se arriscaria a fazer experimentos com essas criaturas
sanguinárias. Exterminá-las parece bem mais simples
(embora não seja, de forma alguma, uma tarefa fácil).
Há griôs e feiticeiros que contam histórias de amuletos OUTROS ORIXÁS
capazes de espantar os homens-leopardos e outros
Na prática, é impossível contar o número de orixás que
seres amaldiçoados. Contudo, ainda que existam, esses
existem no Orun, e é ainda mais impossível descrever
artefatos são muito difíceis de obter, então não dá para
cada um deles com exatidão, pois as histórias que as
contar com eles.
pessoas contam têm milhares de versões diferentes, a
Só que as coisas mudaram um bocado depois depender do lugar e do tempo. Resta a nós, portanto,
do surgimento de Bongam, um sábio que, tendo limitarmo-nos a falar apenas dos orixás de maior
sido atacado por um homem-leopardo, descobriu-se relevância em Aiyê – os que reúnem o maior número
também herdeiro do sangue maldito do rei Ekpê. de devotos, os que detêm os devotos mais influentes
Bongam, ao contrário dos outros amaldiçoados, não e aqueles que chamam a atenção por alguma outra
se rendeu à besta – ele a domou. Com a força do ori, a característica particular. No livro básico de Kalymba,
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já falamos sobre uns vinte e poucos orixás. A seguir, E então, quando chegaram o dia e a hora da reunião,
descreveremos mais um punhado deles. os orixás foram se amontoando em frente aos portões
do palácio do Supremo – palácio que, aliás, era o
maior, mais esplendoroso, majestoso e sensaciocrível
» ENOLI « de todos. Era tão sensaciocrível que, ao ver tamanha
imponência, os próprios deuses ficaram inseguros
Nesse mundo existe um orixá para cada coisa, e o quanto aos presentes que levaram consigo. “Como dar
nome que se dá pra cada um deles varia de cultura para algo a alguém que já tem tudo?”, eles se questionavam,
cultura e de época para época. E tem aqueles orixás que alguns ainda boquiabertos, outros desesperados. Mas
só são conhecidos aqui, ali e mais em lugar nenhum – não havia tempo para conseguir algo melhor e também
deuses que governam sobre coisas muito pequeninas não dava para fugir. Logo os portões se abriram e os
e específicas, como vassouras e unhas encravadas, ou orixás foram entrando, um a um.
que se comunicam apenas com um determinado povo
e não dão atenção aos demais. Só que existe também Olodum os recebeu com um sorriso no rosto.
uma orixá que, embora desconhecida para a maior Estavam todos muito bem arrumados, com vestes de
parte do mundo, domina-o por inteiro. Essa é Enoli, a beleza e cores extraordinárias, coisa de Outro Mundo.
orixá da terra, da rocha, de Aiyê – aquela sem a qual Obaltá vinha com uma túnica branquíssima, reluzente,
nenhum ser mortal poderia viver e prosperar. imaculada, de um branco mais branco que as nuvens
dos céus e o leite das cabras. Mainjé vinha com um
A história conta que, há muito, muito tempo, os vestido bem longo, azul feito o oceano, adornado com
orixás ainda discutiam entre si sobre quem mandava as estrelas do além e do mar também, e era tão lindo
no quê. Cada um tentava puxar sardinha para seu que punha água nos olhos de todos que o olhavam. Já o
próprio lado dizendo que era dono daquilo e daquilo traje de Xongá era feito de raio e trovão – a cada passo
outro, e a confusão era tanta que Olodum resolveu que dava, o orixá justiceiro causava clarão, faísca e
convocar uma reunião para pôr fim a esse conflito estrondo, nada modesto. Uyá chegou com um vestido
infame. O Supremo marcou uma data para que todos esvoaçante, cheio de abas que balançavam ao vento,
os orixás, desde o maior até o menor, comparecessem com os eguns anunciando sua entrada. Outros milhares
juntos ao seu palácio. “E que venhais perfumados e de orixás foram chegando e pouco a pouco formando
em bom traje, pois recebereis de mim vossos cargos uma multidão. Xum fez questão de ser a última a entrar,
definitivos na administração do universo e sereis para para fechar com chave de ouro. Vestido dourado, cheio
sempre feitos donos dos elementos que eu vos der em de adornos de todo tipo, tão berrante e glamuroso
mãos”, Olodum decretou. quanto deveria ser.
E daí os orixás começaram a se preparar para o Olodum ficou tão impressionado com o capricho e
grande evento, todos preocupados com o que iriam a criatividade de seus filhos que, em vez de debater
vestir e com que presentes iriam levar. Todos, menos sobre que orixá ficaria com que domínio, ele resolveu
uma – Enoli, a quinta filha do Supremo. Ela, sendo dar a cada um aquilo que habitava no coração, de forma
princesa, vivia ainda no palácio do pai, mas era tão que nenhum deles ficasse insatisfeito. E daí em diante
tímida que nunca dava as caras. Nem os servos reais nenhum orixá podia reclamar de seu próprio domínio,
e nem seus próprios irmãos sabiam de sua existência. pois foi Olodum que o estabeleceu, e a palavra de
Era só mesmo Olodum que falava com ela. “Enoli, venha Olodum é a própria ordem. Alguns orixás ficaram com
cá”, ordenou o Supremo, fazendo-a sair do buraco de domínios exclusivos, outros tiveram que compartilhá-
terra em que se escondia. “Teremos reunião. Todo los, mas por alguma razão nenhum deles se incomodou.
orixá deve comparecer, nenhum pode faltar, então Todos no palácio festejaram para chuchu – comeram,
estejas pronta e não me envergonhes”. cantaram e dançaram até não poderem mais, e em Aiyê
Depois de cuspir a terra que tinha na boca, a princesa o povo teve sete anos de muita fartura, tamanha era a
foi logo resmungando: “Não posso ouvir tudo daqui alegria dos deuses lá no Orun. Mas no meio da festa,
mesmo? Quero mesmo evitar a chateação. Aquela o Supremo sentiu a falta de um certo alguém. Olhou
gente é biruta, tantã, lelé da cuca mesmo. Discutem por para os lados e não viu Enoli.
qualquer coisa, e eu odeio discussões. Odeio mesmo”. Irritado, Olodum bateu o cajado no chão com força,
Olodum bateu o cajado no chão e a terra tremeu, e aí interrompendo a festa num susto. Imediatamente, a
Enoli viu que não tinha jeito. “Está bem, pai. Estarei lá”, cabeça de Enoli brotou da terra, toda suja. “E-estou aqui,
ela respondeu, mas ainda com cara de quem acabou papai. Não precisa mesmo de tanto estresse”, ela deu
de pisar em titica. Olodum franziu as sobrancelhas, um sorriso sem graça com uma minhoquinha entre os
sem nem um pingo de confiança. “Estará mesmo?”, dentes. Os outros convidados da festa, é claro, estavam
ele perguntou. “Mesmo mesmo, pai”. estáticos. Quem era a estranha enterrada no buraco?
Por que chamava de papai o grande Olodum? “Enoli”,
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disse o Supremo fazendo o som grave da voz Deus não poupava ninguém, não importava quem fosse.
preencher o salão, “parece que não tens mesmo jeito, Quando saqueava alguma aldeia, degolava os anciões,
menina. Tal qual eu fiz a todos os meus representantes partia ao meio as mulheres, queimava as crianças e
que aqui estão, os orixás, farei também a ti. Dar-te-ei jogava os guerreiros cativos aos crocodilos.
o que teu coração tanto deseja: a eterna solidão sob a
terra. Viverás para sempre na câmara mais profunda Sempre que tirava uma vida, Irona sentia um prazer
do mundo mortal, sempre abaixo de todos, mas sem inigualável, tão intenso que nem seus companheiros de
ninguém que esteja acima de ti. Serás o próprio mundo, crime – que eram todos facínoras do mais baixo nível,
inabalável, sem horizonte que o limite, mas alheio o os piores dentre os piores – conseguiam compreender
tudo o que o cerca. Esse é teu fardo e tua recompensa”. tão grande êxtase. Poucas criaturas em Aiyê, contando
E esse foi o fim da festa. monstros e pessoas, foram capazes de derramar tanto
sangue quanto aquela mulher, a maior das assassinas.
A partir de então, Enoli passou a viver em Aiyê e a Seu nome tornou-se conhecido e temido em todo canto.
ser Aiyê de fato, bem como determinou a palavra de Depois da morte, Irona virou orixá, e hoje é mãe e
Olodum. As coisas que a Senhora da Terra faz lá no protetora de todos aqueles cujo deleite e profissão é
Fundo dos Fundos, ninguém sabe ao certo. Talvez haja tirar as vidas de seus iguais e atormentar os que ainda
um mundo inteiro lá embaixo, bem mais profundo e permanecem.
escondido que Subterra, onde nem os abatwás nem
os anões jamais estiveram. Quem sabe o próprio Mas, antes de tudo, é bom começar do começo –
Alawei, o último grootslang, esteja lá hibernando ou, e o começo dessa história é bem diferente do final,
pior, tramando uma vingança terrível! Quem sabe lá você verá. Uns tantos anos antes da matança começar,
exista uma grande câmara de demositas esperando havia na terra de Ari uma jovem donzela chamada
algum tolo que os libere na superfície para que possam Irona. Era uma moça muito tímida, tristonha. Sentia
conquistar o mundo! São muitas as dúvidas, muitas muita culpa pela morte dos pais, que foram linchados
as possibilidades. pelos moradores da aldeia em que moravam quando
estes descobriram o segredo profano que o casal de
Mas talvez nada disso tenha a ver com Enoli. Ela caçadores guardava – a saber, o fato de sua filha Irona
pode ser apenas uma orixá cansada que não quer ser na verdade uma bruxa, uma feiticeira.
ninguém enchendo a paciência, e daí colocou um
montão de monstros no subsolo para espantar os Para que você compreenda melhor o ocorrido, é
curiosos. Ou talvez Enoli ainda seja aquela jovem tímida importante esclarecer uma coisa: não é em todo lugar
que se esconde de todo mundo e só responde quem que a mandinga é vista com bons olhos. Em certas
vai diretamente ao seu encontro, aqueles corajosos o aldeias, é uma prática proibida, tabu dos mais graves. E,
bastante para explorarem os confins do abismo terrestre embora esse tabu não esteja fundamentado na vontade
em busca de respostas. Os devotos de Enoli costumam dos orixás, é fácil entender o motivo de sua existência,
viver em cavernas, depressões, fossas, túneis profundos. já que ao longo da história do mundo ficou mais do
Eles procuram manter-se sempre conectados física e que evidente o potencial destrutivo da magia. O mal
espiritualmente à terra, pois acreditam estar assim em que um feiticeiro é capaz de fazer não é brincadeira,
consonância com o mundo inteiro. São poucos e não não. Você sabe. Então, nas terras de Ari, foi vetada a
se revelam com frequência, não buscam fama e nem prática de qualquer mandinga e simpatia, sob risco
riquezas. Querem alcançar a paz inabalável, aquela que de pena capital.
não depende de fatores externos, mas sim da solidão e O problema é que algumas pessoas já nascem com
do autoconhecimento. Mesmo que tudo vá mal, mesmo axé forte e propensas às artes mágicas, e esse era o
que a vida se extingua, a terra permanecerá calada, caso de Irona, que ainda criança podia fazer todo tipo
alheia ao furdúncio, como se nada tivesse acontecido. de truque sem que ninguém a tivesse ensinado. Daí,
Nada mesmo. não demorou para que algum vizinho descobrisse
e espalhasse a notícia, resultando no massacre da
família. Mas Irona conseguiu fugir. Fugiu para longe,
» IRONA « longe mesmo, para a capital do reino de Ari, a cidade
Se você ainda não conhece a perversa Deusa de de Oyé-Meji. Chegou lá faminta, com calos nos pés, o
Cinza (também chamada Grande Mariposa), preste vestido imundo de terra preta. Ainda assim, por sorte
atenção nessa história. Um certo itan (lenda sagrada) ou providência divina, acabou chamando a atenção
conta que, muito tempo atrás, havia um clã de bandidos da esposa do rei quando esta passeava pelas ruas da
que se intitulavam o Enxamã. Tal clã era liderado por cidade, carregada por um bando de criados.
uma mulher que todos consideravam louca varrida, A rainha, que adorava crianças, mas era incapaz
tamanha era sua truculência ao lidar com os inimigos. de gerá-las em seu ventre, decidiu adotar a garota
Irona, o nome da fera. Nos roubos e nas batalhas, ela estrangeira e mandou-a imediatamente para o palácio
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para ser cuidada. Só que, chegando lá, Irona foi recebida Só que num fatídico dia, Irona acabou adormecendo
pelas zombarias das outras crianças que viviam com enquanto aguardava a chegada da donzela. Só acordou
a família real. “Que vestido imundo!”, “que cara mais ao ouvir os gritos. “Não, por favor! Soltem-me! Soltem-
feiosa!”, “que inhaca de bode!”, diziam. Então pegaram me já!”. Eram dois marmanjos imundos que tentavam
um punhado de efum, que é pó de giz, e jogaram sobre se aproveitar da mulher. A mulher de Irona, propriedade
a menina, e na mesma hora o preto se misturou com da Princesa de Cinza! Num instante a garota pulou
o branco e ela ficou toda coberta de cinza. Depois para fora dos arbustos, mergulhou no rio e partiu para
disso, Irona deu uma surra nos moleques, quebrando cima dos dois safados. Acertou o primeiro com uma
os dentes de alguns, os dedos de outros e arrancando pedra, arranhou a cara do segundo. A água espirrava, o
orelhas na dentada. sangue também. A algazarra era tremenda. No meio da
confusão, a mulher conseguiu se soltar e fugir berrando.
Ao saber daquilo, a rainha ficou horrorizada, mas A princesa, no entanto, levou um soco, mais um, mais
o rei se agradou muito da valentia da mocinha e a outro. Depois, começaram a afogá-la. Ela se debateu
tomou como favorita. “De agora em diante, só vestirás com fúria, mas uma hora parou de se mexer.
cinza, e tuas roupas só poderão ter cor se forem do
vermelho do sangue dos teus adversários”, ele declarou, O que aconteceu em seguida varia muito de versão
e assim foi feito. O tempo passou e a menina de cinza para versão. Uns griôs dizem que, enquanto o corpo de
foi crescendo, e logo estava quase na idade de casar. Irona boiava no rio, Iku, que é a morte personificada,
Mesmo a essa altura, nem o rei nem a rainha nem se compadeceu da menina. Talvez tenha sentido o
ninguém sabia do dom mágico de Irona, pois ela fazia axé intenso que emanava daquele espírito tão cheio
de tudo para escondê-lo. Irona vivia sozinha, era de de rancor e desejo e então decidiu tirar vantagem
poucas palavras, não tinha amigo nenhum. Em seu disso. Daí Iku fez um trato com o egun – um trato que
coração só havia angústia e raiva, e pouco a pouco até ninguém conhece direito, mas que devolveu Irona à
a culpa pela morte dos pais foi desaparecendo. Irona vida e a transformou na máquina de matar sobre a qual
não tinha apego a mais ninguém. O mundo lhe era falamos lá no começo. Outros griôs afirmam que não
cinza por completo. foi Iku, mas a orixá Yami quem apareceu. Vai saber?
Talvez Irona nem tenha morrido de verdade, tenha só
Um dia, como já era de costume, Irona fugiu do fingido para então pegar os vagabundos de surpresa.
palácio para perambular pela cidade. Andou um bocado, Ou, ainda, uma cabeça d’água tenha surgido e arrastado
roubou umas frutas, xingou os camponeses e daí foi todo mundo para longe por ordem de outro orixá. É,
em direção ao rio. Mas dessa vez, ao se aproximar, a são muitas as histórias.
princesa de cinza ouviu uma voz maravilhosa cantando
uma canção maravilhosa num tom maravilhosamente O que se sabe mesmo é que, depois disso, Irona
encantador. Era uma mulher lindíssima que se banhava deu um jeito de usurpar o trono de Oyé-Meji e daí
ali nas águas. Nadava tranquila, sem temer cobras nem tocar o terror em Ari e nos reinos além. Quando os
dingoneks. Assim que pôs os olhos nela, Irona decidiu inimigos retaliaram e massacraram o povo, Irona fugiu
que precisava tê-la de alguma forma, mesmo que não para uma região distante, onde finalmente aprendeu
soubesse o porquê nem para quê. Foi se aproximando com um baba a controlar a própria mandinga. Já era
na encolha, por trás das árvores e dos arbustos. Mas guerreira selvagem, virou feiticeira também. Feiticeira
num momento de distração, pisou num galho e o “crec” de verdade. Então ela se uniu ao bando dos enxamãs e
chamou atenção. em pouco tempo conquistou a liderança. Chantageava,
manipulava, impunha o que queria. Era boa no ofício da
“Quem está aí?”, a mulher perguntou. Mas nesse bandidagem e da dissimulação, e se sua vontade não
momento, Irona já voava para longe na forma de uma fosse feita, era fogo e maldição para todo lado. Irona
mariposa-cinzenta. Como se transformou e que palavras sempre vencia, de um jeito ou de outro. Na batalha,
mágicas ela disse, ninguém sabe. Nem ela mesma sabia era traiçoeira, desalmada – até porque esse negócio de
na época, apenas foi lá e fez. Mas a partir desse dia, honra é coisa de gente morta, e morto é quem falhou
tudo mudou. Irona tinha um objetivo, uma compulsão. em viver. No mundo dos vivos, é cada um por si, e quem
Voltava sempre ao mesmo lugar para encontrar a tal não agredir será agredido – vai levar rasteira de Iku e
mulher e por vezes esperava horas até que ela chegasse parar no Outro Mundo.
para se banhar. Mas tudo valia a pena no final. Oh,
que voz! Que corpo! De espiadela em espiadela, Irona Filhos de Irona não pensam em ninguém além de
começou a fantasiar dia e noite sobre como seria possuir si mesmos. Para eles, as pessoas ao redor são meros
tudo aquilo para si. Era tudo o que queria e precisava objetos a serem usados e descartados quando não
ter. No itan cantado, diz-se que a mariposa-cinzenta têm mais serventia. Não existe o conceito de lealdade,
(Irona) cobiçou a cigarra-orapa (a cantora misteriosa), apenas de interesse mútuo. Não existe amizade, apenas
de forma que hoje em dia tanto uma quanto a outra alianças temporárias. Viver e sorrir são privilégios que
são vistas como animais sagrados, intocáveis. devem ser conquistados, e quem não tem estômago
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nem forças para lutar por um lugar ao sol merece Graças a Ninielê, o mal continuará existindo mesmo
mesmo todo o sofrimento que está fadado a padecer. que ninguém o pratique, pois ele é parte do equilíbrio
Sem remorso, sem hesitação – os devotos de Irona natural das coisas. O azar é uma força tão real quanto a
apenas vão atrás do que lhes pertence, a saber, tudo gravidade e tão inevitável quanto nascer do sol. Assim
o que desejarem. como o destino de cada um é traçado antes mesmo do
nascimento, as desgraças que acompanham a vida de
Irona, não sem razão, é adorada com mais frequência cada indivíduo também são cuidadosamente planejadas
entre os criminosos e os devassos. Ao contrário de por Ninielê. No caminho para cada sucesso existe ao
Eksun, a Deusa de Cinza não se importa com as menos um obstáculo – às vezes uma pedra de tropeço,
consequências e não julga nenhum ato que seja feito às vezes uma montanha intransponível, às vezes um
por interesse próprio. Ela despreza apenas aqueles meteorito flamejante… Nunca se sabe. A vida é de fato
que não têm autonomia, aqueles que são manipulados uma caixinha de surpresas, e nem os planos dos orixás
por outros ou pelos próprios sentimentos idiotas como escapam de imprevistos.
amor, valentia e altruísmo, que nada mais são que
portas de entrada para a dor e a perda. Irona representa Ninielê é a loucura do universo, a inimiga da razão
o mal adquirido, aquele que surge como mecanismo e da justiça, a piada que faz chorar. Essa orixá todos
de defesa para sobreviver a esse mundo cão. Ela é o conhecem, embora seu culto seja raríssimo, praticado
trauma – ódio irrefreável, mágoa inesquecível, barreira apenas por quem tem o ori desregulado. Seus devotos
que impede de sentir. Ela é o transtorno – obsessão são aqueles sujeitos que, de tanto levarem paulada
incontrolável, desejo irreprimível, desequilíbrio total. do destino, renderam-se à incerteza, aos mistérios
Ela é a cicatriz social que todos possuem em maior sombrios da vida, e agora cantam e dançam diante das
ou menor grau, mas preferem negar. Ela é a sujeira desventuras que encontram no caminho. São pessoas
por baixo do pó branco. imprevisíveis e que sofrem todo tipo de surto psicótico
– rejeitam a lógica, fazem tudo ao contrário, tentam
de algum jeito louco ludibriar a má sorte (e muitas
» NINIELÊ « vezes conseguem mesmo). Para quem tem a certeza
do fiasco, o sucesso é a única surpresa possível.
Ela entra sem ser convidada, ela sabota o plano
perfeito. Ela pune quem nunca fez nada, sai matando a No entanto, Ninielê ainda é uma orixá ingrata e
torto e a direito. É a força do azar, a Mãe da Desgraça, cruel, e por isso as pessoas a tratam mais como diaba
aquela que amaldiçoa a todos igualmente, porém uns do que como divindade. Ela não tem dó de ninguém,
muito mais do que outros, sem justiça nem razão, sem não adianta fazer ebó nem louvor. Para mostrar isso,
ódio nem compaixão. É Ninielê quem leva o infortúnio há uma história bem antiga que conta de um cidadão
à vida dos mortais, e o faz sem olhar idade, origem, chamado Ijiosun. Ijiosun foi consultar um oráculo para
raça ou caráter – tudo e todos são seus alvos, para ela saber o motivo de seus negócios estarem indo mal. Ele
não há distinção nem inocente, ela ataca toda gente, o estava desesperado, à beira da miséria, e já não tinha
saudável e o doente, o covarde e o valente, quem jura como sustentar a casa. Então ele levou o pouco que
e quem mente. Ninielê é a onda que a todo momento ainda possuía até o laô na esperança de receber em
tenta arrastar os vivos, os mortos e os deuses para troca alguma luz. Jogando os búzios, o laô descobriu
o grande mar de lágrimas onde todos, uma hora ou a fonte do problema. “Se queres mesmo acabar com o
outra, irão mergulhar. mal que te aflige, faça as oferendas que te direi. Uma
para Eksun, para que lhe abra o caminho, e uma para
Ninielê representa tudo o que pode e vai dar errado Ninielê, para que não o feche novamente”.
nessa vida. Ela tira sarro do tombo da vovó, ri da
vela que cai no berço do bebê, gargalha com a pedra Então Ijiosun preparou o ebó do jeitinho que o
escondida no fundo da cachoeira e aplaude quando um oráculo ordenou, sem esquecer um detalhe sequer.
deslizamento de terra leva embora o vilarejo. Ninielê A oferenda para Eksun foi feita na entrada de casa,
ama ver o fiasco dos precavidos, a catástrofe que enquanto a oferenda para Ninielê devia ser entregue em
ninguém espera, a dor que ninguém fez por merecer, um local distante – uma casa que ficava depois de seis
mas que vêm com tudo mesmo assim, sem dó nem vales e seis colinas, onde se cruzavam um rio de fogo e
piedade, e provocam o choro dos ricos e dos pobres, um de água, num lugar mais alto que as nuvens, uma
dos amantes e dos rivais, dos homens e dos orixás. das bordas do mundo. Com tudo pronto, Ijiosun partiu
Ninielê é vista por muitos como uma força maligna, sozinho levando consigo apenas um jabuti, um galo,
uma entidade cuja missão é pôr obstáculos entre os uma bolsa com quiabo, um punhado de pimenta, uma
mortais e seus objetivos. Seu dever é fazer com que haja cabaça de água consagrada, uma cabaça com cachaça e
na vida tanta lamúria quanto júbilo e assim ninguém um cachimbo com rapé – tudo para oferecer a Ninielê.
vá ao Outro Mundo sem antes conhecer o sofrimento. A jornada era perigosa, ninguém quis acompanhá-lo,
33
mas Ijiosun confiou na bênção do Senhor dos Caminhos surgiu na face da mulher. “Muito bem”, disse ela.
e saiu de cabeça erguida carregando suas tralhas. “Ninguém pode ir a Ninielê sem antes enfrentar os
devidos desafios. Muito me agradaria saber os detalhes
No começo da viagem, tudo ia bem. Ijiosun subiu de seus infortúnios, mas antes preciso consultar minha
a primeira colina e de lá de cima pôde contemplar o senhora, pois ela e eu somos uma coisa só”. Pegando
restante do caminho. A brisa fresca batia no rosto e o o jabuti, a aziza entrou na casa.
pôr-do-sol enfeitava o horizonte. Tudo era muito bom
aos olhos de Ijiosun, o futuro lhe parecia promissor. Nesse ponto, Ijiosun ainda não sabia, mas na verdade
Ele agradeceu os orixás pelo privilégio, mas não fez tanto a sorte quanto o azar que havia encontrado
demora. O percurso levaria vários dias, tinha que se durante o percurso eram obra de Eksun – que, já
apressar. Mas quando Ijiosun desceu o vale logo à conhecendo o caráter de Ninielê, sabia que a melhor
frente, o primeiro problema surgiu. Havia um homem forma de proteger o viajante era colocando algumas
moribundo no meio da estrada, e quando este viu o pedras em seu caminho para que ele não chegasse ao
viajante se aproximar, pediu a ele um pouco d’água, pois destino sem conhecer a dor. Só que Ninielê, mesmo
tinha sede. Ijiosun sabia que a água era para Ninielê, quando satisfeita, não garante nada a ninguém (e Eksun
mas acabou se compadecendo do sujeito e dando a também já sabia disso). Dentro da casa, Momu Yeyé
ele a cabaça que tinha. invocou o nome de sua orixá e daí fez um jogo de
sorte, e o resultado que caiu era a morte. Morte para
De manhã, Ijiosun subiu a segunda colina e lá Ijiosun. Pouco importava a oferenda, a resiliência ou a
escutou o cantar dos pássaros e achou um bocado de superação – no fim, tudo pode ser decidido com gomos
frutinhas boas para comer. No segundo vale, porém, de noz-de-cola ou um punhado de ossos de galinha.
Ijiosun deu de cara com um leopardo feroz. O susto
foi tamanho que o homem jogou o galo pro alto como Nesse momento, Ijiosun sentiu alguém puxar seu
isca e saiu correndo rumo a próxima colina. E assim braço. Era o homem sedento da estrada (ou talvez o
foi por toda a viagem: nas colinas Ijiosun encontrava yumbo, ou talvez o ladrão, ou talvez o andarilho…), que
paz, mas nos vales encontrava todo tipo de adversidade. começou a gritar, todo afobado: “Corra, seu tolo! Com
Teve que dar os quiabos para um yumbo malvado que essa aí não tem conversa! Apenas salve sua vida! Corra
cobrava pedágio, jogar a pimenta nos olhos de um como um louco! Um louco!”, e Ijiosun começou a correr.
bandido safado e compartilhar o cachimbo com um Correr como um louco mesmo, no susto, descendo
andarilho que o ajudou a sair de um buraco. Tendo a montanha em ziguezague, jogando-se sobre as
perdido quase todas as oferendas, Ijiosun se sentiu tão pedras, gritando e dando piruetas, chutando os ninhos
triste que acabou bebendo a cachaça para recuperar de pássaro e mijando nos próprios pés. E Ninielê,
o ânimo. Sobrou só o jabuti. encarnada em Momu Yeyé, saiu voando atrás dele,
disparando tudo o que é feitiço. Mas como a Mãe da
Quando enfim chegou ao destino (após ter passado Desgraça só tem um olho, não acertava a mira de jeito
pelas seis colinas, pelos seis vales, pelos rios de nenhum. Ijiosun corria, corria, e continuava correndo
fogo e água e escalado a montanha mais alta que as como maluco mesmo após ter chegado à cidade. Ainda
nuvens), Ijiosun se deparou com uma casa grande e na tentativa de matá-lo, Ninielê acabou por explodir sem
meio tombada sobre a qual repousava um bando de querer todos os inimigos e concorrentes do sujeito, e
abutres. O viajante, mesmo com um frio danado na assim a família e os negócios de Ijiosun prosperaram
espinha, bateu palmas para chamar a dona da casa, tremendamente.
e em alguns instantes saiu de lá uma mulher alta,
de asas pretas e penas na cabeça. As roupas eram Quando enfim desistiu de persegui-lo, Ninielê o
trapos ensanguentados, as joias eram dentes de ouro amaldiçoou uma última vez, fazendo surgir em suas
que sorriam e rangiam em alegria e angústia. Um costas um símbolo muito estranho, algo que hoje
olho ficava coberto, o outro era escuro como a noite. chamamos de gogundan. O gogundan marca aqueles
A voz, tão áspera que feria os ouvidos. “Que queres, que conseguiram de alguma forma enganar o destino,
estranho?”, perguntou Momu Yeyé, e imediatamente burlando as forças da sorte e do azar. Por tradição, ele
um dos abutres caiu duro no chão. passou a ser tatuado nas costas de todos os devotos
da Mãe da Desgraça. É um lembrete de que todo azar
“Sawubona, iabá! Meu nome é Ijiosun. Vim de longe evitado por um indivíduo obrigatoriamente recairá em
trazer oferendas à Mãe da Desgraça, à Quebra-Perna, outro alguém, e toda sorte que uma pessoa recebe de
à Coisa-Ruim”, disse o visitante cansado, e caiu de forma indevida é uma bênção arrancada de outra. Nada
joelhos sobre o pó. “E onde estão as tais oferendas?”, a é de graça, mesmo que não seja você a pagar. E assim
velha aziza perguntou, encarando-o sem ainda abaixar vivem os filhos de Ninielê – como loucos, fugindo de sua
a cabeça. “Peço perdão e misericórdia, mas no caminho mãe, evitando seus castigos, fraudando a balança do
encontrei muitos obstáculos. Os ebós que eu tinha se bem e do mal para que, no fim, outras pessoas sofram
perderam todos, restando apenas este jabuti”, Ijiosun
respondeu. No mesmo instante, um sorriso malicioso
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as consequências de tais ações. É a sobrevivência do dívida justa, Gogã é quem castiga o estelionatário. Gogã
mais imprevisível. Pimenta no dos outros é refresco! é quem enterra o tesouro, Gogã é quem vinga o otário.
Devoto dessa orixá tem que ser esperto, estar sempre
vigilante, não dar mole pra canalha. Tem que ter pulso
» GOGÃ « firme, não deixar impune o ladrão nem o corrupto.
Tudo pertence a Gogã, mesmo as coisas que não são Gogã é irmã de Ognigo, o orixá da conciliação, e
dela. Se você acha que algo é seu, é porque claramente de Bongô, o orixá da herança. As pessoas também
está mal informado. Gogã é a verdadeira dona. Nem costumam associá-la a divindades como Bao, deusa
os mortais nem os orixás possuem coisa alguma que da luta pelos ideais, e Xongá, o senhor da justiça,
não tenha Gogã como verdadeira proprietária – eles embora a filosofia de Gogã tenha um caráter muito
só não sabem disso ainda. Tudo é dela por direito, e mais materialista que as desses dois. Gogã não se dá
por isso ela tem o direito de proteger. Gogã é orixá do com Eksun e nem com Mugô, porque eles não têm
egoísmo e da propriedade. É quem defende as riquezas respeito pela propriedade. Gogã odeia quem passa
materiais e impede que os outros lancem mão daquilo a perna nos outros e quem toma à força o que é dos
que não lhes cabe. mais fracos. Todos os bens que alguém possui devem
ser adquiridos de forma legítima: com trabalho, troca,
Gogã é a carrasca que corta a mão do ladrão e investimento ou cobrança de juros.
enforca o vândalo no alto da árvore. Ela caça quem
toma o que é dos outros e quem depreda os bens da Dito isso, é fácil concluir que Gogã odeia a Fratura e
aldeia. É a orixá da propriedade, da justiça contra os seus simpatizantes mais do que qualquer outra coisa,
bandidos, aqueles que usufruem do trabalho alheio pois a Fratura é o pior dos roubos: o roubo da alma,
sem ter permissão. Seus filhos podem ser reis que da essência, do existir – aquilo que pertence apenas
punem os larápios e os vagabundos, ou guerrilheiros ao próprio Olodum. É também um vandalismo, porque
que lutam contra invasores estrangeiros. Ou, ainda, não apenas toma, mas também perverte tudo o que
mercadores indignados que, sempre que podem, dão toca. Fraturiano bom é fraturiano morto! Os guerreiros
alguns trocados para as crianças arremessarem paus sagrados que se devotam a Gogã combatem com unhas
e pedras contra os cobradores de impostos. e dentes as crias do Caos e os mirongueiros que com
elas trabalham. Muitos desses guerreiros se associam
Filho de Gogã protege o que é dele e protege também a ordens santas como a Zangahaki e a Gonyobon e são
o que é dos outros, porque, no fim das contas, tudo temidos pelos malfeitores do mundo todo.
pertence à Dona das Coisas e deve permanecer nas
mãos de quem ela escolheu. Os devotos de Gogã
nunca roubam, nunca saqueiam, nunca destroem a
propriedade alheia e nem permitem que outros façam »»» NOTA DO AUTOR «««
isso. Quando emprestam, cobram de volta com juros.
Quando sofrem prejuízo, exigem indenização. Preferem
jogar o ouro no mar do que deixar que outra pessoa o AO MENOS MAIS TRÊS ORIXÁS VÃO ENTRAR
roube. Mordem-se de raiva sempre que são passados NESSE CAPÍTULO. TAMBÉM DEVO COLOCAR
para trás. Filho dessa orixá é sujeito mal-encarado,
que desconfia de todo mundo e não deixa ninguém AS DESCRIÇÕES DE OUTROS LUGARES
encostar no que não deve. É cão de guarda, é sentinela.
MÍSTICOS, MAS ESSA NÃO É A PRIORIDADE
No Orun, Gogã é a orixá que vigia o palácio de
Olodum quando ele não está (e ele nunca está). Ela
NESSE MOMENTO.
protege a estrutura e o conteúdo, das paredes às joias,
dos móveis aos livros. Todos os bens materiais estão
seguros sob seu olhar. Gogã também já fez muito favor
pra tudo quanto é orixá e espírito. Quando alguém quer
recuperar um bem perdido ou roubado, pede ajuda a
Gogã. Mas nenhum trabalho é de graça, é preciso dar
algo em troca, e algo de mesmo valor.
35
FRATURA EXPOSTA de entrar no mundo, o Caos não tinha forma nem
pensamento, mas ao invadir o universo da Ordem,
As mentes frágeis das criaturas de Aiyê não são adquiriu também parte de sua natureza. Ganhou corpo,
capazes de conceber as verdades profanas reveladas ganhou mente, necessidades e desejos. Ganhou vida.
pelo Caos. Como crias de Olodum, os seres do universo Mas ainda era Caos, e toda cria do Caos a ele precisa
estão habituados à Ordem e a todas as leis que advêm voltar. Por isso a destruição de todas as coisas é o
dela. Mas no Caos Exterior – essa força cósmica impulso irrefreável dos fraturianos. Seu destino é
incompreensível e externa à realidade – não há lei, retornar ao Nada.
e nem os pilares da existência (o tempo, o espaço e a Por isso também, os fraturianos não temem o fim.
magia) têm qualquer autoridade. Lá não há lugar e não Não sentem um pingo de receio da morte e a dor. O
há coisa. Não há ontem, não há hoje e nem amanhã, não existir, para eles, é como um abraço de mãe. É
pois as raízes e os galhos de Kokori não o alcançam. impossível ameaçá-los e intimidá-los, pois eles são
Lá não existe sequer energia. O Caos é apenas silêncio, o próprio terror – o terror infinito e incompreensível
ausência, nada, e tudo o que existe é por natureza das trevas profundas do cosmos. Eles são o ponto final
contrário a ele. que existia desde antes do começo. São a não-vida, o
Mun-He, como chamam os kulvitas, não tem anti-tudo. Através da aniquilação de toda a Ordem, os
consciência e nem querer, e todas as características fraturianos almejam unir-se novamente ao Nada. Só
que os mortais conferem a ele não passam de um assim a verdadeira paz, o silêncio eterno, poderá ser
engano conveniente. Como poderia algo como o Vazio alcançada. Todos serão um no Caos Exterior.
ser alvo de juízo de valor? Como poderia o Nada Na era em que o Caos entrou no mundo, eram tempos
ser mau ou bondoso? Qualquer tentativa de aplicar de guerra, de ódio e de grandes máquinas. As auras
a ele os conceitos que as pessoas inventaram para dos seres de Aiyê e do Orun estavam conturbadas.
descrever as coisas é tolice, e qualquer explicação Todos os desejos de seus corações eram torpes, e suas
sobre a essência do Caos é inútil, pois o Caos não é palavras seguiam o mesmo caminho. Falavam de morte,
coisa e nem tem essência alguma. O Caos não existe de caça, de vitória, de vingança. Falavam de naves,
fora das nossas cabeças. A partir do momento em que de monstros de aço, de armas potentes. E da mesma
tentamos concebê-lo, já nos afastamos dele, pois ao forma que o Caos se adaptou às leis do espaço e do
transformá-lo em ideia, já o perdemos. Sem motivo, tempo, ele se adaptou à magia, absorvendo também
sem substância, é apenas o Caos. as palavras que a influenciavam. A magia do mundo
Não à toa, as criaturas da Ordem o temem como se estava impregnada de negatividade e tecnologia, e isso
fosse um demônio, uma entidade maligna, um deus serviu de alimento à Fratura e seus filhos.
cruel que vem do além. É natural temer aquilo que Daí surgiram as naves fraturianas, feitas de carne,
não se compreende. As mentes dos mortais (e até dos morte e horror. Surgiram os trogloditas enormes que
deuses) têm a necessidade de ver coisas, entendê-las, esmagavam as panteras mecânicas, os invasoides
explicá-las. Mas no Caos não há o que ser visto ou que rasgavam ao meio os soldados armadurados, os
explicado, pois nele nenhuma lógica faz sentido. Para patriarcas que abduziam e devoravam cidades, os
os olhos que contemplam o abismo da inexistência, canhões tumorais que infectavam tudo o que estivesse
o único destino é a loucura e a cegueira. E se o Caos no caminho, os lulíneros vampiros que se projetavam
amorfo, por si só, já é o suficiente para esmagar a como mísseis e todos os demais tipos de demônios
sanidade dos mortais, quão apavorante não deve ser que assolaram os dois mundos de Olodum. Mesmo
a visão do Caos encarnado? Dos que testemunharam derrotados, os fraturianos ainda conspiram contra a
um ser de entropia, um “fraturiano”, poucos viveram Ordem, escondendo-se nos ermos e nas profundezas
para contar. E desses poucos, metade caiu prostrado da terra, aguardando o momento certo para contra-
de joelhos em adoração. atacar. Os povos de Aiyê hoje pensam que a guerra foi
Grandiosos é o Nada, e abominável é seu poder. ganha através das armas, e pouco a pouco se esquecem
Ninguém pode resistir a ele. Assim como vácuo, ele suga do segredo que de fato os levou à vitória. Em breve
tudo o que está ao redor, querendo preencher o vazio. os filhos do Caos terão uma nova chance de fazer o
O Caos absorve a matéria, a energia, o pensamento, a universo voltar a ser quieto e vazio (como nunca deveria
essência. Ele digere e assimila o ser, o existir. Antes ter deixado de ser).
37
» OS LORDES DO CAOS « » AS MIRONGAS E OS BRUXOS «
A Entropia ganha forma, o Nada se torna carne, o Flertar com o Caos é como dançar na beirada de um
Vazio agora pensa e deseja. Surgem então aberrações precipício. A maioria acaba caindo, e para esses não há
de todos os tipos e tamanhos, grandes e pequenas, e chance de retorno. O Kalunga é um poço sem fundo,
as maiores e mais poderosas entre elas são para as um oceano infinito de solidão e desprezo. Quando o ori
outras como deuses. Tais entidades são chamadas se perde nas trevas do além, tudo o que resta é esperar
lordes, os soberanos representantes do Caos Exterior que o próprio abismo se compadeça dele e o destrua,
neste mundo, aqueles cuja glória se equipara à dos livrando-o do sofrimento que é ser algo em meio ao
orixás. Eles podem absorver energia e matéria e são nada absoluto. A única esperança para as vítimas da
capazes de distorcer até mesmo a passagem do tempo. Fratura é tornar-se um com o Vazio, pois a própria
Nenhum mortal comum pode encará-los e manter- existência é intolerável. O destino dos corrompidos
se são depois disso. Mas entre os lordes fraturianos é a loucura. São poucos os mortais que conseguem
ainda existe uma escala de poder mais ou menos clara, resistir a ela. Esses escolhidos, no entanto, podem
sendo alguns considerados superiores aos demais. No realizar grandes coisas em nome do Caos.
passado distante, Apófis era rei. Mas hoje, após sua
queda, é Masoba o Faminto quem domina a Banda Eles se tornam bruxos que usam a entropia como
Podre, o território mais extenso a permanecer sob ferramenta para alcançar seus próprios fins. Sugam a
domínio fraturiano, e é ele quem lidera a maior parte das energia das coisas e com ela fazem muitos prodígios.
tropas demoníacas que ainda vagam por aí, arrasando Mironga é o nome que damos a isso. E, ao contrário
tudo em seu caminho. da mandinga, que depende da manipulação do axé do
feiticeiro e está limitada a ela, a mironga pode ir muito
Nem todos os lordes que sobreviveram à Primeira além das capacidades dos mortais, pois o universo
Hecatombe são conhecidos. Alguns se mantêm longe inteiro serve de combustível. Ainda assim, achar um
da vista dos orixás e dos povos da terra, certamente mirongueiro competente é mais difícil que achar um
planejando uma futura retomada. Esses são chamados abada que jogue mancala. Muitos dos que se envolvem
de condes, porque só se escondem. Outros vagam com as artes profanas da Fratura terminam loucos,
sozinhos pelo mundo, sem rumo e nem objetivo além mortos ou coisa pior. Tentados pela facilidade de obter
de matar, consumir e crescer. Esses são os barões. poder, esses falsos mestres das trevas se jogam de
Se bará é aquele que está à mercê do destino, barão cabeça no Caos, mas acabam se tornando eles mesmos
significa “perdido” ou “vagabundo”. Os lordes de maior vítimas dos efeitos desastrosos e imprevisíveis das
relevância têm nomes próprios conhecidos, como Khin- mirongas. A corrupção toma a mente e o corpo, e em
Guê, Napol-Labet, Wio Mun, Shivirrta e o próprio pouco tempo a alma se estilhaça.
Masoba, e eles todos recebem títulos conforme os
feitos que realizaram no passado. Os lordes que foram Usar mironga é andar na corda bamba. É tocar o
destruídos nas guerras da antiguidade não tiveram, em Kalunga, mas sem nunca mergulhar nele. A única
sua grande maioria, os nomes preservados ao longo maneira de usufruir da magia das trevas de forma
das eras. Os mais importantes receberam apelidos, minimamente segura é tendo controle tanto do axé
enquanto os outros são chamados de marqueses, de quanto das forças caóticas que o consomem. Aqueles
forma genérica, pois só são conhecidos pelas marcas que não dominam o próprio ori estão fadados a perdê-
que deixaram no mundo. lo para sempre. Tornam-se feras, montros horrendos,
aberrações demoníacas, meios-fraturianos. Com o ori
Esses termos que categorizam os lordes fraturianos infectado pela desordem, o dom de manipular axé e
só são usados nas universidades, e nem o povo comum conjurar é perdido, e os laços que prendem a mente
nem os corrompidos os conhecem. Na verdade, as à realidade e aos orixás é rompido. O bruxo esperto
pessoas normais evitam se referir aos fraturianos de não brinca com mironga, pois sabe que é arte sinistra,
forma geral, porque é sabido que falar deles os deixa incerta, perigosa. Ele domina o Caos sem ser dominado
mais fortes. A maioria do povo não sabe nome de por ele. Ele olha para o abismo e consegue suportar
fraturiano, e quem sabe não pronuncia. Quem mantém quando o abismo olha de volta.
e espalha esse conhecimento são os askumitas, os
dadamins, os bokassas e os outros bandos que cultuam Os grandes bruxos são quase sempre feiticeiros
o Caos. Esses, sim, cantam louvores em adoração comuns que decidiram aderir ao lado sombrio da
aos demônios, e rezam para que o fim chegue mais magia com o intuito de se tornarem mais poderosos.
rapidamente a este mundo, livrando-o da angústia do São motivados pela vingança, pela ganância, pela
existir. megalomania, pelo sadismo. Abraçam o Caos Exterior
por vontade própria, e por algum tempo conseguem
subjugá-lo. Com esse poder, explodem cabeças,
adoecem a terra, fazem olhos caírem, espíritos fugirem
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e as tripas dos filhos enforcarem os pais. Obliteram cavar buracos bem fundos para achá-los. Mas naquela
inimigos, levam-nos à loucura, viram-nos do avesso. situação, sem dispor das bestas de metal para ajudar,
Tudo pela destruição. Tudo pelo horror. Tudo pelo os mineiros tinham que abrir caminho com picaretas
domínio. Mas, claro, nenhum mortal pode brincar com e pás comuns, e dessa maneira demoravam bem mais
o Caos e sair ileso. Ninguém resiste para sempre. Uma para alcançar algum resultado.
hora a Fratura cobra seu preço. Uma hora todo bruxo
cai do precipício, uma hora toda dança chega ao fim. Só que os mineiros do Vale Tanaruxa eram
E o fim, para essa gente, é apenas o início das dores. persistentes. Mais persistentes do que quaisquer outros.
E foi isso, aliás, que os levou à ruína. Com calos nas mãos
Em Aiyê, os mirongueiros estão em toda parte. A e o suor escorrendo pela testa, eles escavavam dia e
maioria tem a sorte de morrer cedo, vítimas de heróis noite, coletando todo metal e gema que viam pela frente.
valentes ou aldeões revoltados. Outros ganham muito Enchiam muitas carroças com toneladas de kiini, e em
poder rapidamente e não sabem controlá-lo, então troca recebiam dinheiro, sal e terras férteis para viver.
são corrompidos por completo, tornando-se quase tão Só que, em certo ponto, as escavações encontraram uma
deformados e horrendos quanto os próprios demônios. barreira das grandes. Lá embaixo tinha uma estrutura
Só uma pequena parte dos bruxos mirongueiros de fato maciça, claramente feita por algum povo morto e há
prospera, e esses, sim, conquistam muitos territórios, muito esquecido. Portões de mármore cheios de figuras
riquezas e escravos. Guerras são travadas, almas estilhaçadas e inscrições que ninguém mais conseguia
incontáveis são perdidas, e as pessoas passam a vida ler. Nem os sábios e os espíritos dos ancestrais, quando
temendo que um feiticeiro das trevas surja entre elas. consultados, souberam dizer do que se tratava. Então
É por isso que em alguns lugares mais isolados o povo a curiosidade falou mais alto, e os chefes da escavação
queima, afoga, apedreja ou decapita qualquer um que chamaram feiticeiros para abrirem a passagem, pois
seja acusado de bruxaria, inclusive crianças. A mironga ela estava selada por mandinga.
é um medo constante, muito maior do que o medo de
mandingueiros malignos. Enquanto a mandinga pode Assim foi redescoberta a capital de uma das mais
arruinar o corpo, a mironga destrói o corpo e a alma antigas civilizações de Aiyê. Os ngangas deram a ela
junto, e não há orixá em Aiyê ou no Orun que possa o nome Gwumir, que significa “cavar até o fundo”,
trazê-la de volta. e libertaram todos os espíritos que assombravam o
lugar. Mas como ninguém ali conhecia a língua que
esses espíritos falavam, os ngangas não entenderam
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mas o ori agora pertencia à criatura grudada na nuca, é somado, não subtraído. Torna-se uma relação de
e ela comandava os membros e todos os órgãos, desde simbiose, não mais parasitismo.
os pulmões até a pele. E aí os hospedeiros começavam
a atacar os outros que tentavam fugir, agarrando-os E essa simbiose é a coisa mais perigosa que há.
para que fossem também “convertidos” pelos irmãos São esses demositas que de fato oferecem perigo à
demositas. Que sensação abominável deve ter sido! civilização, já que, além de terem inteligência superior
Estar preso no próprio corpo e sendo forçado a fazer o aos demais, contam com a colaboração de seus
mesmo com os antigos companheiros de trabalho. Um “anfitriões”, dando a eles muitos poderes em troca.
triste destino para os últimos grandes extratores de kiini Alguns demositas, quando a intimidade fica grande,
de Aiyê, e um triste fim para os pais, filhos e maridos têm a capacidade de se misturarem à própria carne do
que entraram naquele buraco em busca de riquezas, hospedeiro, e assim os dois se tornam uma coisa só,
mas que no final do dia retornaram para a cidade como potencializando ao máximo todas as suas habilidades.
aberrações demositadas e sedentas de sangue. Regeneram partes perdidas rapidamente, mudam
órgãos e membros de lugar e forma, escalam paredes
Através de seus hospedeiros, os demositas com facilidade e digerem qualquer coisa que comerem.
conquistaram o Vale Tanaruxa e expandiram seus Espertos, velozes, flexíveis, resistentes e muito feios –
domínios. Iam sugando os miolos de tudo o que viam tornam-se verdadeiros monstros. E mesmo quando os
pela frente, tanto bicho quanto gente, e aí usavam vermes têm que mudar de hospedeiro, levam consigo
as tripas dos coitados para colocar mais ovos e se as memórias do anterior, e assim o poder cresce e os
reproduzir. Os conhecimentos que os cérebros dos limites se rompem. Malditos mineiros enxeridos!
hospedeiros tinham eram sugados pouco a pouco, e
assim os vermes se tornavam cada vez mais inteligentes.
Em certo ponto, já ofereciam risco para boa parte do
mundo, e então grandes batalhas foram travadas para
EXPERIMENTOS SÓRDIDOS
contê-los. Isso aconteceu meio século antes da Crise dos Alguns monstros não nascem, são criados. Através
Fractais, considerada o marco do final da era dos kiinis. de misturas alquímicas e rituais profanos, é possível
gerar aberrações que desafiam as leis do universo
No fim da história, os demositas foram vencidos pelo
e do bom senso. Esse é o caso dos adroanzis, os
sol, pelo fogo e pela mandinga. Eles não suportavam o
seguidores do demônio Adro, que se utilizam de elixires
calor excessivo, e por isso ficavam escondidos durante o
(cujas fórmulas são guardadas às sete chaves) para
dia e tinham muito medo do fogo. Também não podiam
provocarem mutações bizarras nos próprios corpos,
fazer magia, mesmo que se alojassem em feiticeiros,
tornando-os semelhantes a serpentes, mas com poderes
pois não eram capazes de controlar plenamente o axé,
muito, muito mais vastos. Outros exemplos são as
a menos que permanecessem no mesmo hospedeiro
múmias kulvitas, os nkuyunanas e todo tipo de morto-
por vários anos. Derrotados, os vermes diabólicos
vivo que anda por aí matando os vivos-vivos, quase todos
retornaram para as profundezas escuras – os túneis,
gerados por meio de rituais proibidos, contrários aos
as cavernas, as fendas, os abismos – onde muitos deles
desígnios dos orixás.
voltaram a hibernar enquanto outros continuaram
vagando em busca de alimento. Algumas regiões de Abominações assim surgem sempre que um feiticeiro
Subterra ainda são infestadas de demositas, mas eles ou maníaco resolve brincar de deus, cuspindo no rosto
evitam se aproximar de áreas onde há fluxo de magma. da natureza e distorcendo as regras do jogo a seu
Entre os anões, os zeviks e os abatwás, por exemplo, bel prazer. Esses hereges não aceitam que as coisas
existem grupos de extermínio especializados, e são eles sejam como devem ser – precisam de mais tempo do
que vêm mantendo a praga sob controle. Até agora. que lhes foi concedido, almejam ter mais poder do
que lhes foi destinado. Eles desprezam a realidade.
Os demositas são criaturas invasivas, pestes vindas
Consideram-se superiores às leis divinas. Acham-se no
das profundezas mais profundamente profundas
direito de corromper aquilo que, no começo de tudo,
do mundo e que tomam a força o corpo de seus
foi estabelecido. Querem a imortalidade, o controle
hospedeiros. Só que alguns vermes mais antigos,
absoluto sobre as próprias vidas, para que assim
aqueles que já passaram por muitas nucas, acabam
possam controlar as vidas dos outros. Recusam-se a
desenvolvendo um grau mais elevado de consciência.
aceitar a impotência perante a morte e, acima de tudo,
Esses daí percebem que o melhor jeito de garantirem o
temem a fraqueza, o esquecimento, o fim.
alimento, na verdade, não é conquistando o hospedeiro
na marra, contra a vontade do infeliz – afinal, lutar com E dessa forma se espalha pelo mundo um mal
a mente e a alma do sujeito dá trabalho e enfraquece oculto, descentralizado, difícil de combater: a ciência
o corpo. O bom mesmo é ter a permissão do bocó maligna, praticada por bruxos, cultistas e herbalistas
para permanecer ali grudado, porque assim a conexão mal-intencionados que, longe dos olhares de curiosos,
entre eles é maior. Dessa maneira, o poder dos dois realizam experimentos sórdidos e cuja mera menção
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arrepiaria até os cabelos do sovaco de um atum. Esses no mundo. Em certas comunidades, a histeria já tomou
bárbaros por vezes sequestram aldeões e viajantes conta – vizinho acusa vizinho de ser macumbeiro,
desavisados para usá-los como cobaias, matando vários crianças pequenas são expulsas de casa por terem no
deles no processo e arruinando as vidas do restante. corpo a “marca dos bruxos”, feiticeiros de outras terras
Os intulos, a raça criada artificialmente para servir aos são caçados e mortos na forca, e por aí vai. O medo
adroanzis, são um dos maiores exemplos da crueldade da praga é tão grande que muitas pessoas praticam o
desses monstros. As pessoas são raptadas e, através de mal na tentativa de espantar o mal.
poções e outros procedimentos dolorosos, convertidas
em homens-lagarto sem vontade nem voz. Um horror. É claro que não faltam charlatães querendo tirar
proveito dessa gente assustada. Farsantes safados
Mas coisas assim não são novidade em Aiyê. Na viajam de cidade em cidade vendendo amuletos de
verdade, já na Primeira Era, nos tempos de cristal proteção fajutos e supostas fórmulas mágicas que
e aço, se faziam experiências do tipo com animais e afastam os maus espíritos, daí enchem os bolsos às
pessoas. Reis perseguiam a imortalidade financiando custas dos ignorantes e dão no pé assim que alguém
o desenvolvimento de máquinas e remédios para ameaça expor o trambique. Mas a verdade é que
prolongar a vida ao máximo. Generais exigiam dos existem, sim, jeitos certos e eficazes de bloquear e
cientistas drogas que deixassem os soldados mais desfazer maldições, e eles (quase) nunca envolvem
fortes e sagazes, e os guerreiros de elite eram mutilados abandonar criancinhas na mata para morrer ou
e seus membros substituídos por partes mecânicas. espalhar caquinha de bode nos beirais das janelas.
Coisa mais antinatural não existe, pode acreditar. E, Não são poucas as ordens sagradas ao redor do mundo
para o desespero geral dos bons cidadãos do mundo, que trabalham com afinco para passar adiante o
essa mania de mexer no que está quieto não ficou conhecimento verdadeiro. Ensinam ao povo canções de
para trás. Ainda tem gente que insiste em perverter e libertação e mostram como fazer banhos de descarrego,
manipular o natural e o correto, e há quem ponha a consagrar amuletos e oferecer ebós do jeito certo.
mão no fogo dizendo que isso nunca vai mudar. Talvez Quando necessário, arrancam as línguas de bruxos e
estejam certos. realizam rituais específicos para expulsar os diabos
alojados no chiqueiro, e assim ajudam a controlar as
maldições sinistras que assolam Aiyê.
MALDITOS SEJAM
Outra forma de corrupção – e certamente uma das
mais comuns – é a maldição. Todo mundo conhece ao OUTRAS RAÇAS DE AIYÊ
menos uma história de um sujeito ou povo amaldiçoado,
vítima de uma urucubaca inimiga ou mesmo da palavra Logo adiante, nós apresentaremos seis novas ra-
de um orixá fulo da vida. A voz que cura e abençoa ças jogáveis para complementar as dez que já foram
alguns também pode rogar pragas terríveis contra trazidas pelo livro básico. Cada uma das raças pre-
outros, e algumas dessas pragas são tão traiçoeiras que sentes neste suplemento oferece habilidades únicas,
podem levar seus alvos à morte (morrida ou matada). mas também algum tipo de desafio interpretativo
Não existem regras claras para maldições – a maioria para os Jogadores que optarem por usá-las ao longo
advém do poder da palavra, o que as torna tão variadas das aventuras. Alguns desses desafios são indicados
quanto os feiticeiros responsáveis desejarem. Algumas apenas para Jogadores experientes, dispostos a enca-
maldições são herdadas de pai para filho, outras rar situações inusitadas e procurar novas maneiras
caem sobre qualquer um que infringir determinado de resolver conflitos dentro do jogo. Converse com
tabu. Existem maldições temporárias, maldições o seu grupo antes de escolher.
condicionais, maldições inquebráveis e aquelas que
afetam lugares ou objetos. São muitos os tipos. Abaixo, a lista de raças disponíveis:
Maldições podem trazer lepra, ebola e furúnculo.
Podem destruir a colheita com nuvens de gafanhotos, Agogwes Anões
fazer as crianças se afogarem no rio ou transformar o
rei num homem-leopardo que sai à noite para devorar Fossas Intulos
seus próprios súditos. Bruxos poderosos são capazes
de amaldiçoar cidades inteiras quando invocam os Iskokins Mondjolis
ajoguns, os espíritos da desgraça, levando o sofrimento
a milhares de pessoas de uma vez. Embora Aiyê
esteja apinhada de monstros e outros perigos, é das
urucubacas que o povo tem mais medo, porque elas
são porta de entrada para todos os males que existem
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AGOGWE e mesmo que toquem o terror, quase sempre saem
impunes. Quem suspeitaria de criaturinhas tão
Inabaláveis, os agogwes nunca deixam de sorrir ou encantadoras, afinal?
festejar. Não que isso seja uma coisa boa. Na verdade, Leais, destemidos e deveras cuticuti, os agogwes
esses nanicos são biologicamente incapazes de sentir fazem qualquer coisa que alegre os corações de seus
tristeza, raiva ou remorso. Não interessa se um irmão amigos. Mesmo quando traídos, perseguidos, presos
morreu, se um filho foi sequestrado ou se a aldeia e escravizados, eles jamais guardam rancor e sempre
passará fome no verão – o choro e o desespero não são acham tempo para um sorriso. E diante do fracasso
alternativas válidas. Agogwes não conhecem estresse e da injustiça, os agogwes não fazem pirraça. Não
ou sofrimento, são pura alegria. O tempo todo. Mas tem choradeira nem juras de vingança. O que passou,
não é que eles não se importem com os parentes ou passou. Bola para frente. Nem a dor nem a morte
com os vizinhos – na realidade, é bem provável que podem tirar a beleza da vida – e ela é bonita! Ah, como
eles se esforcem para ajudá-los sempre que necessário. é bonita! Vida de agogwe é sorrir, é cantar, é amar. É
Mas se tudo for por água abaixo e o caos se instaurar, dar, é receber. É cuidar, é tomar, é aniquilar. Tudo
ainda assim os agogwes festejarão. pelos colegas, tudo pela festa. Como deve ser.
Conceitos como vitória e fracasso, bem e mal, certo e Para eles, não há tempo ruim. Toda adversidade é
errado são todos irrelevantes para eles. Embora tendam passageira – e se não for, basta aprender a gostar dela. A
à gentileza e à hospitalidade, os agogwes também são alegria é um hábito, um estado, um dom. E os inimigos
capazes de cometer todo tipo de atrocidade sem sentir que quiserem atrapalhá-la, mesmo que sejam grandes e
um pingo de culpa sequer. Um agogwe fará tudo que imponentes, ainda podem ser derrubados com simples
estiver a seu alcance para garantir o bem-estar de machadadas, tipo as árvores, e transformados em
quem ele gosta, mesmo que isso implique em causar coisas mais legais e úteis, tipo fogueiras. Fogueiras aos
dor a terceiros. Decerto ele não agirá por ódio, rancor, redor das quais os companheiros e entes queridos se
angústia ou qualquer outro sentimento negativo, mas reúnem para comemorar, tocando tambor e tomando
sim para potencializar a alegria geral das pessoas que sopa de tilápia com inhame. Nham nham! A vida é boa
de fato importam – ele mesmo e os companheiros por mesmo! Quem pode negar?
quem nutre algum afeto.
É, até existe gente que solta água pelos olhos e faz
Se puderem abraçar, os agogwes abraçam com todo um monte de caretas, reclamando das esquisitices da
carinho do mundo. E se tiverem que cortar gargantas vida, mas isso é doença e tem nome: loucura. Agogwes
ou envenenar poços, eles farão isso com um sorriso no que têm amigos assim, birutas, precisam se esforçar o
rosto. E o pior: não será um sorriso sádico, de quem dobro para deixá-los contentes, e ainda devem aprender
gosta de ver os outros sofrendo – será um sorriso a ler as caretas que eles fazem, pois cada uma tem um
puro, infantil, tão doce quanto o de uma criança que significado diferente. Tem a careta do triste, a careta
ainda não conhece o mal, e que faria tudo de novo se do bravo, a careta do preocupado, a careta do tédio... e
tivesse oportunidade. Agogwes são alucinadamente todas parecem a careta do cagando. É difícil lidar com
felizes, e mesmo que as pessoas tentem explicar a eles essas coisas. Ainda assim, amigo é amigo, e agogwe
conceitos como empatia e luto, eles serão incapazes de faz de tudo para agradar quem gosta, e faz com prazer.
compreendê-los, pois em seu ori não há espaço para
esse tipo de sentimento. A visão que as outras raças e povos de Aiyê têm dos
agogwes varia muito de região para região. Em alguns
É por isso que alguns bandos de criminosos locais, eles são bênçãos para os viajantes, pois dão
sequestram agogwes e passam a cuidar deles como abrigo e comida àqueles que se perdem na mata. Em
se fossem filhos ou bichinhos de estimação. Uma vez outros, são apenas bichinhos malucos, animais falantes
conquistada a simpatia dos nanicos, eles se tornam e que não entendem as desgraças da vida. Noutros
ferramentas fofinhas e irrefreáveis que agem sem locais, ainda, as pessoas os temem e evitam, pois já
remorso em prol da alegria dos companheiros pilantras. conhecem bem suas cabecinhas voláteis e perigosas.
Como são pequetuchos, podem caber facilmente em Lá são populares, por exemplo, as lendas de Fuhara
bolsas, caixas e afins, e têm muita facilidade na hora e Vicheko, os assassinos floridos, e Ntakili, a agogwe
de se esconder pelos cantos, nas sombras e por entre
os arbustos. São perfeitos para roubos e assassinatos,
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que sequestrou o filho da rainha Nanabete, que viria a
se tornar o mundana de Ulom, o orixá da peste. Simpatia pura: Todo agogwe conhece uma simpa-
tia qualquer. Ao adquirir as habilidades especiais
Em questão de aparência, agogwes são baixinhos e Conjuração ou Aspirante a feiticeiro, a simpatia
peludos. A cabeça é maior do que devia e os membros escolhida deixa de consumir axé.
são curtos. Têm orelhas e olhos grandes, e na boca um
sorriso constante. Eles comem insetos, peixes e frutas.
A maioria não planta e nem caça. Vivem quase sempre
em pequenas aldeias em meio a mata fechada. Nas
grandes cidades, eles chegam como escravos exóticos,
ANÕES
mascotes de grupos criminosos ou companheiros de Depois que Obaltá perdeu o direito de criar o mundo,
crianças da nobreza. Por não disporem de força bruta, ele implorou aos pés do pai por uma nova chance.
agogwes se utilizam de mandingas para realizarem Olodum, que é misericordioso como nenhum outro, deu
todo tipo de tarefa, e não há um agogwe sequer que a ele o privilégio de criar a raça humana, que deveria
não saiba ao menos uma ou duas simpatias úteis. São reinar sobre os seres mortais, e deu também todas as
umas figuras, esses baixinhos. instruções necessárias para fazê-lo. Mas Oduã, ouvindo
toda a conversa, saiu logo correndo, já tramando contra
seu irmão. Ela pediu argila emprestada de sua irmã
Agogwes Ninã e com a argila começou a fazer o primeiro homem.
Pouco tempo depois, ele estava pronto. Oduã deu-lhe
o nome de Odudune, que significa “o grandioso”, e
Tamanho: Diminuto
então foi até o pai para mostrar a obra que havia feito.
Atributos: Quando Obaltá chegou, todo contente com sua
+1 em Agilidade nova criação, viu que a irmã estava lá e mais uma vez
+1 em Ginga roubara seu direito de primogênito. Com o coração
-1 em Força embotado pela decepção e consumido pela mágoa,
Obaltá arremessou contra o chão a versão de humano
que havia feito. O agora não-homem entrou tão fundo
na terra que se fundiu à rocha matriz do mundo. As
lágrimas que escorreram dos olhos de Obaltá caíram
Tamanho diminuto: Recebem +2 em Esquiva, -2 em
sobre ele, fazendo-o crescer em tamanho e rancor. O
Luta, vantagem em testes de Furtividade e desvan-
gigante passou a viver nas profundezas do solo e deu a
tagem em testes de Fortitude. Criaturas de tamanho
si mesmo o nome de Kolicolu (cujo significado, segundo
diminuto não podem portar armas que não sejam
a lenda, é “pedra quebrada”), e ele foi o ancestral de
leves, e mesmo armas leves requerem as duas mãos.
todos os madebeles, que são os anões que vivem sob
Apenas armas feitas sob medida podem ser portadas
a terra.
com uma mão. Essas custam 50% menos, porém
sofrem uma penalidade de -3 no dano. Kopte, Kurã e Kalu foram os três primeiros madebeles
a brotarem das crateras na pele de Kolicolu. Cada
Eterna alegria: Agogwes são incapazes de sentir um fundou uma cidade e passou a reinar sobre ela.
tristeza, raiva e outras emoções negativas. Estão Kolicolu, porém, ainda era o soberano – ele mandava
sempre felizes, não importa o que aconteça. Eles são e desmandava, sempre cruel e invejoso, mas temido
imunes à condição abalado e têm +1 em Vontade. por todos, já que podia esmagar dez casas de uma vez
Mas, por não compreenderem os sentimentos das com seu pé enorme. Mas quando os orixás inventaram
pessoas em sua totalidade, sofrem desvantagem a morte, os anões, vendo a oportunidade, logo tramaram
nos testes de Intuição. contra Kolicolu. Eles forjaram três armas de poder
tão avassalador que até as montanhas os temeram,
Deveras cuticuti: É preciso ter coração de pedra e quando Kolicolu dormiu, foi surpreendido por uma
para não deixar-se levar pelos alto-astral e fofura dos marretada na cabeça, uma lançada no bucho e uma
agogwes, e ainda mais para levantar a mão contra espadada nos bagos.
eles. Qualquer pessoa (criatura da categoria gente
no Bestiário) que pretenda agredir fisicamente um Do crânio esmagado do gigante saíram os kalanoros,
agogwe precisa antes passar por um teste de Vontade que roubam, conspiram e querem sempre tudo para
contrário a um teste de Persuasão do alvo. Em caso si. Do ventre perfurado saíram os wokulos, que têm
de falha, o agressor não age no turno. Esta habilidade muita fome, mas o ori de uma pedra. Os testículos
não se aplica se o agogwe atacar primeiro. decepados ficariam com os anões e dariam origem a
novos indivíduos. Mas as bolas de Kolicolu eram apenas
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duas, então os três reis brigaram para ver quem ficaria nessa condição claustrofóbica, a inevitável chegada da
com elas. A guerra durou quinhentos anos, e muitos morte. Um triste destino para um povo tão grandioso.
madebeles morreram nesse período, sem que nenhum
nascesse. No fim, o rei Kopte derrotou e matou os É claro que uma amaldição tão severa abalou as
outros dois irmãos e ficou com os bagos para si. Ele relações dos madebeles com os orixás, tanto que muitos
mandou que um testículo fosse levado para o norte se renderam à Fratura depois do início da Primeira
e o outro para o sul, e lá fossem enterrados. E assim Hecatombe. Até hoje, o culto aos antepassados é bem
surgiram os berçários anões, que dão à luz todos os mais popular entre eles do que o culto aos deuses
membros da espécie. (para os anões, os dois não andam juntos). Agora, na
terceira era, essa é uma raça reclusa, pouco vista, pouco
As obras dos anões são muitas, e é visível o conhecida, mas que ainda guarda muito conhecimento
impacto delas em Aiyê. Dizem, por exemplo, que eles em suas câmaras escuras. Segredos das Hecatombes;
descobriram como dar utilidade aos kiinis bem antes antigos artefatos da Primeira Era, do tempo dos kiinis,
da humanidade, e que só guardaram melhor o segredo. além de muito ouro e outras riquezas. As cidades anãs
Entretanto, não convém mencionar todos os seus feitos estão entre as mais ricas de Aiyê, embora muita gente
aqui, agora. Basta falar somente o indispensável – não saiba desse fato.
que, no caso, tem a ver com a maldição que recaiu
sobre toda a raça graças ao orgulho e à prepotência Entre eles não existe o conceito de nobreza, pois
do rei Kopte. Ainda no começo da Primeira Era (que todos nascem nos mesmos berçários, e o mesmo sangue
foi a mais longa até o presente momento), os anões corre em suas veias. A importância de um madebele é
dominavam as montanhas e todas as terras debaixo medida pela quantidade de bens não perecíveis que ele
do chão. Não gostavam dos povos da superfície, em acumula ao longo da vida. Gemas, metais preciosos,
especial os humanos, que no princípio das coisas terras, palácios, estátuas, etc. Como os anões não têm
roubaram aquele que era seu lugar de direito. filhos, os amigos próximos se tornam os herdeiros.
Quando os proprietários de um certo bem morrem ou
Como os anões têm vidas longas, o rei Kopte reinou viram pedra, os nomes dos novos donos são entalhados
por muito tempo, e sob o comando dele os madebeles nesse bem, logo abaixo dos antigos. Objetos e locais
prosperaram. Kopte amava seu povo. Governava-o com que têm muitos nomes de proprietários entalhados são
retidão e justiça; mantinha firmes a tradição dos griôs vistos como mais valiosos, pois resistiram a muitas
e a fé nos orixás. Kopte ordenou a criação do primeiro gerações. Há quem tente falsificar essas coisas, mas a
alfabeto e, por consequência, dos primeiros textos maioria desses pilantras acabam indo para o calabouço,
escritos que vieram à existência, evento que mudou para já que os registros de herança são mantidos com rigor,
sempre a história de Aiyê). Para os anões, o mundo era e existem entre os anões muitos especialistas em
bom nos tempos de Kopte, e em seus salões de ferro e autenticação de artefatos.
mármore todos cantavam sobre as glórias e inventos
do povo madebele. Só que o rei estava envelhecendo. Ao contrário dos outros povos que praticam a escrita,
E como a morte ainda era novidade naquela época, os madebeles não guardam seus textos em pergaminhos,
ele a temia muito. Então, contrariando os desígnios papiros ou argila. Os anões gostam do que é durável,
dos deuses, Kopte passou a buscar uma maneira de eterno, e nada do que estraga muito rápido ou pode
adquirir a imortalidade. ser destruído facilmente presta de verdade. Portanto,
eles fazem seus registros em paredes de pedra, ao
Os trinta últimos anos do reinado de Kopte foram longo de túneis compridos que vão até as profundezas
muito diferentes dos mil, seiscentos e cinquenta da terra, de maneira que, para esse povo, “biblioteca”
anteriores. As coisas que os madebeles fizeram para significa uma rede imensa de canais subterrâneos
manterem vivo seu grande líder foram terríveis. Essa foi cobertos de inscrições. Esses textos entalhados na
a primeira de todas as tentativas de burlar a morte, algo rocha discorrem sobre os mais variados assuntos e
alcançado muito depois pelos nkuyunanas e as múmias, têm grande importância para os cidadãos em geral.
e hoje falar sobre ela é tabu. Mas não importa quanto Os anões que trabalham nas obras, abrindo caminho
demore, é impossível escapar da punição dos orixás para pedra adentro e entalhando nas paredes as palavras
sempre. Sabendo da conspiração de Kopte e de todo dos sábios, são muito benquistos na sociedade.
o povo anão, Ninã os amaldiçoou, condenando a raça
inteira a um destino terrível. Em vez de envelhecerem Quanto à forma física, os anões continuam robustos
normalmente e morrerem no fim, os madebeles seriam e baixinhos, com os pés virados para trás. Enquanto
gradativamente transformados em pedra. Com o passar jovens, a pele é bem escura, como a de alguns povos
tempo, seus corpos se enrigeceriam, e com cerca de humanos; mas com o passar do tempo vai ficando
seiscentos anos (um terço da expectativa de vida), eles cinza e áspera, criando verrugas de pedra e muitas
já estariam imóveis como estátuas. Ainda conscientes rachaduras. Os músculos vão ficando rígidos, os órgãos
de tudo ao redor, os anões teriam que esperar assim, mais lentos, até que enfim seus corpos são convertidos
por completo em rocha maciça. A consciência, no
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entanto, permanece. É por isso que quase todos os
anões tiram as próprias vidas antes de alcançarem Ouro meu: Ao acumular riquezas, um anão e seus
o estado de petrificação. Jogam-se de penhascos, companheiros de equipe recebem um bônus de
amarram-se a pedregulhos e se atiram no lago para experiência (XP). Eles ganham +1 XP nas marcas
morrerem afogados, ou recorrem a qualquer outro de 300, 600, 900, 1.300, 1.700, 2.100, 2.600, 3.100,
método de suicídio que os livre do destino cruel que 3.600, 4.200, 4.800 e 6.000 ganas (?) acumuladas
os aguarda. Só os criminosos – assassinos, traidores, em bens. Para esse cálculo só são considerados
vândalos de livros-túneis e afins – são mantidos vivos os bens duráveis – ganas, joias, imóveis, escravos,
como forma de tortura. Em pouco tempo, os anões etc – e que sejam propriedade do anão. Dinheiro
petrificados enlouquecem. Mil e duzentos anos de no bolso dos outros não conta, assim como itens
puro tédio seriam demais para qualquer um suportar. consumíveis ou que se desgastam com facilidade.
Existem apenas dois berçários de anões no mundo, Letrados: O conhecimento é muito valorizado nas
que são áreas em que eles brotam espontaneamente sociedades anãs. Todo indivíduo aprende a ler e
do chão, já como jovens adultos. Um dos berçários também a falar fluentemente um idioma adicional.
fica no extremo norte de Aiyê, enquanto outro fica no
extremo sul. Nas regiões ao redor desses locais, os
madebeles ergueram dezenas de cidades fortificadas
que, embora briguem umas com as outras de vez em
quando, têm como objetivo comum a proteção dos
FOSSAS
berçários. Mas muitos grupos de anões se espalharam Nas selvas do litoral da ilha de Mádaga se esconde
pelo mundo e formaram seus próprios reinos, como os um predador traiçoeiro – a fossa, assassina de lêmures.
kalonoros, que vivem em Mádaga; os asamanukpai, da Suas quatro patas contam com garras retráteis e
Costa da Safira; os mumbonelekwapi, das montanhas afiadas que a tornam excelente escaladora. O focinho
da Terra de Ni; e os antigos maithoachianas, que foram e orelhas de aparência arredondada concedem a ela
dizimados pelas armaduras vivas do inventor Alihasan. faro e audição apurados. Os olhos também são bastante
Mas como madebele não faz filho, esses anões de reinos sensíveis e podem enxergar mesmo sob condições
distantes precisam ir até os berçários de tempos em mínimas de iluminação. A mandíbula potente e os
tempos para buscar novos cidadãos, oferecendo a eles dentes pontudos permitem rasgar a carne de suas
terras e riquezas. presas com facilidade. Sobre os galhos das árvores
gigantes, a fossa é certamente uma caçadora imbatível
– não só por seu corpo ser perfeitamente adaptado às
Anões florestas madaganas, mas por ela possuir também um
intelecto superior ao de muitas raças ditas sencientes.
Tamanho: Médio A fossa, embora a aparência animalesca possa
enganar, não é um simples bicho – é capaz de
Atributos: raciocinar e falar, e quase sempre faz isso muito bem.
+1 em Vigor A espécie tem seu próprio idioma, mas os indivíduos
+1 em Intelecto adultos costumam conhecer também o arbóreo e
-1 em Agilidade o savânico. A fossa é detentora de um gênio difícil.
Em geral, sua inteligência não vem acompanhada de
humildade e senso de empatia, o que a torna propensa
a comportamentos sádicos e narcisistas – pode matar
Pedra velha: Anões se tornam pedra conforme por diversão ou conspirar contra seus semelhantes, por
envelhecem. Os anões adultos recebem +3 RD e -1 exemplo. Ela nutre, porém, um desprezo especial pelos
AGI. Os anões de meia-idade recebem +5 RD e -2 lêmures, a quem considera seus maiores inimigos.
AGI e não sofrem a penalidade em VIG por conta da Para explicar tanto ódio, as fossas contam uma
idade, mas também se tornam incapazes de nadar. lenda que a cada geração é passada de mãe para
Anões idosos ficam totalmente petrificados. filhote. Segundo o que diz a história, as fossas
chegaram a Mádaga como refugiadas da Primeira
Hecatombe, pois mesmo após o fim da guerra contra
os fraturianos o mundo permanecia mergulhado em
caos, e no continente os povos padeciam com a fome
e a corrupção. Os lêmures, que na época eram uma só
tribo governada por Gasylama Vasalaka, supostamente
o primeiro rei a declarar Mádaga como sua, receberam
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as fossas de braços abertos, pois elas traziam consigo uma cidade de saqueadores que fica na costa da grande
seus barcos mágicos, carros de metal e demais riquezas ilha, mais especificamente em um local conhecido
que possuíam. como Cauda da Besta, que segundo as lendas seria
próxima do fiofó de Usilosimapundu. Em Uhuru (ou
A lenda conta que, naquela época, as fossas andavam Libértia, no idioma comum) todas as pessoas são livres
sobre duas patas, tinham polegares opositores e para fazerem o que quiserem, sem tabus. Como forma
dominavam a tecnologia dos kiinis, que são os cristais de de sustento, os piratas se unem para roubar navios e
poder. Elas eram criaturas bondosas e que, em gratidão pilhar aldeias litorâneas, e eles têm sido um problema
pela hospitalidade recebida, deram aos lêmures muitos dos grandes para os vizinhos do continente.
presentes e tentaram ensiná-los a ciência e a lei dos
orixás. Mas Gasylama Vasalaka não queria saber de Geralmente, é através das expedições criminosas que
presentes ou conhecimento, ele se importava apenas as fossas chegam a outras partes do mundo. Longe de
com domínio e com ouro, então logo mandou que seus Mádaga, elas são vistas como meros monstros, e não
servos invadissem as casas das fossas enquanto elas gente, então é ainda mais difícil largarem a bandidagem.
dormiam, as prendessem com grilhões e sabotassem Saqueiam, sequestram e matam por dinheiro, sem
suas máquinas mágicas – e assim foi feito, pois as remorso. Como não têm polegares opositores, as fossas
fossas não eram um povo guerreiro e não tinham como não podem manusear certos tipos de objetos e têm
se defender. Elas foram escravizadas e obrigadas a muita dificuldade ao executar ações complexas com
permanecer curvadas perante os lêmures o tempo as patas. Elas não forjam, não tecem e não tocam
todo, e ficaram assim por um período tão longo que kabosy, por exemplo. A maioria anda pelada e, quando
acabaram virando quadrúpedes. Também não podiam muito, usa na cauda os colares ou panos que roubou
abrir a boca para falar, então suas línguas esqueceram de alguém. Mas quinquilharias que os povos bípedes
como pronunciar as palavras, tornando-se mudas. usam não têm função para as fossas. Para essa raça,
mais importa ter carne para comer e escravos para
Muitos séculos se passaram até que Baramasikoro, comandar do que ter casas grandes e túnicas bonitas.
um herói das fossas que aprendeu a conjurar feitiços
através da cauda, conseguiu livrar seu povo do jugo Tem fossa que, para entrar nas cidades sem virar
da escravidão imposta pelos lêmures. Desde então, alvo de flechas, se finge de bicho de estimação dos
as fossas vivem na floresta e tentam sobreviver aos companheiros de crime, e assim ganha passe livre para
perigos de Mádaga, mas sem nunca deixar de tramar perambular por aí, ou quase isso. Embora humilhante,
contra a raça maldita de primatas traidores. Como é essa estratégia pode ser útil, especialmente na hora
de se esperar, nenhum lêmure aceita essa história de adquirir equipamentos, conseguir informações ou
como verdadeira, e a maioria sequer ouviu falar de firmar acordos como mercenários. Como as fossas não
um ancestral chamado Gasylama Vasalaka. E, para precisam falar para conjurar, as palavras não lhes fazem
ser sincero, muitas fossas também não levam esse falta. A propósito, entre as fossas não existe a tradição
mito a sério – para elas, é só mais uma justificativa dos griôs, e elas não ligam para as histórias do passado
engraçada para matar lêmures fedorentos sem peso ou as tradições que os bípedes inventam. Cada mãe
na consciência. Outras, no entanto, de fato alimentam cuida e instrui sozinha os seus filhotes, ensinando tudo
um espírito revanchista contra os malfeitores lêmures e o que eles precisam saber sobre o mundo e a caça aos
planejam um dia eliminá-los por completo de Mádaga. lêmures. Por isso as fêmeas mais velhas têm autoridade
para convocar reuniões familiares e decidir o que será
Seja como for, hoje as fossas são capazes de falar feito a seguir, e os machos as respeitam muito.
pela boca, mas também podem lançar mandingas
apenas com os movimentos de seu rabo comprido,
sem dizer nenhuma palavra. Essa é uma habilidade
que exige muita disciplina, até mais que a conjuração Fossas
no idioma aquamarino, tanto que a maioria só aprende
alguns truques básicos ao longo da vida. Mesmo Tamanho: Médio
assim, elas têm a vantagem de poderem conjurar em
silêncio, sem o risco de arruinarem as emboscadas. Atributos:
Algumas fossas feiticeiras particularmente poderosas +1 em Intelecto
conseguem convocar tempestades, lançar bolas de +1 em Ginga
fogo e causar um grande estrago às aldeias lêmures, -1 em Ori
fazendo fama e escravos.
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têm vontade, não podem contestar, apenas cumprem o
Caça-bocós: As fossas podem enxergar no escuro que os mestres cobras mandam. Pobres criaturas sem
e seus ataques desarmados causam +3 de dano. O voz e sem liberdade, feitas para lutar e sofrer. Por meio
bônus aumenta para +5 se o alvo estiver despreve- de fórmulas especiais (de potência reduzida, porém
nido ou for um lêmure. Também se aplica a ataques menor risco de fatalidade), os adroanzis transformam
duplos. O bônus aumenta em 2 a cada nível evoluído. os reféns capturados em soldados reptilianos e os
torturam até deixarem de pensar por si mesmos.
Quadrúpedes: Fossas caminham sobre quatro patas
e não possuem polegares opositores. Por conta disso, A cada aplicação do elixir, o corpo se modifica –
são incapazes de realizar tarefas que exijam mãos surgem escamas e membranas; o esqueleto se deforma;
– portar armas comuns, forjar equipamentos, tocar crescem as garras e as presas e as cordas vocais
instrumentos musicais, manusear itens pequenos tornam-se incapazes de proferir mais do que alguns
ou delicados, etc. Em contrapartida, as fossas têm grunhidos chorosos e incompreensíveis. Tal qual os
facilidade para escalar e se locomover pelo topo das adroanzis, os intulos passam por uma série de mutações
árvores, algo que para elas não exige testes, exceto dolorosas e por vezes fatais. Mas, ao contrário dos
em condições anormais. Armas de uma mão (leves serpérios verdadeiros, os intulos não são gratificados
ou não) podem ser adaptadas para as caudas das com inteligência aprimorada ou força sobrehumana.
fossas, mas têm um custo adicional de 50%. Na verdade, eles perdem a capacidade de falar (pois,
sem palavra, magias e conspirações tornam-se mais
Cauda mágica: As fossas podem se comunicar umas difíceis de praticar, e isso é benéfico para os opressores)
com as outras e conjurar por meio de movimentos e ficam com alguns dos sentidos prejudicados, em
com a cauda. Elas recebem +1 PM no nível Moleque especial a audição, que não é das melhores, e a visão,
e +1 PM a cada nível evoluído. Além disso, toda pois só enxergam em preto e branco. E depois de boas e
fossa conhece uma simpatia a qual pode conjurar longas sessões de tortura, nas quais se utiliza, além da
sem consumir axé. brutalidade convencional, certos unguentos e incensos
especiais que deixam a mente mais influenciável, o ori
dos intulos também acaba sendo suprimido.
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conhecidos os homens-lagartos que reconquistaram Muita gente em Aiyê não sabe da existência dos
seus próprios oris, Ukuluru formou uma comunidade intulos, já que eles costumam formar assentamentos
de intulos livres, batizada pelos povos vizinhos de em lugares isolados, longe das vistas dos serpérios e
Szissá. Ao longo dos anos, a comunidade cresceu de outras ameaças à sua liberdade. Mas as pessoas
tremendamente. Muitos despertos uniram-se a ela e que conhecem o povo lagarto costumam referir-se
muitos bebês intulinhos nasceram. (Naquela época, a ele como um mal oculto e oportunista, um perigo
os adroanzis ainda fabricavam intulos capazes de de proporções que a maioria nem imagina, e que
reproduzir, porém isso mudou após da revolução). uma hora pode sair do controle. Para essa gente, os
intulos são arautos da morte que vêm, aniquilam tudo
A história conta que, já com um grande exército e todos em nome de uma deusa estranha, banham-se
formado, Ukuluru, que era o líder do clã, ouviu o em sangue e logo vão embora. Monstros, flagelos que
chamado de Irona, a orixá do trauma, e foi um dos se abatem sobre aqueles que merecem e sobre aqueles
primeiros a instaurarem um culto formal a ela. Seguindo que não merecem também. Demônios-lagartos que se
a vontade de sua senhora, que lhe dava ordens através reproduzem com rapidez alarmante e formam tropas
de sonhos e epifanias, Ukuluru iniciou uma guerra de guerreiros silenciosos e ávidos pela matança. Uma
de grandes proporções contra os principais reinos de praga. E como os próprios intulos não abrem a boca
Swalê e, depois de vencer a todos e crescer ainda mais para contra-argumentar, essa é a imagem que fica.
em poder, investiu contra os serpérios desde Swalê
até a metade sul da Mosotúnya, fundando enfim um
assentamento permanente no que hoje é território de
Zimbamar. Depois da morte de Ukuluru, os szissás se Intulos
fragmentaram, e os intulos acabaram se espalhando
por ai, formando comunidades menores, mas que ainda Tamanho: Médio
carregam consigo a vontade de Irona e o ódio pelos
adroanzis. Atributos:
+1 em Agilidade
Hoje os povos intulos livres ainda são pequenos em
número e reconhecimento. Por não praticarem a palavra +1 em Vigor
falada, dificilmente se relacionam com outras raças. -1 em Ori
Preferem viver reclusos em suas aldeias, deixando-
as apenas para caçar e guerrear. Eles também têm
medo de serem outra vez manipulados e oprimidos
pelos inimigos, e por isso reagem com hostilidade a Mudos: Intulos são incapazes de falar e, portanto,
quaisquer visitantes que não compartilhem de sua conjurar mandingas de maneira tradicional.
maldição reptiliana. Dentro das aldeias, os intulos
se comunicam por linguagem de sinais, usando Reptilianos: Intulos podem enxergar no escuro
principalmente movimentos feitos com a língua, e e comer comida crua ou estragada sem prejuízos
registram suas histórias com desenhos nas paredes, à saúde. Eles também se regeneram mais rápido,
nas rochas e nas árvores, quase sempre pintados com recuperando o dobro de PV a cada descanso longo.
sangue.
Sono precavido: Intulos podem dormir com um dos
Quase todo intulo livre mantém firme a fé em Irona, e
olhos abertos (não ficam desprevenidos durante o
por isso as incursões sangrentas contra povos vizinhos
sono) e só precisam dormir por 4 horas para rece-
são frequentes – é preciso fazer o sangue jorrar, ou
berem os benefícios de um descanso longo.
a orixá do massacre ficará descontente (e é claro
que nenhum intulo em sã consciência quer se tornar
alvo de sua vingança). Os intulos matam em nome da
religião, pois acreditam que Irona, que é a dona de
seus oris, pode transformá-los novamente em escravos ISKOKINS
sem vontade própria caso eles a decepcionem. Dessa
Tikhide era o mundana de Eksun e, como tal, estava
forma, a chacina se torna um ato sagrado, e as armas
sempre metido em alguma farra ou confusão. Bebia,
adquirem valor ritualístico. Mas, ao contrário de outros
gargalhava, pregava peças nos bocós e ajudava quem
povos guerreiros, os intulos não praticam a escravidão
fazia as devidas oferendas. Era um homem feliz, de ori
e nem fazem prisioneiros – eles matam, e para eles
forte e pés velozes como o vento. Isso até que Alawei,
matar é por si só o sentido da guerra. Quando muito,
o mais velho e ranzinza dos grootslangs, arrancou-
os intulos levam para casa alguns coitados que mais
lhe uma das pernas numa bocada só, engolindo-a em
tarde servirão de sacrifício ou comida, e só.
seguida. Agora perneta, Tikhide não via mais sentido
na vida, pois não podia correr tão rápido e nem colocar
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o pé na frente para as senhorinhas tropeçarem. As te parto a cabeça! Te corto o bilau! Te chuto até...”
pegadinhas perderam a graça, a bebedeira virou vício, – mas o malandro, já com o plano todo em mente, a
e nem a presença do espírito de Eksun podia alegrá-lo. interrompeu: “Não passo, e duvido que consiga tirá-la
de mim. Se quiser mesmo a poção, vai ter que trocar.
“Não tenho teto nem mulher e nem filhos, e agora Quero uma mecha do seu cabelo, sem perguntas”. Uyá
até minha perna favorita virou petisco de monstro. fez cara feia, mas concordou. Ele entregou a cabaça,
Obá Eksun deveria é procurar um corpo melhor para ela entregou o cabelo. E aí Eksun voltou todo pimpão
encarnar, porque para mundana eu não presto mais, para casa. “Ninguém engana o Deus Maroto, o mais
e nem pra coisa nenhuma”, dizia Tikhide. Mas Eksun esperto e mais maneiro, e não recebe coisa alguma
tinha muito afeto pelo sujeito, então decidiu intervir. sem que dê algo primeiro”, ele cantava.
Mandou os três melhores carpinteiros do mundo
construírem uma casa de ébano para Tikhide, e ela Eksun passou o dia seguinte espiando Oduã, e
ficou tão linda que até os reis de Akuta e Omuá tiveram descobriu como se faz um corpo. Passou o resto do
inveja. Eksun também fez com que os filhos que Tikhide mês trabalhando para Obaltá, e aí aprendeu a moldar
tinha, mas não sabia, fossem todos reunidos num lugar cabeças. Depois ele roubou de Yami os segredos do
só para conhecer o pai, e assim ele ganhou muitos instinto e implorou que Ninã emprestasse um pouco
descendentes. Depois disso, Eksun deu a Tikhide um de barro. Com tudo em mãos, ele chegou em casa e
gorro mágico que permitia que ele fosse de um lugar jogou os ingredientes num caldeirão. Pôs lá dentro
a outro num piscar de olhos, sumindo e reaparecendo algumas roupas bonitas, ouro e tamarindo. Pôs também
aonde queria, bastava dar onze voltas e seis pulinhos, leite de vaca, tinta para a pele e um broto dançante.
e isso era bem melhor que correr. Colocou, ainda, outras coisas que ninguém no mundo
sabe e nem quer saber. Jogou lá dentro os cabelos de
Só faltava dar a Tikhide uma esposa. Mas como o Uyá e, por último, acrescentou um restinho da poção
coitado era feio que doía, Eksun tinha que arrumar que ele tinha guardado debaixo da língua. Misturou
um jeito diferenciado para atrair a mulher perfeita. tudo e, com a massa que se formou, fabricou a mulher
“Uma poção do amor!”, ele logo concluiu. Mas teria perfeita, Ture, e ela foi a primeira iskokin.
que roubar uma de Saim, pois ele mesmo não sabia
fazer. Então Eksun entrou na mata e foi até a cabana de Ture era tão bela quanto um espírito desencarnado.
Saim, onde o orixá das plantas e das misturas passava Tinha cabelos brancos como a neve, olhos penetrantes
o dia fazendo suas experiências. O malandro esperou como os de gato, pele tão escura quanto a noite e uma voz
o dono da casa sair e malandramente foi entrando. O mais doce que o mel. Era alta, muito alta, e esperta como
lugar era cheio de cabaças, de frascos, de cumbucas e nenhuma outra. Os chifres na cabeça representavam
de ervas penduradas nas paredes, e tinha até um broto seu poder, e as marcas no rosto mostravam a ligação
dançante plantado num vasinho. Eksun não conhecia com o divino. Era perfeita, de fato! Talvez perfeita
nada daquilo. Também não sabia que poção era qual, demais. Ela casou com Tikhide, que não poderia ter
e aí foi misturando um monte delas. Quando enfim ficado mais contente. Agora tinha casa, filhos, um gorro
se deu por satisfeito, foi embora correndo, na maior mágico e uma esposa maravilhosa. Mas não demorou
gargalhada. para que Ture percebesse o quão boa ela própria era.
A partir daí, concluiu que não queria mais ficar presa
Mas antes de usar a poção, Eksun tinha que achar a a um mortal qualquer, cheio de defeitos.
tal mulher perfeita, senão aquilo tudo seria inútil. Então
ele decidiu enterrar a cabaça debaixo de uma árvore, Mesmo sendo receptáculo de um deus, Tikhide
no pé do Morro Azul, onde ninguém encontraria, até ainda era um humano feio e perneta. Ele vivia falando
que fosse a hora certa de usá-la. Só que, chegando abobrinhas, bebendo demais e pregando peças nas
lá, o Senhor dos Caminhos teve um pressentimento pessoas. Além disso, ficava o dia inteiro sentado na
muito forte. “Tem caroço nesse angu. Algum espertinho porta da casa, olhando o povo passar, e cobrava de
está me seguindo”, pensou, e aí se escondeu e ficou todos um pedágio. Para terminar, seus beijos eram
esperando. Foi Uyá quem apareceu, e ela já foi direto sempre ardidos de pimenta, e ele não sabia cozinhar e
para debaixo da árvore escavar, como se soubesse nem trançar cabelo. Ture estava farta! Então ela decidiu
que a poção estaria ali. Eksun, muito danado, ficou que merecia coisa melhor. Iria se casar com alguém
espiando. Uyá era mesmo muito bonita, muito esperta, como ela, que fosse perfeito e cheiroso.
forte e, pelo que diziam, cozinhava bem. Era de alguém
assim que Tikhide precisava. Daí Ture passou a fazer muitas perguntas a Tikhide,
querendo saber os detalhes de sua própria criação.
“Já sei!”, Eksun pensou. Saindo de detrás do arbusto, No começo, o marido dizia que era segredo, mas logo
foi balançando a cabaça e dizendo, todo bobo: “Queria abriu o bico. Ture era um bicho manhoso, cheio de
isso aqui, Ventinho?”. Uyá, que já conhecia Eksun charme. Se queria algo, dava um jeito de conseguir – e
e sabia de seu jeito sacana, chegou na ameaça: “Ei, o mesmo pode ser dito pra todo iskokin que veio depois.
passe isso para cá! Preciso da poção. Se não passar, Mas logo que soube da fórmula, Ture saiu correndo
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para fazer uma outra versão de si mesma. Misturou e
modelou tudo direitinho, só mudando uma coisa – no
lugar da pomba, colocou um pinto. E assim nasceu o
primeiro iskokin homem, Zande, que era idêntico à Espírito tenaz: Os iskokis podem subtrair tem-
sua criadora, porém com algo mais entre as pernas. porariamente 1 ponto do atributo Ori em troca de
uma vantagem em um teste qualquer. O saldo de
Sem nem pensar duas vezes, os dois fugiram juntos Ori volta ao normal após um descanso longo. Não
e se amaram intensamente. Só que, tempos depois, o é possível ativar esta habilidade quando o Ori for
casal descobriu que não podia ter filhos. (Alguns dizem zero ou menor.
que foi maldição que os orixás tacaram, outros falam
que eles dois eram iguais demais, mais até do que Magnetismo pessoal: Iskokis carregam uma aura
irmão e irmã, e por isso a semente não germinava). Mas mágica de luxúria e fascínio, o que concede +1 em
como um acusava o outro de ser o estéril da relação, Sedução e Persuasão. Além disso, eles são consi-
eles acabaram se separando. Ture e Zande se deitaram derados potencialmente atraentes para todo tipo
com outras pessoas, mesmo sem amor, e com essas de gente, não importa a raça ou sexo, e até mesmo
tiveram muitos filhos. A prole de Ture tinha borboleta, para espíritos.
a prole de Zande tinha minhoca. E assim surgiram os
dois tipos de iskokins: as dajis (mulheres) e os gonas Herança dos amantes: Por conta do castigo de Ture
(homens). e Zande, os ancestrais da raça, as dajis (iskokins fê-
Só que os deuses, sabendo que Ture tinha roubado o meas) e os gonas (iskokins machos) têm uma eterna
poder de criar vida, arrastaram tanto ela quanto Zande rixa. Quando uma daji e um gona estão na presença
para o Orun e os prenderam no topo de uma torre. A um do outro, ambos recebem desvantagem em to-
torre é tão alta que fica impossível descer, então eles dos os testes. Além disso, tanto dajis quanto gonas
dois permanecem lá em cima até hoje. Só que, a partir possuem medo de altura. Eles têm desvantagem na
daí, todos os iskokins passaram a ter um medo danado perícia Escalada e ficam abalados sempre que se
de altura, e as dajis e os gonas começaram a se odiar encontram em locais elevados (como em cima de
tremendamente, culpando um ao outro pela prisão dos árvores ou na beira de precipícios).
ancestrais. Mesmo que sejam muito parecidos, feitos
para se amarem, os iskokins de sexos distintos nunca
se relacionam entre si, é tabu.
56
Chegada certa hora da madrugada, e sem ter ainda noite pegava um pouco mais. Passou a voltar duas,
pescado um bom peixe, Paebi se rendeu ao cansaço três vezes por noite, até que numa certa madrugada
e caiu no sono. Mas o cochilo foi interrompido com conseguiu levar a montanha inteira para casa.
um susto: alguma coisa grande havia pulado na água.
O pescador limpou a baba do queixo e começou a Com tamanha abundância, Paebi resolveu fazer
procurar com os olhos o motivo do barulho, mas estava uma festa para conquistar a afeição dos moradores
muito escuro para ter certeza. Era um peixe? Um da aldeia. Ele preparou um banquete, convidou um
hipopótamo? O sujeito não sabia se deveria comemorar bocado de gente e comemorou com peixe, bebida e
ou entrar em pânico. Então Paebi viu algo sair da água. música durante três dias inteiros. O dia seguinte, no
Ficou estático, sem saber se era um monstro ou uma entanto, foi de lamentação e desespero. “Sumiu o nosso
alucinação. Tratava-se de uma criatura coberta de bebê!”, anunciou a esposa de Paebi. Depois de muito
penas, mas que andava como homem. Tinha sobre os procurar, sem sucesso, acusaram os convidados da
ombros não uma, mas duas cabeças de pássaro, e nas festa. “Sequestraram nosso bebê! Por inveja, levaram
mãos carregava uma dúzia de peixes. nosso caçula!”, apontavam e esbravejavam, ofendendo
a todos, e por isso o povo da aldeia passou a detestá-los
A criatura pôs os peixes na margem do lago e se ainda mais. Ninguém achou o bebê.
virou para mergulhar novamente. Nesse instante, Paebi
não conseguiu evitar: soltou um gritinho de pavor, e o De madrugada, enquanto a família dormia, Paebi
homem-cegonha de duas cabeças também não pôde chorava num luto silencioso, pois sentia que, de alguma
deixar de ouvir. O bicho pulou na água e sumiu por maneira, era ele o culpado pela situação. Mas os
lá. Paebi, olhou para todos os lados, porém o monstro lamentos foram interrompidos quando, de repente,
não voltou a aparecer. Passaram-se um, dois, quinze Paebi ouviu uma voz familiar e terrível, como groselha
minutos... Já mais calmo, o pescador remou até a azeda, só que ainda mais azeda que o normal. Olhou
margem onde havia agora um montinho de peixes para a janela e viu quatro olhos odiosos e dois bicos
frescos dando sopa. “Será que devo? E se aquela coisa assassinos sob a fraca luz do luar. “Pensastes que eu
vol...”, Paebi pensava quando foi surpreendido por estava a brincar?”, os bicos grasnaram. No mesmo
uma voz fanha de groselha azeda e bafo de peixe que instante, Paebi, sentindo o sangue ferver, levantou-se e
veio no cangote. “Não temas”. O pescador olhou para correu para fora da casa, pronto para matar o monstro
trás, já borrando a tanga, só para dar de cara com as com as próprias mãos. “Demônio! Devolva-me logo
duas cabeças falantes do homem-cegonha assentado meu filho!”, bradou. Mas do lado de fora não havia
junto a ele na canoa. ninguém, e o ex-pescador voltou a chorar.
Paebi imediatamente saltou na água para tentar Na noite seguinte, Paebi saiu com lança na mão
escapar, mas esqueceu-se que não sabia nadar nem para caçar a criatura. Queria vingança. Olho por olho.
numa poça de chuva. “Ah! Painho! Alguém!”, ele gritou, Procurou no lago e em toda a área ao redor, mas não
engolindo metade do lago no processo. Debateu-se, achou. Até pensou em mergulhar, mas desistiu. Então,
berrou, afundou e enfim desmaiou. Acordou na margem, voltando para casa, encontrou-a totalmente incendiada.
deitado ao lado do montinho de peixes, que agora já Largou a lança e correu para dentro, na esperança
estava bem maior, como uma montanha. O pássaro- de encontrar alguém a quem ainda pudesse salvar,
homem se aproximou, pegou um de seus troféus e o mas o lugar estava vazio de vida, e só havia ali brasas,
engoliu de uma vez. “Tu és burro, és?”, uma das cabeças fumaça e memórias. Paebi estava só. Dolorosamente
da criatura perguntou ao pescador. “Não queres peixe? só. Ou quase isso. “Pensastes que eu estava a brincar?”,
Podes pegar um punhado dos meus, não faz mal”, disse disse a figura emplumada e bicéfala que espreitava na
a outra. “Pareces faminto. Só não sejas abusado de porta da residência destruída. “Maldito! Arrancarei
pegar tudo, senão terás um inimigo para a vida toda”. com dentadas as tuas cabeças!”, o pescador-guerreiro
avançou com toda fúria, só que não havia mais ninguém
Sem saber ao certo como reagir, Paebi se levantou, quando ele chegou lá fora.
pegou uns dez peixes gordos e saiu correndo. “Coitado,
é burro mesmo”, disse para si mesmo o homem-cegonha Paebi foi correndo à aldeia contar às pessoas o que
de duas cabeças quando o pescador saiu de vista. Só havia ocorrido. Saiu gritando pela estrada: “O homem-
que, mesmo temeroso, Paebi passou a retornar ao lago cegonha falante de duas cabeças matou minha família! O
todas as madrugadas para apanhar alguns peixes que a homem-cegonha falante de duas cabeças matou minha
criatura estranha juntava na margem. A esposa de Paebi família!”, mas por algum motivo ninguém acreditou.
agora tinha leite no peito e todas as crianças ostentavam Aliás, os aldeões o agarraram e prenderam com cordas,
pancinhas salientes, sinal de boa vida. Mas Paebi não acusando-o de ter envenenado os convidados do
contou para ninguém sobre o pássaro-homem do lago, banquete, pois todos os que comeram os peixes haviam
nem nunca chegou a agradecê-lo de fato. Só pegava adoecido e morrido. Enquanto a multidão discutia o
os peixes e ia embora correndo como louco, e a cada que deveriam fazer com o criminoso, Paebi avistou ao
longe uma figura sombria e cegonhesca que o observava
58
de por trás de uma árvore. Pode ser difícil ler os lábios
de um pássaro, já que ele não os tem, mas Paebi não Mobilidade tripla: Mondjolis são bons nadadores,
precisou de esforço para entender exatamente o que a então recebem +1 em testes de Natação e não sofrem
criatura estava dizendo naquele momento. “Pensastes penalidade na movimentação por estarem submer-
que eu estava a brincar?”. sos. Eles também têm asas e podem se deslocar
voando. Enquanto voam, ações de movimento são
Mondjoli-mbembe, ou apenas mondjoli, é um tipo consumidas normalmente, e o tempo limite de voo
de ave humanoide que vive perto de rios e lagos, antes de ficarem cansados é de [5 x VIG] minutos.
alimenta de peixes e possui duas cabeças capazes de Se ultrapassarem esse limite em 5 minutos, ficam
raciocinar e falar. Os homens-cegonha são criaturas exaustos.
raras, pouco conhecidas e nada compreendidas pela
gente de Aiyê. Os povos que contam suas histórias os
tratam como monstros ou diabos, criaturas capazes
de fazer qualquer coisa por um objetivo, mesmo que
um esdrúxulo e injustificável. E, de fato, mondjolis
podem ser inescrupulosos e vingativos, tarados e »»» NOTA DO AUTOR «««
perseguidores, verdadeiros maníacos. Se cismam com
algo ou alguém, não há quem possa pará-los. Suas duas
cabeças têm personalidades diferentes e que podem ESTOU COGITANDO ACRESCENTAR MAIS
mudar a qualquer hora, mas a paranoia e a obsessão
são coisas que elas têm em comum. Nem seus amigos DUAS RAÇAS JOGÁVEIS AO LIVRO, SÓ QUE
mais próximos estão livres do assédio e da loucura. A ISSO DEMANDA TEMPO E IDEIAS LEGAIS.
inconstância define os mondjolis.
SE EU CONSEGUIR, DEVO FAZER UMA NOVA
VOTAÇÃO NO GRUPO DE APOIADORES NO
Mondjolis
FACEBOOK PARA VOCÊS ESCOLHEREM
Tamanho: Médio QUAIS RAÇAS ENTRARÃO NO SUPLEMENTO.
Atributos:
+1 em Agilidade
+1 em Ori
-1 em Ginga
59
SOBRE AS NOVAS HABILIDADES » HABILIDADES DE CORRUPÇÃO «
• NÍVEL MOLEQUE •
Este livro traz duas novas categorias de habilidades
especiais: as habilidades de corrupção e as variantes de (2) Acólito: habilidade associada à Fratura. Você
raça. A primeira categoria está vinculada, especialmente, aprende a conjurar mirongas. Ao desenvolver essa
a maldições mágicas e a efeitos da Fratura, enquanto habilidade, você aprende [INT+3] mirongas à sua
a segunda traz opções de características morfológicas escolha, mas se torna incapaz de conjurar mandingas.
e psicológicas não convencionais para indivíduos de Você pode aprender mais sobre magia do Caos lendo
cada raça. Você também encontrará mais adiante os o capítulo Mirongas, a partir da página ___.
dons referentes aos novos orixás apresentados.
(1) Acólito II: você aprende mais duas mirongas à sua
Observação 1: Um Protagonista não pode ter ao escolha. O total de mirongas conhecidas é de [INT+5].
mesmo tempo habilidades de corrupção e dons de
orixá. É preciso escolher entre as duas categorias. (1) Acólito III: você aprende mais duas mirongas
à sua escolha. O total de mirongas conhecidas é de
Observação 2: As habilidades variantes de raça
[INT+7].
só podem ser adquiridas no momento de criação de
Protagonista, não depois. Algumas delas se acumulam (1) Acólito IV: você aprende mais duas mirongas
com as habilidades padrão das raças jogáveis, enquanto à sua escolha. O total de mirongas conhecidas é de
outras as substituem. [INT+9].
Exceto pelas regras citadas nas observações acima, (1) Acólito V: você aprende mais duas mirongas à sua
as habilidades aqui disponíveis funcionam da mesma escolha. O total de mirongas conhecidas é de [INT+11].
maneira que as demais habilidades especiais. Para
adquiri-las, ainda é necessário possuir a quantia exigida (1) Acólito VI: você aprende mais duas mirongas
de pontos de habilidade e atender aos pré-requisitos à sua escolha. O total de mirongas conhecidas é de
de nível. Os custos variam de 1 a 3 pontos, e o valor [INT+13].
de cada uma é exibido entre parênteses logo antes do
nome. Para obter um estágio mais avançado de uma (1) Acólito VII: você aprende mais duas mirongas
habilidade especial, é obrigatório ter acesso ao estágio à sua escolha. O total de mirongas conhecidas é de
anterior, e só é possível desenvolver cada habilidade [INT+15].
uma única vez. A ativação de determinadas habilidades
pode consumir axé e/ou PV. (1) Acólito VIII: você aprende mais duas mirongas
à sua escolha. O total de mirongas conhecidas é de
É recomendável que, por questões de coerência [INT+17].
narrativa, o Griô exija justificativas para o
desenvolvimento de certas habilidades especiais. Ele (1) Acólito IX: você aprende mais duas mirongas
também pode vetar ou restringir habilidades que não à sua escolha. O total de mirongas conhecidas é de
se encaixem na proposta do jogo ou que sejam de [INT+19].
alguma maneira incompatíveis com os Protagonistas
(1) Acólito X: você aprende mais duas mirongas à sua
que almejam adquiri-las. (Jogador, teu poderzinho
escolha. O total de mirongas conhecidas é de [INT+21].
precisa de contexto!)
Para facilitar a sua vida, nós separamos as habilidades (2) Fisiologia mutante : habilidade associada à
de corrupção por níveis e, no caso das variantes de raça, Fratura. Você é imune ao efeito limitador de PV do
por raça, considerando tanto as apresentadas no livro dano agravado, ou seja, todo dano agravado recebido
básico quanto as apresentadas aqui no suplemento. por você é convertido em dano comum.
61
eu” parece ter uma índole totalmente oposta à sua – se também é reduzido pela metade. Não é possível ter ao
você é bonzinho, ele é um capeta temido e odiado; se mesmo tempo as habilidades Corpo mole e Arsenosso.
você é do mal, ele é um filantropo amado por todos.
Você está condenado a viver à sombra dele, e o destino (1) Futum estratégico: uma vez por dia, com uma
conspira para que vocês nunca se encontrem. Em ação de movimento, você pode expelir um gás pestilento
contrapartida, toda vez que o seu desgêmeo realiza que se espalha rapidamente, deixando enjoadas todas
algum feito importante, você e seu grupo recebem 1 XP. as criaturas num raio de 8 metros ao redor de ti, a
menos que elas tenham sucesso em uma salvaguarda
(2) Olho sangrento [1 PV]: maldição. Seus olhos são de Fortitude (CD 14). As criaturas que falharem na
vermelhos e têm pupilas de formato anormal. Quando salvaguarda terão também desvantagem em testes
outra criatura encara seus olhos diretamente, eles de Percepção, Vontade e Fortitude durante 1 hora. O
começam a chorar sangue, e a criatura precisa fazer gás é expelido por um orifício corporal à sua escolha.
uma salvaguarda de Vontade (CD 14) para não sofrer
[2d6] de dano psíquico e ficar abalada por 1 hora. (2) Esbugolhudo: seus olhos ganham uma aparência
Tendo sucesso ou falha na salvaguarda, não importa, esbugalhada e aberrante e agora podem olhar para
a criatura fica imune a Olho sangrento durante a hora direções diferentes ao mesmo tempo. Você recebe
seguinte. A ativação desta habilidade é involuntária, vantagem em testes de Percepção (apenas para ver
acontece sempre que você cruza olhares com alguém. coisas) e resistência à manobra cegar.
(2) Simbiose: habilidade associada aos demositas. (2) Olho sangrento II: seus olhos ganham um brilho
Você foi infectado por um demosita comedor de miolos, sobrenatural. Agora as vítimas do seu olhar, além de
mas ele concordou em compartilhar o controle do seu sofrerem dano e ficarem abaladas por 1 hora, também
corpo com você. Você recebe 1 ponto adicional num ficam paralisadas por 10 segundos (1 turno). O custo
atributo à sua escolha. Em contrapartida, você possui de PV aumenta para 2, mas a salvaguarda permanece
sensibilidade extrema a altas temperaturas – sofre a mesma.
desvantagem em todos os testes quando exposto ao
(2) Simbiose II: o demosita começa a se fundir à sua
calor e tem fraqueza a dano por fogo. Além de receber
carne e causar mutações estranhas no seu corpo,
dano em dobro, ele também conta como dano agravado.
prejudicando sua aparência, mas dando a você poderes
(2) Um com a F ratura : habilidade associada à incríveis. Você passa a recuperar 1 PV por hora, se
Fratura. Sua aparência sofre mutações severas e você torna capaz de regenerar membros perdidos e só
se transforma em uma criatura de categoria fraturiana, precisa dormir 2 horas para receber os efeitos de um
embora ainda mantenha as principais características descanso longo.
de sua raça. Você recebe +3 na perícia Intimidação, -3
(2) Um com a Fratura II [ação de movimento]:
nas perícias Persuasão e Sedução e se torna imune a
você é capaz de absorver a energia vital de outras
dano por exposição à Fratura.
criaturas, bastando tocá-las por alguns instantes. Ao
tocar uma criatura, você causa a ela [2d6] de dano
» HABILIDADES DE CORRUPÇÃO « agravado e regenera uma quantidade de PV igual ao
dano causado. Um com a Fratura II também pode ser
• NÍVEL VALENTE •
aplicada a ataques desarmados, mas outros atributos
e habilidades que aumentam o dano do ataque não
(2) Arsenosso: você é capaz de modificar a estrutura influenciam no montante de PV que você regenera.
de seu próprio esqueleto e fazer brotar em seu corpo
espinhos ósseos para usar como armas. A transformação
consome uma ação de combate, além de 1 PV a cada » HABILIDADES DE CORRUPÇÃO «
espinho gerado. É possível criar até três espinhos por • NÍVEL VETERANO •
vez. Cada espinho conta como uma arma corpo a corpo
leve e causa [1d6+1] de dano. Retrair um espinho é
(2) Arsenosso II: agora, além dos espinhos, você é
uma ação de movimento.
capaz de criar uma carapaça óssea que protege seu
(2) Corpo mole: seus ossos se dissolvem e você se corpo de ataques. Após a transformação, você recebe
torna um invertebrado. Seu corpo agora é mais muito 4 RD, mas perde 1 PV a cada turno que mantiver a
mais flexível – seus membros podem se esticar por defesa óssea ativa. Retrair a defesa óssea é uma ação
uma distância equivalente até ao dobro da sua altura, de movimento.
e você pode se espremer por passagens apertadas
(3) D eslocamento fratural [4 axé , ação de
e caber em recipientes duas categorias de tamanho
movimento]: habilidade associada à Fratura. Ao ativar
menores que você próprio. O dano de queda sofrido
esta habilidade, você se teleporta para um espaço vazio
62
qualquer que esteja a até 20 metros de distância. As perdem 1 axé. Um com a Fratura III pode ser ativada
criaturas que estiverem a 4 metros ou menos da sua uma vez a cada 6 horas.
posição inicial e/ou a 4 metros ou menos do local de
ressurgimento sofrem [1d6] de dano agravado.
» HABILIDADES DE CORRUPÇÃO «
(3) Membro extra: cresce no seu corpo um braço ou • NÍVEL HERÓI •
perna mutante. Se for um braço, você ganha o direito
de realizar uma ação de movimento a mais em seus (2) Olho sangrento IV: olhar nos seus olhos é
turnos, desde que ela não seja usada para locomoção como contemplar as profundezas rubras do inferno.
ou conjuração. Se for uma perna, você ganha vantagem Criaturas de nível inferior ao seu, quando vitimadas pela
em testes de Corrida e também o direito de realizar habilidade Olho sangrento, também ficam apavoradas
uma ação de movimento a mais em seus turnos, mas e cegas por 1 hora.
apenas para locomoção.
(1) Segunda vida: habilidade associada à Fratura.
(2) Olho sangrento III: olhar nos seus olhos é uma se você for morto, seu cadáver começa a sugar o axé
tortura insuportável. Agora Olho sangrento causa [4d6] do ambiente e das criaturas ao redor, num raio de
de dano e a CD da salvaguarda para resistir é 16 em vez 20 metros. As criaturas afetadas perdem metade do
de 14. As criaturas que tiverem sucesso na salvaguarda axé que tiverem no momento. Depois de ficar inerte
recebem metade do dano e ficam abaladas, mas não absorvendo axé durante um turno, você ressuscita no
paralisadas. O custo de PV por ativação aumenta para 3. turno seguinte, provocando uma explosão de energia
(2) Simbiose III: você e o demosita vivem em harmonia que causa [6d6+6] de dano a todas as criaturas num
compartilhando seu corpo. Não dá nem pra saber onde raio de 20 metros. Se seu corpo for totalmente destruído
termina um e começa o outro. Você agora tem mãos e antes de acumular a energia necessária, a habilidade
pés aderentes que te permitem andar pelas paredes, é interrompida e você permanece morto. A habilidade
pode deslocar seus membros de maneira grotesca e Segunda vida só pode ser ativada uma vez, depois disso
é capaz de digerir qualquer material ou substância é perdida. É possível adquiri-la de novo gastando um
que colocar para dentro. Sua regeneração por hora ponto de habilidade especial.
aumenta para 2 PV. (2) Simbiose IV: você e o demosita estão perfeitamente
(3) Suga-almas: habilidade associada à Fratura. Ao alinhados, são agora um só indivíduo. Vocês podem
tirar a vida de uma criatura inteligente, você absorve ver outras criaturas através de assinatura de calor,
a alma dela, obtendo axé equivalente ao valor de Ori recuperam 3 PV por hora em vez de 2 e são imunes
que a criatura possuía. Em contrapartida, você não a sangramento e a dano adicional por sucesso crítico
recupera mais axé naturalmente. O axé adquirido ou por estarem desprevenidos.
através da habilidade Suga-almas pode exceder o seu (2) Um com a Fratura IV: sua mente e seu corpo já se
valor máximo de axé, e esse bônus é cumulativo até modificaram a ponto de torná-lo irreconhecível. Você é
um limite de duas vezes o tal valor. Por exemplo, se de fato um com a Fratura, um verdadeiro representante
seu axé máximo for 6, você poderá acumular até 12 do Caos Exterior. Fraturianos de nível inferior ao seu
axé usando Suga-almas. são obrigados a obedecer suas ordens.
(2) Tripa seca: habilidade associada à Fratura. Seu
coração não bate mais e não há sangue correndo em
suas veias. Apenas o Caos te mantém vivo, consumindo » VARIANTES DE RAÇAS «
sua alma no processo. Você é imune a sangramentos, • ABATWÁS •
não precisa comer, beber ou dormir e não desmaia ao
chegar a zero ponto de vida, embora ainda morra se (2) Tamanho diminuto: substitui a habilidade de raça
chegar à metade negativa de seus PV. Você deixa de Tamanho pequeno. Concede +2 em Esquiva, -2 em Luta,
recuperar PV durante o descanso e passa a recuperar vantagem em testes de Furtividade e desvantagem em
1 PV por hora, incondicionalmente. Fora isso, apenas testes de Fortitude. Criaturas de tamanho diminuto não
poções e magias podem curá-lo. podem portar armas que não sejam leves, e mesmo
armas leves requerem as duas mãos. Apenas armas
(2) Um com a Fratura III [ação de movimento]: você feitas sob medida podem ser portadas com uma
é capaz de absorver o axé do ambiente e das criaturas mão. Essas custam 50% menos, porém sofrem uma
ao redor. Ao ativar esta habilidade, você recupera [1d6] penalidade de -3 no dano.
axé e +1 axé por cada criatura inteligente que estiver
por perto, num raio de 6 metros. O ambiente próximo (2) Elite guerreira : você nasceu para formar
é distorcido pela Fratura e todas as criaturas afetadas a principal linha de defesa da colônia. Sua cabeça
apresenta mandíbulas maiores e mais potentes que as
63
dos abatwás operários e sua bunda é munida de um pequenos objetos que você engolir. Você pode regurgitar
ferrão assassino. Você aplica +3 de dano em ataques os objetos guardados ali no momento que desejar,
desarmados, e esse bônus aumenta em 1 a cada nível bastando uma ação de movimento.
evoluído.
64
» VARIANTES DE RAÇAS « » VARIANTES DE RAÇAS «
• FOSSAS • • ISKOKINS •
(2) Chamado de Mádaga [2 axé, ação de movimento]: (2) Beijo de amor: ao beijar uma pessoa que esteja
Usilosimapundu te chama. Não importa a distância, emocional e fisicamente atraída por você, você
você consegue ouvi-lo tremer e grunhir, comunicando- rouba da coitada 1 ponto de um atributo qualquer,
se com a essência animalesca da sua alma. Ao ativar tomando-o para si temporariamente. Esta habilidade
esta habilidade, você libera seu lado mais primitivo, pode ser ativada uma vez por dia. Os bônus podem ser
tornando-se incapaz de falar e conjurar, mas recebendo acumulados, mas se perdem quando o iskokin realiza
um bônus de +2 nos testes de Esquiva e nas jogadas um descanso longo. Para que a habilidade funcione, o
de ataque e dano dos seus ataques desarmados. O beijo precisa ser voluntário e na boca.
efeito dura 2 minutos.
» VARIANTES DE RAÇAS «
» VARIANTES DE RAÇAS « • JENGUS •
• HUMANOS •
(1) Umidificar: você é capaz de absorver a umidade
(2) Pigmeu: você tem tamanho pequeno em vez de no ar para suprir ou amenizar a necessidade de beber
médio. Recebe +1 em Esquiva, -1 em Luta e tem ou banhar-se em água. Essa habilidade não funciona
vantagem em testes de Furtividade. Criaturas de bem locais secos como desertos e geleiras.
tamanho pequeno precisam segurar armas de uma
mão com duas (a menos que sejam leves) e não podem (3) Rainha do mar [1 axé]: você é capaz de controlar
brandir armas de ataque corpo a corpo de duas mãos. animais aquáticos com o poder da mente e forçá-los a te
obedecer. Peixes, lulas, lagostas, golfinhos, tubarões…
Basta que você se concentre e eles seguirão as suas
» VARIANTES DE RAÇAS « ordens sem hesitar. Essa habilidade não se aplica a
• INTULOS • criaturas inteligentes ou que sejam particularmente
hostis a você. O alcance no momento da ativação é de
(2) Lagarto-tatu: seu corpo é coberto por placas 50 metros e a duração é de 1 hora.
pontudas que te concedem 2 de redução de dano (RD).
Você é capaz de se escolher no formato de uma bola e
sair rolando por aí em alta velocidade. Atropelar uma
» VARIANTES DE RAÇAS «
criatura enquanto está no formato de bola é um ataque • LÊMURES •
desarmado e causa +3 de dano. Entrar ou sair da forma
de bola é uma ação de movimento. Não é possível (2) Noia [1 PV, ação de combate]: ao consumir
entrar nessa forma enquanto carrega muitas tralhas. centopeias alucinógenas (que costumam ser tóxicas
para a maioria das pessoas), você fica doidão, vendo
(2) Escarrador [1 axé]: você tem o dom nojento coisa onde não tem, porém as substâncias inebriantes
de cuspir bolas de gosma a curtas distâncias. Ao estimulam a recuperação e reforçam as defesas de seu
atingir o rosto de um adversário, a gosma pode cegá- corpo e mente. Durante a viagem psicodélica, você
lo temporariamente. Para acertá-lo, ainda é preciso anula e fica imune às seguintes condições: abalado,
realizar a manobra de combate cegar, mas você apavorado, atordoado, cansado, confuso, enjoado,
tem vantagem no teste em vez de desvantagem, e a paralisado e sangrando, mas recebe desvantagem
salvaguarda para resistir é Fortitude (CD 14) em vez em testes que envolvem os atributos INT ou ORI. Noia
de Fortitude (CD 12). dura 20 minutos.
(3) Croc: você é um brutamontes com aparência de (2) Lêmure-rato: você tem tamanho pequeno em
crocodilo. Seus atributos de raça são +1 em FOR, +1 vez de médio. Recebe +1 em Esquiva, -1 em Luta e
em VIG e -1 em ORI. Você tem vantagem em testes tem vantagem em testes de Furtividade. Criaturas de
com a perícia Potência, e seus PV máximos aumentam tamanho pequeno precisam segurar armas de uma
em 2 a cada nível evoluído. mão com duas (a menos que sejam armas leves) e
não podem brandir armas de ataque corpo a corpo
de duas mãos.
65
» VARIANTES DE RAÇAS « Enoli
• MONDJOLIS • :
Domínios: Terra. Chão. Subsolo.
(2) Papa-peixe [ação de combate]: ao consumir
peixes frescos (quantidade equivalente a uma refeição
Preceitos: Manter-se conectado com a terra e com
as criaturas que vivem debaixo dela. Não se expor
completa), você recupera 1 axé.
desnecessariamente, agir com discrição. Desenvol-
(3) História de pescador [2 axé, ação de movimento]: ver o autoconhecimento. Apreciar a solidão.
você se teleporta para um local vazio a até 20 metros de Tabus: Andar calçado. Ficar longos períodos longe
distância. No momento da ativação dessa habilidade, do chão. Intrometer-se nos assuntos alheios. Ser
não pode haver ninguém olhando para você ou para extrovertido ou invasivo.
o local escolhido.
Dons de devoto
(2) Cova da vida: enquanto estiver enterrado até
» VARIANTES DE RAÇAS « o pescoço no chão, você recupera 3 PV e 1 axé por
• YUMBOS • hora.
(1) Madagano: substitui a habilidade de raça Tão (1) Sentido sísmico [1 axé, ação de movimento]:
fofinhos. você descende dos yumbos comedores de durante 1 hora, você se torna capaz de sentir a mo-
gente que habitam as selvas profundas de Mádaga. vimentação de criaturas de tamanho diminuto ou
Você tem dentes afiados, pode ingerir carne crua sem menor através das vibrações que elas causam no
prejuízos à saúde e é capaz de enxergar plenamente solo. Alcance de 10 metros.
no escuro. (3) Terra amiga: você não sofre dano de queda
quando cai em solo natural como terra, areia ou
(1) Perolado: substitui a habilidade de raça Sangue
rocha. O chão se abre, te engole e te ejeta instantes
arco-íris. Sua pele é branca como pérola, seus olhos
depois, ileso. Você também não sofre dano por desli-
e cabelos são cor de prata e suas asas são grandes e
zamentos de terra, desmoronamentos de cavernas ou
similares a asas de mariposa ou borboleta. Você também
pedradas, por exemplo. O solo sempre evita te ferir.
tem o dom de fazer objetos e criaturas brilharem. Para
isso, basta tocá-las e gastar 1 de axé. O brilho dura por Ebós:
até 1 hora e você pode escolher a intensidade dele, de
baixa a moderada.
66
(1) Aqui se paga: nos seus ataques que resultam em Gogã
sucessos críticos, o dano adicional que você causa
aumenta para [6d6] se o alvo for uma criatura que Domínios: Propriedade. Egoísmo. Preservação.
já te feriu durante o combate. Aqui se paga não se
acumula com outras habilidades que aumentam o Preceitos: Defender aquilo que lhe pertence.
dano de sucessos críticos. Respeitar aquilo que pertence aos outros. Punir
os ladrões e os vândalos. Buscar o enriquecimento
(2) Sem prisioneiros: ao executar um inimigo in- honesto.
defeso (desprevenido, desacordado, rendido, preso,
etc), você recupera 1 axé. Tabus: Roubar ou permitir que um roubo aconteça.
Ser ludibriado por bandidos e vigaristas. Tratar com
Ebós: descaso seus bens materiais. Fazer favores de graça.
Dons de devoto
(1) Quem não deve: você tem vantagem em testes
Ninielê de Intimidação contra ladrões, vândalos, corruptos e
vigaristas. Tendo sucesso, você os deixa apavorados
Domínios: Maldade. Azar. Desgraça. em vez de abalados.
Preceitos: Enganar o destino. Ser imprevisível. (2) Propriedade de Gogã: sua orixá deu a você
Fraudar a balança da sorte e do azar. Levar nas a tarefa de administrar um certo bem sagrado e
costas a marca de Ninielê, o gogundan. precioso. Pode ser um item, um terreno, um ani-
Tabus: Agir com misericórdia. Entregar-se a sen- mal ou qualquer outro bem de valor. A cada três
timentos como paixão e amizade. Perdoar um erro sessões de jogo que você mantiver o tal bem a salvo
ou ofensa. Confiar em alguém além de si mesmo. e preservado, Gogã concede a você um milagre à
sua escolha. O milagre deve ter relação com bens
Dons de devoto materiais, e o Griô tem o poder de vetar pedidos
muito exagerados.
(2) Gogundan: você recebe +1 em qualquer teste
que realizar enquanto age como louco. (2) Bandido bom: a cada três larápios comuns que
você e seu grupo executarem publicamente, vocês
(2) Gogundan II: toda vez que alguém próximo de
recebem 1 XP. Um ladrão ou vigarista famoso equi-
você tiver uma falha crítica, você recebe um ponto
vale a três comuns. Executar um inocente faz você
de sorte. Gastar um ponto de sorte te dá vantagem
perder essa habilidade para sempre. Nesse caso, os
num teste. Gastar dois pontos de sorte anula o su-
pontos de habilidade gastos não são recuperados.
cesso crítico de uma criatura próxima. Gastar três
pontos de sorte te dá sucesso crítico garantido. Só Ebós:
é possível acumular até cinco pontos de sorte.
(2) Gogundan III: toda vez que você tiver um su-
cesso crítico, ganha um ponto de azar. Gastar um
ponto de azar dá desvantagem no teste de outra »»» NOTA DO AUTOR «««
criatura próxima. Gastar dois pontos de azar garante
uma falha crítica no teste de outra criatura próxima.
Gastar três pontos de azar faz uma merda louca e AS PRÓXIMAS ATUALIZAÇÕES VÃO TRAZER
inesperada acontecer ao seu favor, a critério do Griô.
Só é possível acumular até cinco pontos de azar. MAIS HABILIDADES, ORIXÁS E TAMBÉM UMA
Ebós: MECÂNICA DE PACTOS E PATRONOS. SÓ
QUE, NO MOMENTO, A MINHA PRIORIDADE É
TRABALHAR NAS MIRONGAS (O CAPÍTULO
SEGUINTE).
67
68
INTRODUÇÃO ÀS MIRONGAS CONJURANDO MIRONGAS
O poder das mirongas foi aprendido eras atrás por Ao contrário das mandingas, as mirongas não
meio do contato com os fraturianos. Trata-se da arte de exigem poder mágico (PM) para serem conjuradas.
roubar a energia de outros seres, vivos ou não, e usá-la Contudo, seus resultados são imprevisíveis e sempre
para fazer magia. Se na mandinga o conjurador usa o trazem algum risco ao conjurador. Cada mironga
próprio axé, na mironga o axé vem de terceiros, muitas conta com um conjunto de possíveis efeitos que são
vezes através de sacrifícios de sangue involuntários. acionados aleatoriamente na conjuração, incluindo
Para os seres do Caos, é conveniente aliar-se aos mortais efeitos colaterais grotescos, permanentes e que
que, sedentos por poder, rendem-se às mirongas, já que podem acometer não apenas o bruxo, mas também
isso colabora para o desequilíbrio do universo e o fim seus aliados. Sempre que uma mironga é conjurada,
absoluto de todas as coisas, que é o grande objetivo dos é necessário rolar [1d6] e definir o efeito adicional
fraturianos. Os bruxos das trevas costumam prometer conforme a listagem. Às vezes, o feitiço se vira contra
suas almas aos lordes do Caos em troca de favores, o feiticeiro. O bom mirongueiro está preparado para
tomando-os como patronos, e, assim, por meio das enfrentar as consequências de abraçar as forças do
mirongas dos mortais, as entidades remanescentes da Caos, pois sabe que nenhum poder vem de graça (é
Fratura conseguem expandir seus domínios. tudo roubado).
As capacidades das mirongas são tão vastas quanto Diversas mirongas possuem pré-requisitos para
as da magia tradicional, e elas têm a vantagem de não serem conjuradas. Algumas demandam ingredientes
estarem restritas às leis fundamentais do universo – especiais, outras exigem sacrifícios de algum tipo,
o Caos não obedece ninguém – e nem às limitações outras precisam que o conjurador toque o alvo, e por
espirituais do conjurador – porque a energia vem de aí vai. Mironga, ao contrário de mandinga, não requer
fora, não de dentro. Mas não se engane: a prática de que o conjurador recite palavras mágicas ou gaste
mironga não vem sem custos ou riscos. A magia do seu próprio axé – o poder da magia do Caos provém
Caos é muito mais imprevisível que a mandinga e do roubo da energia do ambiente e das criaturas ao
costuma virar-se contra seus usuários com muito mais redor, não do seu próprio poder interior. Por isso, toda
frequência. Você não precisa ser um mirongueiro para mironga conjurada causa danos e distorções nas áreas
ser um bruxo malvadão. Se não estiver disposto a fazer próximas, já que suga a energia das coisas e corrompe
sacrifícios ou lidar com os perigos intrínsecos aos o pouco que sobra. As plantas morrem, as pedras se
poderes das trevas, opte pela mandinga. Só abraça o desfazem, o chão se abre e os bichos começam a
Caos Exterior quem não tem escrúpulos e nem juízo. devorar seus próprios filhotes. Esse tipo de bizarrice.
69
estéticos do feitiço podem (e devem) ser descritos » LISTA DE MIRONGAS «
pelo Jogador.
Flutuação caótica
Ações necessárias: ação de combate
Duração: 30 minutos
Pré-requisito: o coração de uma criatura voadora
morta enquanto voava
Descrição: O conjurador concede a uma criatura
próxima, que pode ser ele mesmo, a capacidade de
flutuar por aí, contrariando a gravidade.
Efeitos:
(1) Todas as criaturas num raio de 12 metros a partir
do conjurador começam a flutuar também.
70
Dor compartilhada
Ação necessária: ação de combate + ação de
movimento
Duração: 30 minutos
Pré-requisito: uma amostra do corpo da criatura
alvo (cabelo, unha, dente, pele, sangue, etc), um
frasco de fraturóleo e um pouco de sangue do
conjurador (equivalente a 1 PV)
Descrição: O conjurador mistura a amostra, o
fraturóleo e o próprio sangue para realizar um ritual
e conectar misticamente seu corpo ao da criatura alvo.
Enquanto a mironga estiver ativa, todo dano que o
conjurador receber será sofrido também pela criatura
alvo, em igual medida.
Efeitos:
(1) O dano que a criatura sofrer de outras fontes
também será compartilhado na mesma medida com
o conjurador.
71
ARMAS DE CERCO Por seu tamanho e complexidade, todas as armas
de cerco precisam de mais de uma pessoa para movê-
Durante as guerras, as armas de cerco são usadas las e operá-las. O contingente mínimo para usar cada
para destruir as defesas do inimigo. Sua função é causar arma consta na tabela. Armas de cerco exigem tempo
dano a estruturas – arrombar os portões da cidade, extra para preparar, recarregar, mirar e atirar, o que
abrir brechas na muralha, derrubar torres e casas e consome turnos inteiros dos operadores, então é bom
esse tipo de coisa. Dentro do jogo, essas armas têm que você leia com antecedência a descrição da arma
mais efeito narrativo do que mecânico. que pretende usar em batalha.
Via de regra, você não precisa rolar o dano que um Algumas armas de cerco disponíveis a seguir
pedregulho de catapulta causou na parede da casa pertencem a eras passadas de Aiyê. São relíquias
da Dona Lulu, muito menos o dano que ele causou à muito difíceis de encontrar, abastecer e utilizar, mas
própria Dona Lulu, que estava lá dentro. (Que Uyá a que compensam no poder de fogo. As guerras hoje em
tenha). Jogadas de dano, no caso das armas de cerco, dia são quase sempre travadas com o uso de flechas,
devem ser feitas apenas se 1) atingirem uma estrutura azagaias, escudos e mandingas – não é em qualquer
com pontos de vida (PV) pré-estabelecidos pelo Griô vilarejo mequetrefe que você vai encontrar um morteiro
ou 2) atingirem uma criatura que tem alguma chance da Segunda Era, capiche?
de sobreviver ao ataque, tipo um dragão, um kukonga,
ou um Protagonista de nível alto, por exemplo.
Armas de cerco
Arma Alcance Contingente Dano Preço
Aríete – 4 6d6+4 200
Aríete com armação – 6 6d6+12 350
Balista 240 m 3 5d6+15 480
Canhão 3.000 m 2 8d6+20 1.250
Canhão ancestral 10.000 m 2 10d6+60 50.000
Catapulta 400 m 3 7d6+18 540
Morteiro leve 2.000 m 3 5d6+30 4.800
Morteiro pesado 6.000 m 4 8d6+40 12.000
Trabuco 800 m 4 7d6+30 980
» DESCRIÇÃO DAS ARMAS DE CERCO « o curso da guerra. Usar o aríete consome um turno
inteiro de todos os quatro operadores. É preciso que
Aríete: Usado para arrombar portões de cidades e os operadores atrasem seus turnos para poderem agir
castelos. É um tronco robusto e com ponta de metal, juntos, ao mesmo tempo.
geralmente posto sobre uma armação de madeira com
rodas. Os operadores do aríete balançam o tronco para Aríete coberto: Um aríete, só que maior, mais
trás e para frente, fazendo a extremidade metálica se pesado e munido de cobertura para proteger os
chocar com os portões repetidas vezes, com toda força, operadores. Com essa belezinha, invadir cidades se
até rompê-los com o impacto. Empurrar e manusear torna um passeio de fim de tarde. Basta empurrar
o aríete é uma tarefa arriscada, já que operadores o aríete até em frente aos portões inimigos e então
ficam vulneráveis aos ataques inimigos. Mas essa enchê-los de arietadas até virarem um monte de
arma, quando usada com precisão, é capaz de mudar gravetos inúteis. Usar o aríete coberto consome um
72
turno inteiro de todos os seis operadores. É preciso pesado exige um turno inteiro de todos os quatro
que os operadores atrasem seus turnos para poderem operadores.
agir juntos, ao mesmo tempo.
Trabuco: Uma arma de cerco grande e pesada, feita
Balista: Uma máquina de guerra que dispara para arremessar projéteis (em geral, pedregulhos ou
grandes dardos para empalar a cavalaria inimiga ou bolotas incendiárias) contra as fortificações inimigas.
destruir outras armas de cerco como catapultas e A dinâmica do trabuco é similar a da catapulta, mas ele
aríetes. A balista costuma ser instalada no alto das funciona com um sistema de contrapeso, tendo maior
muralhas ou torres, de onde seus operadores podem alcance e dano. Preparar e disparar o trabuco consome
ter visão ampla do campo de batalha. Carregar, mirar um turno inteiro de todos os quatro operadores.
e disparar a balista exige um turno inteiro de todos os
três operadores.
73
Incenso do 25 10 CD 13 são estimuladas com boa música. Se fosse possível
produzi-lo em grandes quantidades, ele já teria acabado
desencosto
com a fome no mundo.
Leitinho do 40 20 CD 14
fortão Espiadinha: Poção que permite enxergar através
de objetos e superfícies opacas como baús, paredes e
Pó do chorão 10 5 CD 10 o que mais você imaginar, até mesmo criaturas vivas.
Poção animal 65 30 CD 15 A espiadinha tem alcance de 10 metros e dura 20
Poção da alma 50 25 CD 14 minutos. Favor, manter essa poção longe de tarados.
Soro da 75 35 CD 15 Fogo de guerra: Um líquido que, ao entrar em
verdade combustão, gera uma chama que incendeia qualquer
Suco da vida 600 240 CD 17 superfície, até mesmo a água, e somente duas coisas
podem apagá-la – o tempo ou a magia. Tenha cuidado
Tabacuca 20 5 CD 13 com essa coisa.
Vinho etéreo 110 70 CD 16
Fraturóleo: É sabido que os cadáveres dos
demônios da Fratura não se decompõem naturalmente,
e que é possível, sob as condições ideais, trazê-los de
» DESCRIÇÃO DOS ITENS ALQUÍMICOS « volta à vida, mesmo após milhares de anos. Contudo, as
ondas gigantes da Segunda Hecatombe fizeram um bom
Ácido descoisador: Capaz de corroer praticamente trabalho livrando-se dos corpos que haviam restado. A
qualquer material, exceto tecido animal (pele, carne, fúria do mar soterrou muitos deles, permitindo que a
ossos, etc). Costuma ser fabricado num caldeirão pressão e o tempo os transformassem aos poucos num
revestido de couro por dentro e então armazenado líquido viscoso que agora reside no subsolo de várias
num odre. regiões de Aiyê. Nos locais em que ele é abundante,
Afiazeite: Óleo capaz de tornar lâminas mais nenhuma vida consegue florescer, seja na superfície ou
afiadas durante os primeiros golpes. Armas de corte abaixo do chão. Essa substância amaldiçoada ganhou
como adagas, espadas, machados, glaives e afins, o nome de fraturóleo e hoje é usada por cultistas do
quando banhadas em afiazeite, recebem um bônus de Caos e mirongueiros para potencializar seus poderes
+2 no dano nos três primeiros ataques bem-sucedidos. profanos. Mas uma das principais propriedades do
fraturóleo, a que o faz ser usado até por gente comum
Chá de sumiço: Ingeri-lo concede invisibilidade (comum, porém ainda malvada), é a capacidade que ele
durante 30 minutos. tem de espantar, causar dano ou até destruir espíritos.
Um frasco de fraturóleo pode causar [4d6+20] de dano
Cola de grudola: Uma substância pegajosa feita a a um espírito e deixá-lo apavorado mesmo que, em
partir de noz de grudola e que serve para colar qualquer situações normais, ele seja imune a essa condição.
coisa. Quando esse troço seca, é quase impossível Um espírito levado a zero PV em decorrência de dano
desgrudar. O teto está rachando e parece que vai por fraturóleo é destruído e desaparece para sempre.
desabar? Confia na grudola. Seu filho não para quieto Fraturóleo precisa ser armazenado em recipientes
na cama de jeito nenhum? Grudola é a solução. especiais feitos de resina de fraturiano.
Coquetel da alegria: É tipo cachaça, só que Fumo do ori falante: Um composto para fumo
mais potente. Ao tomar o coquetel, o usuário fica que dá ao usuário a capacidade de se comunicar com
alucinadamente feliz durante 15 minutos. Depois disso, pessoas próximas através do pensamento. Dura 10
fica deprimido por outros 15 minutos. A depressão minutos. Ao longo de toda duração do efeito, o usuário
é adiada caso o usuário volte a beber o coquetel da pode enviar mensagens mentais para quem desejar,
alegria. Ao longo de toda a duração do efeito, o usuário até uma distância de 20 metros. O destinatário só
tem desvantagem em testes de Vontade. pode responder de volta caso também esteja sob o
efeito do fumo do ori falante, e ele tem o direito de
Creme cara-nova: Muda a aparência do usuário cortar o contato com o emissor no momento que quiser,
temporariamente. É só ele passar no rosto, mentalizar impedindo a comunicação. Entendeu o esquema? Legal,
a aparência que deseja adquirir e, tcharam! – cara nova. agora passa o cachimbo.
Em geral, não dá para modificar o visual a ponto de ficar
parecendo de outra raça, mas as feições podem mudar Incenso da atração: O cheirinho atrai para perto
o bastante darem a impressão de ser outra pessoa. todos os indivíduos de uma raça/espécie específica
num raio de 2 quilômetros. O tipo de criatura que o
Doko líquido: Um fertilizante mágico que faz as incenso atrai é definido no momento da fabricação ou
plantas crescerem até tamanhos anormais quando
74
compra do item. Os indivíduos afetados têm direito a Concede +2 em INT por 10 segundos (1 turno). Use
um teste de Vontade (CD 16) para resistirem ao efeito. com moderação, tem gente viciada nisso.
Se resistirem, ficam imunes ao incenso da atração
até o fim do dia. O efeito permanece por até 4 horas. Vinho etéreo: Um vinho especial que, quando
ingerido, dá ao usuário a habilidade de atravessar
Incenso do desencosto: Os vapores espantam os objetos sólidos conforme desejar. O efeito dura 5
maus espíritos. O incenso precisa ser deixado aceso no minutos. No estado intangível, o usuário fica imune a
local assombrado, ou os encostos retornarão. Eficácia dano físico, mas ainda é suscetível a dano proveniente
de 12 horas. de magias e artefatos mágicos.
75
SOBRE O BESTIÁRIO • Gente: As raças cujos indivíduos são considerados
pessoas pelo senso comum, capazes de pensar, falar
O Bestiário nada mais é que uma grande lista de e se organizar em sociedade. Essa categoria também
criaturas que podem ser encontradas em um jogo inclui profissões genéricas para Coadjuvantes e que
de Kalymba. Aqui serão apresentadas as descrições podem ser adaptadas para qualquer raça jogável.
de cada monstro juntamente com suas respectivas
• Monstrengos: Monstros atrozes, bestas mágicas,
estatísticas de combate, ou seja, seus pontos de vida,
criaturas devoradoras de gente. Seres de anatomia
resistências, habilidades, ataques, etc. O ideal é que os
medonha e que podem ser inteligentes ou não. Perigos
Jogadores evitem ler o Bestiário, e o Griô seja o único que espreitam em cada canto de Aiyê.
a consultá-lo. A surpresa e a sensação de descobrimento
são importantes para a experiência de jogo, então é
melhor que os Jogadores nem sempre saibam que tipo
de desafio os Protagonistas estão enfrentando. Então, no
» CARACTERÍSTICAS DE CRIATURAS «
caso de eles já terem esses conhecimentos prévios sobre • Nível: Umas criaturas são mais poderosas do que
as criaturas aqui descritas, sinta-se livre para modificá- outras, isso é fato. O nível define o quão poderosa a
las de acordo com a necessidade e até criar outras criatura é em combate em relação a um grupo de três
novas. Kalymba é um cenário em constante expansão Protagonistas. Essa escala não é precisa, já que o
e aprimoramento, e você faz parte disso também. perigo que um monstro oferece varia de acordo com
as habilidades e a sorte dos Protagonistas, além das
condições sob as quais eles se enfrentam. Mas, de forma
» CATEGORIAS DE CRIATURAS « geral, considera-se que uma criatura de nível Valente 2
(sendo 2 o grau) é um desafio moderado para um grupo
As criaturas do Bestiário estão separadas em sete de nível Valente 2; uma de nível Veterano 4 é um desafio
categorias. Confira a seguir. moderado para um grupo de nível Veterano 4, e assim
• Aberrações: Seres anormais, bizarros e que por diante. Entende-se “desafio moderado” como um
surgem através de processos que contrariam a desafio que exige do grupo uma dose significativa de
natureza. Não são criações dos orixás, mas frutos recursos (PV, axé, itens, habilidades, etc.), mas oferece
de eventualidades, mutações, doenças, maldições ou baixo risco de morte.
rituais estranhos. Lembre-se que um grupo de nível Moleque 3 com
recursos exauridos é consideravelmente mais fraco que
• Bichos: Animais comuns, bestas irracionais e
um grupo de mesmo nível com recursos abundantes,
não mágicas. Têm alma, mas lhes falta o intelecto.
então quanto mais combates consecutivos, maior se
Há milhões e milhões de espécies diferentes, e elas
torna a dificuldade e o risco de alguém bater as botas.
compõem a maior parte da vida em Aiyê.
Nesse ponto, a medição por nível já perde boa parte
• Espíritos: Seres imateriais feitos de puro axé, de sua utilidade, porque as variáveis são muitas e o
entidades que pertencem ao Outro Mundo. Podem ser balanceamento foi para o caramba. Em todo caso, a
almas de mortais que ficaram presas ao plano físico ou experiência e o bom senso do Griô têm um peso maior
manifestações de criaturas advindas do Orun. do que as categorias de nível, e ele pode modificar as
estatísticas das criaturas para que se encaixem em
• Fetiches: Construtos, objetos animados, estruturas situações de maior ou menor periculosidade. Criaturas
criadas por meios artificiais e desprovidas de alma ou que estejam três ou mais graus acima do nível dos
personalidade. Seres que não são e que não têm vida Protagonistas já são consideradas desafios difíceis
em si mesmos, geralmente controlados por um mestre. de superar.
• Fraturianos: Demônios do Caos Exterior que Alguns monstros funcionam melhor quando em
vivem apenas para destruir e conquistar. Alimentam-se equipe, e outros são absolutamente patéticos se
da energia das coisas, o axé que percorre o universo, estiverem sozinhos. Por isso, esses inimigos devem
e no processo corrompem toda a natureza. estar em grupo se quiserem oferecer algum perigo aos
Protagonistas. No caso de inimigos muito fraquinhos
ou que andem sempre em bando, haverá uma indicação
76
de quantos são necessários para formar um desafio à • RD: A redução de dano, caso haja alguma. A
altura dos heróis. O número estará logo depois do grau, proteção pode ser natural (como no caso de criaturas
separado por barra (/). Uma criatura nível Moleque que têm couro muito grosso, placas resistentes pelo
1/3, por exemplo, precisa estar em trio para ser páreo corpo ou qualquer coisa assim) ou concedida por
contra um grupo de Protagonistas de nível Moleque 1, armaduras.
e uma dupla de criaturas de nível Herói 3/2 é desafio
para um grupo de Protagonistas de nível Herói 3. • PM: O poder mágico da criatura, mostrado somente
se ela souber conjurar mandingas.
Se quiser juntar criaturas de diferentes níveis, vai na
fé. Calcular os níveis de desafios mistos daria trabalho • Axé: O axé da criatura, gasto na conjuração de
de mais para precisão de menos, então é melhor apostar mandingas e na ativação de certas habilidades.
na sua própria intuição. Apenas tenha em mente que
inimigos em grande número, de forma geral, significam • Imunidades e resistências: Proteção contra certas
combates mais demorados, pouco dinâmicos e com manobras de combate, condições adversas ou tipos
maiores chances de dar M. Normalmente é melhor de dano. Se a criatura é imune, não é afetada. Se é
errar a quantidade/dificuldade para menos do que resistente, tem vantagem nos testes para resistir à
para mais. manobra/condição ou, no caso de dano, recebe apenas
metade.
Nos níveis mais altos (Herói e Lenda) existem criaturas
que não podem ser derrotadas através da pancadaria • Fraquezas: Vulnerabilidade a certas manobras de
direta – seres colossais capazes de dizimar exércitos combate, condições ou tipos de dano. Tem desvantagem
num tapa, aberrações com as quais até os orixás têm nos testes para resistir e recebe o dobro de dano.
dificuldade de lidar. Nesses casos, as lutas contra os
monstros devem envolver um planejamento especial e
• Idiomas: As línguas mais comumente faladas por
esse determinado tipo de criatura. Esta é apenas uma
talvez toda uma jornada de várias sessões para tornar
sugestão, não uma regra.
a vitória minimamente possível. Serão necessários
equipamentos tunados, reforços, armadilhas e o que • Atributos: Os atributos que devem ser somados
mais puder ser usado contra eles. De forma semelhante, às perícias quando testes forem necessários.
em batalhas contra “chefões” de níveis mais baixos,
é interessante que os combates sejam mais árduos • Perícias: Se uma criatura não possuir determinada
do que em batalhas comuns, e nesses casos algumas perícia em sua lista, o valor é zero, e só o atributo é
artimanhas são cabíveis. O Griô pode colocar um bando considerado nos testes. Se tiver, o valor é igual ao
de capangas, terreno desvantajoso, limite de tempo, bônus concedido de acordo com o nível. Nível Moleque
clima difícil, etc. Todos esses elementos influenciam equivale a +3, nível Valente equivale a +4, nível Veterano
na complexidade do desafio. Todo combate deve ser equivale a +5 e assim vai.
emocionante, mas os grandes confrontos devem ser
excepcionais. Mesmo que algum Protagonista vá pro • Habilidades: As habilidades especiais (passivas
Orun, isso acontecerá de forma memorável. e ativas) que a criatura possui e as mandingas que ela
é capaz de conjurar. Também estão inclusos aqui os
• Tamanho: A categoria de tamanho à qual a criatura ataques que a criatura pode realizar.
pertence (Categorias de tamanho, pág. 109).
77
rastrear e capturar abadas (mas dá pra contar nos
dedos quantos de fato conseguiram).
AIGAMUXA
• MONSTRENGO •
Esses pequenos duocórnios são raríssimos, avistados
somente em regiões próximas a locais sagrados, Um ogro que não tem olhos na cara, mas nas solas
ambientes inundados de axé e magia. Dizem que dos pés. É um grandalhão de garras afiadas e dentes
trombar com um deles é sinal de boa sorte – desde pontudos, perfeitos para rasgar carne, e que tem uma
que você não tente apanhá-lo, claro, porque daí é só cara feia de dar medo. Para enxergar os arredores, o
azar que você vai encontrar. Para se defender, o abada aigamuxa precisa se apoiar nas mãos e levantar os
conta com uma habilidade especial que pouca gente pés, pois só assim consegue saber que direção deve
consegue entender e menos gente ainda consegue tomar ao perseguir suas presas. É um monstrengo
superar: toda vez que o jumentinho zurra (inhóóó), ele meio burro, meio lerdo, porém forte o bastante para
é salvo por um golpe de sorte (geralmente, isso envolve quebrar ossos com um aperto. Quando captura alguém,
alguma desgraça contra quem o está perseguindo). não solta mais.
Parece que o abada sempre está no lugar certo e na
hora certa. O caçador que parte para cima sempre Dizem que há duas maneiras eficientes de se livrar
acaba tropeçando, caindo num buraco, sendo esmagado de um aigamuxa. A primeira é correr como louco,
por uma árvore que cai sem explicação, atacado por fazendo curvas repentinas e escolhendo terrenos mais
algum animal, atingido por um raio, ou sofrendo toda difíceis ao invés das estradas. A segunda é jogar pó de
e qualquer desventura improvável. pimenta, pó de tabaco ou qualquer outra substância
irritante no chão para irritar os olhos da criatura e
O abada é um mestre da estratégia. Seu verdadeiro fazê-la desistir da caçada.
poder é brincar com as probabilidades. Seu ori é capaz
de prever e alterar as chances de determinada coisa
acontecer. Ele controla a própria sorte e também a
sorte de quem está por perto. É por isso que ninguém
ANPUK
consegue pegá-lo, e é por isso também que as pessoas • FETICHE •
só o avistam quando ele quer. E quando alguém fere
Durante a Primeira Era, virou moda entre os
um abada, pode ter certeza que vai ter azar pro resto
cientistas misturar e modificar o sangue de diferentes
da vida, porque usou todo o estoque de sorte que tinha
criaturas para gerar novas espécies. Com suas
para conseguir fazer isso. Uma criatura tão pura jamais
máquinas e experimentos complicados, eles brincavam
deve ser tocada por mãos indignas – o duocórnio é
de orixá, tentando reproduzir por meios profanos o ato
quem deve decidir a quem concederá sua magia. Abadas
divino da criação, fabricar vida em laboratório. Tolos
carregam consigo os poderes da vida e da morte e
pretensiosos, todos eles! Mas tolos bem-sucedidos,
também da sorte e do azar. Ele representa o equilíbrio
afinal. Lutaram contra a natureza e venceram. Deram
perfeito entre bem e mal, bênção e urucubaca. É uma
vida a uma hedionda variedade de seres, feitos apenas
das mais belas obras dos orixás.
para servir aos seus propósitos escusos, e a cada novo
sucesso, seus egos inflavam mais e mais e os motivavam
a prosseguir e se aprimorar no erro.
78
impulsionando Kulve ainda mais rumo ao progresso.
Mas aí veio a Crise dos Fractais e a escassez dos kiinis.
A fabricação de anpuks parou, e a maioria deles foi
desativada por falta de energia. Os que restaram,
hoje protegem as tumbas dos Átons, servindo como
última defesa contra invasores. Quando não estão em
atividade, esses anpuks permanecem em modo de
hibernação, poupando energia para quando a violência
se fizer necessária. Nesse estado, sua longevidade é
indeterminada.
AXEX
• BICHO •
Dentre as poucas espécies de grifos que ainda restam
em Aiyê, o axex é a mais veloz. A criatura é descrita como
tendo o corpo esguio de felino, a cabeça de gavião e, nas
costas, um belo par de asas emplumadas cujas penas
valem ouro. O axex é um caçador voraz, mas raramente
ataca pessoas. Mesmo quando se sente ameaçado,
prefere usar sua incrível velocidade para correr ou voar
para longe em vez de partir para a briga. Caçadores de
grifos têm muita dificuldade para apanhá-los.
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encontrou-a ainda bebê, abandonada numa gruta, e a » AJOGUN «
criou como sua própria filhote durante quatro anos,
alimentando-a com leite e carne crua, até ser abatido Os mais poderosos representantes das entidades
por um caçador. malignas são certamente os ajoguns. Ajogun é a
personificação da ruindade – todo mal que existe
ganhou forma e consciência no ventre de Ninielê, a
DIABO Mãe da Desgraça, e foi parido para levar sofrimento
ao mundo. São muitos os ajoguns que atormentam os
• ESPÍRITO • mortais. Iku, a morte, ceifa as almas de todos os seres
viventes. Arun, a doença, transforma o saudável em
Diabos são uma classe de espíritos superiores que
moribundo, abrindo as portas para Iku entrar. Ossi, a
representa as forças do mal e a punição dos orixás.
miséria, rói o estômago dos famintos. Ofô, o prejuízo,
Fique ciente desde já que diabo não é, nem de longe,
tira o sono do devedor. Idanu, o desprezo, fecha as
a mesma coisa que demônio, porque diabo é peça
portas para o estrangeiro. Ainifé, a solidão, traz o choro
essencial da balança que equilibra o universo, enquanto
e o azar no amor.
os demônios, os fraturianos, vieram de fora, do Caos, e
querem apenas chutar a balança e comê-la em seguida. Não há no mundo dedos para contar todos esses
Diabo é mau, é cruel, mentiroso, desprezível, mas males, então também não dá para saber quantos são os
faz parte dos planos de Olodum. Diabos castigam as ajoguns. Eles são espíritos, mas trabalham em Aiyê, não
almas dos mortos julgados indignos pelo Supremo, no Orun. Sua voz se espalha por toda a terra debaixo
amaldiçoam quem desonra os ancestrais e espalham do sol e das estrelas, amaldiçoando tudo o que respira,
dúvidas, enganos, doenças e ódio entre os povos – não sem exceção, sem alvo certo e sem descanso. Ajogun
para destruí-los, mas para prová-los e fortalecê-los. não tem corpo, só axé, mas pode escolher assumir uma
forma visível aos mortais, surgindo de repente para
aterrorizá-los em pessoa. Ajoguns se manifestam em
todos os lugares e de muitas maneiras diferentes, e tem
gente que os cultua e dedica a eles muitas oferendas.
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GUARDIÃO
• ESPÍRITO •
Guardiões são espíritos poderosos que protegem o
Orun. São subordinados diretos dos orixás e, entre os
espíritos superiores, representam as forças do bem e
a proteção divina, em contraposição aos diabos, que
representam o mal e o castigo. Os guardiões podem
ser enviados a Aiyê para vigiar coisas, lugares ou
pessoas, mas isso só acontece em situações muito,
muito especiais. Os guardiões não gostam do mundo
material e passam o menor tempo possível nele, apenas
o bastante para concluir as missões dadas pelos orixás.
Existem vários tipos de guardiões, cada um com suas
funções e características, mas todos dotados de poder.
» ARRO «
Quando surgem no mundo material conflitos de
proporções tamanhas que ameaçam até o equilíbrio
cósmico entre as forças do bem e do mal, os orixás
enviam os arros, os anjos de guerra, para prestar auxílio
aos mortais e reajustar a balança. Arros são guardiões
poderosos capazes de partir montanhas com o poder
de sua voz e aterrorizar os malfeitores apenas com
o olhar. Embora lutem pelo equilíbrio do universo,
eles representam o lado do bem (porque o equilíbrio,
afinal de contas, é o bem supremo, já que é o desejo do
coração de Olodum), tanto que as pessoas costumam
dizer que existe um arro para contrapor cada um dos
ajoguns, que são os diabos que levam o mal ao mundo,
ESPINHEIRO AMBULANTE também como parte do plano divino.
• ABERRAÇÃO • Mas, ao contrário dos ajoguns, os arros não gostam
nem um pouco de permanecer em Aiyê – eles pertencem
Uma pessoa que, vitimada por uma urucubaca
ao Orun e apenas ao Orun, então não têm qualquer
sinistra, transformou-se em uma monstruosidade
prazer nas coisas mundanas e nas pessoas. Quando
coberta de espinhos. Os espinheiros malditos cresceram
vão ao mundo material, é por obrigação: ou mandados
por todo o corpo, tornando irreconhecível a criatura que
pelos orixás ou requisitados pelos ancestrais de algum
está por baixo. O ori, da mesma forma, foi tomado pela
povo, que também intercedem pelos vivos. Os arros
praga, e a pessoa não consegue mais falar ou raciocinar
são guerreiros, mas seus poderes vão muito além da
direito. Passa a agir como bicho, vivendo apenas para
destruição. Eles curam, abençoam, protegem, espantam
perambular na mata e caçar tudo o que se move.
os maus espíritos e podem, inclusive, emprestar esses
Os espinhos se alimentam de sangue. Se ficarem dons aos mortais durante curtos períodos. No entanto,
muitos dias em jejum, passam a absorver o sangue do eles só interferem em Aiyê quando é absolutamente
hospedeiro amaldiçoado e, em casos extremos, podem necessário, ou seja, quando a caca é grande e fedida o
matá-lo de vez. Segundo a lenda, a maneira mais prática bastante para incomodar até os deuses. Um exemplo de
de lidar com um espinheiro ambulante é ateando fogo. situação dessa magnitude é o risco do ressurgimento
As chamas consomem os espinhos e deixam livre a da Fratura e seus demônios, algo capaz de pôr fim ao
criatura debaixo. Só que isso não é de fato uma cura, universo inteiro – aí a cavalaria entra em ação, unindo-
porque os espinhos voltam a crescer depois de algum se aos mortais para lutar contra a potencial ameaça.
tempo, sendo necessário um tratamento espiritual
adequado para dar fim ao problema.
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HOMEM-LEOPARDO
• ABERRAÇÃO •
Tempos atrás, Osebo, o leopardo de dentes
terríveis, lançou uma maldição escabrosa sobre um
rei chamado Ekpê, condenando o monarca orgulhoso
a se transformar em um homem-leopardo, uma fera
assassina e descontrolada, toda vez que anoitecia.
Segundo a lenda, a força da fera era tão tremenda que
a cidade que Ekpê governava acabou destruída por
completo pelas garras do próprio rei, e nem soldado
nem feiticeiro algum foi capaz de protegê-la. Mas a
história não termina aí, porque os descendentes de
Ekpê também herdaram a maldição de seu ancestral.
Sempre que esses descendentes são atacados e mortos
por outros homens-leopardos, a maldição desperta
e eles voltam à vida como aberrações sedentas de
sangue. Quando a noite chega, eles se transformam e
saem num frenesi homicida, matando e estralhaçando
quem aparecer na frente.
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Muitos dos povos izimus vivem como nômades. Eles
são capazes de domesticar elefantes e gnus-lanosos para
que carreguem seus pertences e arrastem as refeições
capturadas. Às vezes os prisioneiros são libertos, mas
apenas para serem perseguidos novamente pelos
rapazes mais jovens, que dessa maneira aprendem a
caçar. Entre os izimus, aquele que captura a presa deve
ser o mesmo que abate e o mesmo que cozinha. A
culinária é para eles uma arte sagrada, então
também fica a cargo dos homens. Manipular
carne de gente pode ser perigoso, já que,
se os devidos rituais de purificação não
forem executados da forma adequada,
os fantasmas assombrarão toda a
tribo. Esse é um dos motivos que
levam os izimus a terem tanto medo
dos eguns, os espíritos dos mortos.
Eles não cultuam os ancestrais e
muitos se esquecem até dos orixás,
tanto que aprendem a fazer mironga.
IZIMU
• GENTE •
Esses grandalhões podem alcançar quase 3 metros
de altura e são fortes como rinocerontes. Sendo
descendentes de Dhegdheer a Canibal, os izimus têm o
costume e a necessidade de comer a carne de criaturas
inteligentes. Todo tipo de gente entra no cardápio. Não
à toa, essa raça é odiada por muitos, já que sequestra
caravanas, ataca aldeias e cozinha os prisioneiros
com cebola e pimenta. Para os izimus, devorar os
oponentes caídos é uma forma de absorver suas forças.
Tanto as crianças quanto os adultos só se desenvolvem
física e mentalmente ao comer carne de pessoas. Se
não forem bem alimentados, os bebês continuarão
nanicos e burros até que morram de alguma doença.
Os guerreiros, da mesma forma, se tornarão fracos e
carecas. Entre os homens izimus, os cabelos grandes
e bem cuidados são prova de saúde e competência
na caçada.
83
KPONUNGO potencial energético dos kiinis não pode ser aproveitado
plenamente quando os cristais se encontram no estado
• MONSTRENGO • natural. Por esse motivo, os cientistas da antiguidade
descobriram métodos para refiná-los e enriquecê-los
Por sua escassez e insubstituibilidade, os kiinis, de forma que se tornassem mais eficientes. A depender
que são os cristais do poder, tornaram-se um dos de quanto e como foram tratados, os kiinis assumem
mais valiosos materiais de Aiyê. Hoje em dia, as diferentes cores e intensidades de brilho, sendo a forma
pessoas que de alguma maneira põem as mãos em vermelha a mais poderosa e instável. E é essa a cor
kiinis energizados, ou seja, kiinis que não perderam dos cristais que crescem no corpo do kponungo depois
suas propriedades mágicas ao longo das eras, podem dele consumir sua forma bruta.
mudar de vida ao vendê-los por fortunas ou utilizá-
los para abastecer artefatos antigos de capacidades Também chamado papa-cristal e cospe-fogo, o
extraordinárias, desde armas de destruição em massa kponungo é um réptil de aparência aterrorizante,
até câmaras de rejuvenescimento. coberto por uma couraça grossa que armas comuns
não conseguem sequer arranhar. Nas costas, a criatura
No entanto, a cada ano que se passa, os kiinis se ostenta uma fileira de grandes cristais vermelhos
tornam mais difíceis de encontrar – muitas ruínas já capazes de iluminar a escuridão de seu covil. O
foram saqueadas, muitas minas, exauridas, e encontrar kponungo tem um corpo comprido, mas anda sob
novas fontes do cristal não é tarefa simples. A não ser, é duas patas na maior parte do tempo, embora às vezes
claro, para criaturas como o kponungo, que se alimentam também use as patas dianteiras, menores e menos
da energia dos kiinis. Monstros assim parecem ter potentes, como suporte. A cabeça é munida de uma
algum tipo de sexto sentido que os leva diretamente aos bocarra ameaçadora e repleta de dentes afiados e quase
cristais. Enquanto ricaços e pesquisadores investem indestrutíveis, capazes de mastigar cristal, pedra e,
tempo e recursos com a exploração de novos territórios quando necessário, a carne dos inimigos. Como um de
na esperança de encontrar kiini, o kponungo e outras seus apelidos sugere, o kponungo pode cuspir imensas
feras de hábitos semelhantes vão direto de ruína em labaredas de fogo vermelho, quentes o bastante para
ruína, mina em mina, só para devorarem os cristais e derreter metal e rocha.
permanecerem vivos.
São vários os relatos de ataques de kponungo.
O kponungo é uma monstruosidade reptiliana que, Esse monstrengo é o terror dos exploradores e dos
há muito tempo, adaptou seu corpo para consumir kiini extratores de kiini. Embora ele passe a maior parte
e nutrir-se de sua energia mágica, mas não apenas isso do tempo hibernando – seus cochilos podem durar
– ele também é capaz de potencializar os cristais ao centenas de anos – o kponungo desperta sempre que
ingeri-los, reproduzindo de maneira natural e orgânica percebe alguma ameaça à sua comida, os cristais de
algo que os povos da Primeira Era precisavam de energia. Muita gente acredita que esse bicho é um
usinas enormes para fazer. Para quem não sabe, o flagelo divino que recai sobre aqueles que insistem em
84
futucar o passado, mexendo com artefatos profanos que Hoje em dia, o leão-coruja é encontrado por quase
podem destruir cidades ou fazer voar gente que nasceu toda Aiyê e, não raramente, causa problemas para
sem asas. Quando se ouvem os berros de mineiros muitos vilarejos. Além de dar prejuízo aos pastores
desesperados e o som de picaretas sendo reduzidas de cabras e criadores de gado, torna-se um perigo
a cinzas, sabe-se logo que um kponungo acordou de para caçadores imprudentes, que os perseguem para
mau humor. roubar-lhes as penas da juba, muito valiosas.
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“barulhenta”, e tem gente que usa os esporões desse de nanabolelê!?”, Thekena berrou. Mas Misalo deu
bicho como instrumentos musicais. de ombros.
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compadeceu. “Vim livrá-la dos nanabolelês. Leve-me
até eles!”, falou sem pensar, estufando o peito como
se fosse heroína.
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ouro? Pitangas! Esses nanabolelês devem ter roubado sem nem pensar direito, arremessou algumas sementes
os tesouros das pessoas lá de cima, coitadas. Acho que contra a criatura, que acabou engolindo uma delas. No
é melhor eu levar isso comigo. Vou levar tudo, aliás”. mesmo instante, o nanabolelê explodiu e de dentro
dele saiu uma árvore imensa que cresceu, cresceu e
E Thekena, ainda empolgada pela vitória, continuou cresceu, destruindo a casa e subindo até a superfície
falando sozinha e cada vez mais alto, sem perceber que da lagoa. Thekena subiu também, presa aos galhos
alguém poderia ouvi-la. Lá no fundo do lago era difícil do enorme baobá, e de lá pôde saltar para a margem
ver qualquer coisa – estava muito escuro, e o sangue e fugir correndo. Mas os outros nanabolelês, furiosos,
brilhoso do nanabolelê, que manchava o chão e escorria continuaram a persegui-la. Flutuando e grunhindo atrás
da ponta da lança, era tudo o que iluminava o ambiente. da garota, eles eram acompanhados pelas nuvens de
Só que Thekena continuou tateando os móveis e as sangue e pela névoa escarlate, seu couro reluzindo na
cumbucas de osso à procura de mais tesouros para escuridão da noite. Só que toda vez que os nanabolelês
colocar na bolsa, que ficava cada vez mais cheia e se aproximavam, Thekena jogava algumas sementes
pesada. De repente, o lugar todo se aclarou com uma encantadas no chão e cuspia em cima, criando uma
luz mais intensa e vermelha, e uma névoa sinistra surgiu grande barreira de baobás, e assim ela fez ao longo
para encobrir as paredes. Thekena olhou para trás e deu de todo o caminho de volta para casa.
um grito de pavor: eram outros nanabolelês, talvez uns
dez deles, quase tão grandes, gordos e mal-encarados Chegando em Shotoba, Thekena gritou por socorro:
quanto o primeiro. No susto, Thekena arremessou a “Boa gente, cadê você!? Vem aí nanabolelê!”. Como não
lança na direção do monstro mais próximo, atingindo-o havia na tribo guerreiro algum que pudesse defendê-
no peito, mas a lança se partiu em duas sem causar la, as mulheres pegaram as enxadas dos maridos,
nem um arranhão. as crianças cataram pedras para arremessar e os
velhos fizeram suas macumbas, mas bastou verem
O nanabolelê avançou, flutuando na direção da o nevoeiro rubro se movendo em sua direção para
garota com os braços abertos e a boca medonha que todos voltassem correndo para casa. “Soltem os
escancarada. Thekena tentou correr, mas o monstro cachorros!”, Misalo ordenou, pondo apenas a cabeça
rapidamente a encurralou num canto. Fim da linha! Não para fora do mofato. “São nossa última esperança”, ele
tinha mais saída. Quando estava prestes a virar janta, completou. E assim foi feito. Os cães, que já não comiam
Thekena tirou da bolsa o saquinho que a velha deu e, havia tempo, correram para cima dos nanabolelês,
latindo e babando como loucos, e os inimigos não
pensaram duas vezes antes de dar meia volta e bater
em retirada. Descobriu-se aí que nanabolelês só têm
medo mesmo é de cachorro – nada os assusta mais
que o rosnado do Totó. A matilha os perseguiu até os
confins do mundo, e nenhum deles foi visto outra vez
pelo povo de Shotoba.
NDZOODZOO
• MONSTRENGO •
Parece um cavalo, só que maior, mais arisco e
armado com um grande chifre pontudo no alto da
cabeça. O ndzoodzoo é uma espécie de unicórnio, mas
a mágica mais incrível que ele faz é cravar o chifre no
teu traseiro e fazê-lo sair pela boca. O bicho é bruto,
não gosta de gente, principalmente dos idiotas que
acham que podem domá-lo. Aviso: não podem. Muitos
já morreram tentando. Se o ndzoodzoo não deixar, nem
homem nem orixá algum monta em cima dele. Ele é
uma máquina de correr, pular, coicear e empalar, feita
de músculo e liberdade.
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pedra, tornando-se quase impenetráveis quando a
raiva atinge o ápice. Flechas, lanças, explosivos, não
RELICTO
importa – poucas coisas nesse mundo são capazes • BICHO •
de ferir gravemente um ndzoodzoo fulo da vida. Para
vencer um bicho desses, é preciso pegá-lo de guarda Lagartos terríveis, bestas do mundo antigo, os
baixa, enquanto está dormindo ou pastando, porque só primeiros habitantes de Aiyê. Criaturas grandes
nesses momentos o corpo relaxa e o chifre fica mole, e pequenas que, no começo dos tempos, durante a
balançando de um lado para o outro que nem bilau de primeira guerra entre os orixás, enquanto o solo se
velho, e aí dá pra atacar. abria, fogo caía e rochas voavam, fugiram para as bordas
do mundo para que pudessem sobreviver. Hoje vivem
nas ilhas isoladas, separadas do continente pela fúria
dos deuses, ou nas selvas longínquas que ninguém
se deu o trabalho de explorar. Quando entram em
contato com a civilização, os relictos são tratados como
monstros, feras indomáveis que devem ser abatidas o
quanto antes – ou, se isso não for possível, das quais é
melhor manter distância. Mesmo assim, nas regiões que
beiram as terras proibidas, ainda se ouvem lendas de
tribos que convivem com essas criaturas, domesticando-
as, caçando-as, ou simplesmente resistindo a elas.
» EMELA-NTOUKA «
Também chamado chipekwe ou irizima, esse
brutamontes foi armado pelos orixás com um chifre
comprido no focinho – para que pudesse empalar seus
adversários – um grande escudo ósseo sobre o crânio,
cheio de pontas – para proteger a cabeça e o pescoço dos
predadores atrozes – e uma couraça grossa, difícil de
OGRÓBORA penetrar – para servir de armadura ao restante do corpo.
O emela-ntouka é uma fortaleza de carne e osso. Maior
• ABERRAÇÃO •
e mais resistente que qualquer rinoceronte, consegue
Solo amaldiçoado pode dar origem a muitas ainda ser mais veloz na corrida. Ataca qualquer coisa
aberrações diferentes, desde elokos a mortos-vivos. que pareça minimamente uma ameaça, quase sempre
Uma ogrobóbora é uma vegetal que, absorvendo a derrubando-a numa só investida. “Mata-elefante” é um
essência de um terreno enfeitiçado, adquire proporções de seus apelidos, e sua caveira enorme é troféu valioso
gigantescas e, como não poderia faltar, o instinto para os caçadores mais audaciosos.
assassino de devorar todo bicho e pessoa que estiver
por perto. Por serem mais sensíveis ao axé, abóboras
e cabaças são os vegetais mais afetados por esse tipo
de maldição, mas existem também histórias de frutas
e arbustos que ganharam vida.
89
» MOKELE-MBEMBE «
Um gigante pescoçudo de quase vinte metros de
altura, grande o bastante para pisotear um
hipopótamo e para olhar a mais alta das
girafas com desdém. Só que, mesmo
com todo esse tamanho, o mokele-
mbembe está entre as espécies mais
pacíficas de relictos – ele se alimenta de
folhas das copas das árvores e, se não
for perturbado, também não perturba
ninguém. Vive às margens de grandes
rios e lagos onde pode se refrescar e só se
afasta da água quando a comida acaba ou a
seca bate com força. Nessas horas, ai de quem
ficar no caminho, porque moleke, tendo a cabeça
tão acima do solo, não faz questão de olhar para baixo.
Quem não fugir a tempo pode acabar esmagado por
quarenta e tantas toneladas de réptil (e não dá nem
pra pôr a culpa no grandão).
» LUKWATA «
Ainda há por aí tolos que almejam, em sua ganância
e curiosidade desmedidas, explorar as terras inóspitas
das bordas do mundo. Alguns planejam longas
viagens de barco através daqueles rios e pântanos
que o tempo esqueceu, pensando ser esse o caminho
mais fácil para chegar às riquezas que se escondem
nas paisagens misteriosas do butico de Aiyê. Mulas
esclerosadas, todos eles! Nem suspeitam dos perigos
que se ocultam nas águas turvas de lugar-nenhum!
Os dentes cruéis; a cauda comprida e arredia, feita
para o naufrágio e a ruína dos néscios; as escamas
de um cinza esverdeado e mortal, blindagem de um
corpo enorme, monstruoso como poucos. Lukwata! A
besta que leva os desbravadores mais ousados à sua
última expedição: as entranhas insondáveis de um
relicto faminto.
» MBIELU-MBIELU-MBIELU «
Um relicto quadrúpede, baixinho e comprido que tem
um vários pares de placas e estacas ósseas nas costas,
sua única defesa contra predadores. O mbielu-mbielu-
mbielu, chamado também de mbielu-mbielu pelos mais
íntimos, é um herbívoro que com frequência serve de
jantar para feras maiores e famintas por carne. Para
se proteger, ele balança a cauda espinhosa contra os
inimigos, perfurando-os caso se aproximem demais.
Fora isso, o mbielu-mbielu-mbielu não é lá um grande
guerreiro, então compensa a vulnerabilidade andando
sempre em manadas. As maiores delas podem reunir
centenas de indivíduos, e é comum vê-las pastando em
campos abertos ou bebendo água nas margens dos rios.
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SHULUWELÊ belas, os cogumelos mais exóticos, e algumas espécies
vegetais e animais, quase extintas pelas Hecatombes
• GENTE • e pelo desmatamento, só sobreviveram nas aldeias
dessa gente, nos jardins altos, em cima das casas e
Em Aiyê, poções e elixires exercem papéis debaixo delas.
fundamentais na vida cotidiana. São capazes de curar
doenças, ferimentos e maldições mortais. Podem Na sociedade dos shuluwelês, a sabedoria das
fortificar o corpo e o espírito, concedendo aos usuários, folhas é passada de pais para filhos – nenhum cata-
mesmo que por um breve momento, dons incríveis que, plantas chega à fase adulta sem conhecer os nomes,
sob outras circunstâncias, seriam possíveis apenas na características e funções de ao menos mil e tantas
presença de um feiticeiro experiente. O herbalismo é espécies, ou sem ter cultivado sozinho algum tipo raro
uma tradição presente em quase todo lugar, útil para de arbusto, ou sem ter cuidado e alimentado de um
reis e para camponeses, necessária para contornar beija-fogo-da-caverna desde o ovo. A harmonia plena
os diversos e infindáveis males que o mundo impôs e com a natureza é o princípio de vida dos shuluwelês,
impõe aos mortais de todas as eras. e o seu conhecimento sobre o mundo que os cerca
se acumula e se aprimora a cada geração. Eles são
Por isso, até na mais paupérrima das aldeias existe todos filhos de Saim, aprendizes do orixá das ervas,
a clássica figura da velhinha que sabe a fórmula de das misturas e de toda a magia que brota da terra.
algum chá especial – com gosto de pé sujo e mijo Eles adquirem o saber, desenvolvem-no até o limite
de gato, necessariamente, mas capaz de tratar dor e, se for proveitoso, compartilham-no com os outros.
de ouvido, amenizar as cólicas, tirar o catarro do
pulmão ou expulsar as lombrigas. Muitos babas, se
não todos, conhecem ao menos uma dúzia de ervas
com propriedades curativas ou que espantam o mau-
olhado. Nas grandes metrópoles, também se encontram
mandingueiros especializados na fabricação de elixires
mágicos (mas esses costumam trabalhar para reis,
rainhas e quem mais puder pagar por seus serviços).
Seja como for, um pouco de herbalismo (ou alquimia,
que é outro nome chique para a coisa) é conhecimento
básico para qualquer feiticeiro que se preze.
Todo mundo que mexe com poções já ouviu falar Toda comunidade shuluwelê tem entre si alguns
deles, os shuluwelês. Em algumas regiões, eles têm membros que viajam para longe no intuito de trazer
fama de criaturas místicas, seres do Outro Mundo, para casa novos tipos de vegetais e bichos, e outros,
guardiões que surgem para prestar socorro aos mortais ainda, que visitam aldeias de diferentes raças e
trazendo os ingredientes mágicos que ninguém mais culturas para trocar com elas todo tipo de ingrediente
consegue achar. Noutros lugares, porém, já se sabe e informação. Através desses, os babas e demais
que são um povo pacato que vive no miolo da selva, feiticeiros obtém os elementos que precisam para
isolado de tudo e todos, e que conhece cada planta e fabricar suas poções e também aprendem novas
cada bicho como a palma da mão. Os shuluwelês vivem fórmulas maravilhosas para curar o povo e envenenar
das ervas, do solo e da alquimia. Se não conhecem a os inimigos. Mas os shuluwelês, tendo uma natureza
função de certa folha ou castanha, levam-na para casa tão tímida, preferem que os encontros ocorram em
e tratam de descobrir. Cultivam as trepadeiras mais locais reservados, longe dos olhares curiosos, e nas
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conversas só falam o estritamente necessário, jamais
revelando a localização de suas aldeias de origem ou
os detalhes de suas jornadas.
TANO
• MONSTRENGO •
O gigante de Tano é um primata enorme, mais
alto que qualquer homem, coberto de pelos brancos
e grossos que o protegem do frio da montanha, seu
habitat. É uma criatura maliciosa e que gosta de causar
sofrimento. Captura cabras, raposas e crianças e as
devora pedacinho por pedacinho enquanto ainda vivas,
por vezes esfolando-as antes da refeição. Na lenda do
herói Sarajiva, conta-se que tanto a mãe quanto os
AINDA TEM MUITO MONSTRO PRA ENTRAR
irmãos dele foram sequestrados e desmembrados por NO BESTIÁRIO. NA PRÓXIMA ATUALIZAÇÃO,
um tano, e o único jeito de espantar o monstro para
longe da vila foi usando tochas, pois os tanos temem DEVO ACRESCENTAR MAIS DELES. DEPOIS
o fogo mais do que qualquer outra coisa. Eles são
um perigo para quem se aventura nos picos nevados
DISSO, A META É DISPONIBILIZAR AS
da Cordilheira Branca e nas trilhas montanhosas de ESTATÍSTICAS DE CADA UM.
outros cantos de Aiyê.
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