Oscar Niemeyer de Vidro e Concreto 2011
Oscar Niemeyer de Vidro e Concreto 2011
Oscar Niemeyer de Vidro e Concreto 2011
Ninguém nunca viu um lugar vazio. Quando alguém olha, já não está vazio
– o que olha, o olhar e o lugar são um mesmo. Sem alguém não há olhar
nem tampouco lugar.
1
SAER, Juan José. Ninguém Nada Nunca. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Sumário
Apresentação..................................
Prefácio...........................................
Prolegômenos .................................
Praças e largos................................
Natural x construído......................
Atributos da pele............................
... outra vez feto.................................
Epílogo..........................................
APRESENTAÇÃO
Frederico de Holanda
2
FICHER, Sylvia, SCHLEE, Andrey (orgs.). O arquiteto Oscar Niemeyer. Empresa das artes (no prelo).
AR LUZ RAZÃO CERTA
Salvo engano, Stamo Papadaki é o autor da primeira monografia publicada sobre a obra de
Oscar Niemeyer levada ao público internacional, alguns anos após a edição do clássico Bra-
zil Builds,3 responsável por revelar para o mundo as espantosas realizações da arquitetura
moderna brasileira. Na introdução do seu The work of Oscar Niemeyer, o primeiro de três
livros dedicados ao arquiteto,4 Papadki ecoa o que a historiografia nacional já cristalizara
como os fatores da emergência daquele magnífico conjunto arquitetônico:
3
GOODWIN, P. L. Brazil Builds: architecture new and old, 1652-1942, Fotografias de G. E. Kidder
Smith. New York: The museum of Modern Art, 1943, 190 p.
4
Stamo Papadaki é o autor de três monografias sobre o arquiteto: PAPADAKI, S. The work of Oscar
Niemeyer. New York: Reinhold Publishing Corporation, 1950, p. 220; PAPADAKI, S. Oscar Niemeyer:
works in progress. New York: Reinhold, 1956. 192p.; PAPADAKI, S. Oscar Niemeyer. New York:
George Braziller, 1960. 127p.
nam de uma qualidade particular ao atender às demandas funcionais do programa: “Nie-
meyer sabe conceber e justificar o espaço empírico que cria distâncias, perspectivas, ilhas de
repouso, necessárias às relações naturais entre pessoas sob o mesmo teto.” Há em Papadaki a
sensibilidade para perceber a habilidade de Niemeyer para lidar com a matéria prima da
arquitetura – o espaço, e conformá-lo para garantir, em condições diversas, a interação entre
pessoas.
Em De vidro e concreto, Frederico de Holanda se debruça sobre o espaço das arquite-
turas de Niemeyer. O autor nos apresenta uma análise acerca da relação entre espaço interi-
or e espaço exterior – melhor, uma crítica acerca do gesto manipulador do envelope arquite-
tônico. Longe de querer abarcar a grandeza e complexidade de uma obra em pleno desen-
volvimento, o estudo crítico é precioso por revelar a sabedoria do arquiteto ao lidar com a
função precípua da arquitetura – constituir ambientes para o usufruto do homem. Revela,
também, que obras recentes são menos eficientes na promoção de uma intensa e permanen-
te mistura de corpos e desejos no contexto das cidades contemporâneas.
Segundo Hillier,5 ocupação e movimento são as funções genéricas do espaço arqui-
tetônico. Toda parcela de espaço permite que o ocupemos para o desenvolvimento de ativi-
dades as mais diversas, bem como para o deslocamento dos nossos corpos. A ocupação e o
movimento são condições necessárias para a construção da relação entre pessoas – estar pre-
sente no mesmo espaço ou estabelecer contato visual em um mesmo ambiente ou em ambi-
entes distintos são condições mediadas pelas características materiais e espaciais da arquite-
tura. Copresença e cociência são, portanto, mecanismos socioespaciais fundamentais para a
estruturação do nosso cotidiano.
A relação entre os espaços livres e contínuos, que definem os espaços urbanos por
excelência, e os espaços fechados e descontínuos, que compõem as edificações, constitui, em
certa medida, o grau de copresença e cociência das áreas públicas e, por consequência, as
maneiras como movimento e ocupação se manifestam nas nossas cidades. Cada edificação é
responsável, por meio do seu envelope, por constituir as relações de acesso e visão entre as
duas esferas – a pública e a privada –independentemente das atividades que abriguem ou
dos atributos simbólicos que a elas tenham sido atribuídos. Portanto, todas as arquiteturas
5
HILLIER, B. Space is the machine: a configurational theory of architecture. Cambridge: Cambridge
University Press, 1996.
desempenham o mesmo papel, independente de seus valores – como bem ou signo, nos
dizeres do autor.
Ao olhar para a obra de Oscar Niemeyer sob tal enfoque, Holanda questiona em
que medida suas edificações contribuem para a caracterização dos espaços urbanos nos quais
estão inseridos. Essa, digamos, dessacralização (ou desmistificação) de obras emblemáticas
da arquitetura do século XX, como o Ministério da Educação e Saúde Pública, renomeado
como Palácio Gustavo Capanema, no Rio e Janeiro, o conjunto da Pampulha, em Belo
Horizonte, o Parque do Ibirabuera, em São Paulo, e a Catedral de Brasília, na capital fede-
ral, para citar apenas algumas obras analisadas pelo autor, permite a construção de um arca-
bouço reflexivo para além das curvas, das massas, do barroco e dos trópicos ensolarados.6
Se a arte de projetar é a arte de ordenar a vida humana, Holanda nos mostra como
Niemeyer vai, em sua longa carreira, constituindo ambientes urbanos cada vez mais moder-
nos, segundo um progressivo enclausuramento dos ambientes interiores e uma distribuição
de portas e janelas que minimizam a possibilidade de copresença e cociência nas cidades que
abrigam suas obras. Se a obra de Niemeyer desenvolve-se de uma “arquitetura como cons-
truir portas, de abrir; ou como construir o aberto”, para uma arquitetura que “renegou dar
a viver no claro e aberto. Onde vãos de abrir, êle foi amurando opacos de fechar; onde vi-
dro, concreto; até refechar o homem”, segundo o lamento concreto de João Cabral de Melo
Neto, as consequências dessa transição para as cidades que as abrigam são (e serão) significa-
tivas. Os efeitos desse construir fechado, desse separar corpos, desse esvaziar vazios – princi-
palmente os urbanos – são percebidos por urbanitas de ontem e de hoje em seus cotidianos
progressivamente mais fechados, separados e vazios. O próprio Holanda nos descreveu,
preciosamente, a emergência de uma faceta particular do urbanismo moderno em seu texto
clássico A determinação negativa do movimento moderno.7 No contexto descrito, a obra de
Oscar Niemeyer não é excepcional. Pelo contrário, como tantas outras, contribui modesta-
mente – pois a emergência se dá pela promoção não coordenada de diversas ações singulares
– para a consolidação de uma forma particular de cidade.
6
A referida, digamos, moldura crítica é estimulada pelo próprio arquiteto: “Não é o ângulo reto que me
atrai nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, a
curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas ondas do mar, no
corpo da mulher preferida. De curvas é feito todo o universo, o universo curvo de Einstein” (NIEME-
YER, Oscar. Minha arquitetura – 1937-2005. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2005, p. 339.)
7
Ver HOLANDA, F. (org.). Arquitetura & urbanidade. São Paulo: Pro Editores, 2003.
No alvorecer do século XXI e do centenário do maior arquiteto brasileiro do século
passado, e quiçá deste, o desejo de edificar uma obra com sua assinatura é um desejo de
políticos interessados em consagrar uma marca pessoal para o futuro; de intelectuais apreci-
adores das manifestações tardias do nosso modernismo sedutor; de cidadãos comuns de
todo o mundo, pois suas obras sempre serão objetos do interesse das hordas cada vez maio-
res de turistas – afinal vivemos a era dos movimentos temporários e da economia do ócio e
do espetáculo. Afinal, para atender ao receituário dos empreendimentos renovadores de
paisagens urbanas faz-se necessária a presença de obra magnífica de autor magistral.
Para todos esses interessados em adquirir uma peça da grife ON, recomenda-se a lei-
tura atenta dos argumentos e análises que Frederico de Holanda nos apresenta. Espera-se
com isso que as próximas encomendas cheguem à emblemática cobertura da Avenida Atlân-
tica, no Rio de Janeiro, com algumas recomendações: queremos o Oscar urbanista arquite-
to, aquele que tão sabiamente nos contemplou com obras que prezavam pela plena intera-
ção entre espaços – os do interior e os do exterior, sejam eles das paisagens naturais ou das
urbanizadas – e promoviam o atrito desejável entre os belos corpos dos cidadãos do mundo.
Vida longa para o Oscar Niemeyer urbanista, “quando é mais arquiteto”!
Vida longa para a pena arguta e precisa de Frederico de Holanda!
Vida longa para nossas arquiteturas e cidades plenas de “ar luz razão certa”!
Luiz Amorim8
8
Professor Associado II da Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador I do CNPq.
OSCAR NIEMEYER: DE VIDRO E CONCRETO
Fábula de um arquiteto
2.
Prolegômenos
O texto trata das relações espaço interno x espaço externo na arquitetura de Oscar
Niemeyer. Como o arquiteto trata as relações? É possível identificar uma maneira dominan-
te? Houve transformações no aspecto ao longo do tempo? Que implicações podemos inferir
desta faceta do seu trabalho?10
Decerto há muitas formas de tratar as questões, a depender dos conceitos adotados.
No que se segue, estão explicitadas preliminarmente as ideias teóricas que subjazem o exame
subsequente das obras, ideias retomadas e desenvolvidas ao longo do texto. Indico os aspec-
tos a considerar, explico as razões da escolha, sugiro o que podemos ganhar com esse ferra-
mental analítico.
As noções de espaço interno e de espaço externo estão na base do gesto artefatual
arquitetônico elementar: delimitação de uma porção do espaço, retirado do espaço da natu-
reza em geral, por meio de um “filtro” – invólucro formado por piso, paredes, teto, elemen-
9
MELO NETO, João Cabral de. Poesias completas (1940-1965), p. 20-21. Mantive a ortografia do origi-
nal.
10
A pesquisa que embasa o ensaio teve o suporte de Bolsa de Produtividade em Pesquisa do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPQ, conferida ao autor.
tos diversos (como as superfícies curvas em concreto de Niemeyer), ou até por simples ve-
dação de quaisquer materiais à entrada de uma gruta. O invólucro filtra atributos do espaço
natural, cria espaço transformado, adequado a fins práticos (arquitetura como valor de uso
material, como bem) e expressivos (arquitetura como valor de uso ideal, como signo)11. As
expressões – bem e signo – sintetizam as duas maneiras mais amplas pelas quais a arquitetura
desempenha seu papel12.
A arquitetura como artefato implica os elementos: 1) invólucro ou a “pele” do espa-
ço, que por meio de fechamentos ou aberturas, opacidades ou transparências, define 2) es-
paço interno, de atributos determinados pela natureza da pele (luz, ruídos, temperatura,
aromas, diversas possibilidades de movimento e visibilidade), distinto do 3) espaço externo
com o qual o espaço interno se relaciona em função dos atributos da pele (vazamentos ou
transparências quaisquer)13. Muitas são as soluções que articulam espaço externo e espaço
interno através da pele; mas uma sintaxe parcimoniosa subjaz a essa articulação, redutível a
duas maneiras de variabilidade, ou categorias analíticas: 1) fechamento/abertura ao movi-
mento das pessoas e 2) opacidade/transparência à visão. A primeira – fechamento/abertura
– refere-se à relação física entre lugares, à possibilidade de movermo-nos diretamente entre
dentro e fora; é um aspecto essencialmente prático, instrumental, de acessibilidade, que
constitui a arquitetura como bem. (“Fechamento” é utilizado lato sensu: inexistência de por-
tas a vazar fachadas ou quaisquer artifícios a afastarem interior de exterior – escadarias que
levam ao piano nobile,14 espelhos d’água que cercam prédios, fossos, diferenças de nível ven-
cidas por rampas etc.) A segunda – opacidade/transparência – refere-se à percepção visual
entre dentro e fora, à possibilidade de termos ciência do que está do outro lado de um plano
11
O “signo” surge quando há um esforço investido no artefato, para além do estritamente utilitário. (Não
há cultura que se satisfaça em tratar os artefatos – quaisquer que sejam – apenas como objetos úteis.) Na
arquitetura, edifícios ou conjuntos edificados deixam de ser exclusivamente abrigos contra os elementos
da natureza, ou construções organizadas em função das atividades a que servem, para tornarem-se lingua-
gem que representam valores coletivos, sinais pelos quais a cultura reconhece a si própria, objetos que
visam a beleza. (PULS, Maurício. Arquitetura e filosofia, p. 27-28.)
12
Noutra oportunidade desdobrei os “aspectos de desempenho” da arquitetura em oito categorias: funcio-
nais, bioclimáticos, econômicos, sociológicos, topoceptivos, afetivos, simbólicos e estéticos. Os quatro
primeiros constituem o desempenho da arquitetura como bem e os quatro últimos como signo, embora
essas fronteiras não sejam absolutas. Os “aspectos de desempenho” subjazem a análise realizada aqui,
mas vêm para o primeiro plano os atributos da obra, que podem incidir, como geralmente o fazem, em
vários tipos de desempenho. (Para as definições dos aspectos ver HOLANDA, Frederico de. “Arquitetura
sociológica”; “topoceptivo” é neologismo criado por KOHLSDORF, Maria E. A Apreensão da Forma da
Cidade, e diz respeito às questões de orientabilidade e identidade visual em arquitetura.)
13
A idéia inspira-se na definição de “célula elementar” de Hillier & Hanson, embora não coincida intei-
ramente com ela (HILLIER, Bill, HANSON, Julienne. The Social Logic of Space).
14
O primeiro pavimento a partir do qual se localizam as funções “nobres” de edifícios públicos ou resi-
dências senhoriais – casas de engenho no nordeste brasileiro, sedes de fazendas do café, villas aristocráti-
cas italianas etc. No térreo estão serviços de apoio, dependências de empregados etc.
ou barreira qualquer, à faculdade de vermos através da pele; é um aspecto essencialmente
expressivo, que constitui a arquitetura como signo15. A pele, simples ou elaborada, é mani-
pulada para que tenhamos mais ou menos facilidade para passar entre dentro e fora, mais
ou menos condições de ver entre interior e exterior. É tudo, para o que nos interessa aqui.
De um campo de variabilidade assaz singelo brotam incontáveis soluções arquitetônicas,
como na literatura são ilimitadas as possibilidades de emprego do finito léxico.
Situações-limite exemplificam a tipologia. As Grandes Pirâmides de Gisé ilustram
polos extremos de ambas as maneiras de variabilidade: massas totalmente opacas e volumes
totalmente fechados, cuja acessibilidade ao interior (túmulo) está bem acima do nível do
solo, mascarada pela utilização do mesmo material do invólucro (pedra) para vedar a aber-
tura. Opacidade e fechamento são maximizados (obras mais recentes de Niemeyer ilustrarão
algo muito próximo do tipo). O contrário está, por exemplo, no Parque do Flamengo, de
Burle Marx, descontadas, para efeito de raciocínio, as barreiras do sistema viário expresso.
É, sim, um espaço transformado por filtros/peles a definirem múltiplos lugares no parque,
todos radicalmente abertos e transparentes entre si; elementos minerais (pisos duros, areia,
seixos) e vegetais (forrações, vegetação arbustiva ou arbórea) qualificam distintivamente os
vários pontos. Os invólucros são mínimos, mas reais. Num parque urbano não há paredes
nem teto, é o polo oposto pela transparência e abertura maximizadas. (Em intensidade bem
mais reduzida, que guardam contudo similaridades com o parque urbano, estão as super-
quadras brasilienses – não é por acaso que Lucio Costa denomina seu projeto “cidade par-
que”.) Entretanto, o lugar é artefatual, há modificações de luz e sombra, temperatura, vento
e ruído, manipulados para proporcionar determinados efeitos práticos ou expressivos, pou-
co importando se os elementos são emprestados à natureza. Vegetação e equipamentos dis-
persos funcionam como filtros a distinguir lugares: embora possa me mover (abertura ma-
ximizada) e ver (transparência maximizada) em quase todas as direções, há sítios mais ou
menos acessíveis, mais ou menos visíveis, distinções resultantes das peles entre eles. A dife-
renciação, além de favorecer a percepção de um todo estruturado e a conseqüente formação
de uma imagem forte em nossa mente, faculta a escolha por alguns sítios para permanecer,
15
“Essencialmente”, num caso e noutro, porque a maneira de variabilidade “fechamento/abertura” tam-
bém pode constituir a natureza do signo (como num castelo do vale do Loire), e a maneira “opacida-
de/transparência” também pode ser instrumental, como no caso da vigilância no “panóptico” de Jeremy
Bentham (estudado em FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir – nascimento da prisão).
ou por certos caminhos a percorrer, por mais confortáveis, sensorialmente estimulantes,
belos, ou simplesmente por melhor corresponderem a nossas preferências individuais.
Entre os extremos, mui variado é o repertório, a constituir realidades culturais diver-
sas ou visões de mundo do artista16. Na “Casa de Vidro”, Philip Johnson maximiza a trans-
parência do espaço doméstico para o exterior e cria uma luz genérica, “plana”, dentro da
casa. Richard Meyer faz parecido na Casa Douglas. Para contrastar, essa luminosidade é
impensável na morada japonesa – o jogo entre opacidade e transparência e as esquadrias
com papel translúcido proporcionam mediação sutil entre dentro e fora, permitem elabora-
das diferenciações de luz e sombra, facultam “tépido aconchego” 17. (Decerto a Casa Dou-
glas, de Meyer, possibilita muitos afetos, mas “aconchego” entra na lista?...) Richard Neutra
define planos virtuais pelas esbeltas colunas e pérgulas em “pernas de aranha”, cria espaços
de transição entre interior e exterior onde luz, temperatura e ruído não são nem os de den-
tro nem os de fora. Luiz Barragán combina abertura e opacidade: portas abrem direto para a
rua, mas suas casas são feitas de pesados muros de alvenaria, a iluminação dos cômodos é
frequentemente zenital ou indireta, o oposto da arquitetura “desmaterializada” de Neutra.
O casario de uma cidade vernácula brasileira (Pirenópolis, GO, por exemplo – Fig. 1)18
combina a transparência das janelas para a calçada, que permite mútua visibilidade entre
morador e passante (facultando descontraída conversa, quem sabe dissimulado namoro),
com o estímulo à visita, pelas portas quase sempre abertas dos vestíbulos. Na marquise do
Parque Ibirapuera (Fig. 2), Niemeyer realiza espaço um pouco mais filtrado que o do Par-
que do Flamengo, de Burle Marx: além do piso mineral e da vegetação por onde a marquise
serpenteia a conectar os edifícios, há o teto, que qualifica outra luz e outra temperatura. Os
muxarabis da arquitetura colonial brasileira facultam duplicidade de olhares – os de dentro
vêem os de fora mas a recíproca não é verdadeira. Os maias da América pré-Colombo cons-
troem pirâmides (são eventualmente túmulos) com templos no topo (Fig. 3); as escadarias
nos flancos das pirâmides são artifícios que se interpõem entre a entrada do templo (espaço
sagrado) e o espaço do entorno (lugar público), afastando dentro de fora. Não é outra a
16
P.ex., na escala dos conjuntos edificados (aldeias, vilas, cidades, metrópoles), há relações entre fecha-
mento/abertura e desigualdade social (HOLANDA, Frederico de. O espaço de exceção).
17
“... sensação de tépido aconchego (...) nós, os japoneses, sentimos desassossego diante de objetos cinti-
lantes...” (TANIZAKI, Junichiro. Em louvor da sombra.).
18
As ilustrações do livro estão disponíveis em cores e maiores dimensões em
http://www.fredericodeholanda.com.br. Para outras publicações sobre a obra de Oscar Niemeyer com
boas ilustrações a cores, ver por exemplo: ANDREAS, Paul, FLAGGE, Ingeborg. Oscar Niemeyer – a
legend of modernism; NIEMEYER, Oscar. Minha arquitetura – 1937-2005.
função das escadarias à frente de palácios e casas-grandes e do piano nobile que lhes corres-
ponde: artifícios de separação, todavia mais amenos (Fig. 4). Também não é outra a função
de cercas ou muros que envolvem sucessivamente espaços mais reclusos de edifícios ou áreas
urbanas, como no Palácio de Versalhes ou na Pequim Clássica. Nesta, muralhas concêntri-
cas definiam, à vez, Cidade Externa, Cidade Interna, Cidade Imperial, Cidade Proibida
(Fig. 5). Uma época pode distinguir-se da anterior pela estratégia de opacidade ou fecha-
mento que adota: a cidade moderna difere da pré-moderna pela proliferação de muros cegos
– opacos e fechados. Os espaços especializados “de passagem” das vias expressas por onde
circula ininterrupto o fluxo motorizado e para onde nenhum edifício abre, contrastam com
espaços de permanência contidos nas ruas tradicionais. E não se diga, como Le Corbusier,
que a cidade moderna emula Veneza, na separação de ruas para pedestres e vias aquáticas
para gôndolas e vapores: umas e outras são intensa e continuamente “alimentadas” por por-
tas e janelas, o que não acontece no urbanismo moderno.
19
O livro impresso é em preto e branco. As fotos em cores aproveitam a possibilidade desta mídia.
Fig. 2. Marquise do Parque Ibirapuera, São Paulo.