Corpos Que Dançam

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ebook danca npc uma2022

Book · January 2023


DOI: 10.34640/universidademadeira2022diasneder

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4 authors, including:

Daiana Camargo
State University of Ponta Grossa
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Pesquisa continuada (Entre crianças, professores e contextos educativos: diferentes olhares para a Educação Infantil) View project

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Corpos que Dançam | 2022

I
Corpos que Dançam | 2022

Corpos que Dançam


N.PC-UMa | GPELBA- UEMG | 2022

DOI: 10.34640/universidademadeira2022diasneder

Propriedade
Universidade da Madeira (UMa)

Endereço
Caminho da Penteada, 9020-105 Funchal-Madeira-Portugal

ISBN: 978-989-8805-83-6

Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons


Atribuição-Não Comercial 4.0 Internacional.

Capa: Gabinete de Comunicação e Marketing | Universidade da Madeira

II
Corpos que Dançam | 2022

COORDENAÇÃO
Cristiane Pimentel NEDER1 | UEMG | GPELBA
Teresa NORTON DIAS | UMa | CEMRI – UAb

COMISSÃO EDITORIAL

André MEYER | UFRJ – Brasil


António LAGINHA | CLEPUL – Portugal
Cláudia Marisa OLIVEIRA | ESMAE – Portugal
Fernanda Carlos BORGES | Escola da Tenda – Brasil
Giselle RUZANY | Gestalt Dance, LPC – EUA
Helena KATZ | PUC/SP – Brasil
Mônica Medeiros RIBEIRO | UFMG - Brasil
Pedro Sena NUNES | CLEPUL e Associação Vo’Arte – Portugal
Sandra Meyer NUNES | UDESC – Brasil
Tales FREY | Cia. Excessos – Portugal

REVISÃO DE TEXTOS
Guida Mendes | UMa-CIE
Teresa Norton Dias | UMa / CEMRI-UAb

1
Pesquisadora Produtividade da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG-PQ).

III
Corpos que Dançam | 2022

ÍNDICE

Prefácio
Cristiane Pimentel NEDER & Teresa NORTON DIAS ...................................................6

1.
Alexandra NORONHA & Fernando ZANETTI
Memórias e lutas da Dança no contexto escolar brasileiro: um caminho sinuoso a
percorrer.............................................................................................................................9

Patrícia Taborda GALVÃO & Daiana CAMARGO


Olhares para a dança na prática pedagógica com crianças: o que e porque fazemos? ....27

Juliana dos Santos PINTO & Saionara Figueiredo SANTOS


Corpos que traduzem dança e recursos multimídia: um estudo de caso da interpretação
para Libras da música Se ela dança eu danço .................................................................37

Isabel FIGUEIRA
A Dança Relacional: Falar de Dança ou das Dinâmicas Cinéticas e Afetivas de um
Corpo em Movimento? ....................................................................................................51

2.
Cláudia MARISA
O corpo entre o Simulacro e a Vida ................................................................................66

Ana Lígia TRINDADE & Patrícia MANGAN


A arte da Dança e seu contexto profissional....................................................................74

Mônica Medeiros RIBEIRO & Cássio Eduardo Viana HISSA


Notas sobre pesquisa acadêmica em Dança ....................................................................94

Sandra MEYER
Danças em Pandemia: uma experiência performada .....................................................108

Giselle RUZANY
Embodied inquiry for choreography in film ..................................................................124

3.
António LAGINHA
Águeda Sena (1927-2019). O Espírito de Combate ......................................................143

Irma CAPUTO
Hélio Oiticica: Dança e Parangolé Zaratustra, um bem-aventurado leviano ................158

Cristiane Pimentel NEDER & Teresa NORTON DIAS


A dança expandida de Pina Bausch ...............................................................................177

Teresa NORTON DIAS


Há um espaço para Saramago em Bausch .....................................................................184

IV
Corpos que Dançam | 2022

EDITORIAL

Implementar e desenvolver a área das Artes Performativas numa Universidade é o


desejo de todos e todas que dedicam a sua vida, não só à prática performativa, mas
também ao seu estudo, com vontade de ajudar a criar massa crítica que equacione, de
forma sistemática e sustentada, métodos e pensamento durante séculos instituídos.
Abrimos uma chamada de contribuições, a que responderam investigadores(as) de
áreas diversas, fazendo convergir os seus contributos interdisciplinares, em aspetos
comuns e importantes para a comunidade que trabalha e estuda Dança. A estas
contribuições juntámos textos de membros da Comissão Editorial, que generosamente
aceitaram integrar este projeto de forma ativa e participada.
É com gosto que publicamos, na Universidade da Madeira/Portugal, em parceria com
a Universidade do Estado de Minas Gerais/Brasil, uma compilação de textos que
espelham a posição crítica do(a) investigador(a) sobre o tema da Dança e as problemáticas
que envolvem quem pratica. A todos e todas que nela aceitaram participar, o nosso muito
obrigada.
Cristiane Pimentel Neder & Teresa Norton Dias (Coord.)

***
To implement and develop the area of Performing Arts at a University is the desire of
all those who dedicate their lives, not only to performance practice, but also to its study,
with the will to help create a critical mass that systematically and sustainably equates
methods and thought that have been instituted for centuries.
We opened a call for contributions, to which researchers from different areas
responded, bringing together their interdisciplinary contributions, in common and
important aspects for the community that works and studies dance. To these contributions
we have added texts by members of the Editorial Board, who generously agreed to be
part of this project in an active and participatory way.
We are pleased to publish, at the University of Madeira/Portugal, in partnership with
the State University of Minas Gerais/Brazil, a compilation of texts that reflect the critical
position of the researcher on the theme of dance and the issues that involve those who
practice it. To all of those who agreed to participate in it, thank you very much.

Cristiane Pimentel Neder & Teresa Norton Dias (Coord.)

5
Corpos que Dançam | 2022

PREFÁCIO

A proposta de reunir em livro contribuições para o estudo da Dança foi um desafio


lançado no início de este ano, à comunidade internacional, a partir da Universidade da
Madeira/Portugal e em colaboração com a Universidade do Estado de Minas
Gerais/Brasil, numa vontade expressa que esta disciplina artística ganhe espaço no seio
da comunidade académica e que, com ela, se crie um lugar alargado de discussão.
Os contributos chegaram-nos de investigadores(as) dos Estados Unidos da América,
de Portugal e do Brasil, participando ainda, membros da Comissão Editorial e da
Coordenação deste livro digital.
A opção foi dividir-se a obra em três partes, em que na primeira Alexandra Noronha
& Fernando Zanetti, Patrícia Taborda Galvão & Daiana Camargo, Juliana dos Santos
Pinto & Saionara Figueiredo Santos e ainda, Isabel Figueira, se debruçam sobre
problemas relacionados com o ensino da dança no Brasil, o questionamento e a afirmação
dos profissionais da dança e o binómio corpo cinético e/ou movimento; uma segunda
parte, com contributos de Cláudia Marisa, Ana Lígia Trindade & Patrícia Mangan,
Mônica Ribeiro & Cássio Hissa, Sandra Meyer e Giselle Ruzany, dedicados à relação
corpo/vida, à reflexão sobre investigação em dança, a contextos dissuasores para esta
disciplina artística e a soluções para a criação coreográfica; e, por fim, uma terceira parte,
com contributos variados de António Laginha, Irma Caputo, Cristiane Pimentel Neder e
Teresa Norton Dias.
Não obstante os contornos geográficos das problemáticas avançadas neste livro, há
uma linha que torna comum as realidades apontadas e, essa linha tem o nome de DANÇA.
As dificuldades no ensino, na profissionalização e na profissão serão, provavelmente, a
par da afirmação no universo académico do estudo das artes, o que aos investigadores
mais preocupa, sobretudo aqueles que vivenciam de perto o problema, quer tenham tido
já uma experiência como performers ou como docentes, quer tenham hoje presente a
dificuldade de desenvolver pesquisa na área. Fomentar e promover a discussão em torno
dos temas apontados é uma real preocupação, que tem por objetivo contribuir para a
afirmação da área da Dança junto de pessoas e entidades com decisão política, seja ao
nível do estudo, do exercício diário da profissão ou para precaver a intermitência de que
esta sofre.
Com as contribuições reunidas neste livro, em formato digital, esperamos ter
conseguido um importante conjunto de textos, que ajudem a promover a discussão e a
reflexão que se pretende.

Cristiane Pimentel Neder & Teresa Norton Dias

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Corpos que Dançam | 2022

PREFACE

The proposal to bring together in a book contribution to the study of Dance was a
challenge launched at the beginning of this year, to the international community, from
the University of Madeira / Portugal and in collaboration with the State University of
Minas Gerais / Brazil, in an express desire that this artistic discipline gain space within
the academic community and, with it, create a broader place for discussion.
The contributions came from researchers from the United States of America, Portugal,
and Brazil, as well as members of the Editorial Committee and the Coordination of this
digital book.
In the first part Alexandra Noronha & Fernando Zanetti, Patrícia Taborda Galvão &
Daiana Camargo, Juliana dos Santos Pinto & Saionara Figueiredo Santos and Isabel
Figueira deal with the problems of dance education in Brazil, the questioning and
affirmation of dance professionals and the binomial of the kinetic body and/or movement;
A second part contains contributions by Cláudia Marisa, Ana Lígia Trindade & Patrícia
Mangan, Mônica Ribeiro & Cássio Hissa, Sandra Meyer and Giselle Ruzany on the
body/life relationship, reflections on dance research, contexts that discourage this artistic
discipline and solutions for choreographic creation. Finally, a third part contains varied
contributions by António Laginha, Irma Caputo, Cristiane Pimentel Neder and Teresa
Norton Dias.
Despite the geographic contours of the problems presented in this book, there is a
common thread that makes the realities pointed out and that thread is called DANCE.
The difficulties in teaching, in professionalization and in the profession are, probably,
along with the affirmation in the academic universe of the study of the arts, what most
concerns researchers, especially those who closely experience the problem, whether they
have already had experience as performers or as teachers, or whether they are currently
aware of the difficulty of developing research in the area. Encouraging and promoting
discussion around the themes pointed out is a real concern, which aims to contribute to
the affirmation of the area of Dance among people and entities with political decisions,
whether at the level of study, the daily exercise of the profession or to prevent the
intermittence from which it suffers.
With the contributions gathered in this book, in digital format, we hope to have achieved
an important set of texts that will help to promote the discussion and reflection that is
intended.

Cristiane Pimentel Neder & Teresa Norton Dias

7
Corpos que Dançam | 2022

1.

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Corpos que Dançam | 2022

Memórias e lutas da Dança no contexto escolar brasileiro: um caminho


sinuoso a percorrer

Alexandra Aparecida dos Santos NORONHA


Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG)
[email protected]

Fernando Luiz ZANETTI


Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG)
[email protected]

Resumo: O presente artigo é parte de uma cartografia da Dança no contexto escolar


brasileiro. Pretendeu-se refletir acerca da legislação anterior e em vigor, do ensino de
Dança no Brasil, problematizar os aspectos históricos da Dança na educação brasileira, a
formação docente para o ensino de Dança, a Lei n.°13.278/16 e a Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) (Brasil, 2018). Essa investigação parte das seguintes questões:
Encontramos relação do contexto histórico da Dança nas escolas com os dias atuais? Por
que os documentos, leis e currículos anteriores à LDB1 1996 negligenciaram o ensino de
Dança? Por que a Dança foi desprestigiada na legislação brasileira em relação a outras
linguagens artísticas? Adotaram-se como referencial principal as reflexões dos filósofos
Michel Foucault e Gilles Deleuze. Utilizou-se o método de cartografia, bem como a
análise de um arquivo de periódicos acadêmicos com qualificação CAPES2 A1 e A2, nas
áreas das Artes, da Educação e da Educação Física. As memórias e lutas da Dança
percorrem um caminho sinuoso, repleto de lutas, exclusões, discriminações, idas e vindas,
com raízes no período jesuítico. A Dança direcionada às festividades escolares, dentre as
linguagens da Arte, foi a última a adentrar na Educação Básica como conteúdo
obrigatório, mas leis e currículos não garantem um ensino efetivo e de qualidade.

Palavras-chave: dança, educação brasileira, memórias e lutas, leis, currículos

Abstract: The present article is part of a cartography of Dance in the Brazilian school
context. It was intended to reflect on the previous and current legislation for Dance
education in Brazil, problematize the historical aspects of Dance in Brazilian education,
teacher training for Dance education, Law no. 13.278/16 and the Common National
Curriculum Base (BNCC) (Brasil, 2018). This investigation starts from the following
questions: Do we find a relationship of the historical context of Dance in schools with the
present day? Why did the documents, laws and curricula prior to the LDB 1996 neglect
the teaching of Dance? Why has Dance been discredited in Brazilian legislation in
relation to other artistic languages? The aim was to discuss the historical aspects of
dance in Brazilian education, teacher training for dance education, Law No.13.278/16
and the BNCC – Brazilian National Common Core Curriculum (Brasil, 2018). The
philosophers Michel Foucault and Gilles Deleuze were used as main references. The

1
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) ou Lei n.º 9.394/1996 define e regulariza a organização
da educação brasileira com base nos princípios da Constituição.
2
CAPES: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

9
Corpos que Dançam | 2022

cartography method as well as the analysis of an archive of academic journals with


CAPES A1 and A2 qualification, in the areas of Arts, Education and Physical Education.
The memories and fights of Dance go through a winding path, full of struggles,
exclusions, discriminations, comings, and goings, with roots in the Jesuit period. Among
the languages of art, Dance aimed at school festivities was the last one to enter Basic
Education as a mandatory content, but laws and curricula do not guarantee effective and
quality education.

Keywords: dance, Brazilian education, memories and fights, laws, curricula

A dança é, na minha opinião,


muito mais do que um exercício,
um divertimento, um ornamento,
um passatempo social; na verdade
é até uma coisa séria e sob certo aspecto,
mesmo uma coisa sagrada. Cada era
que compreendeu a importância
do corpo humano, ou que, pelo
menos a noção sensorial de
suas estruturas, seus requisitos,
de suas limitações e da
combinação de genialidade que,
lhe são inerentes, cultivou,
venerou a dança.
(Paul Valéry, citado por Faro, 2004, p. 7)

O presente artigo pretende tornar público alguns resultados de uma pesquisa de


mestrado intitulada “Cartografias Da Dança No Contexto Escolar: experimentações de
uma artista-docente-cartógrafa”. Assim sendo, este texto objetivou compreender a
história da Dança na educação brasileira, quando e como adentrou os espaços escolares,
a trajetória percorrida, as lutas e as memórias da Dança. As cartografias da Dança são o
desenho do universo da Dança através das práticas, dos processos coreográficos em
instituições escolares e do entrelaçamento de um arquivo de revistas acadêmicas, que
guardam as memórias das lutas sobre a relação da Dança com a escola (Foucault, 1998).
Ou melhor, as memórias das lutas dos aspectos históricos da dança na educação brasileira,
o preconceito referente às Artes, em geral, e à Dança, em particular, os embates na
construção de leis e documentos norteadores que, por vezes, marginalizaram a Dança e
as lutas da Dança explanadas no diário de bordo da artista-docente-cartógrafa Alexandra
Noronha. Michel Foucault (1979) nos conta que o “acoplamento do saber erudito e o
saber das pessoas”, nos permite “a constituição de um saber histórico das lutas e a
utilização deste saber nas táticas atuais” (Foucault, 1979, p. 97).
São apresentados e discutidos neste texto os aspectos históricos da Dança na educação
brasileira, a formação docente para o ensino de Dança, a Lei n.° 13.278/16, de 5 de maio
de 2016, e a BNCC (Brasil, 2018), tendo adotado como referencial principal as reflexões
dos filósofos Michel Foucault e Gilles Deleuze.
Essa investigação parte das seguintes questões: Encontramos relação do contexto
histórico da Dança nas escolas com os dias atuais? Por que os documentos, leis e
currículos anteriores à LDB 1996 negligenciaram o ensino de Dança? Por que a Dança
foi desprestigiada na legislação brasileira em relação as outras linguagens artísticas?
Para desenvolvê-la, utilizou o método de cartografia por meio de um diário de bordo
com as experimentações de uma artista-docente-cartógrafa, nos períodos compreendidos

10
Corpos que Dançam | 2022

entre 2017 a 2019, bem como a análise de um arquivo de periódicos acadêmicos com
qualificação CAPES A1 e A2, nas áreas das Artes, da Educação e da Educação Física.
À noção de arquivo aliam-se as perspectivas de Foucault (2008). Desse modo, ao
cartografar o arquivo de periódicos acadêmicos, pesquisaram-se cerca de 1.000 textos,
tendo selecionado um conjunto de 121 artigos, no período de 13 anos (2010 a 2022), de
12 periódicos brasileiros dos campos da Arte, Educação e Educação Física, classificados
como A1 e A2 pelo sistema Qualis da CAPES na área da Educação – Educação &
Realidade, Educar em Revista, Educação e Pesquisa, Educação em Revista, Pró-posições
e Caderno CEDES; na área da Educação Física – Movimento; na área das Artes – ARS
(USP), Fundarte, EBA/UFMG, Urdimento e Repertório Teatro e Dança.
No conjunto desses arquivos, identificamos e analisamos as problematizações dos
autores na área da Arte/Dança, o processo de ensino coreográfico e as linhas da Dança,
como o improviso e performance. A seleção de artigos se pautou nos seguintes critérios:
i) periódico da Educação e da Educação Física que tivessem temática relacionada à Dança
e ii) revistas de Arte que abordassem temas ligados à Dança, ao processo coreográfico,
ao improviso e à performance.
Na perspectiva de Gilles Deleuze (2001), a cartografia baseia-se na separação das
linhas do dispositivo, ou seja, cartografar é descobrir novos territórios, em um processo
sinuoso. Já o dispositivo “é um emaranhado de linhas, um conjunto multilinear” (Deleuze,
2001, p. 1), que se unem, rompem-se, traçam processos em desequilíbrio, ou em outras
palavras, são as relações de força, os processos de subjetivação e os saberes envolvidos.
O arquivo, além de ser a memória do que pode ser dito, aponta a racionalidade, as
relações de poder e preserva um acontecimento. Dessa forma, Foucault (2008) destaca
que ao trabalhar com arquivo deve-se “[...] trabalhá-lo no interior e elaborá-lo” e
organizar “[...] no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações”
(Foucault, 2008, p. 7). Nesse sentido, as práticas discursivas são sistemas de enunciados,
e “o arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento
dos enunciados como acontecimentos singulares” (Foucault, 2008, p. 147).
Conforme Lemos e Oliveira (2017), a metodologia cartográfica pensada por Deleuze
e Guattari constroem territórios e linhas: “A cartografia propõe essa criação de conexões
e significação ao longo do desenvolvimento, mapeando pensamentos, técnicas, situações,
pessoas, lugares [...]” (Lemos & Oliveira, 2017, p. 42). Souza & Francisco (2016), por
sua vez, afirmam que as pesquisas cartográficas contribuem para desenvolver pesquisas
qualitativas e direcionam ao acompanhamento de processos e à produção da
subjetividade.

Aspectos Históricos da Dança na Educação Brasileira

A arte tem enorme importância na


mediação entre os seres humanos e o
mundo, apontando um papel de destaque
para a arte/educação: ser a
mediação entre a arte e o público.
(Barbosa, 2009, p. 21)

Nesta seção, expomos os aspectos históricos do ensino de artes e da dança na educação


brasileira, a dança como forma de conhecimento, incluindo documentos educacionais,
como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), a Lei das Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a fim de se

11
Corpos que Dançam | 2022

compreenderem as questões relacionadas com a história da Dança e a formação docente


para o ensino de Dança na educação brasileira.
A Dança constitui-se como uma das maiores formas de expressão humana e artística,
que detém saberes e fazeres diferenciados das outras linguagens das Artes. Como área de
conhecimento, tem uma linguagem própria com conteúdo específicos, contexto histórico
e social, estabelece comunicação com manifestações culturais e criações estéticas
diversas, dialoga com as outras linguagens da Arte e outras ciências (História, Geografia,
Antropologia, Sociologia, Psicologia, Matemática, Fisiologia e Anatomia, por exemplo).
Conforme Strazzacapa e Morandi (2006) “[...] a dança é uma área de conhecimento
autônoma e que consiste na mais antiga das manifestações” (Strazzacapa & Morandi,
2006, p. 105). Os autores indicam que Rudolf von Laban foi o primeiro teórico do
movimento corporal a atentar para a dança na educação e estudar os movimentos do corpo
por intermédio da dança.
A Dança é a linguagem do movimento que utiliza o corpo como principal instrumento.
Laban (1990) declara que podemos comparar a Dança à linguagem oral, pois formam-se
palavras por letras e os movimentos corporais por elementos, as orações por palavras e as
frases da dança por sequências de movimentos. Assim, a coreografia é o conjunto dessas
sequências de movimentos, enquanto o texto é o conjunto de orações. Complementando,
esse tópico, Laban (1990) afirma que:

[a]lém dos elementos comuns as demais artes, a dança possui sua própria bagagem de
conhecimentos, tradição, experiência, evolução histórica e princípios, que se podem
ver em funcionamento nas imagens criadas, nos métodos de estruturação aplicados
para forjar relações mútuas entre formas unilaterais de movimentos e estilos
desenvolvidos. (Laban, 1990, p. 109)

A especificidade da Dança como área de conhecimento, para Isabel Marques (2011),


está em ser uma das linguagens da Arte, porque os conteúdos específicos são saberes da
Anatomia, Fisiologia e Cinesiologia, repertórios, improvisação, coreografias, ou seja, são
conhecimentos interdisciplinares, que relacionam o aprendizado do movimento.
Diversos documentos oficiais reconhecem a Dança como área de conhecimento,
inclusive na Educação Básica, Ensino Superior e Técnico, dentre eles: as Lei das
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), as Resoluções, Minutas, Diretrizes
Nacionais, Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), as Diretrizes Curriculares
Nacionais (DCN), Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) e a
Base Nacional Comum Curricular (BNCC). No entanto, a história da Dança na educação
brasileira é delineada por caminhos sinuosos, linhas de força e lutas, que se ligam a outras
linguagens das Artes e, às vezes, rompem-se. Dentre as linguagens da Arte, a Dança foi
a última a adentrar na Educação Básica como conteúdo obrigatório em contexto escolar,
tem característica de entretenimento.
O ensino de Dança na educação brasileira teve início com os padres jesuítas que
objetivaram catequisar os índios. A institucionalização da educação brasileira se deu por
José de Anchieta e Manuel da Nóbrega. A segunda fase da educação jesuíta destinou-se
à formação das elites (Vieira, 2019). Nesse contexto, o Teatro e a Dança foram os pilares
dessa educação. O projeto do padre Anchieta propunha características políticas-
pedagógicas para inserir padrões de outra civilização, com o propósito de colonizar
outros, povos por meio da Arte Dramática.
A polivalência e as práticas de ensino, de acordo com Ana Mae Barbosa (2012), são
influências da educação jesuíta, que priorizava os estudos literários e retóricos; separava
as Artes de outros ofícios e valorizava profissões estabelecidas por classes dominantes.

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Corpos que Dançam | 2022

Enquanto desfavorecia as atividades corporais e manuais, a produção literária e as Artes


Plásticas eram supervalorizadas. Esses aspectos, de certo modo, perpetuam até hoje na
educação e sociedade brasileira.
De acordo com Marcílio Vieira (2019), o plano geral do Ratio Studiorum excluía os
indígenas, priorizando as elites. Esse processo de colonização desconsiderava as culturas
indígenas e, posteriormente, africanas, incluindo danças, músicas, pinturas e
manifestações religiosas, exercendo uma relação de poder da cultura europeia e católica
sobre os índios e africanos, bem como sobre o ensino de Artes e Dança. As ideias
pedagógicas desse plano desvalorizavam a dança como conhecimento corporal e como
uma linguagem artística para incluir música com cantos orfeônicos e religiosos. A partir
dessas práticas, foram fundados os colégios dirigidos pela Companhia de Jesus.
Através da Reforma Pombalina, nos anos de 1759 a 1772, o desenho passa a integrar
os currículos escolares, assim como as Ciências, Técnicas e Artes Manuais. O Estado
propõe-se assumir a Educação e o projeto pedagógico caracteriza-se por disciplinas
isoladas. A Dança não aparece nos espaços escolares desse período, todavia persistia em
outros espaços, nos terreiros, nas ruas, nas senzalas e nos adros de igrejas.
Com a chegada da Família Real e da Corte Portuguesa, em 1808, há a criação do
Museu Real do Jardim Botânico, da Biblioteca Pública e da Imprensa Régia. Surgem
cursos superiores, a Academia Geral da Marinha, a Academia Real Militar e as primeiras
faculdades de medicina na Bahia e no Rio de Janeiro (Vieira, 2019).
O preconceito com as linguagens artísticas, em diversos momentos na educação
brasileira, estabeleceu um lugar pré-determinado para a Dança. Esse preconceito e a
exclusão da Dança proviriam, segundo Barbosa (2012), das necessidades brasileiras do
período imperial. Assim, originam-se cursos superiores médicos, militares e, em 1820, a
Academia Imperial de Belas Artes, dirigida por artistas franceses, institui o ensino de
Artes, no Brasil, com o Desenho e a Pintura, sem a Dança. A República persistiu com
esse preconceito que aumentou ainda mais no século XIX. A Academia de Belas-Artes
adotava o estilo neoclássico, legitimando a Arte burguesa para conservar o poder, ou seja,
a Arte popular não era considerada relevante. Barbosa (2012), comenta que um dos
artifícios era torná-la desnecessária “para alimentar um dos preconceitos contra a Arte até
hoje acentuada em nossa sociedade, a ideia de Arte como atividade supérfula, um babado,
um acessório de cultura” (Barbosa, 2012, p. 20).
Preconceitos com o ensino das Artes e com a profissão artística ainda existem nas
instituições escolares e em outros espaços. Isso faz com que o ensino de Arte e suas
linguagens sejam superficiais e a Dança se torne um atrativo nas festividades escolares.
Além disso, a cultura brasileira e suas Danças são desvalorizadas, enquanto as Artes e as
Danças de estilos clássicos ocidentais, são mais apreciadas.
Berzerra e Ribeiro (2020) descrevem que a história do ensino de Dança no Brasil está
inserida, também no surgimento das escolas de ensino de balé, primeiramente na cidade
do Rio de Janeiro, em 1813. Embora esse ensino tenha sido destinado às elites brasileiras,
as escolas de Dança incentivaram o surgimento de outras escolas, no Brasil, e aspiraram
à formação artística e profissionalizante de bailarinos e bailarinas a exemplo de Angel
Viana e Klauss Viana que criaram escolas de dança no país.
No momento atual, as escolas de Dança disponibilizam diversos estilos e o ensino pode
ser ofertado em instituições públicas através de programas de secretarias de cultura
estaduais e municipais. Ademais, essas escolas são responsáveis pela profissionalização
de bailarinos e bailarinas e exportação para o exterior: através dessas escolas surgem
grandes nomes na Dança.
Ainda, sobre a história da Dança na educação brasileira, a Reforma de Couto de Ferraz
propôs o ensino de Geometria, Desenho, Música, Canto e Dança através da ginástica

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Corpos que Dançam | 2022

como atividade física. Já na Reforma Leôncio de Carvalho (Decreto n.° 7.247, de 19 de


abril de 1879), o ensino de Artes e Ofícios surgem reformulando o ensino primário,
secundário e superior no município da Corte. Em seguida, criaram-se as escolas
particulares e os Colégios Abílio (Vieira, 2019).
A presença da Dança nas escolas estava ligada à ginástica, caracterizada por atividades
repetitivas, com vista a fortalecer os corpos masculinos e conferir elegância às meninas.
Os Colégios Abílio foram pioneiros em proporcionar vivências de Dança como modo de
educar. Durante a monarquia, o ensino de Artes estava direcionado ao desenho e à pintura,
isto é, a Dança não fazia parte desse cenário as pedagogias tradicionais consolidam-se no
ensino brasileiro.
Barbosa (2012) destaca, que o ensino de Arte, conforme Rui Barbosa, um grande
influenciador da corrente liberal brasileira o ensino do desenho era essencial, visava o
desenho linear ou geométrico, a produção de cópias, com metodologias tecnicistas
direcionadas ao mercado de trabalho, integrou parte do currículo das escolas primárias e
secundárias. A partir de sua influência nas idealizações pedagógicas do início do século
XX, a Educação Artística passou a ser uma base consolidada na educação popular
(Barbosa, 2012). Com políticas liberais para enriquecer o país, a educação técnica e
artesanal impulsionaria o desenvolvimento.
No início do século XX, a Dança adentra mais o espaço escolar, por meio da ginástica,
nas aulas de Educação Física. O objetivo principal era a estética corporal e a prática de
exercícios físicos, por meio da repetição de movimentos, sem expressão artística, sem
contextualização histórico-cultural. A distribuição de alunos era norteada pela separação
por sexo: meninas e meninos tinham aulas em salas separadas e a Dança acabava sendo
direcionada ao público feminino (Strazzacapa & Morandi, 2006).
Desse modo, as práticas pedagógicas adotavam métodos tecnicistas (as aulas de Arte
utilizavam o desenho e as cópias como principal ferramenta, e as aulas de Educação
Física, a repetição de exercícios físicos, na ginástica). Esse ensino do desenho destinado
aos interesses industriais, e as cópias, se legitimaram e perpetuaram até a Primeira
República. Podemos inferir que, nesse momento, iniciou-se uma pedagogização do
ensino das Artes.
A influência dos positivistas, após Proclamação da República, como esclarece Barbosa
(2012) impulsionaram reformas (militar, política, religiosa e educacional). “Os
positivistas propunham a extinção da Academia e a reorganização completa do ensino de
Arte” (Barbosa, 2012, p. 66). Mas um grupo de artistas, conhecidos como irmãos
Bernadelli, projetaram uma reforma ao governo, garantindo a não extinção dessa
academia.
No período do Estado Novo, por sua vez, ocorreram várias reformas no ensino. O canto
orfeônico idealizado por Vargas converte-se em disciplina obrigatória por meio do
Decreto n.° 19.890, de 18 de abril de 1931 e do Decreto n.° 24.794, de 14 de julho de
1934, promulgada até a promulgação da Lei n. 5.692, de 1971. Devido às intenções
nacionalistas do governo Vargas, a Dança não foi contemplada nos currículos escolares
(Vieira, 2019).
Outra forma de entrada da Dança na educação escolar foi, conforme Strazzacapa e
Morandi (2006), como disciplina extracurricular, nas primeiras décadas do século XX.
Através do balé, a dança adentrou os espaços escolares, principalmente na educação
infantil, nos antigos jardins de infância, geralmente em redes particulares, destinado às
meninas.
Entretanto, no Estado Novo, a Dança permanecia em outros espaços de ensino
informal, nas escolas de Dança, nos espetáculos, nas escolas de samba, nas danças
brasileiras populares e folclóricas, nas manifestações religiosas. A Dança sempre existiu

14
Corpos que Dançam | 2022

distante dos muros das instituições escolares, perseverou e se desenvolveu. Surgem, em


1956, as escolas técnicas e curso superior de Dança, na UFBA.
Julgamos pertinente destacar, que o ensino de Dança na Educação Básica é inserido
somente nos currículos na área das Artes a partir da LDB de 1996. O primeiro curso de
graduação em Dança no Brasil, para formação de bailarino e bailarina, em 1976, a
Licenciatura e Bacharel, em Dança. Atualmente, a UFBA conta com o curso de mestrado
e doutorado em Dança e, em 2019, a UFRJ instituiu o Mestrado em Dança.
Vieira (2019) sinaliza que a Lei das Diretrizes e Bases n.° 4.024/61 não definiu as
linguagens das Artes. O documento promulga a iniciação das Artes no ensino primário,
podendo-se estender até dois anos, caso o aluno não ingressasse no ensino médio. Na Lei
n.° 5.692/71, o ensino de Arte é conteúdo obrigatório, intitulado Educação Artística, no
entanto, a Arte era inserida como atividade educativa, não como currículo escolar, e as
suas linguagens seguiram sem definição.
No movimento liderado por Anísio Teixeira, no Brasil, as características da arte
estavam baseadas na liberdade de criação e expressão. Esse movimento fomentou o
ensino de Arte nas escolas e a formação de professores na Universidade de Brasília
(Vieira, 2019).
Em 1973, pelo Parecer CFE. 1.284/73 e a CFE. 23/73 com formação polivalente, criou-
se o curso de licenciatura em Educação Artística. Todavia, o ensino do desenho era
priorizado com fins educacionais tecnicistas. Para Vieira (2019), a Educação Artística
separou o ensino de Dança do contexto escolar, tornando a Dança e o teatro elitizados,
limitando seu ensino às escolas especializadas. Nas instituições escolares não era
essencial inserir profissionais especializados em Dança, tão pouco em Teatro.
Consequentemente, a Dança e o Teatro surgem apenas nas festividades escolares,
enquanto as Artes Plásticas são evidenciadas na Educação Artística.
É importante salientar que, nessa época, a Educação Artística abrangia um ensino de
Arte de forma educativa e não como disciplina, e que não contemplou o ensino de Dança
na Educação Básica. A Educação Física, por seu turno, voltava-se a práticas de exercícios
físicos que correspondiam aos interesses do militarismo. Desse modo, a Dança foi
novamente excluída dos cursos e das práticas escolares.

Mudanças a partir da Constituição de 1988 e a LDB 9.396/96

A Constituição Federal de 1988, no art. 208, inciso II, assegura que é dever do Estado
a “[...] progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade do ensino médio”. A partir
dela, houve alterações no ensino brasileiro de maneira a que a Educação Básica fosse
universalizada à população brasileira (Brasil, 1988). Baseada nos princípios da
Constituição Federal de 1988, em 1996, as leis de ensino foram reformuladas.
O ensino de Arte, se torna componente curricular obrigatório, com a LDB 9.396/96.
No artigo 26, § 2º, define-se que “[o] ensino da arte, especialmente em suas expressões
regionais, constituirá componente curricular obrigatório da educação básica” (Brasil,
1996, s/n). Com base nessa lei, o ensino de Arte foi implementado na Educação Básica e
foram elaboradas as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), o Referencial Curricular
Nacional para Educação Infantil (RCNEI) e os PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais).
Como resultado, foram delimitadas as quatro linguagens da Arte: Dança, Música, Teatro
e Artes Visuais.
Nos PCN, incluiu-se a Dança como Atividades Rítmicas e Expressivas na disciplina
de Educação Física, desconsiderando os aspectos artísticos, históricos e sociais.
Strazzacappa e Morandi (2006) evidenciam, que “cursos de graduação em educação física

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Corpos que Dançam | 2022

dão enfoque restrito ao conteúdo da dança” (Strazzacapa & Morandi, 2006, p. 102), uma
vez que com “uma disciplina semestral os alunos não se sentem aptos a tratar desse
conhecimento na escola” (ibidem). Para Marques (2011), historicamente, a Dança nas
escolas está sob a responsabilidade de professores de Arte, Pedagogia ou Educação Física,
muitas vezes sem experiência ou reflexão sobre a área, de forma a que esta seja
escolarizada e descaracterizada enquanto arte.
Os PCN (Brasil, 1997) orientam, que na disciplina de Arte, a Dança seja trabalhada
com base na expressão, na comunicação humana, na manifestação coletiva, na produção
estética e cultural, na disciplina de Educação Física, como atividades rítmicas. Não
garantiram que o ensino de Dança fosse efetivado na Educação Básica, mas apontaram
uma direção.
A partir dos PCN e da LDB n.° 9.396/96, aumentam os cursos de licenciatura em Arte,
Música e Dança, em diversas regiões brasileiras, de forma expressiva para suprir a
demanda de profissionais da área, como proposta dos últimos governos federais do Brasil,
através do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades
Federais (Reuni), por meio da criação de cursos superiores em diversas regiões brasileiras
(Vieira, 2019).
Os cursos de graduação em Dança ampliaram-se consideravelmente, nos últimos anos.
Atualmente, pertencem à área das Artes, com suas Diretrizes Curriculares regidas pelo
Ministério da Educação (MEC). No momento, há 54 cursos de graduação em Dança no
Brasil, dos quais 37 são cursos de licenciatura e 15 de bacharelato na modalidade
presencial, e dois cursos de licenciatura EaD, além de cerca de 140 especializações lato
sensu ensino EaD ou presencial, que abordam a linguagem da Dança (Brasil, 2022).
Os movimentos desenvolvidos pelas associações de pesquisa, a Federação de Arte-
Educadores do Brasil (Faeb), a Associação Brasileira de Educação Musical (Abem), a
Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (Abrace), a
Associação Nacional de Pesquisa em Artes Plásticas (Anpap) e a Associação Nacional de
Pesquisadores em Dança (Anda), desenham outro cenário na Educação Brasileira, no
ensino de Artes. Após essa movimentação, ocorreu a atualização da nomenclatura da área
de Educação Artística para Artes, em 2005, por meio do Parecer CNE/CEB n.° 22/2005
(Brasil, 2005). A Lei n.° 12.796/13 inclui o componente de Arte na Educação Infantil,
com a revisão do art. 26; a Lei n.° 12.287/10 promulga a promoção do desenvolvimento
cultural dos alunos; após a Medida Provisória n.° 746, de 2016, em que se deixou de fora
o ensino de Artes no ensino médio – redação dada pela Lei n.° 13.415, de 2017 (Brasil,
2017).
A Lei n.° 13.278/16 regulamenta o ensino de Arte na Educação Básica e a BNCC
(Brasil, 2018) é o documento curricular norteador de todas as etapas do ensino, básico no
Brasil. A partir desta lei, a Dança, a Música, o Teatro e as Artes Visuais tornaram-se, com
as suas especificidades, conteúdo curricular obrigatório.
Nas seções seguintes, versaremos a respeito da Lei n.° 13.278/16 e da BNCC (Brasil,
2018).

Lei n.° 13.278 de 05 de Maio de 2016

Atualmente, a educação trata de compensar este estado


de coisas prestando maior atenção às artes em geral,
incluindo a arte do movimento, pois se compreendeu
que a dança é a arte básica do homem.
(Laban, 1990, p. 14)

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Nesta seção, discutimos a Lei n.º 13.278 de 2 de maio de 2016, que altera o § 6º do art.
26 da Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que fixa as diretrizes e bases da educação
nacional, referente ao ensino de arte. Esse inciso inclui, de forma obrigatória, a disciplina
de Arte na Educação Básica, o ensino das linguagens das Artes Visuais, da Música, da
Dança e do Teatro, tendo cinco anos como prazo máximo de implementação.
No corpo dos textos de nosso arquivo, observamos uma maior discussão entre os
autores a respeito do ensino de Dança, nas escolas, nos anos de 2018 e 2019, após a
aprovação da Lei n.° 13.278/16 e da BNCC em 2017, que tornaram o ensino de Dança
obrigatório em toda Educação Básica, como uma linguagem na disciplina de Artes. Esse
acontecimento gerou novas problematizações: “O processo recente de inserção da dança
como componente curricular obrigatório no ensino de Arte na escola apresenta tensões
que evidenciam um desalinho entre os saberes da dança e os saberes escolares”
(Falkembach, 2019, p. 130).
Levando em consideração essa demanda, encontramos as seguintes discussões dos
autores sobre a lei: Os docentes estão preparados para ensinar dança nas escolas? Os
sistemas de ensino têm se organizado para a implementação dessa lei? Qual é o
profissional capacitado para ensinar dança nas escolas: o licenciado em Artes, Educação
Física, Pedagogia, Dança ou o Artista-docente (professor licenciado com práticas em
dança)?
A esse respeito, encontramos a seguinte colocação sobre a Dança e sua relação com os
currículos escolares: “[...] a inserção da dança no currículo representa ainda um claro
e grande desafio. Mesmo reconhecendo que o ensino de dança favorece discutir a
produção do conhecimento por meio do corpo [...]” (Batalha, 2017, p. 7, realces do
autor). De acordo com Cecília Batalha (2017), “[a] presença da dança no currículo escolar
não é algo constante, embora o ensino de arte seja garantido por lei, desde 1996, e a dança
esteja presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Arte como uma de suas
linguagens, desde 1997” (Batalha, 2017, p. 1). Em resumo, com a obrigatoriedade
aprovada pela da Lei n.° 13.278/16, em cinco anos, as instituições, em todos os sistemas
de ensino, precisariam implementar as mudanças necessárias, e garantir um número
suficiente de profissionais para atuarem no Ensino Básico.
Problematizando a proposta de ensino de Dança no contexto escolar, João Souza
(2013) evidencia que “[...] a dança ainda que constitua um campo específico de atuação
docente, se encontra vinculada a áreas que abrangem formas distintas de expressão
artística/corporal” (Souza, 2013, p. 8). Por esse ângulo, os profissionais que podem
ensiná-la são os licenciados em Dança, Educação Física, Artes e Pedagogia. No entanto,
questionamos: qual profissional está mais habilitado para lecionar Dança nas escolas? A
Dança exige um conhecimento mais complexo para que seu ensino seja significativo, mas
para muitos docentes a Dança caracteriza-se como algo distante de suas realidades
acadêmicas.
Marques (2018), em relação ao ensino de Arte/Dança, no Ensino Fundamental e na
Educação Infantil, ressalta que as diretrizes da BNCC (Brasil, 2018) retrocedem a Lei n.°
13.278/16 (Brasil, 2016), ao retirar a especificidade da Arte como área distinta com quatro
linguagens (Dança, Música, Teatro e Artes Visuais). Dessa maneira, a BNCC “abre
precedente para o retorno do(a) professor(a) de Arte polivalente, ao introduzir a temática
Artes Integradas” (Marques, 2018, p. 30, realce nosso).
Tendo em vista essas especificidades, as discussões de Alvarenga e Silva (2019)
apontam que a Lei n°. 13.278/16 consiste no resultado de lutas por melhorias, no decorrer
de 45 anos, a respeito do ensino de Arte, na Educação Básica. Reviu-se a polivalência e
definiram-se as quatro linguagens de Arte, exigindo formação específica com respaldo
legal para os docentes lecionarem conforme a sua graduação. Nesta perspectiva, esta lei

17
Corpos que Dançam | 2022

poderá extinguir a polivalência em relação ao ensino e aos concursos públicos, mas exige
uma transformação na estrutura curricular da Educação Básica para o ensino das quatro
linguagens da Arte, no que diz respeito à ampliação de licenciaturas e contratação de
professores por áreas específicas (Alvarenga & Silva, 2019).
A fim de compreender os processos anteriores à Lei n.° 13.278/16, apresentamos os
processos de criação e modificação desta lei, que se inicia com o Projeto de Lei do Senado
– PLS n.° 3373, de 2006, posteriormente ao PL n.° 7.032/104, na Câmara dos Deputados,
no parecer de 2015 (Brasil, 2015b). Ainda se inseriu um apensado ao PL n.° 4, de 2011,
que dispunha sobre o ensino de Arte, na Educação Básica, que sugeria alteração do artigo
26 da LDB n.° 9.394/96, colocando “[…] as áreas de música, teatro e dança; artes visuais
(artes plásticas, fotografia, cinema e vídeo) e design; patrimônio artístico, cultural e
arquitetônico, como conteúdos a serem inseridos entre as diversas séries e níveis da
Educação Básica” (Brasil, 2010b, p. 14).
Os estudos de Alvarenga e Silva (2019) apontam, que ainda não temos professores
suficientes de Arte nas escolas, dificultando o ensino integral do sujeito. A BNCC (Brasil,
2018) incorpora o ensino das quatro linguagens das artes, mas, ao mesmo tempo, é
contraditória ao propor o ensino de Artes Integradas. Outra dificuldade elencada, está na
Emenda Constitucional n.° 95/2016, que congela os investimentos em Educação por 20
anos. Aprovada, tornou-se a Lei n.° 13.415/2017 e alterou a LDB n.° 9.394/96, que
institui o Ensino Médio, em período integral.
Todavia, conforme Alvarenga e Silva (2019), nos últimos anos ocorreu um
crescimento de cursos de Artes Visuais, Música, Dança e Teatro, nas modalidades
presencial e à distância, também de Pós-Graduações. Os autores indicam algumas
possibilidades para a implementação dessa lei, como a “formação complementar nas
linguagens artísticas para professores que lecionam Arte” (Alvarenga & Silva, p. 1022-
1023) e a “ampliação dos cursos nas modalidades EaD e a criação de cursos
semipresenciais” (ibidem).
Além disso, sinalizam a necessidade de engajamento político e de mobilização dos
recursos financeiros para efetivar a Lei n.° 13.278/16, que corresponde a “uma demanda
da sociedade”. Afinal, o ensino de Arte e suas linguagens “representa uma forma de
humanização e de promoção contra-hegemonia” na escola (Alvarenga & Silva, op.cit., p.
1024). Portanto, para os autores, os profissionais das Artes Visuais, Música, Teatro e
Dança devem unir-se para mobilizarem o poder público, para que a Lei n.° 13.278/16 seja
efetivada, pois já se passaram cinco anos de sua implementação, em que se registaram
poucos avanços.
Sabemos que as instituições escolares, as leis e os currículos são campos de lutas e
disputas sociais, políticas e jogos de interesse do sistema capitalista. A dança percorre um
caminho sinuoso e com muitas exclusões na história da Educação Básica, pois dentre as

3
O Projeto de Lei do Senado (PLS) n.º 337, de 2006, de autoria do Senador Roberto Saturnino, aprovado
pelo Senado Federal e encaminhado à Câmara dos Deputados, previa a alteração dos parágrafos 2º e 6º do
art.º 26 da Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que fixa as diretrizes e bases da educação nacional
(LDB). Ao fazê-lo, o projeto determinava que o ensino de artes compreenderia obrigatoriamente a música,
as artes plásticas e as artes cênicas, que constituiriam componente curricular de todas as etapas e
modalidades da educação básica (Brasil, 2015, pp. 1-2).
4
Art. 1º. O §6º do art.º 26 da Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte
redação: “Art. 26 [...] § 6.º As artes visuais, a dança, a música e o teatro são as linguagens que constituirão
o componente curricular de que trata o §2.º deste artigo” (NR). Art. 2.º O prazo para que os sistemas de
ensino implantem as mudanças decorrentes desta Lei, incluída a necessária e adequada formação dos
respectivos professores em número suficiente para atuar na educação básica, é de cinco anos. Art. 3.º Esta
lei entra em vigor na data de sua publicação (Brasil, 2010b, p. 15).

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Corpos que Dançam | 2022

linguagens das Artes foi a última a ser contemplada, em leis e documentos norteadores,
como conteúdo.
O ensino de Artes deverá propiciar o desenvolvimento de suas especificidades e
expressões artísticas nas quatro linguagens (Dança, Teatro, Música e Artes Visuais), não
resumidas na ‘humanização’, tão pouco na ‘educação de qualidade’, expressões
empregues em muitos discursos, com o intuito de solucionar objetivos da Educação.
Assim sendo, os interesses do sistema capitalista e das diversas formas de
govermentabilização reforçam a formação do ‘corpo social’, corpo como metáfora do ser
humano, de modo que na biopolítica abordada por Foucault (2008b) são utilizadas nas
instituições para regularem as atividades humanas, o controle dos sujeitos que se inicia
no corpo. A disciplina imposta nos ambientes escolares normatiza os corpos dos
educandos, padroniza os gestos, os movimentos e os comportamentos, forma um corpo
útil e obediente, administra os conteúdos a serem ensinados, objetivando aumentar as
habilidades e as competências.

BNCC – A Dança como uma das Linguagens da Arte

O currículo é o lugar, espaço, território.


O currículo é a relação de poder.
O currículo é a trajetória, viagem, percurso.
O currículo é a autobiografia, nossa vida, currículo vitae:
no currículo se forja a nossa identidade.
O currículo é texto, discurso, documento.
O currículo é documento de identidade.
(Da Silva, citado por Barbosa & Da Cunha, 2010, p. 180)

Nesta seção, discutimos a BNCC (Brasil, 2018), especificamente a área de Artes, nos
anos iniciais do Ensino Fundamental, além de identificarmos as problematizações de
autores sobre o ensino de Arte e Dança. Prevista no Plano Nacional de Educação (PNE),
o processo de construção do documento iniciou-se em 2015, conduzido pelo Ministério
da Educação e Cultura (MEC), Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação
(CONSED), União dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) e Conselhos
Nacional de Educação (CNE). Homologada em 20 de dezembro de 2017, a BNCC (Brasil,
2018) explicita competências e habilidades que os educandos da Educação Infantil, do
Ensino Fundamental e do Ensino Médio precisam desenvolver.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), para o contexto do Ensino Fundamental,
dispõe que o currículo de Arte deverá compreender quatro linguagens: Artes Visuais,
Dança, Música e Teatro. Desse modo, “a sensibilidade, a intuição, o pensamento, as
emoções e as subjetividades se manifestam como forma de expressão no processo de
aprendizagem da Arte” (Brasil, 2018, p. 193). A BNCC inclui outra unidade temática,
que são as Artes Integradas, as quais objetivam “explorar diferentes linguagens e suas
práticas, além do uso de ‘novas tecnologias de informação e comunicação” (Vieira, 2018,
p. 197).
Nessa ótica, a componente curricular de Arte deverá propiciar o respeito às diferenças
culturais e suas manifestações, promovendo o exercício de cidadania. Assim sendo, os
processos educativos, em arte, necessitam atingir a experiência e as vivências artísticas
como “prática social”, não apenas como “aquisição de códigos e técnicas” (Brasil, 2018,
p. 193). Além disso, os processos de criação dos educandos precisam ser intensificados e
compartilhados em produções artísticas e culturais, como: exposições, saraus,
espetáculos, performances, concertos, recitais, entre outros eventos. Neste sentido, o

19
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documento propõe a articulação de seis dimensões de conhecimento: criação, crítica,


estesia, expressão, fruição e reflexão (Brasil, 2018).
A Dança é constituída por práticas artísticas, pensamentos e sensações do corpo e tem
como papel essencial a socialização e o desenvolvimento cognitivo dos educandos, bem
como a problematização de todo o contexto e a transformação de percepções sobre o
corpo e a através das experiências corporais (Brasil, 2018). Assim, “os processos de
investigação e produção artística da dança centram-se naquilo que ocorre no e pelo corpo,
discutindo e significando relações entre corporeidade e produção estética” (Brasil, 2018,
p. 195).
No que se refere ao ensino de Dança nas escolas, nos anos iniciais do Ensino
Fundamental, a BNCC (Brasil, 2018) propõe diversas habilidades, conforme o quadro 1
demonstra:

Quadro 1 – Habilidades do componente curricular Dança


HABILIDADES
(EF15AR08) Experimentar e apreciar formas distintas de manifestações da dança presentes em
diferentes contextos, cultivando a percepção, o imaginário, a capacidade de simbolizar e o repertório
corporal.
(EF15AR09) Estabelecer relações entre as partes do corpo e destas com o todo corporal na construção
do movimento dançado.
(EF15AR10) Experimentar diferentes formas de orientação no espaço (deslocamentos, planos, direções,
caminhos etc.) e ritmos de movimento (lento, moderado e rápido) na construção do movimento dançado.
(EF15AR11) Criar e improvisar movimentos dançados de modo individual, coletivo e colaborativo,
considerando os aspectos estruturais, dinâmicos e expressivos dos elementos constitutivos do
movimento, com base nos códigos de dança.
(EF15AR12) Discutir, com respeito e sem preconceito, as experiências pessoais e coletivas em dança
vivenciadas na escola, como fonte para a construção de vocabulários e repertórios próprios.
Fonte: (Brasil, 2018, p. 201)

Notamos que o documento norteador propõe habilidades a serem desenvolvidas nos


processos educativos, mas não contempla, nos anos iniciais, a contextualização histórica
e social da Dança. A BNCC direciona o ensino da Dança para os modos de criação, mas
trava outros conhecimentos da dança e a carga horária semanal da disciplina.
Na pesquisa no arquivo, encontramos autores que problematizam a BNCC (2018), no
que tange ao ensino de dança, no contexto escolar. Vieira (2018) enfatiza que a Dança é
produtora de conhecimento, mas, em todas as etapas da Educação Básica, está inserida
somente nas recreações e festividades escolares. Esse autor, também ressalta, que o ensino
da Dança na Educação Infantil deve compreender o conhecimento da Arte com referência
ao corpo da criança, através da ludicidade, da brincadeira e da experiência estética, seja
individual ou coletiva.
De maneira geral, no arquivo dessa cartografia da Dança encontramos autores que
salientam que a Dança carece de ser reconhecida como área de conhecimento. Tendo
como objetivo o movimento ritmado, explorar brincadeiras infantis favorece a
compreensão, a problematização e a transformação das relações sociais, envolvendo
etnias, gêneros, idades, classes sociais e religiões. A Dança é um meio de expressão e
comunicação humana e tem como papel fundamental a aproximação dos sujeitos e, por
conseguinte, a promoção do respeito às singularidades e diferenças (Vieira, 2018). Em
seguida, Vieira (2018) destaca que se deve garantir os temas e o conteúdo da Dança aos
educandos e não os restringir ou limitá-los, ou seja, possibilitar a criação e expressão das
subjetividades das crianças. Nas proposições deste autor, a Dança no contexto escolar em
fases iniciais não deve pautar a “formação de bailarinos e bailarinas”, mas sim integrar
“a habilidade corporal do aluno com o conhecimento das várias linguagens da própria
dança” (Vieira, 2018, p. 9).
20
Corpos que Dançam | 2022

Ao encontro disso, Francisco Freitas (2018) afirma que o ensino de Dança nas escolas
prioriza a elaboração de trabalhos coreográficos para a apresentação nas datas festivas,
transformando os corpos dos sujeitos em depósitos de conhecimento. Ademais, questiona
o despreparo dos docentes no que concerne ao ensino de Dança. Para ele, há grande
demanda de profissionais de Dança no contexto escolar, ou seja, os cursos superiores não
oferecem todo o embasamento para as práticas pedagógicas. Os docentes devem utilizar
práticas educativas que considerem a bagagem cultural do corpo-pensar, ou seja,
experiências para a educação de um corpo que já vem com manifestações, desejos e
informações.
Destacamos a pertinência de trabalharmos com Danças Brasileiras, Danças Urbanas e
Performance, aproximando-nos do universo dos alunos, porque eles têm conhecimentos
prévios acerca da Dança. Ao experimentar as Danças Urbanas, por exemplo, trouxemos
para a classe escolar um estilo de Dança conhecido, do qual eles já possuíam certa
bagagem corporal. Essa experiência foi muito positiva: trocávamos experiências com
músicas e movimentos, um aprendia e ensinava a sua própria Dança, mas também eles
desejaram conhecer e aprender outros estilos.
De acordo com Freitas (2019), ocorreu um maior entendimento de que o corpo
atravessa diferentes domínios e de que, ao relacioná-los, “atinge-se o objetivo educativo
que busca o pleno desenvolvimento de uma pessoa, citado na Constituição Federal do
Brasil, mais conhecido sob o termo de Educação Integral” (Freitas, 2019, p. 300). Assim,
o ato de dançar interfere diretamente nos modos de pensar e agir, na formação de cada
aluno que passa a obter mais conhecimento do mundo e de si próprio.
Outros apontamentos são evidenciados por Larissa Marques (2018), que comenta
sobre os desafios encontrados para o ensino de Arte, especificamente para a Dança, ao
considerarmos a diversidade cultural brasileira. Para ela, é justamente por essa
diversidade que a proposta de uma BNCC apresenta fragilidades, levando em
consideração que a ação docente é restringida em prol de um modelo padrão de escola.
Além do mais, o documento retira a especificidade da Arte como uma área distinta e abre
precedente para o retorno do(a) professor(a) de Arte polivalente.
Nas palavras de Marques (2018),

[n]a Educação Infantil, a Arte é mencionada inserida em dois campos de experiência:


Corpo, gestos e movimentos e Traços, sons, cores e formas, mas essas menções são
bastante genéricas e resumidas, sem indicações de possíveis objetivos, conteúdos,
procedimentos e estratégias avaliativas, esperadas nos diferentes anos que compõem
esse nível de aprendizagem. Para o Ensino Fundamental, apesar de o texto apresentar
os objetos de conhecimento e as habilidades a serem adquiridas pelos educandos, em
cada unidade temática, elas são denominadas como unidades, dentro do componente
Arte e, dessa maneira, é bem provável que os concursos públicos e as contratações e /
ou manutenções de professores de Arte, nesses níveis de ensino, tendam a exigir um
perfil de um(a) professor(a) para ministrar aulas de mais de uma linguagem, talvez até
em todas as quatro. (Marques, 2018, p. 30)

Essa contribuição se aproxima das problematizações de Vieira (2019), que afirma que
a BNCC aponta apenas para o fazer como modo de construção, limitando-o e dissociando-
o do apreciar, contextualizar e criticar. O autor também identifica que o entendimento de
Artes na Educação Básica é abrangente e polivalente, pois a BNCC permite que a
polivalência seja efetivada ao propor o ensino de artes integradas, mas as linguagens das
artes devem ser consideradas com suas especificidades. Nesse sentido, Vieira (2019)

21
Corpos que Dançam | 2022

sinaliza a impressão de que há uma tentativa de esvaziar o ensino de Arte do seu teor
crítico e reflexivo, para formar sujeitos dóceis e conformados.
A BNCC indica outra unidade temática, no âmbito da polivalência: as Artes Integradas
(Dança, Teatro, Artes Visuais e Música). Segundo Vieira (2019), as Artes Integradas são
o caminho para a polivalência, porque favorecem qualquer docente com Graduação na
área de Artes que, na Educação Básica, ensine conteúdos inerentes a uma das linguagens
artísticas. Em síntese, para Vieira (2019), em relação ao ensino de Arte/Dança, a Base
não considerou os conteúdos indispensáveis para o currículo dos anos iniciais do Ensino
Fundamental. Além disso, ao desconsiderar contextos sociais onde a Dança está inserida,
limitou seus objetos de conhecimento, dissociando sua prática do apreciar e do
contextualizar que são essenciais ao ensino, no contexto escolar. Assim, o autor destaca
uma contradição no documento: ora identifica que cada linguagem da Arte tem suas
singularidades e habilidades específicas, ora projeta todos os conhecimentos em Arte
numa única unidade (Artes Integradas), promovendo um retrocesso, como no contexto da
ditadura militar e da LDB de 1971 (Vieira, 2019). Por fim, Vieira (2019) indica que as
orientações na BNCC (2018) para Arte/Dança estão direcionadas a um modelo de
currículo unificado e ajustado ao conteúdo, à avaliação e à gestão.
O paradigma das Artes Integradas provoca desalinhos, entre a BNCC (BRASIL, 2018)
e a Lei n.° 13.278/16, uma vez que o ensino de Artes Visuais, Música, Teatro e Dança é
obrigatório na especificidade de cada linguagem. Na BNCC, em direção contrária, as
Artes Integradas consistem em outra unidade, juntamente da tecnologia e comunicação.
Esses aspectos têm a incumbência de dialogar entre si. Identificamos que a BNCC se
embasa no currículo sistematizado e o ensino de Arte e Dança continuam envoltos em
metodologias tradicionais. A Dança é incluída como processo de investigação, produção
artística e percepções corporais.
Deve-se considerar que a Dança possibilita o encontro com outras linguagens das
Artes, mas também as Artes Integradas são a junção das linguagens artísticas, que
ocorrem no processo final e, muitas vezes, simultaneamente. Bons exemplos de
profissionais que trabalham com artes integradas são os artistas de circo, de capoeira, de
danças urbanas, de Danças Indígenas, de Danças Populares e Folclóricas Brasileiras de
cunho dramático (Maracatu, Congada, Festa do Boi) e, entre outros, dos desfiles de
carnaval.
Apesar do aumento expressivo dos cursos de licenciatura em Dança, Música, Teatro e
Artes Visuais, nos últimos dez anos, nos sistemas públicos de ensino, encontramos grande
parte dos concursos sendo destinados aos licenciados em Artes e Pedagogia. Ou seja, a
contratação de profissionais especializados é um grande entrave nas escolas públicas. A
própria legislação é contraditória: o licenciado, em Dança, na legislação não é
reconhecido para lecionar no campo escolar, pois não existe a disciplina Dança no
currículo, mas quem está habilitado a lecionar Artes e suas linguagens no ensino formal
são o Pedagogo e o licenciado em Artes. Não obstante, uma parte das escolas particulares
as escolas de tempo integral vêem contratando profissionais especializados para ministrar
oficinas.
No período de 2011 a 2012, a docente Alexandra atuou na rede de Betim/MG em uma
instituição escolar como oficineira de dança na escola de tempo integral, no contraturno.
Essa oficina contemplava conteúdos específicos da Dança. Lecionou Danças Brasileiras,
Dança Afro-Brasileira, Danças Urbanas, Dança do Ventre e Performances. Como não
tínhamos a obrigação de produzir coreografias para as festividades escolares e concluir
determinados conteúdo, o ensino de dança fluía naturalmente, sem normatizações. Tivera
a oportunidade de fazer intercâmbio com outros profissionais de outras linguagens da
Arte e produzir projetos em conjunto. Tanto as formações com professores de danças de

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Corpos que Dançam | 2022

outras escolas quanto os workshops de bailarinos e bailarinas, coreógrafos e coreógrafas,


pesquisadores e pesquisadoras eram mensais.
Resumindo, a BNCC (2018) inclui o ensino de Dança em toda Educação Básica como
processo de investigação e produção artística, volta-se para as festividades sem valorizar
os conhecimentos específicos dessa linguagem da Arte, buscando atingir objetivos
educacionais por meio da Dança, como socialização, conhecimentos corporais,
aprendizagem, aumentar competências e habilidades. Ademais, a BNCC retorna
novamente com a polivalência, o que nos faz retroceder, pelo menos, 30 anos.

Considerações Finais

As problematizações apresentadas neste artigo identificam que o caminho da Dança


na história da educação brasileira não segue uma trajetória linear, mas sim uma estrada
sinuosa repleta de lutas. Criaram-se documentos norteadores e leis, mas nenhum
contemplava a Dança até a Constituição de 1988. Entretanto, a Dança no Brasil avançou
como manifestação artística e na profissionalização de bailarinos e bailarinas e grandes
nomes surgiram nesse panorama dançante, a partir de escolas, universidades e academias
especializadas.
A Dança adentra o ensino superior na década de 1950 e torna-se área de conhecimento
ao instituírem, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), o primeiro curso de Graduação
em Dança, no Brasil, formação de Bacharelato. No ano de 1976, o curso de Licenciatura
em Dança na mesma universidade. Atualmente, temos 54 cursos de Licenciatura em
Dança no Brasil e cerca de 140 especializações com temáticas direcionadas à Dança, além
de Mestrado e Doutorado.
Em direção contrária, nas instituições escolares, a Dança não é vista como área de
conhecimento, mas apenas como uma mera atração nas comemorações e uma prática de
atividade física. A Dança é inserida nos currículos escolares, a partir dos PCN, nas
disciplinas de Arte e Educação Física como parâmetros orientadores. O ensino de Dança,
na Educação Básica, inicia sua inserção somente nos currículos na área das Artes e a partir
da LDB de 1996. Esse cenário de exclusão da Dança dos currículos da educação básica
teve alteração em 2016, quando a Dança se torna conteúdo obrigatório na disciplina de
Artes. Apesar disso, os avanços são poucos, na medida em que apenas leis e currículos
não garantem o ensino de Dança.
Ademais, temos a predominância do ensino de Artes Visuais em relação a outras
linguagens das artes, em que as atividades de desenho e cópia perduram nas aulas de Arte
– são a herança das pedagogias de ensino dos jesuítas enraizadas na educação brasileira.
Na prática, a Dança nas instituições escolares está vinculada às festividades escolares e à
valorização das Danças Ocidentais, em detrimento das Danças Brasileiras e da cultura
brasileira. Consideramos, que a ausência ou o pouco conteúdo de dança nos cursos de
graduação em Pedagogia, Artes e Educação Física intervém no desenvolvimento do
ensino de dança na Educação Básica.
A história do ensino de Dança, no Brasil, alvorece no período colonial, percorre o
imperialismo, as repúblicas, a criação de escolas de Dança, as manifestações culturais
brasileiras, os cursos técnicos e superiores de Dança para depois adentrar o ensino formal
nas escolas brasileiras como conteúdo obrigatório.
Nesta cartografia dançante, a história da Dança na educação brasileira estabeleceu-se
num lugar pré-determinado de exclusão e discriminação, tanto da Dança, quanto do
profissional de dança, situação comprovada nos documentos e leis da educação. Ademais,
com raízes no período jesuítico e na Idade Média, essa herança ainda se faz presente no

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contexto escolar, de modo a que o arquivo de revistas, bem como, o diário de bordo de
uma artista-docente nessa cartografia, retrata as memórias das lutas da dança, além de um
objeto de pesquisa, é reflexo e comprovação dessa influência de mais de 300 anos, assim,
como a polivalência no ensino de Artes, a valorização das Artes Visuais em detrimento
de outras linguagens artísticas, as práticas pedagógicas tecnicistas e a cópia do desenho,
como ferramenta principal da Arte na educação.
Diante dessa constatação, a Dança ocupou um lugar diferente em relação as outras
linguagens da arte. Apenas a partir da LDB de 1996 e dos PCN adentrou os currículos
escolares e se tornou conteúdo obrigatório somente através da Lei nº 13.278/16 e BNCC
(2018). Ressalvo, que as propostas da BNCC (2018), em toda Educação Básica,
apresentam fragilidades e contradições, pois o documento propõe trabalhar as
especificidades das linguagens das artes. Ao mesmo tempo, com as artes integradas,
retrocedemos no mínimo 30 anos. Em relação ao ensino de Dança, baseia-se nos
processos de investigação e produção artística, enfatiza as festividades sem valorizar seus
saberes próprios para atingir objetivos da educação: aprimorar competências e
habilidades, aprendizagem e socialização. Nessa concepção, Marques (2018) e Vieira
(2018) e Freitas (2019) e Vieira (2019) comentam que a BNCC abre precedentes para o
retorno da polivalência.
Em vista dos argumentos apresentados, as lutas pela integração da Dança na educação
brasileira, refletem as intenções dos padres jesuítas no início da colonização com a
catequização dos índios: formar corpos dóceis. Identificamos, nas explanações de autores
do arquivo, que nas aulas de Educação Física e Artes pouco se ensina Dança, porque a
ênfase está nos esportes e nas Artes Visuais, aspecto semelhante nas instituições em que
a professora Alexandra Noronha atuou como artista-docente e explanado no diário de
bordo.

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Olhares para a dança na prática pedagógica com crianças:


o que e porque fazemos?

Patricia Taborda GALVÃO


Colégio Sagrado Coração de Jesus – Ponta Grossa PR, Brasil
[email protected]

Daiana CAMARGO
Universidade Estadual de Ponta Grossa – PR, Brasil
[email protected]

Resumo: A dança é a umas das manifestações mais antigas de expressão do homem,


desde que nascemos, o nosso corpo é constante movimento. Neste sentido, discutimos as
contribuições da dança no desenvolvimento da criança pequena, bem como as
possibilidades do trabalho com a dança, no intuito de compreender o conhecimento que
as professoras de crianças pequenas têm sobre a dança na Educação Infantil e a efetivação
de práticas/vivências com a dança dentro da escola. Quanto a metodologia, os dados
foram gerados a partir de respostas ao questionário online. A análise dos dados, foi
realizada a partir do software Iramuteq, que através do recurso “nuvem de palavras”
representa graficamente as palavras que aparecem com mais frequências nas respostas
das participantes da pesquisa. Os resultados desta pesquisa apontaram que as professoras
da Educação Infantil não reconhecem a dança como prática pedagógica, ou seja, não
compreendem o trabalho da dança na Educação Infantil e suas possibilidades, bem como
contribuições e efetivação no processo do desenvolvimento integral da criança. Nessa
perspectiva, é possível considerar que ainda há um longo caminho a ser percorrido para
que a dança seja compreendida em sua totalidade, de modo a ser efetivada na escola
seguindo as possibilidades apresentadas neste trabalho.
Palavras-chave: dança, crianças pequenas, professoras, educação infantil

Abstract: Dancing is one of the human beings’ oldest ways of expressing themselves since
from the moment we are born our body is in constant movement. For this reason, we
discuss the contributions of dancing to the development of young children and the
possibilities of working with dance in schools. We seek to understand teachers’ and
children’s knowledge about dance in early childhood education and the use of
practice/experience with dance in that environment. The methodology included the use of
an online questionnaire, and the data was analyzed using the software Iramuteq. This
resource employs the ‘word cloud’ resource to represent graphically the words that
appear more often in the research participants’ answers. Our results pointed out that
teachers working in early childhood education do not recognize dancing as a teaching
practice. That is, they neither understand the work with dance and its possibilities in their
teaching environment, nor recognize its contributions and effectiveness in the children’s
holistic development. Therefore, we consider that there is still a long way to go to promote
the understanding of dancing in its entirety, so that it can be included in school practices
following the possibilities presented in this study.
Keywords: dancing, young children, teachers early childhood education
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A criança e o movimento como linguagem

Neste artigo, apresentamos parte dos resultados da pesquisa sobre as contribuições da


dança no desenvolvimento da criança pequena, bem como as possibilidades do trabalho
com a dança, tendo um olhar direcionado para se compreender o conhecimento que as
professoras de crianças pequenas têm sobre a dança na Educação Infantil, e como
acontece sua efetivação na escola.
Compreendemos a importância da criança mover-se e perceber que o movimento tem
total influência no seu desenvolvimento, não só motor, mas também no cognitivo.
Garanhani (2005), diz que “a criança pequena necessita agir para compreender e expressar
significados presentes no contexto histórico cultural em que se encontra” (Garanhani,
2005, p. 90).
Quando a criança está em movimento, seus pensamentos compreendem o momento
que ela está vivenciando e a auxilia perceber qual sentimento ela deve colocar naquele
movimento, seus pensamentos terão essa compreensão, e logo sua expressão facial e
corporal irá traduzir essa vivência (Garanhani, 2005).
A partir dos estudos de Wallon, Galvão (1995 ressalta que “muitas vezes, para tornar
presente uma ideia, a criança precisa construir, por meio de seus gestos e posturas, um
cenário corporal” (Wallon apud Galvão, 1995, p. 73), com seus pensamentos, por meio
da imaginação, os movimentos da criança podem fazer um objeto ou uma vivência se
tornar presente e, nesse momento, se inicia a organização do pensamento. Deste modo, é
possível compreender o movimento da criança como uma linguagem. Garanhani (2005),
afirma que:

Na pequena infância o corpo em movimento constitui a matriz básica, em que se


desenvolvem as significações do aprender, devido ao fato de que a criança transforma
em símbolo aquilo que pode experimentar corporalmente e seu pensamento se
constrói, primeiramente, sob a forma de ação. (Garanhani, 2005, p. 90)

Com isso, se faz necessário que desde bebê, a criança seja estimulada a mover-se,
porque o desenvolvimento do movimento como linguagem se dá a partir do nascimento
da criança até sua fase adulta.
Segundo Galvão (1995), Garanhani (2005), e Almeida (2016), Wallon diz em seus
estudos que a criança passa por cinco estágios de desenvolvimento e, nesses estágios, o
movimento é trabalhado de maneira específica, se desenvolvendo no decorrer dos anos.
Cada estágio que se inicia é preparado pelo estágio anterior. Desse modo, o movimento
precisa ser amplamente trabalhado, para que nos estágios posteriores, o desenvolvimento
aconteça de maneira gradativa.
Neste trabalho serão apresentados os três primeiros estágios, os quais abrangem a
idade das crianças que estão presentes na Educação Infantil, que são o alvo desta pesquisa.
O primeiro é o estágio impulsivo-emocional (0 a 1 ano), aqui “as reações da criança
são essencialmente reflexos” (Garanhani, 2005, p. 84), ou seja, os movimentos são
realizados para atender suas necessidades: o bebê utiliza os movimentos para expressar
seus desejos, emoções ou se algo não está bem. No início deste estágio os movimentos
acabam sendo involuntários e realizados de acordo com o momento de cada bebê - no
decorrer os movimentos vão se aprimorando e ficando mais elaborados. O ponto forte
deste estágio são as emoções, sendo que elas dão todo o embasamento para a realização
dos movimentos: “[…] é o movimento corporal que dá sustentação para o
desenvolvimento da afetividade e o desenvolvimento das funções mentais” (Garanhani,
2005, p. 85).

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Corpos que Dançam | 2022

Depois, a criança passa ao estágio sensório-motor e projetivo (1 a 3 anos), em que “o


interesse da criança se volta para a exploração sensório-motora do mundo físico” (Galvão,
1995, p.44). Neste estágio, o movimento caracteriza-se pela descoberta e ampliação de
novos movimentos: gatinhar, agarrar, segurar, andar, são alguns dos movimentos que elas
passam a explorar. Nesta fase os movimentos são realizados com intencionalidade e
começam a ter o auxílio da fala.
Já no terceiro estágio, que é o estágio do personalismo (3 a 6 anos), o movimento
contribui para o reconhecimento do eu-outro, em que, tempo em que a consciência de si
se constitui por meio de interações sociais. Aqui, o trabalho do movimento deve ser
efetivado com o outro: o espaço físico e humano são as peças fundamentais para que isso
aconteça. O meio no qual a criança está inserida é grande influenciador, pois é nesse
estágio que a criança começa a construir a sua personalidade. (Garanhani, 2005; Galvão,
1995).
É possível perceber que em cada estágio do desenvolvimento da criança, o movimento
apresenta uma linguagem específica da idade, mas sempre articulado com que foi
desenvolvido no estágio anterior. O movimento quando bem explorado e bem
desenvolvido proporciona muitos benefícios à criança. Sobre isso diz Galvão (1995): “O
desenvolvimento da dimensão cognitiva do movimento torna a criança mais autônoma
para agir sobre a realidade exterior. Diminui a dependência do adulto, que antes
intermediava a ação da criança sobre o mundo físico.” (Galvão, 1995, p. 73).
O processo do desenvolvimento dos movimentos tende a incentivar a criança a ser
mais independente e a compreender o mundo em que vive. Deste modo, Souza (2016)
afirma que a criança constrói a sua história por meio da interação com seus pares,
apropria-se e reinventa o mundo, fica imersa no meio cultural e, esse meio, é uma grande
mais-valia para que ela construa a sua identidade. O meio no qual a criança está inserida
irá proporcionar essa construção no desenvolvimento da criança. De acordo com Galvão
(1995): “Na infância é ainda mais pronunciado o papel do movimento na percepção. A
criança reage corporalmente aos estímulos exteriores, adotando posturas ou expressões,
isto é, atitudes, de acordo com as sensações experimentadas em cada situação.” (Galvão,
op. cit., p. 72).
A criança adota posturas e expressões de acordo com os estímulos que recebe. Neste
sentido, torna-se necessário que os educadores que estejam presentes em sua infância na
escola, a estimule de tal maneira, que elas tenham um desenvolvimento eficaz, para que
os movimentos transmitam vivências e emoções. Quando a criança não recebe esses
estímulos, os seus movimentos ficam reprimidos e, por vezes, ela acaba não conseguindo
se expressar, se comunicar através do corpo e, consequentemente, isso afetará a sua vida
adulta.
Como educadores é preciso pensar que tipo de criança queremos forma e de que forma
é possível contribuir para o desenvolvimento integral desta. De acordo com Garanhani
(2005) existem duas opções: “educar corpos conchas que eventualmente sabem dançar
ou educar crianças que se aprimorem da dança para fazer alguma diferença no
corpo/mundo em que vivemos?” (Garanhani, 2005, p. 32). Capri (2015) afirma que:

Pelo corpo é possível que o ser humano descubra e expresse alegrias, tristezas,
angústias, medos e outros tantos sentimentos; a dança faz parte desse universo
expressivo, possibilitando o contato com uma forma de apreciação estética que
envolve o corpo em movimento. Ao dançar, a criança se expressa criativamente,
aumentando suas possibilidades de integração com o mundo. (Capri, 2015, p. 288)

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Assim, é possível compreender que a dança integra o universo do movimento, e com


ela se tem inúmeras possibilidades de trabalhar em prol do desenvolvimento integral da
criança, além de que, ela proporciona vivências divertidas e significativas. A dança
permite que a criança conheça seu corpo, explore suas habilidades, supere seus limites;
permite que se expresse e libere sentimentos e emoções (Capri, 2015). Desse modo,
trabalho com a dança possibilita o desenvolvimento do movimento como forma de
comunicação.
A articulação de autores de diferentes áreas de conhecimento (Galvão e a abordagem
da psicologia amparada em Wallon, Souza e Capri com a formação em dança e educação
física; Garanhani e sua trajetória de pesquisa que se inicia na educação física e adentra a
educação, embasada em estudos da Psicologia e da Sociologia da Infância) tratando do
movimento/linguagem nos fortalecem a pensar o papel da Pedagogia ao incorporar tais
discussões e possibilitar práticas de movimento e expressão, nas diversas linguagens nos
espaços de formação inicial em prol de um professor disponível corporalmente, criativo
e brincante.

Caminhos e escolhas da pesquisa…

No intuito de compreender como a dança é entendida por professoras que atuam na


Educação Infantil e perceber como se dá a efetivação do trabalho com a dança na escola,
optamos pela geração de dados a partir de um questionário semi-estruturado, gerado no
aplicativo Google Forms, escolha baseada nos estudos de Torini (2016).
A análise dos dados foi realizada a partir do software IRAMUTEQ (Interface de R pour
lês Analyses Multidimensionnelles de Textes ET de Questionnaires), que através do
recurso a uma “nuvem de palavras” representa graficamente aquelas que aparecem com
mais frequência nas respostas das participantes na pesquisa. Dentre estas palavras,
aparecerem, entre outras, “desenvolvimento motor”, “apresentações” e “movimento”.
Os dados obtidos foram organizados em duas categorias sendo, os saberes e os fazeres,
a fim de compreender o que as professoras têm por conhecimento sobre a dança na
Educação Infantil, bem como perceber como a dança acontece na prática nas escolas.
A análise dos dados em categorias teve respaldo nos estudos de Campos (2004) e Silva
(2009) considerando que a categorização auxilia no processo de compreensão dos dados
obtidos na pesquisa, de modo a desvendar o conhecimento que as participantes da
pesquisa têm sobre o assunto. Desse modo a categorização permite que o pesquisador
possa constituir uma análise minuciosa sobre tais questões.

As professoras e seus fazeres: práticas, possibilidades e intencionalidades na


Dança na escola

Após análise dos saberes que as professoras participantes dessa pesquisa possuem
sobre a dança na Educação Infantil foi extremamente importante compreender como esses
saberes são efetivados na prática. De acordo com Silva (2009): “Com o passar do tempo,
os professores vão incorporando certas habilidades sobre seu saber-fazer e saber-ser, ou
seja, é com a própria experiência que o aluno de outrora, o qual possuía apenas saberes
teóricos, aprende a ser professor.” (Silva, 2009, p. 25)
Desde a formação inicial, o professor adquire conhecimentos teóricos que servem
como suporte para sua ação quando adentra a escola. O professor utiliza o seu saber para
construir sua prática, se pouco eles sabem sobre a importância no desenvolvimento da

30
Corpos que Dançam | 2022

criança pequena, pouco ele a usará para efetivar um objetivo pedagógico. É possível
perceber então, a necessidade de os professores buscarem por formação continuada, que
possa auxiliá-los a compreender a importância da dança, para que estes professores
possam possibilitar experiências significativas à criança pequena.
Para a compreensão de como se desenvolve a dança na instituição educativa, lançaram-
se questionamentos sobre as possibilidades de dança com os pequenos. A partir das
respostas das professoras1 que participaram da pesquisa, o software Iramuteq apresentou
os seguintes resultados (Figura 1):

Figura 1. Possibilidades da dança com crianças

Fonte: Software Iramuteq

Ao observar a nuvem de palavras nota-se, que quando se trata das possibilidades da


dança na prática pedagógica, ela acaba sendo efetivada em brincadeiras e nas
apresentações comemorativas. Diante disso, percebeu-se o uso da dança de maneira
superficial, com finalidades sem fim intencional pedagógico, como, por exemplo, para
preenchimentos do tempo, como gestos isolados e para apresentações festivas, como
atestam os depoimentos das Professoras aqui identificadas com as letras D e E: “Dentro
da nossa rotina a dança é presente e possível em todos os momentos do dia” (Professora
D). “Diversas, cantigas de roda e que tudo que envolva gestos e movimento” (Professora
E). Desse modo, é possível perceber a utilização da dança sem finalidade pedagógica,
apenas como uma ferramenta para passar o tempo com as crianças, utilizada apenas com
gestos, restringindo os movimentos. A dança vai além de um mero gesto ensaiado, de
movimentos predeterminados, que engessam a criança, conduzindo a que ela seja apenas
reprodutora de algo que é previamente elaborado e proposto. Consideramos que a dança
precisa de ser reflexiva, consciente e transformadora, permitindo que a criança crie, se
expresse e se desenvolva integralmente (Godoy, 2011).
Por exemplo, as danças de roda também precisam de ser realizadas para um fim
pedagógico, sendo que há inúmeras possibilidades de dançar em roda, envolvendo a
aprendizagem da criança na totalidade. Segundo Ostetto (2009) “O que aconteceria se os
(as) educadores (as) entrassem na roda, assumindo o girar de mãos dadas, entregando-se
à busca e ao mistério do círculo dançante? Articulando dança e educação [...]” (Ostetto,
2009, p. 179). É muito importante que os (as) professores (as) vivenciem momentos nos
quais possam experimentar sensações ao participarem numa dança, porque ao ter essa
experiência, este professor(a) irá proporcionar essas experiências aos seus alunos e

1
Todos os participantes do estudo são mulheres, assim adotamos o termo no feminino ao abordarmos os
dados obtidos.

31
Corpos que Dançam | 2022

alunas. Diante disso, se percebe a necessidade proporcionar momentos assim para o(a)s
professore(a)s, tanto em sua formação inicial, quanto em formação continuada.
Observando as demais respostas percebeu-se que algumas professoras compreendem
a efetivação da dança na educação infantil em apresentações culturais, nomeadamente,
em datas comemorativas. Ao indagarmos sobre como se efetivam as práticas de dança
com crianças da Educação Infantil, as participantes da pesquisa nos dizem:

Nas brincadeiras, nas apresentações culturais nas instituições, nos projetos internos,
nas mobilizações das aulas e nos momentos para dançar livremente, também,
momentos para se observar a criança, pois ela estará expressando, através da
linguagem corporal, aquilo que muitas vezes não consegue expressar verbalmente.
(Professora G)

São várias as oportunidades: desde uma coreografia ensaiada para uma apresentação,
como uma brincadeira cantada onde as crianças produzem movimentos. No cotidiano
da Educação Infantil a música e a dança estão presentes o tempo todo através do contar
e dramatizar histórias cantadas, brincadeiras de roda, sequências de ritmo, imitação de
movimentos, exercícios físicos com música, rotinas diárias, etc.. (Professora H)

Neste contexto, ressaltamos que o trabalho com as datas comemorativas na escola,


demarcado na fala da professora H pelo termo apresentação, vem sendo tema de discussão
no que tange ao currículo na Educação Infantil. Muitas práticas se reduzem a um acúmulo
de datas comemorativas, sem enlaçar os temas aos saberes, a cultura e as necessidades da
criança (vd. Figura 2).
Muitos planejamentos acabam sendo voltados para as datas comemorativas, e isso faz
com que o trabalho com as crianças fique engessado, restringindo-as em suas
experiências, limitando a construção de conhecimento significativo. Neste sentido,
reiteramos que as atividades planejadas para o cumprimento do trabalho com tais datas
fazem com que o campo de conhecimento das crianças não seja ampliado (Ostetto, 2012).

Figura 2. Planejamento por datas comemorativas

Fonte: Francesco Tonucci (1997)

32
Corpos que Dançam | 2022

Ao olharmos para a dança na perspectiva do planejamento é possível perceber que este


trabalho é realizado de forma desarticulada, desprovido de sentido para a criança, de algo
que venha acrescentar em sua aprendizagem. Sobre isto diz Ostetto (2012):

A marca do trabalho com as datas comemorativas é a fragmentação dos


conhecimentos, pois em determinada semana os professores trabalham o início da
primavera, na outra já entram com o Dia da Criança, tudo isso trabalhado
superficialmente e de forma descontextualizada. Na mesma direção, podemos perceber
a elaboração ou proposição de “trabalhinhos” “lembrancinhas”, dancinhas, teatros
geralmente destituídos de reflexão, por parte do educador, que em momento algum
para pensar no significado disso tudo para as crianças, se está sendo “gratificante”,
enriquecedor para elas. O educador acaba sendo um repetidor, pois todos os anos a
mesma experiência se repete, uma vez que as datas se repetem. Talvez uma atividade
aqui outra lá, um ou outro trabalhinho seja renovado, mas o pano de fundo é o mesmo.
Em relação às implicações pedagógicas, essa perspectiva torna-se tediosa na medida
em que é cumprida ano a ano, o que não amplia o repertório cultural da criança.
Massifica e empobrece o conhecimento, além de menosprezar a capacidade da criança
de ir além daquele conhecimento fragmentado e infantilizado. (Ostetto, 2012, p. 182)

Diante disso percebe-se, que de modo geral, a dança nas datas comemorativas é
realizada com as crianças de maneira superficial nas escolas. Verificamos que passa o
tempo e seguem as mesmas práticas (danças para evento das mães, para a festa junina,
para o evento de Natal…) e consideramos que muitas crianças (e adultos) não sentem
vontade de ter contato com práticas dançantes por não vivenciarem momentos de prazer
e descobertas dançando.
Em contraponto, nas mesmas respostas (Professora G e Professora H), é possível
perceber que mesmo superficialmente as participantes da pesquisa acabam reconhecendo
o valor da dança no desenvolvimento da criança pequena. Suas falas trazem a dança como
linguagem, onde a criança se comunica, se expressa e constrói sua identidade e a dança
como prática artística que envolve a dramatização, ritmo e brincadeiras, até a construção
coreográfica mais complexa.
Após a análise das respostas foi possível identificar um dado de uma das professoras,
que se contradiz no questionamento, que indagava sobre as reflexões e práticas da
importância da dança no desenvolvimento da criança, na formação inicial das professoras,
a que a Professora I respondeu:

Muito pouco. Porém busco estudar sobre assuntos relacionados ao desenvolvimento


infantil e percebo a importância da dança para o desenvolvimento das crianças, desta
forma sempre estou inovando e aprimorando minha prática pedagógica e as crianças
retribuem de forma muito positiva e demonstram grande interesse por atividades
musicais. (Professora I)

A resposta mostra a preocupação dessa professora a buscar formações que possam


auxiliá-la em suas ações com as crianças da educação infantil, porém, quando
questionada sobre as possibilidades de dança com os pequenos, a mesma professora
apresentou a seguinte resposta: “Todas as duas brincando e na sexta tem aula de música
e dança.” (Professora I)

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Corpos que Dançam | 2022

É possível perceber que há uma contradição nas respostas da Professora I, que apesar
de não dar elementos de sua prática, reconhece as possibilidades, mas não descreve as
formas para a efetivação desse trabalho.
Quando questionadas sobre se percebem a prática da dança presente na escola e suas
formas de efetivação, também houve uma contradição nas respostas:

Sim, a dança está presente como um dos conteúdos do currículo da Educação Física
onde é trabalhado seus aspectos básicos através das atividades rítmicas e expressivas,
brinquedos cantados, brincadeiras rítmicas e musicais, danças circulares e danças
folclóricas e populares brasileiras. Também a dança é abordada em momentos
artísticos através produções coreográficas para apresentações. (Especialista A)

E, “Não. Somente como ensaios de festa junina ou Dia das Mães” (Especialista B). A
Especialista. A diz que compreende a dança presente nas práticas escolares, bem como
sua efetivação de forma bem ampla e diversificada. Já a Especialista B afirma em sua
fala, que não percebe a dança nas práticas escolares sem se desvincular das apresentações
em festividades. Essa contradição mostra haver muito o que se compreender e aprender
sobre a dança na Educação Infantil, que há formas de se inserir a dança na escola. Porém,
há falta de conhecimento, interesse e até mesmo investimento para que as professoras que
atuam com crianças pequenas compreendam a importância que a dança tem no
desenvolvimento da criança pequena, e suas possibilidades de trabalho.
Compreende-se assim, que mesmo de forma sucinta ou fragmentada, as professoras
reconheçam a importância da dança para o desenvolvimento da criança, não haja
conhecimento de como inseri-la, na prática pedagógica. A ausência ou fragilidade do
conhecimento e das práticas sobre dança, corpo e movimento tende a persistir na
instituição educativa, seja por desinteresse em buscar conhecer sobre o tema, ou até
mesmo por esse tema não estar tão presente em espaços de formação continuada.

Coreografando considerações

A partir dos estudos do referencial teórico delimitado para a pesquisa, foi possível
compreender tal contribuição. Porém, as indagações e reflexões sobre a prática de como
a dança na escola levou o olhar desta pesquisa a outras possibilidades, afinando o olhar
para a dança como elemento de cultura, como capacidade expressiva e lúdica e como uma
grande oportunidade para se efetivar um planejamento, partindo da interdisciplinaridade.
Nesse processo foi possível perceber o quanto a dança está diretamente ligada ao
desenvolvimento da criança e que a sua contribuição não está restrita somente ao
desenvolvimento motor, pelo contrário, a dança proporciona também desenvolvimento
cognitivo, pessoal e cultural.
A dança possibilita à criança momentos prazerosos e significativos, pois, que criança
que não gosta de se mover? Porém, é preciso pensar em práticas que envolvam a dança
de modo a que ela venha enlaçar as crianças, promovendo esse prazer, gerando nelas o
gosto por dançar e se mover. Um trabalho mais direcionado com dança é muito
importante. Proporcionar às crianças momentos nos quais possam dançar livremente é
de grande significância, sendo que nesse momento ela transmite uma linguagem que vem
de dentro para fora, expressando tudo o que está em seu interior, como sentimentos,
emoções, conhecimentos e experiências. Quando a criança dança, ela conhece seu corpo,
explora seus limites e suas habilidades, interage com o seu “eu” e com o “outro”, inclusive

34
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tem, se for o caso, músicas que lhes possibilitam acesso ao conhecimento de


diversificadas culturas, agregando em sua aprendizagem.
Desse modo, se faz necessário repensar a efetivação do trabalho com a dança na
Educação Infantil, em razão de que um grande ponto observado durante a realização deste
trabalho, a partir dos estudos dos materiais teóricos, bem como no processo de obtenção
dos dados, gerando uma grande inquietação, foi perceber que a maioria das professoras
que trabalham com as crianças pequenas não compreendem tamanha possibilidade do
trabalho com a dança, ou do fato de ela é grande aliada no processo de aprendizagem e
desenvolvimento da criança.
O olhar para a dança na escola está atado a apresentações festivas, a um momento para
acalmar o aluno ou até mesmo para passar o tempo durante a rotina escolar. As danças,
na sua maioria, já são impostas às crianças, através de gestos prontos e criados pelas
professoras, de modo a não proporcionar um momento prazeroso para as crianças,
causando até mesmo traumas em algumas delas, e isso faz com elas percam o gosto por
dançar.
Neste caso, pode-se perceber que a falta da vivência por parte das professoras é um
dos motivos pelos quais elas não priorizam a busca de saber sobre as possibilidades do
trabalho com a dança ou procuram compreender a importância da dança no processo de
ensino-aprendizagem.
Quando se tem uma experiência com dança, de vivenciar momentos em que se possa
dançar livremente, de sentir, de se expressar, se tem o entendimento do quanto a dança é
algo prazeroso e, por consequência, quem teve uma vivência positiva com a dança irá
desejar que mais pessoas tenham a mesma experiência. Por isso, muitas professoras não
entendem o porquê da dança ser tão importante dentro escola, por não terem vivenciado
momentos com a dança, acabam não compreendendo as possibilidades de agregar esta
forma de expressão no processo de aprendizagem da criança.
É importante ressaltar, que um dos momentos oportunos para que as professoras
tenham essas vivências, é durante a sua formação inicial. Contudo, o que se percebe é
uma grande lacuna na graduação: a dança é pouco trabalhada em sua teoria, quem dirá
em sua prática. A falta desse trabalho durante a graduação faz com que a maioria das
professoras se acomodem em suas práticas em sala de aula e, quando estas adentram ao
meio escolar, tendem a repetir o modo sucinto e restrito de como a dança tem sido
trabalhada pela maioria das professoras.
Nessa perspectiva, é possível considerar que ainda há um longo caminho a percorrer
para que a dança seja compreendida em sua totalidade, de modo a ser efetivada na escola,
seguindo as possibilidades apresentadas neste trabalho. É preciso haver um despertar para
mudanças nas graduações que formam professores de crianças, pensando em uma grade
curricular que priorize discussões que entendam a criança como principal sujeito da
aprendizagem e que essa criança necessita aprender de forma lúdica. Se faz muito
importante também que as formações continuadas abranjam esse tema, para despertar um
novo olhar para as professoras que já atuam como docentes com crianças pequenas,
promovendo assim, momentos nos quais as professoras vivenciam experiências com a
dança e compreendem sua importância na escola.
A criança está e deseja estar em movimento. Ela não pode ser reprimida. É preciso
possibilitar que a dança a envolva e cative e que a conduza a mover-se conforme o ritmo
que bate forte em seu coração.

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Referências

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Tonucci, F. (1997). O maternal: o programa. Francesco. Com olhos de criança. Artmed.

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Corpos que Dançam | 2022

Corpos que traduzem dança e recursos multimídia: um estudo de caso


da interpretação para Libras da música Se ela dança eu danço
Juliana dos Santos PINTO
Instituto Federal de Santa Catarina
Campus Palhoça Bilíngue
[email protected]

Saionara Figueiredo SANTOS


Instituto Federal de Santa Catarina
Campus Palhoça Bilíngue
[email protected]

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar as diversificadas técnicas aplicadas à
tradução da música Se Ela Dança eu Danço de MC Leozinho, sendo esta análise baseada
em três pilares: linguística, cinematografia e corporalidade. Estes pilares foram
escolhidos por englobarem expressão corporal e facial, figurino, edição e dança. Da
ascensão à Língua Brasileira de Sinais (Libras) nos diferentes e variados ramos artísticos
dispostos a ela com sua utilização pelos sujeitos surdos, acentuando, também, os
conhecimentos da área de produção multimídia para a realização dos vídeos. Para obter
as impressões e opiniões dos participantes deste estudo sobre o vídeo exposto, foi
realizada uma pesquisa de estudo de caso, questionando e analisando de forma qualitativa,
a opinião de estudantes surdos do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de
Santa Catarina (IFSC) Campus Palhoça Bilíngue, acerca da influência da dança e edição
de vídeo neste projeto. Posteriormente, os dados foram descritos através de textos e
imagens retiradas do vídeo original, favorecendo e exemplificando a visualização e
entendimento dos entrevistados. E ao final, concluiu-se que o aprofundamento dos
quesitos retratados, como legenda, fundo, dança e expressão, são de suma importância
para que o público surdo se sinta atraído pela música em Libras.

Palavras-chave: música em Libras, estudo de caso, edição de vídeo

Abstract: This article aims to analyse the different techniques applied to the translation
of the song Se Ela Dança eu Danço by MC Leozinho and was conceived in three themes:
linguistics, cinematography, and corporeality, which encompass subjects such as body
and facial expression, costumes, editing and dance. It gives rise to the Brazilian Sign
Language (Libras) in the different and varied artistic branches available to it with its use
by deaf subjects, also emphasizing the knowledge of the area of multimedia production
for the realization of the videos. To obtain the impressions and opinions of the
participants of this study about the exposed video, a case study research was carried out,
questioning and qualitatively analysing the opinion of deaf students from the Federal
Institute of Education, Science and Technology of Santa Catarina (IFSC) Campus
Palhoça Bilingual, about the influence of dance and video editing in this project.
Subsequently, the data were described through texts and images taken from the original
video, favouring, and exemplifying the visualization and understanding of the
interviewees. And in the end, it was concluded that the deepening of the issues portrayed,
such as caption, background, dance, and expression, is of paramount importance for the
deaf public to feel attracted to music in Libras.

Keywords: music in Libras, case study, video editing

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‘Se ela dança, eu danço, balancei no balanço […]’: Uma breve introdução

A música foi inserida no contexto social há séculos, com o intuito de desenvolver a


expressividade, com diversos propósitos, a saber: conectar pessoas, expor sentimentos,
fazer refletir e exprimir arte em contexto social, por exemplo (Castro, 2011). Vivenciando
uma proposta pedagógica bilíngue num campus que possui esse perfil, como é o caso do
Instituto Federal de Santa Catarina - Campus Palhoça Bilíngue Libras/Português, é
perceptível que os discentes se mostrem mais sensibilizados com a causa bilíngue.
Quando se discute inclusão e acessibilidade de pessoas surdas na sociedade, as pessoas
surdas são geralmente ignoradas, ou se não, métodos são aplicados de maneira ineficaz,
ocasionando a falsa acessibilidade. No que acopla a experiência musical para que seja
holisticamente acessível é perceptível que seja:

[…] necessário um intérprete que transmita a poesia das letras. A interpretação de


letras musicais apresenta alguns desafios. O primeiro deles é o de saber traduzir com
desenvoltura, transmitindo a emoção, não apenas da letra, mas também da melodia,
com expressões corporais e faciais. O segundo desafio é o de adaptar letra e música à
realidade cultural do surdo. Dessa forma, é possível que o surdo compreenda o sentido
da letra e possa se relacionar emocionalmente com a composição. (Oliveira, 2014, p.
1)

Partindo desse pressuposto é possível compreender que devemos produzir materiais,


pensando especificamente na realidade do surdo, para que seja efetivo e toque
sentimentalmente aqueles que realmente interessam, já que cada indivíduo percebe o
mundo à sua maneira. Portanto, a disponibilização do conteúdo de maneira eficaz focado
a esse público é fundamental a fim de proporcionar poder de escolha ao surdo de consumir
ou não o conteúdo:

[...] os surdos, assim como os ouvintes, têm o direito de conhecer a música e expressar
sua musicalidade, cabendo, portanto, aos educadores e à família ampliar sua visão
educacional e lhes possibilitar o maior número de experiências prazerosas, que
contribuem com o seu desenvolvimento global. (Mourão & Silva, 2007. p. 169)

Para muitos, soa estranho perceber que surdos também frequentam e permanecem em
ambientes musicais. A diferença é que a percepção desses sujeitos é diferenciada: por
exemplo, é habitual, que para sentirem a música, os surdos coloquem a mão na caixa de
som ou apenas fiquem próximos de onde o som está sendo emitido para se atentarem,
devido aos sons graves, à vibração que é transmitida através das batidas (Castro, 2011).
“Uma das questões da exclusão das pessoas surdas neste contexto de vivência de sua
musicalidade é o fato de a sociedade ainda não compreender as inúmeras possibilidades
de vivenciá-la” (Paula & Pederiva, 2017, p. 538).
Deve ser levado em consideração também que a canção (música letrada) vai além do
som e da vibração transmitida e que existe uma mensagem que tem o poder de impacto
social e individual, de informar e oportunizar a possibilidade de mudanças na perspectiva
de ver o mundo. E apesar de já existirem pessoas sensibilizadas com essa causa, há muito
com o que contribuir e explorar dessa área que transcreve a música para a língua de sinais.
Há diversos conteúdos disponíveis, porém em seus processos de construção, os surdos
não são consultados em sua maioria, diminuindo a qualidade desses materiais. Visto que
a predominância de compreensão da identidade surda é caracterizada pelo visual, a
gravação e edição desses materiais deve ser considerada com mais cautela.

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Ainda há uma lacuna teórica e de pesquisa acadêmica sobre essa temática. Considero
os poucos estudos desenvolvidos, já que, ao fazer uma pesquisa no Google Acadêmico
pelos verbetes “música”, “libras”, “produção multimídia”, “edição”, excluindo patentes e
citações, possuem 32 resultados de artigos, e nos últimos cinco anos foram feitas 16 destas
pesquisas. Além disso, especificando ainda mais os verbetes de pesquisa não é possível
encontrar nenhum estudo que relaciona “música” e Libras no contexto desta região.
A partir do interesse na área de tecnologia e de Libras, desenvolvemos um projeto que os
conectam. O projeto Dance (em Libras) surgiu da ideia de se traduzir para a Libras três
músicas de estilos diferentes. A instalação consistia na ideia de que a pessoa podia
escolher entre estas três músicas e, a partir dessa escolha, o vídeo contendo a tradução
seria acionado e o interator poderia imitar.
O objetivo foi propor diferentes enquadramentos, danças, figurinos, cores, luzes e
elementos animados, que acompanham a melodia da música, a fim de explorar o visual
de maneira mais profunda. No que tange a escolha de sinais e a expressão corporal e facial
advinda da Libras, o trabalho foi realizado em conjunto com outros intérpretes de Libras.
Como entusiastas da dança, do audiovisual e Libras, o objetivo foi criar um material
acessível que reunisse esses elementos, pautados por um trabalho eficiente de tradução e
edição.
Das três músicas traduzidas do projeto, essa investigação se debruçou sobre a música
que pudemos explorar mais o aspecto da dança. A música é intitulada Se ela dança eu
danço, e é cantada pelo MC Leozinho. Tivemos a oportunidade de explorar a expressão
corporal e facial de maneira intensa, não só para efetivar a tradução (linguística), mas
também para propor a imersão através da dança e da incorporação da personagem inserida
na narrativa de ritmo brasileiro chamado Funk. O vídeo analisado pode ser acessado pelo
QR Code ou pelo link abaixo:

QR Code

Link : http://bit.do/VideoTCC

Com essa mescla de audiovisual e movimentos do corpo em geral, surgiu a curiosidade


de se pesquisar mais a fundo sobre qual seria a opinião fundamentada de surdos que se
deparam com esse vídeo.
Portanto, trazemos como objetivo geral desta pesquisa analisar como é que os surdos
reagem à tradução para Libras da música Se ela dança eu danço de MC Leozinho. Como
objetivos específicos, pretendemos:

- Relatar e descrever as opiniões e relatos dos surdos no que diz respeito à


interpretação (parte linguística) em Libras e à edição do vídeo;
- Questionar a impressão acerca da corporalidade (dança) inserida num vídeo de
tradução de uma música para a Libras;
- Discutir como é que estas alternativas à interpretação de músicas usadas na
edição e na postura do intérprete podem influenciar a aceitação de interpretação
de músicas dentro da comunidade surda.

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‘[...] E vem comigo dançar […]’: o que a literatura fala do acesso à música pela
pessoa surda?

A desigualdade no acesso de qualquer tipo de informação e conteúdo que o surdo


enfrenta não é uma novidade para quem é da comunidade surda. O sujeito surdo é
diariamente limitado a informações em geral: notícias, eventos culturais, artes (cinema,
música, entre outras formas de expressão). Visto nesse contexto, há escassez de conteúdos
disponibilizados para este público.
Um dos conteúdos que pode ser fornecido e explorado para a acessibilidade é a música
que é composta por ritmo, melodias, letras que fortificam a cognição humana. Ela é
responsável por fornecer aspectos importantes para a conexão pessoal e coletiva através
de questionamentos, sentimentos, nostalgias, maneiras de enxergar o mundo, com
impacto de desenvolver o ser humano capaz de criar laços memoriais e sensoriais:

[…] como fenômeno social, a música tem a capacidade de articular o indivíduo a um


grupo de referência mais imediato; porém, também cumpre outra função: serve como
instrumento de diálogo interno, diálogo formador de subjetividades. Na objetivação
das letras, ritmos e sons, a mensagem musical pode oferecer material reflexivo para os
jovens falarem de si para si mesmos. (Setton, 2008, p. 17)

E assim como há diversas culturas que constituem e estabelecem os comportamentos


humanos, na cultura surda há uma percepção divergente da que nós (ouvintes) estamos
familiarizados. Strobel (2008) explica que essa cultura se constitui por uma forma
diferente de perceber o mundo e significá-lo. Além disso, é de ressalvar que deve ser
mencionado que dentro da identidade surda existem diferenças particulares entre os
membros. Visto que a absorção de conhecimentos e informações é correspondente à
experiência de cada ser, a exemplo daqueles que foram obrigados a ter língua portuguesa
como primeira língua, pelo fato de, por muito tempo, a educação do surdo ser baseada na
oralidade e não na utilização de sinalização. (Forno & Panta, 2007). No que se refere à
legislação, a pesquisa de Pires e Campos (2012) diz-nos que: “A partir da Lei nº
10.436/2002, a Libras passa a ser estudada e praticada pelo surdo, como primeira língua
e o português, na modalidade escrita, como a segunda.” (Pires & Campos, 2012, p. 2499).
A falha geralmente apontada são os materiais produzidos por ouvintes sem a
consultoria dos surdos, abstraindo-se das percepções que estão inseridas na cultura deles.
É necessário obstinar o resultado para aqueles que possuem os olhos desenvolvidos a
perceber os detalhes visuais “[…] para ver e sentir a dança da língua de sinais é preciso
libertar as travas dos olhos que estão engessados pelo som e pelas estereotipias culturais”
(Masutti, 2007 apud Rigo, 2013, p. 11).
Segundo Castro (2011), há intérpretes de Língua de Sinais que refutam a ideia de que
a música seja apreciada pelos surdos por não pertencer à cultura e à identidade surda. O
que faz muitos afirmarem que a música, apesar de ser tão natural e presente na cultura
ouvinte, para muitos surdos ela é indiferente.
Entretanto, o questionamento a ser feito é se esse desinteresse parte de uma
neutralidade ou se ocorre devido à falta de técnicas para que essa sensibilidade com a
música seja sentida. “Para que o surdo tenha acesso mais amplo à experiência musical, é
necessário que novas técnicas sejam desenvolvidas, visando ampliar sua percepção visual
e sensorial.” (Oliveira, 2014, p. 17).
Há variadas maneiras de expressar o ritmo de maneira visual. Segundo, Alves (2018):
“O uso de formas e cores para representar tempo ou notas é comum, principalmente, na
educação musical para surdos” (Alves, 2018, p. 36). Em sua pesquisa estabeleceu uma

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Corpos que Dançam | 2022

relação em que a saturação máxima era proporcional ao pico extremo de energia na


música, geralmente atingido no refrão que possui mais intensidade.
É comum o uniforme neutro do tradutor/intérprete ser monocromático, evitando o
excesso de acessórios, justamente por atrapalhar na sinalização ou na compreensão dos
sinais. Porém, investir no figurino (de maneira sucinta para não causar poluição visual),
pode trazer ao espectador aproximação da narrativa que está sendo tratada, a que remete
a tradução de uma música.
A pesquisa de Nóbrega (2017), conclui que: “É importante definir que o figurino
expressa emoções, diferente realidade e funções estéticas.” (Nóbrega, 2017, p. 44). Na
pesquisa dessa mesma autora, que assemelha a importância do figurino ao entendimento
de história em Libras, baseado nos pensamentos de Roubine (2011), que afirma que o
ator necessita de roupas muito elaboradas, um traje aprimorado para insinuar a realidade
da personagem e seu modo de vestir.
Outra técnica experimentada no projeto, além da edição de vídeo, foram passos
repetidos de dança para transmitir imersão e noção de intensidade de ritmo ao espectador
do vídeo:

[...] o ritmo, segundo Coimbra (2003) foi utilizado pelos povos primitivos como
elemento de ligação entre a dança e a palavra. Percebe-se nesta afirmação uma estreita
ligação que o ritmo poderia ter com o surdo uma vez que, até o presente momento,
uma das ligações mais fortes entre a palavra e a expressão dos sentimentos (papel
também ocupado pela dança), é a gesticulação, a linguagem de sinais. (Luiz, 2008, p.
65)

É perceptível nas pesquisas que enfatizam a questão da música, em Libras, a presença


da preocupação relacionada com o português sinalizado. Como exemplo, trago o artigo
de Elizete Rodrigues e Vanderlei de Souza (2011) com o título: Músicas Sinalizadas na
Internet: Isso é Libras? e o artigo de Vivian Gonçalves Louro Vargas e Alexandre Melo
de Sousa (2017) com o título: Música para os sujeitos surdos: expressividade e
paralinguagem.
Ambos artigos trazem a temática de como a música sinalizada, geralmente não é
efetiva pela falta de atenção em trazer a língua na perspectiva do surdo, utilizando o
português sinalizado. Assim, se a música não traz sua artisticidade completa, como fazer
ele entender a mensagem e não traduzir de forma literal? Focando-se em aspectos
morfológicos, sintáticos e morfossintáticos, que redundam em português sinalizado ou
outras formas de sinalização não condizentes com a língua em questão.
Oliveira (2014) aborda outros aspectos além da linguística afirmando que: “O teatro e
a dança também podem auxiliar no processo de ampliação da percepção de vibrações e
ritmos, para que sejam expandidas as formas de aproximação entre o surdo e a música”
(Oliveira, 2014, p. 17). O que aproxima da pesquisa que realizamos, a fim de testar novas
estratégias que ampliem esta percepção, aproximando a pessoa surda à cultura musical,
utilizando da expressividade corporal tanto na dança, quanto da modesta incorporação da
personagem inserido na conjuntura do funk, recursos teatrais, na qual, o decorrer da
interpretação de uma música pode auxiliar a fortalecer o sujeito surdo socialmente
(Oliveira, 2014), além de imergir o sujeito na narrativa com o uso dessas artes
performativas: “Língua de sinais é arte em movimento, é uma coreografia circular, é uma
poesia cuja tensão corporal inscreve os ritmos que reaproximam os corpos das sensações”
(Masutti, 2007 apud Rigo, 2013, p. 11).

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Corpos que Dançam | 2022

De pronto, utilizamos de pesquisas voltadas à área de edição inclusa no contexto de


produção multimídia, complementando a percepção e experiência visual do surdo com a
música.

‘Vem viver esse sonho, eu te proponho, até suponho […]’: o que as pessoas surdas
percebem da interpretação deste ritmo?

Este artigo parte do campo de pesquisa da Produção Multimídia Bilíngue, que procura
utilizar a concepção de pesquisa com o intuito de observar a reação do surdo em relação
à música.A metodologia escolhida é de natureza qualitativa que tende a repassar o que os
públicos eventuais para a investigação demandam (Creswell, op.cit, p. 185), com a
intenção de deixar os participantes em situação confortável para, de acordo com a reação
dos integrantes que aceitarem contribuir para a pesquisa, obter informações mais fiáveis.
Segundo Creswell (2008), “Os pesquisadores qualitativos buscam o envolvimento dos
participantes na coleta de dados e tentam estabelecer harmonia e credibilidade com as
pessoas no estudo” (Creswell, 2007, p. 187).
O tipo de estratégia utilizada é um estudo de caso, disposta a arquitetar através de uma
investigação heurística detalhada, propostas mais eficazes para a produção de futuros
vídeos de músicas em Libras:

Estudos de casos, nos quais o pesquisador explora em profundidade um programa, um


fato, uma atividade, um processo ou uma ou mais pessoas. Os casos são agrupados por
tempo e atividade, e os pesquisadores coletam informações detalhadas usando uma
variedade de procedimentos de coleta de dados durante um período de tempo
prolongado. (Stake, 1995 apud Creswell, 2007, p. 32)

Um dos utensílios utilizados por esse tipo de estudo é elaborar entrevistas (Gray,
2009). Assim, este estudo utilizou de estudos exploratórios e explicativos usando de
ferramentas de coleta de dados semiestruturados. A entrevista semiestruturada pode ser
definida como combinações de perguntas abertas e fechadas, onde o entrevistado tem a
liberdade de dissertar sobre o tema proposto. “O pesquisador deve seguir um conjunto de
questões previamente definidas, mas ele o faz em um contexto muito semelhante ao de
uma conversa informal.” (Quaresma & Boni, 2005).
Esta pesquisa se concentrou em quatro pessoas surdas, entre 25 a 30 anos de idade,
estudantes do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina
(IFSC) Campus Palhoça Bilíngue, a fim de obter concepções e sugestões que possam
contribuir para aproximação de surdos com a música. A proposta é fazer com que quatro
pessoas surdas assistam à tradução da música Se ela dança, eu danço, de Mc Leozinho,
realizada previamente por nós. Após assistirem ao vídeo, os sujeitos responderam a
algumas perguntas, também roteirizadas previamente, a saber:

1) Quais as primeiras impressões que você teve do vídeo?


2) Qual a importância do cinema (luz, fotografia, figurino) na tradução?
3) Você modificaria algo no vídeo? O quê?
4) Neste caso específico, a dança influenciou na qualidade da tradução? Porquê?
5) O que mais te chamou a atenção no vídeo?
As entrevistas “são especialmente úteis quando não se sabe o suficiente sobre um
fenômeno” (Gray, 2009, p. 36). Como acima exposto, sigo Gray (2009), que explica que,
as indagações utilizadas pelo estudo explicativo são do tipo “por que” e “como” (GRAY,

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2009). Nesta pesquisa foi enfatizado o “como” para se ficar a saber qual a melhor maneira
de se aplicar e trabalhar o visual.
Pudemos intervir no roteiro, a fim de extrair outras informações dos sujeitos,
obedecendo à proposta de entrevistas semiestruturadas e as identidades permaneceram
anônimas, tendo sido utilizados codinomes escolhidos pela pesquisadora: Fernando,
Carlos, Laura e Júlia.
Após responderem ao questionário, utilizamos a análise de conteúdo, com a iniciativa
de captar informações de estética na tradução de música em Libras ainda não consolidado.
“[…] uma estratégia de aproximação sucessiva ao objeto de estudo, de modo a observar
práticas, identificar valores, conhecer motivações e expectativas, partindo do
entendimento dos seus protagonistas acerca das mudanças mais significativas na sua
vida.” (Dantas, 2008, p. 4). Para os temas abordados, foi aplicada a técnica de repetição,
considerando os pontos de vista dos sujeitos acerca do vídeo. Através da coleta de dados
gravados e transcritos, percebem-se as reações relacionadas ao objeto de estudo e, assim,
sugere-se um processo para futuros materiais com o mesmo intuito. O termo de
consentimento livre e esclarecido também foi assinado por todos os entrevistados,
permitindo o uso dos dados apreendidos neste trabalho.

‘[...] botar a chapa quente p’ra gente dançar [...]”: - o que os entrevistados
disseram sobre a Tradução?

Após entrevistar 4 pessoas surdas, trazemos as respostas destes indivíduos e


comentamos sobre elas, interrelacionando-as com a teoria exposta na fundamentação.
Partindo da costura textual adotada são apontados, primeiramente, comentários de cunho
complexificado para a compreensão do vídeo segundo os entrevistados, ou seja, reações
negativas carregadas de sugestões construtivas para a elaboração de materiais mais
agradáveis para aqueles que possuem os olhos praticados a reparar nos detalhes visuais.
Logo em seguida serão expostas as sensações atraentemente envoltórias perante a
comunidade surda. É importante notar que alguns entrevistados comentavam sobre as
respostas dos outros e, em geral, confirmando suas falas. Todos os nomes são fictícios
para preservar a identidade e apesar de utilizar a técnica de repetição para analisar o
conteúdo, a opinião individual é significativa, justificada pela coleta do máximo de
palpites, respeitando a particularidade de cada surdo.
Por mais que a utilização apenas da Libras possa ter resultado de entendimento
integral, a introdução e aceitação dela na vida dos surdos ocorre de maneira diversificada,
visto que a Língua Brasileira de Sinais foi reconhecida apenas em 2002, pela Lei nº
10.436. Pensando num material de tradução amplamente aceito pela cultura surda é
necessário compreender que existem diferenças como mencionado na fundamentação. A
justificativa dessa diversidade é que anteriormente a essa lei, os surdos foram designados
a obter o português como língua principal e após ela, o português se torna secundário, e
utilizado na modalidade da escrita. (Pires & Campos, 2012).
Compreendendo essas alternâncias é observável que a legenda em português possa
levar, de maneira diferente e dependendo do surdo, ao entendimento completo da música.
Visto que quando surgiu a pergunta: “Você modificaria algo no vídeo? O quê?”, todos
apontaram sobre a inexistência da legenda. “Eu acho legal colocar legenda. Porque dá
para sentir mais o contexto e conectar melhor [...] apesar de Libras e Português ser
diferente”, disse Júlia. Fernando, de modo desmedida, concorda: “Verdade, precisa de
legenda! A música traduzida em Libras dá para entender no primeiro momento em que
assiste, mas a legenda é boa para melhor compreensão depois, ela influencia”. A opinião

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de Laura traz ao debate a teoria exposta da presença da língua portuguesa na vida do


surdo: “Tem uma melhora no entendimento cognitivo, visto que o português já está
enraizado dentro do corpo”. Carlos, o primeiro entrevistado, já havia trazido a pauta sobre
que surdos são muitos visuais, um dos entrevistados sugeriu até que a legenda fosse
animada e colocada em pontos diferentes do vídeo e não tradicionalmente, de forma
linear.
Além do conselho de acrescentar a legenda, com essa mesma pergunta do que poderia
ser modificado no vídeo, foi despertada outra crítica pertinente relativa à edição. Sobre o
fato de que quando a protagonista do vídeo é deslocada, através da edição, se
movimentando da esquerda para direita e vice-versa, apesar de gerar comentários
positivos, causou alguns estranhamentos.

Figura 1. Exemplo do movimento da esquerda para a direita durante o sinal de ‘contato visual’

Fonte: Elaborado pelas autoras

A opinião gerada sobre esse teste é que, embora o ritmo da música seja funk e intenso,
a edição do vídeo da tradução da música precisa ser mais cautelosa, demonstrando mais
suavidade nas transições. Neste seguimento, Fernando menciona que é interessante esse
deslocamento da personagem, porque prende a atenção do olhar que é conduzido pelo
posicionamento diferenciado da edição, porém a transparência progressiva poderia
ocorrer mais lentamente acompanhando o ritmo (quando mais calmo).
Já Carlos, aponta que é necessário ser utilizado o efeito dissolver, que tem a função de
misturar dois vídeos diferentes de alguma forma, com mais clareza. Caso contrário, a
personalizada disposição aplicada da pessoa no vídeo, faz com que os olhos não consigam
acompanhar em muitos momentos, o que acarreta na perda de contexto.
Acerca do que acopla técnicas cinematográficas que influenciaram de maneira
positiva, a pergunta: “Qual a importância do cinema (luz, fotografia, figurino) na
tradução?” trouxe o tema ‘figurino’ através do Fernando, que em sua fala sugeriu essa
questão que quando utilizada com criatividade, é definido como arte - referente a
vestimenta, a pesquisa de Nóbrega (2017) infere que o figurino expressa sensações e
atribuições estéticas.

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Figura 2. Exemplo das animações usadas no fundo dos vídeos, utilizando Chroma Key 1

Fonte: Elaborado pelas autoras

Já Carlos e Laura, trazem a temática da ‘luz’: Carlos enfatiza a necessidade da luz e


efeitos que simulam os instrumentos, enquanto Laura elogia o fundo animado utilizado
no vídeo que remete a luzes. Júlia apenas concordou com os outros entrevistados.
Conclui-se que nessa pergunta relativa a cinematografia adotada, metade dos
entrevistados citaram ‘luzes simuladas’. Essa questão foi melhor detalhada pelos
entrevistados noutra pergunta. Conforme a pergunta: “Quais as primeiras impressões que
você teve do vídeo?” A ênfase foi dada à importância de informações para ditar a noção
de ritmo, visto que todos mencionaram, em seus relatos, esse aspecto. Na fundamentação,
foi mencionado por Alves (2018), que tem como embasamento o uso de formas e cores
para retratar tempo ou notas que compõem uma música, a relação é feita com a mudança
da saturação ao longo da música. Em analogia ao projeto apresentado, a relação foi feita
através de círculos animados, alterando os tamanhos e luminosidade e também tiras
originadas do centro que se espalham pelas extremidades no fundo com o objetivo de
conceder a sensação de potência visual, geralmente utilizada nas partes mais intensas da
música.
Essa escolha visual foi citada por 2 entrevistados. Laura, por exemplo, alegou que o
ritmo é inconstante e através da imagem de fundo é perceptível significá-lo. Fernando
concordou complementando, que percebe quando a música está mais calma e quando está
mais agitada, já que o fundo é modificado conforme a intensidade da música. Carlos não
citou a presença do fundo, mas declarou como cunho fundamental a existência de
simulações do ritmo para emitir o máximo de informações aos surdos. Por outro lado,
Júlia sentiu essa noção de ritmo através da dança apresentada nos vídeos. Outro elemento
referido, a edição, tida como primeira impressão por um dos entrevistados, foi o
enquadramento do sinal ‘namorar’, especificamente, que dá destaque à palavra, encarado
como componente de acréscimo ao resultado, já que para o entrevistado esse zoom
inesperado chamou sua atenção.

1
Chroma Key é um processo digital usado em edições de vídeo e foto, onde se utilizam imagens para recriar
fundos, produzindo assim, um efeito visual de primeiro plano e de pano de fundo.

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Figura 3. Enquadramento com o objetivo de enfatizar o sinal de “namorar”, utilizando o zoom

Fonte: Elaborado pelas autoras

Desviando um pouco do ramo audiovisual e dirigindo-nos à corporalidade como um


todo, é possível entender que a expressão facial e corporal exteriorizada através da Língua
de Sinais, dança e atuação, geram questões em torno de suas especificidades, fazendo
com que os surdos valorizem o trabalho efetuado. Perguntas como: “O que mais te
chamou a atenção no vídeo?” trazem reflexões diante dos temas abordados.
Afunilando para as percepções de atuação e tradução, a expressão tanto corporal e
facial provenientes da Libras, fazem imprescindíveis para a comunicação funcional,
ademais a manifestação corporalizada tangida em personificar o estereótipo escolhido ao
personagem é influente para um resultado mais atrativo.
A narrativa resumida da música, para contextualizar, é a de um homem com intuito de
admirar uma mulher em uma festa e dissertar sobre o seu interesse por ela. No trecho “ela
só pensa em beijar” da música, o sinal de “beijar” em Libras junto a expressão facial
(elevação da sobrancelha que representa sedução), facilita a compreensão da narrativa
composta por uma modesta teatralidade de incorporação, já que o objetivo do projeto era
que as pessoas reproduzissem os movimentos do vídeo, ou seja, que fossem as
personagens.

Figura 4. Exemplo do sinal “beijar” e a expressão facial utilizada para ressaltar seu significado

Fonte: Elaborado pelas autoras

Essa imersão da narrativa vai ao encontro da teoria fundamentada, que fala sobre a
influência social da utilização de recursos teatrais para o surdo (Oliveira, 2014). A
exemplo disso, trazemos à tona o acontecimento de quando um dos entrevistados,
Fernando, questionado sobre o que mais chamou a atenção no vídeo, mencionou a
expressão corporal e facial, exemplificando com a cena representada pela imagem
anterior que é sinalizado a palavra ‘beijo’. “O que mais chamou a atenção, foi sua
expressão facial, muito legal […] prende a atenção [...] além da expressão corporal”. A
entrevistada Júlia concorda, rindo, com o comentário do colega e acrescenta falando “Eu

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também, seu jeito, seu charme”. Os outros entrevistados também citaram as expressões e
um deles mencionou que achou interessante a tradução.
Somada à corporalidade mencionada anteriormente, a dança teve perspectivas
positivas pelo olhar (literalmente) dos surdos entrevistados. Quando questionados,
responderam “Neste caso específico, a dança influenciou na qualidade da tradução?”
todos responderam que sim, além de o tema ser bastante citado, em várias respostas, ao
longo do questionário. Ocasionalmente, dança nem era o foco da pergunta, mas esse tema
voltava a ser mencionado: “Não tem expressão de tédio. Já ficamos atentos [...] O vídeo
contém dança e isto é diferente``, comentou Laura, que aproveitou para citar a influência
da dança quando o tema era sobre edição. Fernando concorda com essa afirmação. Outro
exemplo forte foi da Júlia que sentiu a noção de ritmo como essencial, posto que das cinco
perguntas feitas, em três delas citou a palavra ‘dança’. Além de simpatizar com as
respostas dos outros colegas, quando esse tema era abordado durante a entrevista,
menciona: “O jeito da dança, mostra o ritmo, gostei bastante”. Estas respostas,
principalmente essa última citação da entrevistada, vão ao encontro com Oliveira (2014),
que afirma que, no processo de assimilação de vibrações e ritmos, a aproximação do surdo
e a música pode ser conectada e auxiliada pela dança. Uma das entrevistadas afirma que
Libras e Dança combinam. Essa aproximação lê-se na citação de Masutti (2007 apud
Rigo, 2013), quando afirma que: “Língua de sinais é arte em movimento, é uma
coreografia circular, é uma poesia cuja tensão corporal inscreve os ritmos que
reaproximam os corpos das sensações da dança” (p. 11).
Carlos afirma, que apesar de que a dança pode auxiliar na qualidade da tradução é
necessária mais informação além da dela: “É essencial que tenha o máximo de
informações possíveis para emitir o ritmo”. E é por isso que consideramos que devem ser
debatidas variadas formas de transmitir essas informações, envolvendo linguística, artes
performáticas e cinematográficas.
Com o objetivo de possibilitar uma visualização do que foi mais comentado sobre os
indivíduos surdos durante a entrevista, foi elaborado um mapa de palavras dos elementos
mais citados, em que o tamanho das palavras é proporcional à quantidade de vezes que
foram mencionadas durante a entrevista:

Figura 5. Mapa de palavras personalizado dos elementos mais citadas durante as entrevistas realizadas

Fonte: Elaborado pelas autoras

Com isso, à luz da literatura foi possível captar a percepção dos entrevistados com
respeito a música traduzida.

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‘Dançar, dançar, dançar… E vem viver esse sonho [...]’: algumas considerações

Primeiramente, parte-se do fato de que realizar traduções não é um processo simples,


principalmente no que tange a tradução de letras de canções. Neste artigo, podemos
perceber que esse processo pode abranger não só a língua, mas também pode ser
complementado por técnicas cinematográficas, tornando o processo criativo e ainda mais
visual. É perceptível na análise, por exemplo, que o fundo animado inserido na edição de
vídeo, pôde motivar os olhos dos surdos a visualizar os ritmos.
Além dos critérios remetidos à produção multimídia, a corporalidade possui
importante relevância devido à confirmação dos entrevistados de que a dança interfere
positivamente na tradução de música. É compreensível também que a expressão corporal
e facial advinda da Libras e da incorporação da personagem na narrativa são perspectivas
que se destacam de significativa influência.
Entretanto, algumas lacunas permaneceram: Como a legenda em português pode ser
inserida numa mídia visual com tantos elementos? Como os instrumentos musicais
podem ser representados através da sinalização ou da edição? Como o efeito dissolver da
edição do vídeo pode ser aplicado de modo eficaz? Estas são algumas perguntas que
afloraram da análise e podem ser estudadas em posteriores pesquisas.
Em respeito à primeira lacuna, verificar, que apesar das variadas informações inseridas
no vídeo, adicionar a legenda em português se torna necessária na compreensão integral
da letra pelo sujeito surdo. Uma sugestão dos entrevistados foi, que com o uso de
disposições diferenciadas durante a legenda da música, sua compreensão se daria mais
facilmente. Com isso, propomos que sejam feitos estudos futuros sobre a criatividade
aderida às legendas das letras das músicas, fazendo com que elas sejam visualmente mais
atrativas a seus consumidores sem lhes causar poluição visual.
Aproveitamos as considerações para confessar que o processo de tradução não foi
simples, exigiu um processo contínuo, repleto de paciência e profissionalismo por parte
da equipe de intérpretes que participaram neste processo. O resultado foi
satisfatoriamente compensatório, sendo bem visto pela maioria dos surdos que o
experimentaram. Estimulamos que novas pesquisas sejam realizadas nesse sentido,
impulsionando a intersecção de temáticas como a Dança, Expressão Corporal e
Comunidade surda, que se comunica utilizando todo o corpo.

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A Dança Relacional: Falar de Dança ou das Dinâmicas Cinéticas e


Afetivas de um Corpo em Movimento?

Isabel FIGUEIRA
Universidade de Coimbra
Associação Portuguesa de Dança Movimento Terapia
[email protected]

Resumo: Para pensar a dança e o movimento propomos conceitos, ou “chaves de leitura”,


que tanto podem servir para i) uma análise do processo performativo, como para ii) um
maior entendimento do papel, a nível individual e social, daquilo que se tem entendido
por dança. Às ideias de dança, enquanto tékhne ou de dança enquanto poíesis, acrescenta-
se o conceito de dança como expressão cinético afetiva, ou seja, enquanto vivência
relacional. Propõe-se um entendimento mais alargado da dança, não apenas como
expressão artística performativa, mas como expressão individual e comunitária. Esta
reflexão constrói-se recorrendo ao trabalho de Maxine Sheets-Johnstone, coreógrafa e
filósofa que tem refletido sobre o movimento, articulando princípios da biologia, das
neurociências, da psicologia e sistemas de notação de dinâmicas cinéticas, dando ênfase
à relação entre corpo, movimento e intersubjetividade. Pretende-se, deste modo, defender
uma perceção do movimento que tenha em conta o entrelaçar das dinâmicas afetivas e
das dinâmicas do movimento, concebendo-o, pois, como uma unidade cinético-afetiva e
relacional.

Palavras-chave: dinâmicas de movimento, emoções, fenomenologia, cinestesia,


cinético-afetivo, relacional

Abstract: In order to think about dance and movement we propose some concepts or
“reading keys” that can be useful for i) an analysis of dance as performance and ii) a
further understanding of the social and individual role of what been understood as dance.
We complement the ideas of dance as tékhne or dance as poíesis with our idea of dance
as kinetic affective expression, which is to say, dance as a relational living experience. A
broader understanding of dance is proposed, not only as performative artistic expression,
but also as individual and community expression. This reflection is built upon the work
of Maxine Sheets-Johnstone, choreographer and philosopher who has reflected on
movement, articulating principles from biology, neuroscience, psychology, and kinetic
dynamics notation systems, emphasizing the relationship between body, movement and
intersubjectivity. We defend a perception of movement that takes in account the
entanglement of both the emotional and movement dynamics, thus understanding
movement as a kinetic-affective and relational unity.

Keywords: movement dynamics, emotions, phenomenology, kinaesthesia, kinetic-


affective, relational

51
Corpos que Dançam | 2022

Emotion move us and in moving us are quintessentially


linked to kinetic/tactile-kinesthetic bodies.
(Sheets-Johnstone, 1999b, p. 274)

O que entender por Dança

Este trabalho pretende ser uma reflexão multidisciplinar sobre a experiência do


movimento, tentando dilatar o conceito de dança, aqui entendida não apenas como
competência técnica e expressão artística, mas como um modo de habitar um corpo, de
estar no mundo e de estabelecer relações. Propõe-se uma ideia mais lata de dança - não
como disciplina que se ensina, mas prática que se experiencia, não como matéria
curricular, mas como a vivência, explicitamente atenta, de um saber cinético e relacional.
Será então possível pensar “a dança”, não como aquilo que se executa para outros
observarem, mas aquilo que é movimento partilhado? Será então possível entender a
dança, não enquanto espetáculo e execução para uns poucos, mas como experiência
partilhada de corpos em interação, afetando e sendo afetados? Poderemos pensar uma
dança que acontece de encontros e diálogos marcados pela constante fluidez de
fenómenos, resultantes de experiências de intersubjetividade e de intercorporalidade?
A autora deste texto fez formação em Dance Movement Therapy nos finais dos anos
90 no então Laban Centre for Movement and Dance, hoje conhecido como Trinity
Colledge. Nessa época conviviam, lado a lado, o mestrado de Dança e o mestrado de
Dança Movimento Terapia1, pelo que era claro que havia lugar para estas várias
perspetivas: a da dança performativa e a dança enquanto comunicação interpessoal
emocional. Tudo é dança, nesta última perspetiva e o próprio estudo do sistema Rudolf
von Laban (1987-1958) fundamenta essa conceção do movimento expressivo, como
sendo algo bem mais amplo e completo que uma dança em sentido restrito. Era a essência
da dança, que Laban, com a sua pesquisa sobre dinâmicas do movimento, tentava
entender e resgatar, vendo-a presente não apenas nos espetáculos de dança, mas também
em gestos e interações do quotidiano.
Se tais gestos e interações, uma vez depurados, se cristalizam, por vezes, num
espetáculo de dança, não é lá que estão nem é lá que terminam. Pelo contrário, do palco
remetem-nos para a vida de todos os dias, de onde surgiram e para onde regressam, nos
corpos de cada um de nós, sejam os que dançam ou os que observam, como hoje sabemos
pela evidência dos neurónios espelhos, que nos comprovam que no corpo do observador
se ativam os mesmos circuitos neuronais correspondentes aos gestos que vê outros
fazerem. Ou seja, ver alguém dançar é já uma dança interna, isto é, quem observa tem, de
algum modo, uma experiência de ser movido e, por vezes, de ser co-movido.
Mover-se parece ser, então, um modo particular de deslocar/expor emoções, dar-lhes
relevo, trazê-las à superfície, tornando-as mais ou menos evidentes, mais ou menos
implícitas, para si e para os outros. Não observamos o movimento de alguém de modo
absolutamente quieto, nada é estático, como veremos no pensamento de Maxine Sheets-
Johnstone, tudo é fluido e tudo circula. Essa fluidez perpassa tanto o corpo de quem dança
como o corpo de quem está, aparentemente, do “lado de fora” da dança observada e que,
afinal, também é participante dessa mesma dança, uma ideia que a descoberta dos

1
Quando o Laban Centre teve um edifício construído de raiz e passou a chamar-se Trinity Colledge,
reassumiu a sua vocação para o ensino exclusivo da dança, pelo que o mestrado de Dance Movement
Therapy, por ser da área clínica, foi integrado no Goldsmiths College, adotando o nome de Dance
Movement Psychotherapy.

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Corpos que Dançam | 2022

neurónios espelhos veio fundamentar2. Sabe-se, hoje, que um observador vivencia


alterações nas áreas do seu cérebro correspondentes ao movimento que uma outra pessoa
está a fazer. Mais... que apenas através da observação regular, prolongada no tempo, de
alguém a exercitar-se, é possível aumentar a tonicidade de um observador, como se ele
também se tivesse exercitado. Os neurónios espelhos explicam um certo de tipo de
influência interpessoal somática, um processo que hoje se entende por intersubjetividade
somática, que é, também, uma interafetividade, ou seja, os afetos que eu percebo
manifestos no corpo do outro impactam o meu próprio corpo a nível neurológico e afetivo.
Este processo de espelhamento é o processo que me permite ressoar emocionalmente com
outros, a base da empatia e de um saber relacional.
Se deixarmos cair essa cortina conceptual, entre quem dança e quem observa, que anos
de tradição nos fez acreditar que existe, então a dança está tanto de um lado como do
outro, está a acontecer entre dançarino e público, não é uma coisa fechada e de contornos
definidos, é outra coisa para lá de uma execução em palco por alguém treinado, colocado
nem cena, em lugar de destaque, lugar que é, por isso, lugar de exclusão, definindo um
aqui e um aí, e reconhecendo o direito à dança apenas a um dos lados. Se percebermos
que os gestos e movimentos atravessam essa cortina conceptual e chegam ao espetador
em matéria sensorial, imagética e afetiva, percebe-se - não é um espetáculo que se repete
mecanicamente, mas é um acontecimento, é algo mais para lá da execução em palco, é
algo que acontece entre as pessoas, todas elas movendo-se e sendo movidas, apenas de
modo diferente, mas todas afetadas, ou seja, vivenciando afetos que emergem do corpo e
ressoam corporalmente.
Há, tradicionalmente, modos distintos de encarar a dança, que podemos conceber
como “chaves” conceptuais, baseadas na tradição aristotélica sobre o pensamento
artístico i) a dança enquanto tékhne3 e ii) a dança enquanto poíesis4. Utilizemos estes
conceitos gregos, que nos podem ajudar a diferenciar entre níveis de apreciação do corpo
em movimento. Teremos então a perspetiva do domínio físico e do rigor da execução
motórica, um saber produzir algo – a tékhne. Trata-se um saber fazer, um domínio técnico
no sentido de se ser capaz de deixar aparecer algo, a dança, neste caso. Há outro
entendimento de dança, que coexiste com o anterior, mas coloca a tónica na
expressividade desse saber fazer, na arte do movimento que enriquece a dança com
imagens, sensações, emoções que atingem o espetador, mesmo quando a execução não é
tecnicamente perfeita – a poeisis, a arte de um fazer estético. Quem dança debate-se com
estas duas facetas do seu movimento: ou apurar o rigor a nível da fisicalidade, dominando
o gesto ou postura desejado e/ou colocar nesse mesmo movimento algo de seu, fruto do
seu imaginário, do seu mundo pessoal, da sua afetividade.

2
Descobertos em 1996 por Rizolatti, os neurónios espelhos tem sido a base de vários estudos posteriores
que procuram entender fenómenos de empatia e ressonância afetiva (cf. Ferrari & Gallese, 2007).
3
A palavra tem vários níveis de sentido, de que escolho destacar dois: a) “Esta palavra tekhné nomeia uma
forma de saber. Ela não significa o trabalho e a fabricação [...] ter em vista desde o início o que está em
jogo na produção de uma imagem e de uma obra. A obra pode ser também uma obra de ciência ou de
filosofia, de poesia ou de eloquência. Arte é tékhne, mas não técnica. O artista é tekhnites, mas não somente
técnico ou artesão” (Heidegger, 1967); b) “produzir, em grego, é tikto. A raiz desse verbo é comum à
palavra tékhne. Tékhne não significa, para os gregos, nem arte nem artesanato, mas um deixar-aparecer-
algo como isso ou aquilo, no âmbito do que já está em vigor. Os gregos pensam o tékhne, o produzir, a
partir do deixar aparecer” (Heidegger, 2001).
4
Encontramos hoje vários sentidos da palavra grega poíesis, de que destaco este – “Poíesis é um substantivo
que se forma do verbo grego poien. Este assinala no grego a ação de fazer diversififcada, mas sobretudo a
essência do agir, daí estar ligada à poíesis, no sentido que hoje consideramos criação. Esta pressupõe um
fazer surgir, um figurar algo a partir do nada, ou, no pensamento mítico, a partir da terra e mais tarde a
partir da physis [natureza]. Poíesis é, pois todo o agir criativo ou essencial.” (Castro, s.d., ensaio não
publicado).

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Corpos que Dançam | 2022

Numa dança, seja ela mais tékhne seja ela mais poíesis, mesmo quando se dança
sozinho, o(s) outro(s) está/ão sempre implícito(s), pois a dança não existe como existe
uma pedra (e ela é também átomos em movimento): a dança é um acontecer ligado a
determinada circunstância. Acontece e é moldada não apenas pela qualidade da execução,
mas também pelo contexto, pelo espaço em volta, o olhar e interesse do público, as
qualidades indefiníveis de um lugar e um momento específico, ou seja, de um momento
relacional. A dança, nesta perspetiva, pode ser entendida como um fenómeno, no sentido
da filosofia fenomenológica. Como fenómeno, não apenas técnica, não apenas espetáculo,
ela é também um acontecimento único e irrepetível entre sujeitos, pois todos participam
e determinam esse acontecer. A dança interliga o sujeito ao seu mundo e aos outros. A
dança é um fenómeno relacional e este é o terceiro conceito de dança que trago para a
nossa conversa – temos o conceito de dança enquanto tékhne, enquanto poíesis e, agora,
enquanto fenómeno afetivo e relacional. Há lugar para tudo isto, pois é apenas uma
questão de perspetiva. Podemos abordar a dança do ponto de vista da tékhne - do
professor, que tem de ensinar e de ser exigente em termos técnicos, que corrige e insiste
na necessidade de treino, disciplina, repetição exaustiva -, mas há também lugar para o
professor de expressão criativa, de dança enquanto improvisação lúdica e descoberta, que
trabalhe o lado poíesis/poético do movimento. Naturalmente, claro, as duas coisas
coincidem também, quer em quem ensina, coreografa ou dança. E há ainda a perspetiva
da dança que move e co-move, que afeta e interliga os corpos que dançam e os corpos
que são afetados e “movidos” por essa dança, numa experiência única no tempo
específico do acontecer da dança, uma vivência somático-sócio-emocional, interpessoal,
entre subjetividades que se influenciam mutuamente, portanto uma dança relacional,
intersubjetiva.
Pode acontecer que, por falta de uma formação adequada, por falha nas ofertas
formativas, se envie para a escola de ensino básico ou mesmo para jardins de infância -
onde a dimensão afetiva e relacional do movimento seria mais importante -, professores
que seguiram um ensino de dança formal e têm dificuldade em ajustar-se a níveis etários
em que a dança não pode ser tékhne; se for só isso, muito fica por desenvolver em termos
de exploração do potencial de movimento de cada um. Seja nas danças ensinadas em
contexto escolar, seja nas danças para a comunidade, seria desejável que os respetivos
técnicos/formadores tivessem uma formação que combinasse conhecimentos de
desenvolvimento da psicologia infantil, de técnicas de improvisação, de sistemas de
análise de movimento, o que lhes daria as bases para um trabalho coerente e consistente,
que efetivamente desenvolvesse, em cada um, a ideia de que a dança, afinal, está em todos
nós enquanto linguagem e modo de comunicação com o mundo e os outros. Pode também
acontecer que se caia no extremo, na ideia de que, se todos já sabem dançar, então é só
deixar as crianças moverem-se como quiserem. Perde-se assim, nesses anos iniciais, ou
no trabalho com grupos comunitários, a oportunidade de construir a consciência e a
experimentação progressiva de uma linguagem comunicacional, a linguagem cinética.
Como em todas as linguagens, a linguagem cinética, não verbal, tem também uma
certa gramática, cujos princípios básicos seria fundamental os educadores ou professores
de dança nas escolas conhecerem. Fornecer oportunidades para as nossas crianças
experienciarem ludicamente essa comunicação interpessoal não verbal - que pode, por
vezes, ganhar o aspeto de uma dança, ainda que seja mais do que isso -, seria um modo
de lhes fornecermos instrumentos que lhe seriam úteis, seja para uma melhor capacidade
de relacionamento com os outros, seja para um melhor entendimento do seu corpo e das
suas emoções. O professor de dança deveria ter boas bases pedagógicas, alicerçadas em
áreas fundamentais como: i) a psicologia do movimento, onde atualmente estão a surgir
novidades por influência da neurologia, nomeadamente das neurociências afetivas; ii) um

54
Corpos que Dançam | 2022

sistema de análise de movimento e, por fim, iii) uma boa formação humanista, bem
assente na história na arte e da literatura, de modo a mobilizar referências que alimentem
a imagética infantil e enriqueçam o mundo interno de cada um, cujas imagens e metáforas
ajudam a transformar a dança, marcadamente tékhne, em dança com mais traços de
poíesis.
Há outros modos de pensar a dança e insistimos naquilo que consideramos ser a dança
relacional, que não é, certamente uma dança técnica nem uma dança espetáculo, mas uma
dança que surge da consciência e da vivência de trocas interpessoais, cada vez mais
necessária numa época em que as oportunidades de encontros criativos e genuínos com
outros são mais escassas, sobretudo na infância, na terceira idade ou em contextos de
maior isolamento social.

Corpos em movimento – sujeitos em relação

Na articulação da fenomenologia com as neurociências afetivas é possível pensar


dança e o movimento enquanto fenómeno cinético, expressivo e relacional. Esta não é, de
todo, a dança que emerge dos estúdios, do palco ou das salas de espetáculo. Este é um
conceito mais alargado e, para evitar desentendimentos, sugerimos que falemos antes em
expressão cinético-afetiva, ou de dança e movimento relacional. Estamos aqui no cerne
de uma questão com que me tenho deparado - há na sociedade, em geral, a ideia de dança
enquanto aquilo que é esteticamente agradável, que implica treino, e é, por isso, domínio
restrito de uns poucos, poo requerer um controle rigoroso do corpo, sobretudo de corpo
bonitos e saudáveis. Paira no imaginário social, ainda, a figura daquele que dança - a/o
dançarino, bailarino/a -, com sendo um ser excecional, com uma “aura” de brilhantismo
que suscita admiração, fascínio, inacessibilidade. E com isso se perde a ideia de que a
dança é de todos, a noção de que todos os corpos podem e devem dançar, que isso não é
coisa elitista, exclusiva, que dependa de treino ou técnica seletiva. A autora é
psicoterapeuta por dança-movimento, não trabalho com a dança no sentido mais
consensualmente usado, trabalho antes com a comunicação interpessoal, enquadrada
numa prática psicoterapêutica verbal e não verbal, intersubjetiva, expressiva e rítmica,
que pode ou não parecer uma dança. Tudo depende do que entendemos por dança.
Trabalhando com um grupo de anoréticas internadas, todas sentadas em grupo,
algumas ligadas a um aparelho de soro, que arrastavam consigo, muitas recusando-se
mesmo a falar, zangadas por estarem ali. Todas paradas, algumas demasiado fracas, com
níveis de potássio baixo, o que tornava contraindicado demasiado esforço físico, muitas
vezes todas em silêncio e, no entanto, através de uma filigrana de afetos delicados, de um
entrançar de implícitos e de subentendidos, de olhar em olhar, de palavra em palavra,
entre uma queixa e uma acusação - “estou aqui obrigada, mandaram-me para aqui” ou um
anseio, “eu queria era ser pássaro para sair daqui” -, começávamos um processo em que
uma comunicação mais real e mais profunda era possível. Por vezes, em vez de uma
palavra surgia um gesto. Por exemplo, uma mão erguia-se devagarinho e desenhava um
voo de asas, enquanto dava timidamente voz a esse desejo de fuga, que não era apenas
em geral, mas à vida, à família, à angústia do primeiro ano na faculdade. Esta era uma
sessão de terapia por dança-movimento, não era dança, como o não era aquela sessão com
doentes do Hospital de Dia do Hospital Miguel Bombarda em que, a determinado
momento, as almofadas em que todos estavam sentados começaram a servir de projéteis
atirados contra a parede, primeiro a medo, mas depois com mais intensidade e zanga,
assumindo a raiva acumulada contra figuras significativas.

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Corpos que Dançam | 2022

Esperamos que esteja claro que a Terapia por Dança Movimento ou a Psicoterapia por
Dança/Movimento, como agora preferimos chamar, tal como a praticamos, não se centra
na dança, mas num processo relacional psicoterapêutico. Implica um rigoroso treino,
baseado, entre várias outras coisas em: i) complexos conhecimentos de psicologia e
psicanálise com um bom conhecimento de; ii) psicopatologia, de; iii) análise de
movimento; e iv) de expressão multimodal, ou seja, interdisciplinar, assenta no próprio
processo de terapia pessoal do psicoterapeuta e num bom entendimento de processos e
dinâmicas de grupo. Insistimos nisso porque sabemos que ao lerem-se os exemplos dados
é fácil pensar-se “qualquer pessoa pode fazer isso”, o que é muito enganador.
Este tipo de processo terapêutico acontece exatamente na particularidade de uma
comunicação verbal e não verbal, delicada e fugaz, que só é possível num contexto
contentor, por alguém muito preparado nesta articulação entre verbal e não verbal, bem
preparado teoricamente, mas também através da sua própria terapia pessoal, para lidar
com processos inconscientes tais como transferências e contratransferências, de ataques,
resistências e regressões. E, naturalmente, bem supervisionado por um especialista ao
longo do processo. Insistimos nisso, porque sabemos que há, por vezes, a tentação de
atribuir grupos de expressão não verbal a pessoas sem preparação clínica e temos visto
coisas que não apenas não ajudam, como traumatizam ou, no mínimo, confundem os
pacientes. Esperamos ter deixado claro que a dança e a psicoterapia por movimento são
coisas distintas: a primeira pode ser compreendida na área da educação, das artes e da
cultura, mas só a última é da área clínica, com uma formação específica e distinta5. No
entanto, alguma coisa se pode aproveitar para pensarmos a dança num sentido mais
alargado.
Retiremos, dos parágrafos anteriores, o que nos interessa para este artigo – a ideia de
que o movimento vem do universo interno de cada um, moldado por emoções que
reverberam nos outros em redor, que é um acontecimento num AQUI e AGORA
específico de uma relação com o mundo ou outras pessoas. É um fenómeno. E é um
fenómeno relacional. Esse entendimento pode ajudar a conceber o ensino da dança ou, a
sua prática, como algo que não apenas prepara para um bom domínio de posturas e gestos,
que não apenas valoriza o aspeto exterior da performance, mas como uma oportunidade
de promover no sujeito inteligência cinética, expressiva e emocional, além de desenvolver
competências relacionais. Não querendo enveredar pela temática sobre o ensino da dança
nas nossas escolas, sobre o curriculum ou a formação de professores, preferimos
desenvolver o argumento em torno da ideia de corpo em movimento ou corpo animado
(capaz de movimento espontâneo e intencional), conceito caro a Maxine Sheets-
Johnstone (1930-), autora que convocamos por ser uma coreógrafa, filósofa, professora
universitária que, enraizada em referências da fenomenologia e da biologia, tem
desenvolvido reflexão sobre o movimento enquanto dimensão cinética-afetiva do sujeito.
Antes de avançarmos convém refletir sobre os termos usados – sempre que se falar de
movimento, serão usadas palavras como cinestesia/quinestesia, cinestético/quinestésico
ou cinético/quinético6. O que é muito diferente de falar de fisicalidade ou mesmo de

5
Para saber em que consiste a formação em Dance Movement Therapy/Psychotherapy, profissão regulada
na europa, consultar o site da AEDMT (Associação Europeia de Dança Movimento Terapia) -
https://eadmt.com/education/training-standards-criteria
6
A etimologia destas palavras é grega, mas chegaram ao português já integradas no latim, onde eram
pronunciadas de duas maneiras, pelo que deram origem a duas fonologias e escritas, ambas corretas – tanto
se pode dizer cinético ou quinético, como se pode dizer cinestético e quinestético. Os dois vocábulos,
cinético e cinestético, têm a mesma raiz etimológica, cine, que significa movimento e deu origem à palavra
cinema (imagens em movimeno), pelo que a autora prefere, neste trabalho, manter a familiaridade
fonológica e escrever sempre cinético e cinestésico em vez de quinético e quinestético, ainda que estas
sejam igualmente válidas e mais próximas do inglês, onde se escreve kinestic e kinesthetic. Sendo a palavra

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Corpos que Dançam | 2022

motricidade. A visão sobre o corpo e o movimento está patente nos nomes que se têm
usado no ensino do movimento nos espaços escolares – entre “educação física” e
“motricidade” ou “movimento expressivo” subentendem-se distintos modos de
percecionar. Estas palavras trazem atrás de si um manto de perceção sobre o mundo, o
corpo humano, o movimento. “Educação física” remete-nos para grandes grupos de
ginástica sueca, em que o corpo humano era uma peça na totalidade de uma engrenagem,
diluía-se no conjunto dos ginastas sendo, ele também, uma máquina que deveria funcionar
bem, de modo quase mecânico – esticar, fletir, exercer força. O conceito de “motricidade”
vem trazer mais fluidez, altera a perceção mecanicista e quase estática para trazer a noção
de que o movimento está para lá da mecânica das articulações, músculos e tendões,
passando a ter uma compreensão mais global e integrada do corpo em movimento, a que
um outro conceito, o de “movimento expressivo” virá introduzir e reforçar uma tonalidade
pessoal, uma imagética. A educação absorveu tudo isto e acumula ainda estas diversas
camadas de significados, pelo que é importante explicitarmos os termos usados e a
perspetiva que adotamos, pois na verdade falamos de coisas muito diferentes ao falarmos
em dança, movimento, motricidade, expressão corporal, ou outras, sem nos darmos conta
do seu peso ideológico, das suas visões específicas de pessoa e mundo, ligadas,
implicitamente, a um certo modo de conceber a sociedade.
Podemos apreender, através de expressões como “ginástica sueca” e “improvisação
por movimento”, toda uma história do século XX - seja na perceção do corpo e do
movimento, seja na determinação de modos de organização da vida social, com mais ou
menos hierarquia, ordem e previsibilidade, seja nas expetativas sobre o comportamento
dos indivíduos, em relação a disciplina versus espontaneidade ou modos específicos de
interação em grupo. Podemos fazer o exercício de pensar o século passado à luz de
imagens de grandes grupos movendo-se. Comparemos, por exemplo, ginásios ou estádios
cheios de ginastas, bem disciplinados e coordenados, com movimentos diretos e rígidos,
como se vê em filmes e imagens de início do século e comparemo-las com imagens e
vídeos de flash mobs em ruas e centros comerciais, com movimentos mais soltos, menos
controlados e mais flexíveis, de final de século. O que nos dizem sobre certos modos de
pensar o corpo, individual e coletivo? Ou poderíamos, ainda, comparar os primeiros com
as danças circulares e “eco-dance happenings”. Estas comparações permitiriam refletir
sobre as diferenças e semelhanças destes grupos e poderiam levar a pensar sobre que
ideias implícitas os enquadraram, o que nos dizem sobre as mentalidades, os valores e as
expetativas sociais que sustentam estas diversas práticas.
Pensar-se o corpo e o movimento implica pensar-se o próprio ser humano e isso
implica, mesmo que não nos demos conta, adotar uma posição filosófica e política. Daí a
necessidade de darmos um passo atrás e pensarmos no que estamos a dizer – como
surgiram certos termos, em que contexto, com que objetivos, de que maneira determina
o que se espera de mim e dos outros. A disciplina e o rigor da ginástica sueca determinam
expetativas de um comportamento “certo” e “perfeito”, distinto das “atividades rítmicas
expressivas”, que agora temos nos curricula escolares. Mas não basta mudar os termos,
há que mudar a própria conceção do que é ser-se um corpo em movimento. Há que
continuar a formar professores e educadores comunitários, que sejam capazes de entender
o que fazer, quando e porque fazer, pois não se trata de descartar o que anteriormente se
fazia, mas de integrar e progredir, fornecendo, aos novos educadores e professores,
ferramentas para variadas abordagens.

cinesis equivalente a movimento, re cinético é a qualidade de tudo o que se move e cinestesia, bem como
o correspondente adjetivo, cinestésico, implica tudo o que é relativo ao conhecimento do próprio corpo
através dos sentidos e do movimento.

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Corpos que Dançam | 2022

Com os avanços das neurociências, nomeadamente das neurociências afetivas, outros


entendimentos sobre o corpo nos desafiam novamente, desta vez não apenas ligados ao
movimento, mas interligando corpo, movimento, emoções e comunicação interpessoal.
Uma área fascinante. Da fenomenologia ganhámos, com Merleau-Ponty, a noção de
corpo vivo, para o distinguir do corpo fisiológico, o que se alargou para a ideia de corpo
animado, de Sheets-Johnstone, cujo pensamento radica em Husserl, autor que já
problematizara questões sobre movimento e cinestesia. Estas perceções filosóficas podem
agora ser melhor entendidas com os contributos das neurociências, nomeadamente a ideia
de que o movimento é subjetivo e relacional, pelo que as experiências cinético-afetivas e
cinestésicas são centrais, tanto na constituição dos sujeitos como das suas vivências
intersubjetivas. Percebe-se que esta perspetiva influenciará outros modos de entender,
não apenas a expressividade, a dança ou a performance, mas também as relações
interpessoais, pelo que convirá aprofundá-las.
Panksepp (2004) e Solms (2015, 2020), tal como Damásio (1999, 2001, 2020), são
neurocientistas cujos estudos pioneiros sobre as emoções confirmam a relação entre
movimento, perceção e emoção. Esta é também ideia central do pensamento de Sheets-
Johnstone, de quem se destaca a afirmação, em sintonia com os estudos dos
neurocientistas já mencionados - Emotions are a fluid bodily phenomenologically thing
that move through us and move us to move7 (Sheets-Johnstone, citada por Eichhorn, 2016,
p. 111)8.

Cinestesia afetiva – dinâmicas de movimento e dinâmicas de afetividade

Façamos um breve ponto da situação. Pensando sobre o que se pode entender por
dança, foi proposto que se considere a possibilidade de entender as danças, ou as práticas
de movimento, em função de dois modos de entender a dança - i) a Tékhne, enquanto
produção, um fazer-aparecer técnico ou mestria do corpo em movimento; ii) a Poíesis,
enquanto expressão estética, imagética, expressiva. O ideal será combinar ambas, mas há
que ter em conta a personalidade de bailarinos e coreógrafos e do que se pretende com
cada performance. Não há relação de hierarquia ou de valor entre tékhne e poiseis. Devem
ser entendidas de acordo com o estilo individual, as competências e preferências de cada
um e como o próprio contexto sócio-cultural, pois há épocas que dão mais realce a um ou
outro aspeto. Não são conceitos absolutos, são apenas chaves para se entender o corpo
em movimento e todos nós podemos evocar dançarinos mais capazes de um grande
domínio técnico e pouca “expressividade poiética” ou vice-versa. Esta proposta de se
pensar a dança numa perspetiva de Tékhne e/ou Poíesis, foi depois enriquecida, quando
avançámos para mais um conceito, o de dança relacional.
A ideia de dança relacional vem complementar esta polaridade entre Tékhne e Poíesis,
pois introduz o Outro na dança. Tékhne e Poíesis são produtos de um pensamento sobre
dança baseado na lógica aristotélico-cartesiana. São termos que dizem respeito apenas a
um sujeito, na sua relação com o seu corpo e o seu movimento, a sua mestria ou o seu
imaginário. Este modo de pensar a dança, moldado numa visão cartesiana e newtoniana
do espaço, contém sempre uma conceção solipsista do sujeito, ou seja, há um isolamento
das vivências individuais e da expressão corporal, que são entendidas apenas em relação
a um indivíduo, compreendido como um universo subjetivo fechado, ideia dominante no

7
Tradução da autora: “as emoções são uma coisa fluida e fenomenologicamente corporal que se move
através de nós e que nos move a mover-nos”. 7 (Sheets-Johnstone, citada por Eichhorn, 2016, p. 111).
8
Frase de Maxine Sheets-Johnstone em entrevista concedida a Eichhorn (2016, p. 101).

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Corpos que Dançam | 2022

cartesianismo e que hoje se questiona, mais à luz de novos sobre conhecimentos sobre
processos relacionais, intersubjetivos.
Em nossa opinião, os conceitos tékhne e poíesis, ainda que tenham ajudado a pensar
as artes durante muito tempo, dentro de uma tradição aristotélica, não são suficientes para
dar conta de processos intersubjetivos, seja na experiência de quem dança, seja de quem,
observando, também participa na dança. Estas duas perspetivas, com raízes históricas,
transmitem uma visão historicamente datada, que não tem em conta conhecimentos
científicos recentes, nomeadamente os contributos da física quântica, com a sua proposta
de um espaço que não é absoluto, mas relativo. O que coincide com a ideia que o espaço
não é algo que exista exterior ao sujeito, sendo antes criado pelo próprio corpo em
movimento, em que cada dança cria o seu próprio tempo e espaço. Hoje sabe-se que nos
movemos e somos movidos ao mesmo tempo, de que o sujeito não habita em cápsulas
fechadas, animado por emoções estanques, pelo contrário, as emoções são fluxos que o
percorrem e afetam outros em seu redor, o mesmo acontecendo aos seus movimentos, que
dão conta da sua emotividade através de dinâmicas de movimento. Introduzimos o
conceito de dança relacional, um conceito recente na área da Psicoterapia por Dança e
Movimento9, alicerçado na corrente da Psicanálise Relacional 10. Ainda que sem entrar
pela área das terapias, optámos por utilizar aqui o termo, neste exercício de pensamento
sobre dança, pois há que evoluir e integrar, não podemos continuar a falar de dança sem
acompanhar os conhecimentos do nosso tempo. Não vamos desenvolver a ideia de dança
relacional em relação a outros contextos ou outros autores, bastando usá-lo aqui como
complemento de tékhne e poíesis, as duas outras abordagens discursivas e valorativas
sobre a prática da dança.
Poderíamos desenvolver o conceito de dança relacional recorrendo a outros autores,
mas escolhemos, neste artigo, ter como referência o pensamento de Sheets-Johnstone que
sustenta, ao longo da sua densa obra, um pensamento riquíssimo sobre o corpo animado,
na sua dimensão cinético e afetiva. Propomos um entendimento do movimento que não
seja apenas, como numa definição tradicional, “a deslocação de um corpo de um lado
para outro”11 e questiona a perspetiva motórica, chegando mesmo a criticar o que chama,
quase ironicamente, de “motorologists”, ou motorólogos, os que enfatizavam o
comportamento e o movimento humano em termos de ações motóricas, mecanicistas,
descrevendo as funções de músculos e articulações como se assim fosse possível entender
o movimento e a dança, perdendo a dimensão da experiência cinética e propriocetiva12.
Concilia filosofia com estudos de biologia, pelo que frequentemente evoca Darwin e o
seu livro The Expression on Emotions in Man and Animals (1872), para afirmar que

9
A título de exemplo, consultar o texto Relational Dance Movement Psychotherapy. An new old idea
(Lykou, 2017).
10
A psicanálise relacional, que tem como um dos seus representantes Stephen Mitchell, constitui uma nova
corrente dentro da psicanálise, com especificidades que não cabe aqui desenvolver, sendo apenas de referir
que valoriza a relação e a intersubjetividade de um modo distinto das correntes de psicanálise que se
centram no conceito de libido.
11
“Movement is not a change in position, for movement has no position. Only objects have positions and,
when they move, they change position. Movement is the change itself, the dynamic happening (itálico
nosso) and needs to be phenomenologically analysed and properly understood as such” (Sheet-Johnstone,
2010, p. 121).
12
“Motorology talk deflects us from the realities the realities of kinesthesia and proprioception no less than
embodiment talk; that is, it too deflects us from the dynamics of movement itself and of the cognitional and
affective dynamics of movement itself and of the cognitional and affective dynamics the constitute the
synergies of meaningful movement that informs the live of animate beings. Motors, after all, do not have
feelings; they are incapable of affectivity. By the same token, they lack agency. […] Kinesthesia and
proprioception are foundational aspects of animation and as such require straightforward analysis and
study in their own right” (Sheets-Johnstone, 2012, p. 122).

59
Corpos que Dançam | 2022

somos morfologias-em-moção, mas sublinha que a abordagem meramente fisiológica ao


processo de movimento deixaria de lado toda uma dimensão intencional, expressiva e
afetiva.
O que importa, na sua opinião, é que o movimento de homens e animais surge do seu
envolvimento no mundo e que as motivações em busca de bem-estar e de garantia de
sobrevivência, provocam sinergias de movimentos significativos. Não seria possível
encontrar o sentido desses movimentos intencionais, afetivamente motivados, através de
mera análise de ações musculares. Deste modo, Sheets-Johnestone tem uma densa obra
teórica sustentando a dimensão fenomenológica do movimento, que ela considera ser
resultado de um corpo cinético/tátil e cinestésico. Resultado do diálogo de um corpo
através de experiências cinéticas, tácteis e cinestésicas com o mundo, de interações
internas e externas consigo mesmo e com outros, o movimento de cada um está sempre
marcado pela própria personalidade e estilo de quem o produz, está impregnado de
dinâmica própria. Chama-se dinâmica de movimento ao conjunto de traços que
movimento que resultam da mestria e da personalidade de quem os executa, sendo este
um conceito já presente no sistema de Rudolf von Laban. A dinâmica de movimento mais
completa combina os traços básicos em atitudes e drives, com os quais é possível elaborar
perfis de movimento mais completos, tornam mais evidente a conexão entre a execução
de um movimento e o mundo interno de um sujeito.
O nosso modo de agir e de habitar no mundo tem impressas “marcas cinéticas” das
nossas vivências internas, das primeiras relações com outros. Esse é o nosso perfil de
movimento, cristalização de interações prévias com outros, as quais ficaram impressas
numa certa linguagem de movimento que nos é própria. Dessas experiências iniciais,
criámos um registo próprio, ou seja, um conjunto de dinâmicas de movimento que nos
são próprias. Por exemplo, alguns de nós preferem sempre movimentos diretos, rígidos e
lentos, outros preferem movimento flexíveis, indiretos, leves, ou o contrário. Tais
preferências resultam sobretudo das interações somato-cinético-afetivas durante a
primeira infância, ainda que possam evoluir com outras experiências relacionais ao longo
da vida.
Esses traços cinéticos, chamados dinâmicas/qualidades de movimento, foram bem
sistematizados por Laban e, atualmente, constituem o objeto de estudo de sistemas de
observação, análise e notação de movimento. É a isto que Sheets-Johnstone se refere
como dinâmicas de movimento. Sendo dançarina e coreógrafa, não apenas conhece bem
as qualidades/dinâmicas de movimento propostas por Laban, de peso/energia, tempo,
espaço e fluidez, mas também avançou com uma nova terminologia para falar dessas
dinâmicas, cujo entendimento amplia, trazendo a sua própria formulação – linearidade,
espacialidade, temporalidade, intensidade e intencionalidade. Movement does not simply
occur in space and in time; movement creates its own space, time and force, and it is
precisely the creation of its own space-time-force that gives any movement its distinctive
qualitative character” (Sheets-Johnstone 2010, p.121)13. Tanto o Tempo como o Espaço
devem ser aqui entendidos como dinâmicas cinéticas, ou seja, como qualidades internas
do próprio movimento, revelando o universo interno do sujeito que o produz.
O movimento, através da sua dinâmica cinética - conforme é mais ou menos leve,
pesado, direto ou rápido -, expressa as experiências emocionais e as vivências
interpessoais de cada um14. Compreende-se que se considere um paralelismo entre o

13
“O Movimento não acontece simplesmente no espaço e no tempo; o movimento cria o seu próprio espaço,
tempo e força, e é precisamente a criação do seu próprio espaço-tempo-força que dá a qualquer movimento
o seu carácter distinto” (Sheets-Johnstone, 2010, p. 121).
14
Aconselha-se a consulta dos trabalhos de Rudolf Laban e de Judith Kestenberg, para quem tenha interesse
em informar-se sobre esta área.

60
Corpos que Dançam | 2022

movimento e as emoções de quem o executa, percecionadas, pressentidas, quase


adivinhadas pelo modo como se move. É por isto que Sheets-Johnstone, na esteira de
Laban ou Kestenberg, por exemplo, faz corresponder dinâmicas afetivas a dinâmicas
cinéticas e é precisamente, neste passo, que assentamos os alicerces da nossa
argumentação de que o movimento, ou a dança, é também relacional. Esse paralelismo
percebe-se bem, ao vermos que há uma correspondência entre uma certa emoção e a sua
expressão corporal e cinética. Por exemplo, consideremos o medo e a alegria, com a sua
dinâmica afetiva específica, que implica dilatação ou contração da pupila, a contração ou
relaxamento de certos músculos faciais, um determinado ritmo de batimento cardíaco. A
essas dinâmicas afetivas corresponde um determinado perfil de movimento ou expressão
cinética, com dinâmicas de movimento que serão, dentro do possível, congruentes, com
as dinâmicas afetivas específicas de medo ou alegria. É isto que pretendemos afirmar, ao
dizermos que há um paralelismo entre dinâmicas afetivas e cinéticas, as quais, são
normalmente congruentes, ou seja, correspondem àquilo que é mais natural acontecer.
Quando não há congruência, ou há um desajuste no modo como alguém se exprime a
nível corporal e emocional, podemo-nos perguntar o que se passa e essa não congruência
pode ser uma pista para as várias possibilidades de intervenção em Psicoterapia por Dança
e Movimento, ajudando a resolver conflitos internos que se adivinham nessa não
congruência entre manifestações cinéticas e emocionais. Sem avançar por esta área,
percebe-se, para o desenrolar do nosso raciocínio, que o universo interno e subjetivo de
cada um pode ser, de certa maneira, acessível pelo seu perfil de movimento, o seu modo
particular de habitar o corpo em movimento, de se relacionar com o Tempo e o Espaço e
de usar, ou não, o potencial das qualidades desse movimento.
Todos somos dotados da capacidade cinético/tátil e cinestésica de entender o
movimento do Outro, porque o nosso corpo experiencia o movimento do mesmo modo,
dinamicamente. Reconhecemos, nos outros, dinâmicas de movimento que aprendemos a
fazer corresponder a determinados estados afetivos. Sabemos que o Outro nos inspira
medo e que convém evitar ou que inspira confiança e nos podemos aproximar. Aproximar
e afastar pode estar relacionado com confiança ou medo, pelo que se percebe que a um
movimento corresponde uma emoção ou atitude emocional. Na relação com os outros
percebemos essas mensagens cinéticas pelas dinâmicas de movimento, as quais, por sua
vez, motivam em nós pré-atitudes, com proto dinâmicas cinéticas e afetivas (por exemplo,
uma predisposição para fugir ou para nos aproximarmos), registadas no nosso corpo em
termos e qualidade de movimento e, ao mesmo tempo, pelas emoções que ressoam 15 em
nós.
Os acontecimentos emocionais são fenómenos cinéticos-corporais, parte do diálogo
relacional e intersubjetivo com os outros. A vantagem social das emoções é que nos dão
mais competência para “ler” os outros e interagir socialmente. Há uma interligação entre
vida emocional e movimento como interação relacional. Há uma dança relacional através
das trocas comunicacionais, cinéticas e afetivas, com os outros. Mover-se é envolver-se
com o mundo e os outros. Para Sheets-Johnstone há um paralelismo entre dinâmicas
afetivas e cinéticas e é a capacidade de as “ler” e reagir/mover-me adequadamente, que

15
Os neurónios-espelho, descobertos por Gallese, vieram comprovar que, no nosso corpo se ativam os
circuitos neuronais correspondentes àqueles que estão ativados no movimento de uma outra pessoa que
estamos a observar. O que significa que somos afetados somaticamentemente, a nível neurológico, pela
observação de outros corpos em movimento; as ações dos outros têm impacto no nosso próprio corpo, uma
vez que as está a reproduzir em termos neurológicos. Admitindo que os movimentos de outro podem
remeter para determinadas emoções, ou uma atitude emocional, pensa-se que isso acontece através dos
neurónios-espelho que em nós se ativam, possibilitando-nos entrar em sintonia com as emoções ou estado
emocional de outra pessoa. Logo, através de movimento, das nossas ações, estamos interligados, movemos
e somos movidos, isto é, co-movidos.

61
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nos torna um sujeito social e relacionalmente competente, isto é, capaz de nos


envolvermos de modo adequado e emocionalmente enriquecedor – what is affective is
kinetic or potentially kinetic, what is kinetic is affective or potentially affective16 (Sheets-
Johnstone, 1999b, p. 271). Quando uma emoção nos surge ou “acontece” provoca uma
resposta, que idealmente, será congruente com as dinâmicas em causa, ou seja, os dois
modos de experiência, seja afetivo, seja cinético, formam uma unidade:

When it moves us, we move in ways qualitatively congruent with the way(s) we are
moved to move; spatial, temporal, and energetic qualities of our movement carry us
forward in an on going kinetic form that is dynamically congruent with the form of our
outgoing feelings. Unified in a single dynamics, the two modes of experience happen
at once; simultaneity of affect and movement is made possible by a shared dynamics.
(Sheets-Johnstone, 1999b, p. 270)17

Como seres humanos, temos competências de interação com os outros porque


podemos descodificar, de modo simples, não verbal e quase imediato, as comunicações
em movimento, que vamos recebendo dos outros, as quais são comunicações, ao mesmo
tempo, cinéticas e afetivas. Somos mais humanos e envolvemo-nos mais intensamente
com os outros porque o nosso corpo, sendo cinestésico e cinético-afetivo, nos possibilita,
antes da linguagem e para lá dela, um modo de com vivência e de modalidades de diálogos
não verbais que clarificam, enriquecem e aprofundam a nossa vida coletiva, a qual
acontece muito para lá do que é explicitamente dito. Deste ponto de vista mais abrangente,
é possível entender o movimento e a dança numa perspetiva relacional. A nossa vida
social pode ser entendida como uma dança de aproximação e afastamento em relação a
outros. Seria desejável que espaços educativos e sócio-comunitários pudessem promover,
cada vez mais, experiências de interação não verbal, criativas e lúdicas, de modo a
apuramos as nossas competências relacionais.

Conclusão

Neste trabalho desenvolvemos uma reflexão sobre o movimento em geral e a dança


em particular. Partimos de dois modos de entender a dança, como tékhne e como poíesis
e complementámo-los com a ideia de dança relacional, fundamentada no trabalho de
Maxine Sheets-Johnstone. Desta autora destacámos a ideia de um corpo cinético-tátil e
cinestésico, animado de movimento com dinâmicas específicas a que correspondem
afetos específicos. As dinâmicas afetivas e cinéticas podem coincidir numa unidade
congruente, o que nos permite aceder, através do movimento, a universos afetivos de
outrem e estabelecer relações, também de modo cinético e afetivo. Mover-se é ser movido
e mover-se com o outro abre a possibilidade de sermos afetados, isto é, co-movidos e de
nos enriquecermos comos sujeitos, através destas trocas. Uma vez que o modo de estar
no mundo tem uma sólida componente somática, cinética e relacional, pode concluir-se
que: i) a própria formação de professores e educadores ganharia em incluir os contributos
16
Tradução da autora: “O que é afetivo é cinético ou potencialmente cinético, o que é cinético é afetivo ou
potencialmente afetivo” (Sheets-Johnstone, 1999b, p. 271).
17
Tradução da autora: “Quando isso nos move [uma emoção] nós movemo-nos em modos qualitativamente
congruentes com o(s) modo(s) pelos quais somos movidos a mover-nos; as qualidades espaciais, cinéticas
e energéticas do nosso movimento fazem-nos avançar numa forma cinética em processo que é
dinamicamente congruente com a forma das nossas emoções em processo. Unidos numa única dinâmica,
estes dois modos de experiência acontecem ao mesmo tempo; a simultaneidade de afeto e movimento é
possível por uma dinâmica partilhada.” (Sheets-Johnstone, 1999b, p. 270).

62
Corpos que Dançam | 2022

recentes de áreas de saber como as neurociências e os sistemas de análise de movimento,


que ajudam a entender processos intercorporais e intersubjetivos e que ii) a valorização
desta ideias poderia ajudar a desenvolver competências expressivas, comunicacionais e
relacionais, quer no ensino artístico da dança, quer na educação da infância ou mesmo
nas intervenções em dança comunitária.

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2.

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O Corpo entre o Simulacro e a Vida

Cláudia Marisa OLIVEIRA


Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (ISUP)
Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo (ESMAE)
[email protected]

Resumo: Com este texto, pretendemos refletir o corpo no seu valor estético e suas
consequentes implicações na criação artística. Isto partindo do pressuposto que o corpo,
quando organiza o seu movimento de uma forma estruturada, é pensamento, e este pode
ser denominado de linguagem artística. A criação artística contemporânea, transformou-
se num estereótipo de idealização estética transversal a todos discursos performativos. A
representação já não se pauta pelo conceito da Beleza mas, antes, pela ilusão da
metamorfose e do enigma. Os novos símbolos da elaboração artística buscam as imagens
do corpo social/quotidiano. A contaminação é assumida: Os laboratórios de criação
artística alimentam-se das imagens do social, sendo o Corpo o elemento estruturante desta
nova corporeidade estética.

Palavras-chave: estética, dramaturgia do corpo, sociologia do corpo, análise de


espetáculo

Abstract: This paper aims to analyse the aesthetical images of the body in everyday life
and its implications in artistic performing. Performing arts has become a stereotype of
the aesthetic idealization. The representation of the Body more than being the reflex of
the conventional aesthetical concept of Beauty, seeks the illusion of a permanent
metamorphosis. Thus, Performance Art takes on the scenic body as an artistic language,
with its inherent implications on everyday life. The new symbol of artistic elaboration
seeks images of the social body in everyday actions as matter for performance. This
influence is taken on: The artistic laboratories feed the images to the social body images
and vice versa. In this process, embodiment is the structuring element of this new aesthetic
behaviour.

Keywords: aesthetics, dramaturgy of the body, sociology of the body, performance


analysis

Para uma análise do Corpo nas Artes Cénicas

Este texto pretende ser uma reflexão sobre a função do Corpo, enquanto dispositivo
artístico, numa sociedade em que a realidade é cada vez mais mediatizada e os espaços
relacionais teatralizados. Importa, pois, questionarmos qual o espaço que o fenómeno
performativo pode ocupar numa sociedade do/de espetáculo, e em que sentido a
representação do corpo se constrói como lugar de comunicação e de imaginário. As artes
cénicas, enquanto fenómeno espetacular, não são de fácil definição ou localização, sendo
a representação hoje entendida em sentido lato. O espetáculo passa, então, a ser um modo
de comportamento, uma aproximação à experiência. É aceite que o desenvolvimento da

66
Corpos que Dançam | 2022

criação artística está diretamente relacionado com o desenvolvimento cultural, social,


político, económico, técnico. Desta feita, a arte apresenta uma destilação de inúmeras
visões do mundo e cosmologias, com implicações conceptuais e epistemológicas.
Atualmente, cria-se “no” e “para” um cenário em que: (i) o espaço divide o mundo em
sujeitos observantes e observados; (ii) o tempo é percecionado como uma sucessão linear
de momentos presentes; (iii) a racionalidade tecnológica põe a tónica na individualização;
(iv) as palavras são vistas como signos para objetos materiais no mundo, observando-se
uma desqualificação da linguagem e do seu valor semiótico. Assim sendo, e face a uma
sociedade do/de espetáculo, em que a noção de representação cénica está cada vez mais
presente e onde a importância do “corpo/ator social” vai crescendo, o “corpo/ator cénico”
perde-se na força da encenação da vida quotidiana, sabendo que a representação já não se
pode limitar a uma ilusão do real. O que se verifica, atualmente, é a perda do espetáculo
enquanto retrato da vida, verificando-se paralelamente uma apropriação do espetáculo
pela vida, patente na espetacularidade atribuída à vida social e ao ator social.
Concludentemente, cada vez mais as esferas de investigação social se apropriam de
terminologias ligadas ao discurso cénico, sendo o corpo o signo dominante nos discursos
produzidos. Observamos, então, o fenómeno espetacular a (re)construir-se, questionando
as suas formas e linguagens, sabendo de antemão que terá, inevitavelmente, de
confrontar-se e aprender a lidar com uma sociedade espetacular, que explora
realisticamente o quotidiano. Resultante deste paradigma, deparamo-nos com um cenário
de um naturalismo excessivo e de um expressionismo levado ao limite. A realidade, a
vida, tornou-se definitivamente em espetáculo; depois disto, a arte não pode mais
proceder a uma mimese da vida. Neste sentido, o objetivo principal neste ensaio é
discorrer sobre relação entre o corpo e a criação cénica, tendo em conta a crescente
espetacularidade da vida social, que postula um “teatro da vida”, caracterizado por novos
rituais de explosão e expulsão.
Perante a questão sobre que espetáculo para a sociedade atual, dever-se-á relembrar
que o objetivo essencial da arte é comunicar. E questionar hoje (e sempre) a criação
artística é procurar saber como a comunicação de sentidos inerente à representação é
construída, e, ainda, saber como se multiplica em cada circunstância única, o fenómeno
espetacular da sedução.

Corpos em Representação: o Simulacro e a Vida

As artes cénicas, enquanto obra cultural e artística, estruturam e exprimem, com


profundidade, a consciência individual do artista em relação a uma determinada visão
social do mundo. O fenómeno performativo é, então, um processo simbiótico que
promove, como refere Goldmann (1971), a articulação entre o saber constituído e a
experiência existencial. A tomada de consciência coletiva é, desta forma, catalisada pela
consciência individual do criador. É neste sentido que M. Santos (1988) refere que o
artista (produtor cultural) tem um papel importante na formação e expressão de uma
consciência coletiva, enquanto sistema em ação na vida quotidiana e enquanto sistema
em ação no campo específico da produção de bens simbólicos. O fenómeno performativo
é, então, um processo coletivo que se constitui num tipo específico de sociação, inscrito
num campo de práticas sociais que implicam um regime específico de recepção. Assim
entendido, o fenómeno performativo é um espaço preenchido por uma multiplicidade de
trajetórias cruzadas, de interesses expressivos e de poderes hierarquizados, sendo, por
isso, pertinente o seu estudo, com o objetivo da apreensão do artístico enquanto dinâmica
social, sem se perder o sentido da singularidade e da densidade subjetivas que comporta

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Corpos que Dançam | 2022

qualquer processo criativo/artístico. É num quadro rápido de mudança social que surge a
necessidade de compatibilizar funções que não se caracterizam por modelos previamente
definidos. Este facto torna indispensável que, cada vez mais, as pessoas transitem entre
vários papéis com diferentes implicações culturais. Como refere DiMaggio (1987), a
capacidade de manipular símbolos culturais está mais alargada: por um lado, pelas
exigências de uma sociedade altamente complexa que “obriga” a compatibilidade de
funções díspares; por outro lado, pelo alargamento da educação formal que vem
adquirindo cada vez mais importância sobre outros elementos tradicionais, como a
família. Será nesta dinâmica de esbatimento e reafirmação de fronteiras que a praxis
artística evolui. DiMaggio (1987) analisa este fenómeno através da expansão dos limites
sociais que se deslocam de uma cultura de status (pertença de uma classe dominante e de
elite) para sistemas e redes difusas (networks culturais), em que a pertença não se define
tanto por grupos sociais ou familiares, mas mais pela capacidade de manipular e organizar
símbolos culturais. Os networks culturais tornam-se cada vez mais importantes na
organização da vida social, à medida que a organização do trabalho obriga o indivíduo a
um maior número de papéis e, consequentemente, a um maior número de contactos
humanos. Neste sentido, as artes ocupam uma posição privilegiada na construção de
identidades. Os símbolos culturais (gostos estéticos) definem-se, assim, na interação
social e intergrupal onde são validados e legitimados. Neste contexto, a arte torna-se a
moeda comum cultural, servindo como base significativa para a interação pessoal e a
mobilização coletiva, facilitando a comunicação. Quanto maior for a rede de relações
sociais que um indivíduo vai construindo, maior é a variedade de referências culturais
que tem de possuir, desenvolvendo “gostos” pelas mais variadas formas culturais. A esta
pluralidade não é alheia uma crescente interação com o mercado económico, onde a
produção cultural/artística se integra na produção de mercadorias que, em geral,
respondem a necessidades de distribuição de um bem.

Aproximações ao sentido da arte

A reflexão em torno da produção e recepção da obra cultural é simultânea à estetização


do quotidiano, que se vai configurando, principalmente após a década de 70 do século
XX, através de uma ritualização de operações de produção e consumo. Neste “real
estetizado”, o produto artístico/cultural adquire primazia enquanto elemento simbólico,
estendendo os limites do comportamento social ao suscitar aspirações, exigências e
objetivos novos, abrindo-se assim vias futuras, às quais são indissociáveis o peso dos
media enquanto novos agentes de socialização e transmissão cultural. Esta realidade,
aparentemente simples, traz implicações complexas sobre a dinâmica da percepção
estética e da utilização da arte na sociedade contemporânea, gerando outros processos
comunicacionais que se desenvolvem cada vez mais no espaço público. Luhman (1990),
analisando o poder dos media, refere que estes, funcionando como dispositivos de
mediação, adquirem uma força estética e retórica, sendo instituintes do espaço público
onde se desenvolvem as ações e os discursos, promovendo, desta feita, a estetização
difusa da sociedade contemporânea. É nesta estetização difusa, funcionando dentro da
lógica do mercado, que submergem as produções artísticas. Será pertinente repensarmos,
face a este novo contexto, as práticas artísticas e a arte que poderemos ter hoje. Com
efeito, a contemporaneidade ao legitimar a dominação do espaço público, promoveu uma
sociedade de diferenciação social (Luhman, 1982) em que cada campo luta pela sua
legitimação, diferenciação e autonomização, operando em sistemas fechados de
autorreflexão e autorreprodução. Nesta perspetiva, as práticas artísticas contemporâneas

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passam, assim, a ter de estar disponíveis para uma nova realidade, em que as
manifestações culturais e artísticas ganham novos sentidos, construídos através da
constante abertura à comunicação que o artista deve ter com os seus receptores. A obra
artística torna-se um bem de consumo com uma mais-valia determinada. Este fenómeno
é indissociável da dissolução de uma comunidade estética de vanguarda artística,
correspondendo ao fim da importância reconhecida do papel interventivo da arte, tanto
do lado da criação como do lado da recepção. Na tentativa de colmatar esta situação,
surgem inúmeras propostas de integrar o espectador na obra, que oscilam entre uma hiper
espetaculariedade e um voyerismo exarcebado.

Corpo e Imagem: Singularidade e Visibilidade

Sabemo-nos habitantes de uma sociedade de consumo e de simulacro, em que tudo se


julga em arenas de aparência. Cada época constrói as suas armas secretas e a sua
vulnerabilidade; a nossa assenta numa ideologia burguesa que transformou a arte em bem
de consumo, sem antes ter tempo de a integrar na vida de todos os dias.
Consequentemente, o corpo é, na atualidade, um objeto privilegiado de todo o tipo de
discursos artísticos, sendo alvo de meta-discursos suportados por construções teóricas
diversas. A vantagem desta panóplia de modelos de reflexão é a de poder oferecer,
segundo as circunstâncias, modelos alternativos de interpretação. Estas múltiplas teorias,
na sua base estruturante, procuram saber se as imagens do corpo se constroem a partir da
arte, e com a sua ajuda, ou se será a própria arte que se contagia das representações do
corpo quotidiano. Isto, partindo do pressuposto que o corpo humano sofre uma análise e
uma recomposição contínuas no discurso artístico. No entanto, o que se verifica
atualmente é a transformação das imagens do corpo em elementos já interpretados e
reconhecidos que não têm nada de imprevisível, e perderam o valor do enigma. A
produção contemporânea do estereótipo estético e a homogeneização cultural fizeram
com que a ambivalência que caracteriza as imagens do corpo desaparecesse. Assim sendo,
o corpo surge no discurso estético como demonstração de uma construção teórica
validável. Desta forma, a representação precede já o ato da interpretação, dissipando a
ambivalência, assim como fazendo desaparecer a heteronomia dos elementos
socioculturais que estão na génese da conceptualização dos discursos sobre o corpo. A
criação artística contemporânea, ao trabalhar em exaustão os estereótipos, acabou por
impor uma ordem estética assente numa confusão semântica que cria a ilusão de um signo
inacessível, como refere Baudrillard (1996). Neste sentido, anuncia-se o que parece ser o
corpo contemporâneo: um corpo que se situa num plano de vida, energeticamente forte,
mas virtualizado. Um corpo que atinge o máximo de virtuosismo técnico (arte, desporto,
etc.) mas que não se reorganiza sobre os afetos e o sentido, relegando para segundo plano
um corpo subjetivo e criador. Uma das características deste corpo é a perda da sua
organicidade, surgindo em seu lugar o virtual; este virtual caracteriza-se,
fundamentalmente, por não haver uma experiência do corpo. Desta feita, assiste-se a um
empobrecimento da riqueza das sensações da experiência, uma vez que as multiplicidades
das vivências intrapessoais, aparentemente, não se inscrevem nem no tempo, nem no
corpo. No seguimento de Gillibert (1993) a questão que se levanta, ao analisarmos o corpo
na cena contemporânea, é perceber se esse corpo comunicante se transformou numa
linguagem do absoluto, remetida para um conceito do sagrado, ou numa linguagem
estruturada, definindo-se, assim, uma alfabetização do corpo. Isto partindo do pressuposto
que o corpo, quando organiza o seu movimento de uma forma estruturada e transmissora
de um sentido, é, então, pensamento, e este pode ser denominado de linguagem artística.

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Corpos que Dançam | 2022

Imagem e Representação

A cultura ocidental é dominada pelo imperativo do espelho: a consciência, enquanto


autoanálise, é tomada como um espelho. Ou seja, o mundo social implica mecanismos
reflexivos sustentados em imagens, ainda que, frequentemente, essas imagens se revelem
negativas. O espelho pode, eventualmente, devolver-nos imagens menos interessantes, no
entanto, e apesar de tudo, é a nossa capacidade de representar o que somos, e os outros,
que atribui verosimilhança ao real. A imagem apresenta-se, então, como imperativo de
inteligibilidade, e requisito para viver em sociedade. Neste sentido, a linguagem do corpo
permite analisar a vida através de impulsos sensoriais e afetivos, resistindo, desta forma,
à virtualidade do real. Assim entendido, o fenomenológico torna-se plena fruição estética.
Se o facto de «ver viver» é na sua origem uma estética universalizante; atualmente, «ver
viver» tornou-se uma prática que nos faz acreditar que a verdadeira fruição nos chega da
ordem espetacular do mundo, alicerçada numa imagem cognitiva do real, mais do que na
sua manifestação sensível. É neste sentido que Husserl (1992) fala de um «ego homem»
condicionado por um corpo que percebe as coisas. Neste corpo podemos distinguir
diferentes níveis: apreensão das sensações; condicionamentos da perceção do objeto pelo
sistema psicológico humano; intersubjetividade. A análise de Husserl (1992) reabilita a
noção de um corpo-órgão que se traduz em expressão do espírito. Para Husserl, o corpo
é uma consciência sensitiva não concetualizada, a que Gil (2001) denomina de corpo
paradoxal. Será neste jogo de forças entre corpo–emoção–pensamento que se revelam os
princípios fundamentais dos sentidos do corpo. Com efeito, o corpo tem em si uma
combinação infinita de possíveis, e não se limita, como observámos anteriormente, ao
reflexo real que o espelho transmite, mas, pelo contrário, o seu desafio é jogar com as
representações que o espelho permite. Este é o grande segredo do corpo em cena: ao
exibir-se face ao espelho que é o outro expõe-se, transformando-se em representação. A
exibição estética do corpo tem como objetivo ser comunicação, permitindo, através da
representação, uma reflexão intelectual sobre a ficção. Embora seja difícil separar a
representação da realidade e a ficção do real, uma vez que ambas se regem pelas mesmas
regras, há um aspeto a ter em atenção: enquanto o corpo no dia-a-dia é vivido em exibição,
o corpo cénico é vivido em exposição. Neste sentido, a exposição é uma conquista dos
possíveis do corpo, exacerbando ao limite todos os sentidos da sua representação. A
estetização do corpo no quotidiano põe em cena um corpo quase sem expetativas, um
corpo que apenas se preocupa em obter o olhar do acaso dos encontros entre si e o outro
que passa. Esta cultura urbana é uma estética pública com o objetivo último de demonstrar
que na vida quotidiana cabe uma multiplicidade de manifestações estéticas do corpo, que
participam na idealização coletiva do prazer de ser espetáculo. Não há sociabilidade sem
sedução e, por consequência, sem um reconhecimento do corpo (o meu e do outro) ser
apercebido como objeto estético. Podemos, com Goffman (1974), afirmar que todas as
maneiras que temos de representar o corpo traduzem a nossa forma de estar no mundo,
como se o corpo fosse uma personagem autónoma ao serviço do sujeito que a habita.
Quando se assume o corpo como entidade autónoma e objeto estético falamos, pois, de
um paradoxo: o corpo é o sujeito e o objeto das nossas representações. Assim, comparar
o corpo a um objeto artístico é a maneira mais fácil de o sublimar, sob o nome de categoria
estética. As maneiras de estetizar o corpo na vida quotidiana são implicitamente
determinadas pelos hábitos culturais adquiridos e pela perceção repetida das obras de arte.
Por seu lado, serão as imagens dos corpos vividos no quotidiano de forma acidental que
provocam interferências na representação do corpo no discurso artístico. Por conseguinte,
as representações artísticas do corpo não apresentam um corpo isolado, mas antes uma
visão do mundo, daí que falar do corpo como objeto de arte será sempre falar de

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Corpos que Dançam | 2022

estereótipos, não para o demonstrar, mas antes para mostrar todas as contradições que
existem na relação de tensão entre imagem e representação. Compete, pois, ao discurso
artístico, transformar, de uma maneira inconsciente, as imagens do corpo em
representação, de acordo com um princípio comum de idealização estética.

Considerações Finais: Arte e Quotidiano, um possível diálogo estético

Como referimos anteriormente, a fronteira que divide o real e a ficção é


extraordinariamente ténue. Efetivamente, o real é um operador simbólico e a arte um
objeto aberto a uma multiplicidade de sentidos e a usos diferentes (o que devemos ver; o
que queremos ver). A verosimilhança encontra-se na produção real da ficção, sendo que
o real-quotidiano passa a ser eleito como objeto transcendental e metafórico. Neste
processo, o espectador é o grande responsável pela atribuição de legitimidade e sentido à
obra. Em última instância, caberá a este a distinção entre ficção e real. A arte torna-se
num documento polifónico, face a um mundo social saturado de imagens. E nem
necessitamos de ter vivido, como refere A. Rodrigues (1994), basta-nos a aparência desse
vivido, a imagem virtual na relação com o quotidiano. Face a este contexto, a arte liberta-
se da função de ser simulacro de vida para ocupar um espaço de ilusão e imaginário onde
se reinventa um novo humano sem que a metáfora esteja presente. Neste contexto, o corpo
em cena passa a ser entendido como forma estética para recapturar um espaço de
intervenção, insistindo-se na disjunção entre o real e a cena. O palco já não pretende ser
reprodução e continuidade de um real. Referimo-nos a uma teatralidade fundada em
signos que, por si só, promove uma concepção semiológica. Assistimos a uma nova forma
de se pensar o fenómeno espetacular, que passa, como defende Barthes (1972), por uma
relação entre a literalidade do texto e a materialidade cénica, em que a resolução do
espetáculo não está na apresentação do real, mas, muitas vezes, na repetição do real, na
tentativa de o dotar de novos sentidos ou, pelo menos, de o mostrar caricatural e absurdo.
Este é um elemento crucial na produção de sentidos e atribuições ideológicas. À visão de
um universo artístico, fruto de uma série de influências e resultante de uma concentração
de imaginários, corresponde o ideal da busca do quotidiano pelo não-dito, através da
desconstrução da vida. Esta «arte do quotidiano» surge em duas perspetivas: uma primeira
que busca formalmente uma pesquisa artística a partir do quotidiano; uma outra que
procura a transcrição desse quotidiano de forma linear como matéria-prima, não sujeita a
metáfora. Assim, enquanto no primeiro caso estamos a falar de partir do quotidiano, e
muitas vezes do individual, para se trabalhar sobre o global - a metáfora artística -; no
segundo caso, permanecemos no discurso individualizado, que não pretende ter certezas,
mas antes apresentar diferentes possíveis para a ação em causa, sem julgamentos, abrindo
perspetivas de imaginário no espetador, convidando-o a tomar uma posição. Isto implica,
igualmente, uma alteração na conceção artística. Os mecanismos diacrónicos de
progressão na criação foram agora substituídos por mecanismos de progressão sincrónica
de quadro. A ordem cronológica é desvalorizada em benefício de uma ordem lógica,
passando-se de um sistema que imita a natureza para um sistema que reproduz o sistema
de pensamento. A este espaço cénico corresponde também um outro olhar sobre a
concepção das personagens. Para Sarrazac (2002), a personagem contemporânea é um ser
simbólico desfigurado e, dramaturgicamente, desagregado. Neste sentido, o corpo separa-
se da voz: enquanto a voz continua submersa no mundo da linguagem, o corpo desintegra-
se num vazio e num caos dissonante, numa construção de subtexto que tenta o retorno
biográfico numa perda progressiva de identidade. As personagens da contemporaneidade
passam a ter como denominadores comuns: a somatização do corpo, a sombra e a

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monstruosidade. São personagens que desgastam constantemente os seus corpos, que os


levam ao limite da destruição. A confusão consciente entre corpo social, corpo pessoal e
corpo de prazer é permanente; resta um corpo de ausência. Estamos perante uma
humanidade vazia, representada num corpo em permanente ausência de si e de um outro,
e em que os silêncios adquirem sentido cénico crescente. Este silêncio inscreve-se
igualmente no corpo, não um silêncio que é feito de neutralidade física, mas feito de
gestos e intenções que se inscrevem em aparente silêncio enquanto as palavras jorram
ininterruptamente. O propósito é, agora, que o objeto artístico seja um espelho naturalista
das relações interpessoais mais do que das narrativas espácio-temporais. Sair das
narrativas do sujeito em interação social, para narrativas intersubjetivas e intrasubjetivas.
Repete-se, então, os conceitos aristotélicos de mimese e catarse, não numa dimensão
social, mas numa dimensão privada e biográfica. Neste sentido, o espetáculo deixa de
tentar ser o porta-voz metafórico de uma esfera pública para se dirigir ao sujeito
intrapessoal. O que é dito é a realidade do sujeito (criador) que parte da sua narrativa
biográfica, não como realidade, mas como verosimilhança de uma qualquer verdade.
Tradicionalmente, a representação cénica alicerçava-se nesse pensamento, acreditava-se
que a relação entre pares era essencial para o entendimento da realidade. A partir do
momento em que não se acredita mais nessa relação para o entendimento da realidade,
abre-se espaço para a assunção da «persona» como materialidade de discurso artístico.
Os conceitos de caráter, personagem, figura dramática, aos quais Hegel denominava de
colisão dramática, disseminam-se. A dialética do conflito transfere-se do humano para o
humano. O tempo passa a ter uma função ideológica e é, como já se afirmou, um tempo
descontinuo permitindo novas formas de construção da realidade. Surge, então, uma nova
conceção: o espetador deve ver o objeto artístico «como se fosse real»; o criador deve
assumir o objeto artístico como «real ficcionável». Neste sentido, as artes cénicas
deixaram de tentar ser simulacro da vida e passaram a convidar o espectador a participar
na concretização do espetáculo, ou seja, a participar na teatralidade que, por excelência,
será sempre jogo. Neste sentido, o espectador passou a ser incluído no processo de
criação, assumindo o seu carácter ficcional. A teatralidade passou a ser entendida como
forma estética para recapturar um espaço de intervenção, insistindo na disjunção entre o
real e a cena, sendo que o palco já não pretende ser reprodução e continuidade de um real.

Referências

Barthes, R. (1972). Le degré zéro de l’écriture. Seuil.


Baudrillard, J. (1996). Le nouvel ordre esthétique. Prétentaine.
DiMmagio, P. (1987). Classification in Art (pp. 440-455). American Sociological Review,
Vol. 52, No. 4. (Aug., 1987).
Gil, J. (2001). Movimento Total. O corpo e a dança. Relógio d’Água.
Gillibert, J. (1993). L’Acteur en création. Presses Universitaires du Mirail.
Goffman, E. (1974). Les rites d’interaction. Minuit.
Goffman, E. (1993). A apresentação do Eu na vida de todos os dias. Relógio d’Água.
Goldmann, L. (1971). Structuralisme génétique et création littéraire. Sciences Humaines
et Philosophie.
Husserl, E. (1992). Conferências de Paris. Edições 70.
Luhman, N. (1982). The differentiation of society. Columbia University Press.
Luhman, N. (1990). The work of art and the self-reproduction of art. Essays on self-
reference. Columbia University Press.
Rodrigues, A. (1994). Comunicação e Cultura. A experiência cultural na era da

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informação. Presença.
Santos, M. (1988). Questionamento à volta de três noções (a grande cultura, a cultura
popular, a cultura de massas). Análise Social, Vol. XXIV, 101 e 102.
Sarrazac. J.P. (2002). O Futuro do Drama. Campo das Letras.

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A arte da Dança e seu contexto profissional

Ana Lígia TRINDADE


Universidade La Salle – UNILASALLE
[email protected]

Patrícia MANGAN
Universidade La Salle – UNILASALLE
[email protected]

Resumo: As considerações levantadas acerca da profissão e do profissional bailarino(a) têm a


finalidade de contextualização para estudo que, se presume, deverá apontar para configuração de
alguns perfis identitários que estão se formando, sobretudo, com a diversificação em um contexto
de globalização, no qual o aumento e a normatização de vínculos temporários e precários
no mercado têm modificado a organização de trabalho e de produção na sociedade
contemporânea. O estudo apresentado tem indicado que o(a) bailarino(a) é alvo de
vínculos profissionais flexíveis e temporários. As companhias de dança profissionais, que
antes proporcionavam condições estáveis de trabalho no Brasil, não escaparam às novas
dinâmicas do mercado.

Palavras-chave: dança, bailarino(a), identidade profissional, profissão

Abstract: The considerations raised about the profession and the professional dancer,
have the purpose of contextualization for study, which should be presumed, pointing to
configuration of some identity profiles that are forming, particularly with the
diversification in a context of globalization, in which the increase and the standardization
of precarious and temporary bonds on the market has modified the organization of work
and production in contemporary society. The study presented has indicated that the
dancer is a target of occupational ties, flexible and temporary. Professional dance
companies, which previously provided stable conditions to work in Brazil, they escaped
to new market dynamics.

Keywords: dance, dancer, professional identity, profession

Este estudo tem como propósito contextualizar acerca da profissão do(a) bailarino(a)
com intenção de iniciar investigação sobre sua atual identidade profissional. A pesquisa
em andamento, da qual emerge este trabalho, procura a compreensão da identidade
profissional do(a) bailarino(a) no Estado do Rio Grande do Sul, com ênfase em dois
aspectos definidos: formação e atuação do profissional bailarino. Visamos neste artigo
iniciar uma análise dos aspectos profissionais importantes para este projeto e para demais
pesquisadores da temática.
Inicialmente, parecem-nos pertinentes esclarecimentos acerca de determinados termos
como ocupação, ofício e profissão, sendo importante fazer uma ressalva sobre a oposição
entre profissão e ofício, destacando como surge a noção de “superioridade” das

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Corpos que Dançam | 2022

profissões. Por outro lado, também é interessante, para a análise da área da arte, o conceito
de vocação.
Claude Dubar (2005) afirma que antes da multiplicação das universidades no século
XIII, o trabalho era algo consagrado e todos os trabalhadores, sejam eles das artes liberais
(artistas, intelectuais) ou das artes mecânicas (artesãos, trabalhadores manuais). A
separação entre artes liberais e artes mecânicas ocorre com a expansão e fortalecimento
das universidades, gerando uma oposição entre profissões. A profissão passa a ser
associada ao espírito, ao intelectual, ao nobre (artes liberais) e o ofício surge associado à
mão, braços, prático (artes mecânicas) (Angelin, 2010).
Encontram-se na teoria da sociologia da profissão (e/ou do trabalho) duas vertentes
interessantes: autores que abordam o monopólio do conhecimento como essencial na
profissionalização (Parsons, 1939; Hughes, 1958; Freidson, 1998) e outros que defendem
o monopólio das práticas profissionais (Wilensky, 1964; Abbott, 1988; Schön, 2000).
Portanto, para Parsons (1939), seguidor da vertente acadêmica, é atribuição das
universidades o papel de legitimação e institucionalização do saber do profissional.
Freidson (1998) define a profissionalização como um processo pelo qual uma ocupação
organizada através da reivindicação de suas competências, da qualidade de seu trabalho
e dos beneficios que com isso proporciona à sociedade, obtém o direito exclusivo de
realizar um determinado tipo de trabalho e de controlar a formação e o acesso.
Por outro lado, Wilensky (1964), em sua vertente prática, afirma que para ser
reconhecida uma profissão devem ser contemplados os seguintes pré-requisitos: controle
sobre a formação, criação de uma associação profissional que defina as tarefas essenciais,
que gerencie os conflitos internos e os conflitos com outros grupos que desenvolvam
atividades semelhantes, proteção legal, e definição de código de ética.
Entretanto Freidson (1998) nos apresenta outro ponto de vista. Segundo ele, “qualquer
que seja a forma de definir “profissão” ela é, antes de tudo e principalmente, um tipo
específico de trabalho especializado” (Freidson, op.cit., p. 2). Algumas atividades não são
reconhecidas como trabalho, algumas vezes, porque não são formalmente
recompensadas, outras, porque não são realizadas em tempo integral. Em outras ocasiões
são atividades pagas e realizadas em tempo integral, mas informalmente, como economia
paralela. Freidson esclarece que,

[...] o restante desse amplo universo de trabalho é composto de ocupações e ofícios


desempenhados na economia reconhecida oficialmente. É aí que encontramos as
profissões, listadas como um tipo especial de ocupação nas modernas classificações
oficiais. Contudo, nenhuma teorização sobre profissões (sem falar de outros tipos de
trabalho) pode tratar do trabalho reconhecido oficialmente sem considerar também
aquele não reconhecido, na economia informal, no mínimo porque muitas profissões
tiveram suas origens na economia informal e só depois se tornaram reconhecidas
oficialmente. (Freidson, op.cit., p. 2)

Para Freidson, “as profissões, enquanto ocupações reconhecidas oficialmente, se


distinguem em virtude de sua posição relativamente elevada nas classificações da força
de trabalho” (ibidem) Para o autor, profissão consiste dos seguintes componentes:

[…] uma ocupação que empregue um corpo especializado de conhecimentos e


qualificações, e que seja desempenhada para a subsistência em um mercado de
trabalho formal, gozando de status oficial e público relativamente alto e considerada
não só de caráter criterioso, como fundamentada em conceitos e teorias abstratos.

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jurisdição sobre um corpo especializado de conhecimentos e qualificações em uma


divisão do trabalho específica, organizada e controlada pelas ocupações participantes.
controle ocupacional da prática desse corpo de conhecimentos e qualificações no mercado
de trabalho (seja uma universidade ou uma empresa), por meio de uma reserva que exija
que apenas os membros adequadamente credenciados possam executar as tarefas sobre
as quais têm jurisdição e também supervisionar e avaliar seu desempenho. Estes últimos
servem como a classe administrativa da profissão:

[…] a credencial utilizada para amparar sua reserva de mercado de trabalho é criada
por um programa de treinamento que se desenrola fora do mercado de trabalho, em
escolas associadas a universidades. O currículo de ensino é estabelecido, controlado e
transmitido por membros da profissão que agem como corpo docente em tempo
integral, atuando pouco ou nada no mercado de trabalho cotidiano. O corpo docente
serve como classe cognitiva da profissão. (Freidson, op.cit., p. 8)

Ainda, e também para Freidson:

[…] profissionais são aquelas pessoas que criam, expõem e aplicam aos assuntos
humanos o discurso de disciplinas, campos, corpos demarcados de conhecimento e
qualificação. Esse é seu trabalho, que não pode ser desempenhado sem instituições que
lhes garantam apoio econômico, poder e organização. (Freidson, p. 9)

No Brasil, Ghisleni (2010) afirma que o conceito do termo profissão “tem sido alvo de
reflexão com a elaboração da nova Classificação Brasileira de Ocupação (CBO) de 2002”
Ghisleni (2010, p. 15). A autora esclarece, que segundo o CBO/2002, profissão é um
conjunto de regras de acesso, sancionado por um diploma de nível superior, possibilitando
o ingresso em determinados tipos de trabalho. É definido, portanto, pelo seu
conhecimento e competência escolar e não por suas competências no exercício de sua
atividade laboral:

[...] o termo ‘profissional’ é utilizado na CBO para um grande número de famílias


ocupacionais cujo exercício requer nível superior, já que as atividades exigem alto
nível de conhecimento, e que visam à ampliação do acervo de conhecimentos
científicos e intelectuais, por meio de pesquisas, além de aplicar conceitos e teorias
para a solução de problemas (Ghisleni, 2010, p. 15).

Entretanto, em alguns casos, a CBO utiliza este termo para um conjunto de situações
de trabalho que não requer nível superior, como no caso dos técnicos de nível médio
(cursos profissionalizantes).
Percebe-se, portanto, a dificuldade em conceituar o termo “profissional” no atual
contexto sócio-histórico cultural, contudo, entende-se que ao procurar compreender o
processo pelo qual o indivíduo passa na socialização das relações de trabalho, na
construção da percepção de si mesmo como profissional, seja possível traduzir melhor o
que seja o profissional (Ghisleni, 2010, p. 15).
Na realidade, o termo profissão, no Brasil, “costuma ser utilizado no senso comum
para qualquer ocupação, sem a exigência de uma formação de nível superior” (Ghisleni,
2010, p. 15), independente se a atividade foi aprendida na escola ou, pela experiência, no
seu exercício. Investigamos, portanto, na continuidade deste artigo, diferentes aspectos
do mundo do trabalho contemporâneo no contexto da arte da dança.

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Corpos que Dançam | 2022

1. A arte como profissão: o artista como trabalhador

Na análise das possibilidades do estabelecimento das artes como profissão e do artista


como trabalhador, os teóricos Freidson, Chamboredon e Menger (1986) afirmam, que
embora os artistas sejam majoritariamente provenientes da classe média e possuam
formação superior à da média da população, poucos sobrevivem da arte. Geralmente, são
obrigados a exercer outras atividades econômicas para garantirem seu sustento,
diferentemente de profissionais de outras áreas, como médicos, engenheiros, advogados.
Além disso, Menger (2005) afirma que:

[...] o mercado capitalista, incerto e instável, utiliza o trabalho do artista como modelo
de trabalho flexível, uma vez que o artista--trabalhador dificilmente consegue se
manter apenas com o resultado de sua criação, precisando dedicar-se a formas
multifacetadas de trabalho: o auto-emprego, o freelancing, e as diversas formas
atípicas de trabalho – trabalho intermitente, trabalho a tempo parcial, multi-
assalariado. (2005 apud Arruda, 2010, p. 57)

Para Freidson, Chamboredon e Menger (1986) as profissões artísticas são as mais


ambíguas e constituem um desafio à análise teórica das profissões e do trabalho. De
acordo com estes autores, Cerqueira (2015) esclarece que a dificuldade de se entender o
artista como trabalhadores deriva da ideologia romântica da criação como algo fora do
mundo, tornando as análises com tendências a “privilegiar a obra do artista enquanto
criação estética, em prejuízo do processo de trabalho que a elaborou” (p. 2). Existe uma
percepção profissional do artista fundamentada numa visão bastante idealizada da
vocação, escondendo aspectos reais de uma carreira. A arte é considerada inspiração pura,
irracional, somente suscetível de revelação e não de compreensão, interior, gratuita,
transcendente, mágica e iluminada. Contudo, Cerqueira (2015) esclarece:

Contrariando as compreensões que encerram as explicações do trabalho artístico em


palavras como talento natural, dom, vocação e genialidade, observa-se que o trabalho
artístico é (também) um processo consciente e racional, ao fim do qual resulta uma
obra como realidade dominada e não – de modo algum – um estado de pura inspiração.
O ofício do artista requer um longo processo de formação profissional. Todo ensaio,
todo espetáculo significa, ao mesmo tempo, trabalho. (Cerqueira, 2015, p. 2)

Diante deste contexto torna-se “importante um esforço de análise que compreenda a


própria realidade desse campo em suas dinâmicas, contradições, estratégias de
envolvimento e dificuldades de identidade e organização” (Cerqueira, 2015, p. 2).
Segundo Segnini (2006) os artistas, frequentemente, são descritos de forma
preconceituosa e plena de estereótipos, com uma visão equivocada referente ao trabalho
de criação como sendo um processo individual e solitário, indiferente à opinião do público
e ao sucesso. Para a autora trata-se de uma visão distorcida do trabalho artístico:
“Observa-se que a criação artística, seja ela qual for (dança, música, teatro, cinema,
pintura, arquitetura), é um trabalho realizado coletivamente, implica em pesquisas
sociológicas, econômicas, políticas, históricas e psicológicas” (Segnini, 2006, p. 6).
Em suas pesquisas Segnini (2006) identifica que a escolha da profissão para os artistas
de espetáculo é, geralmente, uma escolha própria, pautada na paixão em exercê-la.
Normalmente, antes de se tornarem profissionais, a arte escolhida já era um hobbie, uma
atividade de lazer na vida do sujeito. A autora também relata, acerca de suas
investigações, que esses trabalhadores artistas – músicos e bailarinos – estão submetidos

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à constante incerteza face à garantia do trabalho. É permanente, para estes artistas, a


procura por trabalho, uma vez que é comum dependerem de projetos artísticos que,
quando contemplados, são por tempo determinado. É importante lembrar que a
remuneração nesta área é mediante a execução do espetáculo, muitas vezes não levando
em consideração todo o preparo dos artistas para a performance. Contudo, mesmo
desempregado, o profissional artista necessita de se manter sempre pronto para o trabalho,
mesmo sem nenhuma programação estabelecida, pois as oportunidades podem aparecer
a qualquer momento. No caso de bailarinos(as), esclarece Segnini (2006) é preciso manter
o corpo preparado diariamente e os músicos necessitam realizar um estudo diário com
seus instrumentos musicais. Os artistas são trabalhadores que trabalham diariamente, sem
ter a garantia do espetáculo ao vivo, ou seja, sem garantias de remuneração.
Por excelência, o trabalho artístico é considerado flexível, tanto em termos de
conteúdo, locais e horários, em contratos de trabalho. A instabilidade na condição de
trabalho e na carreira do artista é reconhecida historicamente em vários países, incluindo
o Brasil.
As profissões artísticas possuem diversas particularidades, das quais Kronemberger
(2016) destaca duas principais:

[...] o status do artista não é protegido por títulos ou certificados educacionais


(dificuldade de definição dos critérios de entrada nas posições ofertadas no mercado –
Quais são os critérios sociais legítimos para se tornar artista?); e a relação particular
com o mercado (demanda complexa e instável das atividades e produtos artísticos).
(Kronemberger, 2016, p. 12)

Essas singularidades, para Kronemberger (2016) trazem um problema teórico


fundamental – o de definição do termo profissão. Para a autora, muitas profissões,
principalmente as liberais, possuem um processo de profissionalização no qual suas
atividades de formação se ligam às universidades, onde a certificação acadêmica autoriza
a prática da profissão. Desta forma, os títulos de formação formal se constituem em um
traço constitutivo da definição das profissões. Outro aspecto característico nas definições
da noção de profissão é a sua vinculação à atividade remunerada. Entretanto,
especificidades encontradas em profissões artísticas, problematizam as noções usuais de
profissão e de trabalho, que tomem como centrais as credenciais acadêmicas e a relação
entre atividade produtiva e mercado, sobretudo no que se refere à remuneração.
Conforme Kronemberger (2016), produtos culturais de grande alcance, competências
exigidas dos artistas, inspiração, formação extrema, são critérios que justificam essas
atividades como profissões. Entretanto:

[...] as profissões artísticas colocam um problema sociológico fundamental de como


construir um conceito geral de profissão que leve em conta atividades como estas e
não se baseie em critérios apenas econômicos e de certificações educacionais formais.
Ou seja, este é um caso em que objetivamente são os critérios sociais os principais
definidores da posição social desse grupo. (Kronemberger, 2016, p. 12)

De acordo com Kronemberger (2016) acerca do contexto social deste grupo, Freidson,
Chamboredon e Menger (1986), afirmam, que para considerar a atividade artística uma
profissão, devemos ir além de uma definição que leve em conta apenas critérios
econômicos. Freidson, Chamboredon e Menger (1986) afirmam que esta definição esteve
por muito tempo dominante, a ponto de nos cegar sobre o alcance teórico da prática
contemporânea das artes. Para estes autores, devemos considerar a profissão como “um

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empreendimento humano organizado visando ao cumprimento de tarefas especializadas


às quais se reconhece um valor social” (Freidson, Chamboredon & Menger, 1986, p. 440).
Trata-se do exercício de uma “competência especializada dentro da divisão do trabalho”
(ibidem) ou de uma função social.
Ao analisar a profissionalização dos músicos de Porto Alegre, a pesquisadora Julia da
Rosa Simões (2016) aborda em sua tese alguns pontos interessantes que podem ser
considerados acerca dos profissionais das artes:

Muito ligada ao lazer e à arte, a música parece principalmente uma ocupação


prazerosa, desvinculada de questões pragmáticas. É comum não se pensar na dimensão
profissional da atividade ao se considerar a atuação dos músicos no contexto histórico
brasileiro [...]. A arte, e também a música, é muitas vezes vista como o inverso da vida
econômica, lembrou o sociólogo Craig Calhoun, interessado por esse “mundo” tão
contraditório. Visto não ser muito conhecida a labuta diária dos instrumentistas pela
subsistência, dentro ou fora de seus ambientes performáticos (palcos, salas de aulas),
[...] uma “profissão difícil” ou “mais obscura” – para citar estudos recentes sobre
história das profissões artísticas. (Simões, 2016, pp. 13-14)

Simões (2016) apresenta alguns pontos importantes para que se compreendam as


ocupações artísticas:

[...] é preciso apontar a necessidade de ampliar-se o conceito de profissionalização


para categorias afastadas das definições ideal-típicas, como é o caso das ocupações
artísticas, para que também se possa estudar as formas de auto-organização que tais
categorias colocam em prática, bem como sua capacidade de erigir e fazer respeitar
barreiras para a entrada em seu campo de atividade, ou suas estratégias no que
concerne ao mercado, à concorrência e à liberdade profissional. (Simões, 2016, p. 17)

Pensar em artistas - sejam eles músicos, bailarinos, atores - como profissionais envolve
o conhecimento de certas especificidades destes ofícios que, conforme Simões (2016),
devem levar em consideração as diversas competências e qualidades exigidas pelo
trabalho não-alienado desempenhado pelo artista. Para a autora:

Este se movimenta entre dois mundos, sendo artista – criando, interpretando –, mas
também trabalhador – vendendo sua força de trabalho no mercado. Sua atividade não
pode ser definida como mero lazer, apesar de muitas vezes seguidamente prazerosa e
muitas vezes sem fins lucrativos, mas também escapa à categorização usual de trabalho
remunerado, pois nem sempre o critério econômico é suficiente para diferenciar o
amador do profissional. Aliar arte e profissão parece constituir um desafio e uma
ambiguidade, tanto para os analistas da matéria quanto para seus protagonistas
(Simões, 2016, p. 18).

Baseada em Frederickson e Rooney (1990), Simões (2016) considera a música como


uma semiprofissão, apresentando três motivos básicos:

1) músicos dominam um corpo de conhecimento especializado e técnicas, mas não são


exigidos a completar um treinamento padronizado; 2) eles fracassaram em assegurar
um monopólio legal sobre o campo da performance através da exigência de teste e
licenciamento de graduados; e 3) eles têm autonomia limitada: precisam

79
Corpos que Dançam | 2022

rigorosamente coordenar seu tocar sob a direção de um regente, e a função de sua


performance é muitas vezes controlada pelo cliente. (Simões, 2016, p. 19)

A música seria uma semiprofissão basicamente por possuir características tanto de


ofício quanto de profissão. Frederickson e Rooney (1990) e Simões (2016) consideram,
portanto, que: o sucesso em música poderia ser medido através de habilidades facilmente
observáveis, não através de certificação de conhecimento, conforme atestado pelo fato de
um diploma não ser pré-requisito para a entrada em orquestras. (Simões, 2016, p. 19)

O autor conclui que em sua ênfase em habilidades observáveis, a música revela sua
essencial orientação de ofício: “fazer é mais importante do que saber” (Simões, 2016, p.
19). Analisando as considerações e conclusões apresentadas por Frederickson e Rooney
(1990) e Simões (2016), claramente reconhecemos situação semelhante com profissionais
bailarinos. Os(as) bailarinos(as), como os músicos, tem sua formação:

[...] baseada num aprendizado de artífice/artesão, ou seja, na “habilidade manifesta de


copiar a performance do professor: análises críticas das tradições do ofício são
desencorajadas, e consentimento mútuo dos procedimentos é a base na qual uma
lealdade é estabelecida (Simões, op.cit., p. 19).

Entretanto, esse não é o caso no ensino formal de dança em que, como na música, se
procura colocar o seu estudo mais próximo das demais áreas acadêmicas, mas em linhas
gerais, segundo Simões (2016), o ensino musical continua dependendo de observação
direta e trabalho sob a batuta de um mestre, situação semelhante na dança.
Simões (2016) revela outra situação acerca dos profissionais músicos bastante
semelhante aos profissionais bailarinos(as): o perfil enquanto empreendedores dedicados
a carreiras freelance ou enquanto trabalhadores independentes de patrões ou instituições.
A autora menciona que:

o músico seguidamente precisou dividir-se entre várias atividades: instrumentista,


compositor, arranjador e, acima de tudo, professor. Em todas, necessitou ser
oportunista, no sentido de que desenvolveu a habilidade de perceber oportunidades e
tirar vantagem delas. (Simões, op.cit., p. 23).

De facto, invariavelmente os profissionais da arte se defrontam com o que Bendassolli


e Wood Jr. (2010) denominaram “paradoxo de Mozart”1, ou seja, o sonho da liberdade de
criação e da autonomia profissional, porém condicionado pela necessidade de encantar a
audiência e convencer consumidores a comprar seus produtos. Desta forma, os artistas
buscam a “auto-realização e a autonomia de expressão, porém são limitados pela
capacidade de comercializar de forma bem-sucedida seus talentos e competências”

1
“Wolfgang Amadeus Mozart foi um pioneiro. Em 1781, o músico deixou os serviços do Arcebispo de
Salzburg para tentar a sorte como músico e professor autônomo em Viena. Por 10 anos, Mozart conheceu
as alegrias e as tristezas da vida de profissional independente. Para facilitar a venda de suas peças, Mozart
ressaltava a flexibilidade das composições, que poderiam ser utilizados por diversas formações. Sempre
que iniciava uma composição ou preparava-se para apresentá-la em público, vinham à tona as questões:
como compor para este novo público dos concertos? O que fazer para agradá-los? Mozart morreu em 1791,
com 35 anos de idade, endividado, derrotado e marcado pela sensação de fracasso social e profissional”
(Elias, 1994 apud Bendassolli; Wood Jr., 2010). Por um lado, o sonho de liberdade de criação e de
autonomia profissional e, por outro, a necessidade de encantar a audiência e convencer consumidores a
comprar seus produtos foi denominado “paradoxo de Mozart” por Pedro F. Bandassolli e Thomaz Wood
Jr., em 2010.

80
Corpos que Dançam | 2022

(Bendassolli, 2009, p. 10). Os autores afirmam, que as transformações econômicas,


sociais e culturais ocorridas desde os anos 1980, acabaram por colocar profissionais dos
mais variados setores diante deste paradoxo. Entretanto, nem todos os profissionais
artistas tem a habilidade de administração da própria carreira.
Em concordância com Simões (2016) e Bendassolli e Wood Jr. (2010), Cerqueira
(2015) afirma que nas análises do trabalho artístico:

[...] é possível identificar tanto as seduções de um mercado de trabalho não tradicional


(valorização da autonomia, da responsabilidade, da criatividade) quanto às ameaças da
efemeridade dos empregos (banalização da atipia salarial e respectivos riscos) e da
intensidade da concorrência num contexto de grande fragmentação do trabalho e de
grande variabilidade das competências exigidas. Diante disso, o próprio indivíduo é
chamado a comportar-se como empresário da sua própria carreira, portfólio worker, a
custo de uma forte individualização do seu sistema pessoal de atividade. (Cerqueira,
2015, p. 2)

A autora esclarece que seus estudos acerca do trabalho artístico, baseados em autores
como Menger (2005), Segnini (2006) e Benhamou (2007), permitem afirmar que o
trabalho artístico é caracterizado pela flexibilidade e inserido em contexto de auto-
emprego, freelancing e diversas formas atípicas de trabalho (intermitência, tempo parcial,
multi-assalariado).
As transformações ocorridas desde os anos 1980, citadas por Bendassolli e Wood Jr.
(2010), trouxeram um contexto onde músicos, pintores, atores e outros profissionais da
arte compõem um campo hoje denominado como “indústrias criativas”. No final do
século XX, ganhou notoriedade o conceito de “indústrias criativas”, em reconhecimento
ao peso das atividades criativas (artistas em geral) na economia. A emergência do termo
indústrias criativas, segundo os autores, aponta para uma nova tentativa de articulação
entre os domínios da arte, da cultura, da tecnologia e dos negócios.

Especificamente, entendemos que, no decorrer dos últimos séculos, muitas mudanças


ocorreram: determinadas carreiras artísticas desapareceram, outras perderam
importância e outras emergiram e ganharam proeminência. A despeito de tais
mudanças, é provável que o “paradoxo de Mozart” persista, na medida em que os
artistas, agora atuando nas denominadas indústrias criativas, continuam buscando sua
auto-realização e autonomia num enquadre econômico em que são pressionados a
comercializar de forma bem-sucedida seus talentos, competências e “obras”.
(Bendassolli & Wood Jr., 2010, p. 262)

Neste contexto, Throsby (2001 apud Bendassolli & Wood Jr., 2010), define artista
como “indivíduo que domina competências artísticas, que cria ou dá expressão a trabalhos
de arte ou de conteúdo cultural (ou seja, de valor simbólico), que se percebe como artista
(identidade auto-atribuída), que é reconhecido por pares e público como tal e que é capaz
de viver com o produto de seu trabalho” (Throsby, 2001 apud Bendassolli & Wood Jr.,
2010, p. 263).
Bendassolli e Wood Jr. (2010) alertam, que, de um modo geral, predominam, nesse
mercado, empregos casuais e contingentes, caracterizados pela instabilidade e pela
descontinuidade, que ocorre devido às variações das condições de demanda, à forma de
produção (que comumente ocorre por projetos), às pressões por inovação, diferenciação
e singularidade e à natureza incerta do processo criativo. Desta forma, existe uma
tendência a prevalecerem relações de trabalho de curto prazo. Sendo que os artistas, em

81
Corpos que Dançam | 2022

sua trajetória profissional, costumam passar por vários projetos e organizações,


eventualmente sob condições contratuais desfavoráveis e precárias, até adquirir
reconhecimento suficiente e poder definir ou ter influência sobre sua própria trajetória.
Throsby (2001), Menger (2005), Bendassolli e Wood Jr. (2010) concordam que o
trabalho artístico é uma ocupação de tempo parcial, para a qual educação formal tem valor
relativo, de retornos financeiros incertos e grandes distorções salariais. Geralmente, a
força de trabalho costuma ser mais jovem que a média e apresenta maiores níveis de sub-
emprego, emprego a tempo parcial e desemprego.

2. Quem é o(a) profissional bailarino(a)

No universo da dança, nos parece importante mencionar acerca do fato de que a


dedicação à dança está associada ao conceito de vocação, sendo este mais forte do que o
conceito de trabalho ou ocupação, e sendo, talvez, também superior ao conceito de ofício
e profissão, segundo Wainwright e Turner (2006 apud Nacht, 2009). A ideia de vocação,
normalmente associada à inclinação religiosa, está também relacionada ao sacrifício e
sublimação e, geralmente, aquele que é movido pela vocação tem uma personalidade que
é colocada à prova, não só pelas incontáveis dificuldades que se apresentam pelo
caminho, como também pelo pouco reconhecimento ao esforço feito (Weber, 2000).
Normalmente o sacrifício e a devoção fazem parte da rotina dura de manutenção técnica
e física e ensaio do(a) bailarino(a), além da contínua presença da dor e de possíveis lesões.
O risco de lesão significa também o risco de parar de dançar representando grande
impacto em sua identidade (Wainwright & Turner, 2006 apud Nacht, 2009).
O que se estabelece para este profissional, certamente, é que sua ferramenta de trabalho
é, sem dúvidas, seu próprio corpo. E este tem de estar preparado tecnicamente, além de
apresentar uma imagem longilínea e magra, contudo, deve ser saudável e vigoroso. Outra
característica fortemente encontrada neste meio profissional é a competição. Este parece
ser atributo estrutural da experiência de vida e de trabalho dos(as) bailarinos(as):

Uma espécie de ética do “eu por mim mesmo/a” é o que determina o funcionamento
do mercado de trabalho destes. Cada aspirante precisa ser aceito e ingressar
inicialmente numa companhia por uma espécie de audição determinada. Depois é
cotidianamente testado em aulas, ensaios que selecionam quem vai dançar os melhores
papéis, os papéis secundários, e, até mesmo, quem não vai dançar. Todos os dias,
portanto, uma competição. (Agostini, 2010, p. 5)

Menger (2005) comenta que a organização do trabalho em dança impõe flexibilidade


elevada ao trabalhador artista. Para manutenção das organizações do espetáculo ao vivo,
existe uma necessidade de recrutamento rápido por meio de redes de conhecimento, audi-
ções (identificação dos melhores artistas para cada espetáculo) e de acordo com diferentes
possibilidades de remuneração/cachês. Esta condição reflete no profissional artista.
Segnini e Lancman explicam:

O processo de construção de um espetáculo exige dupla dimensão dos(as)


bailarinos(as): trabalho individual e coletivo. No trabalho individual é observado o
desenvolvimento da técnica; o conhecimento do próprio corpo, pesquisa sobre movi-
mento, obtenção de repertório de movimento por meio da investigação individual e
manutenção dos requisitos em termos biológicos. Os bailarinos e bailarinas estão em
constante movimento, uma vez que o instrumento de trabalho é o corpo, é preciso

82
Corpos que Dançam | 2022

mantê-lo sempre pronto para o trabalho. [...] Assim como é de extrema necessidade o
trabalho realizado coletivamente sob as orientações do coreógrafo, com o objetivo de
se aprender o movimento de determinada coreografia (ensaios). (Segnini & Lancman,
2011, p. 43)

Diante deste contexto Rannou e Roharik (apud Segnini & Lancman, 2011) afirmam
que a carreira do(a) bailarino(a) pode ser resumida em quatro grandes etapas:

[...] a primeira, encantamento com a atividade; muito comumente, engajam-se


precocemente na profissão por meio de um ciclo de formação informal especializada,
escolas de dança, por exemplo. O segundo momento é decisivo na carreira do(a)
bailarino(a), no qual o profissional buscará se colocar no mercado e se estabilizar
enquanto artista da dança. Nesta trajetória, o terceiro período é caracterizado pela
maturidade e reconhecimento profissional. No entanto, o quarto momento tende a ser
marcado por complicações profissionais relacionadas, sobretudo com o corpo.
Anunciando assim a saída do palco (Rannou & Roharik, 2006 apud Segnini &
Lancman, 2011, p. 44)

Segnini e Lancman (2011) concluem que “a relação entre o amadurecimento


profissional e a necessidade de um corpo jovem expressa um potencial conflito
permanente na profissão”, pois:

O amadurecimento profissional é um prelúdio do fim da atividade. Desta forma, é


observada uma relação ambígua: quanto mais o profissional amadurece e se torna mais
cônscio de suas habilidades e fragilidades, também se depara com a proximidade de
ter que se retirar da cena em razão de um corpo que se fragiliza biologicamente e é
menos valorizado no mundo da dança. A preocupação com o futuro profissional é
frequente entre os(as) bailarinos(as) (Segnini & Lancman, 2011, p. 44)

Num estudo de caso realizado pela pesquisadora Neves (2013) com o Cisne Negro
Cia. de Dança, de São Paulo, SP (Brasil), foi identificado que “diferente da carreira de
músico erudito, na dança não há indícios significativos de herança cultural”:

As bailarinas, assim como os bailarinos, não costumam ter parentes que atuaram como
amadores ou profissionais no mundo coreográfico ou mesmo em outras artes. A
formação no balé clássico ou em estilos considerados menos consagrados se apresenta
como uma oportunidade para o ingresso e lançamento na esfera da cultura. (Neves,
2013, pp. 235-236)

A profissão de bailarino(a) neste estudo foi considerada um ofício pouco reconhecido


como profissão e que implica muitos sacrifícios. Sendo uma carreira bastante concorrida
e curta, por conta das restrições impostas pelo envelhecimento do corpo, cujas
recompensas materiais não são expressivas, são limitados os espaços que garantem
estabilidade de emprego.
Importante salientar, que neste ambiente artístico, a “construção do corpo mecânico
do balé implica também um automatismo do espírito alimentado pelo estilo de vida
ascético que o produz, em que a submissão, a persistência e a disputa são qualidades
imprescindíveis para a permanência nessa prática” (Neves, 2013, p. 219). Além disso,
o(a) bailarino(a) tem que se defrontar com as reflexões de ingresso ou não ao métier,
exigidas frente às cobranças da família e/ou sociedade; o que significa também resignar-

83
Corpos que Dançam | 2022

se, ou não, a esse universo artístico, abrindo mão de experiências de vida, como festas,
namoros, reuniões familiares, do mundo lá fora. Essa rotina do período de aprendizagem
é redimensionada no plano profissional. Normalmente, mais maduros e adultos, os(as)
bailarinos(as) passam a atuar um universo, embora igualmente competitivo, menos
conservador e mais artístico. Essa realidade se aplica principalmente às bailarinas. O
bailarino, por sua vez, geralmente entra em contato com o balé clássico mais tarde e
depois de já ter praticado outras modalidades de dança, tendo em sua formação, não
apenas nas aulas de balé clássico, mas adicionam à sua técnica outros estilos de dança
como o jazz, o hip-hop, entre outros.
Geralmente, nas companhias brasileiras, o(a) bailarino(a) movimenta-se na aula de
balé clássico para depois iniciarem os ensaios das coreografias a estrear. Este fato é,
inúmeras vezes, apontado pelos próprios profissionais da dança, como um contrassenso,
sendo considerado o mais lógico a Cia. realizar treinamento e criação coreográfica no
mesmo estilo e técnica de dança. Contudo Neves (2013) considera:

A permanência na dança clássica e o exercício de seu treino diário produzem condições


corporais físicas e estéticas que traçam uma identidade para o bailarino. A postura, a
posição da cabeça, a rotação externa das pernas e o desenho definido de suas linhas
são características que diferenciam os bailarinos, já que a feição adquirida não é a da
vida cotidiana, e faz com que eles se reconheçam dentro e fora do mundo da dança
(Mora, 2008 apud Neves, 2013, p. 230).

De qualquer forma, o que se encontra na atual produção contemporânea de criação


coreográfica tem base nos procedimentos de treinamento do balé clássico e nas
linguagens de vanguarda, por vezes transgressoras, amparadas, sobretudo, nas técnicas
de improvisação na dança contemporânea:

[...] um dos principais atrativos para a dança é a presença de fatores de transgressão


presentes nessa vocação, que fazem render carreiras femininas e masculinas no
universo clássico da dança contemporânea. A escolha pela dança como profissão tem
relação com deslocamentos, com a reconversão, operada pelo corpo, de trajetórias
prováveis. Essa é uma atividade cuja atuação de “corpo e alma” permite a superação
da condição de existência, a conquista de uma nova identidade, a experimentação e a
vivência de sexualidades que se concretizam no poder e no prazer de levar o corpo
cada vez mais além de seus limites físicos ou sensíveis. (Neves, 2013, p. 36)

Por fim, pontualidade, disciplina, energia física e habilidade mental são qualidades que
dizem respeito ao ritmo desses profissionais que têm o corpo como seu instrumento de
trabalho. “Ser bailarino é dar o seu corpo em espetáculo o que supõe a aceitação de
exteriorizar-se e, portanto, de ter uma consciência satisfatória de si e da imagem que
fazem de si” (Bourdieu, 2002 apud Neves, 2013, p. 236). Ser bailarino(a) é, antes de tudo,
ter “uma necessidade enorme de existência e um meio de capacitá-la como estilo de vida”
(Neves, 2013 p. 237).

3. Mercado de Trabalho

“A dança situa-se no Terceiro Mundo da Arte”, nos afirma Strazzacappa e Morandi ao


discursarem sobre a situação desta arte no Brasil, na obra que discorre acerca da formação
do artista da dança, em 2006. Conforme as autoras:

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Enquanto artistas plásticos discutem questões como adequação de espaços públicos


para exposições, nós, profissionais da dança, pertencentes ao Terceiro Mundo da Arte,
discutimos questões ligadas à nossa sobrevivência. Poderemos ainda num futuro
próximo dançar? (Strazzacappa & Morandi, 2006, p. 16)

Rocha (2010) se aproxima deste pensamento ao comentar: “[...] e depois da


universidade? Depois da universidade, sejamos francos, não há emprego” (Rocha, 2010,
p. 101). Entretanto a autora discorre:

Ao nos questionarmos acerca do depois da universidade, é necessário cautela para que


não formulemos perguntas modernas para respostas contemporâneas. Homens
modernos empregam sua criatividade na configuração de ações que se darão em um
espaço já determinado de antemão; procuram, portanto, uma vaga. São estes homens
que hoje não têm função. Por outro lado, aqueles que aprenderem rapidamente a
habitar o tempo, ou seja, a constituírem suas ações em uma temporalidade contínua e
semovente, saberão inventar um seu lugar: estes são homens contemporâneos de sua
própria contemporaneidade. A crise do lugar é contemporânea do tempo que surge
como entidade definidora da função (Rocha, 2010, p. 101).

O predomínio da intermitência como forma de emprego do artista e, particularmente


do(a) bailarino(a), para Neves (2010), assumiu dimensões mais amplas e definitivas no
contexto da globalização, no qual o aumento e a normatização de vínculos temporários e
precários no mercado têm modificado a organização de trabalho e de produção na
sociedade contemporânea:

A dança tem acompanhado as mudanças operadas no campo cultural brasileiro em que


o domínio dessa flexibilidade mobilizou novas dinâmicas de sobrevivência econômica
e social, que reorientaram alguns dos princípios e das atividades estéticas de nossos
tempos. No entanto, a instabilidade no mercado coreográfico e os seus desdobramentos
são vivenciados como experiências distintas entre o(a) bailarino(a) especializado e o
artista criador, cuja existência está atrelada ao significado híbrido das linguagens
artísticas contemporâneas e á expansão da dança no ensino superior (Neves, 2010, p.
132).

Neste novo contexto, que se apresenta no cenário de formação e atuação dos


profissionais da arte da dança, ocorre um redimensionamento da carreira de bailarino(a).
A profissão, que se limitava ao restrito mundo das artes coreográficas, avançou para
outros espaços culturais e para as universidades, estabelecendo um ponto de intersecção
entre atividade artística e acadêmica. Conforme Neves (2010), “o bailarino qualificado
de hoje, não é apenas aquele que se destaca pela encenação e pelo virtuosismo técnico,
mas também o bailarino artista criador e ou docente e pesquisador” (Neves, 2010, p. 135).
Estes bailarinos(as) contemporâneos, entretanto, estão cada vez mais submetidos às
condições de trabalho instáveis oferecidas nesse mercado. Neves (2010) esclarece, que
os espaços de atuação para estes artistas, ainda são limitados e o que prevalece no meio é
o emprego informal. A autora chama a atenção para o fato de que muitas das soluções
encontradas para este problema de mercado, se projetaram para fora do mundo da dança,
o que implica outro uso do corpo como instrumento de trabalho, sendo um exemplo disto,
a expansão do ensino superior de dança.

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Corpos que Dançam | 2022

Em resumo, o(a) bailarino(a) é alvo de vínculos profissionais flexíveis e temporários.


As companhias de dança profissionais, que antes proporcionavam condições estáveis de
trabalho no Brasil, não escaparam às dinâmicas do mercado:

E o bailarino para continuar no ofício, segundo Neves (2010), tem que se desdobrar
para compensar, com retorno de bilheteria, os contratempos na obtenção de verbas que
dependem de leis de incentivo e da subvenção estatal que mantêm esses grupos.
Mesmo nas companhias patrocinadas pelo Estado, o bailarino enfrenta situação de
instabilidade (Neves, 2010, p. 136).

Essa realidade leva o(a) bailarino(a) a ter que recorrer à utilização máxima do corpo
para a sobrevivência no meio. Neves (2010) exemplifica esta situação com a Cisne Negro
Cia. de Dança, de São Paulo, que apresenta em média setenta espetáculos por ano e que,
em 2008, superou as expectativas com noventa e quatro apresentações.
Neves (2010) acredita que “as formas flexíveis de emprego e o espaço limitado de
ocupações estáveis que caracterizam o mercado contemporâneo da dança devem ser
problematizados de acordo com a formação e a qualificação profissional dos bailarinos”
(Neves, 2010, p. 139):

De um lado, as possibilidades de contrato estável para esses profissionais são


oferecidas nas companhias de dança “privadas”, que se mantêm com o mecenato do
Estado e com parceria e permutas de empresas. Contudo, parte dessas companhias não
garante mais empregos formais aos bailarinos, que passaram a ter de se submeter a
contratos temporários, de curta duração, que podem ou não ser renovados de acordo
com a direção desses grupos. Isso significa dizer que apesar dos salários fixos, os
direitos trabalhistas não são obtidos, embora parte dele seja assegurada por meio de
tratos verbais (ibidem).

De qualquer forma, estes vínculos são considerados pelos(as) bailarinos(as) como


estáveis. São reconhecidos, embora suas condições informais evidentes, como uma
estabilidade “relativa”, pois os profissionais recebem por mês, têm jornada fixa de
trabalho, não tem custos com a manutenção e a formação continuada do corpo e são
protegidos por uma estrutura que pode suprir parte dos direitos do trabalhador. É
interessante constatar-se, que as exigências quanto à formação e à qualificação técnica
desse profissional tem aumentado nestas companhias e as reivindicações no que diz
respeito à performance do corpo estão mais rigorosas. Enfim, o(a) bailarino(a) sobrevive
“de cachê em cachê, de projeto a projeto, e o valor dos salários recebidos, de modo
irregular, é não só irrelevante como desproporcional ao tempo e ao trabalho dependido
nos grupos e companhias” (Neves, 2010, pp. 141-142).
Contudo, como já foi mencionado, frente às dificuldades no mercado de trabalho para
bailarinos(as), no Brasil, o profissional é forçado a realizar outras atividades profissionais,
como a docência no ensino superior de dança, e as universidades tornam-se uma
oportunidade de emprego estável. Mesmo assim, conforme os professores universitários
da área, quanto ao fato de nova possibilidade de atividade de trabalho formal da dança,
afirmam que o(a) “bailarino(a)” da faculdade é exatamente o que vive de modo instável.
Para eles, o “professor-bailarino” é o que está na batalha da vida profissional, e tem uma
necessidade de construir esta profissão, diferente do(a) bailarino(a) de companhia que,
este sim, está “estabilizado” na profissão (Neves, 2010).
Neves (2010) arrisca afirmar, que “o ensino acadêmico na dança se desenvolve como
um ‘mercado paralelo’ ao das companhias estáveis” (Neves, 2010, p. 143). Isso porque,

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apesar do aumento dos cursos superiores em dança, o(a) bailarino(a) parece ter
dificuldade para seguir um curso superior. Um dos fatores está no número de cursos de
bacharelado ser muito menor que os de licenciatura em dança, conforme Pereira e Souza
(2014). Outra possibilidade é que o estilo de vida destes artistas seja um obstáculo para a
frequência da universidade. Estes(as) bailarinos(as) estão normalmente envolvidos com
aulas, ensaios, temporadas e espetáculos, que podem impedir a regularidade de presença
na faculdade, o que acaba por desestimular a conclusão do curso. A situação financeira
destes(as) bailarinos(as) também pode ser motivo de afastamento do curso. Além de tudo
isto, ainda é possível que, mesmo nos cursos de bacharelado, haja possibilidade de
incompatibilidade entre os conteúdos dos cursos e a realidade dos(as) bailarinos(as) que,
por exemplo, trabalham em companhias “estáveis”. Enfim, Neves (2010) considera que:
“[...] boa parte do público destas instituições é constituída pelas bailarinas que no
momento da profissionalização abandonam o balé clássico e encontra na formação
acadêmica um meio de continuar a trabalhar com a dança” (Neves, 2010, p. 146).
Contudo, é possível concluir que a universidade trouxe um efeito positivo ao mercado
de trabalho, para a dança. Primeiramente, os cursos no ensino superior contribuem para
validar a dança como profissão e, em segundo lugar, trouxeram um aumento de contratos
estáveis, possibilidade de renda fixa, qualificação acadêmica do(a) bailarino(a), que o(a)
liberta do “corpo” como principal suporte de trabalho, ampliação de redes de
sociabilidade e diminuição de instabilidade na profissão.
Este fenômeno, segundo Neves (2010) está associado ao hibridismo cultural que
caracteriza as artes contemporâneas e leva a uma reordenação do papel do(a) bailarino(a),
que para além de bailarino(a), deve tornar-se também docente e pesquisador para
continuar a ser bailarino(a).

3.1 No Brasil: de cachê em cachê, de projeto a projeto...

Como afirmou Neves (2010) o(a) bailarino(a) acaba sobrevivendo “de cachê em cachê,
de projeto a projeto [...]” (Neves, 2010, p. 141). No Brasil, esta situação ocorre hoje com
toda a área das artes. Atores, músicos, bailarinos dependem de programas de incentivo à
cultura promovidos pelo Estado, nas esferas federal e estadual.
Entretanto, o campo cultural no Brasil tem historicamente, segundo Rubim (2013),
uma organização e uma institucionalização frágeis. Diversos fatores contribuem para esta
fragilidade, como o autoritarismo vigente em diversos momentos, a ausência de políticas
culturais e a própria complexidade do campo e dos agentes culturais. O panorama
começou a mudar em 2005, com a construção da Conferência Nacional de Cultura, do
Plano Nacional de Cultura e do Sistema Nacional de Cultura, que são marcos
emblemáticos no processo de mudança. A partir daí, o fomento à cultura começa a se
realizar de diversas formas, com um conjunto de mecanismos legais que podem ser
utilizados por cidadãos, entidades privadas, associações, grupos, etc., com o objetivo de
buscar recursos diversos para viabilizar uma produção cultural. O Ministério da Cultura
apoia projetos culturais por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei nº 8.313/91),
da Lei Rouanet, da Lei do Audiovisual (Lei nº 8.685/93) e também por editais para
projetos específicos, lançados periodicamente.
No que se refere às políticas específicas para as artes, a Fundação Nacional de Artes
(Funarte) é o órgão responsável, no âmbito do Governo Federal, pelo desenvolvimento
de políticas públicas de fomento às artes visuais, à música, ao teatro, à dança e ao circo.
Os principais objetivos da instituição, vinculada ao Ministério da Cultura, são o incentivo
à produção e à capacitação de artistas, o desenvolvimento da pesquisa, a preservação da

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memória e a formação de público para as artes no Brasil. A Funarte apoia e estimula a


atividade artístico-cultural do país por meio de editais voltados para diversos segmentos.
Os processos seletivos visam difundir e incentivar a atividade intelectual e artística em
todas as regiões do país. Nos últimos anos milhões de recursos orçamentais foram
investidos em uma série de ações de fomento e estímulo como prêmios, bolsas, programas
e outras modalidades de apoio financeiro (Brasil, 2013).
Em 2014, identificou-se a necessidade de atuar com igual vigor no campo das artes,
estabelecendo para ele um conjunto de políticas públicas e revitalizando sua principal
instituição, a Fundação Nacional de Artes (Funarte). Desta forma surge o processo de
construção da Política Nacional das Artes (PNA), cujo objetivo final é a implementação
de políticas públicas atualizadas, fundamentadas e duradouras para as artes. O processo
de construção da PNA envolveu gestores públicos, profissionais contratados, colegiados
setoriais, artistas, produtores e sociedade civil em geral e teve como base inicial os Planos
Setoriais dos Colegiados Setoriais do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC),
bem como todo o acumular de experiências no âmbito das instâncias de participação
popular constituídas e legitimadas ao longo dos últimos anos de organização dos diversos
segmentos das artes.
Entretanto, com o afastamento da presidente eleita Dilma Rousseff, em 2016, e a
extinção do Ministério da Cultura,

[...] o percurso da Política Nacional das Artes foi violenta e bruscamente interrompido.
O processo atravessava um momento de transição: a entrega das propostas de
programas setoriais formulados pelos articuladores de cada linguagem e a
consolidação das reflexões sobre os eixos transversais em programas e ações
estruturantes. O próximo passo do planejamento seria a análise, aprimoramento e
validação desse material pelo corpo de servidores da Funarte e do MinC, pelos
Colegiados Setoriais e, como etapa final, pela sociedade civil, através de encontros
presenciais e consultas públicas. (Brasil, 2016)

Na realidade, foi em 2003 que foi criado um conjunto de políticas públicas inovadoras
no âmbito da cultura no país. Entretanto, segundo Gisele Nussbaumer e Isaura Botelho
(2017), editoras responsáveis pelo periódico “Políticas Culturais em Revista” da
Universidade Federal da Bahia, no que se refere às artes:

[...] não se tem os mesmos avanços que em outros setores. Houve uma ampliação do
investimento nas artes, a partir do uso crescente de editais; uma maior descentralização
dos recursos; e a criação de importantes instâncias de participação social, como os
Colegiados Setoriais, mas não se pode afirmar que essas iniciativas representem um
avanço significativo em termos de construção de políticas duradouras. (Nussbaumer
& Botelho, 2017, p. 1)

As artes no setor da cultura, segundo Moreira (2016), envolvem em sua cadeia


produtiva setores da sociedade com utilização de vários serviços e, como consequência,
tem participação efetiva na economia do país. Porém, faltam dados estatísticos precisos
de sua atuação e de regulamentação legal específica, trabalhista e tributária, que socialize
plenamente sua atuação. Precisam ser ampliados o investimento nas relações com a
educação e nos programas de formação profissional e, a capacidade deste setor gerar
divisas, precisa de ser reconhecido.
Hoje, no Brasil, não há políticas públicas para as atividades de caráter continuado no
campo da cultura. O padrão de fomento à cultura é focado em projetos. Desta forma, na

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ausência de políticas que permitam um horizonte de trabalho a médio e/ou longo prazo,
os eventos calendarizados2, espaços culturais independentes e grupos e coletivos
artísticos possuem dinâmicas instáveis que prejudicam a qualidade dos profissionais das
artes, assim como o resultado de suas atividades (Brasil, 2016).

3.2 Carreira e mercado de trabalho contemporâneo

O mercado de trabalho contemporâneo se caracteriza principalmente por seu


dinamismo, trazendo relevantes mudanças nas carreiras ao longo das últimas décadas,
com profundas implicações para os indivíduos, organizações e sociedade. Baruch (2004
apud Nacht, 2009) propõe, que uma das questões mais pertinentes neste processo de
mudança, consiste na migração do padrão de carreiras lineares – estáticas e rígidas – para
carreira multidirecionais – dinâmicas e fluídas. E esta mudança pode ser encontrada com
várias denominações, como “racionalização”, “downsizing”, “achatamento”,
“reestruturação” e, até mesmo, “se preparar para o futuro”.
Desta forma, o antigo sistema de emprego seguro válido para toda a vida, com
previsibilidade de ascensão e estabilidade financeira, está simplesmente morto, geando
um novo acordo de trabalho, que coloca a relação entre empregado e empregador como
uma constante negociação aberta, baseada no poder do mercado (Cappelli, 1999 apud
Nacht, 2009).
Baruch (2004 apud Nacht, 2009) sustenta que após a Revolução Industrial, as empresas
desenvolveram e determinaram aos seus funcionários, modelos claros e previsíveis de
evolução da carreira ao longo dos anos, organizadas de forma hierárquica, extremamente
estruturadas e inflexíveis. Contudo, a partir do ano 2000, devido ao contínuo progresso
tecnológico, que caracterizou as décadas anteriores, demandando novas vocações e
habilidades, esta dinâmica se modificou, resultando na passagem da responsabilidade pela
condução da carreira para as mãos dos próprios indivíduos.
Inicia-se no século XXI, segundo Baruch (2004 apud Nacht, 2009), a transferência de
relações de trabalho de longo prazo em que as pessoas buscavam servir à sua empresa ao
longo de toda a vida; para relações transitórias e transacionais, nas quais os profissionais
esperam que a organização as sirva ao longo dos anos, possivelmente poucos, que durar
a relação de trabalho entre as partes. Desta forma, não é mais possível prever o caminho
de desenvolvimento da carreira, devido à extensa gama de opções e direções possíveis
para esta evolução.
Esta realidade de mercado não se configura numa novidade para os profissionais da
dança, no Brasil. Dificilmente o(a) bailarino(a) se encontrava em situação de ter uma
organização, seja particular ou governamental, responsável pela evolução da sua carreira.
Constata-se historicamente, e podemos observar isso também neste estudo, que o
profissional da dança sempre teve em suas mãos a condução de sua carreira. Entretanto,
esta mudança no mercado, também influencia este profissional, refletindo-se na evolução
da carreira e construção de uma identidade profissional.

2
Entende-se por eventos calendarizados as iniciativas organizadas por pessoas jurídicas, com temática
cultural específica ou diversificada, sob forma de bienais, colóquios, conferências, congressos, convenções,
encontros, feiras, festivais, fóruns, jornadas, mostras, painéis, salões, seminários, simpósios, e similares
(Brasil, 2016, p. 13).

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Considerações finais

Conforme apresentado no início deste artigo, no Brasil, segundo o CBO/2002,


profissão é um conjunto de regras de acesso, sancionado por um diploma de nível
superior, possibilitando o ingresso em determinados tipos de trabalho. É definida,
portanto, pelo seu conhecimento e competência escolar e não por competências no
exercício de sua atividade laboral. Com a aplicação deste conceito, grande parte dos(as)
bailarinos(as) do país não são verdadeiramente profissionais, mesmo atuando como tal
em grupos e companhias de dança. Na realidade, o termo profissão, no Brasil, é
geralmente utilizado no senso comum para qualquer ocupação, sem a exigência de uma
formação de nível superior, independente, portanto, se a atividade foi aprendida na escola
ou no seu exercício, o que permitiria classificar a dança como profissão.
Verificamos, que com a expansão e fortalecimento das universidades, a profissão passa
a ser associada ao espírito, ao intelectual, ao nobre (artes liberais) e o ofício surge
associado à mão, aos braços, ao prático (artes mecânicas). Teoricamente, constatamos
que profissão é, antes de tudo e principalmente, um tipo específico de trabalho
especializado.
Já no universo das artes é importante mencionar, que a dedicação à atividade
normalmente está agregada ao conceito de vocação, sendo este mais forte do que o
conceito de trabalho ou ocupação, e sendo talvez, também, superior ao conceito de ofício
e profissão. A ideia de vocação está relacionada ao sacrifício e sublimação, e, geralmente,
aquele que é movido pela vocação tem uma personalidade que é colocada à prova pelas
incontáveis dificuldades que se lhe apresentam pelo caminho e o pouco reconhecimento
pelo seu esforço. No caso da dança, o sacrifício e a devoção fazem parte da rotina dura
de treinamento e ensaio do(as) bailarino(as), além da contínua presença da dor e de
possíveis lesões. O risco de lesão significa também o risco de parar de dançar
representando grande impacto em sua identidade.
As artes (artistas, sejam eles músicos, bailarinos ou atores) são consideradas uma
“semiprofissão” por possuir características, tanto de ofício, quanto de profissão.
Normalmente, os artistas possuem um perfil, enquanto empreendedores dedicados a
carreiras freelance ou, enquanto trabalhadores independentes de patrões ou instituições.
Geralmente, os profissionais da arte se defrontam com “paradoxo de Mozart”, ou seja, o
sonho da liberdade de criação e da autonomia profissional, porém condicionado pela
necessidade de encantar a audiência e convencer consumidores a comprar seus produtos.
Nem todos, porém, possuem a habilidade de atuar na criação e venda e divulgação de seu
produto.
A base teórica apresentada, permite afirmar, que o trabalho artístico é caracterizado
pela imagem de flexibilidade e inserido em contexto de auto-emprego, freelancing e
diversas formas atípicas de trabalho. Sendo, geralmente, uma ocupação de tempo parcial,
para a qual a educação formal tem valor relativo, de retornos financeiros incertos e
grandes distorções salariais, apresentando maiores níveis de sub-emprego, emprego em
tempo parcial e desemprego.
Com base no levantamento apresentado é possível concluir que a universidade trouxe
um efeito positivo ao mercado de trabalho para a dança em geral. Os cursos no ensino
superior contribuíram para validar a dança como profissão, trouxeram um aumento de
contratos estáveis, possibilidade de renda fixa e ampliação de redes de sociabilidade. Para
o profissional bailarino(a), este ambiente disponibiliza qualificação acadêmica que o
liberta do “corpo”, como principal suporte de trabalho e diminui a instabilidade na
profissão. Isto, se o(a) bailarino(a) desistir dos palcos e optar pelo meio acadêmico. Se
o(a) bailarino(a) preferir as “luzes da ribalta”, este é um ofício pouco reconhecido como

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profissão no Brasil e que implica muitos sacrifícios. Uma profissão que tem como
ferramenta básica o próprio corpo e, por conta das restrições impostas pelo
envelhecimento deste corpo, se apresenta como uma carreira bastante concorrida e curta,
com recompensas materiais sem expressividade e tendo limitados os espaços que
garantem estabilidade de emprego. A submissão, a persistência e a disputa parecem ser
qualidades imprescindíveis para a permanência nessa profissão.
Como não há políticas públicas para as atividades de caráter continuado no campo da
cultura no país, e o padrão de fomento à cultura é focado em projetos, o(a) bailarino(a),
no Brasil, sobrevive “de cachê em cachê, de projeto a projeto”. Em outras palavras, o
bailarino é alvo de vínculos profissionais flexíveis e temporários. As companhias de
dança profissionais, que antes proporcionavam condições estáveis de trabalho no Brasil,
não escaparam às novas dinâmicas do mercado.

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93
Corpos que Dançam | 2022

Notas sobre pesquisa acadêmica em Dança

Mônica Medeiros RIBEIRO


Universidade Federal de Minas Gerais/ Escola de Belas Artes
Grupo de Pesquisa CRIA-Artes e Transdisciplinaridade
[email protected]

Cássio Viana HISSA


Universidade Federal de Minas Gerais/ Instituto de Geociências
Grupo de Pesquisa CRIA-Artes e Transdisciplinaridade
[email protected]

Resumo: Este texto compartilha noções de pesquisa acadêmica a partir de breves notas
reflexivas. Artistas de dança elaboram suas obras por meio da experimentação que
encaminha a construção de conhecimentos e saberes em dança. A partir da liberdade
dessas práticas de pesquisa, objetivamos realizar uma releitura de alguns termos do léxico
da pesquisa acadêmica em dança. O ato de pensar a pesquisa, a pesquisa como criação, a
experiência dos sujeitos da pesquisa em dança, a construção de perguntas de pesquisa são
algumas das noções em foco neste exercício.

Palavras-chave: pesquisa acadêmica, pesquisa em/sobre dança, epistemologias em artes

Abstract: This text shares notions of academic research with brief reflective notes. Dance
artists elaborate their work by means of experimentation that leads to the construction of
dance knowledge and know-how. Based on the freedom of these research practices we
intend to re-read some terms from the lexicon of academic research in dance. The act of
thinking about research, research as creation, the experience of dance research subjects,
the construction of research questions is some of the notions in focus in this exercise.

Keywords: academic research, dance research, epistemologies in arts

Sala de ensaio, laboratório de pesquisa artística acadêmica, sala de estudos,


bibliotecas, videotecas, a própria casa, acervos, atelier, espaços públicos são lugares de
construção de conhecimentos e saberes em/sobre dança1. Com outras configurações,
outros modos de sistematização e também, de apresentação de resultados, artistas da
dança elaboram suas obras por meio da experimentação que encaminha pensamentos
sobre dança, dissolvendo limites abissais que pretendem definir, e mais, distinguir, por
exemplo, teoria e prática.2
1
Lucia Gouvêa Pimentel (2015), Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes da
Escola de Belas Artes da UFMG, discorre sobre as diferenças entre a pesquisa em arte e a pesquisa sobre
arte a partir de Sandra Rey (1996). De modo sucinto, podemos dizer que o objeto da pesquisa em arte refere-
se ao processo de criação em que o próprio pesquisador atua e a pesquisa sobre arte se dá quando o objeto
artístico já existe e cabe ao pesquisador construir reflexões - histórica, crítica e teórica - a partir dele.
2
No Brasil, Minas Gerais, citamos o trabalho das artistas Dudude, Thembi Rosa, Margô Assis, que se
destacam pela continuidade de suas pesquisas sobre improvisação, arquivo de dança, a relação arte e
tecnologias. Para mais informações sugere-se a visita aos sites <http://coisasdedudude.blogspot.com/>; <
http://cargocollective.com/multiplex/filter/thembi/Thembi-Rosa->; < https://margo-assis.webnode.page/>.

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Comentário A. Como distinguir teoria e prática ou, noutros termos, como conceber
teoria e prática como universos apartados? Poderá haver algo mais prático do que uma
ótima teoria? Será preciso sempre enfatizar que a teoria é originária do mundo que lhe
diz respeito? Ainda: como conceber uma prática distante da teoria? O que precisa ser
discutido é o que separa a teoria de um modelo teórico para fins analíticos. Uma teoria,
tal como pensamos, é um apurado exercício teórico originário do mundo sob leitura.
Ela nos serve para pensar o mundo em processo permanente de transformação. Por sua
vez, os modelos teóricos não têm a flexibilidade dos exercícios teóricos e uma leitura
crítica dos mesmos pode ser encontrada na obra de Ítalo Calvino (1990a).

Experimentação artística implica, entre outros, o exercício flexível da improvisação


como meio singular de elaboração de conhecimentos e saberes artísticos. Tal flexibilidade
acolhe imprevistos, desvios, erros, qualifica trajetórias singulares e, desse modo,
possibilita releituras de procedimentos, técnicas, sistematizações, essas, familiares ao
ambiente da pesquisa na universidade.
A apreensão dos modos de pesquisa/experimentação em dança - que ocorrem nos mais
diversos lugares de criação artística - pode somar-se aos procedimentos acadêmicos de
pesquisa, podendo contribuir, assim, para a descolonização epistemológica da pesquisa
nas universidades. Importa incorporar os saberes da exterioridade acadêmica, sem repetir
ações de exclusão, mas seguindo os rastros do pensamento e proposições descoloniais -
pensamento de fronteira -, como nos ensina Mignolo (2008). Trata-se de praticar uma
pesquisa de fronteira, na qual os procedimentos de experimentação artística, exercidos
fora do ambiente universitário - considerados, pela ciência moderna, como inferiores
(Hissa & Ribeiro, 2017) -, possam ser apreendidos pela pesquisa acadêmica, adensando
teorias, criando e compartilhando reflexões sobre dança e possibilitando novas leituras -
como atos de criação - de metodologias trabalhadas, primordialmente, nas humanidades.
Leitura como reescrita (Hissa, 2013).
Entretanto, este texto não trata diretamente desses modos de experimentação
praticados fora da academia. Inspirados pela liberdade intrínseca aos mesmos somada ao
reconhecimento de sua importância na construção de conhecimentos via pesquisa
acadêmica, compartilhamos algumas reflexões sobre noções de pesquisa com o objetivo
de realizar uma releitura de alguns termos do léxico da pesquisa acadêmica. Sem qualquer
pretensão de esgotar a diversidade de abordagens e questões inerentes a esse exercício de
releitura, o fazemos atravessados pela liberdade da experimentação percebida nos
processos de construção de conhecimento em dança, que se dão fora da universidade. Por
meio de breves notas3, abordamos questões relacionadas ao ato de pensar a pesquisa, à
pesquisa como criação, à experiência dos sujeitos da pesquisa em dança, à construção de
perguntas de pesquisa, ao estudo, imaginação, leitura e escrita na pesquisa acadêmica.
Optamos pela reflexão escrita que, enquanto tal, se configura, também, como espaço
de criação, sempre inacabado. Do modo como foi pensado, o presente espaço é,
propositalmente, aberto às interpretações e críticas - contribuições do leitor que, enquanto
lê, constrói ou reescreve o texto a partir de afinidades e fricções.

3
O exercício de escrever notas acerca da pesquisa em dança é inspirado no livro Entrenotas: compreensões
de pesquisa (2013), de Cássio Eduardo Viana Hissa. Consideramos que o breve texto contido em uma nota
reflexiva pode desdobrar-se em pensamentos nossos e do leitor, dado o espaço vazio que deixa para ser
preenchido.

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Nota 01- Pensar a pesquisa

Ação processual, afetiva e lacunar, pensar demanda cultivo - que advém de exercício
atento e continuado do sujeito. Pensar a pesquisa em dança demanda imersão no estudo
ininterrupto, na abertura para o mundo e para o que ele nos indaga. Escuta atenta e
sensível - afetiva. A referida atenção não é aquela da concentração excludente. Trata-se
de uma atenção descentrada, que pode nos levar a perceber outros possíveis que margeiam
conhecimentos acadêmicos. Esses outros se referem não apenas à singularidade das
escolhas de temas e recortes de pesquisa - alicerçadas nas trajetórias de vida dos sujeitos
de pesquisa. Eles se referem, também, à possibilidade de reinvenção de procedimentos
metodológicos, ao uso de abordagens teóricas quase sempre tomadas como originárias de
outros campos e espaços de conhecimento, à consideração do pensamento e da cena de
artistas como reflexão teórica sobre dança, entre outros, na elaboração da pesquisa no
campo das artes/dança.

Comentário B. Será necessário discutir, brevemente, pertencimentos e propriedades;


e, neste caso, os que dizem respeito às abordagens teóricas, suas origens e suas
adequações aos campos do conhecimento. Há abordagens teóricas e pensamentos
originários de determinado território do conhecimento, mas que se adaptam com
delicadeza a outros territórios; com tanta delicadeza que nem se sabe de onde vieram.
Quando isso se dá - e há diversos exemplos que poderiam aqui ser trabalhados -, como
afirmar que pertencem aos campos de origem? No conhecimento não há propriedades
e, tampouco, pertencimento. Neste caso, o que há são construções teóricas bem
elaboradas, mal elaboradas, ultrapassadas, assim como migrações bem-sucedidas,
inconvenientes ou forçadas. A liberdade do trânsito, aqui também, deverá ou deveria
imperar. O pensamento, por natureza, é expressão de trânsito livre.

Ainda, que o pensamento seja, comumente, associado exclusivamente à razão - que se


confunde com a racionalidade científica -, é preciso ressaltar que pensamento é também
constituído de sentimentos, uma vez que, ao refletir sobre algo, necessariamente, atuamos
também emocionalmente. John Dewey (1959) reforça essa imbricação entre razão e
emoção no ato de pensar, quando afirma que o pensamento reflexivo envolve “[...] um
estado de dúvida, hesitação, perplexidade, dificuldade mental [...]” (Dewey, 1959, p. 22).
Segundo Dewey, os aspectos afetivos presentes no ato de pensar - hesitação,
perplexidade, dúvida - são mobilizadores da ação de pesquisa. Assim, essa levaria a
encaminhamentos da perplexidade, da dúvida rumo a desdobramentos reflexivos, que
promovem respostas provisórias que, ao invés de resolver, criam mais e mais
perplexidade.
À medida que Dewey considera a presença de aspectos afetivos no ato de pensar, ele
afirma que a base do pensar reflexivo está no raciocínio. Ora, é preciso considerar que a
razão e a emoção são processos corporais imbricados (Damásio, 2006). Desse modo, os
sentidos, os saberes do corpo, as emoções sentidas, somados à capacidade de imaginação
e de criação fazem parte da operação do pensamento reflexivo. A qualidade reflexiva do
pensamento favorece, portanto, o exercício voluntário da crítica, da análise, da
interpretação e, desse modo, viabiliza conhecimento teórico-prático em arte/dança, em
cuja genealogia interagem imaginação, emoção, razão e sentimentos.
Afirmamos, ainda, que pensamento é prática do corpo e pode ser constituído não
apenas por palavras e imagens, como também por movimentos e/ou sons. Pensamento
corporificado, encarnado se traduz tanto na escrita com palavras, quanto na escrita que
conduz textos das mais diversas naturezas. O exercício do pensar sobre dança, pensar

96
Corpos que Dançam | 2022

enquanto se dança ou pensar como dança, deve-se à compreensão de que o pensamento


já está incorporado na obra de arte/dança e seu exercício pode deixá-lo acessível aos
demais. Para tanto, buscamos na pesquisa acadêmica que os pensamentos encaminhem
sentido. Luiz Henrique Lopes dos Santos (2008), apresentando a obra Tractatus Logico-
Philosophicus, de Wittengenstein, acrescenta que “[...] a representação mental silenciosa
de um fato possível - um pensamento, no sentido mais ordinário da palavra - merece,
tanto quanto sua exteriorização escrita ou sonora, ser qualificada como proposição [...] e
um pensamento é sempre uma proposição com sentido. ” (Santos, 2008, pp.74-75).
Assim, compreendemos o pensamento como articulação de sentido, como elaboração
reflexiva a partir da tomada de consciência daquilo que se passa, do que nos passa
(Larrosa, 2002), da própria experiência de ser no mundo, ser-mundo, para além da lógica
racional. Pensamento sempre com sentimento, desprovido do desejo de objetividade
científica - na lógica da modernidade - rumo à precisão que comunica.

Comentário C. Dialogando, pedagogicamente, com o próprio texto que aqui se


escreve: em primeiro lugar, o desejo de objetividade na ciência não faz com que a
objetividade - assim como a neutralidade - adquira a sua existência. Ambas existem
apenas como desejo - e o desejo é uma existência - de apuro ou de retidão articulado
ao receio - ou ao medo da descoberta - da manipulação desonesta ou fraudulenta. Ao
humano é inacessível a supressão da subjetividade. O que poderá haver é o nosso
esforço em busca da precisão: da melhor palavra, do melhor tecido teórico, da melhor
abordagem. Em segundo lugar, é ainda à subjetividade que devemos nos referir ao
refletirmos acerca da presença do sentimento no pensamento ou o contrário. Há apenas
uma suposta presença de um em outro, pois um e outro são feitos de ambos.
Pensamentosentimento: teria sido uma só palavra, talvez, caso não desejássemos ser
mais do que podemos ou do que somos.

Nota 02- Pesquisa como criação

Na universidade, os estudantes começam a transitar pelo território da pesquisa desde


o momento em que, na graduação, experimentam o exercício da criação artística. Os
processos de criação artística podem ser considerados processos de pesquisa, decorrentes
de sistematizações singulares de cada artista. Mesmo que o estudante/artista ainda não
utilize termos acadêmicos afins ao campo epistemológico - como tema, objeto de
pesquisa, objetivo geral e específico, metodologias, justificativas, entre outros -, é notório
que trabalham a partir de um assunto/problema/texto, com desejos/objetivos e
procedimentos/técnicas compatíveis com o modo artístico em trabalho, encaminhando,
ao final da experiência de criação, um resultado, cuja natureza é sempre provisória e,
portanto, passível e aberto a contínuas atualizações.
Na graduação em dança, em teatro, indica-se, com frequência, que o estudante tenha
um diário de bordo como companheiro em seu percurso acadêmico. Esse documento de
processo guardará as mais diversas impressões, reflexões, sentimentos do estudante na
duração da criação - no processo -, seja de uma ação física, seja de uma personagem, de
uma improvisação, de uma sequência coreográfica, de uma intervenção na rua, de uma
cena de dança. Assim, o estudante, sem necessariamente saber, começa a desenvolver
seus próprios modos de sistematização de construção do pensamentosentimento da
experiência artística, que se configuram em registros de processos. Posteriormente, esses
registros serão pistas que apontarão índices para o desenvolvimento de uma reflexão

97
Corpos que Dançam | 2022

crítico-interpretativa acerca da experiência vivida ou, até mesmo, de outros processos de


criação (Ribeiro, 2020).
É também nas rodas de conversa - vivenciadas na sala de aula de dança - que os
estudantes/artistas praticam a reflexão crítica pela oralidade dialógica. O exercício de
compartilhar a experiência por meio do diálogo e, especialmente, da escuta, promove o
cultivo da observação, técnica fundante da pesquisa nos diversos campos de
conhecimento. Observação não apenas com os olhos, como também pelos ouvidos, pele,
músculo - observação multissensorial que reinventa pela percepção interessada.
Imprescindível é o desejo para o exercício da pesquisa como criação, desejo de saber que
parte, sempre e necessariamente, do reconhecimento do não saber.
O professor que pesquisa na sala de aula, necessariamente, cria e deixa que os
estudantes criem.

Comentário D. Roda de conversa: a expressão já se consumou, mas poderemos


substituí-la por roda de diálogos. No mesmo espaço, ela poderá ser praticada entre
professor e estudantes, assim como entre estudantes. Não importa muito a geometria.
Interessa por que e como se faz. Por princípio, o professor é pesquisador; caso
contrário, não seria. O estudante é estudioso e isso significa ser muito mais do que um
simples receptor, pois ele tem os seus projetos, por menos ou mais ambiciosos que
sejam. É uma situação idealizada, evidentemente, mas sempre acontece, ainda que de
modo escasso. Continuamos: o respeito, mas, em reciprocidade, é indispensável.
Temos, aqui, um território político e propício para o desenvolvimento de processos
criativos. O professor pergunta aos estudantes e, ao perguntar, responde o que ele
mesmo necessita saber; e, enquanto responde, cria. Como? Por quê? Cria porque há
uma base que lhe permite perguntar algo que não sabe, mas que está alojado nos
interstícios da pesquisa que faz. O estudante é provocado pela pergunta que
desconserta. Pensa e se exercita, enquanto faz os seus apontamentos. Ele também
responde ou encaminha algum pensamento provisório, rascunhado. Os demais
pensam. O pensamento circula livremente, pois é à liberdade e ao risco que, aqui,
estamos nos referindo, sem o que não há aula nem pesquisa.

Assim, os estudantes, quando participam de processos de criação nas artes de cena,


experimentam a pesquisa em artes, uma vez que o processo de criação é, em geral, tecido
de ensaios/estudo, experimentação, composição, escolhas - procedimentos investigativos
operados pelo corpo afetivo-cognitivo dos sujeitos do conhecimento.
Já na pós-graduação, o estudante vivencia intencionalmente a pesquisa artística. Ele
escolhe pesquisar em/sobre arte, sem garantias de que a pesquisa aprimore a sua atuação
como artista de dança. A pesquisa artístico-acadêmica, no nível de pós-graduação,
permitirá a organização, sistematização e construção intencional de um pensamento sobre
dança, de um processo de criação artística, de metodologias e práticas de ensino
permeados, necessariamente, pela reflexão crítico-interpretativa. A obrigatoriedade de
apresentarem resultados ao final da trajetória de pesquisa deve-se ao exercício de cultivo
da construção de conhecimentos a serem partilhados na rede epistemológica que se tece
entre as universidades e sociedades. Parece ser, assim, que a vocação da pesquisa
acadêmica reside nessa construção partilhada movida pelo desejo de comunicar, de
pertencer a uma comunidade de conhecimento que reconhece - ou, ao menos, deveria
reconhecer - a constante presença do não saber, de um estado permanentemente
incompleto de conhecimento.
Vale também acrescentar que esse reconhecimento do não saber deve ser também
incorporado pelo professor, pelo orientador da pesquisa. É preciso que ambos, estudante

98
Corpos que Dançam | 2022

e orientador, não se apoiem em supostas certezas de processos - geralmente presentes e


associadas aos planos de metodologias de pesquisa. Pode-se escolher a direção, mais que
detalhar o caminho da pesquisa antes de percorrê-lo. Viver o processo da pesquisa, aberto
aos devires do caminho, mobilizados por um objetivo que indica uma direção é
fundamental para a experiência de pesquisa como criação.
A trajetória da pesquisa e o texto/cena de pesquisa são caminhos tecidos de invenção.
Desde a escolha/criação do recorte da pesquisa acadêmica em/sobre dança ao modo de
organização da escrita acadêmica - texto com palavras ou cena - há e deverá sempre haver
espaço para desvios daquilo que se considera tradicional na pesquisa acadêmica. São
constitutivos da ruptura epistemológica, que faz existir a ciência moderna, presentes em
certas pesquisas acadêmicas: única metodologia científica, certa prevalência das técnicas,
espaço reduzido para reflexões, espaço ampliado para o trabalho das quantidades,
confiança na neutralidade e na imparcialidade, o elogio à objetividade, ausência da
subjetividade, ausência das emoções. Há prevalência dos paradigmas positivistas e
neopositivistas.
Ao saber que se cria ao pesquisar em/sobre arte, cada leitura, observação, ensaio,
registros, reflexões é movida pelo desejo de compor leituras, interpretações, modos de
fazer arte na academia.
Na pesquisa como criação é necessária a prática da intimidade, da coexistência entre
eu e o outro, seja ele um autor, uma obra artística, um espaço de ensaio, de aprendizagem,
uma sala de aula, um processo de criação. Portanto, pesquisa se faz de diálogos, de
reflexão crítico-inventiva e encaminha modos textuais - feitos de palavras, movimentos,
sons - singulares, objetivando a necessária precisão característica do que aqui se
compreende por conhecimento/saber artístico. Tal precisão não deve ser confundida com
a almejada objetividade - científica -, como já mencionado neste texto, mas sim à
sensibilidade. É a sensibilidade que faz com que o texto, a obra resultante da pesquisa
acadêmica, responda a necessidades autênticas do pesquisador, do campo de
conhecimento e da sociedade.

Nota 03 - A experiência do sujeito na pesquisa em/sobre artes da cena

A pesquisa em dança, impulsionada por provocações inventivas, desejos e lacunas, aos


poucos nos leva ao compartilhamento de existências e poéticas cênicas - pois não há como
separar o sujeito de sua trajetória formativa e de vida, o sujeito da obra e, também, da
pesquisa que decide fazer.
A experiência do sujeito no mundo marca seu processo de construção de
conhecimento. John Dewey (2008) nos diz da experiência como interpenetração eu-
mundo, não se tratando, portanto, de assunto privado ao sujeito. Essa interpenetração não
se refere à relação entre duas matérias distintas, mas à natureza inter-relacional que
constitui um e outro. O sujeito traz o mundo em si e, portanto, o sujeito é feito de mundo
e o mundo de sujeitos.

Comentário E. Não há uma relação entre sujeito e mundo. Mediada pelo contexto
social, há uma relação entre sujeitos que se dá no mundo. Há muitos que pensam o
mundo como exterior ao sujeito: contra ele, obstruindo os seus desejos, a sua arte, a
sua fala, o seu texto, a sua presença, as suas práticas, a sua paz, felicidade. Em parte,
nisso poderá haver sentido, pois entre os sujeitos há desigualdades e, em sociedades
pouco ou nada democráticas, poderá haver injustiças e desigualdades imensas.

99
Corpos que Dançam | 2022

Com relação à pesquisa - em qualquer campo do conhecimento, especialmente, nas


artes -, o testemunho da própria experiência transparece nas escolhas feitas. A
subjetividade - como testemunho de si na experiência - reside no autoconhecimento de
saber-se e sentir-se sujeito do que se pensa e faz. Damásio (2010) afirma que sem
subjetividade, a cognição e, tampouco, atividades como criatividade e competências
artísticas teriam se desenvolvido. Portanto, a cisão entre subjetividade e objetividade não
nos parece pertinente. Sempre haverá subjetividade nas ações de pesquisa, por mais
objetivas que essas pretendam ser. Não há neutralidade científica (Japiassu, 1975) e a
pesquisa sobre a qual aqui refletimos não prescinde do sujeito, ao contrário, se faz de suas
trajetórias, impressões e afetos.
O texto da pesquisa - feito de gestos, de palavras, de movimentos - e a cena, que
também se faz pela pesquisa, são em si narrativas do sujeito pesquisador. Em toda
narrativa está presente aquele que a encaminha. Não há como dissociar o pesquisador de
seu próprio processo, e, tampouco, de seu texto e cena construídos com a pesquisa. Na
pesquisa em/sobre artes da cena é imprescindível que percebamos e deixemos perceber a
forte marca da subjetividade, inerente, por sua vez, aos atos de construção de
conhecimento em arte. Isso não quer dizer que não se façam exercícios de racionalidade
durante a pesquisa artística. Os atos de escolher, de descrever, de relatar, de propor
procedimentos se fazem pelo entrelaçamento de razão, emoção, pensamentosentimento,
entre outros processos afetivo-cognitivos do corpo.4
Assim, ao escolher um objeto de pesquisa, podemos dizer que somos parte desse
objeto, que trajetória de vida e trajetória formativa se refletem nele, o que exclui qualquer
tentativa de neutralidade na relação sujeito-objeto. Por essa razão, a experiência prévia
do pesquisador é geradora da possibilidade da pesquisa. Para sabermos o que não
sabemos, que nos leva à necessidade de pesquisar sobre, é fundamental reconhecer e
refletir sobre nossos caminhos trilhados. Concebendo-nos feitos de memória, localizados
em determinado espaço-tempo - contexto -, encaminharemos pesquisas que respondam
aos nossos autênticos desejos, esses, por sua vez, coerentes com nossa existência no
mundo e com as indagações por onde este nos encaminha.

Nota 04 - Perguntas e respostas provisórias

A pesquisa parte de um território de conhecimento experienciado, ainda que se


mobilize a partir da consciência, em si próprio, de um estado de ignorância. É então esse
estado que viabiliza o passo inicial da pesquisa acadêmica - a elaboração das perguntas
de pesquisa.
O hábito de perguntar - a si e ao mundo -, de lidar com a insuficiência das respostas
imediatas e, até mesmo, com a ausência de respostas são algumas das ações que
encaminham a prática da pesquisa nos diversos campos de conhecimento. Aquele,
consciente de sua ignorância e desejoso de saber sempre mais, é o sujeito que se faz
pesquisador dia a dia. A formação do pesquisador, portanto, não se inicia na instituição
formal de ensino, mas sim nas suas sucessivas interações curiosas com o mundo. Tais
interações são marcadas pelas capacidades de espantar-se e de fazer perguntas.
Interessa, portanto, aquele que não deixa de problematizar o que já sabe e o que se
apresenta como conhecimento hegemônico. Desse modo, importa procurar perguntas
mobilizadoras, sem, necessariamente, objetivar respostas a elas. Podemos, ainda, pensar
que as respostas já estão encaminhadas - implícitas - nas perguntas que refletem nossa
4
Processos como atenção, tomada de decisão, memória, sentimentos do corpo, sentimentos e emoções de
fundo (Damásio, 2004).

100
Corpos que Dançam | 2022

trajetória de vida e nos fazem pensar. Responde-se na pesquisa desenhando outras


perguntas que se desdobrarão em outras pesquisas. Não necessariamente devemos testar
hipóteses, mas sim encaminhar pensamentos, imagens, cenas, a partir de suposições,
especulações - criando espaços de liberdade. Assim, importa, ainda mais, não antever os
resultados, não premeditar os caminhos da pesquisa em prol de um suposto rigor de
estudo.
Pesquisar a partir de perguntas, sabidamente provisórias, para encaminhar caminhos
flexíveis de pesquisa na academia demanda alguma resistência ao status quo da pesquisa
na universidade. Resistência essa que, como dissemos, não precisa repetir modos
excludentes de existência, mas deve pautar-se na convivência com a diferença, no
exercício da alteridade e na defesa da pluriepistemologia na universidade. Podemos
perguntar então, a que resistir? Ora, resistir às opressões de todos os tipos, especialmente
àquelas relacionadas ao cerceamento da liberdade em prol do seguimento de um
determinado modo de fazer pesquisa alinhado ao método positivista da ciência moderna;
resistência às opções que enfraquecem o conhecimento em/sobre artes/dança ao reduzir a
pesquisa a simples relatos de experiências de criação - sem proposição de fricções,
tensionamentos, críticas; resistência à comum compreensão de arte, dança, como puro
entretenimento; resistência ao preconceito com os modos de reflexão do artista de dança,
como se não houvesse pensamento na dança; resistir à crença de que só há um
conhecimento válido e esse é o científico; resistência ao desejo de transformar a arte em
ciência, a menos que compreendamos a ciência a partir de seu sentido lato - ciência como
conhecimento. As perguntas de pesquisa podem impulsionar tanto pensamento crítico-
reflexivo sobre dança, quanto a própria dança. Dança como pensamento do corpo, como
nos diz Helena Katz (1994), como pensamento-sentimento do corpo (Ribeiro, 2012). Aos
poucos, ainda com importantes desafios, as universidades brasileiras se abrem aos saberes
plurais, que incluem os saberes artísticos, afrodiaspóricos, das tradições.5 Nessa agenda
aponta no horizonte a presença desses mestres e artistas - doutores por notório saber -
como docentes na sala de aula. Haverá com esse movimento uma reconfiguração de
perguntas de pesquisa em dança? Tal pluriepistemologia, em processo de cultivo,
impactará as pesquisas acadêmicas em dança? Esperamos que sim. Esperamos que o
reconhecimento de outros modos de construção de conhecimentos e saberes possam
sublinhar a importância de reconfiguração dos processos de pesquisa nas universidades -
mais por articulação e associação de métodos e metodologias, que por exclusão e
substituição.
Na pesquisa em dança será mais importante o processo ou os, supostos, resultados de
pesquisa?
Sendo os processos o interesse da pesquisa em/sobre dança na universidade, as
metodologias - memória da pesquisa - poderão protagonizar os textos de pesquisa. Talvez
importe mais o compartilhamento de processos alinhavados por reflexões críticas, que de
relatos ensimesmados de vivências no decorrer da investigação. A crítica aqui abordada
aponta seu parentesco com a capacidade de fazer perguntas, uma vez que tensiona, abre
fendas, explora rasuras para afirmar sua natureza - sempre e necessariamente - provisória.
Não se almeja, portanto, defender o estímulo a uma fabril construção de respostas a
perguntas de pesquisa. Definitivamente, na pesquisa a que nos referimos, as perguntas
prescindem de respostas. São plataforma de criação, como se aprende com Pina Bausch
e seu método das perguntas, que operam como dispositivo poético. É preciso podermos

5
Na Universidade Federal de Minas Gerais, por exemplo, tivemos a recente titulação como doutor por
notório saber de quinze mestres da tradição e artistas (https://ufmg.br/comunicacao/assessoria-de-
imprensa/release/ufmg-promove-encontro-com-mestres-de-saberes-tradicionais-e-artistas-que-receberam-
titulo-de-notorio-saber>) e outras tantas solicitações que estão, atualmente, em processo de avaliação.

101
Corpos que Dançam | 2022

considerar a cena ou o texto decorrente e parte da pesquisa em/sobre dança como


resultante de um processo de criação. Assim, as perguntas são marcadas pela sua natureza
efêmera, sua potência de movimento que poderá compartilhar articulações de respostas,
todas elas também provisórias.
Respostas provisórias são plenas de liberdade, pois se configuram como abertura para
mais de uma interpretação. Tanto como as perguntas, as respostas deveriam sempre ser
provisórias - ou deveriam se admitir como tal -, à medida que compreendemos a pesquisa
como: pesquisa sobre pesquisa, texto sobre texto, palavra sobre palavra, movimento sobre
movimento. Nada é definitivo e tudo se transforma. É à liberdade que deveremos nos
referir, quando pensamos a pesquisa.

Comentário F. Liberdade na pesquisa: poder-se-ia perguntar: por que é importante a


liberdade? A liberdade é imprescindível nos processos de pesquisa, desde a construção
do projeto de pesquisa: temática, recortes de mundo, perguntas de pesquisa, modos de
abordagem. Ponto que poderá ser encaminhado pelos mais convencionais,
conservadores ou tradicionais pesquisadores: então, será preciso saber se servir da
liberdade. Esta não será a questão importante. Antes, será preciso conquistar, cultivar
a liberdade. Talvez, nas situações em que há histórias de cerceamentos, será preciso se
acostumar com a liberdade quando ela se avizinha. Quando a liberdade está posta, há
entrega e aventura de pesquisa, exposição ao risco criativo que, com ele, há
experimentação do mundo a ser lido. Quando há liberdade, há autonomia e há
possibilidades amplas de interlocução com outros pesquisadores e com o mundo sob
leitura.

Nota 05 - Estudo como prática de pesquisa

O ato consciente de pesquisar - que não se restringe às atividades da pós-graduação -


marca a presença dos sujeitos na universidade. Assim, a pesquisa precisa estar,
conscientemente, entrelaçada às ações de ensino-aprendizagem desde o início da
graduação. A potência da pesquisa está na imersão, no cultivo da criação.
Torna-se necessária a tomada de consciência de que o estudo - necessariamente -
permanente - este estudo mobilizado pelas dúvidas e pelo desejo de saber - faz parte da
ontologia da pesquisa em qualquer campo de conhecimento.

Estudar: ler
escrevendo.
Com um caderno aberto e um lápis na mão.
Um livro no centro. Aberto,
Um branco na margem.
Aberto.

E também: escrever
lendo.
O oco da escrita,
Aberto,
Em meio a uma mesa cheia de livros.
Abertos. (Larrosa, 2003, p. 7)

102
Corpos que Dançam | 2022

Reiteramos a afirmação de Larrosa (2003) que entrelaça escrita e leitura, “[...] uma
inquietando a outra apaixonando uma a outra” (Larrosa, 2003, p. 9), no cultivo do estudo.
Compreendemos a escrita, a leitura como práticas do corpo, saberes do corpo. Assim,
apaixonar-se pela escrita é também envolver-se corporalmente - intimamente - com a
artesania do texto feito de palavras. Leitura e escrita - seja com os olhos, as mãos, seja
com o tronco, as pernas, pés, cabeça, pele - é movimento que pode ser poético, criativo,
fecundo. O estudo como exercício de permanente leitura e escrita - que implicam
subsequentes releituras e reescritas - é o estudo da experimentação anteriormente
mencionada. Estuda-se não para cumprir e alcançar metas, mas, sim, pelo prazer da
aprendizagem criativa que orienta a construção da pesquisa.
Ao professor cabe o cultivo da pesquisa que alimenta a sala de aula e que, como nos
diz Hissa (2013), se faz também na sala de aula, na proximidade do convívio com os
estudantes.

Comentário G. Não se poderá afirmar quando e como se inicia o processo de pesquisa.


Ele é parte integrante do processo formativo que, por sua vez, poderá ser mesmo
anterior à trajetória acadêmica. O mesmo poderá ser dito acerca do professor-
pesquisador que, convencionalmente, é visto “apenas” como professor. Poderá ser
professor sem ser pesquisador? Antes, a leitura do mundo-texto. Mais adiante, a leitura
disciplinada da palavra-mundo. Pesquisa, sala de aula: como pensar o processo em
que a pesquisa alimenta a sala de aula e, esta, por sua vez, cultiva a pesquisa? São
indissociáveis e, quando não são, como poderíamos pensar a existência e a presença
do professor e do pesquisador?

A indagação permanente, a problematização das experiências dos sujeitos do


conhecimento no mundo e o estudo contínuo, entre outras, colaboram conjuntamente para
que tenhamos professores-pesquisadores. Recorro à fala de Gilberto Medeiros Ribeiro
(2021)6 que, em homenagem a um professor que aguçou sua curiosidade, transformando
o curso de sua trajetória formativa, disse: “[...] o professor não ensina, faz aprender; cria
o pensamento contrário; canaliza e amplifica a curiosidade” (Ribeiro, 2021, informação
oral). O professor que se pergunta e faz perguntar, que não perde a capacidade de
espantar-se frente ao mundo, que se coloca em diálogo crítico-reflexivo com os
estudantes, é o professor que traz a pesquisa entrelaçada ao ensino.
Assim, professor e estudante, ao cultivarem o prazer de ler, de dançar, de escrever, de
estudar o texto, o corpo, a cena e todas suas materialidades estarão nutrindo seu ser
pesquisador em/sobre artes de cena. Estudar: prática intrínseca à pesquisa. Pensar o
estudo como cultivo - constituinte da pesquisa - encaminha a necessidade de se conceber
a pesquisa como trânsito, que implica deslocamento, intercâmbio e compartilhamento de
ideias e sujeitos. Tal trânsito é feito, também, de risco. “O labirinto é o lugar do estudo”
(Larrosa, 2003, p. 31). É necessário perder-se, arriscar-se, tanto professor quanto
estudante, para saber a pesquisa.

Só o estudo ameaça o estudante. Em seu abandonar-se ao estudo, o estudante


renunciou a tudo o que poderia torná-lo seguro. Não só às pequenas seguranças da vida
prática, desse mundo diurno da ação e do trabalho, desse mundo seguro no qual cada
um é o que é, e sabe o que fez ontem e o que fará amanhã, e o que deseja e o que tem,

6
Informação oral resultante da homenagem verbal proferida pelo Prof. Gilberto Medeiros Ribeiro em
reunião de gabinete da reitoria da UFMG, no dia 15 de janeiro de 2021, na ocasião da despedida do Prof.
Alfredo Gontijo de Oliveira da presidência da Fundep, fundação que faz o gerenciamento administrativo e
financeiro de projetos da UFMG, entre outros centros de pesquisa e ensino do Brasil.

103
Corpos que Dançam | 2022

mas também às outras seguranças: da verdade, da esperança, da ação, da cultura e da


significação. O estudante renunciou ao que poderia tornar seguro o próprio estudo. Daí
o perigo. (Larrosa, 2003, p. 43)

Trata-se, portanto, de nos arriscarmos pelo deslocamento, abertos e dispostos à


aventura do desconhecido. Não se pesquisa o que já se sabe, ainda, que somente possamos
sonhar a pesquisa já com algum território de saber percorrido. Entretanto, quando
compreendida como trânsito, a pesquisa implica risco, coragem e consciência de que não
sabemos onde iremos chegar. Pesquisar algo do qual já antevemos a resposta é não
enfrentar o vazio do não saber. A pesquisa é construída em um espaço-tempo que contém
vazios para que possamos apreender o mundo e, quando interrompermos a pesquisa - na
sua obrigatória finalização -, compartilhar leituras, conhecimentos, achados, fricções
construídas no processo.

Nota 06 – A imaginação na pesquisa

Quando se representa algo na [ou através da] imaginação, abstrai-se do objeto ou do


referente. Assim, a imaginação é tomada como dimensão da mente. Entretanto, toda
representação [...] pode ser compreendida como um ato de criação. [...] A imaginação
pode ser compreendida como a capacidade de representação de imagens que o espírito
desenvolve. A imaginação é, portanto, uma faculdade de representação, de construção,
de combinação de imagens; é sempre leitura e, como tal, é leitura que cria, recombina
e interpreta. [...] A imaginação parece confundir-se com o insight. Mas o insight,
mesmo sendo uma manifestação da imaginação, já se aproveitou da disponibilidade de
imagens, da história de experiências e de conhecimento acumulados: já é solução de
problema, interpretação, leitura e criação que passaram por processos imaginativos.
Sublinha-se que a imaginação, entretanto, também é potencializada a partir de
estratégias sistemáticas de caráter diverso, que incluem a educação formal e que fazem
parte de estruturas culturais mais amplas. [...] A imaginação desempenha diversas
funções fundamentais, entre as quais merecem ser salientadas a função crítica e a
função criadora. Ambas constituem um processo único que se estende da produção
científica à construção de todos os discursos. É de fato à criatividade que a imaginação
se associa, sendo um dos pré-requisitos indispensáveis à construção de novas respostas
ou de novos arranjos interpretativos sobre o mundo. (Hissa, 2002, pp. 115-118)

Construir um projeto de pesquisa é sonhar a pesquisa (Hissa, 2013) e projetar futuros


para a mesma. Esse sonho é sempre aberto, mutante, passível de alterações permanentes
e, paradoxalmente, é ele quem propiciará a continuidade futura da pesquisa após a
conclusão — ainda, que a conclusão seja sempre parcial, provisória, também feita de
perguntas que jogam a pesquisa, através de outras que se seguem, para mais adiante.
Afirmamos que o projeto é o lugar prioritário do movimento e, consequentemente, das
mudanças. A pesquisa em si tem data de término pré-estabelecida seja pela disciplina,
seja pelo programa de pós-graduação, agência de fomento e, até mesmo, pela contínua
demanda de resultados imposta aos docentes e estudantes na vida acadêmica.
Assim, a imaginação que nos permite sonhar a pesquisa é aquela que supera a
evocação, atravessando e ultrapassando a realidade, a nossa capacidade de previsão.
Podemos pensar que a imaginação na pesquisa é inventiva, como nos ensina Bachelard
(1989). Imaginação essa, que se abre para os possíveis, e trafega nas margens, no escuro
do conhecimento estabelecido.

104
Corpos que Dançam | 2022

Ítalo Calvino (1990b) nos auxilia na compreensão de como pode operar a imaginação
na pesquisa, em/sobre, dança quando a compara a um repertório do “[...] potencial, do
hipotético, de tudo quanto não é, nem foi e talvez não seja, mas que poderia ter sido”
(Calvino, 1990b, p. 106). Desse modo, a inclusão da imaginação na genealogia da
pesquisa sublinha a incorporação do risco frente ao desconhecido, por sua vez, avesso às
assertivas previsões. Isso porque, quando a imaginação se faz presente, ela vem
acompanhada do devaneio criativo, do trânsito livre e aberto. Podemos pensar que o
devaneio nos pode desorientar. Ora, mas é ele mesmo, que também, nos pode levar a
outros lugares, ao inesperado, à surpresa/inovação, que uma pesquisa acadêmica promete.
Ao imaginar a pesquisa, imaginamos seus caminhos, imaginamos a memória da
pesquisa. Naturalmente esse gesto poético do pensamento - a imaginação - ancora na
direção da pesquisa para poder adensar questões e não se perder em um devaneio sem
rumo.

Comentário H. Dançar é pesquisar? Imagina-se o próximo passo, sem que ele ainda
exista, ao dançar? Já existe, pois já está imaginado. O corpo preparado se movimenta.
O movimento, em cena, é pensadosentido. É trabalhado antes e durante a cena.
Contudo, ao menor descuido, lá se vai o passo ao incerto. Mesmo sendo a cena
pesquisa? Sobretudo por ser e já se vê porquê: em um instante sem segundo, o corpo
pensasente, imagina e se acerta em improviso preciso. É mais texto que se adiciona ao
corpo e ao gesto, que se entregam ao risco, não apenas porque se é pesquisa em
compasso, mas porque dela, da pesquisa, são herdeiros. Aquele corpo-gesto em
movimento: herdeiro da pesquisa que se faz em cena. É para se pensar: só improvisa e
antevê, no ato da cena, quem pesquisa e faz do corpo o movimento que imagina.

Nota 07. De escritas e leituras

Trazemos aqui as palavras de Walt Whitman em So Long7:

Camarada, isto não é um livro


Quem toca nisto, toca em um homem,
(É noite? Estamos sozinhos?)
Sou eu que seguras, e que te segura,
Eu salto das páginas para teus braços – a morte me chama.
(Whitman, 1998)

A aproximação íntima com a materialidade do livro faz-se abertura para o encontro. O


sujeito leitor precisa se entrelaçar com o sujeito escritor, que carrega em si outros tantos.
Portanto, a leitura da pesquisa implica reescrita daquilo que se lê (Hissa, 2013). Tal
transcriação se dá em decorrência do estreitamento da distância entre esses sujeitos. É na
intimidade que se cria conjuntamente. Compreendemos a leitura e escrita - pares
inseparáveis do estudo de pesquisa - práticas corporais forjadas no desejo de conhecer.
Ora, esse conhecer, que ocorre na co-presença, é também o conhecer que se busca na
academia. Podemos dizer que a pesquisa não se faz sozinha. Demanda ações coletivas
configuradas por redes de sujeitos que socializam leituras de mundo. A leitura alimenta
as práticas reflexivas inerentes à pesquisa em/sobre artes de cena e, assim, viabiliza a

7
Tradução livre dos autores. Texto no original: “Camerado, this is no book, / Who touches this touches a
man, / (Is it night? are we here together alone?) / It is I you hold and who holds you, / I spring from the
pages into your arms—decease calls me forth.” (Whitman, 1998).

105
Corpos que Dançam | 2022

construção de pensamento que se nota na cena, no texto de palavras, no corpo, no traço


pictórico.
Além disso, são várias as leituras e escritas da pesquisa — as das palavras, das cenas,
dos diálogos, das entrevistas, dos encontros. Leituras feitas de escuta, observação, criação
e abertura para o outro. Leituras que são reescritas (Hissa, 2013) e, assim, processos de
criação que geram repertórios para conhecer o outro. Escrita também é feita de leitura.
A compreensão do discurso inerente à pesquisa demanda precisão em todo processo.
No entanto, pensemos em algo que nos dirija imediatamente à ideia de precisão na
pesquisa. O texto da pesquisa. A busca pela melhor palavra é um exercício difícil e é tão
complexo quanto o próprio exercício de pesquisa: arriscamos a dizer que a pesquisa será
sempre texto de pesquisa. Por que apostamos nisso? Porque a palavra e o texto são a
expressão da ideia, da pergunta, do argumento, da articulação, da procura, do caminho,
do encontro, assim como do explícito desencontro que faz pensar. Portanto, escrita -
sempre a leitura de algo - é aquela da qual se cuida com esmero - cultivada na duração do
processo. Cuidar de cada palavra como se cuida do gesto, de cada movimento que compõe
uma partitura de ações para a cena. Cada sinal de pontuação - assim como o grau de força
muscular, direção, duração e ritmo do movimento - interferirá no sabor do texto. Texto,
cena demandam tempo demorado - o tempo da criação. Escreve-se com o corpo. A escrita
é o desdobramento da performance do pensamentosentimento, que se elabora por meio
de palavras, imagens, sons e movimentos.

Últimas e poucas perguntas

Pode parecer que as últimas perguntas sejam mesmo últimas e que podem substituir
com êxito, uma conclusão derradeira ou considerações finais a encerrar o texto. No
entanto, elas - as últimas perguntas - representam o que pensamos para a pesquisa em
artes, tanto como pensamos a pesquisa nos mais diversos campos do conhecimento e do
saber. Poderemos iniciar uma pesquisa com pergunta ou perguntas, mas nos causará
sempre estranheza iniciar uma investigação com respostas implícitas. Não é incomum,
pelo contrário. Já se saberá, assim, antecipadamente, quais caminhos a tomar na direção
do destino final, dos resultados, da conclusão. Vale essa espécie de jogo de cartas
marcadas? Contrariando a própria ideia de pesquisa e até mesmo de universidade, esse
tipo de jogo - o que já se sabe em que lugar vai se chegar, antes de se iniciar o caminho -
tem sido validado? Sim, estranhamente. Portanto, diante disso, pergunta-se: a pesquisa
não é aventura, não é risco? A pesquisa poderá prescindir da imaginação? Nesses termos,
como pensar a dispensabilidade da criatividade? Pesquisar é estar no conforto em vez de
estar experimentando o risco que faz aprender? É possível aprendemos sem nos
aventurarmos no mundo da pesquisa? Se o início da pesquisa se faz com perguntas, os
resultados nos darão respostas e o caminho para o fechamento ou para o ponto final? São
vários os modos de alcançar resultados de pesquisa. São diversas as possibilidades de
abordagem de problemas/perguntas de pesquisa. Como negligenciar a inevitável presença
das subjetividades - tanto na construção do problema de pesquisa, na elaboração de
perguntas, assim como no tratamento que se dá a eles - neste processo chamado pesquisa?
Como subtrair a presença do sujeito da leitura que ele mesmo faz do mundo? Diante disso,
estaríamos dispostos a aceitar - ou, no mínimo, considerar - que pesquisa alguma se
encerra com um ponto final? A pesquisa implica a abertura de janelas para o futuro que,
por sua vez, é futuro para a pesquisa. Portanto, será mais aceitável pensar as últimas
palavras de uma pesquisa como um conjunto de últimas perguntas que, por sua vez, vão
se acumulando enquanto se caminha.

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Corpos que Dançam | 2022

Referências

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Danças em Pandemia: uma experiência performada

Sandra MEYER
Universidade do Estado de Santa Catarina
Centro de Artes
[email protected]

Resumo: A partir da ação performada Danças em Pandemia o ensaio problematiza as


mobilidades sociais e as coreografias sociais surgidas da vida ordinária no período de
quarentena, em virtude da pandemia do Coronavírus (COVID-19). Chama a atenção para
as partituras geométricas e os afetos decorrentes vivenciados para impor uma ordem e
controle acentuado. Discute a ética de ocupação dos lugares provocada pelas políticas de
distanciamento social adotadas pelos governos, trazendo à tona algumas ocorrências em
dança surgidas em tempos de autoritarismo, guerras e pandemias. São danças que
desacomodam poderes estabelecidos, e que insurgem em tempos de enganosa
normalidade.

Palavras-chave: Danças em Pandemia, pandemia coronavírus, políticas de


distanciamento social, dança geométrica, afetos

Abstract: From the action performed Danças em Pandemia, the essay problematizes the
social mobility and social choreographies that emerged from ordinary life in the period
of quarantine, due to the Coronavirus pandemic. It draws attention to the geometric
scores and the resulting affects experienced to impose order and accentuated control. It
discusses the ethics of occupying places caused by the social distancing policies adopted
by governments, bringing to light some occurrences in dance that emerged in times of
authoritarianism, wars, and pandemics. They are dances that dislodge established
powers, and that arise in times of deceptive normality.

Keywords: Pandemic dances, coronavirus pandemic, social distancing policies,


geometric dance, affections

E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos


por aqueles que não podiam escutar a música. (Friedrich Nietzsche)

Em meio à retomada da vida cotidiana das cidades, na ocasião em que vários países se
preparavam para retomar uma sonhada “nova normalidade”, findo o período de quarentena
adotado pelos governos no Brasil em virtude da pandemia do Coronavírus1, encontrei no
artigo de Bruna Paiva, intitulado Novas coreografias sociais pós quarentena: a sociedade
(e a escola) reinventada? (2020) reflexões pertinentes acerca dos possíveis modos de se
estar num mundo transformado pela situação epidêmica.

1
Coronavírus (COVID-19) é uma doença infecciosa causada pelo vírus SARS-CoV-2.

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As cidades dos diversos continentes retornaram às suas atividades e serviços a partir de


adaptações nos modos de encontro dos corpos nos espaços. Em muitas das imagens
divulgadas nas redes sociais foi possível observar, em especial em ambientes escolares,
desenhos no chão em giz ou fitas adesivas delimitando os espaços a serem ocupados pelos
corpos, mantendo um distanciamento de, pelo menos, 3 metros entre as pessoas. Cada
um/a era mantido/a em seu quadrado, círculo, ou mesmo linhas, segundo a proposição de
formas sólidas e regulares, como numa geometria pitagórica. Formas rígidas para tempos
obscuros em torno de cada corpo, restringindo sobremaneira modos de interação social e
afetiva mais fluidos. Estas configurações espaciais tendem a cercear os corpos e os induzir
a um comportamento normativo e controlado, cada qual em sua bolha imunológica, em
sua própria cinesfera, considerando aqui a perspectiva labaniana.

Figura 1. Imagem do pátio de uma escola na França

Fonte: Bruna Paiva (2020)

No texto acima citado a autora nos convida a pensar as formas de operacionalizar e


reinventar outras mobilidades sociais. Paiva (2020) observa que as novas coreografias
sociais da “nova normalidade” estão sendo performadas a partir de partituras geométricas
que tendem a não respeitar os ritmos mais orgânicos, pois, sob a atmosfera do medo, as
pessoas vivenciam uma ordem e controle acentuado. Neste sentido, como se comportariam
os afetos e relações humanas em meio a estas geometrias preconcebidas? Que outras
coreografias poderiam emergir nestes contextos? Ou seja, uma nova ética de ocupação dos
lugares poderia ser composta neste estado de exceção provocado pelas políticas de
distanciamento social adotadas?
A forma com que passei a lidar como artista da dança com as incertezas do retorno à
vida ordinária me levou a investigar as relações entre danças, epidemias e espacialidades,
resultando na concepção de uma performance intitulada Danças em Pandemia. A
iniciativa partiu de um coletivo de interessados em arte contemporânea no Brasil, ao qual
eu estava vinculada desde antes e durante o período de quarentena. O trabalho foi
desenvolvido no Grupo de Estudos em Práticas Artísticas, Políticas e Curatoriais,
localizado em Florianópolis, capital de Santa Catarina, sob coordenação da artista e
curadora Kamilla Nunes. Antes da pandemia prevíamos diversos encontros para a
elaboração de uma publicação que pudesse abordar nossas pesquisas coletivas e
individuais. Era fevereiro de 2020 e não imaginávamos que haveria tão cedo um próximo
encontro presencial numa mesma sala. Como descreveu Kamilla Nunes (2020, p. 1),
repentinamente “fomos atravessadas(os/es) pela flecha de um contexto que deixou feridas
e mudou a órbita dos processos: não havia como ignorar a pandemia do COVID-19 e seus
estilhaçamentos”.
Neste texto pretendo compartilhar com vocês a experiência performada em Danças em
Pandemia. Foi a partir dela que experimentamos em grupo modos de relação em estado

109
Corpos que Dançam | 2022

de presença, após meses de contato remoto somente via computador. Danças em


Pandemia aconteceu na Praça Tancredo Neves, conhecida como Praça dos Três Poderes,
no centro da Ilha de Santa Catarina, no sul do Brasil, no dia 26 de setembro de 2020. Os
cerca de 30 participantes usaram máscaras e se mantiveram em distanciamento de no
mínimo 3 metros.
André Lepecki (2012, p. 49), por meio do conceito de topocoreopolítica, nos sinaliza a
possibilidade de reescrever o espaço, ao mesmo tempo que nos reinscrevemos a partir dele,
compondo (ou até reinventando) uma nova ética dos lugares2. No artigo Coreopolítica e
Coreopolícia, Lepecki (2012, p. 45) argumenta que alguns pensadores da dança, tais
como Mark Franko, Randy Martin, Susan Manning e Bojana Kunst têm avançado, desde
os anos 1990, na hipótese de que “a dança, ao dançar, ou seja, no momento em que se
encorpora no mundo das ações humanas, teoriza inevitavelmente nesse ato o seu contexto
social”. Nesta perspectiva, a dança seria entendida não somente como teoria social da
ação, mas como teoria social em ação” (Lepecki, ibid).
É possível aferir que a humanidade vivenciou pandemias em outros períodos da
história, ocasiões em que os corpos produziram, em contraponto às tentativas de
cerceamento de suas liberdades, modos de se mover inusitados e danças inesperadas.
Coreografias irromperam em outros tempos de pandemia, ou de situações bélicas,
promovendo dissensos em seus respectivos contextos sociais. Danças que moveram
mundos e fundos, e que operaram por meio de outras topocoreopolíticas, reinscrevendo
subjetividades no espaço em modos assimétricos e sintomáticos.
Antes de me ater à performance Danças em Pandemia proponho uma brevíssima
passagem pela história da dança apontando algumas ocorrências que, a meu ver,
problematizam tempos de autoritarismo, guerras e pandemias. Eis algumas terminologias
que aparecem na literatura ao abordar estas ocorrências em relação aos modos de se
mover em situações sociais atípicas, a saber: danças epidêmicas, danças grotescas, danças
selvagens, danças macabras, danças irregulares, danças apavorantes, danças loucas,
danças insanas, danças cruéis, danças energéticas, danças compulsivas e danças
estranhas. Danças estas que desacomodam poderes estabelecidos e que insurgem em
tempos de enganosa normalidade.

Dançar até à exaustão

John Waller, autor de A Time to Dance, a Time to Die: The Extraordinary Story of the
Dancing Plague of 1518 (2009), relata que em 1374 um estranho acontecimento causou
espanto na população de Aix-la-Chapelle (Aachen), na Alemanha. A Peste Negra
atormentava a população na época. Uma parcela de moradores da cidade foi acometida
por um surto nominado como coreomania, ou seja, uma espécie de compulsão
incontrolável por movimento, assemelhado a uma dança irregular, e que levou os
indivíduos dançantes a desmaiar de exaustão. Além da população de Aix-la-Chapellem
há relatos de que o surto se espalhou por outras regiões da Europa. Recebeu o nome de
Dança de São Vito, porque um grupo desses dançarinos fora de controle acabou
derrubando uma ponte sobre o rio Meuse, o que levou alguns a morrerem afogados

2
“Para tal, a coreografia teria que se tornar uma metatopografia. Lendo e ao mesmo tempo reescrevendo o
chão, reinscrevendo-se no chão, por via do chão, numa nova ética do lugar, um novo pisar que não recalque
e terraplane o terreno, mas que deixe o chão galgar o corpo, determinar os seus gestos, reorientando assim
todo o movimento, reinventado toda uma nova coreografia social, a topocoreopolítica” (Lepecki, 2012, p.
49).

110
Corpos que Dançam | 2022

enquanto sobreviventes foram levados para a Igreja de São Vito. A Igreja Católica
especulou que se tratava de uma forma de possessão maligna ou de uma maldição.
Em 1518, em Estrasburgo, nova incidência de uma dança compulsiva ocorreu após
uma mulher chamada Frau Troffea começar a manifestar sua coreografia, vista como
insana. Vários dias depois ela ainda continuava a dançar. Em uma semana, cerca de 100
pessoas dançavam com ela. As autoridades estavam convencidas de que os aflitos só se
recuperariam se dançassem dia e noite. Assim, foram reservados espaços para eles
dançarem, músicos foram contratados para tocar flautas e tambores para mantê-los em
movimento. Com o passar do tempo, aqueles com corações fracos começaram a morrer.
De acordo com John Waller (2009), a miséria, a fome e as pragas atormentavam as
pessoas e por isso as manifestações poderiam ser resultantes de condições extremas de
estresse psicológico capaz de provocar um transe alucinado por meio de movimentos
corporais. Essa conclusão é contestada, segundo o autor, porque a diversidade de relatos
sobre o fenômeno da coreomania também ocorria em regiões que não padeciam das
mesmas condições. Uma das hipóteses é que os dançarinos teriam ingerido ergot, um
psicotrópico que cresce em talos de centeio. Mas, segundo Waller (2009) isso seria pouco
provável, pois o ergotismo normalmente interrompe o suprimento de sangue para as
extremidades, dificultando muito os movimentos. Uma das explicações do autor é que os
dançarinos estavam em estado de transe; caso contrário, eles seriam incapazes de dançar
por tanto tempo. Durante séculos, especialistas discutiram se a epidemia da dança era uma
doença real ou um fenômeno social. As evidências acabaram apontando que a epidemia
era uma espécie de contágio cultural, que atinge populações que passam por extrema
dificuldade, fazendo com que elas queiram dançar até a exaustão (Waller, 2009).
Figura 2. Gravura de Hendrik Hondius, 1642

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Epidemia_de_dança_de_1518

A última dança foi assustadora

Em 19 de janeiro de 1919, aos 29 anos, Vaslav Nijinsky dançou publicamente pela


última vez num espetáculo beneficente num dos salões do Hotel Suvretta de Saint-Moritz,
nos Alpes suíços. Ante uma plateia de turistas, aristocratas e novos-ricos, apresenta o que
sua esposa Romola denominou como “a dança da vida contra a morte” (Nijinsky, 1985,
p. 14). Ao invés de divertir-se com a destreza técnica do bailarino, o público deparou-se
com uma dança trágica e trôpega, e que parecia evocar os horrores da guerra que devastara

111
Corpos que Dançam | 2022

a Europa nos últimos quatro anos. O solo refletia sua obsessão com o horror, a guerra e a
catástrofe. Ele descreve ao público do recital privado que dança seria esta: “Now I will
dance you the war, which you did not prevent and wich you are responsible” (Kirstein,
1975, p. 148)3.
O corpo de Nijinsky expunha visceralmente o dilaceramento de uma civilização pós-
guerra, bem como a frágil e conturbada condição do dançarino, anterior à internação em
uma instituição psiquiátrica que o afastaria definitivamente dos palcos e do convívio
social, até a sua morte, em 1950. Na primeira parte de seu diário ele descreve os
momentos que antecedem esta última dança: “[...] vou dançar quando tudo tiver se
acalmado, quero dançar porque sinto, e não porque estão me esperando” (Nijinsky, 1985,
p. 28). Sem os adornos, cenografia e aparato da arte total idealizada por Diaguilev no
período dos Ballets Russos, em um salão de um hotel, Nijinsky evoca uma dança nada
similar àquela que o tornou célebre nos grandes teatros europeus:

Dancei coisas assustadoras. Eles tiveram medo de mim, por isso acharam que eu queria
matá-los. Eu não queria matar ninguém. [...] o público não gostou de mim, pois quis ir
embora, então comecei a representar coisas engraçadas. Eu ria em minha dança. O
público também ria na dança. [..] eu quis continuar dançando, mas Deus me disse:
Chega. Então eu parei. (Nijinsky, 1985, p. 28)

A dança, inicialmente grotesca, se transformava à medida em que Nijinsky sentia o


estranhamento do pequeno público que o assistia. Um humor trágico e trôpego emergia
ao invés dos grandes saltos e deslocamentos pelo espaço que o eternizaram como um dos
maiores bailarinos do século XX.

Figura 3. Vaslav Nijinsky

Fonte: Lincoln Kirstein (1975)

Dançar contra os fascistas

Na matéria jornalística intitulada Eichmann viu "dança da morte" nazista, publicada


na Folha de S.Paulo em 1 de março de 2000, o jornalista Paul Holmes, da Reuters, em
Jerusalém, inicia o seu escrito com as seguintes palavras:

Adolf Eichmann reconheceu que o Holocausto foi o maior crime da história da


humanidade, mas nunca aceitou sua parte de culpa no genocídio de 6 milhões de

3
Tradução da autora: “Agora, eu vou dançar a guerra, que você não impediu, mas é responsável.

112
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judeus. Nas memórias escritas durante seus últimos meses de prisão em Israel, antes
de sua execução por enforcamento por ser culpado de crimes contra o povo judeu,
Eichmann pinta um quadro aterrorizante do que chama de ‘a pior e mais violenta dança
da morte de todos os tempos.’ (Holmes, 2000)

A relação da dança moderna com o projeto nazista na Alemanha é pouco conhecida,


ao contrário de outras artes como o cinema, a música, o teatro e a literatura. A arte
coreográfica teria escapado à crítica, mas não às ambiguidades históricas que esta arte
apresenta no período de eclosão da Segunda Guerra Mundial, como afirma Laure Guilbert
no livro Danser avec le IIIe Reich. Les danseurs modernes sous le nazisme (2000).
Na Alemanha pré-Segunda Guerra havia as danças corais que encorajavam a
experiência comunitária. As danças corais deveriam revelar as características da
Volksgemeinschaft4, um conceito promovido durante o Terceiro Reich, que defendia uma
comunidade nacional da etnia alemã, com o objetivo de construir uma sociedade sem
classes e de pureza racial.
Estas danças foram cooptadas pela propaganda nazista para serem dançadas nas
manifestações festivas dos Jogos Olímpicos. As Olimpíadas marcam o apogeu de
reconhecimento do movimento do coro labaniano. Em 1936, o espetáculo Vent de rosée
et nouvelle joie5, coreografado por Rudolf Laban para a Semana de Danças Corais é
censurado por Joseph Goebbels, o ministro da propaganda nazista de Adolf Hitler. Ele
escreve em seus cadernos:

Répétition de la pièce de danse: une chose vaguement à la Nietzsche, mauvaise, mal


faire et affectée. J’interdis une grande partie. Tout cela est trop intellectuel. Je n’aime
pas ça. Porte nos vêtements, mais n’a rien à voir avec nous. (Goebbels apud Guilbert,
2000, p. 334)6

Para Goebbels, a encenação labaniana era contrária à sobriedade e à verticalidade


exigidas pela propaganda nazista. Ao afirmar que tudo seria muito intelectual, Goebbels
queria dizer que a finalidade não era a própria encenação, no sentido de ginástica ou
exercício em si mesmo, mas um sentido superior, de ordem metafísica. A tensão entre
religião e política era marcante. A dança antifascista de Laban evocava uma vitalidade de
energias, com movimentos assimétricos que atravessam os corpos e as linhas transversais
do espaço, ao contrário das linhas estáveis e a verticalidade do movimento, que agradaria
Goebbels. Uma outra geometria irrompia dos corpos e projetava-se no espaço. As
imagens a seguir evidenciam esta diferença de geometrias, ocasião em que a dança teoriza
o seu contexto social (Lepecki, 2012).

4
Comunidade do povo. Tradução nossa.
5
Vento de orvalho e nova alegria. Tradução nossa.
6
Tradução da autora: “Ensaio da peça de dança: uma coisa vagamente à la Nietzsche, ruim, malfeita e
afetada. Eu censurei uma grande parte. Tudo é muito intelectual. Eu não gosto disso. Vestem nossos ideais,
mas não têm nada a ver conosco [...]”.

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Figura 4. À esquerda, a Volksgemeinschaft “popular”: Vent de rosée et nouvelle joie, de Rudolf von
Laban. Estádio Olímpico de Berlin, 1936. À direita, a Volksgemeinschaft “autoritária”: Jeunesse
Olympique, de Carl Diem, Hanns Niedecken-Gebhard. Estádio Olímpico de Berlim, 1936.

Fonte: Laure Guilbert (2000, p. 161)

Dançar os restos

Solista, performer, coreógrafa, cabaretista, Valeska Gert (1892-1978) nasceu na


Alemanha, em uma família judia. Ficou reconhecida no meio artístico por ultrapassar as
fronteiras entre a dança, o teatro e a performance, com apresentações grotescas,
excêntricas e irreverentes, em que exaltava personagens e caracteres singulares. De
acordo com Volmir Cordeiro, depois de criar cerca de trinta solos, Gert elabora A Morte7
no pós-Primeira Guerra Mundial, quando relata não haver mais ruínas:

[…] mas só um amontoado de pedras sem passado nem restos. Seu desejo era dançar
“energizada” pelas “vidas arruinadas”, cansadas, despedaçadas, perseguidas, tais
como os marginais, as trabalhadoras do sexo, os prisioneiros ou outras figuras
miseráveis. Dançar, para ela, é fazer justiça com o próprio corpo, no ato de dar forma
e imagem para essas vidas que hoje nos habituamos a chamar de vidas precárias.
(Cordeiro, 2020, p. 5)

Gert assim descreve em sua autobiografia sua dança mortal, em que as forças vitais se
esvaem. O corpo cede à força gravitacional, não há mais como não ceder ante a iminência
da morte e da destruição. Um corpo que não suporta mais a condição a qual está exposto
e que anseia pelo fim do sofrimento:

Eu estou imóvel dentro de uma longa túnica preta sobre um pódio cruamente
iluminado. Meu corpo tensiona com lentidão, o combate começa, os punhos se apertam
cada vez mais fortemente, os ombros se curvam, o rosto se torce – efeito do sofrimento,
do tormento. Esse sofrimento se torna insuportável, a boca se abre longamente para
um grito mudo. Eu jogo a cabeça para trás, os ombros, os braços, as mãos e todo o
corpo se petrifica. Eu tento me defender. Absurdo. Eu fico imóvel durante alguns
segundos, uma coluna de sofrimento. Depois, a vida lentamente deixa o meu corpo, e
bem devagar o meu corpo relaxa. O sofrimento se acalma, a boca amolece, os ombros
caem, os braços ficam flácidos, as mãos. Eu sinto a rigidez dos espectadores na sala,
eu quero consolá-los, um reflexo de vida desliza no meu rosto, e de muito longe emerge
um sorriso. E então ele cede bruscamente, as bochechas relaxam, a cabeça cai

7
Considerada como uma dança abstrata, dança de expressão ou pantomima dançada, Morte foi criada por
Gert e filmada por Suse Byk, em 1925. Acesso disponível em: https://www.numeridanse.tv/en/dance-
videotheque/tanzerische-pantominen.

114
Corpos que Dançam | 2022

rapidamente, uma cabeça de boneca. Fim. Foi. Estou morta. Silêncio de morte.
Ninguém ousa respirar na sala. Estou morta. (Gert apud Cordeiro, ibid)

Como observa Cordeiro (2020, p. 9), Gert definia a sua dança como grotesca, na
medida em que sintetizava a presença de extremos, em atos de resistência e revolução do
corpo frente à destruição do mundo pós-Primeira Guerra Mundial.

Figura 5. Valeska Gert. Morte (1940)

Foto de Lisette Model.


Fonte: https://www.gallery.ca/collection/artwork/valeska-gert-death-0

Fazer dançar os espíritos

Na obra A Queda do céu: palavras de um xamã Yanomami, no trecho “A iniciação”,


David Kopenawa8 comenta que tinha acabado de tomar yãkoana pela primeira vez com
um grande xamã, seu sogro. Em dado momento, Kopenawa começa a descrever a chegada
dos xapiri e sua dança dos espíritos com rara beleza, leveza e graça, para depois apresentar
uma dança apavorante e dilacerante. Eles aparecem bem apertados uns contra os outros,
ordenados em fileiras, cobertos de pinturas de urucum e de enfeites de penas de todas as
cores:

O som de suas vozes é poderoso e seus cantos são melodiosos. Quando finalmente se
consegue vê-los, são de uma grande beleza. Evitam a sujeira do chão ficando sempre
suspensos nos ares. Omama, que é quem os envia, torna-os capazes de voar com
velocidade graças a uma imagem de avião que lhe pertence. Essa imagem é muito
poderosa, carrega todos os xapiri em seu voo, apesar de serem tantos. Assim eles se
deslocam acima da floresta, além do céu e debaixo da terra (Kopenawa & Albert, 2015,
p. 132).

Kopenawa comenta ainda que os xapiri, grandes dançarinos, avançam e recuam


devagar, num alinhamento geométrico em forma de fileira, em que batem os pés no chão
em ritmo, para em seguida os espíritos masculinos dançarem percorrendo um grande
círculo. Uma nova topografia emerge. Kopenawa continua a descrever a sua experiência
ao tomar yãkoana:

8
Porta-voz dos Yanomami, David Kopenawa apresenta ao mesmo tempo um testemunho autobiográfico,
um manifesto xamânico e um libelo contra a destruição da floresta Amazônica. Publicado originalmente
em francês em 2010, A queda do céu foi escrito a partir do relato de Kopenawa contado a Bruce Albert,
etnólogo-escritor.

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Eles evoluem em volta de nosso corpo estendido em seus espelhos e agitam imensas
lâminas de metal brilhante. Ficam nos observando, julgando nossa força e nossa
aparência. Quando completam o giro voltam ao seu ponto de partida, passando ao
nosso lado. Então, de repente, um deles se vira e nos golpeia nas costas com o gume
afiado de seu enorme facão. O golpe nos atinge sem que ele levante a arma. É o balanço
da lâmina amarrada em suas costas que nos machuca com violência. A dor é intensa e
nos faz cair desmaiados em seguida. Então os xapiri desaceleram o passo, param e,
imóveis, ficam nos observando. (Kopenawa & Albert, 2015, p. 133)

Kopenawa sente medo. Eles se aproximaram de Kopenawa em silêncio no final de sua


dança de apresentação. A princípio não pareciam ameaçadores.

Mas de repente senti suas lâminas me atingindo com toda a força. Partiram-me o corpo
de um só golpe, no meio das costas! Sob o choque, lancei um longo gemido de dor.
Mas nem por isso pararam! Depois de me terem talhado em dois, cortaram-me a
cabeça. Então vacilei, e desabei em prantos. Meu pensamento estava desviado e eu
tinha ficado cego, como um cão morto no chão. Fiquei assim prostrado por muito
tempo, sem nenhuma sensação. Enquanto isso, os espíritos continuavam dançando ao
meu redor sem que eu percebesse nada. (Kopenawa & Albert, 2015, p. 134)

Em seu relato, Kopenawa conta ainda que tinha perdido a consciência, e foi a sua
imagem que eles desmembraram, enquanto a sua pele permanecia no chão:

Mais tarde, os xapiri vieram juntar novamente os pedaços de meu corpo que haviam
desmembrado. Porém recolocaram meu torso e a minha cabeça na parte de baixo de
meu corpo e, ao inverso, minha barriga e minhas pernas na parte de cima. É verdade!
Reconstruíram-me às avessas, colocando meu posterior onde era meu rosto e minha
boca onde era meu ânus! Depois, na junção das duas partes de meu corpo recolado,
puseram um largo cinturão de penas multicoloridas de pássaros hëima si e wisawisama
si. Também trocaram minhas entranhas por vísceras de espíritos, menores e de um
branco deslumbrante, enroladas com delicadeza e cobertas de penugem luminosa.
(Kopenawa & Albert, 2015, p. 135)

Kopenawa não cessa de afirmar em sua narrativa que, apesar de toda a sua beleza,
leveza e graça, vislumbrada em formas de alinhamentos e de círculos em uma simetria
espacial precisa e ordenada, a dança de apresentação dos xapiri é também apavorante e
dilacerante.
Figura 6. Apresentação dos pajés Yanomami na comunidade Demini

Foto de Dario Yawarioma/HAY.


Fonte: https://amazoniareal.com.br/criancas-yanomami-tres-corpos-de-bebes-estao-em-cemiterio-e-um-
no-iml-de-boa-vista-rr/

116
Corpos que Dançam | 2022

Dança pandêmica

Diante da pandemia do COVID-19, como salientamos, outras espacialidades e virtudes


foram requisitadas, contudo, linhas e formas geométricas planas ainda foram requisitadas
para orientar as demandas de isolamento, distanciamento e afastamento social. A
sobrevivência de padrões de figuras geométricas como suporte coreográfico me instigou
a olhar não somente para as danças acionadas em contextos de guerra e pandemia no
século XX, mas também para os primórdios do balé de corte na Renascença. O
desenvolvimento de correspondências geométricas entre dança e mundo está presente em
muitos balés produzidos na corte francesa.
A etimologia grega do termo Pandēmía permite identificar os elementos pan-, que se
refere a tudo, para um todo, e dēmos, que interpreta a ideia de comunidade, cidade ou
grupo. Na performance Danças em Pandemia propus uma experiência por meio de
instruções coreográficas para serem praticadas em comunidade no espaço público.
Estabeleci correspondências entre dança, comportamento e mundo por meio da prática de
movimentos inspirados em topografias de coreografias renascentistas, tendo como
referência os padrões de chão para orientar o deslocamento espacial dos cortesãos em Le
Ballet de Monsieur le Duc de Vendôme, de 1610. Este balé relaciona movimentos de
dança, virtudes morais e movimentos de estrelas e planetas, tal qual uma dança celestial
numa correspondência entre terra e céu (Foster, 1986). Os diagramas de chão elaborados
para serem seguidos pelos cortesãos e damas contêm traços circulares e angulares, com
círculos, linhas, quadrados, ziguezagues, triângulos, retângulos e diagonais que
relacionam corpos celestes e virtudes humanas, seguindo uma concepção espacial
neopitagórica.
Na dissertação de mestrado Baile celeste e harmonia terrestre: O balé de corte como
imagem prescritiva da harmonia cósmica e política na França (1610-1661), Clara
Rodrigues Couto discorre a respeito do pensamento e imaginário moderno e sua
correspondência entre as partes e o todo, “o que significa dizer entre todas as partes do
universo entre si, já que todas as coisas partilham de uma mesma substância, imutável,
ainda que as formas sejam infinitamente variáveis” (Couto, 2015, p. 171). Nessa
perspectiva, afirma Couto, é possível observar analogias entre o macrocosmo (universo)
e o microcosmo (sociedade, homem), o corpo (humano ou político) e seus membros, de
maneira que a representação alegórica revela o princípio ordenador universal. Assim,
conclui a autora, “uma evocação ou uma construção espetacular e alegórica, como a
dança, feita no plano terrestre (ou mesmo no plano individual do homem) guarda a mesma
substância e as mesmas proporções presentes no plano celeste e universal” (Couto, ibid).
No Ballet de Monsieur le Duc de Vendôme9 doze cavalheiros dançam, interpretados
por importantes senhores da corte. Eles formam no espaço doze figuras, cujas formas,
advindas de um suposto alfabeto dos antigos Druidas, criam significados alegóricos para
o balé. Segundo esta relação:

[…] cada figura continha um significado que claramente se referia ao rei: ‘poderoso
amor, ambicioso desejo, virtuoso desígnio, renome imortal, grandeza de coragem,
pena agradável, constância comprovada, verdade conhecida, feliz destino, amado de
todos, coroado de glória e poder supremo’. Ao que parece, o valor alegórico dessas
figuras seria potencializado pela dança, ou seja, pelo movimento gracioso, cadenciado
e harmônico que os doze nobres senhores fariam entre si e em relação à sala, de

9
Ballet de Monsieur le Duc de Vendôme (1610), também chamado Ballet d’Alcine, ou Ballet de Vendôme,
dá destaque ao tema da harmonia, ao qual se articula o tema da libertação protagonizada pelo rei em pessoa
(Couto, 2015, p. 163).

117
Corpos que Dançam | 2022

maneira a tornar a estes significados tanto mais inteligíveis quanto mais belas e
agradáveis fossem as ‘figuras em movimento’. (Couto, ibid)

A pesquisadora Susan Foster analisa algumas destas doze figuras geométricas que
orientam a disposição espacial e gestual do referido balé:

The condition of being loved by all (aime de tous) was represented by a set of lines
radiating from the central area. Ambitious desire (desir ambitieux) shows the
relentless, driving force of desire, while supreme power (pouvoir supresme) consists
of a large circle that encloses and is buttressed by a lattice of primary shapes. (Foster,
1986, p. 107)10

Couto (2015) chama a atenção para este tipo de elaboração coreográfica, chamada de
dança geométrica, que valoriza mais a disposição espacial dos bailarinos do que os passos
executados. Própria da Renascença, baseava-se na elaboração de formas geométricas, tais
como linhas, desenhos e letras no solo a partir do deslocamento dos dançarinos, a ser
assistida de cima para baixo para que as figuras se tornassem mais visíveis. Neste sentido,
a dança (e ainda mais a dança geométrica) seria uma metáfora da harmonia por emular o
movimento ordenado dos astros. Serviria para deleitar os sentidos, ao mesmo tempo em
que fortaleceria a imagem da ordem e o louvor ao rei, enfatizando os valores políticos e
sociais que estruturavam a sociedade da corte.

Figura 7. Padrões de chão do Ballet de Monsieur de Vendôme (1610)

Fonte: Susan Leigh Foster (1986, p. 108)

Voltando à performance realizada em Florianópolis em setembro de 2020, as doze


figuras do Ballet de Vendôme, dançadas pelos doze cavalheiros da corte francesa, foram
traduzidas para o contexto dos afetos produzidos pela pandemia de COVID-19 no grupo
de artistas e pesquisadores participantes. Os desenhos do balé e seus sentidos foram
transformados pelas sensações e afetos vividos no período de quarentena. Ética duvidosa,
raiva desenfreada, vergonha alheia, desamparo total, medo profundo, verdade falsa,
segurança ilusória, paciência esgotada, desejo impedido e razão perdida foram os afetos
escolhidos para a performance. A partir destes enunciados dez figuras geométricas foram

10
Tradução da autora: “A condição de ser amado por todos (aime de tous) é representada por uma série de
linhas que irradiam do centro da figura. Desejo ambicioso (desir ambitieux) mostra a implacável força
motriz do desejo, ao passo que poder supremo (pouvoir supresme) consiste em um largo círculo que encerra
e é sustentado por uma treliça de formas primárias.”

118
Corpos que Dançam | 2022

desenhadas, algumas delas mais assimétricas e desordenadas, para serem reproduzidas no


chão da praça onde ocorreu a performance, seguidas de instruções de como se deslocar
no espaço.

Figura 8. Estudo para composição de formas geométricas a partir dos padrões de chão do Ballet de
Monsieur de Vendôme

Fonte: acervo Sandra Meyer

Na figura anterior consta o primeiro estudo que buscava criar uma certa isomorfia entre
os desenhos do Ballet de Monsieur de Vendôme e a performance a ser criada para ser
acionada na praça. Aos poucos as figuras foram ganhando outras formas, bem como
outros afetos. Seguem algumas imagens das geometrias dançadas pelo grupo de
performers.

Figura 9. À esquerda, performance da figura “Vergonha alheia”. À direita, gráfico da mesma figura

Fonte: Kamilla Nunes (2020)

119
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Figura 10. À esquerda, performance da figura “Desejo Impedido”. À direita, gráfico da mesma figura

Fonte: Kamilla Nunes (2020)

Figura 11. À esquerda, performance da figura “Razão Perdida”. À direita, gráfico da mesma figura

Fonte: Kamilla Nunes (2020)

Figura 12. À esquerda, performance da figura “Constância Comprovada”. À direita, gráfico da mesma
figura

Fonte: Kamilla Nunes (2020)

No dia da performance os participantes se deslocaram para o espaço público indicado,


a Praça Tancredo Neves, conhecida como Praça dos Três Poderes, no centro de
Florianópolis. Lá receberam as instruções para serem performadas. A ação foi fotografada
e filmada por uma câmera instalada num equipamento de drone, com a perspectiva de
registro de imagem à distância, de cima para baixo, de forma a evidenciar os grafismos

120
Corpos que Dançam | 2022

executados pelos participantes em cada instrução dada11. As pessoas mantiveram a


distância mínima de 2 metros e usaram máscara de proteção durante todo o processo de
formação das figuras geométricas no espaço. Cada um dançou no espaço delimitado pela
instrução, de maneira pessoal, seguindo o afeto sugerido pela mesma. A ideia era a de
que as danças seriam pessoais, a partir do repertório de cada participante. O tempo de
permanência e a passagem de uma figura a outra era decidida pelo coletivo em uníssono,
de modo a permanecerem juntos/as num mesmo espaço geométrico. Muitos deles/as eram
profissionais liberais, estudantes, artistas de outras áreas que não a dança, ou seja, uma
diversidade de corpos de diferentes idades12. A ação durou cerca de 1h30, e ganhou uma
edição em vídeo de 7’30” pelo cineasta Alan Langdon13.
Importante ressaltar que a ação não teve ensaio prévio, sendo executada num único
encontro entre os participantes a partir das tarefas anteriormente descritas. Eleonora
Fabião (2008, p. 237) conceitua as ações performativas como programas, pois o termo
descreve melhor um tipo de ação que se aproxima do improvisacional exclusivamente na
medida em que não seja previamente ensaiada14. Neste sentido, complementa:

Performar programas é fundamentalmente diferente de lançar-se em jogos


improvisacionais. O performer não improvisa uma idéia: ele cria um programa e
programa-se para realizá-lo (mesmo que seu programa seja pagar alguém para realizar
ações concebidas por ele ou convidar espectadores para ativarem suas
proposições) (realce nosso). Ao agir seu programa, des-programa organismo e meio.
(Fabião, 2008, p. 237)

A ideia de instrução (ou tarefa) estabelece um conjunto de ações objetivas para serem
cumpridas. As tarefas surgem com vigor no contexto da dança pós-moderna americana
com um olhar sobre movimentos do cotidiano, abandonando modos de introspecção e
formas narrativas próprias à dança moderna e ao teatro tradicional 15. As tarefas
modificam a noção de coreografia, que passa a ser resultante de um processo colaborativo
e não de algo criado exclusivamente pelo coreógrafo ou dançarino (Meyer, 2013).

Considerações finais

O período da pandemia e o consequente distanciamento e isolamento deixaram marcas


profundas no tecido social das populações em diferentes partes do planeta. No Brasil, o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) define como “desalentadas” todas
as pessoas que gostariam de trabalhar e estariam disponíveis, mas desistiram de procurar
trabalho, sendo o medo de contágio e a necessidade de distanciamento social aspectos

11
Direção coreográfica: Sandra Meyer; Diretor de fotografia: Phillippe Arruda; Fotógrafo drone: Cid Junks;
Montagem, cor e som: Alan Langdon; Equipe de apoio: Integrantes do Grupo de Estudos em Práticas
Artísticas, Políticas e Curatoriais, organizado pela artista e curadora Kamilla Nunes.
12
Participantes dançantes: Bruna Granucci; Caetano Gonçalves; Camilo Fernando Martins; Debora
Pazetto; Deise Lucy Montardo; Diana Gonçalves; Josiane Fonseca; Laura Rotter Schmidt; Luciana Moraes;
Juliana Hoffman; Kamilla Nunes; Kátia Veras; Karin Veras; Marco Aurélio Da Ros; Marisa Alina Solá;
Mônica Hoff; Patricia de Melo; Rodrigo Gonçalves; Silvia Zanatta Da Ros e Simone Bobsin.
13
A edição em vídeo de Danças em pandemia pode ser visualizada no seguinte link:
https://sitepublicacao.wixsite.com/agora/danças-em-pandêmia
14
Segundo Fabião (2008) um programa é um ativador de experiência. Longe de um exercício, prática
preparatória para uma futura ação, a experiência é a ação em si mesma.
15
Os trabalhos pioneiros de Anna Halprin, na década de 1960, são fundamentais para o entendimento do
conceito de tarefa na dança.

121
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que desmotivaram um terço dos jovens brasileiros a não buscarem trabalho16. As mortes
decorrentes da doença, até o dia 01 de novembro de 2022, chegam a 688 mil pessoas17.
O declínio da saúde mental das populações é uma da heranças mais presentes desde o
início da pandemia do Covid-19, com sintomas de sofrimento psíquico, tais como
ansiedade, depressão, medo e estresse.
Quanto às artes do corpo - teatro, dança e performance, cujo compartilhamento de
artistas e seus públicos no mesmo espaço-tempo em um local presencial tem balizado
historicamente o trabalho de artistas e coletivos, elas precisaram elaborar processos de
deslocamento e de invenção de outros modos de estar junto, de trocar experiências,
conhecimento e afeto. A noção de virtualidade ganhou uma outra dimensão no período
pandêmico com a profusão de iniciativas de professores em aulas via plataforma digital.
Muitos/as artistas adotaram as mídias digitais como procedimento de criação, e não
somente de registro ou divulgação de sua produção. Esta recente produção, em diferentes
contextos e países, notadamente no campo da dança, mostrou um fôlego significativo ao
tencionar o entendimento do que seria estar presente em um evento performativo.
Por que, então, insistir na presença dos corpos em um mesmo espaço-tempo físico no
momento de tamanha incerteza quanto às possibilidades de convívio? Me fiz esta
pergunta algumas vezes antes de propor a realização da ação em uma praça da cidade de
Florianópolis ao Grupo de Estudos em Práticas Artísticas, Políticas e Curatoriais, coletivo
este participante da performance Danças em Pandemia. A decisão final de realizar a
proposta emergiu do próprio grupo. Um dos fatores que mais impulsionaram este
inadiável desejo de presença em plena pandemia foi a possibilidade de poder vivenciar,
após alguns meses de isolamento social, afetos alegres propiciados pela potência do
encontro.
Todos os cuidados foram tomados, no sentido de mantermos o afastamento
recomendado pelas autoridades sanitárias e o uso de máscaras num espaço aberto e amplo
que favorecia o distanciamento. O estar junto numa ação artística, fato que em um outro
tempo e contexto pareceria “normal”, converteu-se em um acontecimento singular para
todos/as/es. Aos poucos, as danças ainda tímidas de cada um/a foram se convertendo em
danças menos previsíveis. As figuras geométricas desenhadas no solo da praça com giz
de cera, em cores diferentes, orientaram a disposição dos participantes no espaço. Vale
ressaltar que o piso da praça apresentava já um fundo geométrico de cor cinza formado
por quadrados e círculos, como é possível observar nas fotografias. Círculos e linhas
formaram diagramas que foram transformados pelas sensações e afetos vividos pelo
grupo no momento da ação. A passagem pelos afetos escolhidos para a performance, ou
seja, da ética duvidosa para a raiva desenfreada, da vergonha alheia para o desamparo
total, do medo profundo à verdade falsa, da segurança ilusória à paciência esgotada e do
desejo impedido à razão perdida era realizada em uníssono pelo grupo, que ocupava junto
cada uma das “casas” do jogo de figuras.
A escolha do local não foi aleatória. A Praça Tancredo Neves, mais conhecida como
Praça dos Três Poderes, localizada entre os edifícios da Assembleia Legislativa e Tribunal
de Justiça de Santa Catarina, sempre foi palco de grandes manifestações democráticas,
culturais, assembleias de trabalhadores e festas populares, como o carnaval. Neste
sentido, a dança epidêmica, ao ocupar a praça, propiciou um momento de respiro e de
insurgência em tempos de retorno incerto para uma desejada e talvez improvável
normalidade.

16
https://piaui.folha.uol.com.br/uma-geracao-de-bracos-cruzados/
17
https://g1.globo.com/saude/coronavirus/

122
Corpos que Dançam | 2022

Referências

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https://doi.org/10.5965/14145731033920200214
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prescritiva da harmonia cósmica e política na França (1610-1661).
https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-11122015-
121738/publico/2015_ClaraRodriguesCouto_VCorr.pdf
Fabião, E. (2008). Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. Sala
Preta, 8(0), 235. https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v8i0p235-246Foster, S. L.
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Guilbert, L. (2000). Danser avec le IIIe Reich. Les danseurs modernes sous le nazisme.
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Kirstein, L. (1975). Nijinsky Dancing. Alfred A. Knopf Inc.
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Meyer, S. (2013). Performatividades em dança: atos que reposicionam corpos, que
reinventam mundos. Instituto Festival de Dança de Joinville (Org.). E por falar
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Nijinsky, R. (Org.). (1985). O diário de Nijinsky. Rocco.
Nunes, K. (2020). Agora começou antes. https://sitepublicacao.wixsite.com/agora/ágora
Paiva, B. (2020). Novas coreografias sociais pós quarentena: a sociedade (e a escola)
reinventada?. https://medium.com/@brunaepaiva/novas-coreografias-sociais-
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Waller, J. (2009). A Time to Dance, a Time to Die: The Extraordinary Story of the
Dancing Plague of 1518. Icon Books.

123
Corpos que Dançam | 2022

Embodied inquiry for choreography in film

Giselle RUZANY
The George Washington University Corcoran School of Arts and Design
[email protected]

Abstract: In this article, the author describes what embodied inquiry is and how to use
this method to choreograph in relationship to a topic one wishes to research. The author
reviews contributors to embodied knowledge in the field of psychology, dance
choreography, and education during the transition in the 1900s when film, as well as
research that recently started to use embodied inquiry was being developed. The author
describes how to place the embodied choreography in a site of choice, edit the film and
create a narrative based on the dance. The author argues that by giving voice to own
choreography that has been edited into a 2 to 4 minutes film, dancers are claiming their
rightful spot as embodied inquiry experts. The author gives different examples of
embodied digital storytelling films and expands on analysing its usefulness in research.
Finally, the author weaves in and out between being a dancer, a filmmaker, a storyteller,
a psychotherapist, and a researcher, reintegrating ideas that may be lost in the wisdom
within one’s collective implicit memory. Examples are given from autoethnography
processes conducted during the author's doctoral studies.

Keywords: embodied inquiry, digital storytelling, choreography in film,


autoethnographic though dance, art-based research

Resumo: Neste artigo, a autora descreve o que é a investigação de consciência corporal


em filme numa narração digital de história e como utilizar este método para coreografar
em relação a um tópico que se deseja pesquisar. A autora revê as contribuições para o
conhecimento da cinesiologia associada a linguagem no campo da psicologia,
coreografia de dança e educação na transição do século XIX, quando o filme e o método
de investigação, que recentemente começaram a ser utilizado, o inquérito da pesquisa
baseada em consciência corporal, estava a ser desenvolvido. A autora descreve como
colocar a coreografia em filme baseado numa pesquisa feita por uma consciência
corporal, como editar o filme e criar uma narrativa baseada na dança. A autora
argumenta, que ao dar voz à própria coreografia editada num filme de 2 a 4 minutos,
o(a)s bailarino(a)s reivindicam o seu legítimo lugar como especialistas em pesquisa
usando a consciência corporal como foco de sabedoria. A autora dá diferentes exemplos
de filmes da linguagem que se original ao descrever a dança e expande a análise da sua
utilidade na investigação. Finalmente, a autora tece entre ser bailarino(a), cineasta,
contador de histórias, psicoterapeuta e investigador(a), reintegrando ideias que podem
ser perdidas na sabedoria dentro da memória colectiva implícita de cada um(a). São
dados exemplos de processos de auto-etnografia conduzidos durante os estudos de
doutoramento da autora.

Palavras-chave: pesquisa utilizando consciência corporal, narração digital de histórias,


coreografia em filme, auto-etnografia através da dança, investigação baseada na arte

124
Corpos que Dançam | 2022

Our sense of Being-in-the-world comes through story and technology.


While oral traditions continue to endure essentially unchanged,
the written word began to ride the age of technology.
Eventually, the oral tradition, too, became entwined
with technology. (Irwin, 2014, p. 40).

Pushing dance into the digital age

Before language and verbal communication, there was dance. With that statement, one
may erroneously conclude that, historically, dance is an ancient, outdated, and primitive
way of communication. Since the moment in time our civilization found verbal language,
one could argue that dance lost its purpose. Now, we have words to communicate more
effectively, so why dance? Many historians have stipulated that dance was used for rituals
to heal, pray, connect as a community and culture, share affinities with one another, and
court the other into a partnership. In all these purposes, new methods have outdone dance
with more effective practices: nowadays, we have medicine to heal, sacred texts to follow,
and words to worship the divine, language to connect and software apps to do the courting
for us. So why spend time with embodied inquiry for choreography in film? Isn’t our
contemporary world too evolved to still engage in the ancient practice of dance?
Maybe dance purposes was not to facilitate the automation of our society by
functioning as a tool. Maybe dance purpose is to be in a process of discovery of one’s
ever-changing lived experience. Dance might not have been valued due to its momentary
and ephemeral existence. For a long time, like a flower, it bloomed and blew in the wind
before anyone could capture into an object. Nevertheless, dance holds ancient wisdom. It
seems logical to conclude that even before there was proof of the existence of dance
through sculptures and ancient texts, dance was already part of human expression. Dance
might not leave traces in forms of artifacts, but it can change a person in space and time
for eternity. Thus, ancient dance exists in our embodied collective memory. Nevertheless,
because of its capacity to not leave a residue behind, which people can expose without an
embodied involvement (i.e., artifact), it has lost civilizations’ patronage.
It is only very recently that we have found ways to preserve dance, and that was with
the invention of film at the late 1800s. With the invention of film, we began to have
recordings of dance. As film became more accessible to the masses, dance entered a new
era. Films can document dance performances as well as record a dance as part of a film.
Today, one may search the web and find many dance films. Most dance films are old
documentation of performances or dances made for film as entertainment or instruction.
However, a question remains: Can dance still function as a conduit to researching ancient
preverbal wisdom? Mitchell Kossak (2018) speaks of art-based research as a
methodology that can provide a sense of meaning that cannot be articulated when using
verbal language alone. Thus, can dance assist our civilization in achieving a more accurate
form of phenomenological research?
In this article, I am interested in looking into film as a safe container for embodied
inquiry as a methodology for research. Allowing dance to be the main path for
information where thought is generated through movement. The movement then can be
the main motivation for verbal expression. Furthermore, considering that the virtual web
is increasingly the main form we communicate and connect, how can dancers use this
space to push our embodied art form to the forefront as an answer to the need for
embodied intelligence in our transition into a digital native society?

125
Corpos que Dançam | 2022

Embodied inquiry in digital storytelling

Recently, our civilization has become even more interdependent and intertwined with
technology. In 2020, the world faced a pandemic that forced many to isolate and
communicate only via video platforms. Our life experience has become accustomed to
using cameras and sharing the camera views of films and pictures online. Classes, artistic
endeavours, and business exchanges became, essentially, a virtual phenomenon. When
communication mainly became safe when virtual, an acceleration towards embracing
digital storytelling seemed inevitable. Pre-recorded classes became available, as much as
instructional and informational videos of all kinds. Dance, which is such an embodied
and communal experience, seemed to, in some aspects, rise to the occasion, but in others,
it just ended. Dancers that might have been on the verge of their breakthrough gave up
the whole profession. I personally know of many, not only College age students, but also
choreographers over 40, who decided to just change professions. Since I was already
exploring film, I somehow kept going through my research I was engage in my doctoral
studies.
In research, the use of film is defined as a post phenomenological methodology. The
idea is that to study the phenomenon of a human experience, one should consider
technology and the body as essential variables in research. In other words, post
phenomenology sees the human experience of our times embedded with technology and
lived body (Vacchelli, 2018). Embodied post phenomenological inquiry, described by
Elena Vacchelli (2018), is an embodied process that can become the source for digital
storytelling, where the story comes from embodied research into the topic in question. In
her research, she uses a post-feminist approach to research the embodied experiences of
migrants living now in England (Vacchelli, 2018). By diving into an artistic inquiry, the
stories of migration became grounded in what the body needed to express when it came
to the experience of choosing to live abroad.
In an autoethnographic research, I explored my experience as an intergenerational
migrant, creating an embodied choreography in film that contains a verbal narrative of
the experience of myself watching the dance in Choosing to live abroad (Ruzany, 2019).
In this film, there are at least three levels of discoveries. One is the internal movement
creation that I began to insert into my choreography. As the emotions of nostalgia and
feelings of marginalization were challenging to tap into, I titrated with movements of
ballet. This titration made it safe, where there was a combination of embodied inquiry
with known dance steps. The choreography became a quilt of past and present here-and-
now movements that were created for the purpose of exploring my experience of living
abroad. Second discovery was the act of filming, which holds three essential elements.
The first one is that even though I created the dance in the United States, it was filmed
while visiting where I grew up, in Rio de Janeiro, Brazil. Second, the cameras were being
held by my mom and my older son, creating an intergenerational and virtual audience.
And the third part was choosing to include murals painted more recently in the area where
I decided to make the dance installation. My third discovery was made once I was back
in the USA. I took my favourite images and compressed all the images into a 2 to 4
minutes film. This process allowed me to view the dance from an editor’s perspective,
where I created a narrative to describe the movements. By verbalizing what I saw in my
dance, I was engaging with a projective interpretation of the film about my movements.
In my private world, I began to understand how these movements resonated in my body
when I saw them, and with that, a story was verbalized. I called the act of creating a story
that came out of my dance as an embodied narrative. Later I learned that what I was doing
was very similar to what others called digital storytelling. So, I began to call this process

126
Corpos que Dançam | 2022

embodied digital storytelling. The words and thoughts came from an embodied
experience, choreographic installation, and film. Here are the words that came into
expression from the dance that was created while exploring my integrational migrant
status:

I’m in Rio de Janeiro, Brazil.


This is a new part of town.
I haven’t seen these murals before.
They are beautiful.
I was raised here.
From ages 3 to 23, this was my home.
Being raised in Rio, you always know where the ocean is and where Corcovado is.
It is a huge sculpture of Jesus Christ looking over the city.
Growing up Jewish, it made me feel different.
Every summer, we went to Israel to visit my family,
They spoke Portuguese to me, so I never learned how to speak Hebrew.
And now we come here with my kids,
So, they can meet my Brazilian family,
they speak English to them, so they never learn how to speak Portuguese.
Right now, my mother is holding one camera,
and my older son is holding the other.
They have different perspectives of what I’m doing here.
Creating these movements from a feeling of nostalgia,
searching for a home,
searching for a place where I belong.
Do I belong where my mother lives?
Or do I belong where I am raising my children?
I miss this place sometimes.
I must come here,
and touch the floor,
feel the breeze,
hear the ocean,
the sounds of the birds,
and then I can come back to where I live now.
And wait for the next visit (Ruzany, 2019)

The transcript of the dance seems to capture the dance and the moment of its
exploration. It narrates the place, the filming, and the experience of the space. As the
choreographer, dancer, film editor, and narration composer, I developed compassion for
my process. The film felt honest, and the words felt transformative. The result of engaging
with creating an embodied inquiry for choreography in the movie was one of a sculptor.
In the end, I found myself with an artifact or a product to look upon and see where I was
that day (with that body, perception, and artistic and verbal response). By creating a
narrative from the film, my thoughts felt clear, and the experience of migration resonated
that many that watched it and reached out to me to let me know. As Einav Katan-Schmid
(2016) explains, “making implicit knowledge explicit adds meaning to a phenomenon”
(Katan-Schmid, 2016, p. 5). By receiving environmental support, I found a new sense of
belonging.
Recently, philosophes such as Lakoff & Johnson (1999) and Shay Welch (2022) are
recovering Maurice Merleau-Ponty’s (1965) lived body concept and reclaiming the body

127
Corpos que Dançam | 2022

experience as the original thought. “From a biological perspective, it is eminently


plausible that reason has grown out of the sensory and motor systems and that it still uses
those systems or structures to develop from them” (Lakoff & Johnson, 1999, p. 43). Many
researchers, such as Les Todres and Laura Livingston, describe how to integrate the body
into research. Using embodied inquiry as a methodology to research in the field of
psychology helps achieve a deeper understanding of healing. Embodied inquiry for
choreography still needs to be defined and described to the level with which other fields
of study already began doing so. If dancers begin to share the method in which it is
possible to listen to one’s body, maybe dance can claim its centre stage as experts in
embodied inquiry and post phenomenological research. Nevertheless, describing the
process of embodied inquiry in choreography might take some time.
Even though the concept of embodied inquiry has previously been explored in research
(Ellingson, 2017; Todres, 2007; Snowber, 2012), I stumble into it during my doctoral
studies in expressive arts therapy. One of my first assignments was to write a paper on
my philosophical foundation for research. With this thought, I created a film called
Philosophical Foundations (Ruzany, 2019). This short film was my first dance film using
a narrative to make meaning out of my dance. This process began because I decided first
to explore the question of what my philosophical foundation through dance was. How do
I find what I know? What is my epistemology? How can I find the words to explain how
dancers and choreographers describe their theory of knowledge? What would it be for my
own body to answer my philosophical foundation through dance? This dance had a similar
process to the dance “choosing to live abroad,” I first made the dance, then chose the
location to film it, and lastly, after selecting the best footage, I narrated what I saw in the
dance. Here are the words that I used to describe the dance as I searched to define my
philosophical foundation:

Awake,
I must awake,
I feel the floor under me,
this land
this earth
this planet
I feel that air around me
I find myself jumping with abandon
I reach towards the sky
I’m here
I must measure my steps
I’m not sure where I’m going
I’m in a process of discovery
as they move through space
I don’t see myself
As one thing or another
but just the experience of this moment
in a post phenomenological experience, I am the experience
in the context of this space, I’m about to enter
I stand at its door
I feel the ancestral legacy under me and around me
and I feel my ancestor’s legacy dancing with it
the colour of my skin
my culture

128
Corpos que Dançam | 2022

my language
my curly hair
everything is influencing my thoughts
my decisions, my choices
I am not that free
I am in context-bound
I am here
in this body
in this place
in this experience
I breathe
I feel
I am
That influences how I am with others
and how I research others
I will reach for knowledge (Ruzany, 2019)

In this narrative, there is a prominent art-based research paradigm. When opening


space to listen to one’s body, the mind needs to slow down and ask the felt sense to speak
its truth. Laura Rappaport had a similar experience, “Through the artistic process, I was
able to make discoveries and have insights that could not be known otherwise” (2013, p.
99). Thus, the art of dance became the foundation for my discovery. As I engaged in
embodied inquiry to create a choreography to answer my question, I found a method to
understand the phenomenon of the lived body experience. My words to explain my
philosophical foundation actually made sense to me only when I tried to narrate what I
saw watching the dance. As I moved into space, I noticed that my body was creatively
adjusting to the context where I found myself. Coming from a postmodern philosophy,
my experience was limited to the context I saw myself in. I was being filmed by one
iPhone camera on the floor and one held by my husband. The phones and my husband
worked as witnesses, and my process seemed to help me differentiate from everyone
around me. This differentiation was an embodied understanding of my bias as a
researcher. The narrative process gave me an informative text that originated from an
embodied experience. The method showed me how embodied inquiry can be used as a
methodology to search for knowledge.
Literature has shown that embodied inquiry looks to find information from a bottom-
up approach, where embodiment is what creates thought (Ellingson, 2017). Ignoring the
body is ignoring part of the truth, part of the story, and reality itself (Lakoff & Johnson,
1999). Katan-Schmid (2016) argues that dance as an embodied philosophy conveys that
“shapes and postures’ ‘are inseparable from consciousness itself and the wholeness of
human experience” (Katan-Schmid, 2016, p. 10). The dance happens on two levels; first,
the body’s intelligence acts as a thought process, then the movement expresses the
wisdom in being it. By bringing words to translate my own movements, I am taking
ownership of my own embodied expression into the verbal realm.
Body as the thinker is not a novelty for dance choreographers. However, there seems
to be a gap between researchers and philosophers engaging with embodied inquiry and
the dancers trying to be understood and valued. As embodied inquiry begins to be
accepted in research and academic circles, it is essential not to side-line the teachings we
have accumulated over the last 150 years about embodiment as dancers and
choreographers. The professional dancer is a movement researcher, searching for ways to
embody the dance as well as the lived experience of our evolving history.

129
Corpos que Dançam | 2022

Influential movement researchers

To understand the legacy of embodied inquiry from a movement research point of


view, we must return to the end of the 19th century. With the liberation of Victorian
corsets, women began to move from being second-class citizens to having a voice and
reclaiming their bodies. Beginning with François Delsarte (1811-1871), women began
their exploration of moving freely (Strauss, & Nadel, 2012). Delsarte, who delved into
the meaning of a gesture, believed there were three levels of embodiments: physical,
emotional, and spiritual. These were planes of the body that could coexist in time, space,
and movement. He looked into categories of motion through form, force, design, and
concentric (toward the centre) and eccentric (from centre) movements (Strauss, & Nadel,
2012). Even though he was initially a musician, his embodied intelligence would
influence many dancers, and his methodology would guide women looking to reclaim
their bodies and how experience freedom through movement. His method seems like a
model for embodiment. An important disciple of Delsarte is Genevieve Stebbins (1857-
1934).
A student of Stebbins, Bess M. Mesendieck (1864-1957), would influence women’s
liberation by creating a method that was based on her medical studies in Zurich. The
method relied on proprioception and kinesthetic awareness. These specific sensations of
the body in movement and in space are essential components of embodied inquiry. A
famous student of both Stebbins and Mesendieck, Elsa Gindler (1885-1961) would work
on connecting movement, posture, and dance with breath through mind and body focus.
(Gregory, 2001). She refused to codify her class but kept her class journals, which
unfortunately would be lost in World War II when she was discovered hiding Jews, and
her studio was burnt to the ground; “She found a number of subversive ways for the use
of her studio, e.g., sheltering her Jewish students, while classes often took place in bomb
shelters” (Oberem, 2016). Because of World War II, the hub of movement research came
to the USA. In search for safety, dancers, and psychologists that were exposed to this
embodied movement, found themselves leaving Europe.
A critical influential movement researcher and psychologist was Wilhelm Reich
(1897-1957) who was exposed to Elsa Gindler’s dance class by his wife and daughter.
Gindler used experimental body awareness and mindfulness exercises to teach Reich’s
wife and friends to dance through movement and breath. Reich, a student of Sigmund
Freud, began to see the body and sexual freedom as the most crucial aspect of health and
well-being. He would develop a system of psychoanalysis that focused on understanding
one’s individual character. Through different embodied experiments, the character could
find freedom from the trap of one’s muscular armour and viscera. Rather than trying to
heal through the mind, the idea was to heal the mind through the body (Gregory, 2001).
The idea of embodied awareness and embodied inquiry as the source of healing through
the arts and somatic awareness began to be formulated in this interwar time period and
many of these experts continued in America after World War II.
Still in the field of psychology, escaping World War II, Fritz Perls (1893-1970) and
Laura Perls (1905-1990) would create a new psychological orientation in the USA called
Gestalt Therapy. In the here and now, the body becomes the path for growing out of
unhelpful habitual patterns. In 1940, migrating from Germany via South Africa to New
York City, Laura Perls and Fritz Perls brought their studies of psychology and embodied
movement to North America. Fritz Perls had Wilhelm Reich as his therapist (from 1931
to 1932) and would expose him to many concepts of Somatic psychotherapy (Smith,
1975). Laura was a student of Elsa Gindler, took her classes in Berlin and understood the
benefits of an embodied movement experimentation (Gregory, 2001; Oberem, 2016).

130
Corpos que Dançam | 2022

Revolutionary dancers influenced by Gestalt Therapy include Gabrielle Roth and Anna
Halprin. These dancers would find that experimenting with embodied inquiry was an
artistic process on itself.
Fritz Perls brought Gestalt and dance to the Esalen Institute in Big Sur, California.
Founded in 1962, Esalen was the home of many healing fields, including humanist, Zen,
Buddhist, phenomenological, embodied, and artistic experimental talks, and workshops.
Many psychotherapists would meet and share their techniques of relational embodiment
and open-mindedness. Here theatre, dance, music, psychotherapy, meditation, LSD, and
Marijuana could coexist and converge into knowledge. Gestalt Therapy was an essential
presence in Esalen and, to this day, is a place to study it. Fritz Perls valued experimental
and conscious dance and asked Gabrielle Roth (1941-2012) to teach dance at Esalen;
there, she developed the “Wave of the 5Rhythms,” a dance technique still used as a
healing experience. The five phases of movement begin as flow through the body, then
moves into a rhythmic staccato beat exploration, enter into even higher intensity through
a bit of chaos, then release into lyrical and stylistic expression, and end into stillness or
minimal movement. This whole wave creates a calmer mind, a sense of freedom, and
gratitude towards self, others, and the Universe. It is like a trance or a natural high that
transcends talking. Experimenting with embodiment from different perspectives fits
Gestalt Therapy theory as well as Roth’s studies in other ancient and indigenous cultures.
Also, in California, Anna Halprin (1920-2021), a pioneer of postmodern dance and in
the use of expressive arts for healing, would influence influential postmodern dance
pioneers. “I think what I was able to do was to allow them to be themselves,” Ms. Halprin
said.” (Seibert, 2017). From Ana Halprin’s deck, many would learn about using dance as
healing. “On the hillside in the shadow of Mount Tamalpais, north of San Francisco, amid
the redwood trees, lies what is arguably the most important outdoor deck in American
dance history” (Seibert, 2017). She rejected the techniques of classical ballet and modern
dance and integrated improvisation into her work, which the dance community viewed as
outrageous. She focused on dancers’ experiences, not their skills. In her vision, the body
was not supposed to follow a certain aesthetic but rather embrace its individuality.
Dancers weren’t supposed to imitate others but rather express their unique selves through
their own body shapes, abilities, and their limitations. They were taught to be true to their
selves and their intentions. She taught them how to move in response to earth and to see
the body as one phenomenon (Seibert, 2017). She created improvisation structures and
performed dances to heal cancer, which she was diagnosed with in 1971, the planet, and
the community.
Halprin’s students founded Judson Dance Theater in NYC, which challenged the
traditional rules of choreography by refusing to have a methodology or technique in their
process of making parts for the performance. And some of these dancers later joined
Fluxus, another dance/experimental art performance that launched a new wave of
interdisciplinary artists, including Yoko Ono, Lennon’s future wife. Here the idea of dance
as a place for free embodied expression would cross the boundaries of dance and become,
for a moment, equal collaborators with experimental musicians, postmodern visual artists,
and poets. The point was to embrace bodily freedom and resist tradition, dogma, and
systemic imprisonment (Biba, 2018). Few expected Halprin’s vision to stick, partly
because of the difficulty of teaching a practice that refuses methodology and system. But
it did.
From a different lineage Émile Jaques-Dalcroze (1865-1950) created a methodology
called “Eurhythmics.” This system also connected the relationship of eyes, ears, and
memory to one’s kinaesthetic awareness and movement, which were called kinetic-
rhythmic-musical correlations (Strauss & Nadel, 2012). Again, another musician found

131
Corpos que Dançam | 2022

that movement expression helped take the musician to another level of artistic mastery
and synthesis of musical and rhythmic logic. Likewise, this pioneer of movement
embodiment would influence every influential dancer of the time and beyond, from ballet
to modern and musical theatre choreographers and teachers.
Music and dance were also used for artistic movement research by Isadora Duncan
(1877-1927). Duncan would dance to her mother’s piano as a child, would become a rebel
against fixed methodologies. She believed no one should have the same dance, but their
own movement that would arise from their own movement research. In her
autobiography, she would write about her experience moving from her solar plexus when
her original inspiration arrived. She believed in being moved by the music and
inspiration/impulse and would hold still for up to 45 minutes, sometimes awaiting her
body to begin the dance. Duncan became famous in Europe and Russia at a time when
members of high society were craving freedom from conventional clothes, ballet, and
theatre. Her lack of respect for any tradition must have been a breath of fresh air. But most
importantly, the idea of embodied dance meant to be listening to the body for inspiration
in relationship to music. This internal motivation for the dance is the somatic information
used in embodied inquiry for research.
Another leader in movement research and embodied inquiry that would influence both
Delsarte and Dalcroze was Rudolf von Laban (1879-1958). Influenced by ancient dance
and rituals as well as North African and Slavic dances, he would begin to codify his ideas
of movement notation and choreography by studying space, time, weight, and flow. Laban
codified the movement’s quality by observing the movement’s shape and intensity of
effort, contrasting fighting, and yielding with planes of movement. Laban was initially
cooperative with the pre-World War II socialist German government, but Nazi authorities
censored his choreography for the 1936 Olympics opening ceremony, and he
subsequently left Germany for England to eventually join Kurt Jooss at Dartington Hall,
in Devon. Laban studies are a foundation for many influential modern and postmodern
dancers, dance movement therapists, and choreographers.
In terms of embodied inquiry, Laban helps the choreographer not only have a language
to name the movement but also notice what is missing in the choreography. When it comes
to embodied inquiry, having Laban’s list of movement efforts can help the dancer push
their movement preferences and affinities to a larger window of possibilities. Laban
(1879-1958) would build on his principles and influence Kurt Jooss (1901-1979), who
would give him a home to continue his work when Laban was exiled. Later, Jooss would
influence Pina Bausch (1940-2009) who would bring to the world another level of
embodied inquiry. Pina’s work could be seen as an ethnographic work, where the
subjective and embodied expression of her dancers exposed the process of the work itself,
as well as her journey of overcoming her challenges in life reflected in the act of
choreography (Norton Dias, 2021). Pina would then influence Ohad Naharim, who would
create a language of embodiment, he called gaga (Perron, 2007).
From these early embodied researchers, I found myself being influenced by two
important embodied choreographers; I was exposed and had the pleasure to see Pina
Bausch with my own eyes when I lived in Rio de Janeiro where she went to work on Água
(2001), and later I was also able to go to Israel and take classes with Ohad Naharim. When
I watched both, I was in awe at the choreography of Pina Bausch (1940-2009) and Ohad
Naharim (1952- present). To me both exemplified what I felt dance could be: an
embodiment of the lived experience which can evoke strong emotions. Their work
touches on a collective implicit memory, where one recognizes a level of absurdity when
it comes to the human experience, and it is felt as a visceral phenomenon audience
member recognizes within themselves. Both influenced me in how I see dance and engage

132
Corpos que Dançam | 2022

in embodied inquiry. Now when I watch films with their choreographies, it affects my
core, shifts my energy, and creates in me a deep desire to be honest with what is my lived
body experience by engaging in embodied inquiry for choreography.

Choreography and storytelling in film

Creating a safe place in a film by adapting the dance to a place that felt would support
the choreography was a creative adjustment during my virtual doctoral program during
the pandemic. Nevertheless, once that bridge was crossed, these short films allowed me
to hold that moment of embodied truth within the safety of the virtual realm. No one
would throw eggs and stones at my body, since that would only result in having the person
ruining their own computer. There was also a secondary discovery. It was that I could
choose what I wanted to share by editing out the parts that felt unsafe, not fully embodied,
or not fully captured by the camera. This editing power allowed the dance to be
transformed into a new medium or artistic expression as a film, as well as allowed me to
engage with the material from a director’s point of view. As I edited the film, I became
that provider and visionary. From this place as editor, I started to find safety and also my
voice.
I remember watching choreographies that used using storytelling, dialogue, and dance
comments in their dance pieces (e.g., Maurice Béjart, Bill T Jones, and Mark Morris) And
as I looked at my dance, I started trying to find words for what I saw in the edited film.
And by having time with the material, I found how to create a sacred temple where I could
explore my embodied truth with dance, film, and storytelling. The truth was what I saw
in the dance film. Here is an embodied narrative of a dance I engage with, in relationship
with my paternal grandmother:

GR EDS’1 film transcript (Ancestral loss)


I am a fragment of you
A small part that continues
I humbly invite you for a dance with me
I chose this space: in between
For our dance
The hallway between the stairs
Looking down the stairs
I see the street outside
When I see that street
It reminds me
Of your story
Telling me about your parents’ death
In Poland
You left them behind to help your sister
Travel to Brazil
With her four children
Being stuck on that ship
Wondering about your life
Your future
This must have been quite difficult

1
Giselle Ruzany (GR) embodied digital storytelling (EDS) film transcript on the theme of ancestral loss.

133
Corpos que Dançam | 2022

I wish I could have grown up near you


To hear about your stories
But when I was born, you were already in Israel
And I was raised in Rio
It must’ve been really hard
To have been in these different cultures
With different languages
Different values
Different dances
It seems like nobody really liked you
Everyone seems to be ashamed of you
They would say:
Well...
Your grandmother was a difficult person
But I see how that is how you kept your fight
Your rhythm
Your demands... Your order
You kept going
You would tell me about my pink glasses
Not paying attention
To the dangers of this world
I look down to the street one more time
And I send a prayer to your parents
To our family
I am alone now
And I clear the space
To honour my frustration
Honour your love
And good wishes
Thank you (Ruzany, 2020)

In this narrative, I describe the dance as I saw after compressing it to a 2 to 4 minutes


film. In the process, I found many new thoughts I would not have if asked, but it came
from the dance, and it surprised me as I did not expect it. One discovery had to do with
the place I chose to dance. As I saw the film, it jolted a memory I did not know I had. It
reminded of a transatlantic ship, and the dance became about a memory of my
grandmother crossing the Atlantic Ocean without the possibility of return to her
homeland. She arrived in 1939 to Rio de Janeiro, exactly on the month that her town was
invaded by the Nazi regime. The second discovery that came from the dance itself, was
the feeling that as my grandmother, I felt the hardship and fight for survival in a new land.
This experience made me understand why she would fret over my life with fearful and
sceptical eyes.
The dance created information that I did not know I had within me. This implicit
memory was, in a way, my own personal truth that I did not know about until I engaged
with it. In a later film I name this process as an urban ritual, where I connect with the
sacred, spiritual, and energetical space present when I invited an ancestor in the space to
engage in a dialog through dance. This transpersonal experience was described by
Abraham Maslow (1908-1970) in the later years of his life. Maslow, one of the pioneers
of humanism and the concept of hierarchical needs, described a need as an essential aspect
of one’s development of self-actualization. By dancing with my ancestors, I had an

134
Corpos que Dançam | 2022

embodied understanding of what Maslow was trying to bring into our awareness, where
the physical needs of safety, belonging, self-esteem, and self-actualization had another
level of understanding, which seemed to feel like a transpersonal one.
The process that I approached the dance with my grandmother and later with other
ancestors was like this: first, I made the dance choreography by building one movement
at a time on a string. The first movement was based on my own experience, the next
movement in the perspective of my grandmother’s place, and the third, in relationship to
the relational space between us. For each string of three movements, I found new
information. What felt like in the present moment, what I wished it felt like, what
obstacles were present between us, and how could we have been without them. Creating
each movement from a felt sense, the dance once made was installed and adapted in the
hallway. Then filmed by using a tripod, I edited, and narrated. The creation of the dance
followed Gestalt Therapy concepts of dialog and the cycle of experience. Using Gestalt
concepts to create dances in film illuminated the process of the relational field in place
attachment.
Here is the breakdown in creating the choreography from an embodied inquiry:

1 - Bring to the foreground of your mind your subject


2 - Feel the sensation in your body
3 - Notice in which way this sensation wants to manifest; this could be a shape, a
movement, a level, a direction, a breath, and so on
4 - Let the body sensation motivate the body into movement
5 - Let the body move until it finds the body movement sequence
6 - Repeat it many times until it feels polished enough that it feels like an embodied
procedural memory
7 - Let go of the movement and see if there is a sense of completion and satisfaction

Begin again from different perspectives:

1 - Put yourself now in the position of the subject of your choice; this could be an
ancestor like I did, or a place, or a tumour, or a child, or a socio-economical political
issue
2 - Repeat from this point of view
3 - Repeat from the point of view of the relational field, space, and environment
4 - Repeat from the point of view of an ideal situation
5 - Repeat from the point of view of the obstacles that blocks this possibility
6 - Repeat from the point of view of repair, healing, and gratitude
7 - String it all together and film it at least two or three times from different angles,
adapting to whole dance to the new location

Edit the film into two to four minutes and add the narrative by creating words for each
part of the film. Add any filters as a protection and safety exercise. Share with supportive
and artistic people. Write down your process and do many more!
In my dissertation, “embodied digital storytelling with ancestral legacy”, I found that
Gestalt was useful in creating an embodied dance dialogue with the dancer’s ancestor of
choice. Filming the dance in a specific space was a form to create environmental support
for that connection. Bringing an artifact owned by an ancestor or just the thought of their
existence created the conditions for a relational field and an embodied response that could
be recorded in film. The film then captured the embodied inquiry of one’s dance when
listening to the self, the other, and the relational field. These are three aspects present in

135
Corpos que Dançam | 2022

contact that Gestalt Therapy emphasizes when it comes to creating a dialogue and
engaging with attachment repair (Greenberg & Malcolm, 2002). Here is an excerpt from
my dissertation with one of my dancer participants located in Brazil at that time.
TP’s film begins with a lot of energy and jumps, settling into arms crossed. As she
dances with abandon, she begins to speak about her grandmother never having protection
and TP wanting to provide that. Her movements are full-bodied, using the torso, arms,
and legs to explore the space. The film is complex with many different camera angles and
always with a double image as if she is dancing with another. As she gestures her arms
and measures her body and then gestures strongly outwards, she uses a “sewing”
metaphor of how measurements do not work perfectly in real life. The two images create
a polarity of gentle and vulnerable movement with a strong and confronting image in the
front. She is able to make that connection as part of her grandmother, as she hid her
vulnerability and showed up to others as a difficult person. She begins to open her arms
and reach, grasp, and pull, as she speaks about both of them looking for connection. As
the movement of confrontation moves from the image in front to the one on the back, she
speaks about shifting her perspective and finding a celebration of acceptance. She finishes
by speaking of a repair with her paternal grandmother, as the second image disappears,
and a photograph of her young grandmother appears next to her. Here is TP EDS transcript
(Ancestral secrets):

O que eu vejo e o que eu sinto são coisas diferentes (what I see and what I feel are
diferente things)
Eu sou um terreno sendo preparado para novas descobertas (I am a land, preparing
for new discoveries).
Eu te convido a dançar e descobri também (I invite you to dance and to also discover)
Eu desejo te proteger (I wish to protect you)
Eu sei que você não teve proteção (I know you did not have protection)
E a gente vai costurar os tempos (together we will sew time)
Tempos rasgados, história rasgada (ripped time, ripped history)
Hoje está se costurando com ontem (today is being sewed with yesterday)
Na costura tem moldes, modelos manequins medidas (in sewing, there is molds,
models and measurements)
Tudo muito certinho pra cai bem ajustado (everything perfectly cut, to fit well tailored)
Mas na vida real não existe molde certo (but in real life, there no perfect fit)
As medidas não servem para nada (the measurements serve for nothing)
Percebi na frente, uma atitude de confronto, de afronta (Noticed in front, an atitude of
confrontation and insult)
E no fundo um desamparo, uma fragilidade, uma suavidade (And deep inside, a
vulnerability and gentleness)
Eu vejo nós duas abrindo espaço (I see both of us opening a space)
E buscando conexão, fazendo contato (Looking for connection and making contact)
Quando a gente muda a perspectiva (when we change our perspective)
Coisas que incomodavam, diminuem (things that were annoying...minimize)
Isso abre o espaço para uma celebração (this, open a space for celebration)
P’ra uma aceitação (for acceptance)
Nessa costura do tempo, eu recebo e ofereço poeira de estrelas (sewing time, I receive
and offer star dust).
Entre a gente eu vejo e eu sou um pouco meu pai (between us I see and am a bit my
father). (Ruzany, 2021, p. 140)

136
Corpos que Dançam | 2022

To see and hear all seven short embodied digital storytelling films with my research
participants’ ancestors, go to Embodied Digital Storytelling with ancestors (Ruzany,
2021).
These films are individual autoethnography embodied inquiry, where the dancer
choreographed in dialogue with an ancestor. In the narrative of the dance above, you can
hear the repair of misunderstandings and spirituality, even though the dance was done in
a very physical manner following the felt sensations of the body as the participant brought
her grandmother to the foreground. Here one can see in a dance transgenerational secrets
and trauma, as well as strength and resilience through the metaphor of the art of sewing.
All is felt in the body.
Similar themes across participants were found, including the fact that the research
conducted during COVID-19, and all dancers were dealing with isolation. During that
time, my dancers were having dialogues with their ancestors, who had survived the
Spanish flu of 1918. Furthermore, while they might have temporarily lost their jobs as
dancers, they danced with ancestors that survived the 1930’s depression. Many
participants found themselves reconnecting with these ancestors and better understanding
their traumas, and, therefore, their perspectives in life. With the dance, the participants
found the resilient story, the strength hidden behind the often-angry exterior. Most
interestingly, all dancers, who are usually very critical of their dancing bodies in film,
where only errors are illuminated, felt surprised that they loved the outcome. The films
were artistic, the dance well executed and completely free of their own judgment. I
believe this was achieved because the dance came from their own embodied inquiry. Also,
all participants that engaged in the embodied inquiry as a process to dialog with an
ancestor felt an unblocking of creativity, a connection to the ancestor and a sense of deep
resilience.

Embodied inquiry and safe space

To create these dances through embodied inquiry, co-creating a safe virtual space was
paramount. Safe space is discussed in psychotherapy and dance/movement therapy as a
place without judgment and with healthy boundaries. This means to be present without
bringing your own cultural, religious, social, political, and economic bias. To create such
a space, a health provider often maintains supervision as a place to self-check and observe
own unconscious bias, countertransference, and, therefore, lack of presence. Being biased
is not seeing your blind spots and not realizing the difference of experience that another
is presenting from a different seat.
Being present as a witness and not as a critic is a challenging activity. When a therapist
engages in countertransference, it means that one does not see the other but someone from
their past, engaging with the other from a pre-programed experience. To understand one’s
unconscious bias, the easiest path is to listen to one’s own body. To maintain one’s
availability to the other, one must keep checking in, observing one’s sensations, emotions,
and ability to stay in the here and now. Carl Jung (1875-1961) and Carl Roger (1902-
1987) spoke of the importance of the creative self and the need to engage with one’s active
imagination as a way to know thyself through the arts. Jung explored how he felt under
the influence of unfinished businesses left by his parents and grandparents, and more
distant ancestors.
There are some similarities in what the psychological and choreographer aim: an
embodied and balanced self. The embodiment and acceptance of the self can provide a
fulfilling and satisfying life. In psychology, a client is in the process of getting to know

137
Corpos que Dançam | 2022

the self in a safe space provided in by a relational therapeutic alliance. In Gestalt Therapy,
this safe place is provided so that the client can co-create experiments with the therapist
that will illuminate their relational experience. In Gestalt Therapy, the safe space is about
finding environmental support. How to be present to the here and now and bring to the
forefront and into figure what can be of support. These early psychotherapy body-oriented
experts would influence dance and psychology into returning to the body. Therefore,
when working with embodied inquiry for choreography, it is essential to be aware that
one might encounter a dancer’s implicit and nonverbal memory. Creating space for a safe
investigation without “flooding” the dancer becomes very important. By “flooding”, I
mean to overwhelm the dancer with information that freezes the dance instead of moving
into safe expression. If the expression is beyond one’s capacity, this could also be an issue.
Cautiously, as choreographers using embodied inquiry, it is important to understand that
authentic expression of one’s internal world needs to be titrated with a healthy dose of
external support and contact.
The body holds historical wounds which can reveal trauma and resilience, oppression
and inner strength, marginalization and belonging (Caldwell & Johnson, 2012, 2018).
Postmodern choreographers like Pina Bausch and Ohad Naharim have been living in the
margins of society, looking into the body not to heal, exercise, or entertain but to express
an embodied experience of one’s experience through an embodied artistic inquiry. Both
children of the World War II conflict endured boycotts and the transgenerational legacy
of war. Their dances evoke a visceral response from their audience. When one watches a
choreography from an embodied inquiry, there is no separation of mind and body, only
an embodied understanding of a collective felt sense. As Laura Ellingson (2017) explains
about qualitative and phenomenological research, “Traumatized body-selves resist the
body-mind dichotomy with embodied memories, visceral emotions, flashy responses”
(Ellingson, 2017, p. 74).
Embodied inquiry as movement research for choreography in film can capture the
internal motivations for the movements and the environment that the movement is in
dialogue with as a topic of study. Celeste Snowber (2016) wrote about the body’s
connection to the history of one’s environment: “The scars of the land are within our
bodies” (Snowber, 2016, p. 1276). In her book called Embodied Inquiry, Snowber wrote
about living fully from an embodied place where the breath was free and infused with
embodied experiences that could be captured into writing and artistic expression. She
defined longing as a threshold space filled with nuance and subtle messages of yearnings:
“I often wonder how long the plants and flora have been waiting for someone to dance
there” (Snowber, 2016, p. 1269).
Another researcher that describes the process of embodied inquiry is Todres (2007).
He used the concept of the felt sense coined by Eugene Gendlin (1982). By describing
how one can listen to one’s body, and name that sensation or felt sense, one can create a
narrative, or embodied language, to one’s embodied research. The intention is to include
what a participant in research chooses to say, which might be different from what the
body has to say. By using implicit and explicit knowledge, there is a chance for a more
holistic understanding of one’s multiplicity of perceptions. “Embodying the language,
languaging the body: each has its day in an ongoing process” (Todres, 2007, p. 34). To
create a choreography from an embodied inquiry, each movement must come from a felt
sense that gets to be expressed. Then the narrative will reveal what is present. Embodied
art-based research is the dancers’ job.

138
Corpos que Dançam | 2022

Conclusion

In creating an embodied choreography that can stay in its original embodied


intentionality, dancers must put themselves in the historical context of when the dance
was choreographed. As a contemporary and postmodern dancer, I remember maintaining
a choreography work in my body for a year or two, creating different strategies to
maintain its freshness without losing the origins of the movement. These strategies of
keeping the dance with its original intentions included the use of visualization,
storytelling, poetry, research on movement initiation, and how to use my eyes and breath
to support the dance. Once the performances ended, I would release that embodied
history. This embodied phenomenon is exceptionally challenging, as the body is
constantly changing and quickly finding shortcuts into movement forms without looking
for the complexity of listening to the creation of the movement. To move from an
embodied position, one must not only prepare the body mechanically but also find a way
to make oneself available (personal communication from Ohad Naharim in 1917). If this
process can be captured in film before the dance is released from the embodiment of that
moment, the work is reserved as its own artistic signature.
How desirable is it to make an embodied choreography? This is a risk that most would
pass, as truth may not be entertaining or socially acceptable. By creating a film to share
the risk might be even larger. But as an artist, I must advocate to pushing the boundaries
of exposing the truth of the lived body experience. How do I define truth? I call the truth
a felt sense that is not chosen but witnessed by one’s own self-awareness. Emotions and
sensations are not chosen steps but energetical signatures that can be noticed and given
permission, capable of embodied expression (Ruzany, 2019).
Engaging with embodied inquiry for choreography in film, I found a multidimensional
experiment that brought a transpersonal sacred understanding of why I continue to dance
in this later stage of my career. Creating a sacred space to dance and in film seems
paradoxical, but this is exactly what I suggest. Hopefully, this process will inspire others
to use this method for their autoethnographic embodied inquiry.

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3.

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Águeda Sena (1927-2019)


O Espírito de Combate1

António LAGINHA2
CLEPUL/FLUL
Centro de Dança de Oeiras
[email protected]

Resumo: A bailarina e actriz Águeda Sena terá sido a coreógrafa portuguesa mais
importante e conhecida em Portugal, no século XX. Para o Ballet Gulbenkian, que,
indubitavelmente, foi a maior companhia de dança portuguesa do século vinte (com uma
projecção nacional e internacional que nenhuma atingiu até ao presente) criou obras
durante cerca de duas décadas. Para a (recém-criada) televisão portuguesa concebeu
muitas peças, incluindo uma série tendo por base o trabalho de escritores censurados.
Trabalhou muito em teatro musical (revista) e também em grupos “independentes” de
teatro e dança. A sua obra mais espectacular, intitulada Namban Matsuri, foi apresentada,
com enorme sucesso, para largos milhares de espectadores na Expo’70 em Osaka (Japão).
Da sua vida e do seu legado se trata neste estudo.

Palavras-chave: dança, bailado, teatro, Portugal, Gulbenkian

Abstract: Dancer and actress Águeda Sena have been the most important and well-
known Portuguese choreographer in Portugal in the 20th century. For the Gulbenkian
Ballet, which was undoubtedly the greatest Portuguese dance company of the 20th
century (with a national and international projection that none has reached to date) she
created works for two decades. For the (newly created) Portuguese television, she created
many plays, including a series based on the work of censored writers. She worked a lot
in musical theatre, and also in “independent” theatre and dance groups. Her most
spectacular work, entitled Namban Matsuri, was presented, with great success, to
thousands of spectators at Expo’70 in Osaka (Japan). This study deals with her life and
her legacy.

Keywords: dance, ballet, theatre, Portugal, Gulbenkian

O Espírito de Combate e o Valor da Vida

Águeda Sena, nascida em Lisboa a 16 de Junho de 1927, foi durante muitos anos a
coreógrafa nacional mais dançada no Ballet Gulbenkian (1961-2005) - a única companhia
portuguesa com actividade regular na época -, a par de criadores de cotação internacional,
quando a nossa dança, praticamente, se restringia àquele notável agrupamento artístico,
que atravessou com fulgor a segunda metade do século XX.
Em muitas coisas (Maria do Céu) Águeda (Camacho de) Sena (Faria de Vasconcelos)

1
Texto apresentado na VII Conferência Internacional Culturas Ibéricas e Eslavas em Intercâmbio e
Comparação: Interfaces em Estudos de Género, Secção: As Mulheres da História e as Histórias de
Mulheres, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, de 7 a 9 de Maio de 2013.
2
O autor escreve segundo as regras anteriores ao Acordo Ortográfico de 1990, o qual não foi ratificado por
todos os países de língua portuguesa.

143
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foi pioneira – “sempre quis fazer coisas diferentes, isso nasceu comigo” (Águeda Sena,
entrevista, Oeiras, 2013), afirmou, repetidamente, ao longo da sua vida – e foi também
uma feminista empenhada, cuja vida e obra falam por si.

Figura 1. Águeda Sena num ensaio do bailado “Da vida e da morte de uma mulher só”, do coreógrafo
Carlos Trincheiras, Ballet Gulbenkian, 1980.

Fonte: Arquivo do Centro de Dança de Oeiras. Fotografia de autor desconhecido

Apesar de ter sido muito conhecida como bailarina (nos anos 60 tanto trabalhou no
agrupamento de dança da Gulbenkian como participou nas revistas de maior sucesso
popular que Lisboa viu, ao lado dos grandes actores da época) o seu êxito como
coreógrafa foi, provavelmente, ainda mais significativo para o desenvolvimento da Dança
em Portugal.
Até ao aparecimento de Olga Roriz (Viana do Castelo, 1955-) – actualmente a
coreógrafa portuguesa mais conhecida dentro e fora das nossas fronteiras, a par de Vera
Mantero (Lisboa, 1966) – Águeda Sena foi, sem qualquer sombra de dúvida, a criadora
de dança mais produtiva e admirada da sua época. Num meio, então, marcadamente
masculino, refira-se, conquistou um lugar cimeiro rivalizando, inclusivamente, com o seu
marido, o bailarino e coreógrafo Fernando Lima. Até meados da década de 70 o seu
trabalho foi, temporada após temporada, apreciado tanto no Grande Auditório da
Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), como em digressões do Grupo Gulbenkian de
Bailado (GGB) no país e no estrangeiro.
A sua peça de maior fôlego – provavelmente a sua obra-prima – foi o grandioso evento
multidisciplinar intitulado Namban Matsuri (Festival dos Bárbaros do Sul, numa tradução
livre) apresentado na Expo’70 de Osaka, no Japão. O espectacular trabalho (de
colaboração com Carlos Avilez) quando ainda a tecnologia nem tinha entrado na
linguagem “terpsicoreana”, foi visto por largos milhares de espectadores e considerado o
melhor evento apresentado na Exposição Mundial em 1970, num universo de 79 países
participantes. Curiosamente, montado, dançado e apreciado no estrangeiro, esse
deslumbrante e monumental trabalho, nunca foi reproduzido em solo pátrio. E tal, como
à frente se mencionará, não terá acontecido por acaso. Acabou por ser uma espécie de
fado lusitano enredado na via-sacra, que era, particularmente para uma artista interventiva
e insatisfeita, ser português (criativa e transgressora) na época da ditadura.
Oriunda de uma família muito sui generis – o seu pai foi um pedagogo de fama
internacional e a mãe, “uma mulher culta e de fibra originária da Bolívia” (Águeda Sena,
entrevista, Oeiras, 2013) – desde cedo conviveu com artistas e escritores que pertenciam
à nata da cultura nacional. E não só. Águeda esteve, desde criança, sempre premiável às

144
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artes e, por tal, não foi de estranhar que a sua educação tivesse sido muito abrangente e
se estendesse, inclusivamente, ao estudo da Medicina. Já artista feita, ao trabalhar na
novíssima Rádio Televisão Portuguesa (RTP) (logo na sua primeira emissão a 7 de Março
de 1957), a sua imagem de bailarina acabou por se impor num universo mais alargado e
a sua carreira ampliada para o campo da criação tendo, mesmo, feito questão de produzir
danças sobre obras de poetas pouco conhecidos. Alguns deles tidos, mesmo, como
“malditos” e vigorosamente banidos, pela ditadura salazarista.
Dotada de um sentido humano muito apurado – o projecto Pássaro Azul (de
colaboração com a poetisa Fernanda de Castro) é prova dessa afirmação - as suas
preocupações sociais e ecológicas já então eram evidentes, tanto a nível da representação
teatral como da encenação, plasmadas respectivamente nas peças A Navalha na Carne
(1977) e O Gigante Verde (1989).
Entre os seus pares nem todos serão unânimes nos aspectos relativos à sua forte e
desigual personalidade, mas no que toca aos seus dotes criativos e à qualidade das suas
obras, a maioria estará de acordo com a afirmação da grande “ballerina” portuguesa Isabel
Santa Rosa: “A Águeda Sena sempre foi uma artista muito à frente do seu tempo.” (Isabel
Santa Rosa, entrevista, Lisboa, 1989).
O conhecido encenador e director teatral, Carlos Avilez, não deixa de afirmar que
muito do sucesso de algumas das suas mais emblemáticas – e premiadas – encenações no
Teatro Experimental de Cascais (TEC), se deveu à arrojada maneira como Águeda fazia
“movimentar” os actores em cena (Carlos Avilez, conversa pessoal, Cascais, 2012). O
actor João Vasco, co-director daquela companhia, complementa essa ideia de uma forma
sintética:

Gostaria muito de ter dinheiro para fazer (apenas) um livro de fotografias sobre quase
três décadas de uma incrível colaboração entre a Águeda Sena e o TEC, mais
precisamente entre 1966 e 1995. Depois disso ainda foi professora da Escola
Profissional do Teatro Experimental de Cascais, entre Setembro de 1998 e Janeiro de
2000. Apesar de alguns atritos que a Águeda sempre provocava – por exemplo, saiu
inesperadamente da nossa escola – temos grande nostalgia por esses tempos em que
trabalhámos juntos. Embora tivesse um carácter algo instável e de nem sempre ter sido
fácil trabalhar com ela, se pudesse voltar para trás não hesitaria em convidá-la de novo
para o TEC, pois o seu trabalho foi sempre da maior qualidade. (João Vasco, entrevista,
Cascais, 2012)

Numa época em que os entraves à criação e a restrição intelectual e artística imperavam


em Portugal – devido a uma ditadura que se manifestava em todas as áreas da invenção e
do saber – Águeda, uma mulher num universo dominado por homens, foi uma voz
dissonante e, sobretudo, uma presença autónoma na Dança Portuguesa. Estudou, dançou,
ensinou, saiu do país e conheceu outros mundos e outras realidades artísticas. Mormente
nas duas mais expressivas capitais europeias, Paris e Londres. Regressou, criou, resistiu,
lutou com muito poucas armas contra a doença e outras adversidades, e, acima de tudo,
teve sucesso. Teve filhos, teve reveses, teve amigos, admiradores, detractores (muito
possivelmente), glória e até ingratidão!
Aquela que os amigos tratavam por Céu, mas que para o grande público dava pelo
nome de Águeda foi, indubitavelmente, uma personalidade única da cultura portuguesa.
Uma criadora de enorme mérito e uma pedagoga de excelência. Por tudo isso, e,
eventualmente, por algumas outras razões, tornou-se um nome incontornável da dança
portuguesa do século XX.
Todos os que têm algum conhecimento da História da Dança Portuguesa não poderão

145
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deixar de considerar Águeda Sena – ao rastrear o vastíssimo curriculum da artista – uma


das vozes mais inventivas e versáteis do nosso bailado, competindo as suas peças, mesmo,
com muito daquilo que de bom se faz hoje na área da dança contemporânea. Perguntaram-
lhe muitas vezes: o que é que você é? Actriz ou bailarina? E Águeda, invariavelmente,
respondia: “Artista! Apenas isso”.
Tal como muitos dos que trabalharam na área do movimento, na sua época, ela é
merecedora de homenagens e estudos, mas, sobretudo, é dever e obrigação dos
académicos resgatá-la de um “desconhecimento” que uma futura e elaborada biografia
poderá, em parte, atenuar. Assim sendo, e enquanto tal não acontece, nada melhor para o
efeito que resumir a sua vida com o próprio título de uma peça da sua autoria, O Espírito
de Combate e o Valor da Vida, com textos recolhidos da obra do seu pai.

Família Incomum

Sempre ouvi dizer, na casa dos meus pais,


que a vida é como um copo de água que se bebe sofregamente…
até ao fim, quando se tem sede. (Águeda Sena, entrevista, Oeiras, 2013)

Duas vincadas linhas de força sempre parecem ter acompanhado a vida e obra de Maria
do Céu Águeda Camacho de Sena Faria de Vasconcelos: uma forte e profunda admiração
pelos progenitores – António d’Azevedo Sena Belo Faria de Vasconcelos (1880-1939) e
a sua mulher, a boliviana Nazária Celsa Camacho Quiroga Faria de Vasconcelos, nascida
em 1895 e falecida em 1995 – e um inato inconformismo (algo desusado para a sua época)
aliado a uma imaginação verdadeiramente transbordante.
Quando Águeda referia as suas “raízes” e falava fervorosamente da sua meninice e
adolescência – desde a infância à idade adulta passando pela iniciação ao mundo das artes
e das letras – quase tudo passava pela forte influência dos seus progenitores. Ela
asseverava que a sua casa era “um lar constantemente impregnado de amor. Uma casa
muito feliz” (Águeda Sena, entrevista, Oeiras, 2013). Os pais adoravam-se e esse
sentimento perpassava pelo ambiente familiar. Tudo parecia perfeito na relação deles,
apesar da enorme diferença de idades. Ele era muito alegre e aplicava em casa os seus
conhecimentos de pedagogia. Ela era uma mulher muito prática e desejosa de realizar
coisas. Para um casal nessas condições eles passaram a fase do deslumbramento – ela por
ele – a da paixão – um pelo outro – mas não chegaram a uma (normal) terceira etapa de
questionamento, o que acontece em todos os casamentos com tão grande diferença de
idades. Ele morreu relativamente novo, com quase 60 anos, e ela a 10 dias de fazer 100.
Do pai, 16 anos mais velho que a mãe, nascido em Castelo Branco e oriundo de uma
antiga família beirã de tradição profundamente católica, recebeu uma cuidada educação,
baseada em conceitos pedagógicos ímpares, uma alargada cultura artística e humanística
e uma sólida postura moral, aliada a um espírito livre e desvinculado. O seu irmão
Gonçalo Manuel (Coimbra, 1924-2011) também dançava com ela. Coisa estranha para
uma criança do sexo masculino nos anos 30 do séc. XX. Certamente, na casa de ambos,
conhecia-se o “espírito” duncaniano3. Não teria rigorosamente esse enquadramento – que
tinha algo com o que décadas depois viria a ser chamado de “movimento hippie” –, mas
era um modelo conhecido (por via de fotos) da casa de Isadora Duncan, com todos a
dançar livremente por salas e jardins vestidos de túnicas gregas. Porém, a semente da
criatividade e do humanismo na educação dos filhos de Faria de Vasconcelos, estava

3
Referência à bailarina norte-americana, Isadora Duncan (1877-1927).

146
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sempre presente. A mãe, Celsa, tinha sido aluna do pai em La Paz. Era considerada uma
das melhores alunas da Bolívia, filha de pessoas de posses, que se apaixonou pelo
professor com quem se casou e veio para a Europa, sem nunca mais ter voltado à sua terra
natal.
Segundo Águeda:

Era uma pessoa muito recta, muito carinhosa com os familiares, mas muito austera
com os outros. Vi-a algumas vezes com as lágrimas a correr dos olhos com saudades
dos seus e da sua terra…, mas sempre disfarçou as suas fraquezas. Coxeava um pouco,
mas nunca dava o braço a torcer perante tal dificuldade. Morreu velhinha, no hospital
sempre muito segura de si e sem nunca dar parte fraca. Foi enterrada em Lisboa longe
da sua terra natal. Chamava–me Cielito e também louquita… pero genial”. (Águeda
Sena, entrevista, Oeiras, 2013)

Dela ficou-nos, entre outras coisas, um cuidado conjunto de fotos, de recortes de


jornais e anotações bastante preciosas para a compreensão dos tempos de infância e
juventude de Águeda, quando a sua filha se iniciou na dança e na música. E,
posteriormente, de toda uma carreira, por vezes algo inconstante, mas muito densa e,
sobretudo, de grande riqueza artística.
Com a morte prematura do pai a separação dos dois irmãos foi inevitável, e traumática,
devido a severos constrangimentos financeiros, tendo Gonçalo ido para Coimbra para
casa de um irmão do pai, de nome também Gonçalo. O mesmo que Águeda também daria
ao seu filho primogénito – nascido em 1958 – e este ao primeiro neto da artista, nascido
em 1986.
Faria de Vasconcelos, pedagogo formado em Coimbra e Bruxelas, andou por países
europeus como a Bélgica, Suíça e França e americanos como Cuba e Bolívia. Foi escritor
(as suas obras estão publicadas em sete volumes pela Fundação Gulbenkian) e professor
catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa e da Universidade Jean-Jacques Rousseau,
de Genebra, entre outras. E, depois de Ministro da Educação do governo de Camoesas,
fundou o Instituto de Orientação Profissional Maria Luisa Barbosa de Carvalho, em 1964.
Era um homem de esquerda, que trouxera essa carga ideológica da América do Sul.
Regressado da Bolívia, onde deixou publicados vários trabalhos em castelhano, em 1920
liga-se, por cinco anos, ao Grupo Seara Nova. Na sua casa recebeu ilustres intelectuais
portugueses e mesmo alguns estrangeiros que vinham esporadicamente a Portugal em
missões políticas (e clandestinas) para contactar com a “oposição” a Salazar4:

Discretamente ajudávamos muitas pessoas. Tínhamos um quarto com serventia própria


que dava directamente para a escada na nossa casa, que ficava num 4º andar. Aí
pernoitaram muitas pessoas importantes. O nosso lar era aberto e frequentado por
figuras como Humberto Delgado, Azeredo Perdigão e até Pablo Neruda. Havia sempre
conversas (de adultos) muito interessantes, que a mim me fascinavam” (Águeda Sena,
entrevista, Oeiras, 2013). Celsa escreveu sobre Águeda que era “uma pessoa de ideais,
tal como o pai, e muito apaixonada pela arte da dança” (Camacho, notas pessoais,
1975).

4
António de Oliveira Salazar (1889-1970) foi um ditador nacionalista português. Além de chefiar diversos
ministérios, foi presidente do Conselho de Ministros do governo ditatorial do Estado Novo e professor
catedrático de Economia Política, Ciência das Finanças e Economia Social da Universidade de Coimbra.
Em 1940, foi-lhe conferido o grau honoris causa pela Universidade de Oxford. (António de Oliveira
Salazar, 2020)

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Formação artística e pedagógica

Maria do Céu iniciou a sua formação em dança aos quatro anos, no método de Jacques
Dalcroze, introduzido em Portugal pela professora grega radicada em Portugal, Sosso
Dukas-Schau. Pisou o palco, pela primeira vez, em 1932 no Teatro Nacional de S. Carlos,
justamente num recital de Madame Schau.
Completou a 4ª classe com 8 anos, com uma autorização do Ministro da Educação de
então, e, por tal, andou sempre dois anos adiantada em relação aos seus amigos e colegas.
Após uma interrupção de alguns anos, por ter estudado em colégios de religiosas, Águeda
retomou a dança aos 12 anos quando frequentava o liceu feminino Filipa de Lencastre.
Nunca parou de dançar e, naquele tempo, até dançava às escondidas, “escandalizando” as
freiras e as colegas. Porém algumas gostavam mesmo de a ver dançar, designadamente, a
Soror Valente, que até a acompanhava nos seus bailados improvisados! Iniciou-se, com
grande determinação, como refere a mãe (Camacho, notas pessoais, 1975), na dança
clássica com a professora Margarida de Abreu (1915-2006) no citado estabelecimento de
ensino, a qual, posteriormente, a levou para o Conservatório. No ano de 1942 ingressou,
com 15 anos, no estúdio daquela mestra que, em 1944, viria a servir de base a um grupo
semi-amador mas conceituado, o Círculo de Iniciação Coreográfica (CIC) e no qual se
manteve cerca de uma década. No grupo “começou a tomar consciência da sua vocação”
ainda que o “meio não lhe fosse favorável”. Muito pelo contrário, teve mesmo que “lutar
em duas frentes” de um lado os preconceitos familiares e do meio social (que não
distinguiam uma bailarina clássica de uma bailarina “vulgar”) e do outro, a falta de
estímulo social do ambiente em que se trabalhava e onde teve que suportar períodos de
“hostilidade e desânimo” (Camacho, notas pessoais, 1975).
Anos depois, quando passou para o Liceu Pedro Nunes – por vontade do pai por ser
um estabelecimento misto – conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido e pai
do filho Gonçalo, Fernando Lima. “Ele era um dos meus (muitos) apaixonados. Apesar
de sermos colegas de escola e de dança, no início não lhe dei muita atenção, se bem que
algumas das minhas colegas o adorassem”, referiu a artista. (Águeda Sena, entrevista,
Oeiras, 2013). Participou, como intérprete (inicialmente com o nome de Maria do Céu
Vasconcelos) em diversos espectáculos de escola e do corpo de baile do CIC,
designadamente nas Tardes Literárias (Teatro S. Luiz, em 1947) e, posteriormente, em
espectáculos de ópera no Teatro Nacional de S. Carlos e no Coliseu dos Recreios. Foi
assistente da sua professora no ensino das classes infantis de bailado do seu estúdio
particular, entre 1947 e 1948, tendo seguido, em simultâneo, os cursos de Dança e de
Teatro no Conservatório Nacional. Aí estudou com conhecidos professores,
designadamente Margarida de Abreu (dança), Alves da Cunha e Maria Matos (Teatro) e
teve lições particulares de violino com o professor Gonçalves Pereira.
No dia 27 de Janeiro de 1948, criou o seu primeiro papel na obra de Margarida de
Abreu Quadros duma Exposição, apresentada no Teatro de S. Carlos. Juntamente com
Fernando Lima e Anna Maria (posteriormente a bailarina adoptou o nome artístico de
Anna Mascolo), Águeda desde logo se revelou um dos nomes mais promissores do CIC,
tendo dançado alguns dos papéis solísticos do reportório do grupo, designadamente em
Chopiniana (Les Sylphides), Arraial na Ribeira, Baba Yaga, Polaca Heróica e,
sobretudo, em Tito e Berenice, em que interpretou um dos papéis titulares. Terminou o
curso do Conservatório – com provas de Dança Clássica, Carácter, Plástica e Composição
Individual –, com média final de 17 valores, em 1948. De seguida, prestou exame público
no Teatro Nacional D. Maria II, com um solo de sua autoria na prova de composição
(Prelúdio, para a música de piano de Rachmaninov), tendo-lhe sido, seguidamente,
concedida a Carteira Profissional de Actriz/Bailarina.

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“Fui a primeira aluna da Margarida a ir para fora do país sozinha. Paris era o centro do
mundo da dança e eu queria ir conhecer o que lá se fazia” (Águeda Sena, entrevista,
Oeiras, 2013). Incentivada pela sua mestra para se aperfeiçoar no estrangeiro foi estudar
com alguns dos grandes mestres parisienses. Fez repetidas viagens à cidade-luz, na
qualidade de bolseira do Instituto de Alta Cultura (entre 1948 e 1953), tendo estudado
dança clássica com as famosas Olga Preobrajenska, Mme Rousanne e, sobretudo, com
Lubov Egorova. Naquela cidade teve também os primeiros contactos com a dança
moderna ao estudar com Loeonard Lenwood, bailarino principal e professor da
companhia da bailarina antropóloga e coreógrafa norte-americana Katherine Dunham,
então em digressão pela Europa.
Seguidamente frequentou, também em Paris, o Curso de Pedagogia da Sorbonne
(1948-50), um curso nocturno de História de Arte, no Museu do Louvre, durante o ano de
1949, e estabeleceu contactos com grandes artistas do teatro francês, designadamente
Jean-Louis Barreault e Jean Villar. Dançou a Valsa e o Prelúdio das Sylphides em 1950,
no Teatro Alhambra, em Paris, num espectáculo dirigido por Jean Guélis, e em 1952 o
solo Les Mains, da sua autoria, (uma remontagem de Prelúdio) como solista na
Companhia Galas de Danse, da “estrela” francesa da Ópera de Paris, Lycette Darsonval.
Nessa altura deslocou-se expressamente ao sul de França para conhecer pessoalmente
Pablo Picasso, que foi procurar na sua própria casa. Um encontro algo inusitado,
“efémero, mas marcante”, nas palavras da artista.
Em 1952, de regresso a Lisboa e juntamente com Fernando Lima e Anna Mascolo,
participou nas Tardes de Ballet, no Teatro Monumental, às 18.30, sob a direcção conjunta
de Margarida de Abreu e Fernando Lima, em criações assinadas por estes e por ela
própria. Depois de várias estadas em França tomou contacto com a “escola inglesa” tendo
frequentado um curso de Verão, em 1953, para Professores de Ballet na Escola do
Saddler's Wells, em Londres, cidade onde também trabalhou com alguns mestres de
nomeada, mormente Cleo Nordi e Ana Northcote. No ano lectivo seguinte entrou para
aquele conhecido estabelecimento de ensino onde frequentou as classes de nível
“profissionalizante” e teve contactos artísticos e pessoais com grandes nomes da dança
inglesa, designadamente Ninette de Vallois, Frederick Ashton, Arnold Askell, e Nadia
Nerina, que se tornou sua amiga e, anos mais trade, veio a ser madrinha do seu primeiro
filho. No início do ano lectivo de 1953-54, Águeda adoeceu gravemente com tuberculose
tendo sido internada em alguns hospitais londrinos, designadamente num sanatório muito
conhecido, o Royal Brompton Hospital, onde permaneceu seis meses antes de regressar
a Lisboa, em Maio de 1955, para convalescer em casa, junto do mar.
Segundo ela própria, a sua primeira e grande paixão foi um rico (playboy) tunisino
chamado Pietro Gali – que conheceu na faculdade de Ciências de Paris e que morreu
prematuramente num desastre com um pequeno avião que se despenhou no mar perto de
Cascais numa das suas visitas a Portugal – mas foi, num difícil período de convalescença,
que desposou Fernando Lima, em 16 de Julho de 1955, tendo vivido juntos até Março de
1962.
Depois de recuperada, Águeda Sena recomeçou a dançar ao lado do marido na “super-
fantasia musical” de Vasco Morgado, Melodias de Lisboa, e, posteriormente, no grupo
dirigido por ambos, chamado Ballet-Concerto, em cujo reportório constavam, além de
peças de Fernando Lima e da veterana Margarida de Abreu, também uma obra de Águeda,
Em Nossas Torres de Marfim (música de Stravinski).
Com o grupo, “Danças e Cantares de Portugal/Bailados Portugueses de Fernando
Lima" dançou depois, como primeira figura, diversas obras entre as quais A Severa
(música de Fernando de Carvalho, 1956), no Teatro Monumental, no Casino do Estoril e
numa posterior digressão europeia, que durou quase dois anos. No teatro de Annecy, na

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Alta Sabóia, em França, durante mais de uma semana, o grupo fez a primeira parte de
uma série de espectáculos diários com a famosa Edith Piaf, de quem Águeda sempre
guardou uma memória muito particular:

Era uma mulher pequena e franzina e com uma testa enorme, pois o cabelo começava
quase a meio da cabeça. Era tão feia quanto expressiva. Uma figura muito singular que
se não esquece. Uma noite foi-nos pedido para ir “aguentando o público” pois a Piaf
estava atrasada para o show. Aceitámos de bom grado, mas, ao fim de algumas danças,
começámos a ser vaiados porque o público já estava cansado de ver dança e esperar
pela cantora. Acabámos por sair de cena e, logo de seguida, a dona do teatro do Casino
veio ao palco informar a audiência que a senhora tinha tido um pequeno acidente, mas
que estava quase a chegar. Ao ver o caso mal parado ainda perguntou se, em
alternativa, queriam o dinheiro dos bilhetes de volta ou ver o ballet outra vez. No meio
daquela confusão lá regressámos ao palco tensos e sem nenhuma vontade de dançar.
Apesar de toda essa inusitada espera, o público acabou por nos receber com muitos
aplausos. Entretanto, Edith Piaf chegou, visivelmente bêbeda e, provavelmente,
também drogada e, meio cambaleante, deu início ao espectáculo. Disse alguns
impropérios e, de seguida, cantou durante quase duas horas pondo os bailarinos (nos
bastidores) e o público na plateia a chorar.... Era, realmente, uma vedeta de
primeiríssima grandeza. (Águeda Sena, entrevista, Oeiras, 2013)

Juntamente com Fernando Lima, após o regresso deste do estrangeiro (porque ela
regressou antes do fim da digressão), participou na revista Melodias de Sempre, no Teatro
Monumental, em 1956, e em duas peças de teatro, protagonizadas por Laura Alves e Artur
Semedo. Entre os anos de 1955 e 1958, ambos colaboram regularmente com Vasco
Morgado dançando e coreografando para o teatro ligeiro, nomeadamente a peça O Fado
com uma certa regularidade. Um dos elencos desse “número” contou mesmo com
Águeda, na Severa, Fernando, no Marialva e Laura Alves (em travesti), no papel
masculino de Custódia.

A RTP e a ligação de Águeda à literatura e a autores “malditos”

A honrosa e histórica participação do casal Sena-Lima no início da RTP – um novo


meio de comunicação de massas – aparece descrita na obra RTP 50 Anos de História,
livro comemorativo do 50º aniversário da televisão estatal, da autoria de Vasco Hogan
Teves, com prólogo de António Barreto. A obra, que retrata o percurso da instituição,
descreve assim alguns momentos da emblemática emissão inaugural:

Às 21.30 h de 7 de Março de 1957 o genérico da RTP entrou “no ar” e de seguida


foram vistos os cantores Maria de Lurdes Resende e Rui de Mascarenhas, o conjunto
Domingos Vilaça e o comediante Raúl Solnado. Após outras intervenções a locutora
regressou para apresentar o último programa – um bailado coreografado por Fernando
Lima e dançado pelo coreógrafo e sua mulher Águeda Sena, Wanda Ribeiro da Silva
e João d´Ávila. Dançaram Os Enganos do Amor, com música de Tchaikovsky, numa
produção de Tomás Ribas e realização de Artur Ramos. (Teves, 2007, p. 3)

A título de curiosidade, a folha de “cachets” da emissão de 7 de Março de 1957


menciona os valores pagos (em escudos) aos bailarinos e produtor: “Fernando Lima – 3
000$00; Águeda Sena – 2 000$00; Wanda Ribeiro da Silva e João d ‘Ávila – 1 000$00 a

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cada; Tomás Ribas – 1 200$00.” (ibidem).


No dia em que completou meio século de vida (em 1977) Águeda Sena gravou um
programa de entrevistas “30 Minutos com….” na RTP, e nele afirma a determinada altura:

Trabalho há 26 anos – desde que comecei a coreografar a sério na Gulbenkian, em


1961 – na globalização das artes. Sempre achei que a formação artística não deve ser
sectorial. O artista tem que ser pessoa. Uma pessoa completa. E a formação de um
actor ou de um bailarino não pára nunca. Como coreógrafa sempre dei muita
importância aos conteúdos na dança, devido aos meus estudos teatrais, não só em
Portugal, no Conservatório de Lisboa, como no de Paris, onde estive como
observadora e tive oportunidade de ver muitos e bons actores e estar perto também de
algumas excelentes companhias. Foi uma experiência magnífica pois o ambiente e o
nível teatral cá era muito diferente… O português gosta de copiar as modas no
estrangeiro, imitando o que se faz lá fora. Não tem a coragem de ser e de criar uma
forma e um estilo próprios. Aqui não se respeita a criatividade própria, o estilo pessoal
e as ideias próprias! Deve ser por isso que sempre houve um certo atraso em relação
ao que se faz no estrangeiro. (RTP, 1977)

Tal como atrás se mencionou, a partir de 1957 Águeda e Fernando desenvolvem


intensa actividade junto da novíssima RTP, participando em alguns programas de
televisão, ainda no período experimental. Dançando, mesmo, uma clássica suite de As
Sílfides e outras coreografias assinadas por ambos. Intervêm também, no programa
inaugural (dos estúdios da RTP, no Lumiar), no Auto do Vaqueiro, realizado por Álvaro
Benamor.
Em 1958, Águeda é mãe pela primeira vez e a sua carreira, naturalmente, sofre uns
meses de interrupção. A partir de 1962 produz regularmente um programa televisivo, de
colaboração com a artista plástica Inês Guerreiro, intitulado Poesia e Movimento em que
foram abordadas e dadas a conhecer as obras de alguns poetas portugueses carismáticos,
mas pouco conhecidos ou, alguns deles, mesmo “censurados” pelo regime. “A ideia foi
da Inês pois estava muito na moda o tema Poesia e … Nós juntámos o movimento e fez-
se uma longa série de programas. Pelo menos umas três dezenas” (Águeda Sena,
entrevista, Cascais, 2013). Entre os poetas eleitos contam-se Fernando Pessoa/Álvaro de
Campos, António Gedeão, Herberto Helder, Carlos Queiroz, Augusto Santa Rita, Mário
Sá-Carneiro e Mário Beirão.

O Teatro de Revista, os Grupos Independentes e a Dança e o Teatro eruditos

Enquanto trabalharam para a RTP, Águeda e Fernando nunca deixaram o chamado


teatro comercial e, em Setembro de 1957, voltaram ao Teatro Monumental para a revista
Música, Mulheres e..., assinando também as coreografias.
O Ballet-Concerto voltaria a participar em alguns espectáculos pontuais antes de, em
1958, ter sido rebaptizado com o nome de Ballets de Lisboa (o primeiro agrupamento de
dança a ser subsidiado pela Fundação Calouste Gulbenkian) e que se estreou no Teatro
Monumental com o casal como directores e artistas principais. O novo grupo herdou
algumas peças do Ballet-Concerto às quais se acrescentaram Variações (mus. Saint-
Saens) e Carroussel do Mundo, de Águeda Sena.
Em 1960, a artista participou no projecto pioneiro Pássaro Azul, movimento de
iniciação às artes para crianças de condição humilde de alguns dos bairros da cidade de
Lisboa. Nessa espécie de “academia de artes infanto-juvenil”, sob a orientação da poetisa

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Fernanda de Castro, directora dos Parques Infantis lisboetas, Águeda Sena, encarregou-
se, durante dois anos e meio, do ensino da dança. Resumindo um pouco a sua actividade
pedagógica no Pássaro Azul, a professora testemunhou que “a Fernanda puxava muito
por mim artisticamente. Às vezes dizia até às pessoas para me cumprimentarem porque
eu era uma artista importante. Mas, na verdade, eu não ligava nada a essas coisas”
(Águeda Sena, entrevista, Cascais, 2013).
Na temporada de 1961/62 dançou no Grupo de Bailados Portugueses Verde Gaio, sob
a direcção de Margarida de Abreu e Fernando Lima – onde interpretou o papel titular de
Severa, no bailado homónimo (um remake do Fado) então com música do compositor
Jaime da Silva, Filho – tendo, seguidamente passado para o Grupo Experimental de
Ballet, grupo com o qual voltaria a dançar também, em 1964.
Em 1963, participou no projecto Teatro de Câmara António Ferro – fundado pela sua
viúva, a citada poetisa Fernanda de Castro – em que puseram em cena apenas uma peça
dele, que tinha morrido, em 1956: “Lembro-me de ser um indivíduo muito divertido e
muito ditador no trato” (Águeda Sena, entrevista, Cascais, 2013).
De 1964 a 1966, Águeda coreografou para o Ballet Teatro, companhia fundada e
dirigida por si, após uma tumultuosa saída da Gulbenkian, em solidariedade com Norman
Dixon que fora despedido por Madalena Perdigão – tendo Inês Guerreiro como Directora
Associada. O grupo estreou-se no Cinema Império com o espectáculo Macbeth,
Homenagem a William Shakespeare, de colaboração (na parte coreográfica) com Dixon,
antigo director artístico do Grupo Experimental de Ballet (GEB). Depois de uma
digressão pelas províncias portuguesas, o grupo voltou a apresentar-se em Lisboa no
Cinema Tivoli e no Teatro da Estufa Fria. Cada vez mais absorvida com a coreografia e
o ensino da dança, foi, progressivamente, iniciando uma carreira de actriz que adiara ao
deixar o Conservatório, então, ciente da urgência da sua carreira de intérprete e criadora.
Águeda terminou a sua carreira de bailarina em 1965 – aos 38 anos - devido a um
acidente de viação em que partiu um joelho, quando estava grávida da filha, Águeda Faria
de Vasconcelos de Almeida Gil, que nasceu em 1964. Então casada com um médico de
Cascais, Josias Ferreira Gil, confessou que deixara os palcos porque “não quis descer de
cavalo para burro e deixei de dançar em público quando tinham de mim uma boa
recordação.” (Águeda Sena, entrevista, Cascais, 2013).
Em Outubro de 1966, Águeda registou um enorme sucesso ao coreografar a luxuosa e
emblemática revista à portuguesa Esta Lisboa que eu Amo, estreada no Teatro
Monumental.
O crítico Goulart Nogueira fez, mesmo, na Revista Flama de 7 de Outubro de 1966,
uma afirmação algo inesperada: “A principal vedeta deste espectáculo, aquilo que
constitui uma revelação e inovação feita por portugueses em espectáculos deste género,
é a coreografia de Águeda Sena” (Nogueira, 1966, s/p).
No mês seguinte, assinale-se, iniciou uma longa e frutuosa colaboração com o
encenador Carlos Avilez, no Teatro Experimental de Cascais (TEC), coreografando A
Maluquinha de Arroios, de André Brun.
No último dia do ano de 1966, o “ballet” de Águeda Sena apresentou uma peça – para
“crianças de todas as idades” – Parque Infantil, em associação com Francisco Nicholson
e Armado Cortês, no “moderno e confortável Teatro Villaret” (Parque Infantil, 1966).
Até fins da década de oitenta, a coreógrafa envolveu-se com crescente intensidade no
teatro, na parte da movimentação de algumas encenações em que, pontualmente, também
actuou como actriz. Anos mais tarde foi marcante a sua interpretação da prostituta Neusa
Suely na “chocante” peça do brasileiro Plínio Marcos, Navalha na Carne, estreada no
Cinema Quarteto, em Lisboa, em Outubro de 1977, que alguma tinta fez correr nos jornais
da época.

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Regressou ao antigo GEB, já sob a alçada da Gulbenkian e rebaptizado com o nome


de Grupo Gulbenkian de Bailado, com a direcção do escocês Walter Gore, remontando O
Crime da Aldeia Velha, para dois espectáculos no Teatro Tivoli, a 28 e 30 de Janeiro de
1967, com excelentes críticas e, sobretudo, o aplauso do autor da obra literária, Bernardo
Santareno. A 5 de Fevereiro de 1968 o GGB estreou, no Teatro Politeama, em Lisboa,
Judas, (música de Frei Miguel Cardoso e música concreta) com o jovem Jorge Trincheiras
como protagonista e, a 7 de Março, no programa seguinte, o bailado Instantâneo (música
de Luís Filipe Pires)
Pelo meio coreografou a peça D. Quixote (TEC) encenada por Avilez - que se
apresentou em Madrid a 17 e 18 de Abril 1967 – e colaborou, posteriormente, nas
premiadas Bodas de Sangue (García Lorca), estreada a 13 de Setembro 1968, O
Comissário de Polícia (1968) e Antepassados, Vendem-se (Janeiro de 1970).
A 18 de Março de 1969, depois de um espectáculo do GGB, no Teatro Politeama, em
que se estreou o bailado O Lodo, de Carlos Trincheiras, Águeda Sena recebeu o seu
segundo Prémio da Casa da Imprensa, para a Melhor Coreógrafa juntamente com outros
artistas, designadamente Fernando Lima, relativo aos anos de 1967 e 1968.
No ano seguinte coreografou aquela que é a “sua obra favorita” para a Gulbenkian,
Tempos Modernos (música de Marius Constant), estreada a 10 de Janeiro de 1969, no
Politeama. Pouco mais de um mês depois, a 14 de Fevereiro, estreou, uma vez mais no
GGB – já no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian, na lisboeta avenida de Berna -
a obra Concerto (música de Chopin).
No ano em que o Japão organizou a grande exposição de Osaka (1970), Águeda Sena
considera ter tido “o maior triunfo da sua carreira” (Águeda Sena, entrevista, Cascais,
2013) com Nambam Matsuri, um espectáculo multidisciplinar, interpretado por duas
companhias de dança, vários actores e um grupo musical. “Foi a coisa mais sensacional
que fiz na minha vida e, curiosamente, foi deliberada e acintosamente escondida da
imprensa da época, em Portugal” (Águeda Sena, entrevista, Cascais, 2013).
Com coreografia de Águeda Sena, produção e encenação de Carlos Avilez, a obra teve
Expedito Saraiva na assistência coreográfica e nos ensaios e Luis Filipe Pires na
composição musical. Para além da colaboração de vários artistas plásticos de nomeada,
dos quais se destacavam Júlio Resende, Francisco Relógio, José Rodrigues e Amândio
Silva (este responsável pelos adereços). A sua estreia absoluta aconteceu no Japão, a 24
de Agosto de 1970, quando ainda a tecnologia estava a anos de entrar nas linguagens da
dança.

Namban Matsuri e a Expo'70

A embaixada lusa na Expo'70, de Osaka, designadamente na área da dança – embora


com uma repercussão muito pouco expressiva a nível interno – terá sido um
acontecimento de grande importância artística para muita gente na época. Apesar de um
só espectáculo, Namban Matsuri em que participaram quase todos os artistas de todas as
disciplinas que estiveram presentes em Osaka por ocasião da Exposição Mundial de 1970,
ter chamado a atenção de muitos milhares de visitantes de todo o mundo, o que é um facto
é que não deixou grande lastro. Montado, dançado e particularmente apreciado no
estrangeiro, esse deslumbrante e monumental trabalho, nunca foi reproduzido em solo
pátrio. Ainda se tentou “reproduzir” a obra em Portugal, no Estádio Nacional, mas o
interesse das entidades oficiais foi praticamente nulo abortando qualquer tentativa nesse
sentido (Águeda Sena, entrevista, Cascais, 2010).Embora se tenha saldado numa
experiência “inesquecível” para todos os que trabalharam sob a direcção de Carlos Avilez

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e Águeda Sena (bailarinos, actores e cantores), a coreógrafa não tirou grandes dividendos
da sua inventiva e espectacularidade e até da própria originalidade da proposta.
Naban Matsuri, obra de dança-teatro que, por iniciativa de Avilez, reuniu no elenco
portugueses e japoneses, foi eleita pela imprensa japonesa como o melhor entre todos os
espectáculos apresentados pelos 79 países participantes, na Expo'70. Nele participaram,
pela parte portuguesa, elementos do Grupo Gulbenkian de Bailado, do Grupo de Bailados
Portugueses Verde Gaio, mais de três dezenas de actores do Teatro Experimental de
Cascais, cantores do Orfeão Académico de Coimbra e outros artistas convidados, num
total de 198 participantes.
Segundo a bailarina Bernardete Pessanha (1928-2015), terá sido “uma peça
monumental, única, em que se juntaram centenas de artistas portugueses e nipónicos e
espantou todos quantos tiveram oportunidade de assistir a esse singular evento, num
espaço do tipo estádio e com acções dispersas por várias zonas e em diversos níveis
visuais”. Os bailarinos, cantores e actores portugueses, que entraram no evento ficaram,
desde logo, um pouco espantados como aquela espécie de confusão organizada pela
coreógrafa, num espaço imenso, divididos por vários grupos, em vários palcos, em que
nada parecia fazer muito sentido para eles, mas, a verdade é que a visão e os objectivos
da grande coreógrafa resultaram em absoluto e teve um enorme impacto nas multidões,
que tiverem o privilégio de experienciar tal acontecimento (Laginha, 1998, p. 201).

Era um trabalho para ser visto de longe, com uma enorme profusão de adereços
gigantes que se deslocavam em várias frentes. Foi um inteligente espectáculo alegórico
que movimentava massas de artistas, desde logo, concebido para milhares de pessoas
e que resultou num deslumbramento para os olhos espantados do público oriental.
Tratou-se de um daqueles “fenómenos” de movimento e representação que, então, só
poderiam ter nascido na cabeça da Águeda. Uma mulher que inventou uma dança para
aquele não-teatro. E um teatro que alimentava uma coisa que parecia dança.
(Bernardete Pessanha, entrevista, Lisboa, 1990)

Inspirada nos famosos biombos pintados no Japão depois da chegada dos primeiros
europeus àquele país oriental, a performance também deixou uma marca indelével em
todos quantos nela participaram. Tal como nas pinturas em que se podem ver cenas de
Portugueses no Japão, Avilez juntou em palco dois mundos, o ocidental e o oriental, numa
peça em que a integração das diversas formas artísticas se efectuou com a maior das
harmonias. Naban Matsuri, que se estreou no dia 24 de Agosto de 1970, não teve mais
que seis representações, no Japão. O butô japonês5 e, sobretudo, um certo misticismo
oriental, a que Águeda Sena voltaria, alguns anos depois, no bailado Amargo, só muito
mais tarde (pela década de oitenta fora) viria a fascinar muitos criadores europeus e norte-
americanos. Essa estética vanguardista japonesa não parece ter encontrado adeptos da
nossa dança, como também não tiveram grande eco as influências de raiz africana,
historicamente, mais próximas da cultura portuguesa:

Embora o homem já tenha embarcado na exploração do Universo, até agora falhou na


criação de um Humanismo Mundial. Portugal foi o primeiro país do mundo a ligar o
Ocidente com o Oriente. Os navegadores portugueses foram os primeiros a atingir a
Índia, o Ceilão, a Malásia, a Indonésia, a China e, finalmente, o Japão – onde um
veleiro português atracou há 437 anos na ilha meridional de Tanegashima. Os velhos
descobridores trouxeram com eles as ciências, técnicas e cultura da Europa
5
Estilo de dança que anos mais tarde, com retumbante sucesso, haveria de saltar do Japão para os palcos
de todo o mundo e chegar a Portugal pela mão de Madalena Perdigão nos Encontros Acarte.

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Renascentista, levando de volta as línguas, costumes e culturas de cada um dos países


que atingiram. Foram os Portugueses que, há séculos atrás, juntaram pela primeira vez
não só países dos dois hemisférios, mas também os próprios países entre si. Neste
sentido Portugal, há mais de cinco séculos, já contribuía com o “Progresso e Harmonia
da Humanidade”. (Programa do espectáculo Namban Matsuri)

O duplo tema no qual Namban Matsuri se inspirou foi a contribuição portuguesa o


humanismo Universal e a velha amizade de 437 anos de Portugal com o Japão. A peça
saldou-se na primeira co-produção acordada pela Associação Japonesa da Expo'70 com
uma nação participante (a 26 de Agosto de 1868) tendo para o efeito Carlos Avilez se
deslocado sete vezes ao Japão. A primeira parte deste “drama dançado” foi interpretada
por bailarinos clássicos portugueses sobre uma partitura musical avant-garde,
especialmente composta para o efeito por Luís Filipe Pires. O espectáculo iniciou-se com
o encontro entre dois anciãos, o actor Assis Pacheco e um grande actor japonês que se
cumprimentavam, dando o mote para:

O aparecimento do Homem e da Mulher na Terra, a sua luta pela sobrevivência e os


primeiros contactos com a Natureza. Apesar do medo das tempestades, dos naufrágios
e do desconhecido – simbolizado pelo monstro Adamastor – os Portugueses lançam-
se ao mar para a descoberta de novas terras e culturas [...]. (Programa do espectáculo
Namban Matsuri)

A estrela da produção era a bailarina Isabel Santa Rosa – artista principal do GGB -
que tinha uma intervenção ao lado de uma famosa bailarina japonesa. A verdadeira co-
produção, porém, só se inciou na segunda parte do evento com os bailarinos japoneses a
retratarem o Japão antes dos contactos com o Leste. Depois mostrou-se a chegada dos
portugueses a Tanegashima, as primeiras trocas comerciais, a introdução da espingarda e
os primeiros esforços de cristianização e a primeira missão diplomática japonesa à Europa
composta por quatro jovens aristocratas, finalizando o evento com a reafirmação da
duradoura amizade Luso-Nipónica” (Laginha, 1998, p. 202).
Apesar do sucesso além-fronteiras e de toda a espectacularidade da proposta, a
coreógrafa não tirou grandes dividendos desse êxito. O matutino Diário Popular, num
artigo não assinado de 16 de Agosto de 1970 6, antecipou, mesmo, o destino da obra (já
com morte anunciada) através das seguintes palavras: “500 figurantes lusos e nipónicos
estarão em cena no momento culminante do espectáculo principal (Namban Matsuri), que
não será exibido no nosso país por falta de recinto apropriado”.
Contudo, o sucesso da peça in loco e o entusiasmo pessoal de Águeda Sena terão
levado a coreógrafa, de volta a Lisboa, a embarcar em algumas tentativas para montar
uma versão de Namban Matsuri (ainda que reduzida), em Lisboa. Gorado esse objectivo,
ficou com a ideia de que o poder político e artístico da época não “viram com bons olhos
um projecto com aquela pujança” até porque, mesmo antes de ele ter acontecido já se
fazia constar que não havia em Portugal um espaço adequado, o que era um perfeito
disparate. (Águeda Sena, entrevista, Cascais, 2010).
Depois da chamada “experiência japonesa”, Águeda Sena passou a colaborar
regularmente com o TEC e o seu director e encenador principal, Carlos Avilez, tendo
aparecido, no final de 1970, como actriz e coreógrafa da obra Breve sumário da história
de Deus, de Gil Vicente (que foi antecedida no programa pela peça Sotoba Komachi, de
Yukio Mishima, trazida do Japão), encenada por Avilez.
6
Título do artigo: Portugal estará presente na grande feira de Osaka com um grande espectáculo de teatro,
bailado e folclore, p. 21

155
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Os anos derradeiros

Durante os anos 1970 e 1980, Águeda Sena começou e envolver-se, ainda com maior
intensidade, nos caminhos teatrais e, em 1971, colaborou intensamente na montagem da
peça Ivone Princesa da Borgonha, que recebeu o Prémio da Imprensa nesse ano para a
melhor peça e encenação. No final desse ano – a 2 de Dezembro – dirigiu um espectáculo
duplo com Acto Sem Palavras (Beckett) e Sinfonia dos Salmos (Stravinsky), no TEC.
Voltou a colaborar com Carlos Avilez, em Fuenteovejuna (1973), Cerimonial para um
Combate (1975), A Ópera dos Três Vinténs (1976), O Que é Que Aconteceu na Terra dos
Procópios (1980), Onde Vaz, Luís? (1981), Portugal, Anos 40 (1982), Jedermann, Auto
da Moralidade da Morte do Homem Rico (1983), Galileu Galilei (1986) e a A Dama das
Camélias (1995).
Em 1972, resolveu fazer uma pausa e, como bolseira da Fundação Calouste
Gulbenkian, em Copenhaga (Dinamarca), encenou uma peça no Durhan-Baden Group,
com o qual ganhou um prémio para teatro infantil. No ano seguinte regressou a Lisboa,
antes de partir para Angola, a fim de leccionar no Clube de Teatro de Luanda.
Em Outubro de 1975, uns meses depois do 25 de Abril, coreografou para o já muito
depauperado Grupo de Bailados Portugueses Verde Gaio, Ritual para uma Criança que
vai Nascer, com música de Fernando Lopes-Graça. Em 1977 regressou à sua casa de
sempre, a Fundação Calouste Gulbenkian, para coreografar A Valsa Mais Triste (com
música de Gustav Mahler, inspirada no poema Baile Finlandês de Bertolt Brecht (1898-
1956), uma peça em que a coreógrafa usou, com alguma frequência, um método muito
pouco comum em companhias de dança de raiz clássica na época: a improvisação com os
artistas-bailarinos. Porém, devido a complicações de montagem durante a criação e,
mesmo, a ligeiros “atritos” entre artistas, a coreógrafa não assistiu à estreia do bailado. O
próprio Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian, também não terá ficado
muito satisfeito com o resultado, porém, o público assistiu com a tranquilidade que
sempre reinava no Grande Auditório daquela instituição, a uma obra “com um instinto
algo revolucionário, muito ao gosto daqueles tempos, que muito agradou à maioria dos
artistas que nela participaram”. (Bernardete Pessanha, entrevista, Lisboa, 1990).
Posteriormente, Águeda voltaria a coreografar na República Democrática Alemã, em
Macau – em 1980 foi convidada pelo Instituto Cultural de Macau para dar seminários de
Dinâmica Educativa para professores, grupos chineses de teatro e jovens dos liceus luso-
chineses – e, na Dinamarca.
No ano de 1981 criou a Associação Cultural e Artística de Investigação – Teatro
Espaço – onde formou mais de duas centenas de profissionais da área do espectáculo e
recebeu um prémio (da crítica) por um ciclo constituído por cinco farsas contemporâneas
brasileiras, bem como as peças Cidade Rei, O Gigante Verde e Que Vergonha D. Berta,
de dramaturgos portugueses, em que além de ter a cargo a encenação e a coreografia,
também participou como actriz.
No ano de 1982, pela mão de Carlos Trincheiras – que fora seu assistente na realização
do bailado A Valsa Mais Triste – voltou a pisar o palco do Grande Auditório da Fundação
Calouste Gulbenkian, como actriz convidada, na peça Da Vida e da Morte de uma Mulher
Só, da autoria daquele coreógrafo e seu amigo de longa data. Dois anos depois, a convite
do Instituto Cultural de Macau, voltou à China para, durante quatro meses, realizar mais
seminários de dinâmica educativa com professores do ensino secundário, grupos de teatro
chineses e um grupo do Liceu Luso-chinês daquela cidade, finalizando com a produção e
encenação de um espectáculo sobre Gil Vicente, intitulado A Riqueza e a Justiça.
Em Fevereiro de 1989 estreou, numa modesta sala de uma sociedade na Rua da Fé, O
Gigante Verde, de Manuel Grangeio Crespo (1939-1983). Foi uma peça muito especial

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para a sua carreira por ter encenado um texto de um autor com quem tinha mantido uma
relação amorosa:

Ele era totalmente vagabundo, completamente anarquista. Diria mesmo... o último


autêntico anarquista. Era desligado do mundo em todos os parâmetros. Foi uma relação
ímpar, mas, curiosamente, não foi a minha última relação. Em 1989 já tinha 62 anos.
Não era nova… mas era muito bonita, afirmou a encenadora com muito humor.”
(Águeda Sena, entrevista, Cascais, 2013)

Entre 1989 e 1994 Águeda Sena ocupou o lugar de Professora Coordenadora da Escola
Superior de Teatro e Cinema, do Instituto Politécnico de Lisboa.
Entrou em vários filmes, mas o seu trabalho principal para cinema foi, em 1998, uma
participação, como actriz, no filme Tráfico do realizador João Botelho.
A partir do ano 2000 empenhou-se bastante na edição, mas sobretudo, na encenação
de obras de seu pai, tendo lavado à cena a peça O Espírito de Combate, em 2004, no
auditório da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA).
Durante a sua carreira recebeu diversos prémios, designadamente o Prémio da
Imprensa – Melhor Coreógrafo – em 1962 e 1967 e o de Melhor Espectáculo da Expo-
70, em Osaka (Japão) com Naban Matsuri, em 1970, além das Medalhas de Mérito
Municipal, Grau Ouro, do Concelho de Oeiras a 7 de Junho 1990, de Comendadora da
Ordem do Infante Dom Henrique, a 10 de Junho 1994 e o título de Cidadão Honorário de
Cascais – a 7 de Junho de 1996. Em Maio de 2005 – juntamente com o ex-marido
Fernando Lima – foi homenageada pela SPA recebendo, entre 44 individualidades acima
dos 70 anos, a Medalha de Honra da SPA (na área da Dança).
Uns tempos, antes de ficar bastante debilitada pela falta de visão, Águeda viveu dois
anos em Oeiras, tendo voltado a Cascais, onde veio a falecer. Já longe da sua meninice
lembrava, com nostalgia, que nunca conseguiu ter uma casa como a dos seus pais, “porque
nela tudo era perene e nas suas tudo era de… passagem” (Águeda Sena, entrevista,
Cascais, 2013).
Aos 90 anos ainda se recusava a parar de pensar na Arte e na Vida e de fazer planos,
“pois… parar é morrer e só morremos quando desistimos de viver” (Águeda Sena,
entrevista, Cascais, 2013), citando o poeta António Maria Lisboa, que muito admirava.

Referências

António de Oliveira Salazar (2020).


https://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_de_Oliveira_Salazar
Laginha, A. (2014). Memória da Saudade: o percurso e identidade artística do Ballet
Gulbenkian como estrutura de referência na dança portuguesa (1961-2005). [Tese de
Doutoramento, Universidade de Coimbra]. Repositório científico da Universidade de
Coimbra. https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/25418
Laginha, A. (2020). História do Bailado em Portugal. CTT.
Laginha, A. (1998). Portugal 45-95, nas Letras, Artes e Ideias. CNC.
Nogueira G. (1966, Outubro 7). Revista Flama.
Parque Infantil (1966, dezembro 31). Diário de Notícias.
RTP (1977). 30 minutos com... [Programa de Televisão]. RTP
Teves, V.H. (2007). RTP 50 Anos de História. RTP.

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Hélio Oiticica: Dança e Parangolé


Zaratustra, um bem-aventurado leviano

Irma CAPUTO
Pós-doutoranda do Programa de Pós-graduação
em Estudos da Linguagem da PUC – Rio, Faperj Nota 10
[email protected]

Resumo: Esse artigo visa explorar a relação entre artes plásticas e dança, partindo
especialmente do trabalho do artista Hélio Oiticica (26.07.1937 – 22.03.1980)
desenvolvido entre os anos 1960 e 1970. Será particularmente explorada a trajetória do
artista, em termos de busca de movimento e estudo de projeção espacial, com a introdução
de elementos rítmicos, primeiro na superfície plana do quadro e depois em elementos
instalativos, até chegar aos Parangolés, no âmbito do que ele definia arte-ambiental. A
trajetória será desenvolvida através das obras consideradas essenciais, como pressupostos
dos Parangolés. A proposição dos Parangolés será investigada, visando entender o papel
da dança na proposta estético-vivencial do artista e buscando entender suas referências e
o impacto não só em termos de quebra de paradigma estético, mas em termos de rupturas
sociais que a incorporação desses paradigmas acarreta.

Palavras-chave: Hélio Oiticica, Parangolés, dança, vanguarda

Abstract: This article aims to explore the relationship between plastic arts and dance,
starting especially from the work of the artist Hélio Oiticica (26.07.1937 – 22.03.1980)
developed between the 1960s and 1970s. It will be particularly considered the insertion
of rhythmic elements, first on the flat surface of the painting and then in installation, until
the Parangolés within what he defined as environmental art. The trajectory will be
developed through the works considered essential for the creation of the Parangolés. The
Parangolés project will finally be investigated in order to understand the role of dance
in the artist's aesthetic-experiential proposal and seeking to understand its references
and the impact not only in terms of breaking the aesthetic paradigm, but also in terms of
social ruptures that the incorporation of these paradigms entails.

Keywords: Hélio Oiticica, Parangolés, dance, vanguards

Rastos de notações históricas

Se é verdade que a história se repete, também é verdade que a história pode tomar
novos rumos, à luz de novas leituras de fatos históricos. Uma parte do processo de
releitura e reelaboração da história se dá pela abertura de espaços, antes negados, a obras,
artistas e produções culturais, que por serem incómodas em dados momentos, sofreram
persecuções, isolamento e alienação. A persecução e a marginalidade à qual foram
relegadas essas obras, todavia, é índice diretamente proporcional, do poder de
transformação que esses mesmos trabalhos trazem. A história da proposição artística dos
Parangolés (1965) - um trabalho de arte ambiental, capas assimétricas de vários materiais
feitas para serem vestidas e dançadas, projetando-se no ar de maneira distinta e sendo

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vividas por quem as vestia e por quem gozava da atmosfera criada pelas peças dançadas
- é uma história marcada pelos rechaços do jet set mundano da arte, incompreensões da
história recente e resgates.
Em 1965, apenas um ano depois dos militares no Brasil terem tomado o poder às forças
com um golpe de estado, a tensão social é forte e o protesto, através de manifestações
artísticas e culturais lideradas por jovens, conquista seus espaços. Augusto Boal,
dramaturgo de destaque da contestação pela agregação através da arte e pela reivindicação
de um espaço de expressão livre, propunha um espetáculo recorrente com o grupo do
Teatro de Arena, do Rio de Janeiro, chamado Opinião, que unia, feito colagem,
experiências artísticas diversas de música, canção, leitura e encenação, todas
vanguardistas. Em 1965, foi organizada no Museu de Arte Moderna (MAM), do Rio de
Janeiro, uma exposição cujo nome remetia exatamente ao espetáculo proposto por Boal,
Opinião 65. O nome evocava a ideia de arte e crítica e isso era corroborado pelos artistas
presentes, pelo conjunto de obras de vanguardas, longe daquilo que até então havia sido
exposto nos salões de arte e que, embora Hélio Oiticica rejeitasse enquanto expressão da
burguesia rançosa incapaz de criar mudanças, ocupava naquele momento, ou pelo menos
tentava ocupar junto com uma coletividade que era parte central da sua obra, os passistas
da escola de samba.
Havia uma burguesia faminta de falar de arte nova e de alguma maneira “consumi-la”,
que mostrou, porém, na hora mais importante, a sua incapacidade de lidar com um novo,
não laqueado, que se desdobrava fora das vitrines da contemplação. No dia da abertura
da exposição Opinião 65, o artista Hélio Oiticica, ao chegar com os bailarinos de samba
da Mangueira vestidos com os parangolés e armados de instrumentos musicais para a
vivência da obra - dançar ao som da bateria vestidos com os Parangolés - foram expulsos
do museu, recriando a proposição no externo, nos jardins do MAM, depois de um
memorável discurso de Oiticica sobre o cunho racista daquela atitude, a qual revelava
muito mais que um rechaço de ordem estética1. Não é casual que Wally Salomão (2015),
poeta e amigo de Oiticica, no livro Hélio Oiticica: qual é o parangolé intitule o capítulo
em que fala da exposição Opinião 65 “Armou o maior barraco no MAM”, pois a reação
do artista foi de dura crítica ao novo com sabor a mofo, representado pela etiqueta do
mundo da arte de exposição. Salomão contextualiza o clima de efervescência política
dessa exposição dessa forma:

No ano seguinte [ao golpe militar de 1964], os jovens artistas plásticos fazem a
exposição Opinião 65 idealizada pelo marchand Jean Boghici com a colaboração da
crítica de arte Ceres Franco, residente na França. Pretendiam explorar uma nova
imagem, uma tendência figurativa que era o dernier cri. E Jean Boghici, autor da ideia
da mostra, reuniu os artistas brasileiros aos que Ceres, xará da deusa latina da
agricultura, juntou numa colheita de artistas de Paris ou ali sediados. Era uma ousadia
pois a Bienal de São Paulo já sofria as tesouradas da censura militar. [...] Convite, terno
e gravata eram obrigatórios. Mulheres empiriquetadas com seus cabelos esculturas de
laquê. [...] Ameno vernissage de obras corrosivas, o protocolo sendo cumprido à risca.
‘Exposição de ruptura...estética cômoda...tradição plástica caduca...socialização da
obra de arte’, tais figuras incendiarias extraídas da apresentação de Ceres Franco

1
“Ele então fez um discurso no qual criticava o diretor e a equipe da instituição, alegando que aquela
censura tinha pouco a ver com o aspecto antiestético de sua obra, mas se baseava fundamentalmente na
intolerância social e racial; em outras palavras, em virtude das tensões entre as duas classes sociais ali
presentes.” (Ricupero et al., 2020, p. 42).

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restariam como retórica selvagem (fauve) de um salão civilizado da Rive Gauche.


(Salomão, 2015, pp. 47-48)

Hélio Oiticica fazia parte da programação, mas a retórica “fauve” era aceite até não
superar os limites das etiquetas, da influência das quais a esquerda radical chique não era
isenta. O ingresso de Hélio Oiticica com os estandartes e os bailarinos vestidos com os
parangolés foi barrado. O artista viu nisso muito mais que uma quebra de paradigma
estético, viu o Brasil retrógrado, racista e elitista se expressando e, no fundo, a recusa de
um paradigma estético acarretava também, a recusa dos corpos que faziam parte daquele
novo paradigma, os corpos negros, dos trabalhadores proletários explorados e das
periferias colocadas à margem do mundo da arte.
A proposição com dança e profusão de uma energia vital dionisíaca, usando uma
adjetivação que o próprio autor associava à sua produção, tomou lugar no externo do
museu. A arte brasileira contemporânea estava sendo sacudida desde as fundamentas.
Wally Salomão (2015) e Guy Brett (1995)2 reconstroem uma linha histórica
interessante, traçando uma conexão com esse primeiro evento, de 1965 e a bienal de São
Paulo, de 1994. Nessa ocasião, Luciano Figueiredo, artista e curador responsável pelo
projeto Hélio Oiticica, reproduziu uma situação similar à de 1965, pois passistas com
Parangolés entraram na sala destinada à exposição de Malevich, uma das inspirações de
Oiticica, especialmente na primeira fase artística de busca formal e cromática. A intenção
era, de alguma maneira, criticar a pouca importância atribuída a Hélio Oiticica e Lygia
Clark, destinando-lhe um espaço físico secundário no âmbito da exposição (Salomão, op.
cit., p. 54) e irrompendo assim com a experiência vivencial dos Parangolés nas salas da
bienal. Um repórter do Jornal do Brasil, nessa ocasião, fotografa o curador holandês da
sala de Malevich, Wim Bereen, enquanto manda embora os bailarinos “gritando aos
dançarinos para sair com um tipo de gesto que o proprietário de um restaurante usa para
expulsar mendigos de sua porta” (Brett 1995 apud Spricigo, 2013, para.25). Em 1965,
assim como em 1994, alguns corpos envolvidos em algumas experiências de arte, hoje
em dia definida relacional, incomodaram.
Recorrendo os momentos chave da história da arte brasileira, lembra-se a emblemática
semana de arte moderna de 1922 e percebe-se que o impulso para a modernidade é
marcado por rechaços. A tal propósito é nota a crítica híspida de Monteiro Lobato (1917)
aos quadros de Anita Malfatti - sucessivamente ícone da semana de arte moderna -
expostos na individual de 1917, fruto, segundo o literato, de uma mente paranóica,
distorcedora do cânone e de um suposto conceito de belo, que se aninharia nas obras de
autores, como Rafael em Itália, Rebrandt na Holanda e Rodin em França.
No âmbito da história da arte de além-mar lembra-se Le salon des refusées (1893) onde
foram expostos a maioria dos impressionistas recusados pela Academia de Belas Artes
do salão oficial, ou ainda voltando às Américas, o ready-made Fonte (1917) de Marcel
Duchamp, recusado pela Associação dos Artistas Independentes, de Nova York. Todos
esses casos e essas obras apontam para criações, que por se colocarem fora dos parâmetros
e padrões estéticos consagrados, desafiam o cânone propondo e criando para além dele.
O tratamento destinado à arte ambiental dos Parangolés de Oiticica, porém, além de
apontar para o choque entre cânone e vanguarda, aponta para algo mais profundo: não era
só o conceito das capas dançantes, feitas para serem vividas, que estava sendo recusado,
mas exatamente os corpos envolvidos na experiência artística. O que aumenta a carga
política da obra, de fato, o potencial político dispara-se por si só: os próprios parâmetros,
sobre os quais a obra-experiência se constrói, são subversivos para aquela época, pois,

2
Confrontar bibliografia Spricigio, 2013.

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coloca-se em discussão a especificidade do objeto artístico, mas o que é mais importante,


a sua matéria prima. Os corpos e sua performatividade são o centro dessa revolução. O
museu, como lembra Wally Salomão, “não está em crise, o museu é uma crise” (Salomão,
op. cit., p. 51) e o museu, como lugar de exposição, representava, de alguma maneira, o
andamento geral da abordagem da arte, de objetos feitos para serem contemplados.
Oiticica, por sua conta, traz uma trajetória que partindo da exploração da pintura se
encaminha para um universo de abandono gradual da criação do objeto em direção de um
não-objeto que, porém, trabalha no nível da emoção: a arte como envolvimento emocional
porque quem frui é também quem a faz acontecer.
A trajetória da sua produção passa por explorações de linguagem - busca formal de
ordem cromática, geométrica e não representativa - para esculturas-instalação que
começam a criar um primeiro nível de interação ambiental e, sucessivamente, passando
por objetos instalação feitos para serem manipulados, chegando, no final, na deflagração
total de uma arte ligada a um artefato, trabalhando em direção da busca de percepções
que façam acontecer a arte como experiência.
O resgate da obra de Hélio Oiticica e a sua ressignificação em termos de importância
histórica estão, em parte, ligados ao poderoso projeto Hélio Oiticica que, desde 1981, se
ocupa de organizar o grande legado do artista e que também se desdobra na digitalização
de todo o seu grande acervo de notas e projetos, hoje accessíveis online por qualquer
pessoa, favorecendo assim o estudo e pesquisa da obra do artista. Além disso, grandes
exposições individuais que, entre 2021 e 2022, acontecem em lugares diferentes do globo,
contando Shangai, Nova York e Londres, fizeram jus internacionalmente à obra do artista.
Os reconhecimentos mais significativos são, porém, as várias exposições que acontecem
no Brasil, em um trabalho de leitura da obra do artista que possa em parte empatar a dívida
histórica para com ele. Menciona-se, em 2022, A invenção da cor em Brasília e, em 2020,
a exposição que inspirou o presente trabalho no Museu de Arte de São Paulo (MASP)
intitulada, a partir de um dos textos do artista, Hélio Oiticica: a dança na minha
experiência.

A trajetória até os Parangolés: da superfície plana ao espaço ambiental

As produções plásticas de Hélio Oiticica, até chegar aos Parangolés, parecem ser
explorações necessárias de cores, espaço, relações geométricas, construção do ritmo na
matéria. Na sua pesquisa de linguagem colocam-se questões a partir da matéria, numa
indagação que culmina na desmaterialização do objeto e na criação de uma experiência
artística completamente envolvente e vivencial. É essa a concepção com a qual é
apresentada a trajetória dos trabalhos de Hélio Oiticica na exposição de 2020, Hélio
Oiticica: a dança na minha experiência, isto é, a progressiva saída da superfície do
quadro para projetar a geometria e a exploração das cores fora do plano, até chegar aos
corpos e às dobras dos Parangolés.
Os construtivistas e o movimento de De Stijl (primeiras décadas do século XX) têm
tido grande importância para as explorações do movimento neoconcreto brasileiro (1959)
e do Grupo Frente (1956), dos quais Oiticica faz parte e esse último, particularmente
chefiado pelo próprio mestre de Oiticica, Ivan Serpa. A ideia da busca da percepção pura,
de uma transcendência da emoção através de uma pintura não figurativa, que explorasse
as relações espaciais e cromáticas, era um dos engajamentos primários de Hélio Oiticica
na época de participação do Grupo Frente. Através das explorações dos novos limites da
pintura era colocada em xeque também a existência do próprio objeto pictórico e sua
validade como prática de expressão artística, chegando, em uma fase intermédia da

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trajetória, à uma nova objetividade3, na qual pudesse aflorar, naturalmente, o


suprasensorial, ou seja, a experiência total dos sentidos.
Em um texto de 1972, Experimentar o experimental, época em que Oiticica já havia
abandonado a superfície plana, escreve “sentença de morte para a pintura começou
quando o processo de assumir o experimental começou/ durante a década começando de
59 minha obra passou a assumir o experimental/ conceitos de pintura escultura obra (de
arte) acabada display contemplação linearidade desintegram-se simultaneamente”4. Em
1959, ano citado no texto, Oiticica já está produzindo Bilaterais, objetos geométricos
tridimensionais, que embora apresentem ainda superfícies achatadas, ficando pendurados,
exploram a espacialidade e a projeção da cor. Pensando nos Metaesquemas (1956-1958)
pode-se afirmar que constituem uma etapa anterior da sua pesquisa. Trata-se, de fato, de
um conjunto de quadros que exploram o espaço e a cor, ainda através de figuras
geométricas na superfície da tela. Na trajetória do artista é como se as figuras geométricas
do Metaesquemas saíssem da tela para se projetar no ar na forma dos Bilaterais, e,
sucessivamente, desembocar em formas mais complexas e mais dinâmicas no âmbito do
espaço.
Nota-se (Figuras 1 e 2), que os Metaesquemas apresentam uma proximidade ao
suprematismo de Malevich e também aos motivos do De Stijl de Mondrian, neles insinua-
se uma pergunta: como conferir sentido e emoção à pintura no estado da sua
desintegração? através do questionamento do espaço e da relação entre cores.

Figura 1. Sêco 03, Metaesquemas, 1956 Figura 2. Metaesquemas, 1958.


Hélio Oiticica. Guache sobre papel, Hélio Oiticica. Guache sobre papel, reprodução
Coleção Ricardo Rêgo. fotográfica de autoria desconhecida

Fonte: MAM Rio Fonte: Itaú Cultural

Observa-se no Metaesquema da figura 1.5, que pequenas formas geométricas se


espalham pelo espaço quase em forma de vórtice, movimentando a geometria plana,
podendo tomar, dependendo do olhar e da perspectiva, lateralidades diferentes de

3
Oiticica define como “Nova objetividade” o estado brasileiro “da arte atual”, isto é, da época em que o
texto foi escrito - 1967 - este como outros do artista encontram-se reunidos na coletânea escolhida e
organizada por Lygia Pape, Luciano Figueiredo e Waly Salomão sob o nome “Aspiro ao grande labirinto”
(1986).
4
Grifos do autor. Onde foi colocado o símbolo “/” marca-se o parágrafo sinalizado pelo próprio autor em
destaque. Muitos desses textos aparecem datilografados ou ainda escritos à caneta e são acessíveis online
pelo arquivo digital do projeto Hélio Oiticica.
5
Imagens de outros quadros do conjunto Metaesquemas. Disponíveis em:
http://legacy.icnetworks.org/extranet/enciclopedia/ho/index.cfm?fuseaction=Detalhe&pesquisa=simples&
CD_Verbete=4358.

162
Corpos que Dançam | 2022

engrenagem do movimento, em que as cores escuras preto e laranja em cima de uma base
clara operam no nível do contraste e, ainda, não há, como será observado sucessivamente,
escalas cromáticas de uma mesma cor (ton sur ton). Na figura 2., os elementos
geométricos na superfície branca são retângulos, que embora planos e compostos por
lados retos, por causa do comprimento assimétrico de base e altura do perímetro, criam
discrepâncias na justaposição de cada figura, o que confere, a final, novamente,
movimento. A geometria férrea dos retângulos, aparentemente inabalável na construção
linear e a relação entre as duas cores mais básicas, o preto e o branco, desintegram o seu
geometrismo perfeito, inserindo movimento e irregularidade, isto é introduzindo o ritmo.
Mas a geometria plana não consegue responder à necessidade de exploração da interação
espaço, obra, fruidor. Assim a partir dos anos 60 Oiticica projeta as geometrias dos
Metaesquemas no ar. Elementos de madeiras pendurados no teto, tendencialmente de
tonalidades de amarelo e vermelho, insinuam-se no espaço físico, adentram-se, infiltram-
se com suas irregularidades côncavas e convexas, podendo ajeitar-se de diferentes formas
e podendo, assim, ser vistos de diferentes perspectivas. Oiticica considerara-se um dos
primeiros artistas a sair da superfície achatada da tela para tentar resolver os problemas
formais no ambiente: “existe em 72 algum pintor importante q haja assumido o
experimental no canvas-moldura na aspiração mural ambiental espacial/ não conheço”
(Oiticica, 1972, paras.4-5).

Figura 3. Relevo Espacial, 1959 Figura 4. Núcleo NC 6, 1960


Hélio Oiticica. Acrílico sobre madeira. Hélio Oiticica, Pintura sobre madeira recortada.
Foto: Antonio Caetano Foto: autor desconhecido

Fonte: Itaú Cultural Fonte: Itaú Cultural

As formas geométricas dos Relevos espaciais (1959-1960) reproduzem mais do que


superfícies planas, sólidos projetados no ar - “objeto insólito [...] num monocronismo
violento e franco” (Pedrosa, 1998, p. 356). Comparados aos Bilaterais, nota-se que
existem dobras e, consequentemente, mais movimento. Os Bichos (1960-1966) de Lygia
Clark, amiga e artista estimada por Hélio Oiticica, companheira dos questionamentos dos
neoconcretos, parecem ser irmãos dessas produções, só que já construindo uma relação
mais próxima com o público e sendo, portanto, manuseáveis e em escala menor.
A projeção espacial torna-se mais imponente ainda mais nos Núcleos (1960-1966). Na
figura 4. vê-se algo parecido a uma espécie de labirinto suspenso, em que o público pode
interagir com ele de diferentes lateralidades e, eventualmente, adentrar-se na obra. O
elemento mais importante é o uso de tonalidades diferentes da mesma cor, em que o
fruidor recebe reflexos de várias angulações, sendo assim envolvido por uma experiência
cromática total. A experiência, os sentidos e as sensações estimuladas através da arte
começam a ter um peso maior.

163
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Figura 5. Bicho, 1961, Lygia Clark


Alumínio, cm 53x59

Fonte: Itaú Cultural

A exploração psicológico-perceptiva das proposições de Oiticica é assim definida por


Mário Pedrosa (1998), no texto Arte Ambiente, arte pós-moderna, Hélio Oiticica:

Agora, nessa fase de arte na situação, de arte antiarte, de ‘arte pós-moderna’, dá-se o
inverso: os valores propriamente plásticos tendem a ser absorvidos na plasticidade das
estruturas perceptivas e situacionais. É fenômeno psicológico perfeitamente
destrinchado o fato de a plasticidade perceptiva aumentar sob a influência das emoções
e dos estados de afetividade. Os artistas vanguardeiros de hoje não fogem dessa
influência, como os clássicos do modernismo, e muito menos a procuram,
deliberadamente como o faziam os subjetivos românticos do ‘expressionismo abstrato’
ou ‘lírico’. Não é a expressividade em si que interessa à vanguarda de agora (Pedrosa,
op. cit., pp. 355-356).

É a confirmação de que a arte abstrata, está deixando espaço para outras investigações,
que partem de um conceito participativo, primeiro tímido com obras que se aproximam
das instalações (na época o uso deste termo ainda não estava consolidado), depois
completo com a o Programa Ambiental Parangolés.
Destaca-se que Oiticica sente a necessidade de apontar para o fato que essas criações
não podem ser consideradas uma saída do quadro em direção da escultura, ou ainda, como
um caminho de volta para a arte figurativa-representacional, mas que nascem do desejo
de “fundar uma nova condição estrutural do objeto que já não admite essas categorias”
(Oiticica, 1965, agosto 20). Entende-se que se funda um novo momento da arte brasileira
contemporânea, em direção a um abandono gradual das especificidades dos meios e das
formas expressivas, para, através de novas formas sensíveis, estimular novas formas de
“receber” a arte, ou melhor, de interagir com ela. Maurice Merleau-Ponty, bastante citado
nas infinitas anotações de Hélio Oiticica, estava colocando, a partir da década de 1940,
novas questões no âmbito da fenomenologia: começa-se a entender que não há imanência6
no conhecimento do mundo, pois ele está sempre sendo recriado pelo contato com as
coisas mesmas, os corpos, os ambientes em que estão inseridos e a situação na qual se
encontra o sujeito observador. O sujeito pode sentir e, a partir desse sentir, elaborar
conhecimento, a impressão e a sensação, sempre consideradas enganadoras e

6 Com o termo imanência se faz referência, nesse trecho, a um conhecimento que se resolve unicamente no
eu individual e na consciência. Para as diversas definições filosóficas do termo consultar o Dicionário de
Filosofia de Nicola Abbagnano (Fontes, 2007). Ao longo do artigo o termo vai aparecer em citações de
Oiticica, que, todavia, vai usá-lo com um valor diferente, entendido como o movimento contrário à
transcendência.

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inconsistentes do ponto de vista da criação de um conhecimento sólido, se comparadas


ao exercício do intelecto, começam a assumir um papel central, à condição que não se
reduza tudo a um movimento interno da consciência senciente (o sujeito) e assumindo,
portanto, que aquilo que parece ser mais verdadeiro dentro de nós, também pode ser
enganoso e ilusório. O sujeito precisa de ser considerado na relação com os demais
elementos, elementos fatoriais que intervêm e se combinam solidariamente na gestação
da percepção pois, como pergunta retoricamente Merleau-Ponty, “ver não é sempre ver
de algum lugar?” (Ponty, 2018, p. 103), a perspectiva é sempre limitada a um dado
momento e a um dado contexto. Lembra-se do famoso exemplo trazido pelo filósofo das
retas de Müller-Lyer (Ponty, op. cit., p. 27). Trata-se de duas retas do mesmo tamanho,
uma com duas pontas acuminadas nas extremidades, apontando para fora e a outra com
ambos os lados acuminados, apontando para dentro (figura 6): oticamente, embora sendo
do mesmo tamanho, as retas aparecerão diferentes. A verdade da percepção para Ponty
não está nem no empirismo absoluto, nem numa vertente psicologizante, que reduz tudo
ao sujeito, mas no fenômeno que é de ordem relacional. Essa é uma lição que Oiticica
incorpora nas suas obras, onde a experiência não está só no sujeito, nem só no objeto, mas
se funda em um campo de fenômeno, um campo, enfim, relacional.

Figura 6. Exemplo da ilusão ótica,


conhecida com o nome de Müller-Lyer

Fonte: Wikimedia Commons

Consciente das relativizações e multiplicidades de fatores que intervêm no fenômeno


da percepção, Hélio Oiticica cria com os Núcleos7 uma experiência multiperceptiva de
um mesmo espaço, fracionando-o parcialmente, deixando buracos e partes mais
suspensas que outras, propiciando uma vivência diversificada do espaço em interação
com os divisórios. As diferentes refrações de cores, tanto pelas diversas angulações de
instalação de cada painel, quanto pelas diversas perspectivas que o público pode assumir,
intervêm de forma diversa na gestação de uma sensação. O corpo de quem frui passa
pontianamente a ser mais um objeto desse mundo, que vai se construir em relação aos
demais corpos, objetos do mundo inseridos no mesmo ambiente. A arte de Oiticica,
embebida dessas discussões, cria no intuito de impulsionar novas formas de sentir,
manipulando elementos ambientais que vão se relacionar com o corpo fruidor.
O tempo, questão primordial da obra segundo Oiticica, é uma relação que o homem
constitui no envolvimento com a própria obra, cuja duração, fora de uma arte
contemplativa, vai se dar pela interação: “Diante dela [da obra] o homem não mais medita
pela contemplação estática, mas acha o seu tempo vital à medida que se envolve, numa
relação unívoca, com o tempo da obra; está ele, aqui, ainda mais próximo da vitalidade
pura que queria Mondrian” (Oiticica, op. cit., p. 47). A criação de um envolvimento ainda
7
Para ter uma visão mais abrangentes dos Núcleos, há registos de imagens. Disponíveis em: <
http://legacy.icnetworks.org/extranet/enciclopedia/ho/index.cfm?fuseaction=Detalhe&pesquisa=simples&
CD_Verbete=4374>.

165
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mais profundo com a proposição artística se dá definitivamente com os Penetráveis


(1961-1980) e os Bólides (1963-1979).

Figura 7. Penetrável, 1960, Homenagem a Mário Pedrosa Figura 8. B11, Bólide Caixas, 1964
Hélio Oiticica, Reprodução fotográfica Cláudio Oiticica Hélio Oiticica, Reprodução fotográfica
Cláudio Oiticica

Fonte: Itaú Cultural Fonte: Itaú Cultural

Com essas obras, a interação torna-se factual. O tempo de interação torna-se tanto do
participante, quanto da própria obra, que dura enquanto se interage com ela8. Os
Penetráveis investigam cor e espaço como as obras anteriores, a grande diferença é que,
funcionando como cabines com portas que abrem em direções e lateralidades diferentes,
permitem a passagem do fruidor, que não só cria a sua própria espacialidade, como,
podendo atravessá-la ou fechar-se nela, encontra-se completamente envolvido pela cor.
A passagem da contemplação para interação é alcançada. Para o olhar contemporâneo, o
elemento interativo pode parecer algo normalizado, mas naquele momento romper com
sacralização do objeto artístico, tanto para o que seria considerado arte, quanto para o
lugar de exposição e tipo de interação, constituía uma mudança radical, especialmente
pelo que concerne a democratização da produção artística, não mais considerada assunto
para especialistas. Releve-se também que os anos 60 e 70, no Brasil, são anos de ditatura
e, embora a tortura militar passasse pelo corpo, em termos sociais e culturais, entenda-se
públicos, tudo o que era referente ao corpo era negado, abafado, pois os corpos falam a
verdade da opressão e da repressão. Um corpo disciplinado que não escuta suas verdades
é um corpo controlado. A ideia de chamar o cidadão para ouvir a forma como ele está no
mundo a partir da interação com um não-objeto artístico9 é absolutamente radical. Os
Bólides assumem, por essa razão - aumentar a possibilidade de manuseio - dimensões
menores, também porque eles trabalham de forma mais exacerbada em um nível
multissensorial. Trata-se (Figura 8.) de pequenos elementos de madeira, parecidos a
mobílias, sempre em escalas cromáticas da mesma cor; dessa vez, o participante é
convidado a explorar, abrir possíveis portas, gavetas à vista ou escondidas, interagindo
com o que foi neles guardado: conchas, cheiros, areia, fotografias. O sentido da vista que
flerta com uma arte de cunho representativo-mimético deixa espaço ao tátil, ao olfato e a
tudo que do cruzamento desses sentidos decorre. Em algumas dessas obras, espelhos
encaixados funcionam como elemento agregador do espaço externo numa fusão entre a

8
Partindo desse pressuposto entende-se também o porquê da crítica quando as obras de Hélio Oiticica ou
Lygia Clark são colocadas em baixo de uma teca. Obviamente, há critérios de conservação, mas a
museologização desses trabalhos, a impossibilidade de manuseá-los, determina sua morte.
9
As criações artísticas no âmbito do movimento neoconcreto são chamadas de não-objeto.

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própria espacialidade da obra, do participante e do ambiente externo. A propósito dos


Bólides como passagem fundamental para uma centralidade do corpo, Celso Favaretto
(2017) escreve:

Visando a ressaltar o caráter operatório dos Bólides, que fazem a passagem das
‘estruturas transcendentais imanentes’ para ‘estruturas comportamento-corpo’,
Oiticica caracteriza-os como ‘transobjetos’, ressaltando, inclusive, que a proposta é a
mesma dos Parangolés. Neles importa o signo e não o objeto como obra, pois a
participação (explorar, manipular, descobrir) é a atividade constitutiva (Favaretto,
2017, p. 37).

O suprasensorial: Dionísio, Samba e Mangueira

Como sublinha Favaretto (2017) o projeto dos Parangolés, que constituem para Hélio
Oiticica muito mais que a produção de capas coloridas em materiais diversos para serem
vestidas e dançadas, são um verdadeiro projeto vivencial através do qual criar mudanças
na sociedade, mudanças que se dão pelos afetos - afeições do corpo pela dança e por
outras subjetividades envolvidas na arte ambiental. Através do envolvimento total do
corpo, a vivência da embriaguez dionisíaca, isto é, da arte para além das estruturas, que
se dá por uma dança desintelectualizada, o Samba, as pessoas (propositor, participadores,
que vestiam os parangolés e os que estavam presentes no lugar) conseguiriam alcançar a
vivência da arte total, apagando qualquer tipo de diferença entre arte e vida, as duas coisas
viriam a coincidir. Sentimento romântico este que Oiticica compartilha com um dos
autores que ele cita com mais frequência: Nietzsche. A dança é o instrumento que Hélio
Oiticica encontra para continuar a sua pesquisa de projeção de cores no espaço e criação
de ambientes vivenciais: o corpo é uma nova tela, só que com as complexidades
carregadas pela subjetividade dançante (vivente) vestida com os Parangolés e inserida
dentro de um ambiente onde se choca e relaciona com outras subjetividades.
O termo Parangolé, como relata detalhadamente Waly Salomão (2015), era uma
palavra da gíria da urbanidade carioca inserida frequentemente na expressão “Qual é o
Parangolé?”:

[...] era uma expressão muito usada quando cheguei da Bahia para viver no Rio de
Janeiro, e significava, entre outros sentidos mais secretos: ‘O que é que há?’, ‘O que é
que está rolando?’, ‘Qual é parada?’ ou ‘Como vão as coisas?’. Somente para marcar
a plasticidade dinâmica da língua: alguém indagar ‘E as coisas’ na gíria carioca de
então não significava preocupações físicas, alquímicas ou filosóficas, mas muito
simplesmente uma interrogação sobre o que hoje atende pela poética alusiva de
‘fumaça-mãe’, ‘pau-podre’, ou seja, designa o mesmo que é ótimo oriundo da língua
quimbundo dos bantos angolanos: maconha (Cannabis Sativa) (Salomão, op. cit., p.
30).

Relata-se também que o momento epifânico houve quando Hélio Oiticica viu um
mendigo na rua com o seu conjunto de bugigangas e farrapos-lonas esticados num
estandarte e a escrita parangolé. O mendigo com o seu parangolé representava o que
Hélio Oiticica valorizava como elemento poético urbano, os marginais na resistência para
a vida, uma resistência, que embora dura, é muitas vezes mais autêntica e mais alegre do

167
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que a vivência burguesa10. O parangolé do mendigo representava um elemento orgânico,


dentro da cidade, assim como ele costumava definir a arquitetura da favela: orgânica.
Espaços entrelaçados e interrelacionados de maneira natural, cujas relações que nele se
estabeleciam não tinham nada de artefato. A mesma organicidade relacional reside no
corpo dançante envolvido pelo parangolé, feito por materiais de uso comum, com suas
frases escritas nas dobras e visíveis de forma diferenciada à medida que o corpo dançante
projetasse os tecidos e suas cores no espaço. A dança dos parangolés é orgânica porque,
como lembra Oiticica, não é uma dança intelectualizada, ensaiada e “colocada” na
memória corporal através da repetição da coreografia, mas brota da naturalidade do corpo,
do envolvimento com a música, de uma sensação que é pura vida:

Antes de mais nada é preciso esclarecer que o meu interesse pela dança, pelo ritmo, no
meu caso particular o sambar, me veio de uma necessidade vital de
desintelectualização de desinibição intelectual, da necessidade de uma livre expressão,
já que me sentia ameaçado na minha expressão de uma excessiva intelectualização
(Oiticica, op. cit. p. 72).

A busca formal abandona a matéria e nem pode se chamar mais de busca formal, mas
sim de pesquisa artístico-vivencial, encontrando no popular, na negritude brasileira, no
arquivo de conhecimento perseguido ao longo do tempo - o samba - a resposta mais
genuína para a realização do Programa Parangolé. O encontro com o Samba começa em
1964, por intermediação do amigo artista Jackson Ribeiro que vivia no morro da
Mangueira. O encontro com o morro, com a escola de Samba é para Oiticica como um
renascer, um abandono do excesso de estruturas de uma arte, que Nietzsche definiria
apolínea, que abafa o elã para o universal, toda concentrada na execução de técnicas para
o alcance de formas sublimes11. Assim, Hélio Oiticica afirma com força o poder
arrebatador da dança como forma expressiva, em combinação relacional com os
parangolés e o entorno:

A dança é por excelência a busca do ato expressivo direto, da imanência desse ato; não
a dança de balé, que é excessivamente intelectualizada pela inserção de uma
‘coreografia’ e que busca a transcendência desse ato, mas a dança “dionisíaca”, que
nasce do ritmo interior do coletivo, que se extrema como característica de grupos
populares, nações etc. A improvisação reina aqui no lugar da coreografia organizada;
em verdade, quanto mais livre a improvisação, melhor; há como que uma imersão no
ritmo, uma identificação vital completa do gesto, do ato com o ritmo uma fluência
onde o intelecto permanece como que obscurecido por uma força mítica interna

10
Lembra-se de um dos Bólides (n° 18, B-33, 1965) realizado em homenagem a Cara de Cavalo, um
traficante amigo de Oiticica, que foi brutalmente assassinado pela polícia com 62 tiros no corpo. Cara de
Cavalo, pelo menos, segundo Oiticica, teria morrido rebelando-se à bruta força opressora. Foi-lhe também
dedicada, três anos mais tarde, a bandeira-poema Seja marginal, seja herói com a estampa do corpo morto
do amigo. Essa mesma bandeira, em 1969, foi levantada por Caetano Veloso e Gilberto Gil durante um
show e foi a razão oficial do exílio proclamado pela ditatura militar.
11
“Assim, o apolíneo nos arranca da universalidade dionisíaca e nos encanta para os indivíduos: neles
encadeia o nosso sentimento de compaixão através deles satisfaz o nosso senso de beleza sedento de grandes
e sublimes formas; faz desfilar ante nós imagens de vida e nos incita a aprender como o pensamento o cerne
vital nelas contido. Com a força descomunal da imagem, do conceito, do ensinamento ético, da excitação
simpática, o apolíneo arrasta o homem para fora de sua auto-aniquilação orgiástica e o engana, passando
por sobre a universalidade da ocorrência dionisíaca, a fim de leva-lo à ilusão de que ele vê uma única
imagem do mundo, por exemplo, Tristão e Isolda, e que, através da música, apenas há de vê-la melhor e
mais intimamente” (Nietzsche op. cit., p. 127).

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individual e coletiva (em verdade não se pode aí estabelecer a separação). As imagens


são móveis, rápidas inapreensíveis - são o oposto do ícone, estático e característico das
artes ditas plásticas - em verdade a dança, o ritmo são o próprio ato plástico na sua
crueza essencial - está aí apontada a direção da descoberta da imanência (Oiticica, op.
cit., p. 73).

O ritmo interior do qual fala Hélio Oiticica é o mesmo ritmo que tenta inserir nos
Metaesquemas da idade juvenil, quebrando a rígida geometria da superfície plana. A
improvisação do samba remete à organicidade da arquitetura e da vivência do morro,
naturalmente desencadeada. O retorno a uma força mítica interior, que se alcançaria
através do ato de dançar, por sua vez, remete ao próprio Dionísio, pois, dionisíaca definia
a sua arte.
Oiticica enxerga o termo “dionisíaco” conforme a visão nitzscheana, exposta no livro
sobre o nascimento da tragédia grega. De fato, pode-se ir mais longe no tempo bebendo
diretamente dessas referências gregas e romanas. Dionísio, Baco para os romanos, era
conhecido pelos rituais iniciáticos e propiciatórios a ele dedicados, em que as bacanais,
mulheres devotas do deus dançavam de maneira concitada. Nas suas danças deveria
emergir a força bruta vital, uma pulsão que se manifestava no corpo e que se expandia
com seus movimentos, inebriando o espaço ao redor. O raciocínio, o pensamento
apolíneo, lógico, sistemático era o antípoda do fluxo dionisíaco. Esses rituais iniciáticos
com danças, ficaram uma tradição muito enraizada no Sul da Itália — lembra-se, a tal
propósito, que na Vila dos Mistérios de Pompeia (II sec. a.C.-79 a.C.) um fresco inteiro
representa os mistérios de iniciação dionisíaca. Os antigos rituais bacanais deram origem
a muitas outras danças da família das Tarantellas, como por exemplo a Pizzica. Trata-se
de danças populares, agitadas, sem coreografia, que combinam passos e eram praticadas
pelos camponeses como forma de diversão e resistência ao trabalho oprimente feito no
campo em prol da nobreza latifundiária. Essas danças, reprovadas pela licenciosidade do
apelo às forças mais instintivas, eram justificadas como uma maneira de expulsar o
veneno decorrente de picadas de aranha. A ligação com o dionisíaco e com as danças
menos “disciplinadas por códigos”, vistas como forma de libertação, de exorcização do
mal e de iniciação à vida, encontra a sua peculiar elaboração tropical com Hélio Oiticica,
bebendo do terreno ancestral trazido pelos africanos escravizados e que o fizeram reviver
na batida do samba.
A dança não coreografada e popular - dionisíaca - representa a libertação total do corpo
das amarras da sociedade que o educa sensível e esteticamente para oprimi-lo e controlá-
lo. Quantas danças não são consideradas danças por não se encaixarem no vocabulário de
movimentos, passos e sequências que segundo o cânone estético são susceptíveis de
apreciação? Quantas criações artísticas não são fruídas porque não há pessoas capazes de
receber objetos-obras que não se encaixem nas formas sensíveis às quais estamos
acostumados?
Os participantes da vivência Parangolés dançavam samba, sem coreografia, mas
obviamente com passos típicos dessa dança que poderiam, modularmente, ser
combinados em sequências diferenciadas, todas as vezes novas e improvisadas. Para
Oiticica o improviso era fundamental para a desintelectualização da dança, para que se
livrasse da busca apolínea da forma sublime, transcendente, que representava a sua
trajetória com o progressivo abandono do quadro e da perfeição formal geométrica.

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Figura 9. Parangolé, P 15, Capa 11, Incorporo a Revolta, 1967,


Hélio Oiticica, técnica mista. Reprodução fotográfica Cláudio Oiticica

Fonte: Itaú Cultural

Pensando em Merce Cunningham e no uso que ele faz nas suas coreografias em
patchworks de movimentos heterogêneos e de procedências diversas (Gil, 2002, p. 65)
pode-se ver que até nas abordagens mais experimentais, a questão do ensaio é colocada
como condição para se alcançar, ainda na experimentação, uma forma de naturalidade
dos movimentos para que esses possam transmitir uma certa energia (Cunningham 1951
apud Gil, op. cit.). Isto é bastante peculiar e fala-nos sobre a organização epistemológica
dos saberes e conhecimento do mundo dos séculos XX e XXI, que ainda afunda suas
raízes em visões organizacionais das linguagens expressivas (não importa quais) e da
recepção como desencadeamento de estratégias perceptivas sempre iguais para processar
coisas que estamos acostumados a “consumir”. Mas para que as estratégias perceptivas
“habituais” funcionem é necessário que as coisas abordadas se encaixem em paradigmas
e em forma de linguagens organizadas, já compartilhadas pelos receptores. Embora a
dança não seja uma linguagem stricto sensu, no sentido de possibilidade de disseção em
elementos discretos (Sparshott 1995 apud Gil, op. cit.), existem inúmeros vocabulários
de gestos e movimentos decorrentes das danças institucionalizadas e que moldam o gosto
do público, assim como coagem, sem exercer um poder evidente, as formas sensíveis nas
quais se cria. Isso poderia ser entendido melhor checando os botequins de vendas dos
espetáculos excessivamente experimentais. O que se problematizar é, que até mesmo na
experimentação, é difícil se libertar dos condicionamentos que dirigem a forma de criar e
também de receber. Cunningham era um grande experimentador e inovador da dança,
mas é peculiar que ensaiar para criar danças em patchworks, serviria para “testar” a
possibilidade de que aquela combinação de movimentos resultasse natural.

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José Gil (2002) acrescenta que para ele Cunningham estaria, de alguma maneira,
através da incorporação desses movimentos “atípicos” na dança, colocando a mesma
questão que os ready-made de Duchamp, isto é, como esses elementos insólitos para arte,
depois de um tempo passam por um processo de “canonização”, tornando-se repertório.
Pode-se dizer que a operação de Oiticica diverge sobre um ponto essencial: ele parece
não estar fomentando um tipo de provocação baseada em trazer algo de muito inusitado
para chocar e ver se colocado em outro contexto, em exposição, pode começar a ser
considerado arte. Diferentemente, Oiticica parece afirmar que no cotidiano, na
urbanidade, nos elementos marginalizados, na cultura popular, nos corpos dos passistas,
combinados em contextos e situações diversas, reside a possibilidade de fazer arte em
forma de vida. Ele não faz arte com coisas que não considera já em si uma forma de
vivência artística. Duvida-se, por exemplo, que Duchamp considerasse A fonte (1917),
alias mictório, carregada de um verdadeiro valor, além daquilo que lhe é atribuído no
âmbito puramente conceitual. Assim, provavelmente, um gesto incorporado por
Cunningham em alguma sequência de dança, poderia não ser considerado interessante
por si só ou como algo a ser investigado se tomado singularmente. Pensa-se, pelo
contrário, que para Oiticica o Samba em si, embora nos Parangolés ele estivesse inserido
em um contexto relacional, já constituiria uma obra andante. Oiticica, portanto,
considerando alguns elementos como portadores de valor artístico, criativo e vital,
engloba-os no Projeto Parangolés da forma mais livre possível: sem ensaio e sem
coreografia. Assim ele descreve o potencial do samba como elemento de criação que se
dá pelo corpo, sempre renovado, sempre diverso. Ainda assim, a perpetua
transformabilidade do movimento, não remete à uma sua efemeridade, pois suas
características expressivas fixam-se:

A experiência da dança (o samba) deu-me portanto a exata idéia do que seja a criação
pelo ato corporal, a contínua transformabilidade. De outro lado, porém, revelou-me o
que chamo de ‘estar’ das coisas, ou seja, a expressão estática dos objetos, sua
imanência expressiva que é aqui o gesto da imanência do ato corporal expressivo, que
se transforma sem cessar (Oiticica, op. cit., p. 75).

A participação corporal direta, segundo Oiticica, realizava o tipo de envolvimento


necessário, pois a obra devia ser tanto vestida, quanto dançada. As duas coisas traziam
uma transmutação expressivo corporal do espectador, sendo que a modificação do corpo
seria a característica primordial da dança, assim como a sua condição (Ibidem). São
formas de arte que Nicolas Bourriaud (2009/1998) sucessivamente definirá como estética
relacional. A diferença é que a relação participativa nos Parangolés é total, pois o corpo
é o primeiro estandarte. Os parangolés vestidos como telas dançantes “ativam o que
Oiticica descreveu como ‘cor em movimento’. Isso é o que ele chama de ‘ciclo da
participação’ e de realização de uma ‘obra ambiente’, vestindo e assistindo” (Ricupero et
al., 2020, p. 41). Nas notas sistemáticas que Hélio Oiticica tomava sobre suas proposições
artísticas e projetos sinalizava claramente os diversos núcleos expressivos dos parangolés:
o “participador-obra”, que veste e dança o parangolé, o participador, que assiste e
interage, a obra quando é assistida de fora “nesse espaço-tempo ambiental” (Oiticica, op.
cit.); o sistema ambiental parangolé propiciaria uma “‘vivência-total Parangolé’, que é
sempre acionada pela participação do sujeito nas obras e lançada no mundo ambiental
como que querendo decifrar a sua verdadeira constituição universal, transformando-o em
‘percepção criativa’.” (ibidem).

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Se a dança e o ritmo são elementos cabais, entende-se também porque Oiticica está
convencido de que o que ele faz é música (Ibidem)12, pois coloca um ambiente inteiro
ressoando como um conjunto orquestral na batida de um som. Nisso converge mais uma
vez, e percebe-se que Oiticica não estava a jejum dessas leituras, com a visão nietzscheana
sobre a articulação da tragédia, na qual se criava um conjunto participativo, em que a
ideia de público era diluída em uma compenetração total com o representando. Assim
escreve Nietsche sobre a compenetração entre público e coro:

Mas cumpre ter sempre presente no espírito que o público da tragédia ática
reencontrava a si mesmo no coro da orquestra e que, no fundo, não se dava nenhuma
contraposição entre o público e coro: pois tudo era somente um grande e sublime coro
de sátiros bailando e cantando ou daqueles que se faziam representar através desses
sátiros. (Nietzsche, 1992, p. 58)

A diferença é que os Parangolés não são um espetáculo, um cabaret artístico ou uma


performance que gera uma relação quase xamânica, como já disse Schechener (2012)
acerca da energia criada entre performer e público, mas sim uma situação onde todos
participam da criação da energia do ambiente da mesma forma, embora com funções
diferentes.
Nos textos escritos em 196713 sobre o suprasensorial, Oiticica define com mais clareza
o que ele tenta fazer como programa artístico, isto é, impulsionar exercícios criativos
superando as barreiras de categorização das artes e dos objetos de cada forma expressiva
(Oiticica, op. cit.), isso, porque, em vez de pensar na pintura como algo dirigido à vista,
ou na música como algo dirigido ao ouvido e, assim por diante, a ideia é se dirigir aos
sentidos na sua inteireza para através da: “ ‘percepção total’ levar o indivíduo a um a
‘supra-sensação’, ao dilatamento de suas capacidades sensoriais habituais, para
descoberta do seu centro criativo interior da sua espontaneidade expressiva adormecida,
condicionada ao cotidiano” (ibidem).
A ideia proposta parece ser de uma arte que se realiza e concretiza exatamente por sair
dos padrões estabelecidos do “fazer arte” e do “perceber arte”: o corpo precisa reaprender
a sentir, despertar o adormecido, tanto como obra vivente, vestindo os Parangolés ou
interagindo com objetos relacionais como os Bólides, propiciando experiências sensoriais
diversas (táteis, olfativas, etc.); quanto como fruidor de arte, abandonando as
epistemologias que direcionam o julgamento da obra de arte com base em execuções de
técnicas ou níveis de aderência mimética. Reeducar o corpo ao sentir e às verdades que
disso brotam, vai na contramão de uma boa parte do pensamento ocidental que tem
colocado o sentir e as sensações num lugar de precariedade e desconfiança para o
conhecimento do mundo. Escreve-se nesse trecho de história da arte contemporânea
brasileira a possibilidade de criar a partir de uma poética dos sentidos e das relações.
Todavia, o artista ressalta que a intenção não implica a diluição das estruturas, mas sim
sua projeção num sentido total (Oiticica, op. cit.), talvez, quem sabe, no elã titânico de
conciliar o corpo e a mente, o concreto e o abstrato. No fundo, as cores dançantes dos
parangolés que esvoaçam e se desdobram pelo ar ao ritmo do samba são de alguma
maneira a concretização do movimento, que se tentou colocar nos Metaesquemas e da

12
Depois do samba sua grande descoberta é o rock de Jimmy Hendrix.
13
À busca do suprasensorial 10/1967. Disponível
em:http://legacy.icnetworks.org/extranet/enciclopedia/ho/index.cfm?fuseaction=documentos&cod=481&t
ipo=2 O aparecimento do suprasensorial 12/1967. Disponível em:
http://legacy.icnetworks.org/extranet/enciclopedia/ho/index.cfm?fuseaction=documentos&cod=481&tipo
=2 O segundo texto encontra-se também na seleção do livro Aspiro ao grande labirinto (1986).

172
Corpos que Dançam | 2022

busca de cor e materialidades que foram explorados nos Núcleos e nos Bólides. Com os
Parangolés como sistema de vivência, o pensar e o fazer da obra não são mais momentos
distintos, mas sim convergentes, propiciando uma nova escuta de si, dos corpos, que
redefinem um sentir fora da coação dos preceitos sociais, da educação perceptiva à qual
a existência em uma coletividade com valores e estruturas dominantes os obriga.
O Parangolé, portanto, é uma desobediência às regras estéticas, mas que traz rupturas
políticas e sociais, não só porque se rescreve uma nova forma de sentir através de novas
formas de criar e de se relacionar, mas pelo que essa reescrita de regras diz sobre a
inadequação dessas proposições artísticas às normas de uniformização e canonização:
trazem a proposta de uma linguagem expressiva não necessariamente linear, composta
por diversos códigos emaranhados. Uma arte, que para ser e estar não precisa de um artista
gênio, mas precisa de corpos que se juntam coletivamente, criando energia no entorno.
Os corpos que dançam os parangolés representam também inscrições coletivas históricas
fortes: são corpos que vêm do morro, corpos negros, que têm feito emergir com o
engajamento corporal direto na obra os grandes problemas raciais que afligiam o Brasil
da época e que, ainda hoje permanecem irresolvidos. José Gil afirma que cada bailarino
traz no seu próprio corpo inscrições sensoriais e existenciais que ficam como um
inconsciente do corpo, ao mesmo tempo, que há acontecimentos e coisas que não chegam
a inscrever-se, deixando um vazio, “uma sequência sinestésica nunca estimulada” (Gil,
op. cit., p. 88) e que sendo paralisada, bloqueia muitas outras. O experimento criativo dos
parangolés dançados pelos passistas da Estação Primeira de Mangueira parece assumir
para a sociedade que os recebe no MAM, na verdade que os rechaça e expulsa da
exposição Opinião 65, a função de um evento da história que a burguesia brasileira, por
conveniência, não inscreveu no corpo coletivo e que tentou apagar ou minimizar, não lhe
dando a possibilidade “de se tornar movimento”, exatamente como uma sequência
sinestésica paralisada. A dança dos parangolés pelos corpos da Estação Primeira de
Mangueira atua, portanto, como aquele movimento adormecido, que não foi escrito no
corpo social coletivo, por escolha e estratégia política de uma sociedade racista e elitista,
e que chega de repente para sacudir o corpo e desentravar outros movimentos possíveis
que o tinham como pressuposto. “A imanência total do ato da dança” assim como a
definia Oiticica, traz consigo a imanência, os significados profundos, que cada
subjetividade dançante representa.

Observações finais

Zaratustra, o dançarino; Zaratustra, o leve, que acena com as asas,


pronto a voar, acenando a todos os pássaros, preparado e pronto,
um bem-aventurado leviano. (Nietzsche, op. cit., p. 23)

O projeto Parangolé e o uso da dança como base de uma forma expressiva corporal
autêntica, remetem ao fato que o corpo, sendo o primeiro elemento oprimido pelas
linguagens discursivas e expressivas, quais elementos de síntese das coerções exercitadas
na sociedade, também é o primeiro dispositivo que precisa ser liberado. Os corpos gozam
da possibilidade do movimento, além do sopro e da voz para articular a linguagem verbal,
portanto, é exatamente a partir do movimento - livre, dionisíaco, não coreografado - que
podem explorar novas formas de estar no mundo que não passam pela organização das
linguagens. Essas novas formas de estar no mundo podem ser construídas onde se criam
fissuras, espaços, para se rescrever, na carne e no sentir, porque é aí onde as linguagens
disciplinadoras podem falhar, novos sentires podem ativar novas epistemologias que

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Corpos que Dançam | 2022

possam se servir de outras formas expressivas de abordagem do mundo. Para que esse
movimento aconteça é preciso que os corpos estejam abertos, predispostos.
Por mais que a linguagem verbal, na sua forma escrita, chegue a ser experimental,
sempre será necessária uma linearidade mínima para que a experimentação possa ter
sentido enquanto linguagem, pois faz parte das regras da linearidade dos signos verbais e
de sua articulação. Nas artes plásticas, também pode se experimentar de muitas formas,
mas tanto a body art que passa pelo corpo quanto a instalação interativa (formas mais
próximas à arte de Oiticica) recolocam o fruidor em uma situação de engajamento parcial.
Pois, na body art é o corpo do artista que está sujeito a mutações e intervenções e na
instalação, algo que já foi pensado está lá para eventualmente suscitar uma reação.
Permanece uma forma de “olhar para”, olhar para o corpo do artista modificado e olhar
para uma instalação para eventualmente ser estimulado a fazer alguma coisa. Uma obra
como os Parangolés faz com que quem os veste tenha que se engajar de forma completa
e total, pois do seu engajamento corpóreo e emocional dependerá como o parangolé se
desdobrará no espaço; desse engajamento corpóreo, em primeira pessoa, depende a
existência da obra. Nisso parece residir o diferencial da proposta relacional de Oiticica
dos anos ‘60, e também de Lygia Clark, pois, sem um corpo para além do artista, as obras
cessam de existir, simplesmente não duram e sem duração não há existência. Um
Parangolé pendurado num cabide, descontextualizado do ambiente-vivencial, poderia ser
apenas um casaco extravagante.
Acredita-se que esse tipo de engajamento corporal ativo - que está longe de um
happening, onde muitas vezes as pessoas recebem instruções sobre o que fazer ou é
simplesmente suficiente estar presente para que aconteça - deixe claro o fato de que não
pode haver mais revolução pela arte se essa não será capaz de envolver corpos individuais,
na forma agregada de coletividades. Mostrou-se também um princípio importante, se a
opressão se dá pelo corpo e pela educação senciente que ele recebe, a libertação só pode
passar por ele, por novas formas de afetá-lo (estéticas rebeldes), capazes de despertar
novas sensibilidades (novas epistemologias). Cada artista deveria, talvez, tornar cada
fruidor da sua obra, um Zaratustra, pronto a dançar, pronto a voar, pronto a rescrever
novos signos no corpo coletivo a partir da força criativa do seu próprio corpo.

Referências

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174
Corpos que Dançam | 2022

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http://www.forumpermanente.org/revista/numero-1/discussao-bissexta/vinicius-
spricigo/contribuicoes-para-uma-reflexao-critica-sobre-a-bienal-de-sao-paulo-no-
contexto-da-globalizacao-cultural#_ftnref22

Lista de imagens

Figura 1. Sêco 03, Metaesquemas. Hélio Oiticica. Fonte: MAM. https://mam.rio/obras-


de-arte/metaesquemas-1956-1958/
Figura 2. Metaesquema. Hélio Oiticica. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e
Cultura Brasileira. Itaú Cultural, 2022.
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra4864/metaesquema. Verbete da
Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
Figura 3. Relevo espacial. Hélio Oiticica. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura
Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022.
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra66408/relevo-espacial. Verbete da
Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
Figura 4. Grande Núcleo. Hélio Oiticica. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura
Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022.
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra66323/grande-nucleo. Verbete da
Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
Figura 5: Bicho. Lygia Clark. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura
Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022.
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra3941/bicho. Verbete da
Enciclopédia.ISBN: 978-85-7979-060-7
Figura 6. Exemplo da ilusão ótica, conhecida com o nome de Müller-Lyer. Fonte:
Wikimedia Commons. Disponível em: https://fr.wikipedia.org/wiki/Fichier:Müller-
Lyer_illusion.svg
Figura 7. Pentetrável PN1. Hélio Oiticica. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e
Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em:
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra66324/penetravel-pn1. Verbete da
Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
Figura 8. B11 Bólide Caixa 9, Hélio Oiticica. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e
Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022.
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra66313/b11-bolide-caixa-9. Verbete da
Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

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Figura 9. Parangolé P15, Capa 11, Incorporo a Revolta. Hélio Oiticica. Fonte:
Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022.
Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra12915/parangole-p15-
capa-11-incorporo-a-revolta. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

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A dança expandida de Pina Bausch

Cristiane Pimentel NEDER1


Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG)
[email protected]

Teresa NORTON DIAS


Universidade da Madeira (UMa)
[email protected]

Resumo: Partindo do trailer do filme Pina, de Wim Wenders (2011) e do teaser lançado
is it DANCE, is it THEATRE, or is it just, LIFE, LOVE, FREEDOM, STRUGGLE,
LONGING, JOY, DESPAIR, REUNION, BEAUTY, STRENGH (Wenders, 2011),
mergulhámos numa reflexão do campo da Dança, de que a já icónica frase Dance, dance...
otherwise we are lost, referida por Pina Bausch (1999) por ocasião da aceitação do título
de Doutor Honoris Causa na Discipline delle Arti, Musica e Spettacolo da Universidade
de Bolonha , Itália, em 1999, também faz parte. Às palavras e testemunhos, de quem com
Pina Bausch trabalhou, sucedem-se movimentos protagonizados pelos próprios, agora
eternizados através da tela. Trata-se efetivamente de um tributo do cineasta Wim Wenders
e do coletivo artístico do Tanztheater Wuppertal Pina Bausch. A particularidade do 3D
não se apresenta, neste texto, como objeto de reflexão, mas sim a mensagem perpetuada
através desta partilha compilada de peças e outros trabalhos de Pina Bausch (1940-2009)
e testemunhos do coletivo artístico que consigo trabalhava.

Palavras-chave: cinema, dança expandida, Pina Bausch, Wim Wenders

Abstract: Starting from the trailer of the film Pina, by Wim Wenders (2011) and the teaser
released is it DANCE, is it THEATRE, or is it just, LIFE, LOVE, FREEDOM,
STRUGGLE, LONGING, JOY, DESPAIR, REUNION, BEAUTY, STRENGH (Wenders,
2011), we plunged into a reflection of the Dance field, of which the already iconic phrase
Dance, dance... otherwise we are lost, mentioned by Pina Bausch (1999) on the occasion
of the acceptance of the title of Doctor Honoris Causa in the Discipline delle Arti, Musica
e Spettacolo of the University of Bologna, Italy, in 1999, is also part of it. The words and
testimonies of those who worked with Pina Bausch are followed by movements performed
by the artists themselves, now eternalised on canvas. This is effectively a tribute by the
filmmaker Wim Wenders and the artistic collective of the Tanztheater Wuppertal Pina
Bausch. The particularity of 3D is not presented, in this text, as an object of reflection,
but rather the message perpetuated through this shared compilation of pieces and other
works by Pina Bausch (1940-2009) and testimonials from the artistic collective that
worked with her.

Keywords: cinema, expanded dance, Pina Bausch, Wim Wenders

1
Pesquisadora Produtividade da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG-PQ).

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Dançar é mais do que movimentar o corpo. É elevar-se a alma para outros hemisférios;
é deixar a música tomar-nos e levar-nos. É se desprender do chão, no sentido mais amplo
de se desprender, não apenas do corpo. É acompanhar um ritmo e ser o ritmo em si.
Dançar é construir passos, gestos como se o corpo todo sorrisse envolvido na poesia de
cada melodia. Dançar é saber que o corpo existe, é tomar consciência de cada pedaço de
si, é tornarmo-nos íntimos de nós mesmos e saber que o corpo não foi feito apenas para
o trabalho, mas para o prazer. Dançar é um ato dionisíaco, onde o corpo se estende para
um território além da razão. A dança é uma arte em que o corpo é emprestado à sonoridade
dentro e fora de cada um(a).
Sendo apaixonadas por música, dança e cinema escolhemos o filme sobre o legado
social e artístico de Pina Bausch, do realizador Wim Wenders (2011) para analisar e falar
de dança performática, na sétima arte. Um filme que homenageia Pina Bausch (Philippine
Bausch, 27 de julho de 1940, Solingen/Alemanha - 30 de junho de 2009,
Wuppertal/Alemanha) e o seu coletivo artístico (1973-2009).
Bausch (1940-2009) teve uma carreira completa e diversificada: foi coreógrafa,
bailarina, pedagoga e diretora. Era conhecida por contar estórias enquanto dançava. A
maioria das suas coreografias foram baseadas na trajetória de seus bailarinos e bailarinas
e criadas, colaborativamente, entre eles e ela.
Entre as temáticas favoritas de Bausch (1940-2009) estava a interação entre o feminino
e o masculino, construindo uma linguagem corporal andrógina. O corpo para Bausch
(1940-2009) é um corpo sem territórios de gênero, de pátria, porque é um território de
artista e da arte, que é abrangente e plural. O filme é em linguagem documental, retratando
Pina Bausch através da sua obra e do testemunho dos que com ela trabalharam,
contribuindo para a sua relevância internacional na dança. Foi lançado em fevereiro de
2011, na Europa e em março de 2012, no Brasil, promovendo-a já depois da sua morte2.

Da síntese a partir do trailer

No trailer do filme temos um resumo do que trata a obra e principalmente, como a


dança pode revelar o corpo nas suas mais variadas vertentes. Lê-se, de forma faseada, a
frase/interrogação: “Isto é dança” (is it DANCE) para desmistificar que dança não é
apenas acompanhar uma música ou criar um bailado; que dança vai além de apenas se
seguir a fluidez musical com o corpo.
Depois a frase: “isto é TEATRO” (is it THEATRE), que o que Bausch (1940-2009)
fazia não era apenas dança, mas também teatro, que tinha personagens a se revelar, que
estava além da dança, mas era um espetáculo que contava estórias através dos gestos, das
fisionomias, dos olhares, do impulso dado em cada movimento, das vírgulas e pontuações
que o corpo abre na sua linguagem. Que além de dançar, Bausch (1940-2009) sabia
representar. Que a dança se conjuga e se acasala com outras artes. Que através da dança
podemos contar estórias e revelar sentimentos.
Depois outra frase, a que se seguiram palavras soltas cuja primeira aqui colocamos
depois das reticências: “Ou é apenas… VIDA” (Or is it just… LIFE). Ou seja, o primeiro
reconhecimento que temos da vida é ter consciência do nosso corpo, das lágrimas ao
nascer, dos sorrisos frouxos, dos pés afofando a terra ou a grama, do corpo interagindo
com a natureza, com outro corpo, com outros seres, com o calor, com o frio, com a água,
com tudo o que tem vida e nos convida a tocar e a estender além do nosso ser. Isto é vida,

2
Este documentário foi pensado e projetado por Pina Bausch e Wim Wenders, tendo a sua precoce morte
alterado o rumo do projeto inicial, que Wim Wenders concluiu. De relevar o facto de ser um filme preparado
para ser visto em 3D. Há ainda uma publicação em livro sobre o filme (Wenders & Wenders, 2012).

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porque a vida é saber que o corpo é regido pela mente, pela razão e pelas emoções, que o
corpo arquitetado no útero já se movimenta antes de vir ao mundo, que a dança nasce
connosco e que nós renascemos sempre quando dançamos ou tomamos consciência de
tudo o que o corpo pode manifestar. Que dançar é até sentir a respiração em cada parte
do nosso corpo em que o ar nos leva a flexionar os órgãos, que o ar enche os pulmões e
que para dançar colocamos em cada respiração, vida. A dança é vida, porque desde o
momento em que nascemos nos movimentamos e expressamos em cada gesto, nossos
desejos. O trailer mostra o bailarino escalando uma montanha e ao chegar ao topo dança
e todo seu corpo é felicidade; ele se entrega ao vento e o vento movimenta seus cabelos,
um dos seus pés estão afastados do chão, num meio voo com os braços estendidos para o
universo, expondo todo seu esplendor nos gestos.
Depois, a cena de um homem beijando a mulher no pescoço, envolvendo o corpo, se
tocando, depois girando juntos, dançando e ao mesmo tempo se amando. A palavra é:
“AMOR” (LOVE), ou seja, a dança também é amor, com o corpo nosso e com o corpo do
outro. É colocar sentimento em cada gesto e tomar consciência do nosso corpo e do corpo
do outro. Dançar é acasalar-se, num certo sentido. Assim, como muitos dos animais
dançam antes de se acasalarem, nós, seres humanos, nos tocamos, beijamos, temos a troca
de energias, somos atraídos um pelo outro, pelo olhar, pelo cheiro, pelo calor do corpo,
pela volúpia e a dança é o conjunto de todas estas emoções, mesmo que não façamos sexo
ao dançar, mas nos envolvemos com a beleza do mundo e dos outros. A dança é a entrega
da alma às diversas formas de beleza, como o amor.
Depois a palavra, “LIBERDADE” (FREEDOM). Quando dançamos nos sentimos
livres, artistas completamente, divorciados de qualquer sistema, podemos nos jogar no ar,
ter a sensação de voar; mostra um bailarino invadindo o espaço do ar com seu corpo, se
soltando ao saltar, estando completamente liberto de amarras, tanto físicas, quanto
psicológicas. A dança nos liberta, nos dá a sensação de sermos pássaros, de nos
desprendermos de qualquer amarra, de ficarmos leves para sermos levados pela vontade
do corpo, pela vontade de nos encontrarmos soltando a alma do próprio corpo, sendo
conduzidos pela leveza como um espírito, nossa essência quebra todas as fronteiras e sai
de si mesmo para entrar num vazio onde nada nos aprisiona. Um bailarino é livre até
numa cadeia, porque em matéria ele pode-se encontrar lá, mas em mente estar em
qualquer lugar - seu corpo se estende além da matéria.
E a palavra “LUTA” (STRUGGLE). Percebemos, que quando os orientais e seus
discípulos de artes marciais pelo mundo lutam, o corpo tem movimentos fortes, mas
também se expressa, tanto no Kung-fu, como no Karatê, Judô e outras artes marciais. O
corpo lutando tem uma experiência similar a voar: os movimentos são de defesa e de
ataque. Lutar é ensaiar o corpo para o imprevisto. É demonstrar nos movimentos os vários
guerreiros que possuímos e que o corpo se pode transformar numa arma de combate, que
o corpo se pode transformar em tudo que sonhar, desde que a mente acompanhe a sua
metamorfose.
Depois “ANSEIO” (LONGING) e vemos uma bailarina carregando nas costas um
outro bailarino. O seu corpo se alonga e o corpo de ambos são a extensão do outro.
Quando dançamos temos um desejo intenso, uma angústia de irmos além do esperado. É
carregar o mundo nas nossas costas sem sentir, absorver o peso de cada ser de uma
maneira que não nos pese, mas nos integre, nos faça maiores do que somos. Quando
dançamos ampliamos os nossos corpos e estendemos os nossos limites.
E “ALEGRIA” (JOY): vemos um exercício de dança com cadeiras, treinando como
saltar e como se entregar, sem medo das alturas. É a completa alegria de poder brincar
com o corpo e os espaços vazios. Poder ser um ioiô, brinquedo infantil feito com uma

179
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roldana e um fio, que se enrola e desenrola e faz o disco subir e descer. A alegria de fazer
o corpo subir e descer, de ser um brinquedo de nós mesmos.
E depois a palavra “DESESPERO” (DESPAIR), que pode ser interpretada, também,
como se despedaçar. É completamente cair, dar uma queda. Quando dançamos
aprendemos a cair, a dar uma queda. A sermos possuídos pelo desespero de encontrar o
chão e nos despedaçarmos sem nos desfazermos. É um jogo de poder, onde somos
tombados, mas, porém, não aniquilados. Somos jogados por vontade própria: o desespero
faz com que o corpo se suicide por alguns momentos. É um arrebatamento. Somos
vencidos pelo cansaço da alma e do corpo, que nos leva ao desespero, ao se despedaçar.
Quando dançamos nos desintegramos e ao mesmo nos encontramos. Nossos pedaços
caem no chão, para se refazer, depois então. É um abandono de si mesmo para a força
maior da dança e da arte.
E a palavra “REUNIÃO” (REUNION), que é sermos abraçados um pelo outro, não
apenas pelos braços, mas afagados pela proteção de um ser com o outro, que pode ser
pelos braços, pelo olhar, pelo toque das mãos; é reunir-se com o outro, nas suas várias
formas. Reunir-se com as nossas metades ou até nossos opostos, mas estarmos integrados
em alguém ou em alguma coisa. Reunir pele com pele, olhar com olhar, sentimento com
sentimento: é juntar aquilo que nos faz encontrarmo-nos e o encontro é uma extensão da
vontade de se abraçar com as partes que possamos conjugar com o outro.
“BELEZA” (BEAUTY) aparece um casal de jovens dançando e a moça apoia o corpo
dela nele, jogando o peso dela todo nas suas mãos e ele vai segurando-a enquanto ambos
dançam: é uma dança de uma simetria que é composta com passos que vão e voltam e ele
não a deixa cair no chão, embora o espectador tenha a sensação de que ela vai cair. Há
uma beleza no corpo, no jogo de sedução, na relação de entrega e confiança, em que o
corpo da bailarina é conduzido e gingado ao mesmo tempo, numa queda que não
acontece, não pelo menos de cair, mas talvez no abandono do ser, que sendo tão leve o
outro a jogue de um lado para o outro, sem que nos dê a sensação de peso, mas de uma
leveza enorme, como se a bailarina fosse uma pluma, fosse papel de celofane,
conduzindo-a como se o seu corpo dependesse do seu apoio. É uma cena bonita de entrega
e de leveza.
Depois a palavra “FORÇA” (STRENGTH), que mostra a bailarina flexionando o braço,
mostrando os seus músculos, num sinal de força, de resistência. De o corpo tendo
consciência do seu poder através da energia colocada em cada movimento de superação.
Quando ela exercita os músculos mostra-se a fazer força. O seu rosto e todo o corpo
trazem a força interna do seu ser, porque não são apenas músculos, mostrando sua
capacidade de suportar algo, mas todo seu corpo, trazendo sua força para fora
transparecendo no seu rosto, exteriorizando não apenas a sua “massa muscular” (qual
homem que se encontra atrás de si, numa colagem física quase irrepreensível), mas a sua
força de ser mente e corpo. Seu equilíbrio em suportar os pesos não apenas tangíveis.
Por fim, uma frase já icónica assinada por Pina Bausch3: “Dancem, dancem... ou então
estamos perdidos” (Dance, dance... otherwise we are lost). Esta frase sintetiza,

3
Esta frase foi dita a Pina Bausch por uma criança no seio de uma comunidade cigana na Grécia, que
enquanto todos dançavam, procurava convencer Bausch (1940-2009), de como era importante fazê-lo,
também. Este momento foi partilhado por Pina Bausch (1999) no discurso de aceitação do título de Doutor
Honoris Causa na Discipline delle Arti, Musica e Spettacolo da Universidade de Bolonha, Itália, em 1999:
“Signore e signori, vorrei cominciare con una storia. Una volta, in Grecia, sono andata a visitare alcune
famiglie di zingari. Ci siamo seduti insieme e abbiamo parlato; ad un certo punto tutti hanno cominciato a
ballare ed io dovevo partecipare. Avevo una gran paura e la sensazione di non essere in grado. Allora è
venuta da me una ragazzina, forse sui dodici anni, e mi ha pregato ripetutamente di danzare assieme a loro.
Diceva: “Dance, dance, otherwise we are lost.”” Balla, balla, altrimenti siamo perduti (Bausch apud
Morselli, 1999, pp. 1-5).

180
Corpos que Dançam | 2022

igualmente, a importância que a dança tinha para Bausch (1940-2009) de que a dança era
seu tudo para se proteger de um mundo cheio de problemas, de mazelas, de decepções,
tornando o ato de dançar uma válvula de escape, uma fuga para algum paraíso perdido,
uma entrada ao Jardim de Éden. Dançar é aquilo que nos permite sobreviver a todo o
caos. É aquilo que nos humaniza mais, como todas as artes. É aquilo que nos leva a
encontrarmo-nos com a nossa verdadeira essência. Dançar é estar possuído pela felicidade
e sem a dança não temos o gosto de passar para o lado em que nos podemos “soltar do
sistema”. Quando dançamos nosso corpo se torna poesia. A dança muda a forma de ver a
vida. Nos alegramos quando dançamos, entrando num estágio de deixar a alma sorrir. O
corpo corre atrás de sonoridades das nossas melhores essências.
Falamos neste artigo do caráter diferenciador do trabalho de Pina Bausch. Percebam
por este trailer do filme de Wenders (2011), que o que Bausch (1940-2009) criava não
eram apenas espetáculos de dança: apostava em novas revelações do corpo quando
conjugado com as suas emoções. Pina Bausch era uma investigadora, uma pesquisadora
das dimensões do corpo e da dança e não apenas mais uma bailarina e sabia que a dança
se podia expandir para outras artes e para outras funções. Deste processo nos dão nota os
elementos do seu coletivo artístico, através dos testemunhos singularmente partilhados.
Observava o cotidiano e a realidade das pessoas e, através deste ato, construía estórias.
Seus pais tinham um restaurante que facilitava esta observação com as pessoas que
frequentavam o local. Poderiam ser meros desconhecidos ou não, mas como qualquer
outra pessoa tinham uma vida para retratar, uma estória para contar. Bausch (1940-2009)
conseguia expandir a dança para o teatro e romper a quarta parede de apenas fazer arte,
indo além do teatro sentido, além do teatro físico. Teve influência de seus mestres e
artistas que conheceu durante seus aprendizados, principalmente em Nova York, muitos
deles coreógrafos com práticas experimentais e alternativas (ex: Paul Sanasardo e Paul
Taylor).
Em 1973, Pina Bausch (1940-2009) é convidada pelo Intendente Geral do Wuppertal
Bühnen, Arno Wüstenhöfer, para dirigir o Wuppertal Ballet, que ela renomeia como
Tanztheater Wuppertal a que mais tarde é associado o seu próprio nome, Pina Bausch,
fundando um novo método de criação coreográfica, em que questiona o(a)s bailarino(a)s,
cruzando com ideias e memórias até atingir o objetivo4, que resulta num espetáculo que
traz o cotidiano a palco: cabelos soltos, saltos altos, corridas, cadeiras espalhadas pelos
espaço e um cenário sempre relacionado com a natureza.
Conhecendo as ciências do audiovisual diríamos que os espetáculos de teatro-dança
que Pina Bausch (1940-2009) criou são semelhantes aos movimentos do Cinema Novo
no Brasil, do Neorrealismo Italiano, em Itália, da Nouvelle Vague e do Cinema de
Vanguarda, em França e outros, que romperam com o cinema clássico e fizeram um
cinema moderno, onde não queriam romantizar a realidade, mas mostrar a vida como ela
é. Pina Bausch (1940-2009) foi pioneira no método, como cineastas de movimentos
modernos o foram.
Bausch não procurou que a dança fosse uma arte onde as pessoas estão engessadas
num padrão, mas ao contrário, procurou que a dança fosse uma arte onde as pessoas
possam criar as suas identidades ao dançarem e expor os seus sentimentos e emoções de
uma forma ampla, em que o corpo seja porta-voz dos seus desejos.
No teatro-dança da Pina Bausch (1940-2009), o corpo é desafiado a encontrar novas
soluções de manifestação. Torna-se um conteúdo e não apenas uma forma, uma narrativa
de resistência e de revolução, fazendo do ser dançante um palco de si mesmo, mostrando

4
A esta metodologia designou Teresa Norton Dias por “metodologia colaborativa por incitação” (Norton-
Dias, 2021, p. 19).

181
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a beleza de se revelar e não apenas dançar, afastando-se da mera técnica que formata a
arte. Bausch (1940-2009) busca que o corpo e as emoções sejam uma unidade.
O coletivo artístico, que integrava com os bailarinos-atores e as bailarinas-atrizes, era
intérprete deste seu método. Aqueles que o compunham, como a sua designação indica,
eram artistas que tinham um talento expandido além da dança, que conseguiam alcançar
as outras artes e ciências como o teatro, a música, a poesia, a antropologia e a psicologia
e tudo aquilo que fosse relacionado com o universo humano e com seus desdobramentos.
Cada papel de cada bailarino-ator ou bailarina-atriz, nos seus espetáculos, eram definidos
segundo seus corpos e experiências pessoais (Norton-Dias, 2021). Então, ela não buscava
os talentos apenas por conhecimento na dança, mas por suas trajetórias e sua linguagem
corporal não verbal. Bausch (1940-2009) conseguia, não apenas absorver o que cada
um(a) sabia dançar, mas o que o corpo de cada um(a) trazia na sua memória genética,
histórica, poética, pessoal e filosófica. Afinal, não temos apenas cicatrizes deixadas
quando machucamos de forma externa o corpo, mas carregamos várias marcas ao longo
da nossa existência. Bausch (1940-2009) conseguia ir além do que o ser humano
apresentava materialmente apenas: não era um corpo, mas um livro ou parte dele.
Na sua metodologia não havia solistas ou hierarquias entre estrelas maiores ou
menores. Todos eram iguais na criação do espetáculo. Esta quebra de hierarquias é
inclusiva, um socialismo pragmático, artístico, de que ela conseguia obter bons resultados
porque tirava de cada um(a) o seu melhor, sabendo que cada um(a) tem uma riqueza
diferente do(a) outro(a), que não pode ser comparada, mas valorizada na sua diferença.

Notas finais

Tratámos neste texto do sentido e das emoções que a obra de Pina Bausch (1940-2009),
reunida em filme por Wim Wenders (2011), dois anos após a sua morte, proporciona ao
espectador. Deixámo-nos levar pelo intercalar de testemunhos com partes de
emblemáticas peças, que marcaram a carreira artística de Pina Bausch e do coletivo
artístico do Tanztheater de Wuppertal (ex: Sagração da Primavera (1975), Café Müller
(1978) e Kontakthof nas 3 versões (1978; 2000; 2008) e Vollmond (2006)). Estes
testemunhos têm a particularidade de o(a)s bailarino(a)s apenas aparecerem na imagem,
exprimindo-se apenas com o olhar no infinito e quase nenhum movimento facial,
ouvindo-se a sua voz em off, na sua maioria, no seu idioma natal, conferindo ao elenco
caracter intercultural, pelo conjunto da diversidade de línguas, cultura e costumes faladas
e partilhados, e forma transcultural ao resultado conseguido.
A cada testemunho, segue-se ou antecipa-se, um momento protagonizado pelo(a)
bailarino(a). De salientar ainda, a forte componente exterior, com presenças na natureza
e na cidade de Wuppertal, a cidade, que apesar de todas as contrariedades, deu vida ao
projeto de Pina Bausch (1940-2009).
Pelo conjunto de signos apontados por Wenders (2011) nesta sua obra 3D (peças,
momentos e testemunhos) chegámos a um conjunto de aspetos significativos da obra de
Pina Bausch: refletimos sobre vida, amor, liberdade, lutas, desespero e contentamento em
gestos que transmitem isso mesmo e que Wenders (2011) imortalizou: is it DANCE, is it
THEATRE, or is it just, LIFE, LOVE, FREEDOM, STRUGGLE, LONGING, JOY,
DESPAIR, REUNION, BEAUTY, STRENGH (Wenders, 2011).

182
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Referências

Criterioncollection (2012). Trailer do filme Pina. Dancem, Dancem ou então


estamos perdidos. https://www.youtube.com/watch?v=F-cV74Mq7KU
Morselli, V. (2019). Discorso di Pina Bausch per la Laurea ad honorem dell’Università
di Bologna. La danza e la sua storia - Volume III. Rivoluzioni ed evoluzioni nel XX
secolo. Dino Audino Editore.
https://www.audinoeditore.it/libro/9788875274238/3561
Norton-Dias, T. (2021). ‘Criatividade participativa’ intercultural: o processo de criação
no Tanztheater de Pina Bausch. Edição de autor. ISBN 978-989-33-2177-5
Tangney, Tom (2012). An interview with Wim Wenders [Ficheiro de vídeo]. My
Northwest. https://www.youtube.com/watch?v=lAGEngwHXCo
Tanztheater Wuppertal Pina Bausch. https://www.pina-bausch.de/
Wenders, D., & Wenders, W. (2012). Pina. Der Film und die Tänzer. Schirmer/Mosel.
Wenders, W. (Realizador). (2011). Pina. Dancem, Dancem ou então estamos perdidos
[DVD]. Neue Road Movies, Eurowide Film Production, Zweites Deutsches Fernsehen
(ZDF)

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Há um espaço para Saramago em Bausch

Teresa NORTON DIAS


UMa | CEMRI-UAb
[email protected]

Resumo: Trata-se, neste artigo, de um aspeto que liga a coreógrafa alemã, Pina Bausch
(1940-2009) e o escritor, português, José Saramago (1922-2010): apresentar a vontade de
duas artistas do coletivo Tanztheater Wuppertal Pina Bausch, em propor a Pina Bausch,
na sua condição de cocriadoras, integrar frases de José Saramago em cenas de peças em
criação. Esta participação no processo criativo acontece porque ele é colaborativo e
participado, não obstante a assinatura única e agregadora, da coreógrafa. É destas
propostas e da importância de se dar espaço à palavra num espetáculo de Dança, que trata
o presente texto.

Palavras-chave: Pina Bausch, José Saramago, Tanztheater, criação colaborativa, criação


participada, cocriação

Abstract: This article deals with an aspect that links the German choreographer Pina
Bausch (1940-2009) and the Portuguese writer José Saramago (1922-2010): to present
the will of two artists of the Tanztheater Wuppertal Pina Bausch collective to propose to
Pina Bausch, in their condition of co-creators, to integrate sentences by José Saramago
in scenes of pieces in creation. This participation in the creative process happens because
it is collaborative and participatory, despite the unique and aggregative signature of the
choreographer. It is about these proposals and the importance of giving space to the word
in a Dance performance, that this text is about.

Keywords: Pina Bausch, José Saramago, Tanztheater, collaborative, participatory, co-


creation

O povo não para de aplaudir. Mas o palco permanece vazio.


Este é o último aplauso para Pina Bausch do lugar
de onde ela saiu para o mundo: a Ópera de Wuppertal 1. (Schwarzer, 2010)

No decorrer de um processo de trabalho não é invulgar para o investigador cruzar-se


com informação inesperada, como aquela que aqui vos trazemos. Estudávamos a obra de
Pina Bausch (1940-2009) com enfoque especial em Masurca Fogo2 (1998).

1
Texto no original: „Die Menschen hören nicht auf zu klatschen. Aber die Bühne bleibt leer. Dies ist der
letzte Beifall für Pina Bausch von dem Ort aus, von dem aus sie in die Welt gegangen ist: das Wuppertaler
Opernhaus.“ (Schwarzer, 2010).
2
Peça encomendada a Pina Bausch pela Expo’98 (última grande exposição do século XX, em Lisboa e que
resulta de uma ‘residência artística’ naquela cidade, em setembro de 1997. Estreou em
Wuppertal/Alemanha, em abril de 1998 e apresentou-se em Lisboa, em maio do mesmo ano. (Norton-Dias,
2021).

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Preocupavam-nos os aspetos visuais, estéticos, coreográficos e musicais. Não nos


preocupava o texto, uma vez que estes são curtos, ou simples frases soltas, que acontecem
no meio de todo o resto e não se encontram acessíveis, a não ser pela audição, não
havendo, das falas, um registo escrito tornado público. A singularidade de um autor como
Saramago fez parte de uma conversa com membros do Tanztheater Wuppertal Pina
Bausch, sobre a sua obra e o interesse por ela, não fora a coincidência do ano do prémio
Nobel, atribuído a José Saramago (1922-2010), ser o ano de estreia de Masurca Fogo
(1998), tema central de um encontro informal entre investigador e coautores.
No processo criativo de Pina Bausch há espaço para a proposta e espaço para a sua
absorção pela obra. Ainda, que não fosse uma opção, por ser essa a forma que instituíra
para trabalhar, havia um processo democrático3 de criação e foi dessa forma que se
registaram e trabalharam as propostas. Isso aconteceu a partir do momento em que Bausch
entendeu coresponsabilizar os seus colaboradores e colaboradoras, atriz, bailarinos-atores
e bailarinas-atrizes, pela obra apresentada a público. Fê-lo a partir da primeira cisão no
grupo, em 1977 após duras críticas internas ao seu trabalho, a par das que já se vinham
registando na opinião pública, desde 1973, ano em que se estreou à frente do Wuppertal
Ballet, por si renomeado para Tanztheater Wuppertal (Norton-Dias, 2021).
Bausch contava com a criatividade de quem consigo trabalhava para construir as peças
(Stücke) que assinava. Era um processo de incitação à criação4, que estimulava os seus
bailarinos-atores e bailarinas-atrizes a desenvolverem movimento ou fazerem outras
propostas artísticas, a partir de frases ou vocábulos, que traduziam através de palavras,
gestos ou movimentos, aquilo que haviam pesquisado, não só no exterior (pesquisa
etnográfica que Pina Bausch desafiava a fazerem, sobretudo quando em ‘residência
artística’), mas também no seu interior, recorrendo, com regularidade, à memória afetiva
de cada um(a), trazendo à cena momentos familiares recordados – Masurca Fogo (1998)
tem bons exemplos do que aqui nos referimos, sejam da autoria de Fernando Suels
Mendoza (1968-), sejam da autoria de Nazareth Panadero (1955-), quando ambos relatam
momentos vividos com familiares próximos, os avós.
Saramago é citado em três das obras de Bausch: palavras de O Evangelho Segundo
Jesus Cristo (Saramago, 1991), em Ten Chi (Bausch, 2004); palavras de O ano da morte
de Ricardo Reis (Saramago, 1984), em Vollmond (Bausch, 2006); e, palavras de A
Caverna (Saramago, 2000), em Sweet Mambo (Bausch, 2008). Contudo, as palavras são
ditas sem se anunciar a sua autoria5. Não fora a coincidência e o acaso, nunca nos teríamos
apercebido. Seria apenas mais uma expressão ou frase. Há, ainda, um outro aspeto
conexo: a circunstância de as palavras serem ditas numa língua diferente da original, fruto
de uma tradução para a língua espanhola ou para a língua alemã, de acordo com a
naturalidade de quem as propôs e a leitura que fez. Outro aspeto é o facto de não se
fazerem citações, em palco; de em palco se dizer texto.
A pergunta que se segue poderia muito bem ser: porquê a escolha de palavras de
Saramago para aquelas peças de Bausch? A afinidade com o autor e a pertinência das
suas palavras na obra é algo que não conseguimos aprofundar, já que Bausch nada
explicava, deixando a interpretação das suas obras à responsabilidade do espetador,
postura também adotada pelo seu coletivo artístico, em coautoria. É, por isso, na
qualidade de espetadores e com base no estudo já efetuado sobre a obra de Bausch, que

3
Ideia contestada por alguns, por considerarem que a necessidade de um registo escrito para o caso de
terem de recuperar as propostas semanas depois de as fazerem nada tem de democrático, mas de imperativo
na forma de colaborar/trabalhar.
4
Metodologia que Teresa Norton Dias designa de “metodologia colaborativa por incitação” (Norton-Dias,
2021, p. 19).
5
Nem em programa ou folha de sala.

185
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podemos adiantar, que frases enigmáticas como as escolhidas pelas coautoras fazem
sentido no todo agregado pela criadora, já de si em tudo desafiante ao olhar de quem
atentamente assiste ao seu trabalho.

Saramago em Bausch nas palavras das intérpretes

Não deixes que nenhum pensamento passe por ti incógnito,


e usa o teu caderno de notas com […] rigor […].
(Benjamin, 2022, p. 7)

É interessante que uma atriz como Mechthild Großmann6 (1948-) e uma bailarina-
atriz, como Nazareth Panadero (1955-), tenham escolhido palavras de José Saramago,
para incluir nas suas contribuições, durante o processo de construção de três peças do
vasto repertório de Pina Bausch. As frases, autênticas, constituem propostas para a sua
atuação aceites pela coreógrafa.
Vejamos então do que falamos:

- Por Mechthild Großmann (atriz, 1948-)

Peça: Ten Chi (2004), fruto da 'residência artística' no Japão.


Frase: „Ich kann dir nicht Alle fragen stellen. Du kannst mir nicht Alle
Fragen beantworten.“7

- Por Nazareth Panadero (bailarina-atriz, 1955-)

Peça: Vollmond (2006)


Frase: Los fantasmas también tienen que sentarse a veces.8
Peça: Sweet Mambo
Frase: Los viejos no pueden lo que saben, los jóvenes no saben lo que
pueden.9

Neste processo é necessário compreender-se que as frases estão descontextualizadas


das obras de que foram retiradas, mas nem por isso perdem importância ou impacto,
devido à pertinência das expressões. Leiam-se as frases no original: “Nem eu posso fazer-
te todas as perguntas, nem tu podes dar-me todas as respostas” (Saramago, 2019b [1991],

6
Nas palavras de Mechthild Großmann, com tradução livre da autora: “Só que com ela não havia texto nem
enquadramento. Muitas vezes eu já tinha pensado em algo de antemão - e depois simplesmente tirava
alguma deixa dela para realizá-lo. Se ela dizia “lua cheia” ou “saudade” ou “macieira” - as palavras-chave
surgiam sempre. [...] Todos os textos que falo nas peças de teatro de Pina eu própria inventei ou montei. Só
não estou no programa.” (Großmann apud Schwarzer, 2010). Texto no original: „Nur: Bei ihr gab es weder
Text noch Rahmenhandlung. Oft hatte ich mir schon vorher etwas überlegt – und dann einfach irgendein
Stichwort von ihr zum Anlass genommen, das vorzutragen. Wenn sie „Vollmond“ sagte oder „Sehnsucht“
oder „Apfelbaum“ – die Stichworte kamen jedes Mal vor. [...] Alle Texte, die ich in Pinas Stücken spreche,
habe ich mir selber ausgedacht oder zusammengesucht. Ich stehe nur nicht im Programm.“ (Großmann
apud Schwarzer, 2010)
7
Texto no original: “Nem eu posso fazer-te todas as perguntas, nem tu podes dar-me todas as respostas”
(Saramago, 2019b, p. 448).
8
Texto no original: “[…] às vezes a um morto há-de apetecer estar sentado […]” (Saramago, 2019a, p.
324).
9
Texto no original: “Nem a juventude sabe o que pode, nem a velhice pode o que sabe.” (Saramago, 2018,
p. 12).

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p. 448); “[…] às vezes a um morto há-de apetecer estar sentado […]” (Saramago, 2019a
[1984], p. 324); “Nem a juventude sabe o que pode, nem a velhice pode o que sabe.”
(Saramago, 2018 [2000], p. 12), muito perto de um “Teatro do Absurdo” defendido por
Martin Esslin como um esforço para expressar o sensato do:

[…] sentido da insensatez da condição humana e da inadequação da abordagem


racional pelo abandono aberto de dispositivos racionais e do pensamento discursivo,
[…] através de uma “poesia que deve emergir das imagens concretas e objectivadas
do próprio palco”. (Teatro do Absurdo, 2020)

Outro aspeto significativo é o facto de encontrarmos texto de autores portugueses, em


composições coreográficas de autoria multicultural, em países culturalmente diferentes
do nosso. Não podemos desvalorizar a disseminação da cultura portuguesa, por outros
autores e através dos nossos autores, além da nossa fronteira física, já que sabemos existir
a “[…] possibilidade de o corpo funcionar e ser concebido, entre outras coisas, como
objecto, sujeito, fonte de construções simbólicas, suporte material para a codificação de
signos e produto de inscrições culturais.” (Fischer-Lichte, 2019, p. 208) e com isso ser
capaz de produzir transculturalidade, na medida em que se tratam, neste contexto, de
obras performativas, que no processo de criação, se depararam com o fenómeno da
interculturalidade, que acontece a partir da partilha de propostas, que em palco ganham
outra voz e outro corpo.

Que papel para as palavras?


Os gestos, os movimentos e as palavras do actor podem,
de facto, ser transitórios, mas os significados que veiculam
existem para lá desses signos efémeros. (Fischer-Lichte, 2019, p. 183)

No contexto dos trabalhos de Pina Bausch, as palavras escolhidas são diretas: cortam
a dinâmica do movimento que impera na produção e acontecem. São frases ditas, histórias
contadas, não representadas e ao modo do teatro épico de Bertolt Brecht, em nome
próprio, com a necessária força incutida às palavras, num distanciamento do texto e de si.
Não seria, portanto, invulgar que Bausch pedisse: “Não cante como um cantor, não aja
como um ator, não dance como um bailarino.”10 (Großmann apud Schwarzer, 2010).
Entre muitos outros aspetos, relevantes para a compreensão do uso da palavra no ato
performativo, Erika Fischer-Lichte (2019), na sua obra sobre estética do performativo é
clara ao defender, tal como defendemos para a posição da palavra nas obras de Bausch,
que “[…] o acto de falar contém em si uma força capaz de mudar o mundo e de produzir
transformações.” (Fischer-Lichte, 2019, p. 40). É como se ali a atenção do espetador se
prendesse em novos conteúdos, que a visualidade e a sonoridade lhe trazem, além de uma
nova atitude corporal, que a projeção de voz exige, abrandando o ritmo do movimento,
assumindo novas e momentâneas poses. Fischer-Lichte (2019) traz-nos à discussão a
conceção de performance pelo(a) intérprete, de volta do conceito de embodiment,
registando a sua subjetividade e diferença relativamente ao uso da língua, que “[…]
representa um sistema de signos quase ideal, no qual […] os significados podem exprimir-
se de modo «puro», não falsificado, [enquanto que] o corpo humano [se] apresenta como

10
Texto no original: „Bloß nicht singen wie ein Sänger, bloß nicht spielen wie ein Schauspieler, bloß nicht
tanzen wie ein Tänzer“ (Großmann apud Schwarzer, 2010).

187
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um medium assinalavelmente menos digno de confiança para a descodificação dos


signos” (Fischer-Lichte, 2019, pp. 182-183), dando ainda mais expressão à palavra e à
forma numa obra dominada pelo movimento corporal. Mesmo que “[…] os actos
performativos mediante os quais se produz a corporeidade constitu[a]m processos de
encarnação […] independentemente do facto de com eles se criar uma personagem […]”
(Fischer-Lichte, 2019, p. 209), em Bausch, a performatividade do dizer terá tanta
importância, quanto o movimento da performance, dando-lhe o espaço e o palco para a
sua percetividade, não obstante o necessário foco que tal implique, já que a dinâmica é
grande e o ato, efémero, a que se associa a língua, que pode não ser a do(a) espetador(a),
mas será, muito certamente, a do(a)s nativo(a)s do lugar onde acontece – quase sempre
inglês, francês, alemão e outra língua (tantas quantas os países em que se apresentam, já
que à atriz, aos bailarinos-atores e às bailarinas-atrizes cabe a função de traduzirem os
seus textos para que, desta forma, a mensagem se torne percetível ao público que assiste).
Não terá sido o acaso que trouxe as palavras para a performance conduzida por
Bausch, mas a necessidade complementar de reforçar a mensagem, já por si tão poderosa,
porventura menos direta na interpretação do movimento, atribuindo complexidade às
peças de sua criação.
De lembrar, contudo, que, excetuando-se a presença, mais ou menos constante, da atriz
Mechthild Großmann (1948-) a formação do coletivo artístico, que com Pina Bausch
trabalhava, era em Dança e que apenas por desafios colocados por si, se aventuravam em
áreas para os quais não se haviam preparado, como as falas em cena, próprias da
expressão artística, Teatro. Acresce a esta realidade, a naturalidade multicultural dos
bailarinos-atores e bailarinas-atrizes, que através dos seus contributos, muitas vezes
colhidos na sua memória afetiva, conferiam aos trabalhos carater intercultural e ao
resultado, transculturalidade (Norton-Dias, 2021).

Notas finais

A ideia de escrevermos este texto foi podermos continuar a contribuir para o


conhecimento do processo criativo de Pina Bausch e a compreensão das suas obras. Se
pensarmos nos contributos do coletivo artístico, que integrava o Tanztheater de
Wuppertal, que sabemos ser de uma enorme diversidade artística e cultural, ficamos a
saber que a sua colaboração era vital para o sucesso de cada peça. Cada um(a) era
diferente e, por isso, cada contributo era diferente. Essa diferença, além de enriquecer o
todo construído, enaltecia cada um(a) do(a)s contribuintes. Neste sentido, o que faltou,
no legado de Pina Bausch, foi a extensão da assinatura das obras, assinadas apenas por si,
ao coletivo artístico que a acompanhava. Tal teria sido um passo importante e mais do
que merecido e nesta altura estaríamos a falar em coautorias.
Através do arrojo nas suas obras e da expansão da sua forma de trabalhar, não só no
seu país, mas além-fronteiras, Bausch ajudou a transformar o processo criativo de
muito(a)s jovens promissore(a)s bailarino(a)s e coreógrafos. O seu legado é tão estimado
e aplaudido, quanto as peças continuam em cena pela Companhia Tanztheater Wuppertal
Pina Bausch, o seu arquivo é preservado pela Fundação Pina Bausch e o futuro aguarda
a concretização do projeto denominado Pina Bausch Zentrum11, onde se perpetuará,
através de uma prática continuada e do estudo da sua obra. No ano em que se comemora
o centenário do nascimento de José Saramago, regista-se que frases de sua autoria
integram peças da artista.

11
Estas três instituições têm sede na cidade de Wuppertal/Alemanha.

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Referências

Benjamin, W. (2022). Diários de Viagem. Assírio e Alvim.


Fischer-Lichte, E. (2019) [2004]. Estética do Performativo. Orfeu Negro.
Norton-Dias, T. (2021). ‘Criatividade participativa’ intercultural: o processo de criação
no Tanztheater de Pina Bausch. Edição de autor. ISBN 978-989-33-2177-5
Saramago, José (2019a). O ano da morte de Ricardo Reis. Herdeiros de José Saramago,
Fundação José Saramago e Porto Editora [1984].
Saramago, José (2019b). O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Herdeiros de José
Saramago, Fundação José Saramago e Porto Editora [1991.
Saramago, José (2018). A Caverna. Herdeiros de José Saramago, Fundação José
Saramago e Porto Editora [2000].
Schwarzer, A. (2010, janeiro 1). Ein Stück für Pina Bausch. EMMA Beibt Mutig!
https://www.emma.de/node/264664
Tanztheater Wuppertal Pina Bausch. https://www.pina-bausch.de/
Teatro do Absurdo (2020, março 16). Wikipédia, a enciclopédia livre.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Teatro_do_absurdo

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