2022 - PAIVA - Mãe de Casa

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TANTÃO PAIVA

Mãe de
casa
e outras memórias
Maria da Conceição Ximenes Paiva
Mestra em Ciências da Educação - CECAP/DF,
especialista em Língua Inglesa e em Gestão e Admi-
nistração, ambos pelo UNINTA. Graduada em Le-
tras Português- Francês pela Universidade Estadual
do Ceará - UECE. Professora de Língua Portugue-
sa da rede estadual do estado do Ceará, lecionan-
do atualmente no município de Groaíras na Escola
Monsenhor Linhares.
E-mail: [email protected]
TANTÃO PAIVA

Mãe de
casa
e outras memórias

Sobral - CE
2022
Mãe de Casa e outras memórias
© 2022 copyright by Tantão Paiva
Impresso no Brasil/Printed in Brasil

Rua Maria da Conceição P. de Azevedo, 1138


Renato Parente - Sobral - CE
(88) 3614.8748 / Celular (88) 9 9784.2222
[email protected]
[email protected]
www.editorasertaocult.com

Coordenação Editorial e Projeto Gráfico


Marco Antonio Machado
Revisão
Antonio Jerfson
Número ISBN: 978-65-5421-019-5 Linsem
- e-book depdf
Freitas
Número ISBN: 978-65-5421-020-1 - papel
Doi: 10.35260/54210195-2022 Diagramação
Título: Mãe de Casa e João
outrasBatista
memórias Rodrigues Neto
Edição: 1
Ano edição: 2022 Capa
Páginas: 84 Diego Silveira Maia
Autora:
Catalogação
Maria da Conceição Ximenes Paiva
Leolghliteratura
Palavras chave: Crônicas, Lima da Silva -literatura.
intimista, CRB3/967

CIP - Catalogação na Publicação

P149m Paiva, Maria da Conceição Ximenes.

Mãe de Casa e outras memórias. / Maria da Conceição Ximenes


Paiva. Sobral CE: Sertão Cult, 2022.

84p.

ISBN: 978-65-5421-019-5 - e-book em pdf


ISBN: 978-65-5421-020-1 - papel
Doi: 10.35260/54210195-2022

1. Crônicas. 2. Literatura intimista. 3.Literatura. I. Título.

CDD 869.3
Catalogação na publicação: Bibliotecária Leolgh Lima da Silva – CRB3/967

Este e-book está licenciado por Creative Commons


Atribuição-Não-Comercial-Sem Derivadas 4.0 Internacional
Aos meus familiares, meu esposo Clerton Paiva,
aos meus filhos: Wagner e Walber, que me apoia-
ram em vários momentos da escrita desta obra.
Também dedico a obra ao meu primeiro neto, Vi-
cente, que acaba de chegar para alegrar a família.
Agradeço à professora Edna Mendes, pelo belíssi-
mo texto na orelha do livro, e ao jovem Gustavo,
pelo prefácio que fala de forma muito eloquente
sobre o livro. À minha mãe, escritora e poetisa
Erivalda Ximenes, que de forma indireta passou
algumas dicas das recordações; ao fotógrafo Fred
Lima, que encantou minhas tias com seu jeito sim-
pático ao fotografá-las, e a todas as pessoas que me
rodeiam com o incentivo de publicar a obra.
Pensamentos guardados na memória
De tudo que no seu passado viveu
E de tanto pensar ficou na história
E de repente o livro apareceu

“Mãe de Casa” é o assunto principal


Por seus familiares acompanhado
São fatos que a ninguém faz mal
E que irão ficar para sempre gravados

A apresentação vai ser genial


Cada ouvinte pode até ler uma parte
Para ficar a cena mais legal

Porque livro é uma coisa séria


Feito com muito amor e carinho como
pássaro novo saindo do ninho
Erivalda Ximenes
Prefácio
O fim da vida sempre nos preocupou.
Conceber de bom grado a ideia de um fim posto a algo tão
belo e complexo é, de certo modo, desconfortável. O fato, porém,
que mais me preocupa não é o fim da vida, mas a efemeridade das
coisas. Não é só a vida que se vai, mas, durante a vida, as sensações,
os sons, os cheiros e gostos, o sentimento consequente ao toque, as
histórias, as músicas, as pessoas, as vivências, além de para sempre
únicos, são passíveis de esquecimento.
Acredito ser o esquecimento o medo indireto que temos. E é por
isso que fazemos o que fazemos. Por isso que pendemos à grandeza.
Por isso que tentamos ser úteis a fim de que não nos esqueçam. A
realidade é que o tempo é implacável e que as coisas são efêmeras, in-
clusive a vida. Estar vivo, no entanto, pressupõe dinamicidade, o que
significa a inevitabilidade de ter vivências, sensações e sentimentos e
de se relacionar socialmente. Dessa interação nascem as memórias.
Elas são um recorte do tempo que armazenamos na mente. São para
sempre um pedaço de vida, não mais existente de forma material e
ocorrido em tempos e em espaços específicos. A boa notícia é que
temos conosco a capacidade de recordar. É interessante usar essa
palavra, pois, vinda do latim, ela significa, etimologicamente falando,
de novo ao coração. Hoje sabemos que o coração não é o órgão res-
ponsável por armazenar memórias, mas essa palavra traz consigo o
sentido de que, ao lembrar, usamos sentimento.
Há sempre algo para recordar, um amor do passado, uma viagem,
a leveza da infância, a felicidade das comemorações, e sempre recor-
damos com sentimento, seja ele bom ou ruim. Acontece que essas
memórias são vívidas assim que criadas, porém, tornam-se cada vez
mais opacas com o passar do tempo, e isso quer dizer que, como
humanos, esquecemos das coisas também. Porém, o que Tantão traz
tão profundamente nesta obra é justamente uma contrapartida à ação
do tempo: ao esquecimento. A forma com que a autora expõe suas
memórias nos faz crer numa tentativa de eternização, uma vez que
a volatilidade característica das memórias se perde quando escritas.
Ao contar sobre sua Mãe de Casa, sobre seu pai, mãe e sobre
suas tias, Tantão consegue revestir suas lembranças com uma ca-
mada protetora e deixá-las disponíveis para quem as quiser. E não
são só as recordações que se eternizam, mas os sentimentos. Fala-se
de Tia Tondinha e logo se recorda o seu jeito, o som de sua voz e
sua forma alegre de ser. Fala-se do Vaquejador, localidade em que
algumas memórias se passam, e se recorda a liberdade, a calmaria
e o até o cheiro de terra molhada nos primeiros sinais de inverno.
A autora também deixa indiferente ao tempo o modo de vida das
personagens, a sua religiosidade e crendices, o seu linguajar típico, os
seus dizeres e seus modos de expressão, de forma a não deixar mor-
rer a existência dessas personagens e a evidenciar a sua importância.
Ao ler Mãe de Casa e outras memórias, você se encontrará com
uma narrativa leve e cômica, mas ao mesmo tempo repleta de ca-
rinho de uma filha, neta e sobrinha que não quis apenas recordar,
mas sim eternizar a vida de seus amados familiares.
Realmente, talvez o grande sentido de ser não esteja em se preocu-
par com o fim da vida ou com o esquecimento, já que não podemos
fugir de ambos, mas sim em vivermos em face de boas recordações,
pois afinal, elas serão tudo o que teremos quando não pudermos
mais fazer o que fazemos.
Gustavo Medeiros
Gustavo é acadêmico de direito, escritor, editor e amante da mú-
sica. Apaixonado pelos laços afetivos e seus desdobramentos, vis-
lumbrou “Mãe de Casa e outras memórias” quando este era apenas
um punhado de crônicas de Tantão, e logo passou a sonhar junto
para que as histórias de sua amiga se tornassem eternas.
Apresentação
Um livro de memórias. São lembranças que nos inquietam
e precisam ser escritas para a posteridade.
Este livro é feito de histórias da minha avó. Histórias que
ficaram marcadas em minha vida e exemplos de bondade, re-
ligiosidade, amor e carinho. Não poderia deixar de incluir mi-
nhas tias, meu tio e meu pai. Eles e elas passam um modelo de
força e caráter. Elas são guerreiras, esposas, mães dedicadas
e, acima de tudo, lutam por aquilo que querem. Eles, meu tio
Chico, além de pitoresco, tinha uma veia cômica; meu pai,
Manoel João, um filósofo da vida.
Como comecei a escrever este livro? Eu contava em roda
de amigos nos bares e em outras ocasiões histórias engraçadas
de Mãe de Casa e todos sempre pediam para repetir.
Então, fui morar em Lisieux, distrito de Santa Quitéria-
-CE, quando passei em um concurso público e por ficar mui-
to tempo sozinha, comecei a escrever de forma organizada as
mesmas histórias jocosas que, de certa maneira, precisavam
ficar registradas para meus filhos e netos.
Nossas raízes são importantes por sabermos de onde ti-
ramos esse ou aquele modo de ver as coisas ao nosso redor.
Espero que você, caro leitor, goste e recomende a outras
pessoas minhas narrativas!
Um abraço!
Tantão Paiva
Sumário
O lugar
Vaquejador/15
A Mãe de Casa
Mãe de casa/23
O Pai de Casa
Pai de casa/31
Os filhos
Manoel João - Papai/37
Chico João/41
Maria Querida/45
Tondinha/49
Tia Carmélia/53
Tia Nêga/57
Tia Gerarda/61
Umas memórias
O Filho Perdido/65
O significado das coisas/69
Lembrança do Monsenhor Cleano/73
Romaria/77
A Promessa/81
O lugar
Vaquejador

Localidade a uns dois quilômetros da cidade de Groaíras,


às margens do rio que se situa mais acima, era um lugarejo
calmo onde residiam meus avós e tias. Passava uma estrada
que dava acesso a outros lugares, como Gangorra e Juá. Todas
as casas da região eram de taipa e também quase todas tinham
o mesmo formato e divisão de cômodos: um alpendre, uma
sala, um quarto e uma cozinha, um pequeno quintal para criar
galinhas ou outros animais domésticos. A casa grande, de
meus avós localizava-se no centro do lugarejo, as outras casas
que rodeavam eram habitadas pelas filhas de minha avó, Mãe
de Casa, que foram se casando e construindo pequenas casas
e lá construindo seus lares. A vegetação era em sua maioria
de carnaubeiras que balançavam seus leques ao vento do fi-
nal da tarde, pés de juá, com frutinhas amarelas que muitas
vezes matavam minha fome; juremas, com seus espinhos e
com tons verde-escuros destacando-se no meio do mato seco;
também pereiros, que tinham frutos endurecidos que serviam
para brincadeira de capotes, quando eu era criança, pois eram
abertos como se fossem asas. Ao lado da casa grande, tinha
uma lagoa que sempre enchia quando tinha um bom inver-
no e servia para as mulheres lavarem roupa e nós, meninos,
fazíamos uma espécie de brincadeira que consistia em jogar
uma pedra fingindo ser uma galinha. Ainda lembro da canção:
“Galinha gorda? Gorda! Assada ou cozida? Cozida! No prato
ou no pires? No pires! Pois vamos a ela! Com quê? Com ar-

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Mãe de Casa e outras memórias

roz”! E todos mergulhavam para encontrar a pedra! Também


havia pescarias e, no inverno, o peixe era garantido para varia-
ção do cardápio do feijão com toucinho.
Atrás da casa grande tinha um caminho que conduzia ao
rio. No meio desse caminho, havia pés de oiticica, duas ár-
vores bem grandes de manga, que nunca deram nenhuma
manga: todos os anos meu avô esperava e nada! Pés de ata e
limões também foram plantados. Uma vazante com pés de
tomate cereja e feijão, um canteiro com cebolinha e coen-
tro com forquilhas altas, tudo no leito do rio. Isso era feito
quando passavam as cheias de inverno. Cacimbas de beber
eram construídas para consumo próprio e também para dar
água aos animais. A água de beber era conduzida em potes
ou latas de querosene vazias que eram reutilizadas pelas mu-
lheres com uma rodilha de pano forrando a cabeça. As mu-
lheres conduziam essas latas d’água num verdadeiro desfile
de elegância e postura.
Quando minha vó ficou mais velha e já não colocava a ro-
dilha na cabeça, pagava ao Zequinha, filho de tio Patrício, que
conduzia a água em uma estrutura chamada “cambão”, que
consistia em um pau que, pendurado ao pescoço, colocava-se
uma lata de um lado e outra lata do outro lado.
Zequinha era deficiente visual e quando ia entrando no
alpendre da casa grande com as latas d’água, gritava: “óia o
bombeiro véi”- sempre era motivo de riso. Na frente da casa,
havia um flamboyant, árvore frondosa que alternava entre va-
gens gigantes e flores vermelhas - abóboras e que minha vó
sentia muito orgulho dizendo: “tá fulorando, meu flambô!”.
Dava um ar bucólico à pequena casa, aquela árvore de flores
avermelhadas balançando ao sabor do vento e o gado comen-
do nas cocheiras ao lado.
Um barreiro de lama na frente da casa, que era chamado
de caldeirão, servia para refrescar os inúmeros porcos e patos

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Vaquejador

que Mãe de Casa criava. À beira da estrada, a casa servia de


parada para os viajantes de lugarejos próximos, como Lagoa
das Bestas, Gangorra e Juá, pedirem um copo com água ou,
às vezes, um café. - “Boa tarde! Se desmunte” – era a frase
que sempre dizia Mãe de Casa aos que passavam de bicicleta.
Atravessando o caldeirão, que poderia estar cheio ou
mais seco, ficava a casa da filha mais velha, Maria Querida,
e do outro lado, a casa da minha tia Tondinha, atrás da casa
grande ficava a casa da tia Gerarda. Essa proximidade fazia
com que todos se comunicassem muito e houvesse aquele
clima de amizade e amor. Quando precisavam de algo, filhas
e mãe se comunicavam aos gritos e, com o silêncio do ser-
tão, todos ouviam.
Às vezes, os animais se misturavam, mesmo havendo os
sinais de propriedade, como os pintos de Tondinha, que eram
cortados uma unha, ou outro tipo de marcação para denun-
ciar o dono, mas tudo se resolvia na paz. Mãe de casa saía à
procura dos animais dela pelos caminhos, moitas de mofum-
bo e juazeiros, atravessava os caldeirões. Andava descalça e pi-
sava nesses barreiros. Devido à lama acumulada no fundo dos
barreiros, formavam botas de lama em suas pernas e pés, que
ela não se incomodava de lavar, pois com o tempo e o vento
secariam e, mais tarde, a lama se desprenderia de sua pele.
Todas as noites, havia um encontro na casa grande de mi-
nha avó para escutar os fatos ocorridos no dia a dia: das mi-
nhas tias, do meu avô e minha avó. Os homens sentavam-se
nas poucas cadeiras ou tamboretes, outros em bancos de pau,
algumas mulheres faziam chapéu de palha e as crianças senta-
vam-se no chão ou iam brincar. Os netos brincavam e eu fazia
parte das brincadeiras do alpendre: trisca, pega-pega e outros
tipos de brincadeiras. Era servido café, biscoitos e, às vezes,
chá. O café era feito numa lata de óleo de cozinha servindo
de bule por uma de minhas tias. A quantidade de tigelas para

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Mãe de Casa e outras memórias

servir o café era pequena e muitas vezes aguardava -se que um


tomasse o café primeiro, enquanto o outro esperava a tigela.
Não havia xícaras de louças na casa. O sono chegava primei-
ro nos pequenos e iam pedindo o colo ou deitando no chão
e, por volta das oito da noite, todos voltavam aos seus lares.
Televisão, nesse tempo, era artigo de luxo, e somente havia
algumas na cidade de Groaíras, pois no Vaquejador ainda não
havia eletricidade.
A casa grande era rodeada de alpendres, com colunas de
tijolos e telhados com linhas de carnaubeira, havia algumas
cadeiras de madeira com tiras de solas e bancos feitos de im-
burana, sempre dispostos esperando alguma visita. Tinha um
cômodo grande, como se fosse uma grande sala, que tinha
uma mesa escorada na parede. Nela podia ter pratos, tigelas
sujas, cuia com farinha e latas com milho para as galinhas.
Ao longo das paredes, imagens de santos, principalmente
de São Francisco, Santa Luzia, quase coberta de fitas coloridas,
cruzes de palha benta para quando viesse um redemoinho ou
ventania forte. As palhas eram bentas no último domingo de
ramos, também fotos de filhos e netos. Dispostos nas paredes
da sala, armadores e uma rede, que ficava armada constante-
mente e, acima dela, uma corda com roupas usadas que eram
jogadas lá por vários dias, até a chegada do sábado, que era dia
de lavar roupa no rio Groaíras com sabão de oiticica, que era
feito em casa mesmo por minha avó.
Em um canto da sala, o banco de potes de alvenaria, com
dois potes cheios de água e canecos de alumínio pendurados
numa estrutura de madeira na parede acima, chamada copeira.
No quarto, vários caixões espalhados serviam para guardar fa-
rinha branca, farinha d’água e rapadura. Junto ao quarto, uma
cozinha. Esta era pequena com um fogão à lenha e um jirau,
que era uma espécie de mesa feita de cipós grossos e forqui-
lhas, com um alguidar, bacia feita de barro para lavar as louças,

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Vaquejador

ou melhor, os utensílios utilizados, a maioria de ágata. Alguns


pedaços de carne seca ou toucinho eram pendurados nas te-
lhas por um gancho de ferro para secar. Havia somente duas
panelas de barro e a tampa da panela tinha um orifício que
encaixava a concha para mexer o feijão. Um pequeno quintal
após a cozinha servia para fazer xixi, pois não tinha banheiro
na casa e também eram jogados restos de palhas de chapéu,
que no inverno servia de bagana, espécie de adubo, para um
pequeno roçado.
Na casa sempre havia bichos circulando: porcos comendo,
bodes, carneiros, ovelhas, cabras leiteiras - tomei muito leite
de cabra na minha infância; galinhas cacarejando e outras can-
tando após a postura de ovos. Meus avós faziam matanças de
porco e também criavam vacas e jumentos.
Minha vó adorava pôr nomes nos animais: a vaca boa
de leite era Faceirinha, que fornecia uma pequena quantida-
de de leite para consumo da casa. Os jumentos eram dois:
Xilon, de cor clara, e outro preto, chamado Pépé, por causa
de uma deficiência na perna. Referia-se aos animais como se
fossem gente! Muitas vezes, conversava com eles por horas a
fio enquanto os alimentava e tirava brincadeiras com gostosas
gargalhadas.
Certa vez, passava um senhor na estrada e parou no alpen-
dre de minha avó e pediu água para beber. Enquanto bebia e
conversava com minha avó, percebeu que o cachorro chegara
e bebia água diretamente da boca do pote. O homem avisou,
com certo pudor, a minha avó que o cachorro estava beben-
do, e Mãe de Casa respondeu simplesmente: “e você quer que
o bichinho morra de sede? Coitado!”

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Mãe de Casa e outras memórias

Casa no Vaquejador, 2019

Estrada de terra que dá à Casa, 2019

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A Mãe de Casa
Mãe de Casa

Não lembro precisamente a idade que eu tinha. Naque-


la época, comecei a ouvir histórias narradas pela minha avó.
Tratávamos por Mãe de Casa. Não tinha colo igual. Para ga-
nhar sua atenção, inventava uma dor de barriga. Com isso,
conquistava o que eu mais queria: uma deliciosa massagem na
minha barriga. Causava-me uma enorme sensação de prazer;
uma mistura de cócegas associada a um relaxamento que me
fazia dormir imediatamente. Talvez tenha aprendido com os
índios, lembro que pitava o cachimbo e, ato contínuo, soltava
baforadas de fumaça em direção ao meu ventre. Finalizava
este ritual com duas ou três cusparadas quando me esfregan-
do para deitar no seu colo à noite, ela dando baforadas em seu
cachimbo e massageando minha barriga com uma cusparada
de fumo que, não sei se pelo cheiro forte do fumo ou pela
massagem, eu logo adormecia.
Contava inúmeras histórias de sua vida, com riqueza de
detalhes, como se estivesse revivendo todos aqueles momen-
tos e voltando no tempo. Mãe de Casa era magrinha, nunca
engordou. Usava sempre o cabelo cortado reto, “nuca batida”
para os cabelereiros, mas chamava “corte nambu”, cabelos
bem pretos, não tinha fios brancos, eram tratados com óleo
de coco misturado com perfume. Colocava em um vidro de
desodorante, da marca “Mistral”, e borrifava nos cabelos.
Perfume! Ela adorava perfume! “Prefume”, assim era chama-

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Mãe de Casa e outras memórias

do! Colocava na palma da mão, o líquido, e jogava na cabeça,


como ela dizia, na “moleira” - para sair mais o cheiro do “pre-
fume”. Jamais cortava os cabelos no Vaquejador, onde mora-
va, somente em Canindé, como oferenda a São Francisco, na
Casa dos Milagres. Promessa que durou sua vida inteira!
Nas orelhas nunca faltavam uns brincos. Brincos que ba-
lançassem, “pois não tinha graça aqueles que não balança-
vam”. Comprava de ouro e eles tinham um formato parecido
com cabaças usadas para buscar água no rio, que ela chamava
de “cadeados de cabaça”. Os vestidos eram quase sempre do
mesmo modelo: casaco e saia com pregas, e não podia faltar
um bolso para o fumo e o cachimbo. Era minha mãe que os
fazia e ela ficava ao lado da máquina de costura dando pal-
pites. Usava também sandálias de sola, feita sob encomenda
ao sapateiro da cidade, Sr. Pachico. Também usava anáguas,
combinações e calcinhas, somente quando ia viajar para Ca-
nindé. Gostava de andar sem elas. Comprava as tais calcinhas
na bodega do seu Gonzaga Julho, comerciante da cidade com
loja no mercado público, que tinha um jeito muito próprio de
atender às pessoas, com uma fala mansa e demorava–se ao
empacotar a mercadoria com várias dobras no papel – papel
almaço, às vezes róseo, às vezes azul. Saía feliz da vida com
sua nova compra e geralmente passava em minha casa, antes
de ir para o sertão.
Ao chegar em minha casa, eu a observava, Mãe de Casa
experimentava a calcinha, dava uma palmada em suas partes
cobertas com a nova peça e dizia prazerosa que ficara muito
assentado, referindo-se às partes íntimas. Em um dos anos,
não me recordo bem que ano era, ela passou em minha casa
após a tal compra da calcinha. Feliz da vida, experimentou e
fez uma cara contente, deu uma palmada em suas coxas e su-
bindo um pouco os dedos, se elogiou novamente: “Olha que
pichato bonito” (“pichato” era como se referia à sua vagina).

24
Mãe de Casa

Assim ficara vestida com sua nova peça de roupa que teria de
usar quando fosse a Canindé.
Como se aproximava a hora do almoço, mamãe convidou-
-a para almoçar conosco e ofereceu um banho de chuveiro
antes de servir o almoço. Não aceitou o banho de chuveiro,
mas aceitou tomar banho de tanque. Esse tanque era de água
muito fria, que ficava no quintal da minha casa. “Minha co-
madre, não gosto deche negoço de chuvero, mas se tiver água
no seu tanque, eu tomo um banho!” – dissera ela a minha
mãe. Ao redor do tanque, no quintal de casa, havia um pé de
limão, que era sempre verdinho por causa das águas que es-
corriam do banho. Lá ela pegou uma lata, geralmente as que
foram utilizadas para óleo de cozinha e reutilizada para tirar
água, refrescou-se jogando água várias vezes no corpo e vol-
tou à cozinha para o almoço. Terminada a refeição, agradeceu
minha mãe e foi embora para o sertão, que ficava a uns seis
quilômetros.
À tardinha, quando fui brincar no quintal, vi que ela deixou
sua nova calcinha nos galhos do limoeiro, pois havia esqueci-
do quando fora tomar banho.
Não gostava de se olhar no espelho. Às vezes comentava
quando passava em frente a um espelho na parede: “hoje eu
não tô bonita!”, ou então dizia: “ui”, gritando, não gostan-
do da imagem. Contara a mim que quando jovem fora muito
bonita e tinha muitos pretendentes para casar, mas escolhera
meu avô (Pai de Casa). Dentre esses namorados, citava um de
nome Belarino. Ao falar dele, ria pelos olhos, muito azuis, que
eu admirava demais. Era muito apaixonada pelo Pai de Casa
(meu avô). Extremamente ciumenta – cheirava as camisas de
Pai de Casa quando ele chegava da feira em Sobral para ver
se não tinha cheiro de perfume de mulher e também colocava
apelidos nas vendedoras de café do mercado, onde meu avó
vendia porcos e galinhas. Chamava as referidas mulheres de

25
Mãe de Casa e outras memórias

“Taruga”, não sei o que significava, mas o termo “taruga” era


dito com raiva. Era sempre o mesmo interrogatório: “tomou
café na Taruga, Manoel? Praga de mulher oferecida, não se
dá ao respeito”! Ele, pacientemente, dizia: “Nega, deixe de
conversa!” Pai de Casa chamava sempre minha avó de Nega.
Quando lhe perguntavam o seu nome, ela sempre o dizia
completo, inclusive a data de nascimento: “Teresa Francisca
de Mel (referindo-se ao sobrenome, Melo), “Mel” do Campo
Frio porque os do Campo Quente são muito valentes! Nas-
ci no dia quatro de outubro de 1907, dia de São Francisco
das Chagas de Canindé!”. Tinha uma fé inabalável em São
Francisco. Em suas orações, ele era seu santo de devoção.
Quando contava qualquer problema, ela aconselhava: “peça
ao Chiquinho!”
Nunca vi minha vó com raiva ou aborrecida. Recebia a
todos com muita simpatia e, embora fosse analfabeta, sabia
falar com bons modos e delicadeza, oferecendo sempre um
café ao visitante e chateava-se quando esse não era aceito. Di-
zia “Deixe de orgui!” ( orgulho) e se abanque!” – para que a
pessoa sentasse nas inúmeras cadeiras de sola do alpendre.
Conversava com todos e tinha uma excelente saúde. Uma es-
posa fiel e dedicada ao esposo, mãe carinhosa, presente, avó
apaixonada pelos netos.

26
Mãe de Casa

Mãe de Casa e Pai de Casa ao centro da foto em Canindé. As netas, Tota,


à esquerda, e Luzanete, no meio. O neto, Eudes, à direita.

27
O Pai de Casa
Pai de Casa

Era moreno, tinha um sinal no rosto e quando foi ficando


mais velho, seu cabelo foi ficando pouco, raros fios e apa-
receu uma careca no meio da cabeça. Era muito carinhoso
com filhos e netos. Era feirante: comprava galinhas, capotes
e porcos na vizinhança e localidades próximas e os vendia no
mercado público de Sobral. Ia geralmente a Sobral no cami-
nhão de meu pai, levando porcos, galinhas e, às vezes, peru.
Em sua homenagem, no ano de 2005, a prefeita Zoélia, sua
neta, fez no mercado público de Groaíras, O Espaço de Feira Pai
de Casa, onde até hoje acontece a feira aos domingos. Quando
voltava da feira de Sobral, trazia sempre em uma cesta com
frutas, broas, sacos de petas e pães. Sentava-se no meio da sala
de casa e ia oferecendo a todos os netos que o rodeavam. Era
uma festa!
Meu avô era um homem muito paciente. Muitas vezes, Mãe
de Casa o acompanhava nessas idas à cidade vizinha, Sobral.
Em uma ocasião, chegando na rua do mercado, minha avó
se deparou com um deficiente em um caixote. Ela dizia que
se admirava de gente muito bonita ou de gente muito feia.
Encabulou-se como – “aquele coitado com membros atrofia-
dos conseguia fazer suas necessidades e onde era o seu cu?”
- Perguntava-se e interrogava meu avô. Por estar nessas in-
dagações, ficou despercebida e um ladrão colocou a mão no
seu bolso e roubou todo o seu dinheiro. Ela gritou, meu avô

31
Mãe de Casa e outras memórias

rapidamente saiu em busca do ladrão e recuperou o dinheiro.


Meu avô, Pai de Casa, andava sempre com uma faca “no quar-
to”, como a moda antiga do homem do sertão, cabra macho,
olhou para o ladrão e disse: “poderia furar um olho teu!”, mas
minha vó não deixou que ele fizesse tal coisa. A família a qual
pertencia meu avô era muito decidida e não levava desaforos
para casa.
O casal, Mãe de Casa e Pai de Casa, tinha sete filhos, mas
Pai de Casa nunca permitiu que o filhos fossem à escola. Não
dava importância ao estudo, como ele assim chamava. Meu
pai – louco para estudar - tinha inveja de um primo que re-
cebia aulas de um professor particular. Meu pai escutava as
lições atrás da porta da casa de seu tio. Para Pai de Casa, era
melhor um filho em casa trabalhando na roça do que sentado
em um banco de escola. Dizia que era perda de tempo.
Teve um casamento feliz com Mãe de Casa. Embora mi-
nha vó fosse muito ciumenta, ele não tinha outras mulheres.
Era bom conselheiro e gostava de conversar sentado no al-
pendre, trocando tragadas de cachimbo com minha vó no
fim da tarde.
Os últimos anos de sua vida foram com ajuda de uma mu-
leta por causa de uma queda de moto. Não lembro quantos
anos tinha quando faleceu. Talvez pouco mais de sessenta.
Lembro bem que almoçou uma panelada gordurosa e passou
mal, sendo levado para a Santa Casa em Sobral, ficando in-
ternado na UTI por vários dias. Minha irmã Valdenia, que na
época estagiava no curso de Enfermagem, me contara que fez
uma visita a ele na UTI e saiu chorando, pois ele implorava
por um pouco de água e ela não podia dar a ele. Até hoje faço
promessas para ele quando some algo. Acendo vela e ofereço
copo d’água. Já consegui e indico aos meus amigos, em caso
de desaparecer algum objeto em casa.

32
Pai de Casa

No dia de seu falecimento, Mãe de Casa chegou lá em casa


muito triste, não sabia explicar a doença de meu avô. Dizia
que tinha “entrado vento no coração do Manoel”. Os médi-
cos disseram que era um sopro no coração. Sentou-se na en-
trada de minha casa, onde tinha um jardim com uma papoula
vermelha, cabisbaixa e chorando. Um passarinho pousou na
planta e depois desceu até o chão, próximo a ela. Mãe de Casa
chorou com mais intensidade e não entendi. A mensagem do
pássaro era um sinal. Mais tarde chegou a triste notícia do
falecimento de Pai de Casa.

33
Os filhos
Manoel João - Papai

A primeira lembrança que me vem à cabeça é um flash de


uma menina esperando o seu pai. Estava numa calçada alta,
feita de pedra e ornamentada de vários pés de ciúmes que
nasciam entre as rochas. A casa construída pelo avô materno
ficava situada em um alto, de onde se via a estrada que ia para
Groaíras. O pai vinha lá embaixo com uma espingarda de ou-
vido e uma bolsa penduradas no ombro com as aves que tinha
abatido. Quando via a menina sorria e, metendo a mão na
sacola, tirava uma rolinha e dava para ela brincar. E ela feliz da
vida, fazia vários voos imaginários com a pequena ave morta.
O homem caçador era meu pai e eu, a menina. Assim co-
meça a história de um homem guerreiro que lutou até o último
minuto, em várias batalhas e em vários momentos ganhou e
em outros perdeu, sempre com muita dignidade e humildade.
Papai era chamado por Mãe de Casa e suas irmãs de Nenê,
por ser o caçula dos homens. Algumas das irmãs o chamavam
de Del e, às vezes, Delzinho. Quando casou, contava com ape-
nas vinte e dois anos e minha mãe tinha quinze. Começando
uma nova vida, fez de tudo um pouco: trabalhou em olarias
fazendo tijolos e telhas, foi canoeiro quando o rio Groaíras
ficava cheio no inverno; vendia galinhas e porcos no mercado
público de Sobral, comprava e vendia bicicletas. Contara que
uma vez fora roubado em Sobral por dois meliantes na feira

37
Mãe de Casa e outras memórias

do Mercado Público. Já tendo vendido as galinhas e porcos,


fora atraído para um jogo de caipiras onde levaram todo seu
dinheiro. Chegara em casa desesperado, sua esposa estava grá-
vida do primeiro filho e, como era um costume antigo, havia
um chiqueiro de capões aguardando para o resguardo (perío-
do em que a mulher tinha o bebê e só podia comer frangos
capados e de primeira pena), pediu que ela cedesse os capões
para começar um pequeno pé de bodega. E assim recomeçou
a negociar em uma mercearia em casa.
Depois, veio morar na cidade e sentiu o desejo de ser mo-
torista. Contou com a ajuda de minha mãe, pois não sabia ler
nem escrever. Inicialmente, trabalhou como motorista do Seu
Antônio Louro, mas com o tempo juntou dinheiro e comprou
o seu próprio caminhão.
Ainda lembro do caminhão, tinha uma boleia de madeira,
tipo Labina, sem portas, pintada de abóbora, e também era
chamado de Margarida pelo meu pai. O apelido era por causa
da antiga proprietária do caminhão. E com o passar dos anos,
foi trocando de caminhões e comprando terrenos, começou a
construir imóveis e assim, acumulou muitos bens. Não parava
de trabalhar e tinha uma energia fora do comum.
Tinha um tipo físico avantajado, talvez uns dois metros
de altura e uns cem quilos e quando ria, fechava os olhos.
Os olhos bem pequenos só aumentavam quando estava com
raiva. E também tinha uma risada gutural muito forte. Vestia
sempre calças e camisas de mangas longas, jamais usava ber-
mudas. Na cabeça, usava boné ou chapéu de palha. Adorava
carnaval e festas dançantes. Dono de uma alegria e bom hu-
mor contagiantes. Com uma veia cômica própria da família,
em nossos momentos familiares de intimidade, contava his-
tórias engraçadas, geralmente coisas que aconteciam com ele
devido à sua ingenuidade.

38
Manoel João - Papai

Ele adorava contar histórias que ficavam marcadas para


sempre em minha memória, como da raposa e da onça. Perdi
as contas de quantas vezes escutei a tal história.
Um fato marcante de minha infância era quando íamos
testar armadores das casas novas (casas que ele construía sem
parar) – ele armava a rede e todos deitavam por cima dele,
meus dois irmãos e minhas duas irmãs. Ele era pesado e, com
nossos pesos, se o armador estivesse firme não caía, mas ge-
ralmente ainda estava mole o cimento e todos caíamos, papai
passava horas rindo.
Era um bom conselheiro e ouvinte paciente, tinha a última
palavra de sabedoria e com uma filosofia de vida de dar inveja
a muitos estudiosos.
Construiu muitas casas e comprava terrenos. Construía
mais e mais. Além disso, resolveu negociar no atacado, ven-
dendo arroz, açúcar e milho em uma casa vizinha à nossa casa
de morada, que ele chamava de Expedita, nome de uma mo-
radora que alugara a referida casa.
Nos finais dos anos 90, papai contraiu uma gripe muito
forte e avançou para uma pneumonia com um quadro que se
agravou e que precisou ser levado para Fortaleza, para o Hos-
pital do Pulmão e Coração de Messejana, e após três meses
internado com problemas no pulmão, teve alta e voltou para
seus afazeres totalmente recuperado. Cinco anos se passaram,
veio tudo de novo. Começou com uma tosse e o diagnóstico,
após um exame especifico, deu um tumor maligno no pulmão,
isso já em grandes proporções. Foram quase dois anos de tra-
tamento sem esperanças pela grande proporção do tumor alo-
jado em seu peito.
E a última lembrança de meu pai foi ele balbuciando
meu nome quando cheguei de Fortaleza, onde eu morava
na época, em seus instantes finais de sofrimento, e minha

39
Mãe de Casa e outras memórias

mãe gritando para que eu ajudasse a calçar uma meia em


seu corpo quase sem vida.
Todos os dias acordo e é como se jamais tivesse perdido
esse meu herói que tantos ensinamentos de vida passou para
mim. Rio de suas histórias, sempre muito engraçadas, e sua
veia humorística me acompanha aonde quer que eu vá.

Manoel João (arquivo pessoal)

40
Chico João

A última vez que o vi com vida foi de uma emoção ímpar


que não me segurei e fui acometida de soluços e chorei tudo
que podia, comparando somente ao dia da morte de meu pai.
Ele havia sido diagnosticado com câncer na cabeça, preci-
samente, um tumor no cérebro. Suas filhas levaram-no para
Fortaleza e, depois de uma longa jornada em médicos e hospi-
tais, voltou para casa para viver seus últimos momentos.
Nesses últimos momentos, já não falava, mas nesse dia da
minha visita, seus olhos diziam tudo. Quando me aproximei
da rede em que ele estava deitado, ele tentou levantar a mão
para dar a benção e, olhando para ele, a emoção estava estam-
pada em seus pequenos olhos, não me contive. Fico emocio-
nada até hoje. Lágrimas e um aperto no coração.
Seu nome era Francisco Justino. Não sei o motivo da Mãe
de Casa gostar tanto do nome Justino. Meu pai também era
um Justino, apesar de nenhum dos dois ficarem conhecidos
por esse nome. As pessoas os conheciam como Chico João e
Manoel João.
Desde criança, quando me encontrava com ele, Tio Chico
era sempre animado, e quando eu o cumprimentava pergun-
tando se estava tudo bem, ele respondia que não estava doen-
te e nem dor de cabeça sentia. Tinha uma veia cômica que
fazia todos rirem de suas histórias. Minha avó, Mãe de Casa,

41
Mãe de Casa e outras memórias

o chamava de “Chiquim”. Ele era mais velho que meu pai.


Quando ele sentia algo, pedia a minha avó para rezar. Mãe de
Casa costumava rezar sempre que ele tinha alguma enfermi-
dade, como dor de dente, dores nos ossos ou machucados.
Já com mais idade, torceu o pé e ficou inchado, então foi ao
cemitério e colocou o pé em cima do túmulo de Mãe de Casa,
já que ela havia falecido, então pediu: “Reze, mamãe!”
Adorava rir de pessoas muito feias e dizia que umas moças
velhas que passavam em frente à sua casa para ir para a igreja
tinham se aposentado por feiura e fazia uma careta.
Comprou uma terra depois do Vaquejador, e como hou-
vesse plantado lá milho e feijão e a safra não fosse boa, bati-
zou-a de Amanari, referindo-se ao presidio Amanari.
Tinha o porte elegante e um corpo musculoso. Trabalhara
nas carroças do Seu Vicente Camilo, botando água nas casas
de Groaíras quando a cidade ainda não tinha água da CAGE-
CE1 e, dentre outras profissões, segundo ele, tinha o bumbum
grande de fazer chapéu sentado no chão com as irmãs, quan-
do fora mais jovem.
Foi casado com tia Nonata e teve duas filhas que o amaram
muito. Foi um excelente pai, muito carinhoso e dedicado. A filha
mais nova morava em Fortaleza e muitas vezes ele levava galinha
caipira, ovos e queijo para lá de ônibus. Uma vez, na rodoviária,
sentiu vontade de ir ao banheiro e se admirou de ter que pagar.
Ficou indignado. Dizia: “pagar pra cagar! Como é que pode?”
Ele e meu pai foram irmãos e amigos e sempre conversa-
vam muito.
A sua filha mais velha conserva até hoje várias de suas coi-
sas e diz que fará um museu para ele.
Recordarei sempre sua alegria, bom humor e aquela voz
grave com um sorriso incomparável e carinhoso para comigo.
1 Companhia de Água e esgoto do Ceará.

42
Chico João

Chico João (arquivo pessoal)

43
Maria Querida

Assim era seu nome de batismo e no registro no cartório


de Groaíras: Maria Querida de Paiva. Filha mais velha dos sete
filhos. Meu pai a chamava de Runa. Achava engraçado meu
pai e ela, ficava horas ouvindo suas conversas na mesa da co-
zinha da minha casa. Ela o chamava de Compadre Nenê. To-
mavam café e quando ela ia se levantando para ir embora para
o Vaquejador, papai falava: “Vai agora, não, Runa”! e então,
ela sentava novamente. Isso repetia-se por pelo menos umas
três vezes. Eram engraçados, os irmãos. Ela sempre pedia aju-
da ao papai e ao tio Chico para resolver problemas financeiros
ou algumas decisões familiares.
Quando descobriu que uma das filhas engravidara do na-
morado, recorreu aos dois irmãos. Saíram atrás do rapaz, que
se encontrava em um roçado, e levaram-no direto para o car-
tório civil para realizar o casamento, embora o rapaz estivesse
com as roupas do trabalho no campo e um pouco sujo, a ce-
rimônia civil foi realizada.
Lembro-me das vezes que a família de tia Maria ia a Canindé.
Todos: ela, seu esposo e os filhos. Os filhos pequenos pediam
brinquedos e lanches e as filhas mais moças queriam dinheiro
para comprar fitinhas, óculos de sol e bijuterias. Ela corria para
o ônibus e pedia pelo amor de Deus para o Neutinha, que era o
proprietário e motorista do ônibus, acelerar e ir embora dali, pois
ela estava ficando louca de tanto os filhos lhe “atentarem”.
Casou-se com Simplício, mas o chamava de Simpilício.
Este fora trazido ainda criança do estado do Amazonas. Filho

45
Mãe de Casa e outras memórias

de uma índia, tinha costumes diferentes e, segundo relatos de


parentes, não falava quando aqui chegou, embora já tivesse
uns oito anos. Seu pai era groairense e fora tentar a vida nos
seringais na região norte. Casara-se com uma índia, porém ela
falecera e ele trouxera dois meninos quando voltara a Groaí-
ras. Dois garotos com aproximadamente sete e oito anos e
não falavam nenhuma palavra. Eram arredios e assustados.
Simplício e Pergentino eram seus nomes.
Simplício era exímio caçador e tinha uma visão invejável.
Saía para caçar e voltava carregado de aves, tinha tiro certeiro
e boa visão. Ele mesmo depenava e tratava as caças e ninguém
mais era autorizado a chegar perto para desempenhar tal ta-
refa, pois segundo os seus costumes, podia “encruar” e, com
isso, atrapalhar sua mira e próximas caçadas. As caças eram
sua refeição preferida. Cozidas com farinha seca. Geralmente
comia as aves ou peixes pescados de landuá nas lagoas.
Não comia arroz. Dizia que arroz não servia para seu “bu-
cho” e chamava este alimento de “engana-cú”; não conversa-
va muito e sorria muito quando tomava umas cervejas. Bebia
as geladas geralmente quando levava as duas filhas mais velhas
para as festas dançantes. Dava gargalhadas e ficava mais con-
versador. Foi um excelente pai, jamais dava surras ou broncas
em seus filhos e os criou com muito carinho.
Maria Querida conta atualmente com uns oitenta e nove
anos, tem vinte e dois netos, vinte e quatro bisnetos e mora
ainda no Vaquejador com a filha mais nova. Devido a uma
queda, vive em uma cadeira de rodas. Ainda gosta de beber
uns tragos e é muito feliz quando reúne toda a sua família no
natal e ano novo para um tradicional churrasco.
Querida...
O nome foi bem colocado por Mãe de Casa! E assim es-
tava a casa naquele dia de Fevereiro, lotada de filhos, netos e
bisnetos para o adeus final da Runa.

46
Maria Querida

Na última vez em que conversei com ela, no ano passado,


2019, li minha crônica dedicada a ela. Ela gostara e fizera
questão que eu colocasse a idade, quantidade de filhos, netos
e bisnetos de sua prole, enfatizando que todas as suas terras
estavam divididas. Nesse mesmo dia, ela estava na rede. A
cadeira de rodas estava num canto da sala. Não estava boa de
saúde, mas estava animada para conversar.

05/02/2020
Recebi uma mensagem da neta pelo Messenger “Só para
avisar que Vó Maria está molinha.” - apenas isso!
Fiquei pensativa, mas na manhã seguinte não recebi mais
nenhuma notícia. À tarde, do mesmo dia, após o almoço, dei-
tei-me em minha rede e abri o notebook para estudar alguns
conteúdos da escola. A janela do quarto aberta, visualizava-se
uma linda tarde de inverno. Nuvens carregadas anunciavam
chuva. Uma borboleta preta, com asas gigantes e matizes mais
claras desenhadas, veio pela janela e pousou na tela do com-
putador. Sobressaltei-me e pensei tratar-se de um aviso. Co-
mentei com meu esposo, que dissera sem rodeios que eram
mariposas de inverno, mas em meu íntimo, eu sabia que era
um espírito que partia para a glória do Pai. A mariposa, bor-
boleta, deu mais dois voos passando por cima da rede e saiu
pela janela. Era exatamente a hora em que Maria Querida par-
tia para encontrar seus entes queridos já falecidos.

47
Mãe de Casa e outras memórias

Tia Maria, 2019

48
Tondinha

Filha mais nova de Mãe de Casa e Pai de Casa. Antônia


Neuza era seu nome. Para os irmãos, Tonha, e nós sobrinhos
a chamávamos Tondinha. Risonha e chegada às brincadeiras,
casou cedo, teve sete filhos também, como Mãe de Casa. No
dia de seu casamento, minha avó chorara bastante. Recordo
ainda hoje da festança que foi dada pelo meu avô por oca-
sião do enlace matrimonial: panelas cheias de galinha caipira
e carne de porcos cozidas e farofas engorduradas que eram
servidas em abundância.
Mãe de Casa não comia nada, só chorava. Era sua filha
caçula e preferida. Tondinha contara que ficara assustada em
sua lua-de-mel, na primeira noite, na casinha construída pró-
xima à casa de seu pai, quando o esposo tentou valer o casa-
mento e despiu-se em sua frente. Meu Deus! Um homem nu
e com o sexo à mostra. O que fazer? Ela se assustara, pegara
a lamparina e correra de volta à casa dos pais. Não sabia nada
de sexo. Ninguém contara de tais coisas para ela. Meu avô e
minha avó conversaram com ela, explicando o matrimônio.
Aconselharam-na a voltar para o marido, pois era assim mes-
mo. Cabisbaixa, voltou e dormiu com o marido, aceitando seu
destino de esposa.
Moraram vários anos no sertão e depois mudaram-se
para Fortaleza: ela, o marido e os sete filhos. Lá na capital,
passou a tomar conta de um barzinho e os clientes pergun-

49
Mãe de Casa e outras memórias

tavam de onde ela era, qual a cidade de seu nascimento. Ela


dizia orgulhosa que era de Groaíras. Alguns não conseguiam
acertar o nome e pronunciavam “Guaiara”, “Traíras”... Ir-
ritada, Tondinha dizia: “Traíras é teu cú – não sabe dizer
Groaíras, abestado!”
O casamento acabou e os filhos ficaram com o esposo de
Tondinha. Ela voltou para Groaíras, sua cidade natal, e pas-
sou a cuidar de pessoas que não tinham para onde ir ou não
tinham parentes, geralmente idosos ou idosas.
Lembro que cuidou até o dia da morte de Geraldina. Foi
uma das idosas que ela cuidou. Esta era moça idosa que na sua
juventude gostara de festas e rádio bailes e perfumes, que ela
chamava de “açon” (loção). Algumas palavras eram pronun-
ciadas de forma errada: briga era “piga”, e outras mudavam
de gênero, como toucinho, ela chamava “toicinha”. Sempre
ria das histórias da Geraldina. Por causa de um acidente de
bicicleta, puseram-na o apelido de “bicicleta sem freio” – Ge-
raldina ficava indignada.
Tondinha recebia a aposentadoria de Geraldina e, um dia,
ela pediu a Tondinha para que comprasse um relógio para ela.
Gostava de andar de relógio. Tondinha administrava o dinhei-
ro e comprou um relógio para ela. Um dia, Geraldina chegou
para minha tia com um problema. Tinha um relógio, mas não
sabia as horas. Nunca fora à escola e se alguém perguntas-
se “Que horas são, Geraldina?”, “Como eu faço, Tonha de
Deus?”. Tondinha pensara um pouco e lhe respondera: “diga
assim: é a mesma de ontem!” Solução encontrada.
Geraldina usava sempre batons vermelhos, mas não sabia
usá-los muito bem. O contorno de sua boca estreita formava
um bico, com lábios levantados e o batom contornava os lá-
bios com um pouco de sobra, ficando caricato, como se fosse
um bico de galinha com batom.

50
Tondinha

Algum tempo depois, Tondinha foi levada pelos filhos


para Fortaleza, mas não mais se acostumou com a vida de
capital e a violência. Dispensou o aparato dos filhos e voltou
para Groaíras, para sua vida de loba solitária.
Atualmente, mora no conjunto residencial COHAB, em
Groaíras, com apenas um gato de companhia. Os filhos se
queixaram pela escolha dela, mas Tondinha já se acostumara
com sua vida solitária. Frequenta o forró do Idoso aos sába-
dos e gosta de dançar. É muito divertida e risonha.

Tia Tondinha, 2019

51
Tia Carmélia

Carmélia Paiva Melo, de batismo e registro. Teve seu pri-


meiro aniversário aos oitenta anos. Seus filhos a homenagea-
ram e ela achou tão bom – uma festa com bolos e presentes
- e desde então, não deixou mais de fazer festa de aniversário
nos anos seguintes. “É bom demais” – não pode mais passar
em branco – comentava feliz da vida.
Casou com Antônio Paula. Tio Antônio era um contador
de histórias. Adorava suas histórias em tom de humor, das
quais ele mesmo ria muito. Uma risada gutural e forte que
terminava sempre em um acesso de tosse. Dessa união, nas-
ceram oito filhos, um atrás do outro. Moravam no início na
localidade de Juá, vindo depois morar na cidade de Groaíras,
na rua atrás da nossa casa.
Lembro bem da situação financeira do casal e eu presencia-
va os almoços, cujo cardápio era geralmente feijão com touci-
nho e farinha. Eu ria, muitas vezes, porque tia Carmélia não
lavava os pratos para servir o jantar, passava apenas um pano de
prato, pois a farinha secava e bastava apenas “espanar” porque
se tratava do mesmo cardápio: feijão com toucinho e farinha.
Quando eu era criança, por volta de dez ou onze anos,
no período das férias escolares, ficava com a família da tia
Carmélia quase diariamente. Tio Antônio Paula, esposo dela,
arrendara oiticicas para recolher os frutos nas terras da Flo-

53
Mãe de Casa e outras memórias

resta, localidade a uns dois quilômetros de Groaíras. Saíamos


ao amanhecer, tio Antônio, tia Carmélia, os filhos, eu e meu
irmão Nato - ia esquecendo, Dorly - Esse era o cachorro que
pertencia à família. E que cachorro! Faltava falar. Um cão
vira-lata que sabia caçar. Ele era nossa garantia de almoço.
Explico, caro leitor! Geralmente o cardápio do almoço era
feijão cozido em um fogo improvisado debaixo das árvores
de oiticicas, e Dorly era exímio caçador de preás. Geralmente
pegava um ou dois preás. Imagine se Dorly comia preás! Não
sobrava nada para ele. O coitado comia feijão puro, pois não
sobrava nada do preá.
Papai, na época, negociava frutas que trazia no caminhão e
muitas vezes sobrava bastante, às vezes, manga, às vezes, bana-
na. Então ele chamava minha tia Carmélia e seus filhos, que co-
miam bastante. Isso ocorria geralmente à noite. Eu perguntara
uma vez a ela se não ia lhe fazer mal ao estômago comer man-
gas à noite e ela me respondera, numa simplicidade: “a barriga
não sabe se é de dia ou se é de noite, lá sempre é escuro”.
As filhas foram casando e os filhos foram embora para o
Rio de Janeiro e a vida continuou em paz.
Um dia, Tio Antônio passou mal do coração, teve de ir às
pressas para Fortaleza e lá faleceu. A família toda ficou em
prantos, muito abalada e, assim, sem condições de cuidar do
funeral. Eu e meu esposo Clerton providenciamos o retorno
à Groaíras do corpo e dos parentes que residiam na capital.
Foi um dia muito triste!
Viúva, tia Carmélia até hoje frequenta as festas para ido-
sos, adora dançar e também gosta de paquerar outros idosos.
Muito vaidosa, usa sempre anéis, colares e brincos e nunca
esquece de pintar o cabelo e as unhas. Continua bonita e sem-
pre digo que quero envelhecer como ela, alegre e divertida.
Tia Carmélia mora atualmente na rua João Guarino com um
filho adotivo.

54
Tia Carmélia

Tia Carmélia, 2019

55
Tia Nêga

Seu nome de batismo era Francisca. Era a quinta filha da


família. Tinha uma cor mais escura do que os outros filhos e
por isso recebeu o apelido. Nascera perfeita e todos que visita-
vam Mãe de Casa durante o resguardo achavam-na muito bo-
nita. A cor dos olhos chamava atenção. Os olhos eram esver-
deados e a formosura da pequena criança causava admiração
a todos que foram visitar minha avó quando tia Nêga nasceu.
Uma certa senhora, ao contemplar a criança recém-nasci-
da, fizera muitos elogios à beleza da pequena Nêga. Mãe de
Casa colocou a criança para mamar em seu peito e atentou-
-se para o rosto da criança detendo-se nos olhos. Havia neles
um liquido escorrendo semelhante a sangue e tudo mudou...
Como cuidar da pequena sem dinheiro, sem médico e nenhu-
ma condição? Mãe de Casa passava a mão na cabeça sem sa-
ber o que fazer!
Nessa época, um povo cigano acampara em uma oiticica
na estrada e viram o desespero de minha vó, sem saber como
agir diante do infortúnio da pequena. Uma cigana olhara para a
criança e dissera que Santa Luzia a curaria. “Senhora, faça uma
promessa com essa santa! Ela resolve todos os casos de visão!”
E a resposta estava lá na imagem da santa pendurada na
parede da casa de taipa: com os braços cruzados e os olhos
num prato, vigiando tudo. A santa protetora da visão, Santa

57
Mãe de Casa e outras memórias

Luzia, era a resposta. Como não lembrou de uma santa tão


milagrosa? Ajoelhou-se Mãe de Casa aos pés da santa: “Se a
menina ficar boa dos olhos, enquanto vida essa menina tiver,
pedirá esmola no dia de Santa Luzia e comerá do que lhe de-
rem, além de colocar uma fita colorida na imagem da Santa
Luzia, todos os anos, pelo resto de sua vida”.
E assim, a criança dia após dia foi melhorando a visão.
Minha vó dizia que Nega era “miude” para referir-se à miopia
da filha, que ficou curada. Tornou-se uma moça muito bonita,
que namorava bastante e de uma personalidade forte, que não
tinha temores de nada.
Quando era moça, ia a festas dançantes com os irmãos e
irmãs. Uma vez, lá pelo meio da festa, um cabra embriagado
quis brigar com tio Chico. Tia Nêga arrancou um pau da cerca
próxima à casa onde estava sendo realizado o forró e encarou
o cabra, comprando a briga do irmão.
Uma vez arranjou um namorado, mas tinha outra moça
interessada no rapaz, ficando por isso a rivalidade. Por oca-
sião dos festejos religiosos, em que as pessoas compravam
roupas novas, encontraram-se ela e a outra moça no armazém
de tecidos do Seu Moacir Prado, comerciante e proprietário.
A moça falou que comprara um vestido de cambraia brocada
e Nêga dissera em tom de deboche: “Pois o meu vestido é de
cambraia derrubada os paus, passou do tempo da broca”! –
tinha resposta para tudo!
Casou-se com Raimundo Pia. Acompanhei, desde meni-
na, o casamento dos dois. Raimundo era pescador e quando
chegava das pescarias, confeccionava redes de pescar sempre
assobiando e feliz da vida, seguia sua luta diária. Os dois brin-
cavam um com outro e percebia-se um bom relacionamento.
Tia Nêga contara que no início do matrimônio desejava
muito ver o marido pelado, pois “naquelas horas”, a luz da

58
Tia Nêga

lamparina estava apagada. No sertão do Vaquejador, ainda


não havia luz elétrica. Planejou um dia, na hora do banho
dele, conseguiria satisfazer seu desejo.
Ele tomava banho atrás da casa. Uma vasilha de água gran-
de, sabonete e uma toalha eram necessários para o banho,
mas esquecera uma pequena lata para retirar a água da vasi-
lha. Gritou pedindo a minha tia Nêga. Era a oportunidade!
Entregou a lata e fingiu fechar a porta da cozinha, olhava o
marido iniciar o ritual do banho. Estava tão concentrada que
não percebera a lata voando em sua direção, quando o marido
sentiu-se espionado! Ela riu demais nesse dia!
Tia Nêga mora atualmente na rua Dona Leopoldina, em
Groaíras, e cuida com muito carinho de filhos e netos. Recebe
o dinheiro da aposentadoria e sempre dá uma pequena aju-
da a todos. Tem boa saúde e raramente vai ao médico. Uma
vez, sentindo dores nas costas, resolveu fazer uma consulta
no PSF2 próximo à sua casa. Sentia fortes dores nas costas,
o médico dissera que ela estava acima do peso e que tinha de
emagrecer. Tia Nêga não gostou muito. “Dotô, você quer que
eu fique da grussura de um cipó”?

2 Posto do Programa de Saúde da Família.

59
Mãe de Casa e outras memórias

Tia Nêga 2019

60
Tia Gerarda

De uma beleza exuberante quando era moça. Sempre foi


muito carinhosa com os sobrinhos e animais domésticos.
Criava os burregos enjeitados pelas cabras e chorava o dia in-
teiro quando meu avô matava o pequeno animal de estimação.
Casou-se com Francisco das Chagas, Chaguinha, que
morava próximo às terras de meu avô. Teve três filhos e os
criou com muito carinho e mimos. Na nossa família, aqueles
que deixam os filhos fazerem o que quiserem chamamos de
tia Gerarda. Valdênia, minha irmã, era a cópia perfeita dela.
Quando um filho fazia algo que não agradava ou desobedecia
a ela, apenas ela falava: “Anhran, nenê”!
Contara minha avó que quando tia Gerarda era criança, ia
morrendo vítima de um raio. Mãe de Casa chamava raio de
“curisco”.
Tia Gerarda contava com uns dois anos de idade. Era um fim
de tarde. O céu prenunciava muita chuva. Nuvens carregadas.
Um calor sufocante daqueles de tornar a respiração difícil. Os
trovões chegaram juntamente com a chuva torrencial que escor-
ria nas telhas naquela cadência dos pingos descendo abundantes
para o caldeirão na frente da casa grande. Os porcos, devido ao
frio, procuravam abrigo debaixo do alpendre de casa, onde tam-
bém estava minha tia, que brincava correndo atrás deles.
De repente, o clarão no meio de casa e, na sequência, o es-
trondo que derrubou uma parede. Um forte cheiro de coisa

61
Mãe de Casa e outras memórias

queimada. Mãe de Casa saiu da cozinha e não encontrou a filha,


que antes brincava e ria junto aos porcos. Ao invés da filha, ela
via uma porca caída e morta no chão do alpendre. Minha avó
gritava e pedia socorro ao meu avô, que imediatamente chegou
e percebeu que a parede, ao cair, matou uma porca e constatou
também que tinha algo embaixo da porca. Depressa, levantou o
animal e encontrou a pequena desacordada e que respirava com
dificuldade. Meu avô soprou em seus ouvidos e um irmão de
meu avô fez uma aspiração no nariz dela, depois de um longo
tempo, a menina voltou a respirar normalmente.
Tia Gerarda ainda hoje mora no Vaquejador com o esposo
e seu filho mais novo. Tem uma presença marcante e quando
você chega em sua casa, ela para tudo e geralmente faz café.
Na saída, tem sempre um agrado para lhe dar, como ovos
caipiras ou legumes, se estiver no inverno.

Tia Gerarda, 2019

62
Umas memórias
O Filho Perdido

Naquele verão, os dias estavam mais quentes ou era im-


pressão? Sentia-se tonta algumas vezes ao alimentar os porcos
e as galinhas no terreiro da cozinha ou mesmo quando se
abaixava para pegar farinha branca nos enormes caixotes no
quarto de dormir. Não percebeu direito, mas lembrara que
suas regras não tinham vindo. Mais filhos. Como eram sem-
pre desejados e uma benção de Deus! Se fosse homem ela lhe
daria o nome de Sebastião. Tinha uma devoção a este santo,
cravado de flechas que tinha o sofrimento no olhar e causava
piedade as feridas sangrando no peito eivado de flechadas.
Era costume, aos domingos, ir para a casa da sogra. Tinha
um relacionamento tímido com a senhora sua sogra, de nome
Raimunda. Dona Raimunda tinha quatorze filhos e não era de
muito assunto com as noras. A luta diária na casa tornaram-na
durona e imprimia um caráter de matriarca de cara fechada.
Vinha de uma família determinada, os galuchos. De pele quei-
mada pelo sol e cabelos ardidos, não tinha muito carinho pelo
marido, o que causava espanto ao restante da família, pois
ao servir a refeição, o primeiro prato deveria ser o prato do
esposo, dizia Mãe de Casa. Dona Raimunda não se importava
e muitas vezes Sr. João, o esposo, pegava o “polme” - o final
do caldo da panela.
Os sogros moravam na localidade de Anajá, distante algu-
mas léguas da Gangorra e Vaquejador. Mãe de Casa colocou

65
Mãe de Casa e outras memórias

os meninos nos jumentos e fizeram o percurso caminhando


atrás. Maria Querida, a filha mais velha, ia na frente. A famí-
lia chegou à casa após o almoço dos sogros. Todos os filhos
de Dona Raimunda tinham o costume de, após o almoço,
quando já haviam descansado, jogarem bola em um campo
de futebol pertinho de casa. Nesse domingo, havia no almo-
ço carne de porco. O porco fora cevado no chiqueiro e era
grande. Fora cozido em grandes panelas de barro e separados
as banhas para torrar mais tarde e o sangue para o chouriço.
Mãe de Casa chegou com o marido e os filhos pequenos após
o almoço, quando os cunhados se preparavam para o jogo de
bola no campinho atrás da casa. As crianças foram brincar e
todos sentaram no grande alpendre da casa, pois a esta hora
já corria um ventinho, aliviando assim o calor da tarde. Um
café foi servido e a conversa se prolongou até que alguns dos
filhos, já cansados do jogo de bola, foram retornando do cam-
po de futebol se queixando de cansaço e fome.
Dona Raimunda retirou-se para a cozinha e ateou fogo
embaixo das panelas com as sobras da fissura do porco e es-
pinhaços que sobraram do almoço. O cheiro da gordura e o
fígado do porco foram chegando ao alpendre. Aquele cheiro
de gordura e da carne de porco subiu muito rápido nas nari-
nas de minha avó, que começara assim a salivar, lembrando
do mocotó do porco bem cozido. Aquele desejo aguçou seu
cérebro, que já não escutava o que estava sendo dito na roda
de conversa do alpendre. Os homens foram chegando e se
dirigiam à cozinha, de onde emanava o cheiro da comida, e
cada um deles fazia um prato com farinha branca, gordura e
as carnes misturadas. A coragem de pedir um pouco para si
não chegava. A saliva em sua boca era demasiada. Pediu ao
meu avô, Pai de Casa para irem embora, não conseguia dizer
o que sentia a ninguém.
No caminho de volta, contou ao marido do desejo, que
preocupado, apertou o passo e rapidamente chegaram em

66
O Filho Perdido

casa. Ele se dirigiu ao chiqueiro de porcos e, com muita ra-


pidez, sangrou o animal para assim matar o desejo da espo-
sa. Nem tinha terminado por completo quando foi chamado
para a alcova de casa, como assim era chamado o quarto do
casal. A esposa, deitada em uma rede, se tremia toda e o san-
gue entre as pernas prenunciava a perda de bebê, que não
resistira. Sebastião não chegara ao mundo.

67
O Significado das coisas

Algumas histórias precisam ser contadas, pois elas estão


presentes em nosso viver e permanecem como lições de vida
para gerações futuras.
Meu pai não teve oportunidades de frequentar escolas, po-
rém era ávido por saber e escrita, como também incentivava
todos da família a estudar e não serem seres humanos sem co-
nhecimento de nada na vida. Como ele dizia: “Um burro véi”.
Mamãe era superinteligente e largou os estudos no tercei-
ro ano primário, hoje ensino fundamental, para se casar com
papai.
Na época, contava com quinze anos. Quando ela mencio-
nou a meu pai, após o nascimento dos seis filhos, que queria
voltar a estudar, papai deu a maior força e a apoiou em todos
sentidos: como ficar do lado só olhando o desenrolar dos fa-
tos e bater palmas por cada etapa vencida por ela.
O retorno de mamãe aos estudos começou com o curso
para o supletivo do 1° grau, assim chamado o ensino funda-
mental de hoje. Contratou uma amiga minha, Socorro, para
o reforço de matemática. Passou nos primeiros exames do
supletivo, papai de lado, na torcida. Resolveu fazer o segundo
grau, o ensino pedagógico, em Sobral, cidade vizinha à nos-
sa, pois não tínhamos ainda essa modalidade de ensino em
Groaíras, escolas com o segundo grau.

69
Mãe de Casa e outras memórias

Ela ia todos os dias de ônibus até Sobral, era muito can-


sativo. Chegava cansada e com fome ao meio-dia. Comia re-
clamando de tudo, impertinente do juízo. Concluiu também
com êxito. Tirava boas notas. Resolveu, então, se aventurar no
exame para o vestibular. Papai, como sempre, a acompanhou
até a UVA3, universidade onde mamãe concorria a uma vaga
para pedagogia.
Era um domingo ensolarado e quente, mas papai estava feliz
em conduzir minha mãe para mais uma etapa nos estudos. Pa-
pai estacionou o carro em frente à universidade e ficou sentado
no capô enquanto mamãe entrava e fazia a prova da área das
linguagens, que incluía a disciplina de redação. Algumas horas
depois, começaram a sair os primeiros concorrentes do exame
vestibular e encostavam também no carro de papai. Todos eram
unânimes que o tema da redação estava muito difícil e pergun-
tavam ao papai, com certa intimidade de estudante, como se
papai também tivesse feito a prova, o que ele tinha achado e ele
dizia concordando com eles – “muito difícil!”
Outros comentavam que tinham botado para quebrar no
tema. E assim se sucedeu por quase toda manhã, até mamãe
terminar a prova e voltar para o carro, com ares de cansada.
Mamãe mal sentara no banco do passageiro do carro, pa-
pai, cheio de indagações, perguntou a ela: “Erivalda, o que
diabo é redação?”
Muitas vezes, papai não conhecia o significado das palavras
e minha mãe tratava de explicar didaticamente com palavras
mais fáceis para que ele compreendesse tudo. Outras, ela per-
dia a paciência.
Numa tarde, Papai estava sentado na calçada de casa numa
cadeira de tirinhas com balanço e as pernas estiradas de modo
relaxado. Mamãe ficava de lado. Caminhando na rua, vinham
uma senhora muito magra e outra muito gorda, papai pergun-
3 Universidade Estadual Vale do Acaraú.

70
O significado das coisas

tou a mamãe quem seria a mulher mais bonita. Mamãe res-


pondeu que era difícil comparar duas belezas opostas. “Como
você me dá dois opostos para comparar, Manoel?” - papai fi-
cou admirado com aquela palavra e ficou repetindo inúmeras
vezes ... “opostos... opostos”.
Do lado de nossa casa, papai comercializava milho, feijão,
arroz, rapadura e vários produtos no atacado. Nessa mesma
tarde, após o não entendimento da nova palavra, aparece um
freguês, Pedro, perguntando se meu pai tinha milho. Papai
levantou-se da cadeira e falou: “Me acompanhe, Opostos!”

71
Lembrança do
Monsenhor Cleano

Naquele tempo, nem imaginava quem era Alphonsus de


Guimarães, mas seria o destino, que de uma forma estra-
nha, me apresentava a ele. O poema se encontrava no livro
didático de português da quinta série do Centro Educacio-
nal Padre Mororó.
Era o início do curso ginasial. Fazíamos um exame de ad-
missão ao ginásio, era comparado ao concurso de vestibular,
o nosso vestibular groairense. Alguns da minha época, com
certeza, recordam. A aula de português acontecia na sala que
ficava próxima à secretaria, aquela com janelas amplas e que
depois foram fechadas por cobogós. Elas davam para a gente
dar uma boa olhada no beco do Sr. Raimundo Olavo, maravi-
lhosa sala, permitia que se espiasse o que ocorria na rua, num
momento de distração do professor. Só que o professor, o po-
deroso professor era ele! Monsenhor Cleano! Quem ousaria
olhar pelos benditos cobogós!
A aula iniciara com um momento de oração. Sempre a
mesma prece: “Dignai-nos, Senhor...” e logo após, iniciaria a
leitura do texto. “Conceição, sua vez de ler”, dissera ele com o
tom de voz de oratória. Concentrei- me no texto do dito autor
já mencionado. Era uma poesia. Chamava-se “Ismália”.

73
Mãe de Casa e outras memórias

“Quando Ismália enlouqueceu,


Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar”

Li com muita ênfase, gesticulei na estrofe “via uma lua no


céu, via outra lua no mar”. Direcionava o braço para cima
quando falava “céu” e fazia um gesto para baixo quando fala-
va “mar”. Percebi que ele olhou em minha direção, com muita
atenção com aqueles óculos de aro preto na ponta do nariz,
de forma diferente! Elogiou minha leitura e aí tudo começou.
Se tinha uma peça na escola, eu era chamada para declamar
“Ismália”! Se era entrega de notas, lá estava eu novamente
com a “Ismália”! E assim, por um bom tempo, o poema Ismá-
lia, com a loucura da personagem e o autor simbolista fizeram
parte da minha vida adolescente e continuaria na vida adulta
sem que eu soubesse.
No ano de 2013, fui prestar concurso para Professor do
Estado do Ceará e o dito autor apareceu de novo! Fizera um
cursinho de preparação para o concurso e havia uma profes-
sora que ensinara a história da educação e falara muito das
leis educacionais. Alguns alunos não gostaram de sua didáti-
ca, mas gostei muito e inclusive aprendi algumas técnicas que
memorizei rápido a respeito de concursos. Não propriamen-
te conhecimentos, mas dicas maravilhosas, como comer um
chocolate e beber água e fazer xixi antes da prova. Segui ao
pé da letra.
Terminei a prova específica de português, seguindo todas
as dicas e satisfeita por ter terminado rápido e ainda com a
mente em forma, graças ao chocolate. Resolvi folhear a prova
e havia passado uma página sem responder!

74
Lembranças de Monsenhor Cleano

Adivinhe de quem era o texto e a poesia? Havia passado


justamente a escola literária do simbolismo, pois na prova es-
pecífica havia textos de quase todas as escolas literárias.

Alphonsus de Guimarães! Meu Deus! Ele,


de novo!

“Entre brumas ao longe surge a aurora.


O hialino orvalho aos poucos se evapora.
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu risonho
Toda branca de sol.
E o sino canta em lúgubres responsos:
Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”

Agora já sabendo tratar-se de um autor mineiro e simbo-


lista, restava pouco tempo para decifrar a poesia e marcar a tal
alternativa. Marquei, em dúvida! Saí da prova, cabeça cansada,
parecendo sugada por um “dementador” do Harry Potter. Já
era final de tarde quando cheguei em Groaíras, pois a prova
havia sido realizada em Sobral, encontrei umas amigas e resol-
vi comemorar o bom desempenho no concurso.
Como adoro dançar, soube que havia um forró na cidade
vizinha, Macaraú. Estava bem animado o forró, e lá pelo fim
da tarde apareceu outra amiga, de Cariré, e me cumprimen-
tou, comentando que tinha feito o concurso: “Mulher, aquela
poesia do pobre Alphonsus, não entendi nada!”
Abracei- a e cochichei no seu ouvido, em tom alto depois
de duas cervejas “Vamos mandar esse tal Aphonsus às favas!
Vamos esquecer e relaxar!”

75
Mãe de Casa e outras memórias

No dia seguinte, corrigindo o gabarito, acertara a questão!


Que sorte! Como também havia feito uma boa pontuação
e após um mês da realização do concurso público, fui bem
classificada.
Começaria aí todo o processo da minha contratação: do-
cumentação e exames médicos. Fiquei muito nervosa com os
resultados dos exames que geraram mais ansiedade do que a
prova escrita. Já não conseguia dormir bem.
Uma semana antes de apresentar os exames à perícia, acor-
dei de uma noite mal dormida e, tomando café com meu espo-
so Clerton, que me apoiava nessa jornada e assistia a toda cor-
reria, contou-me um sonho que tivera com Monsenhor Cleano.
No sonho, Monsenhor pedia para o Clerton me avisar que daria
tudo certo na minha perícia. Não me contive e chorei.

76
Romaria

Todos os anos, a família se reunia no alpendre da casa e ali


era planejada a viagem de romaria a Canindé. No início do ano,
Mãe de Casa separava o melhor porco macho para a viagem a
Canindé e o chamava de “Caninda”, que conhecia minha vó
pelo vestido. Este poderia ser vendido para angariar o dinheiro
da viagem ou ser a comida durante o trajeto: assado e feito
farofa em latas grandes, latas que antes armazenavam quero-
sene. Nos chiqueiros, também eram colocados para engordar
patos, galinhas e perus. Sacos de farinha, das últimas farinhadas,
eram guardados em caixotes para a farofa e no dia da viagem
eram compradas pencas de bananas para a mistura, refrigeran-
tes eram armazenados e o que mais me surpreendia é que eram
servidos naturais, tirados do engradado. Se fosse Coca-cola
todo gás explodia e uma parte da espuma ficava na boca, como
se fosse um bigode, e o líquido escorria no assoalho do ônibus.
A viagem a Canindé era organizada desde o início do ano e
o ônibus era fretado desde então. O ônibus pertencia à Auto
Viação Groaíras, de propriedade do Sr. Neuton Melo, a quem
Mãe de Casa chamava carinhosamente de Neutinha! Para con-
tratar a viagem, ela o presenteava com um capote gordo, uns
quinze dias antes da viagem. Fazia questão: motorista tinha
que ser o Neutinha! A viagem, da qual também comecei a
participar desde menina, tinha uma data certa: segundo sá-
bado de setembro. Mas nem sempre essa romaria foi feita de

77
Mãe de Casa e outras memórias

ônibus. Começou a pé em grandes grupos de romeiros, con-


tinuando de jumento e, quando as crianças foram nascendo
a cada ano, pendurava-se os jacás, utensílios colocados lado
a lado do jumento, feitos de bambu, e os filhos iam dentro
junto com os mantimentos.
Uma vez, em uma das viagens, uma das meninas mais ve-
lhas, filha de Mãe de Casa, minha tia Carmelia, deu um susto
nos meus avós. Faziam a viagem costumeira, caminhavam du-
rante todo o dia, uns romeiros a pé, crianças nos braços ou nos
jumentos e, à noitinha, paravam em abrigos para comer algu-
ma coisa, dormir e continuavam a viagem que duraria dias. O
cansaço era grande. Apearam os animais e deitavam colocando
esteiras feitas de palha para forrar o chão. A menina aconche-
gou-se à mãe e pegou no sono. Quando todos já estavam ador-
mecidos, ela levantou-se em seu sonambulismo e caminhou en-
tre as pessoas que dormiam ao longo do abrigo. Ao nascer do
sol, o casal procurou pela filha e, não encontrando, fizeram uma
busca, gritando pelo nome dela sem que tivessem nenhum re-
sultado. Mãe de Casa começou a chorar desesperada. Todos se
sensibilizaram, unindo-se à procura. Ao final, encontraram-na
dormindo recostada nos braços de um cego que pedia esmola.
A cada ano, as promessas eram renovadas. Geralmente os
pedidos envolviam um bom inverno, a cura para alguém que
adoecia, uma compra de uma bicicleta. Os sacrifícios varia-
vam desde rezar um terço de joelhos da porta principal ao
altar de São Francisco ou ir de traje, que significava usar as
vestes de São Francisco. “No trajo”, era a expressão usada
por todos do Vaquejador, e depois poderia doá-lo aos pobres,
doar dinheiro aos pedintes da porta da igreja, tirar retrato (fo-
tografia) e colocar a foto na Casa dos Milagres, até mandar
fazer em madeira um membro ou parte do corpo que esteve
doente e houve recuperação.
Na véspera da viagem da romaria, ninguém pregava o olho
e os preparativos começavam muito cedo, com latas de farofa

78
Romaria

de galinha, capotes, patos e perus. Meu avô, Pai de Casa, fazia


a cada instante cafés amargos e cheios de borra que passavam
através do coador para nos manter acordados e acompanhar
aquele frenesi. O galo cantava anunciando as horas, pois par-
tiriam nas primeiras horas da manhã. Também contávamos
com um primo, Chico Nelson, que subia em uma cerca de
pau e a todo instante gritava a plenos pulmões: “tá na hora!!!”
Os passageiros eram familiares e também vizinhos da loca-
lidade do Vaquejador. Todos da família se mobilizavam e jun-
tavam dinheiro para a tão tradicional viagem anual. Tio Patrí-
cio, irmão de minha vó, nunca faltava a uma viagem. De uma
feita, convidou seu amigo Abraão, que morava em uma locali-
dade vizinha de nome Muriçoca, para conversarem durante a
viagem. Todos os passageiros da viagem levavam comida em
sacos ou latas. E ao subirem no ônibus, tio Patrício percebeu
que o amigo levava dois grandes sacos, ao que perguntou se
esse estava levando muita farofa e ficou curioso sobre o con-
teúdo do outro. Seu Abrão respondera que em um dos sacos
levava sabugos de milho, pois não sabia se limpar com os mal-
ditos papéis higiênicos e sujava as mãos e completou dizendo
que também levava um pouco mais para os amigos.
Durante a viagem, cantavam hinos de louvores a São Fran-
cisco e rezavam terços e rosários para que a viagem fosse aben-
çoada. Paravam várias vezes na estrada e comiam farofa, que
era feita em abundância com banana, refrigerantes naturais ou
quentes, que derramavam no piso do ônibus. Algumas crian-
ças vomitavam pelo balanço do ônibus. Mãe de Casa comia o
tempo todo. Pedia ao meu avô para comprar doces, palmas,
broas e doces de mariola. Também por causa das comilanças,
alguns passageiros passavam mal do estômago e, com o forte
mal cheiro de peido, minha avó gritava para o Neutinha parar
e, na freada do ônibus, ela dizia: “Desce o cagão!”- mas nunca
alguém desceu e a viagem prosseguia.

79
Mãe de Casa e outras memórias

Na chegada a Canindé, todos ficavam em pensões situadas


perto da basílica de São Francisco. Pagava-se pela quantidade
de armadores que eram utilizados. Ocupavam todas as pensões
e várias redes eram armadas. Esperávamos a missa das cinco
da manhã. Certa vez, acordamos mais cedo. Às três da manhã,
minha prima despertou a todos aos gritos pois tinham roubado
seu relógio. O dono da pensão preocupou-se dizendo que só
havia nós, únicos hóspedes, e foi aquela confusão! Quem paga-
ria pelo relógio sumido? Depois de muita teima, minha prima
sentou-se no chão desconsolada e fez um movimento inespe-
rado no braço, que antes estava totalmente encoberto pelo traje
de São Francisco usado por ela. O dito relógio havia aberto a
pulseira e subiu para o ombro dela. Nesse último movimento, o
relógio desce para o pulso. Foi muito engraçado.
Toda essa confusão acontecia a cada ano. Passava-se o ano
juntando dinheiro para as compras de santos, terços e escapu-
lários. Os meninos pediam brinquedos, como carrinhos de
plásticos e bolas. Essa “pidança” dos meninos tornava-se um
tormento para os pais e mães que rezavam para sair rápido da
cidade de Canindé, pois não tinham mais dinheiro e os filhos
continuavam pedindo brinquedos. Adorava andar com Mãe
de Casa nas vendas e no mercado de Canindé. Ela negociava
como ninguém o preço das imagens dos santos. O vendedor
pedia um preço, mas ela dizia que estava caro e geralmente
dizia um: “vai roubar pra lá”, colocando um valor bem abaixo
do que havia sido pedido pelo dono da loja ou barraca. Saía
zangada e o vendedor ia atrás dela com o santo na mão. Aca-
bavam fechando negócio, mas do jeito dela. Uma coisa que
ela adorava comprar eram óculos de grau. Achava lindo quem
usava óculos de grau, embora sua visão fosse ótima.
O que tornava tudo emocionante era que meu avô, Pai de
Casa, gostava de soltar fogos na chegada à casa no Vaquejador
e aqueles da região que por algum motivo deixaram de ir, sa-
biam que a viagem a Canindé tinha ocorrido em paz.

80
A Promessa

As experiências para um bom inverno não davam grandes


esperanças. A lua nova ao nascente não estava carregada de
nevoeiros; O João de Barro quis fazer a entrada para o nas-
cente, mas no último instante, recuou e isso tudo diminuía as
poucas esperanças que restavam ao casal. Nem as pedras de
sal, nem a chuva que deveriam vir no natal e nem os formi-
gueiros denunciavam que o ano seria de bom inverno.
Sentada no alpendre, contemplava o horizonte sem nuvens
- alguns fiapos brancos apareciam no céu por trás dos jure-
mais e paus brancos. Aquele entardecer trazia a nostalgia de
maus tempos. Os animais ao redor farejavam a melancolia de
seus donos. O cachimbo passava de uma mão para a outra, ela
tocando a ponta dos dedos dele, naquele carinho costumeiro
e cadenciado das baforadas e o cheiro do fumo tomava conta
do lugar. “Cadê a chuva, Manoel”? – a frase quebrou o silên-
cio entre os dois. Já não havia esperanças de um bom inverno:
os pastos secos, as lagoas e barreiros mostravam crateras de
lamas feitos com os pés dos animais procurando o que comer.
A fome chegava de mansinho e a preocupação em alimentar
os bichos junto com ela.
Num repente, olhado para o céu, ajoelhou-se nos tijolos do
alpendre, fazendo seus joelhos arderem com as pedrinhas soltas
e pediu ao seu santo de devoção, a quem tudo pedia nos seus
momentos de desespero e ele lhe socorria – Chiquim do Canin-
dé – “Se esse ano tiver inverno, não somente corto as pontas de

81
Mãe de Casa e outras memórias

meu cabelo para São Francisco em Canindé, mas também vou


raspar minha cabeça e oferecer na Casa dos Milagres!”. Ele, que
escutara a promessa, levantou-se de repente da cadeira feita de
couro e disse a ela que não fosse doida de tal prometimento a
um santo. Novamente, ela ajoelhou-se e repetiu tudo de novo.
Discutiram alguns instantes, teima boba! Ela não cederia e re-
solveu ir para a cozinha fazer um café forte para os dois, não
queria teimar, estava prometido e pronto!
A lua nova chegou, o céu criou um novo aspecto e os relâm-
pagos prenunciavam a chegada de uma forte chuva. E assim
começara aquele que seria o melhor inverno dos últimos tem-
pos. Os roçados foram plantados com milho e feijão, a lagoa
já de longe se sentia o cheiro de aguapés com suas flores desa-
brochando, as babujas nasciam à vontade, dando aos porcos,
cabras e galinhas uma alimentação rica com toda abundância.
Setembro, segundo sábado, a data da romaria a Canindé.
Todo aquele ritual das matanças dos bichos, confecções dos
trajes e mantos, bonecas feitas de pano e um trocado para o
cofre de São Francisco – e a promessa a ser paga. Na Casa dos
Milagres, ela olhou para o marido, que com o olhar desaprova-
va toda atitude em relação ao pagamento da promessa. Pediu
perdão ao Chiquin – não podia ser contra o marido, mas tinha
medo dos castigos de Deus. Só aparou os cabelos, juntando em
um pequeno pedaço de papel, jogou no reservado da Casa dos
Milagres, onde havia cabelos, tranças, rabos de cavalo com fitas.
Ela constrangida não desobedeceu ao esposo.
Na volta para casa, um olhar pela janela, pensativa. Como
pedir alguma coisa novamente ao seu santo protetor?
Nos dias que se seguiram, olhava-se no pequeno espelho
da sala e penteava os cabelos. Aos poucos, foi percebendo que
o pente ficava com mais fios de cabelo do que o normal. E
assim se sucedia... os cabelos ficaram ralos e caíam muito no

82
A Promessa

chão, na rede onde dormia e por toda parte. Estava ficando


careca, meu Deus!
Em setembro do ano seguinte, ela – Mãe de Casa – levou
para a Casa dos Milagres em Canindé um pequenino papel.
Nele estava contido um pozinho do que o barbeiro raspou
de sua cabeça, pois não havia mais sequer um fio de cabelo.
Ajoelhou-se e pediu perdão ao Chiquin do Canindé. A pro-
messa fora cumprida!

Meu pai, Manoel João e Mãe de Casa sentados no alpendre de casa.

83
Este livro foi composto em fonte Garamond, impresso no formato 14 x 21 cm
em offset 75 g/m2, com 84 páginas e em e-book formato pdf.
Agosto de 2022.
Durante as nossas vivências diárias, aprendemos, ensina-
mos, rimos, choramos e refletimos junto aos nossos familiares
e amigos, aliás, junto àqueles com quem temos ou tivemos o
prazer de conviver.
Rememorar o dia-a-dia daqueles que amamos e com
quem tivemos o privilégio da coexistência é algo saudável,
gostoso e ter a coragem de registrar estes bons e maus mo-
mentos das pessoas que fazem parte da nossa história é uma
ação digna de muitos aplausos. Maria da Conceição Ximenes
Paiva, mais conhecida por nós como Tantão Paiva, deu este
primeiro e significativo passo na composição da Literatura
Groairense.
A história do casal Pai de Casa e Mãe de Casa e seus filhos
é tratada de forma real e muitas vezes jocosa, fazendo-nos rir
de algumas situações e se nota, também, a veracidade dos
fatos na fala peculiar de cada um dos protagonistas.
Tantão, nossa escritora, traz uma coleção de textos que
nos motiva a uma leitura leve, prazerosa e como disse o gran-
de filósofo Immanuel Kant — “Uma leitura alegre é tão útil à
saúde como o exercício do corpo”.
Leia “Mãe de Casa e outras Memórias”! Fiquei apaixonada!

Edna Maria Mendes Rodrigues


Presidente da AGL – Academia Groairense de Letras
Membro Efetivo Titular da Cadeira N. 10
Escritora, poetisa e professora-mestre
17/02/2020

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