A Escola Do Bem e Do Mal - Vol. 6 (Soman Chainani)
A Escola Do Bem e Do Mal - Vol. 6 (Soman Chainani)
A Escola Do Bem e Do Mal - Vol. 6 (Soman Chainani)
Doce velho
“Estávamos certas, viu?”, Dot sussurrou para Anadil. “Sophie vai mesmo
se casar com Rhian!”
Mas Hester estava concentrada na imagem congelada do rei, avaliando os
buracos negros que eram sua pupila, a curvatura sinuosa de seus lábios...
Devagar, ela passou a focar em Sophie, presa aos braços dele, a luz em seus
olhos extinta, a bruxa morta e ausente.
De repente, Hester voltou a sentir o cheiro.
O cheiro azedo e enjoativo que sobrecarregava seus sentidos.
De doce velho.
“A Cobra é o Leão... O Leão é a Cobra...”, Hester percebeu, devagar.
Anadil franziu a testa. “Hester?”
“O que foi?”, Dot perguntou.
A bruxa tatuada se virou para elas, com o rosto pálido.
“O mundo está mesmo de cabeça para baixo.”
W2w
SOPHIE
Sophie não queria mais matar o garoto com quem estava prestes a se
casar.
Tampouco conseguia compreender por que em algum momento quisera
matá-lo. Até onde podia ver, ele era lindo, eloquente e absolutamente seguro,
como um rei deveria ser. E, logo, ela seria sua rainha. A rainha.
Não que ela tivesse a menor ideia de como aquilo havia acontecido. O
passado estava nebuloso, suas lembranças se esquivavam. A qualquer
tentativa de acessá-las, se iniciava uma terrível dor de cabeça, como se um
ferro fosse fincado em seu cérebro, e a única forma de não sentir dor era
voltando para o presente, como se tivesse acabado de nascer, de novo, de
novo e de novo. Esforços para recordar como chegara àquele ponto – uma
garota sem passado – só levavam a mais dor, e não demorou muito para que
ela desistisse de tentar acessar suas memórias.
Tudo o que Sophie sabia era que havia acordado naquele vestido branco
lindo e que naquela noite se casaria com o Rei Rhian, o Leão de Camelot,
guardião de Lionsmane, salvador da Floresta Sem Fim. Sophie ainda não
havia tido um momento a sós com seu prometido: os dois só haviam ficado
juntos para gravar o feitiçocast, que ela tivera dificuldade em compreender...
algo sobre um irmão que se voltara contra ele e sobre rebeldes na Floresta,
terminando com sua própria promessa de lealdade ao Leão, seu futuro
marido, como Rhian havia instruído que fizesse. Mas já era o bastante para
que ela soubesse que o amava, de corpo e alma. Sentada ao lado dele, sentira
seu perfume gelado e se aquecera a seu brilho quase perfeito demais.
Quando o feitiçocast terminou, ele passou os dedos frios pela bochecha de
Sophie e abriu um sorriso ao dizer, com os olhos parecendo os de uma cobra:
“Nos vemos no altar, minha querida”. Sophie sentiu um friozinho na barriga,
como se ele fosse o príncipe encantado.
Qualquer garota morreria para estar em seu lugar, ela pensou enquanto
empoava o nariz no trocador da rainha e olhava no espelho para o reflexo de
sua coroa de tranças douradas e o vestido branco intrincado que escondia
quase todos os centímetros de sua pele. Sophie não sabia de onde o vestido
tinha vindo ou quem o havia feito, mas, agora que estava prestes a encarar
toda a imprensa da Floresta para responder a perguntas antes do casamento,
desejava que ele fosse um pouco mais ousado, com alças em vez de mangas
ou um pouco de cor na cintura...
O vestido se alterou imediatamente, como se guiado por seus
pensamentos, e as mangas se transformaram em alças finas sobre seus
ombros, enquanto um toque de azul envolveu sua cintura, formando um
cinto de borboletas de seda. Sophie não se abalou. A magia do vestido não a
surpreendeu: era como se aquilo já tivesse lhe acontecido antes e ela só não
conseguisse recordar quando. Sophie olhou para os próprios olhos no
espelho e vislumbrou uma faísca, um brilho esmeralda, como uma luz no fim
do túnel... Então sumiu, tão rápido quanto tinha vindo.
“A imprensa está esperando pela princesa”, uma voz disse.
Sophie se virou para o capitão da guarda, de pé à porta do quarto; o ouro
em seu gibão estava manchado de sangue seco. Ele disse que seu nome era
Kei, quando a havia despertado. Era muito bonito, com olhos de falcão e
queixo quadrado, mas tinha uma expressão taciturna e torturada, como se
fosse assombrado por um fantasma.
Seguiram até o salão de baile, Kei sempre firme ao seu lado. Sophie
notou que ele a olhava, como se esperasse que dissesse alguma coisa. Como
se tivessem um segredo. Aquilo a incomodava.
Um guarda entrou na frente deles, o cabelo ralo e o rosto cheio de
cicatrizes. “Capitão, o mapa com a localização dos rebeldes foi totalmente
queimado!”
Kei contraiu levemente o maxilar. “Pode ter sido um criado ou um
cozinheiro. Vou interrogá-los.”
“Mas era o mapa do rei! Temos que contar a...”
“Retorne a seu posto”, o capitão ordenou, voltando a guiar Sophie
adiante.
Ela não sabia do que se tratava, mas, o que quer que fosse, fez Kei
parecer ainda mais azedo que antes.
Ele percebeu que Sophie o olhava.
Pela primeira vez, o rosto do capitão se alterou. Seu olhar parecia penetrar
a mente dela...
“Está aí?”, ele sussurrou.
Sophie olhou em seus olhos grandes e escuros... então saiu de seu transe.
“Claro que sim! Onde poderia estar?”, ela disse. “Agora pare de cara feia e
olhares estranhos. Você é o capitão da guarda. É o novo suserano do rei. Aja
de acordo, ou vou sugerir que sua majestade encontre alguém que aja.”
A expressão de Kei se endureceu. “Sim, princesa.”
“Ótimo”, disse Sophie. “E aproveite para limpar o gibão. A menos que
haja um golpe se desenrolando no castelo, não há motivo para exibir seu
sangue como parte do uniforme.”
“O sangue de Rhian”, Kei explicou.
“Como?”, perguntou Sophie, parando na hora.
“É o sangue de Rhian”, Kei repetiu, de novo com aquele olhar penetrante.
“Então devolva a ele, por favor”, Sophie retrucou, marchando em frente.
Sophie sorriu, e seu vestido branco se abriu como a cauda de um pavão.
Rhian ficaria orgulhoso dela.
Já estava se adaptando ao papel de rainha.
“Princesa Sophie, o que acha do aprisionamento do irmão do rei?”,
perguntou alguém de cabelo azul com crachá da Folha de Pifflepaff. “Está
confiante de que todos os traidores foram retirados do reino?”
“Mal conhecia o irmão de Rhian”, Sophie respondeu, sentada em um
trono elevado, sob uma enorme cabeça de leão. “Tenho plena confiança de
que o Rei Rhian vai manter Camelot e a Floresta a salvo. Agora, se não se
importam, estou aqui para responder a perguntas do casamento desta noite. É
tudo de que desejo falar. O resto, deixo com o rei.”
Enquanto os repórteres que atulhavam o Salão Azul tentavam fazer suas
perguntas aos gritos – “Princesa Sophie! Princesa Sophie!” –, Sophie deu
uma olhada para as duas mulheres idênticas escondidas nas sombras mais ao
fundo, descalças e em roupas cor de lavanda. Elas lhe fizeram um breve
aceno de cabeça, em aprovação. Com a testa grande e nariz comprido, as
duas tinham o mesmo sorriso satisfeito no rosto, como se tudo estivesse
correndo de acordo com o plano. “Somos as Irmãs Mistrais”, elas haviam
dito a Sophie antes de deixar os repórteres entrarem (“É só responder às
perguntas”, dissera a que se chamava Alpa. “É só deixar as coisas correrem
naturalmente”, completara a outra, chamada Omeida).
A voz de um repórter cortou seus pensamentos.
“E quanto às provas que o Rei Rhian entrou no Conselho do Reino para
rejeitar o poder do Storian?”, perguntou um homem do Jornal dos Vilões da
Floresta de Baixo. “Nossa reportagem sugere que, na semana passada,
noventa e nove dos cem reinos fundadores destruíram seus anéis, e seus
líderes rejeitaram o Storian e juraram lealdade ao Rei Rhian. O Rei Rhian
acreditava na lenda do Único e Verdadeiro Rei? Pretende reivindicar os
poderes do Storian? É por isso que os reinos estão queimando seus anéis
pelo Rei Rhian?”
“É óbvio que a Pena falhou com nossa Floresta”, Sophie respondeu, e os
repórteres começaram a anotar furiosamente. “O Storian deveria contar
histórias que nos inspiram e movem o mundo adiante. Mas, recentemente,
está focado nos alunos de uma escola que se acomodou e se tornou obsoleta.
Foi por isso que deixei o cargo de reitora. A Pena não representa mais o
povo. É hora de o Homem ascender a seu lugar. Um rei. Alguém que possa
dar a todos uma chance de glória.”
As palavras saem sem qualquer esforço dela, como se tivessem vida
própria.
“O último anel pertence ao Xerife de Nottingham, que não é visto desde o
ataque durante a execução de Tedros”, comentou alguém do Notícias de
Nottingham. “Há alguma informação quanto ao paradeiro dele ou a
segurança do seu anel?”
“Não ficou sabendo? O xerife vai se casar com Robin Hood”, disse
Sophie, com malícia.
Toda a imprensa riu.
“A princesa acredita no mito do Único e Verdadeiro Rei?”, perguntou o
Flautista de Hamelin. “A lenda de que o Storian depende do equilíbrio do
Homem e da Pena. Um equilíbrio protegido por nossos líderes e seus anéis.
Desde que esses líderes os utilizem, Homem e Pena estarão sob controle.
Cada um desempenha um papel equivalente na escrita do destino. Mas, se o
Homem abandonar a Pena, se todos os cem governantes queimarem seus
anéis e jurarem lealdade a um único rei... então esse equilíbrio será extinto.
O Storian perderia seus poderes para esse rei.”
“E já seria hora!”, Sophie retrucou. “Homens devem venerar um Homem.
Não uma Pena.”
“Mas o que vai acontecer se Rhian for mesmo o Único e Verdadeiro
Rei?”, o Observador de Ooty perguntou. “Lionsmane se tornaria o novo
Storian. A pena do rei Rhian. Com os poderes do Storian, ele poderia usar
essa pena como uma espada do destino. Ele poderia escrever o que quisesse
e fazer com que se tornasse realidade. Poderia apagar quem quer que o
desafiasse. Poderia acabar com reinos inteiros...”
“A única coisa com que o Rei Rhian talvez queira acabar é com
repórteres intrometidos”, Sophie brincou, dando uma piscadela. “Além do
mais, como você disse, ele tem apenas noventa e nove anéis, e não cem.”
A imprensa riu de novo.
“O que podemos esperar do casamento?”, uma mulher de dentes grandes
da Podres do Castelo perguntou.
“Ouvi dizer que dez mil lanternas flutuaram no ar no casamento de
Rapunzel, e que Branca de Neve participou de um desfile com animais da
floresta no dela.” Sophie sorriu. “O meu vai ser ainda melhor.” Ela se
levantou do trono. “Dito isso, devo ir...”
“Princesa Sophie, alguém comentário sobre o fato de que os rebeldes que
saquearam os reinos não eram alunos da escola, mas mercenários pagos pelo
Rei Rhian? E de que os ataques eram um plano do rei para fazer com que os
líderes queimassem seus anéis?”
O Salão Azul ficou em silêncio. Devagar, a multidão de repórteres se
abriu, revelando uma adolescente que chupava um pirulito vermelho. Seu
crachá era escrito à mão e pontuado com um coração.
Cardume secreto
Altar e graal
A Pena que conta a história é só isso: uma narradora, sem um lugar nela.
Não deveria ser uma personagem, uma arma ou um prêmio. Não deveria ser
celebrada, ou perseguida, nem mesmo levada em consideração. A Pena
deve ser invisível, fazer seu trabalho em um silêncio humilde, sem viés nem
opinião, como um olho que tudo vê comprometido apenas em desenrolar a
história até o fim.
No entanto, aqui estamos nós: o que era sagrado já não é.
A Pena está sob cerco.
Meu espírito está enfraquecido, meus poderes esvanecem.
Devo contar minha própria história ou arriscar que o Homem a apague
para sempre.
O Homem, que, depois de milhares de anos confiando nos meus
poderes... agora pretende tirá-los de mim.
Ninguém sabia em que lugar dos jardins o casamento aconteceria, pois
não havia palco, altar, sacerdote ou qualquer sinal do noivo ou da noiva.
Mas, conforme o sol mergulhava no horizonte, os guardas deixavam os
convidados entrarem: homens, mulheres, crianças, anões, trolls, elfos,
ogros, fadas, goblins, ninfas e mais cidadãos da Floresta – todos vestindo
suas melhores roupas enquanto atravessavam os portões do castelo de
Camelot.
Depois da morte do Rei Arthur, os jardins haviam decaído, mas, com o
novo rei, sua glória havia sido restaurada, um vasto país das maravilhas de
cores e perfumes. Lado a lado, os convidados inundavam o laranjal, os
caminhos do Jardim Afundado, os gramados do Rosal, todos orbitando o
longo Espelho d’Água, coroado com uma estátua de mármore do Rei Rhian,
forjando a Excalibur no pescoço da Cobra mascarada. Sapatos enlameados
manchavam a grama e esmagavam os arbustos; crianças irrequietas
quebravam galhos e comiam lilases; uma família de gigantes quebrou uma
laranjeira. Ainda assim, os guardas continuavam deixando os convidados
entrarem, enquanto o sol se punha, restando primeiro apenas metade e
depois um quarto, e o cheiro de corpos suados preenchia o ar.
“Isso não vai acabar?”, a Imperatriz de Putsi grunhiu, tampando o nariz
enquanto as pessoas se acotovelavam, quase derrubando ela e seu casaco de
penas de ganso no Espelho d’Água. “Açougueiros, moleiros e criados de
Putsi recebendo o mesmo tratamento que sua imperatriz! A realeza de
Sempre e Nunca lançada às massas e deixada à própria sorte! Depois de
tudo o que fizemos por Rei Rhian! Depois de queimarmos nossos anéis em
seu nome! Quem já ouviu falar em plebeus em um casamento real?”
“Foram os plebeus que o tornaram rei”, respondeu Marani de Mahadeva,
vendo um troll da montanha fazer xixi nas tulipas. “E, agora que
queimamos nossos anéis, nossa voz não tem mais peso que a deles.”
“Queimamos os anéis para salvar nossos reinos. Em troca da proteção do
rei”, a Imperatriz de Putsi respondeu. “Seu castelo foi atacado, assim como
o meu. Seus filhos talvez estivessem mortos se você não tivesse aberto mão
do anel. Seu reino está a salvo agora.”
“Está mesmo? Como podemos estar protegidos se o Conselho do Reino
não pode mais votar contra o rei?”, Marani insistiu. “Um rei que meus
conselheiros acreditam estar atrás do poder do Storian?”
“A ideia de um Único e Verdadeiro Rei é um conto da carochinha, que
foi espalhado pela família Sader. E, se a bobageira deles fosse séria, você,
entre todas as pessoas, deveria gostar. O Storian não fez nada por Reinos do
Mal, como o seu, ou pelos Nuncas da Floresta. Se Rhian tivesse o poder do
Storian, poderia fazer ao Mal um grande Bem.” A imperatriz se endireitou.
“Rhian é um rei valioso para ambos os lados. Ele vai nos ouvir, com ou sem
nossos anéis. Sempre vai nos colocar acima do povo...”
Algo atingiu o rosto dela, e a imperatriz levantou os olhos para um
menino gorducho no alto de uma escadaria, que atirava groselhas nos
convidados.
“Como fez hoje?”, Marani perguntou, com o rosto impassível.
A imperatriz ficou muda.
O menino que atirava groselhas foi golpeado pela reitora e colocado no
lugar com o restante dos alunos que haviam vindo de Foxwood.
“Comporte-se, Arjun! Ou vou pedir ao Rei Rhian que jogue você na
masmorra com o irmão dele”, a Reitora Brunhilde o repreendeu, tirando a
munição do aluno. “E posso garantir que você não duraria meio segundo em
uma cela com RJ. Não tem um grama de Bem no corpo daquele menino.”
“Pensei que o nome do irmão de Rhian fosse Japeth”, Arjun retrucou.
“Até o nome soa Mal”, a reitora murmurou. “Abreviei o nome de
nascimento dele para RJ. Ele acabou na Casa Arbed porque, como você,
não se dava bem com a mãe. Tentei trazê-lo para o Bem. Fiz tudo o que
pude. Até o irmão achava que ele tinha jeito. Mas, no fim, parece que Rhian
aprendeu a mesma lição que eu: alguns do Mal não podem ser consertados.”
“Ainda não acredito que estamos aqui. Um casamento real!”,
comemorou um garoto mais velho e com os olhos fundos. “Um menino
como a gente agora é rei!”
“E vai se casar com uma garota bonita como Sophie”, disse um menino
careca, com o colarinho cheio de caspa. “Não se esqueça disso, Emilio. É o
motivo pelo qual quero ser rei.”
“Acha que também vou ser rei um dia, Reitora Brunhilde?”, Arjun
perguntou. “Ou pelo menos príncipe?”
“Não vejo motivo para não ser”, a reitora respondeu. “As coisas são
diferentes agora. A maior parte dos casamentos reais proíbe a presença de
cidadãos ordinários. Mas Rhian respeita a todos, do Bem e do Mal,
Meninos e Meninas, Jovens e Velhos. Enquanto ele for o rei, todos vocês
têm uma chance de obter a glória. Fui eu quem o educou, e agora educo
vocês.”
“Podemos conhecer o Rei Rhian? Pegar o autógrafo dele?”, Emilio
perguntou.
“Também quero!”, outro menino interrompeu.
“Eu também! Eu também”, o resto do grupo clamou.
A reitora corou. “Tenho certeza de que Rhian se lembra com carinho de
mim... Jorgen! Pare de beliscar as fadas!”
Arjun aproveitou para tirar mais algumas groselhas do bolso e as atirou
por cima do parapeito.
“Pare com isso!”, Emilio sibilou.
“Se eu acertar aquela bolha de feitiçocast, todo mundo que está
assistindo à transmissão nos outros reinos vai me ver!”, Arjun disse. “Vou
ficar famoso! Como o rei.”
“De que bolha você está falando?”, Emilio perguntou, confuso. “O
feitiçocast vem do escudo sobre o jardim. Aquela neblina cor-de-rosa ali. É
o que transmite a cena para todos os cantos da Floresta.”
“Então o que é aquilo?”, Arjun apontou.
Emilio apertou os olhos para uma esfera aquosa que flutuava entre os
corpos na multidão, aproximando-se da beirada do Espelho d’Água...
Mas o último resquício de sol se pôs, e não deu mais para ver a bolha,
perdida na névoa branca que subia do lago.
Com o cair da noite, a névoa ficou mais densa, espalhando-se sobre as
águas em ondas cor de neve. Atrás do Espelho d’Água, a guarda de
Camelot se pôs em formação, sob o comando de Kei; as silhuetas de
armadura ainda estavam visíveis contra a neblina. Em uma escadaria mais
atrás estavam Alpa e Omeida, as Irmãs Mistrais, usando capuz em meio à
multidão, os olhos fixos na estátua de Rhian, as duas murmurando baixo o
mesmo encantamento. Como se seguisse sua deixa, a estátua começou a
emitir um tom de dourado radiante e uma luz ondulante se espalhou pelo
rosto esculpido do rei e pela Cobra esmagada em seus braços. A névoa
sobre o Espelho d’Água se dissipou, revelando a superfície magicamente
congelada, coberta de pétalas de rosa azuis e douradas, e o gelo
transformado em palco.
Uma música suave começou a tocar em uma tonalidade estranha, a
melodia de uma marcha nupcial que soava mais como uma marcha fúnebre.
Então um borrão de movimento foi refletido pelo gelo.
Os convidados levantaram a cabeça.
Constelações brotaram no céu, Leões se repetindo infinitamente até onde
a vista alcançava, mudando de pose a cada piscar das estrelas. Contra os
padrões celestiais, duas estrelas apareceram: a noiva e o rei, sendo trazidos
por mil borboletas brancas batendo as asas no vestido dela. Sophie usava
sapatinhos de vidro e um colar de rubis, e tinha o rosto escondido por véu
delicado. O noivo usava um manto de pele branca, que esvoaçava atrás
dele, como uma capa, fechado com uma corrente de leões dourados. O
punho da Excalibur brilhava em sua cintura. A coroa de Camelot estava
firme em sua cabeça. Ele daria um excelente Rei Rhian, esse jovem, com o
cabelo acobreado, a pele cor de âmbar, os olhos verde-água...
Mas nós sabemos que não é o caso.
“Rhian” só estava desempenhando o papel do irmão, com o cabelo
rebelde cortado curto, a pele pintada, os olhos magicamente tingidos. A
noiva também parecia estar interpretando, com seu sorriso vago, a mão o
segurando como antes segurou a de outro garoto, com quem pretendia se
casar: um jovem Diretor da Escola com cabelo de gelo a quem ela
acreditava amar com todo o coração. Mas agora não havia amor em seus
olhos verdes e grandes. Não havia nada além do reflexo de seu noivo,
satisfeito com o olhar vazio dela.
O jovem casal flutuou na direção da estátua, “Rhian” segurando Sophie
tão firme quanto o Rhian de pedra segurava a Cobra. Os dois se
aproximaram do chão, banhados pela luz da estátua; todos os olhos da
Floresta neles. O rei assomou sobre a noiva, colocando uma mão em seu
pescoço e puxando a boca da moça para a sua. A multidão ficou em silêncio
enquanto ele a beijava, com o tempo congelado. Olhando mais de perto,
como eu posso, daria para notar as bochechas arrepiadas de Sophie... suas
pernas trêmulas... a dureza nos lábios do noivo, repelido pelo gosto da
noiva...
Os pés de ambos tocaram a água congelada.
A multidão ficou em silêncio.
A estátua do Rei Rhian começou a sacudir e estremecer. As beiradas do
Espelho d’Água se estilhaçaram, cacos de gelo voaram, o palco de vidro
vibrou sob os pés dos noivos. De repente, a estátua de Rhian saiu do chão,
levando o Espelho d’Água consigo, e a piscina compacta e congelada
flutuou no ar, cada vez mais alto, conduzindo os dois para muito acima dos
jardins, como bonequinhos de noivos em um bolo de casamento.
Palmas irromperam por toda parte, era a multidão expressando tudo o
que guardara até então.
O casamento do rei tinha começado.
Orbitando o terreno, o escudo do feitiçocast piscava, registrando e
transmitindo cada momento para a Floresta. Se apurasse os ouvidos, ainda
se podia ouvir a alegria de reinos mais além, ecoando ao vento...
“Rhian” se afastou da noiva. Viu-se um lampejo dourado sob o manto,
pulsando onde o coração deveria estar. Ele enfiou a mão sob a seda e tirou
de lá um casulo de luz. Só eu sei o que estava escondido ali: um pequeno
scim, disfarçado de Lionsmane – a Pena do rei, a minha suposta rival –, que
agora se destacava da luz, afiada de ambos os lados e dourada como o sol
sob o céu noturno, na palma do rei.
De sua ponta saiu um pó cintilante, cor de minério puro, formando o
contorno de cachorrinhos se aninhando, passarinhos se beijando, flechas
atravessando corações. As crianças na multidão pulavam, com as mãos para
o alto, tentando tocar os símbolos do amor antes que se desfizessem e
caíssem como uma chuva dourada, polvilhando o cabelo delas com faíscas.
Sophie levou as mãos ao peito, como se encantada com a visão dos jovens
felizes. (Talvez o mais claro sinal de que aquela Sophie era uma fraude,
assim como seu noivo.)
Enquanto isso, “Rhian” falava de seu palco flutuante.
“O Storian era o equilíbrio da Floresta. A Pena encarregada de contar as
histórias que moviam nosso mundo adiante. Isso até o último Para Sempre.
Tedros, o ‘rei’. Ou, como vocês o conhecem: Tedros, o covarde, a fraude, a
cobra. Ele não é um rei, não importa o que a Pena diga. Vocês aprenderam
isso do modo mais difícil. Mas é o que acontece quando damos rédeas
livres ao Storian. O destino nos deixa vulneráveis e sem controle. O destino
nos conduz a falsos ídolos. Mas o Storian já não é nosso futuro. Tampouco
os ventos do destino. A vontade do Homem é o futuro. A vontade do
Homem levará todos à glória. E, esta noite, o Homem se torna Pena. Minha
pena. Escreverei as histórias do futuro. Recompensarei aqueles que
merecem ser recompensados e punirei aqueles que merecem ser punidos. O
poder agora é meu. O poder é do povo.”
A multidão urrou enquanto Lionsmane subia mais alto no céu, piscando
mais forte que uma estrela. Sophie bateu palmas, mas seus olhos não davam
nenhum sinal de compreensão.
O rei a puxou para mais perto.
“Mas, enquanto existir, o Storian é uma ameaça. Se lhe dermos poder,
seremos desviados de nosso caminho. Há mais Tedros, há outros como ele.
Por isso, não devemos apenas rejeitá-lo... mas destruí-lo. Todos os reinos da
Floresta Sem Fim renunciaram à fé na velha Pena, com exceção de um. Os
cem reinos fundadores quebraram seu vínculo com ela, com exceção de um.
Esta noite, antes do nosso casamento, o último reino também quebrará seu
vínculo. O centésimo reino queimará seu anel, despojando a Pena de seus
poderes e transferindo o poder sobre o destino do Homem para mim. Esta
noite, vocês não ganham apenas uma rainha.” Seus olhos cortaram a
escuridão. “Esta noite, o Único e Verdadeiro Rei vive.”
Chamas saíram da ponta de Lionsmane: uma bola de fogo azul, que
subiu alto na escuridão, depois caiu, passando pelos convidados
exuberantes antes de parar diante da guarda de Camelot. Um soldado de
armadura próximo a Kei deu um passo à frente. O fogo iluminava as rugas
em torno de seus olhos gananciados e do cabelo sujo que escapava do elmo.
Os Leitores perspicazes seriam capazes de reconhecê-lo rapidamente: não
era realmente um guarda. Era Bertie, o antigo assistente do Xerife de
Nottingham, agora guardião de seu anel. Do anel que estava nas mãos de
Bertie, brilhando sobre uma almofada preta, e cujo aço gravado refletia os
contornos das chamas.
Ainda consigo sentir o calor daqui.
Pouco a pouco, as pessoas ficaram em silêncio, sentindo a importância
do momento, dando-se conta de que elas também juravam lealdade ao
Homem, e não a mim. Sophie pareceu sair de seu transe, como se, lá no
fundo, um fragmento de passado tivesse se destacado em sua mente.
“O último resquício do poder do Storian”, o rei declarou, com os olhos
fixos no anel de Bertie. “O último obstáculo entre Homem e Pena.”
Bertie deu um passo à frente, olhando para o rei.
“Rhian” assentiu.
Meu espírito grita de dentro da casca...
O velho amigo do xerife abre sua palma. O anel de Nottingham cai no
fogo.
Tlim! Fsss! Tlac!
É o fim do anel.
Tudo o que resta de mim é um sussurro.
Pela primeira vez, o rosto do rei se abranda, a fachada régia se desfaz,
como se ele também tivesse mergulhado na memória.
“Com minha Pena, juro escrever a Floresta como deveria ser. E dar a
todas as suas histórias o fim que merecem.” Seu olhar recaiu sobre a
Reitora Brunhilde, no meio da multidão. “Incluindo a minha.”
A reitora retribuiu o olhar de “Rhian”, sentindo um arrepio frio descer
por sua espinha. Ela olhou mais atentamente para ele...
“Ele te viu!”, Arjun gritou, puxando-a. “Rhian se lembra de você!”
Quando a reitora voltou a se virar para o rei, ele já tinha recuperado a pose e
voltado para a noiva.
“Não há mais anéis. Não há mais compromissos a honrar”, ele disse,
tocando a bochecha de Sophie. “Com exceção de um.”
Ele ergueu os olhos, devagar.
Da ponta de Lionsmane, surgiram duas alianças douradas.
Uma voou para a mão do rei.
Outra, para a da noiva.
Lionsmane brilhou mais forte no céu, testemunha daquele momento, ao
mesmo tempo altar e graal.
“Com este anel, eu te desposo”, o rei disse a Sophie.
E colocou a aliança no dedo dela.
O poder que me resta enfraquece, minhas palavras falham na página,
como se não pudessem suportar outro golpe.
Sophie ainda parecia perdida nos olhos dele.
“Com este anel, eu te desposo”, ela repetiu.
Sem hesitar, colocou a aliança no dedo dele.
“Assim, pelo poder da Pena, da Pena do Homem”, o rapaz proclamou,
olhando para o céu, “peço a Lionsmane que confirme os laços deste
casamento. Que coroe Sophie minha rainha. Que nomeie a mim, Rhian de
Camelot, o Único e Verdadeiro Rei da Floresta!”
Lionsmane brilhou mais forte, usando toda a força que eu havia perdido.
De repente, ganha vida, torna-se eu, e meus poderes roubados vão para as
mãos do rei. Contra o céu da noite, a pena dele pinta a coroa de uma rainha,
cinco faixas de pedras preciosas cobertas por um aro de flor de lis.
No mesmo instante, a coroa ganhou vida, uma torre de diamantes
deslumbrante, como se o desejo do rei a tivesse tornado realidade. Pousou
na cabeça de Sophie, que tocou suas ranhuras, o brilho ofuscante das pedras
refletido em suas mãos. Uma estranha bolha de luz passou por ela, que
virou a cabeça para segui-la, antes de se recordar no que devia focar: na
multidão entoando seu nome... no seu casamento com o rei, quase
concluído...
Quanto ao rei, ele continuava totalmente concentrado na pena, avivada
com o poder de uma centena de chamas. Seus olhos estremeciam,
triunfantes.
Os anéis estavam todos destruídos.
A rainha tinha sua coroa.
A profecia estava completa.
Ele ergueu as mãos e as estendeu para Lionsmane, a Pena pela qual havia
roubado, traído e assassinado, a Pena que agora podia tornar realidade seus
maiores desejos. Sua palma reivindicou o ouro quente, desfrutou de seus
poderes, da imortalidade. Um rugido subiu por sua garganta e foi liberado
para o céu...
Mas a luz da pena se apagou, e o metal ficou frio nas mãos dele.
A coroa desapareceu da cabeça de Sophie.
Assim como a coroa na cabeça do rei.
As alianças também sumiram.
Ao longo dos jardins, a multidão ficou perplexa.
Sophie saiu de seu transe e olhou para o noivo.
“Rhian” estava congelado, com os dentes cerrados.
Aqui, na torre da escola, uma onda de calor ilumina meu aço.
Porque resta um anel.
Um anel que impede a total transferência dos meus poderes. Um anel
que o rei desconhece.
E que está mais próximo do que pensa.
O último cisne em meu aço bateu as asas, cada vez mais forte,
compensando por todos os outros cisnes perdidos, por todos os outros
reinos que entregaram seus anéis.
Sobre o castelo de Camelot, relâmpagos prateados castigaram o céu,
implodindo a estátua de Rhian e fazendo o palco congelado desabar. As
pessoas lá embaixo gritavam, abaixando-se para se proteger.
O Espelho d’Água congelado se estilhaçou no chão, lançando o noivo e a
noiva em direções opostas. Pedaços de gelo voaram, atingindo o público.
“Cuidado!”, Kei gritou, pulando em cima de Sophie.
O que restava da estátua de Rhian abriu uma cratera na terra atrás dela,
formando uma montanha de entulho.
Um silêncio denso, cheirando a fogo e gelo, assentou-se sobre os jardins.
Devagar, adultos, crianças e criaturas saíram dos esconderijos.
Kei levantou a cabeça. Sophie estava encolhida debaixo dele, com os
olhos trêmulos e vazios de alguém que não sabia onde estava ou quem era.
Ela notou o rei, caído de bruços perto das ruínas da estátua, com Lionsmane
firme na mão. A visão de “Rhian” a ancorou...
De repente, a Excalibur se soltou da bainha na cintura do rei, por vontade
própria, e voou alto sobre o castelo. A ponta da espada brilhava como a
ponta de uma pena, antes de cair e se fincar nos escombros da estátua. Ela
aterrissou no topo da pilha, com a lâmina para baixo e o punho ereto, tal
qual uma cruz em um túmulo.
Como por mágica, o punho se abriu, revelando um rolo de pergaminho.
Aos olhos do rei e de sua princesa, e com a multidão chocada ao redor, o
pergaminho se desenrolou sozinho, mostrando um documento composto por
palavras desbotadas e o selo de Camelot.
O luar iluminou o decreto.
A voz do Rei Arthur trovejou do além.
O primeiro teste é passado.
A Excalibur foi tirada da pedra.
Um novo rei foi nomeado.
Mas dois reivindicam a coroa.
A espada volta à pedra,
pois apenas um é o verdadeiro rei.
Quem?
O futuro que vi envolve muitas possibilidades...
Assim, é meu desejo que nenhum deles seja coroado
até o fim do torneio.
O Torneio dos Reis.
Três testes.
Três respostas a encontrar.
Uma corrida a concluir.
Meu último teste para a coroação.
A Excalibur coroará o vencedor
e tirará a cabeça do perdedor.
O primeiro teste está vindo. Preparem-se...
O documento se desfez e se espalhou, como areia ao vento. O punho da
espada de Arthur voltou a se fechar, e ela ficou ao luar, sobre a pilha de
pedras.
Um novo altar.
Um novo graal.
Por um momento, fez-se total silêncio, enquanto desconhecidos e amigos
olhavam embasbacados uns para os outros nos jardins. Os alunos da Casa
Arbed se viraram para a reitora, mas ela tampouco tinha palavras. Os
líderes da Floresta também pareciam ter perdido a língua – a Imperatriz de
Putsi; a Marani de Mahadeva; a Rainha de Jaunt Jolie; os Reis de Foxwood,
Maidenvale e Bloodbrook; e outros –, espalhados no gramado coberto de
gelo e incertos quanto ao que haviam acabado de ouvir.
Até mesmo o brilho vago de Sophie tinha enfraquecido. Seus olhos
estavam estreitos e ela parecia cada vez mais perto de se libertar...
Então todos eles notaram uma figura se erguer das ruínas e escalar a
pilha de pedras: o rei, sem coroa e sujo de terra, com Lionsmane fria nas
mãos, as bochechas em um tom violento de vermelho. Ele apoiou um pé na
pedra do alto e puxou a Excalibur com força, usando uma única mão.
A espada não se moveu.
O rei guardou Lionsmane no manto e voltou a puxar a espada, dessa vez
com ambas as mãos, mas o resultado não foi diferente. Suor brilhava em
sua testa. Ele ergueu os olhos para o céu, de onde a voz do Rei Arthur tinha
soado.
“Dois reis?”, o rei gritou, escarnecendo. “Que truque sujo é esse? Eu tirei
a Excalibur da pedra. Eu sou o rei! Quem ousa dizer que há outro?”
Uma esfera aquosa atingiu o rei, depois outra, derrubando-o da pedra. As
bolhas se expandiram, e as duas figuras diminutas dentro delas cresceram,
voltando ao tamanho natural antes de estender as mãos e abrir caminho
pelas paredes aquosas, deixando as esferas para trás. Tedros subiu a pilha de
pedras, com a camisa molhada colada nos músculos, e sua princesa a seu
lado.
“Eu”, ele declarou. “E, se houve um truque, foi o que fez essa espada ir
parar com a Cobra.”
O filho de Arthur ergueu a mão ao luar, e o anel prateado roubou seu
brilho.
“O último anel perdura. O anel de Camelot. O anel do meu pai”,
declarou Tedros, e sua voz trovejante ressoou pelo terreno do castelo. “Eu
sou o herdeiro. Eu sou o rei.”
O povo da Floresta prendeu o fôlego, os olhares se alternando entre os
dois reis insolentes. Sophie se manteve imóvel, muito embora seu corpo
quisesse correr para o lado do noivo... para o rei dela... De joelhos, sobre
rosas destruídas, ela olhou para Kei, que tinha no rosto a mesma expressão
assombrada que ele estava no castelo. Devagar, os olhos de Sophie voltaram
a Tedros, no alto das pedras. Kei conhecia aquele rapaz... ela também
conhecia...
Tedros olhou feio para seu rival. “Você ouviu o rei. A Excalibur retornou
para a pedra. A coroa não lhe pertence mais”, ele disse. “Três testes. A
espada vai coroar o vencedor. Chega de joguinhos. Chega de mentiras...
Que comece o torneio.”
Caído de bruços, “Rhian” olhou para o príncipe, com certa fragilidade
visível no rosto. Um toque de medo.
Que então desapareceu.
Ele se virou para Kei.
“Mate-o”, ordenou.
O olhar de Kei endureceu. Ele e os piratas foram para cima de Tedros.
Um raio de luz disparou do anel no dedo do príncipe, restaurando a bolha
protetora e aprisionando Tedros dentro dela. O príncipe gritou para Agatha:
“Pegue Sophie!”.
Mas Agatha já estava a caminho: avançou sobre a melhor amiga e a
agarrou. Os vestidos branco e preto se fundiram, como dois cisnes
entrelaçados. Os olhos das duas se encontraram, escuros e claros, em uma
conexão eterna. Bem e Mal. Menino e Menina. Velho e Novo. Verdade e
Mentira. Passado e Presente. Sophie arfou, a cor retornou às suas
bochechas, o fogo ardeu em seus olhos...
Mas, de repente, eles gelaram, como se uma porta se fechasse. Sophie
pegou Agatha pelo pescoço e a derrubou no chão.
Erguendo a cabeça, Agatha viu as Irmãs Mistrais em uma escadaria atrás
de Sophie, movimentando as mãos para controlá-la, como se fosse uma
marionete. Sophie pegou um caco de gelo que mais parecia uma adaga.
Sorrindo, as Mistrais fizeram um movimento de mão. Sophie atacou
Agatha, e a adaga de gelo mergulhou no peito de sua melhor amiga.
Uma parede de água, fina como um fio de cabelo, ergueu-se e impediu
que a adaga atingisse o coração de Agatha.
Por um momento, tudo o que Agatha ouviu foi a própria respiração rasa,
a própria pulsação. Sentiu os braços de seu príncipe puxá-la para trás, os
dois a salvo na bolha dos peixes do desejo, e o anel de Arthur brilhando na
mão de Tedros, como um talismã. Atrás da bolha, uma porta se abriu,
revelando as águas cinzentas de um lago... sua costa vasta e branca... três
sombras à distância...
Mas o olhar de Tedros se mantinha em Sophie, do outro lado da bolha.
Ela mostrava os dentes, como um animal com raiva, o punho fechado em
torno da adaga de gelo, atacando a parede de água de novo e de novo,
tentando forçar a mais leve rachadura.
Com delicadeza, “Rhian” se aproximou por trás e conteve a mão de sua
princesa. Sophie olhou para ele, de novo com olhos apaixonados,
totalmente sob seu feitiço.
Lágrimas rolaram pelas bochechas de Agatha. “O que você fez com ela?
Seu monstro! Sua aberração! O que você fez com minha amiga?”
O rapaz a ignorou, mantendo os olhos em Tedros. Uma enguia se
esgueirou de suas vestes, tão pequena que ninguém no público notou
quando deslizou pela rachadura que Sophie tinha conseguido abrir na bolha.
Tedros a agarrou imediatamente.
O scim falou com a voz da Cobra, de modo que apenas o príncipe e
Agatha pudessem ouvir.
“Sua magia fraca não vai protegê-los do que está por vir”, o scim
provocou. Do lado de fora da bolha, seu mestre olhou feio para Tedros.
“Seu covarde chorão. Seu tolo de rosto bonito. Você não é um líder.
Ninguém na Floresta está do seu lado. E ainda acha que pode ganhar em
uma disputa contra mim?”
“Em uma disputa justa, sim”, Tedros retrucou, sustentando o olhar de seu
arqui-inimigo. “Quanto à Floresta, logo todos saberão que seu ‘rei’ não é
quem diz ser.”
“Ah, é?”, perguntou o scim. “Vamos ver se acreditam em uma palavra
sua. De Tedros, o rebelde. Tedros, a Cobra.”
“Não preciso dizer nada. Eles vão saber, quando você perder a cabeça
para a Excalibur”, o príncipe insistiu, apertando mais a enguia. “Vou
concluir os testes. Vencer o torneio. E a espada vai me coroar.”
“Como da última vez? A espada nunca deixará que seja rei, porque não
há nada de régio em você. Nada.”
A raiva tomou conta de Tedros. “Sou o filho de Arthur. Sou o herdeiro.”
“Há um único final possível para sua história”, a enguia disse, com
frieza. “Você acabará morto e esquecido. O anel virá para minhas mãos. Os
poderes do Storian serão meus. Você e todos os que ama serão apagados.”
“É o que veremos no fim do torneio”, Tedros retrucou.
“Rhian” não hesitou. “Vou te matar muito antes.”
Tedros olhou bem nas pupilas pretas dele. “Sei quem você é, Japeth.
Como seu irmão certamente soube antes de você assassiná-lo e tomar o
nome dele. Consigo acreditar que Rhian era filho de Arthur. Pelo menos ele
tinha uma alma. Pelo menos queria ser do Bem. Mas como um animal como
você pode, ser meu irmão? Como alguém tão sujo como você pode ser filho
do meu pai?”
“Não é óbvio?”, o scim respondeu.
A Cobra sorriu, seu rosto diante do rosto do príncipe, diante da bolha
aquosa, sua voz soando lá dentro, como um sussurro envenenado...
“Eu não sou.”
As palavras foram um chute no peito de Tedros. Ele esmagou o scim,
transformando-o em gosma. Só conseguiu perguntar, sem ar: “Quem é
você?”. Mas Agatha já o puxava para o portal e a água do lago inundava
seus pulmões. A pergunta do príncipe ecoou nas profundezas escuras.
W5w
AGATHA
Nevando pergaminhos
PROCURA-SE
ROBIN HOOD
t
VIVO OU MORTO
PELO POVO
Agatha se virou para os outros. “Para o Flecha de Marian. Agora.”
Quando eles chegaram à clareira, o coração de Agatha estava na garganta.
Então veio o fedor.
Um cheiro pútrido de ovos podres e esterco, que fez com que tampassem
o nariz e respirassem brevemente pela boca.
O Flecha de Marian tinha sido bombardeado com lixo, a conhecida
pintura do jovem Robin Hood beijando Marian, na parede exterior, havia
sido vandalizada, de modo que ele agora beijava o xerife. O lema do lugar –
“Deixe todos os problemas para trás” – tinha sido riscado, e agora se lia:
VOCêS SãO O PROBLEMA
Havia mais pichações na porta.
Com os punhos cerrados e a respiração presa, Agatha abriu a porta. Um
cheiro de ácido queimado a atingiu com tudo, fazendo seus olhos
lacrimejarem no mesmo instante. Ela ouviu Hort e Nicola tossirem, seus
passos próximos dos dela, enquanto avançavam pelo retiro noturno de Robin
Hood, agora transformado em cinzas. Agatha acendeu a ponta do dedo, e o
brilho safira de Hort e o amarelo-claro de Nicola a acompanharam,
iluminando os tocos de mesa e os fragmentos de cadeira carbonizados.
Canecas de cerveja e pratos estilhaçados eram esmagados por seus pés.
Ainda se viam os pedaços da lousa em que ficavam os pratos do dia: PF do
Robin, Hidromel da Marian...
“Esperem...”, disse Nicola.
Agatha seguiu o brilho dela até o bar, onde Marian costumava atender.
Havia algo ali, em meio às cinzas, algo que abriu um buraco no estômago de
Agatha...
Uma pena.
Uma pena verde.
Os joelhos dela fraquejaram.
“Ele está morto, não é?”, Hort disse, baixo.
Os dedos trêmulos de Agatha tocaram a pena, pensando no homem que
havia sacrificado suas amizades, sua casa e sua vida para ajudá-la. Não,
Robin, não. Outro adulto cortado de seu conto de fadas. Outro adulto morto
porque havia ficado do lado dela. Ela segurou bem a pena. Os Leitores
viriam a conhecer o verdadeiro Robin Hood? O Storian sobreviveria para
contar a ver...
A pena de Robin cintilou.
Algo caiu dela.
Um pó verde salpicou o balcão, rearranjando-se em um padrão sobre as
cinzas.
A boa moça
Excalibur.
Era o nome dela, Sophie pensou, olhando para o punho da espada que
despontava da montanha de pergaminhos que cobria o jardim.
Eles haviam caído do céu com a alvorada, despertando Sophie com seu
plim-plim ao cair nas flores. Ela ouviu uma voz de menino no jardim, uma
sequência de gritos. Quando chegou à janela, com o cabelo todo bagunçado
e a maquiagem da noite anterior borrada, a neve tinha diminuído e alguns
últimos pergaminhos caíam em um mar formado por muitos mais, que ia
muito além do castelo: passava pela igreja e pelos estábulos e chegava às
Colinas de Camelot.
Os olhos de Sophie se mantiveram na espada, que brilhava sobre as
pedras cobertas por pergaminhos. Mal se recordava do que havia acontecido
na noite anterior. Seu cérebro estava mais confuso que nunca, mas de
algumas coisas ela tinha certeza.
Não me casei.
Pergaminhos não deveriam cair do céu.
O nome da espada é Excalibur.
Uma dor de cabeça a atacou, como se tentasse apagar aqueles fatos, como
se estivesse determinada a retornar ao estado de tábula rasa. Era como se seu
cérebro fosse torcido por um torno de ambos os lados.
Mas Sophie estava consciente da dor agora. Uma rachadura tinha se
aberto. Coisas haviam escapado.
Não me casei.
Pergaminhos não deveriam cair do céu.
O nome da espada é Excalibur.
Sophie olhou com mais atenção para a espada.
Criadas se apressaram para o jardim, acompanhadas por guardas.
Armadas de vassouras e baldes, as mulheres de touca e vestido branco
recolheram os pergaminhos, enquanto os guardas as observavam com olhos
inflexíveis. “O rei não quer que reste nenhum pergaminho”, grunhiu um
deles. “Não quer que a princesa os veja.”
Sophie sentiu que seu próprio olhar endurecia, sobrepujando sua confusão
mental.
O que ele não quer que eu veja?
O rei havia ordenado que ela ficasse em seus aposentos e trancado a
porta. Ela não pretendia desobedecê-lo. Até agora, seu corpo nem sabia
como.
Então a neve caíra.
E algo mudara.
Seu peito começou a bater mais rápido, mais ardente.
Não me casei.
Pergaminhos não deveriam cair do céu.
O nome da espada é Excalibur.
A dor a atingiu como um martelo, mas Sophie já se dirigia à porta.
Precisava sair do quarto.
Precisava descobrir o que o rei estava escondendo.
Seu dedo brilhou em cor-de-rosa, e ela o apontou para a fechadura.
Precisava saber o que havia nos pergaminhos.
Como os guardas estavam supervisionando as criadas, Sophie avançava
pelo corredor sem ser notada, ignorando as pontadas na cabeça, que ficavam
piores a cada passo. Seu sangue parecia pulsar tão forte nas têmporas que ela
quase não ouviu as vozes no vestíbulo da Torre Azul, logo abaixo. Sophie
espiou pela balaustrada.
“Tenho um horário marcado com ela”, disse uma mulher com cabelo
trançado cor de mel, sobrancelhas finas e olhos castanhos e severos. Usava
um vestido creme e um diadema de cristais, e carregava uma bolsa de
conchinhas. “E, considerando que vim aqui por exigência sua, e fui chamada
em cima da hora para lhe ajudar a passar no primeiro teste, espero que o
horário seja respeitado.”
“A princesa Sophie está doente”, disse um rapaz bronzeado, diante da
porta aberta. Do lado de fora, Kei, taciturno como sempre, selava dois
cavalos. Do lado de dentro, o rapaz olhava feio para a mulher, enquanto
vestia uma capa para montaria sobre o traje azul e dourado. “Trouxe o que
pedi?”
Meu príncipe, Sophie o reconheceu, tomada pelo amor. Meu rei.
No entanto, ele não usava coroa.
Uma vaga lembrança se insinuou dentro dela: coroas desaparecendo... um
casamento interrompido... uma adaga de gelo no punho...
Sophie olhou para a mão, mas não havia nenhuma aliança em seu dedo.
O que aconteceu ontem à noite?
Ela olhou mais atentamente para seu amado, absorvendo o verde estranho
de seus olhos, a cor quase irreal, a magreza sinuosa de seu corpo, o contorno
branco como leite de sua orelha, como se apenas um ponto de sua pele não
tivesse sido tingido...
Uma sensação hesitante se aprofundou dentro dela.
De repente, os olhos do rei brilharam. Ele os voltou para o segundo andar.
Sophie se abaixou, sentindo uma dor diferente na cabeça, como se a puxasse
para trás, determinada a fazer com que voltasse para o quarto. De repente,
Sophie não conseguia lembrar por que havia saído de lá. Não conseguia
lembrar o motivo daquela sensação de ansiedade ou o que estava fazendo
escondida atrás da balaustrada. Mas ficou no lugar, confiando na
importância daquilo. Confiando no que quer que a tivesse levado até ali.
Devagar, ela se ajeitou para olhar para baixo.
“Estão todos em choque, claro”, a mulher disse ao rei. “A Excalibur
voltando à pedra. A voz de Arthur vinda do túmulo. Um torneio para decidir
quem será o rei, quando achávamos que já tínhamos um... Mas a Floresta
está do seu lado. Por enquanto. Estão pagando cem para um pela vitória de
Tedros.”
“É generosidade demais”, o rei retrucou.
“Tedros tem seus defensores. E muitos que agora o veem sob uma nova
luz”, a mulher observou. “Essas pessoas se perguntam se ele é o verdadeiro
rei de quem Arthur falou. Se é o Leão, e não a Cobra que o rei o fez parecer.
Meu conselho é: vença o primeiro teste de uma vez. Porque se Tedros
vencer...” Ela olhou bem nos olhos do rei. “Aí as pessoas vão começar a
duvidar de verdade.”
“É por isso que você veio me ajudar”, o rei disse, com a voz gelada, e
estendeu a palma aberta. “Me dê logo.”
“A princesa Sophie parecia muito bem ontem à noite”, a mulher
respondeu, ignorando a mão estendida do rei. “A menos que o sumiço da
coroa dela também a tenha perturbado. A menos que ela esteja questionando
por que Tedros tem o anel de Camelot, e não o rei. A menos que se pergunte
por que o fantasma de Arthur iniciaria um torneio quando seu herdeiro já
ocupa o trono. Talvez tudo isso a tenha deixado preocupada. Como
aconteceu comigo.”
“Sophie não está recebendo visitas”, repetiu o rei.
“Foi Sophie quem quis me ver”, a mulher respondeu.
“Impossível”, disse o rei.
“Por quê?”, ela insistiu. “É impossível que sua rainha recorra a outra
rainha? É impossível que Sophie queira ter controle sobre a própria vida?”
“Me entrega isso logo, Jacinda.”
“Rainha Jacinda”, a mulher o repreendeu. “Acho muito apropriado que as
Rainhas de Camelot e Jaunt Jolie sejam amigas. Diplomacia é o verdadeiro
trabalho de uma rainha. Esta manhã mesmo me reuni com líderes do
Conselho do Reino cujas terras foram inundadas por pergaminhos com o
primeiro teste de Arthur. Claro, os outros líderes ainda preferem você a
Tedros, já que salvou o reino deles de ataques.” Ela sorriu. “É uma pena que
não sejam eles quem vão coroar o vencedor.”
“Estou indo a Putsi”, o rei a cortou. “Trouxe ou não?”
“Vou poder ver Sophie ou não?”, a mulher retrucou. “Vai ser rápido, Rei
Rhian. Não é nada de especial.”
O rapaz voltou seus olhos cortantes para Jacinda.
Rhian, Sophie pensou. Esse é o nome dele. Rhian. O meu rei.
Quanto à Rainha de Jaunt Jolie, Sophie não conseguia se lembrar nem um
pouco dela. Com certeza não se recordava de ter marcado uma reunião.
Tampouco compreendia muito do que a mulher dissera ao rei. Arthur?
Tedros? Torneio? Nada disso superava a dor em sua cabeça, que piorava a
cada segundo. Tudo o que Sophie havia absorvido escapara de novo pelas
rachaduras no cérebro.
“Acho que não há mais interesse na diplomacia...” A rainha suspirou,
cedendo ao olhar de Rhian. “Vou ajudar com o primeiro teste, pelo mesmo
motivo que concordei em queimar meu anel. Porque impediu que a Cobra
enforcasse meus filhos. Mas agora a dívida está paga. Depois disso, não terá
mais poder sobre mim. Compreendido?”
A rainha abriu a bolsa bruscamente e enfiou a mão lá dentro. Então tirou
uma chave branca e preta, que pareceu estremecer na sua mão, como um
filhotinho recém-nascido. Sophie tentou ver melhor, através da balaustrada.
A chave era feita de... pelos.
Rhian a pegou e a enfiou no bolso. “Podemos remarcar sua reunião com
Sophie. Talvez para quando Tedros estiver morto e você não esteja mais tão
preocupada com meu direito ao trono.” Ele guiou a rainha em direção à
porta. Ela se soltou dele, tensa, fechando a bolsa...
Foi quando Sophie notou.
O pergaminho dentro da bolsa da rainha.
Ela se sentiu atraída por ele, como uma mariposa pela luz.
Pergaminhos não deveriam cair do céu.
Pergaminhos não deveriam cair do céu.
Pergaminhos não deveriam cair do céu.
O rei e a rainha estavam quase à porta...
“Jacinda! Querida! Meu bem!”
Os dois congelaram. Então olharam para cima, para a jovem desgrenhada,
ainda de camisola.
“Perdão, Jacinda. Estava me sentindo muito mal pela manhã, mas
melhorei agora”, Sophie disse, forçando as palavras a saírem, apesar da dor.
“Podemos manter nossa reunião? O rei ficará aliviado em saber que estou
bem o bastante para conversarmos. Não é mesmo, querido?”
Sophie sorriu para Rhian, o cabelo todo bagunçado, o batom manchado
como o de um palhaço.
O rei lhe lançou um olhar tão frio que ela achou que se transformaria em
pedra.
Sophie apostara que, o que quer que aguardasse o rei em Putsi, era
importante demais para que sua repentina aparição o impedisse de ir. Ela
estava certa, e o rei partira com seu capitão, como planejado, em vez de ficar
e supervisionar sua conversa com a Rainha de Jaunt Jolie.
O que ela não havia considerado era que ele destacaria alguém para
supervisioná-la em seu lugar.
Agora, acomodada com Jacinda na sala de visitas da Torre Azul, com chá
de gengibre e docinhos, Sophie tinha que suportar os olhos vigilantes das
Irmãs Mistrais, sentadas em sofás ao canto, com bloquinhos e penas nas
mãos.
“Não prefere falar... a sós?”, a Rainha de Jaunt Jolie perguntou a Sophie,
que havia se arrumado, e o vestido branco tinha retornado a seu estilo
empertigado e cheio de babados. “Talvez possamos conversar nos seus
aposentos...”
“Trata-se de uma reunião agendada entre dignitárias, não?”, interrompeu
Alpa, do canto.
“Todas as reuniões agendadas devem ser registradas”, Omeida
acrescentou. “Além do mais, ultimamente tivemos problemas no castelo. Um
mapa precioso foi queimado. Por um intruso, durante uma coletiva de
imprensa. Temos que ficar de olho em todo mundo. Incluindo rainhas.”
A Rainha de Jaunt Jolie se virou para elas. “Acreditei que as intenções do
Rei Rhian eram nobres ao buscar os poderes do Único e Verdadeiro Rei. Mas
agora que sei que são as Irmãs Mistrais que o estão aconselhando, fico
aliviada que não tenha dado certo.”
“Continua guardando rancor, é?”, comentou Alpa.
“Tudo porque Arthur não aceitou casar sua filha mais velha com o filho
dele”, completou Omeida.
“Vocês se aproveitaram de Arthur quando ele estava de luto, sozinho.
Vocês o isolaram e envenenaram sua mente. Fizeram com que ele acreditasse
que era o Único e Verdadeiro Rei”, a rainha retrucou. “De repente, Tedros e
minha Betty não podiam mais brincar juntos. Ele não aceitava se encontrar
comigo ou com qualquer outro líder. Se Arthur já não era tão respeitado nos
últimos meses de vida, foi por causa de vocês. É por isso que ninguém
confia em vocês.”
“Até agora”, disse Alpa, com um sorrisinho. “Mas parece que
encontramos o Único e Verdadeiro Rei no fim das contas.”
“No entanto, ainda falta um anel”, a rainha disse. “Que está com um filho
de Arthur, o qual me lembra muito mais do rei que eu conheci do que o
rapaz que vocês aconselham no momento. Se o Único e Verdadeiro Rei
realmente existe, talvez seja Tedros.”
A expressão de Alpa ficou sombria. “Nós avisaremos ao Rei Rhia que, da
próxima vez que seus filhos estiverem em perigo, ele poderá deixar que o
destino deles se concretize.”
Pela primeira vez, a rainha pareceu abalada.
Sophie não fazia ideia do que elas estavam discutindo. Tudo o que sabia
era que precisava do pergaminho na bolsa da rainha. O resto havia se
perdido com o baque surdo e constante em sua cabeça. Já tinha quase
esquecido quem era a mulher sentada à sua frente.
O pergaminho, ela se lembrou, agarrando-se ao pensamento que já lhe
escapava. Preciso do pergaminho.
Novos pensamentos vinham, pensamentos que não eram dela, forçando
palavras a saírem de sua boca. Atrás da rainha, Sophie podia ver as Mistrais,
movimentando ligeiramente as mãos sobre os blocos de anotações.
“O que queria discutir?”, Sophie perguntou a Jacinda, servindo chá na
xícara da rainha.
Parecia que seu cérebro tinha sido dividido em dois: uma parte motivava
suas palavras e ações, enquanto outra tentava se prender ao motivo pelo qual
estava ali.
O pergaminho.
O pensamento começou a lhe escapar...
Que pergaminho?
Mais palavras vinham, sua dor de cabeça evaporava, tudo parecia fluir
perfeitamente.
“Como está sua filha mais velha?”, Sophie perguntou, confiante e
controlada, como se comportara com a imprensa. “Pena que não tivemos a
chance de ficar amigas na escola.”
“Betty não foi levada”, Jacinda respondeu, amarga. “Foi outra garota de
Jaunt Jolie. Uma tal de Beatrix, que vivia tentando ser amiga dela, com o
intuito de adentrar os círculos reais. Mas foi tudo para melhor. Betty não
precisa daquela escola ou do Storian. Encontrou sua própria maneira de
contar histórias...”
“Não está feliz por ter queimado o anel? Se Betty não precisa da escola
ou do Storian, o mesmo vale para o resto da Floresta”, Sophie comentou,
animada, sem ter ideia do que estava falando.
A rainha ficou olhando para Sophie. “Tem algo de errado com você. Me
diga, o que está acontecendo? Mesmo que as duas bruxas ouçam. Podemos ir
para Jaunt Jolie. Meus Onze são guerreiros destemidos que poderão mantê-la
a salvo. E tenho o apoio de outros líderes, do Bem e do Mal. Posso protegê-
la, Sophie.”
Jacinda voltou a olhar para as Irmãs Mistrais, como se esperasse que elas
se revoltassem ou atacassem, mas Alpa e Omeida não disseram nada, só
continuaram movimentando as mãos sobre os blocos de notas.
“Gostaria de baba ao rum?”, Sophie perguntou, oferecendo um bolinho
com creme em cima. “O novo chef do castelo é maravilhoso.”
“Não sabia que você gostava de doce”, a rainha retrucou, áspera. “E isso
aí parece empapado e malfeito.” Jacinda olhou nos olhos de Sophie. “Vi
você na execução de Tedros. Você e a reitora. Sei de que lado realmente
está.”
A mente de Sophie congelou. O roteiro foi abortado.
Atrás da rainha, as Irmãs Mistrais espelhavam a pausa.
“Eu e a reitora?”, Sophie perguntou, usando as próprias palavras. “Que
reitora? Que execução? Desculpe, não sei do que está falando.”
A rainha encarou os olhos vazios da outra. “O que aconteceu com você?”,
ela sussurrou, pegando o pulso de Sophie. “Por que está aqui, e não com
Agatha?”
O calor do toque.
O conforto da pele.
O som do nome.
Agatha.
Aquilo atravessou a confusão mental de Sophie, como um raio caindo em
um lago.
Pergaminhos não deveriam cair do céu.
Pergaminhos não deveriam cair do céu.
Pergaminhos não deveriam cair do céu.
Ela viu as mãos das Irmãs Mistrais se moverem de novo, seus rostos
tensos. Mas o roteiro já estava em curto-circuito.
“Não estou me sentindo muito bem”, Sophie disse, levantando-se.
Ao fazer isso, ela bateu na bolsa da rainha, que caiu no chão. “Opa”,
Sophie disse, abaixando-se para pegá-la, mas só empurrando-a mais para
baixo do sofá.
“Pode deixar que...”, a rainha começou a falar.
“Não se preocupe”, Sophie falou, já de joelhos, esticando-se sob o sofá.
“Pelo visto dei um belo chute... ah, aqui está.” Ela se levantou e devolveu a
bolsa à rainha. “Minhas conselheiras vão acompanhá-la.” Sophie sorriu para
as Irmãs Mistrais, que pareciam mais tranquilas agora, como se as coisas
tivessem voltado aos trilhos.
A Rainha de Jaunt Jolie avaliou o rosto de Sophie uma última vez. “Eu
queria...” Ela balançou a cabeça, como se tentasse finalizar o pensamento.
Sophie deu um beijo na bochecha da mulher. “Obrigada”, ela sussurrou.
Então, antes que pudessem dizer algo mais, a princesa voltou para seus
aposentos, como uma boa moça.
Havia algo na cabeça dela.
Algo que controlava a dor.
Sophie tinha entendido aquilo quando estava com a rainha. Primeiro, as
irmãs, fingindo tomar notas. Toda vez que moviam as mãos, ela perdia o
controle, e as palavras de outra pessoa saíam por sua boca, os pensamentos
de outra pessoa ocupavam sua mente. Caso tentasse voltar às próprias ideias,
pensar por si mesma, a dor vinha com tudo.
Mas a dor atacava mesmo quando as Mistrais não estavam presentes. Ela
a sentia agora, rastejando por sua mente, esperando para dar o bote.
O que significava que as Mistrais eram capazes de controlar a dor...
Mas não eram sua fonte.
A fonte era sua cabeça. Estava dentro de em sua cabeça.
Sophie ainda não sabia o que exatamente a causava. Mas sabia como
mantê-la distante...
É só não pensar.
Portanto, em vez de pensar no pergaminho que tinha na mão, Sophie
focou em seus passos – plim, plim, plim, plim, como o barulho da chuva – no
caminho para seus aposentos. Seu vestido branco pinicava sua pele,
certamente suspeitando de algo, mas sossegou assim que ela entrou no
quarto banhado pelo sol e fechou a porta.
Sophie tentou trancá-la, mas a fechadura estava quebrada. Por culpa dela,
claro, que a tinha queimado para sair de lá. Sua cabeça já começava a latejar,
sentindo uma travessura em andamento.
Ela ouviu passos se aproximarem no corredor.
Vozes ficarem mais altas.
Então algo estranho aconteceu.
Uma faixa de renda branca se soltou do vestido, ganhando vida. Por um
momento, Sophie achou que fosse atacá-la, pois o vestido parecia ter
vontade própria. No entanto, ela apenas se deslizou pela fechadura quebrada
e se transformou em um ferrolho de pedra branca, bloqueando a entrada.
Não havia tempo para pensar em por que o vestido estava a ajudando.
A dor já disparava, como um alarme.
Sophie abriu o punho e desenrolou o pergaminho amassado contra o
espelho na parede, deixando as letras grossas em tinta preta à luz do sol.
Assim tudo começa, com o primeiro teste vindo
Uma corrida entre dois reis para continuarem vivos
Pois do além não se pode governar
Ou um reino sem cabeça comandar
Uma vez, de mim um homem se aproximou
E por vontade própria sua cabeça entregou
O patife insensato algo estava querendo
Tentou conseguir e acabou morrendo
O que o homem queria, só meu real herdeiro saberá
Onde crescem árvores feiticeiras ele encontrará!
Sophie não conseguia entender nada, a cabeça prestes a explodir como
um balão. Homens sem cabeça... árvores feiticeiras... A dor se intensificou e
pareceu prestes a partir seu cérebro em dois. Ela enfiou o pergaminho no
bolso. Devia significar alguma coisa. Algo que a dor não queria que ela
descobrisse.
De repente, ouviram-se batidas fortes na porta.
“Sophie!”, Alpa gritou.
Mãos sacudiram a maçaneta, mas a porta continuava bloqueada.
“Não faça nenhuma idiotice!”, Omeida ameaçou. “O rei vai saber! Ele vai
ver! Onde quer que esteja, vai voltar para te punir!”
Sophie ficou olhando para a porta. A dor obscurecia todos os
pensamentos menos um.
Ele vai ver?
Punhos bateram com mais força, mas o ferrolho aguentou firme.
“Abra a porta!”, Alpa insistiu.
Como o rei pode me ver se não está aqui?, ela pensou. A menos que...
Ela olhou para o pergaminho, aberto contra o espelho.
Então, lentamente, seus olhos focaram seu próprio reflexo.
Sophie ouviu os guardas chegando, as irmãs ordenando que arrombassem
a porta... mas estava perdida em seus próprios olhos, avaliando as íris verde-
claras, as pupilas pretas e grandes. A dor martelava sua cabeça, mais forte,
com mais raiva, como se soubesse que estava chegando perto. Ela não
conseguia respirar, sua mente era empalada de todas as direções, pontos de
luz marcavam sua visão, seu corpo parecia a segundos de desmaiar. Mas
Sophie não cedeu. Continuou olhando em seus próprios olhos, explorando
cada vez mais fundo, buscando na escuridão e na luz por algo que não era
seu... até finalmente encontrar.
Escondidas como duas cobras em um buraco.
Guardas atacavam a porta com machados e tacos, estilhaçando a madeira.
Sophie já havia acendido o dedo.
O brilho cor-de-rosa se refletiu em suas pupilas, como uma tocha em uma
caverna.
Ela ouvia os gritos, as enguias escamosas, dando punhaladas cada vez
mais fortes atrás de seus olhos, tentando recuperar o controle.
Mas agora Sophie via a verdade. A dor se tornara um prazer.
Ela ergueu um dedo e enfiou na orelha.
Sorriu para o espelho, como um demônio se encarando.
Isso vai doer.
O ferrolho de pedra se rompeu.
A porta se abriu com tudo, e os guardas e as Mistrais entraram.
Uma brisa soprava no quarto, entrando pelas cortinas empapadas de
sangue, pela janela escancarada.
No parapeito, havia dois scims, esmagados.
Mas a verdadeira mensagem havia sido deixada lá fora.
Respingada em vermelho, na neve branca dos pergaminhos, nos vestidos
brancos das criadas no chão, que estavam atordoadas por um feitiço.
Quatro palavras sangrentas.
Os resquícios de uma princesa.
O aviso de uma bruxa.
W7w
TEDROS
Mahamip
“É o primeiro teste para se tornar rei”, começou Hort, com a boca cheia
de algodão-doce, “e você não sabe o que significa?”
Tedros o ignorou, chutando os pergaminhos espalhados pelo bosque de
algodão-doce, logo depois da fronteira da Floresta de Sherwood. Ele não
precisava responder ao furão. Não precisava responder a ninguém. Era o
herdeiro. Era o rei.
No entanto, havia fracassado no primeiro teste antes mesmo de começar.
O Cavaleiro Verde. Por que tinha que estar relacionado com o Cavaleiro
Verde?
Era a única parte da história do pai que ele não aprendera. De propósito. E
o pai sabia daquilo.
Foi por isso que meu pai colocou no teste? Para me punir?
Tedros afastou a ideia e tentou procurar pistas no texto. O patife insensato
algo estava querendo... Tentou conseguir e acabou morrendo... Onde
crescem árvores feiticeiras ele encontrará...
Ele não conseguia se concentrar. Sua mente girava.
O que o Cavaleiro Verde queria?
Por que nunca perguntei ao meu pai?
Japeth sabe?
E se ele terminar antes de mim? Será que já está no segundo teste? E se
eu chegar tarde demais?
Uma mão apertou a dele.
Tedros olhou para Agatha, que tinha algodão-doce azul e cor-de-rosa no
cabelo.
“Tenho certeza de que Japeth também não sabe qual é a resposta”, a
princesa lhe garantiu, os lábios polvilhados de açúcar. “Como saberia?”
“Bom, não podemos ficar perambulando pela Floresta até eu descobrir do
que se trata”, disse Tedros, vendo Hort e Nicola pegar algodão-doce das
árvores e servir um para o outro. “Estamos no caminho para as Colinas de
Pifflepaff. Onde fica a Biblioteca Viva. Precisamos ir até o arquivo do meu
pai. É o único lugar onde posso descobrir o que o Cavaleiro Verde queria.”
“Tedros, já decidimos que é perigoso demais...”
“Você decidiu. E é mais perigoso perder logo no primeiro teste!”, o
príncipe insistiu. “Se Japeth não sabe a resposta, o primeiro lugar em que vai
procurar é na Biblioteca Viva. Deveríamos ter ido para lá quando sugeri, em
vez de perder tempo com os Homens Alegres!”
“Eles estavam morrendo de fome e não tinham para onde ir!”, exclamou
Agatha. “Só lhes demos algumas sobras do A Bela e a Festa e ajudamos a
consertar a casa deles. Era a coisa certa a fazer.”
“Até eu sei isso, e olha que sou do Mal”, Hort disse atrás deles, com a
boca azul.
“Vamos para a Biblioteca Viva. É uma ordem”, Tedros disse, firme, e
seguiu em frente.
Ele olhou para o alto, para as fadas que o acompanhavam e vigiavam tudo
por cima das árvores de fios de açúcar, enquanto Sininho gritava com
qualquer uma que escapasse para provar um pouquinho. Atrás de si, ouvia
Agatha garantindo a Guinevere que protegeria o príncipe, não importava
quão perigoso fosse o plano dele.
Ter uma princesa não deveria ser assim, Tedros pensou. Em todas as
histórias que conhecia, eram os príncipes que as protegiam. Sim, Agatha era
rebelde, e era por isso que ele a amava. Mas às vezes Tedros queria que ela
fosse menos rebelde e mais princesa, ainda que se sentisse um ogro por
pensar assim. Ele afastou um ramo cor-de-rosa e seguiu em frente. De uma
coisa tinha certeza: Agatha não tinha como passar no primeiro teste por ele.
Dali em diante, teriam que fazer as coisas do jeito dele.
Pouco tempo depois, o príncipe espiou entre um último aglomerado de
ramos de algodão-doce.
O Pavilhão Pifflepaff era todo azul e rosa, e nada mais. Havia lojas azuis
“de menino” – Vinhos Viris, Intrépidos Peleiros, Barbeiros Bonitões – e
lojas cor-de-rosa “de menina” – Meias de Seda, Livraria da Boa Moça,
Escovas e Pentes Ingênuos. Na correria da manhã, homens de azul se
mantinham separados das mulheres vestidas de cor-de-rosa, incluindo as
varredoras que recolhiam os pergaminhos que restavam no chão do pavilhão.
(O pai de Tedros anunciara o primeiro teste em todos os reinos possíveis.)
As árvores que ladeavam as ruas eram parecidas com as da floresta que
estavam, mas com tufos de algodão-doce em forma de sino, em azul ou cor-
de-rosa, das quais apenas o sexo apropriado poderia comer. Os
pifflepaffianos pegavam o doce de passagem, os homens, azul, as mulheres,
cor-de-rosa, como se sobrevivessem à base do algodão-doce que lhes fora
designado. Ninguém cruzava a linha, os limites não se confundiam. Meninos
eram meninos e meninas eram meninas. (Talvez Agatha aprenda com aquilo,
Tedros pensou, rabugento.)
O vendedor de uma barraquinha azul de café a havia dividido em duas,
TIME RHIAN e TIME TEDROS, e cada uma tinha suas bebidas temáticas.
O time Rhian podia desfrutar do Latte Leão (cúrcuma, leite de castanha de
caju e cravo), Lionsmane Dourado (horchata com ganache de chocolate) e
Elixir do Vencedor (café expresso, maca e mel). O time Tedros contava com
Língua de Cobra (matcha em pó, leite de aveia quente e manteiga
clarificada), Storian Fresco (café gelado e canela) e Príncipe Sem Cabeça
(avelã, mocha e leite de cabra). O corredor Rhian estava lotado de homens
fazendo pedidos, pegando suas bebidas e batendo papo com os amigos. A
mesa Tedros estava vazia. “Quem vai vencer o torneio?”, lia-se nos potes de
gorjetas, um com o nome de Rhian, cheio de moedas de cobre e prata, e o
outro com o nome de Tedros, com algumas moedinhas.
Tedros sentiu o sangue esquentar.
A Floresta achava que ele não tinha chance.
Ainda que a Excalibur tivesse voltado para a pedra. Ainda que o pai dele
tivesse falado do além-túmulo para lhe darem uma chance. As pessoas ainda
achavam que Tedros perderia.
Por quê?
Porque tinham visto Rhian tirar a espada da pedra quando Tedros não
conseguira fazê-lo. Porque tinham visto Rhian reprimir os ataques a seus
reinos enquanto Tedros fracassara. Porque a pena de Rhian lhes dizia o que
queriam ouvir enquanto a pena pela qual Tedros lutava dizia apenas a
verdade, por mais que doesse. Eram todos truques da Cobra, mas o povo não
sabia. Por isso ninguém achava que Tedros ganharia. Para a Floresta, ele era
um perdedor.
Era por isso que tinha que vencer o primeiro teste.
Tedros apertou os olhos por entre as árvores.
A Biblioteca Viva, uma acrópole colossal, erguia-se em uma colina sobre
o pavilhão, e sua cúpula e seus pilares azuis brilhavam ao sol da tarde. Na
escadaria que flanqueava a entrada, havia guardas pifflepaffianos, que,
apesar do chapéu cômico, que parecia cobertura de bolo, estavam armados
com bestas carregadas, tinham o emblema do Leão no peito, sobre o
coração, e um espelhinho de bolso, que voltavam contra qualquer um que
entrasse ou saísse da Biblioteca.
“Seis guardas”, Tedros disse, virando-se para os outros. “Com
pareadores.”
“Pareadores?”, perguntou Agatha.
“A Biblioteca Viva contém registros ancestrais de todas as almas da
Floresta”, Tedros explicou. “Pareadores registram os que entram e saem,
caso alguém tente adulterar ou roubar um arquivo. São espelhinhos que
revelam aos guardas o nome de cada pessoa e de que reino vem.”
“Se vão saber quem somos, como vamos entrar?”, Nicola perguntou.
Tedros desviou o rosto. “Ainda não resolvi isso.”
“Não há outra maneira de descobrir o que o Cavaleiro Verde queria?”,
Nicola insistiu, olhando para o pergaminho que despontava do bolso do
príncipe. “Não tem nada que você não esteja lembrando, ou que seu pai
tenha lhe dito...”
“Não, não tem”, Agatha defendeu Tedros. “Caso contrário, não
estaríamos aqui.”
“É o pai dele”, Hort retrucou, então se virou para Guinevere. “E o seu
marido. Como podem não saber uma parte tão crucial da história do Rei
Arthur? Até os mais idiotas conhecem a história do Cavaleiro Verde. Ele
aterrorizava a Floresta, porque queria algo do Rei Arthur. Algo secreto.
Sabemos o que aconteceu com ele, mas ninguém nunca descobriu o que
queria. Bom, Arthur descobriu, claro. E agora vão me dizer que também não
sabem do que se tratava? Como a própria família do Rei Arthur pode não
saber? Vocês não conversavam? No jantar, durante as férias, ou durante as
coisas que as famílias Sempre fazem e que as leva a se sentirem tão
superiores às famílias Nunca? Se fosse meu pai, pode apostar que ele teria
me contado o que o Cavaleiro Verde queria, ainda que fosse segredo.”
Guinevere fez uma careta. “Eu não estava no castelo quando o Cavaleiro
Verde apareceu.”
“De grande ajuda você foi para Arthur”, Hort resmungou, então olhou
para Tedros. “Qual é a sua desculpa?”
“Ele não precisa dar nenhuma desculpa”, Agatha interferiu.
“Preciso, sim”, Tedros disse, cortando-a.
Ele precisava dizer em voz alta.
O motivo pelo qual o pai escolhera aquele primeiro teste.
“O Cavaleiro Verde foi ao castelo nas semanas que se seguiram à fuga de
minha mãe com Lancelot”, o príncipe explicou. “Eu estava brigado com meu
pai. A princípio, pus a culpa nele tanto quanto nela. Por ter deixado que ela
fosse embora. Por não tê-la feito feliz. Por ter deixado nossa família se
desfazer.” Tedros olhou para Guinevere, que teve dificuldade em não desviar
o rosto. “Depois voltei a falar com ele. Mas só quando retornou, depois de
derrotar o Cavaleiro Verde. Nunca falamos a respeito. Foi um grande feito,
claro. Ele sempre tocava no assunto, tentava fazer com que eu lhe
perguntasse os detalhes. Estava louco para contar o que havia acontecido. E
eu queria saber. Queria que me contasse do que o Cavaleiro Verde estava
atrás. Mas nunca perguntei. Era uma maneira de punir meu pai, de lembrar
que era culpa dele que minha mãe tinha ido embora. Não queria ser o filho a
quem ele pudesse se confidenciar. Não mais. Foi por isso que meu pai fez
desse o primeiro teste. Porque falhei com ele em vida. Porque escolhi a raiva
e o orgulho, e não o perdão.”
Até mesmo Hort ficou em silêncio.
De repente, Tedros sentiu o arrepio da solidão. Agatha e seus amigos só
podiam levá-lo até certo ponto. No fim, era ele quem estava sendo julgado.
Seu passado. Seu presente. Seu futuro.
“Não podemos mudar o que já aconteceu. O que importa é encontrar a
resposta agora. O que importa é vencer o primeiro teste”, Agatha disse,
ríspida. Tedros conhecia aquele tom. Sempre que a princesa se sentia
impotente ou assustada, tentava controlar as coisas ainda mais. Ela passou
pelo príncipe e apertou os olhos para a Biblioteca. “Se o Cavaleiro Verde é
um assunto que ficou pendente entre você e seu pai, ele deve ter deixado a
resposta em algum lugar. E você vem dizendo que a resposta tem que estar
aqui. Tem razão, Tedros. Não importa se é perigoso. Precisamos passar pelos
guardas.”
“E pelos espelhinhos deles”, Nicola recordou.
“Não há por que falar no plural”, Tedros corrigiu Agatha. “Vou sozinho.”
“Eu vou com você”, Agatha insistiu.
“Já vai ser difícil passar pelos guardas sozinho. Como passaremos os
dois?”, o príncipe argumentou.
“Do mesmo jeito que entrei na masmorra de Camelot. Do mesmo jeito
que Dovey nos livrou da execução”, disse Agatha. “Com uma distração.”
“E minha mãe?”, Tedros perguntou. “Não posso deixá-la no meio da
Floresta, com um furão e uma aluna de primeiro ano...”
Guinevere não estava prestando atenção.
Ela e Nicola observavam algo na floresta: um esquilo com a coleira real,
carregando uma noz na boca, arfando e bufando por entre as árvores, como
se já tivesse percorrido um longo caminho.
A velha rainha e a aluna de primeiro ano trocaram um olhar.
“Na verdade, Nicola e eu temos outro assunto a tratar”, Guinevere disse.
“U-hum”, concordou Nic.
As duas foram atrás do esquilo.
Hort piscou, atordoado. “Bom, se vocês vão para a Biblioteca e elas vão
atrás de um roedor, o que é que eu vou fazer?”
Ele se virou e viu que Tedros e Agatha o encaravam.
“Ah, não”, disse Hort.
O fluxo de pessoas na entrada da Biblioteca estava tranquilo. Um guarda
disfarçou um bocejo, com a besta pendendo ao lado do corpo; outro
cutucava o nariz com uma flecha; um terceiro olhava uma mulher bonita
com seu pareador...
Um raio azul o arrancou de suas mãos, derrubando-o nos degraus da
Biblioteca.
Outro derrubou o pareador do guarda ao lado. Eles ergueram os olhos.
Um menino com cabelo loiro e cheio, sem camisa, sem calça e com uma
fralda de algodão-doce, pulou na frente deles, chacoalhando a bunda.
Eu canto, ê! Garoto, ô!
Garoto, garoto, ô, ô
A musiquinha de sempre,
Pra trás e pra frente
Ô, ô, garoto, garoto, ê!
Ele esperou que os guardas atacassem.
Os guardas só ficaram olhando, boquiabertos.
Ele pigarreou.
Então, sapateou junto.
Sou um capitão pirata
Uh, ah, uh, ah
Minha namorada é a Nic
Uh, ah, uh, ah
Tenho uma amiga que chama Sophie
Ô, ô, garoto, garoto, ê!
Ele encerrou balançando as mãos. “Olé!”
Os guardas nem se moveram.
Hort franziu a testa. “Então tá.”
A fralda rasgou quando ele se transformou em um homem-lobo peludo de
mais de dois metros de altura.
“Grrr”, Hort disse, sem muita vontade.
Os guardas avançaram.
“Nunca falha.” Ele suspirou e fugiu, derrubando árvores enquanto fazia
com que os guardas o seguissem.
Enquanto isso, um rapaz e uma moça subiram correndo os degraus azuis
da Biblioteca, com a cabeça baixa. Tedros tinha sujado a camisa de algodão-
doce, para que adquirisse um tom azul manchado, e escondido os cachos
loiros sob fios de açúcar azul, para parecer menos um príncipe e mais um
elfo sem-teto. De sua parte, Agatha havia manchado o vestido preto de
algodão-doce rosa e coberto o cabelo com uma montanha de fios fofinhos.
Juntos, eles se dirigiram às portas da biblioteca, onde depararam com uma
placa gigante.
SÓ PARA MENINOS
Segundo as leis das Colinas de Pifflepaff
“Separados, mas iguais”
Príncipe Kaveen de
Shazabah
Idade: 23
País: Sultão Adeen de Shazabah
Mumtaz Adeen de Shazabah
Endereço atual: Prisão de Shazabah
Educação: Escola do Bem (Líder)
DESAPARECIDO
“Mahamip”, o rato repetiu, irritado.
“Outro beco sem saída”, Tedros murmurou.
“Não desista ainda”, disse Agatha, olhando para a frente.
O príncipe acompanhou seu olhar.
Mais além das paredes de mosaico e dos ratos perambulando com seus
carrinhos e pergaminhos, cortinas pretas com cordões amarelos separavam
uma ala. A marquise à entrada estava toda torta.
Desejo de Feiticeiro
A ASCENSÃO DE RHIAN
O RESGATE DE QUATRO PONTOS
A MORTE DA COBRA
Sob as escadas, havia bustos de Rhian embrulhados e cabeças de Leão em
bronze esperando para ser penduradas, assim como quadros da coroação do
novo rei, da reivindicação da Excalibur e da batalha com a Cobra.
Ouviram-se mais marteladas. Agatha virou o pescoço e viu que o
intervalo do almoço da primeira equipe de castores tinha terminado, e agora
eles estavam golpeando a marquise sobre o arquivo de Arthur, com o intuito
de substituí-la por outra.
A barba de Merlin
Pousada de Bloodbrook
“É a letra de Agatha”, disse Anadil.
“A barba de Merlin?”, Dot leu. “Que tipo de mensagem é essa?”
“É a resposta do primeiro teste”, Hester compreendeu. “Devia ser a
barba de Merlin que o Cavaleiro Verde queria. Agatha está nos dizendo que
precisam dela. Que precisam de nós.”
“E a pousada de Bloodbrook?”, Anadil perguntou.
“Fica na metade do caminho entre Camelot e Borna Coric. Eles devem
passar por ali”, Hester arriscou. “O lugar é conhecido por ser assombrado.
Ninguém nunca se hospeda lá. Não vamos correr riscos nos encontrando ali.
Certo, Sininho?” Ela se virou para a fada. “Já sabemos que Japeth é o rei
agora. Ele matou Rhian e está usando o nome dele. O que significa que a
Cobra também está tentando completar o primeiro teste.”
Sininho retiniu, confirmando as suposições dela.
Um alívio encheu o peito de Hester. Se a barba de Merlin era a resposta,
então Japeth ainda não sabia daquilo. Afinal de contas, estava a caminho de
Putsi e, portanto, longe do feiticeiro.
“É por isso que nosso lado vai ganhar. Porque trabalhamos juntos.
Porque concluímos nossas missões”, Hester se gabou, diante das amigas
que haviam duvidado dela. Virou-se para os ratos de Anadil. “Têm certeza
de que Merlin está dentro das cavernas? E continua vivo?”
Os ratos responderam. “Eles o ouviram roncando sob a capa”, Anadil
traduziu.
“Então as cavernas não tiveram influência sobre ele”, Hester disse,
voltando a escalar. “Bom, ele é um feiticeiro.” Olhou para Sininho. “Diga a
Agatha que chegaremos ao cair da noite.”
Hester continuou subindo enquanto via a fada se afastar. Dot e Anadil a
seguiram. Todo o coven escalava as pedras depressa, animado pela
mensagem de Agatha e considerando aquilo fácil em comparação à parede
de chocolate. Quando chegaram à base das cavernas, as nuvens haviam se
fechado, e uma chuva forte começou a cair.
“Parece que ninguém entra há um bom tempo”, disse Anadil, verificando
o perímetro da ilha. “Não há pegadas.”
“Por um bom motivo”, disse Dot. “Meu pai me contou a história da
Rainha Fora de Hora, do Storian. Ela descobriu as Cavernas de Contempo,
que não obedeciam ao tempo normal. Uma dessas cavernas manteve a
rainha e o rei eternamente jovens. Enquanto isso, seus filhos continuaram
envelhecendo, e logo estavam mais velhos que os dois. Perturbada, a rainha
experimentou outra caverna, para acompanhá-los, com a ideia de que ela e
o rei envelhecessem na medida certa. Só que deu errado, e ela e o rei logo
voltaram à sua idade verdadeira, bem mais de cem anos, e caíram mortos. É
por isso que, até hoje, as cavernas estão proibidas pelos governantes de
Borna Coric, que as mantêm bem protegidas, não só para impedir intrusos,
mas também para que eles mesmos não caiam na tentação.”
Hester se lembrou das estátuas reais na praça: um rei e uma rainha que
pareciam mais jovens que os próprios filhos, um conto de fadas apropriado
para um reino invertido.
Os ratos de Anadil já subiam pela frente da caverna, esquivando-se de
suas pontas letais e aterrissando nas farpas externas à entrada da caverna
das duas horas, enquanto guinchavam com urgência para que as bruxas os
seguissem.
Dot testou uma das pontas da parte inferior da caverna, o mero toque já
tirando sangue. “De jeito nenhum que a gente vai conseguir subir tudo isso
sem acabar empalada.”
Hester olhou para a chuva. “O talento de Dot nos trouxe até o mar. O
talento de Ani nos trouxe até as cavernas.” Seus lábios escuros se curvaram
em um sorriso. “Com o meu talento, vamos entrar.”
O demônio no pescoço dela ficou inchado de sangue, rangeu os dentes,
fechou as garras... daquela vez, pronto para voar.
Dot foi a primeira. Depois Ani. Quando o demônio levou Hester, ela
sentiu o quanto aquilo havia custado a ambos. A respiração ofegante dele
tirava o ar dos pulmões dela; os músculos enfraquecidos dele doíam tanto
quanto os dela. Hester não sabia onde ela começava e onde o demônio
acabava. Tudo o que sabia era que, entre a tortura para chegar à ilha e a sua
alma sendo levada aos limites, estaria disposta a sacrificar alguns anos e
tirar uma soneca dentro de uma daquelas cavernas.
Dot e Anadil já estavam mais adiante no túnel, olhando para cima.
Anadil piscou. “Não esperava que fosse assim por dentro.”
“Tão bonita”, completou Dot.
As paredes da caverna eram como a aurora boreal congelada no tempo,
com mil tons de neon cintilando. A própria Hester se viu hipnotizada pela
tempestade de cores e estendeu a mão instintivamente para o brilho...
Guinchos altos a impediram.
Ela viu os ratos de Anadil com os olhos brilhando e balançando a cabeça.
Então baixou a mão.
Depressa, as bruxas os seguiram pela caverna sinuosa, virando em
bifurcações a cada poucos passos, como se estivessem em um labirinto. De
alguma forma, os ratos sabiam o caminho, mesmo que as cores mudassem a
cada curva – laranja atômico, verde alienígena, amarelo escaldante –, como
se estivessem se embrenhando cada vez mais em um arco-íris. Logo
chegaram a uma nova bifurcação, e por um momento os dois ratos
discordaram, antes de olhar um para o outro e iniciar uma discussão intensa.
“Cada um deles acha que é por um caminho”, Anadil murmurou.
Os ratos continuaram discutindo, sem ceder.
“Vá com Dot pela direita”, disse Hester. “Eu vou pela esquerda.”
“Sozinha?”, Anadil perguntou, preocupada.
“Tenho seu rato”, disse Hester. Ela deu uma batidinha no demônio. “E
ele.”
Anadil franziu a testa para a tatuagem enrugada no pescoço de Hester,
que claramente não estava em condições de proteger ninguém, mas a amiga
já estava indo embora, seguindo um rato.
Hester manteve a cabeça baixa, o túnel ficava cada vez mais escuro
conforme avançava, as cores iam de tons pastel fluorescentes para tons de
azul-aço, marrom-âmbar e cinza-névoa. Agora, só conseguia ver alguns
metros adiante. Então notou uma barata caminhando no alto, iluminada pelo
teto cintilante. De repente, o corpo da barata ficou polvilhado de brilho do
teto e se encolheu magicamente, até se transformar em uma larva, que
continuava seguindo em frente. Então um brilho de outra cor a cobriu e a
envelheceu, de modo que voltou a ser um inseto adulto. A barata não
parava, velha e depois jovem, jovem e depois velha, totalmente focada em
seu destino. Agatha já tinha sido uma barata como aquela, Hester recordou,
quando tentara ajudar Sophie a encontrar o amor. Mal sabia o trabalho que
Sophie daria. Fora ela quem beijara Rhian... fora ela quem confundira o
Bem e o Mal... Aquilo parecia apropriado. Que uma confusão tivesse dado
início a tudo aquilo. Pois fora uma confusão que havia trazido Sophie e
Agatha para este mundo: duas meninas colocadas na escola errada...
Enquanto pensava, Hester se certificava de não tocar as paredes.
Uma respiração obstruída e ritmada ecoava de mais acima. Ffft... ffft...
ffft...
Hester ficou tensa. “Merlin?”, chamou.
O rato de Ani seguia mais rápido, por uma parte mais escura da
passagem, em que as cores esvaneciam. Hester não conseguia enxergar
nada: nem o rato nem as paredes nem os próprios pés. Acendeu o dedo,
lançando um brilho vermelho para o beco sem saída à frente, uma parede
sólida coberta por um brilho cintilante.
O barulho ficou mais alto. Ffft... ffft... ffft...
“Merlin?”, Hester tentou de novo.
Quanto mais perto chegava do fim do caminho, mais claro ficava que o
brilho se desprendia e se repunha magicamente, caindo em cascata no chão
de pedra da caverna.
Então ela viu.
Encostada na parede, coberta de brilho.
Uma capa roxa envolvendo um volume, de baixo do qual vinha o
barulho de respiração.
Lágrimas de alívio se acumularam nos olhos de Hester.
“Merlin, sou eu”, ela disse, apressando-se na direção da capa. Hester
sabia que não devia tocar no brilho. Usando o dedo iluminado, conseguiu
afastar o veludo com magia, jogando-o contra a parede e revelando o corpo
do feiticeiro logo abaixo.
Hester perdeu o ar.
Caiu para trás, em choque, e seu demônio soltou os gritos que ela mesma
não conseguia conjurar.
Não, não, não, não, não, não.
Ela se virou para correr, para encontrar as amigas, para pedir ajuda...
“Hester!”, uma voz gritou mais atrás. “Hester, venha depressa!”
Ela se virou e viu Anadil correndo em sua direção.
Quando as bruxas viram o rosto uma da outra, pararam na hora.
Porque, qualquer que fosse o horror que cada uma havia encontrado em
sua caverna... parecia que a outra havia deparado com algo pior.
Quando chegaram a Bloodbrook, já anoitecia.
A pousada estava no escuro, a não ser pela luz fraca em uma janela no
andar de cima.
Estavam preparadas para atordoar o atendente, mas o Ingertroll na
recepção dormia pesado sobre o livro de hóspedes. Havia um único nome
sobre a folha de resto em branco:
Agoff de Woodley Brink
Uma placa no balcão alertava: Não perturbe as assombrações.
Passaram pelo troll nas pontas dos pés, a primeira, a segunda e a terceira
bruxa.
Subiram a escada se esgueirando em sua formação costumeira.
A porta ao fim do corredor não estava trancada.
Agatha e Tedros pularam da cama, aliviados. Assim como Guinevere,
Nicola e Hort, o quarto iluminado por uma única vela à mesa. Pareciam
todos exaustos – especialmente Hort, que coçava os pelos que lhe restavam
e tirava carrapichos do pé, como se tivesse carregado os outros até ali, em
forma de lobo.
“Onde ele está?” Agatha avançou na direção de Hester e Anadil, sem ar.
“Onde está Merlin?”
“E quem é ela?”, perguntou Tedros, apontando a mulher que estava com
elas. “Não deveriam ter trazido mais ninguém. Sabem dos riscos...”
“Sou e-e-eu”, a mulher disse, com lágrimas brotando nos olhos.
Agatha e Tedros congelaram.
O príncipe e a princesa se aproximaram devagar, da mesma forma que
Hester havia feito quando pusera os olhos naquela matrona barriguda de
meia-idade, com pele escura, cachos grossos e o vestido manchado de
chocolate.
“Dot?”, Agatha conseguiu dizer. “Mas... você... está...”
“Velha”, Dot choramingou.
Todos ficaram mudos, de modo que só se ouviam os ruídos.
Ffft... ffft... ffft...
Que vinham de baixo do braço de Hester.
A expressão de Tedros passou a horrorizada.
“Hester...”, ele sussurrou, olhando para o volume que ela segurava.
“Onde está Merlin?”
As mãos de Hester tremiam.
Ela colocou o que quer que segurasse na cama.
Ninguém se moveu. Ficaram todos ouvindo a respiração por baixo do
veludo roxo.
Ffft...
Ffft...
Agatha foi a primeira a ter coragem de afastar a capa.
Revelando o feiticeiro tal qual se encontrava.
A resposta do primeiro teste de Tedros.
Merlin, o sábio.
Merlin, o poderoso.
Merlin, doce,
sonolento,
desprovido de qualquer barba.
Um bebê.
W 10 w
AGATHA
Pense como eu
Cofre 41
Não havia gansos afetados ou multidões caóticas ali: pelas ruas limpas,
alinhavam-se homens armados com espadas, cuja cota de malha tinha o
brasão de diferentes reinos, como se a região do banco fosse protegida, tal
qual Quatro Pontos.
Enquanto subia os degraus depressa, Sophie olhou por cima do corrimão
para um lote cercado, onde visitantes do banco deixavam seus cavalos,
tapetes mágicos e outros meios de transporte. Ainda não havia sinal das
montarias de Rhian e Kei. Grasnidos ecoaram. Ela se virou e deparou com a
imperatriz e sua caravana de gansos se aproximando do banco. Sophie
percorreu os últimos degraus e abriu um sorriso sedutor para o guarda,
jogando o cabelo ruivo por cima do ombro, entrando pelas portas antes que
ele pudesse olhar melhor.
Por dentro, o banco era um templo de jade, três andares com janelas do
chão ao teto se elevando em torno do miolo vazio cilíndrico, os painéis de
vidro cobertos de letras. O primeiro andar, onde se lia SETOR BRONZE,
estava repleto de clientes fazendo fila. No SETOR PRATA, ninfas de cabelo
neon serviam água de rosas para os clientes sentados em sofás. Os vidros do
último andar, o SETOR DIAMANTE, que ficava tão lá no alto que Sophie
quase nem conseguia enxergar, eram fumê. Enquanto isso, o átrio do banco
tinha três estátuas douradas de fênix, cada uma congelada em uma pose
diferente, como uma instalação de arte pretensiosa.
O gerente do banco deve estar em algum lugar nos andares de cima,
Sophie pensou. Mas não havia escada no térreo. Tampouco recepcionistas
ou concierges. O mármore lá de baixo se mantinha completamente vazio, a
não ser por uma fila de clientes esperando alguma coisa, a qual andava
bastante rápido. Sophie foi até a frente e notou três círculos brancos no
chão. Um dos círculos começou a brilhar, e as palavras PRÓXIMO
CLIENTE surgiram dentro dele.
A primeira mulher na fila, uma senhora com aparência nobre e elegante,
entrou no círculo.
No mesmo instante, uma fênix ganhou vida, mergulhando e agarrando a
mulher tão rápido que Sophie quase nem viu. A estátua lançou a senhora até
a abertura no vidro do Setor Prata, antes de congelar no lugar, enquanto as
outras duas aves já lançavam os clientes seguintes.
Parece que não era só uma instalação de arte.
No saguão, Sophie se aproximou dos círculos, então notou que os outros
clientes lhe lançavam olhares ameaçadores, fossem humanos, mogrifs, elfos
ou ogros.
Outro círculo brilhou.
“Desculpe, meu bem”, Sophie disse, cortando um troll.
A fênix mergulhou e a pegou em suas asas douradas de metal, com os
olhos cor de fogo fixos nela.
“O gerente, por favor”, Sophie pediu.
A ave a lançou rumo ao Setor Bronze. Sophie aterrissou diante da
recepção, onde se encontrava uma bruxa fedida com uma única
sobrancelha. Ela notou o nome no crachá.
Goosha G.
NOVAS CONTAS
ALERTA DE IMPOSTOR
MATAR NA HORA
Pelo reflexo no balcão, Sophie vislumbrou guardas armados vindo da
esquerda. Ela se virou e viu que mais vinham da direita.
Um alarme começou a soar pelo banco, desvairado e ensurdecedor, como
batimentos cardíacos fora de controle. Os vidros fumê do Setor Diamante se
transformaram em ferro, trancando tudo o que havia no andar.
“ALI!”, uma voz nauseante gritou.
Os olhos de Sophie correram para a imperatriz no saguão, que apontava
para ela. O capitão e os guardas gansos avançaram em direção a Sophie,
seus bicos afiados como adagas.
Esquerda, direita, embaixo... ela estava encurralada em todos os sentidos.
Com uma exceção.
Sophie correu na direção do vidro, pulou e o quebrou com uma voadora.
Uma chuva de cacos caía à sua volta enquanto ela passava voando pelos
gansos e aterrissava no átrio...
...bem nas costas de uma fênix.
A ave de metal guinchou e ganhou vida, tentando se livrar de Sophie. Do
alto, os gansos da imperatriz mergulharam sobre Sophie de modo a bicá-la,
tirando sangue de seus braços e pernas. Mais e mais gansos chegavam.
Sophie não conseguia acender o próprio dedo, porque estava cercada. Os
pássaros cortavam a cabeça e o pescoço dela, seus grasnidos infernais se
misturavam ao alarme. A multidão em pânico se encolheu nos setores
Bronze e Prata quando a fênix lançou um ganso contra o vidro por acidente.
Sophie não conseguia enxergar, seu campo de visão estava tomado por
penas, sangue e vidro estilhaçado. Sua respiração estava rasa, de tanta dor...
Então tudo parou.
Os gansos ficaram flácidos e despencaram do alto, empalados por
tachinhas vermelhas.
Tachinhas vermelhas do vestido de Sophie.
Um a um, eles caíram mortos aos pés da imperatriz, sujando-a de sangue.
Vaisilla uivou angustiada, enquanto os clientes ao redor fugiam.
Perplexa, Sophie olhou para o próprio vestido, totalmente branco, sem as
tachinhas vermelhas.
Pela segunda vez, ele a salvara.
O vestido de Evelyn Sader.
Mas por quê?
Ela não tinha tempo para pensar naquilo.
Uma estátua ainda tentava matá-la.
Ou melhor, três estátuas.
Enquanto uma fênix tentava derrubá-la, as irmãs a ajudavam, golpeando
Sophie com suas asas de ferro. Juntas, as três a prenderam em um mata-
leão, alçando-a, mas Sophie deu um jeito de se segurar. Então ela se deu
conta do plano das aves, que partiram rumo ao teto, segurando-a perto,
acelerando cada vez mais, para esmagá-la contra a pedra. Sophie tentou se
defender, mas a pegada das aves era poderosa. Joguem limpo, ela pensou,
furiosa. Ninguém joga limpo. O medo e a raiva penetraram sua corrente
sanguínea, e seu dedo se acendeu.
As estátuas a prensaram contra o teto, a toda a velocidade, e suas asas se
estilhaçaram, e então os destroços começaram a ruir, criando crateras no
saguão e implodindo o chão.
O alarme foi baixando de volume... até parar.
O silêncio tomou conta do banco, enquanto guardas e clientes saíam do
amontoado de vidro, metal e poeira.
Devagar, as aves destruídas voltaram à vida, cambaleando para fora da
cratera, seu corpo liso e dourado recuperando a forma. Elas sorriram para a
imperatriz, esperando ser recompensadas por sua inteligência, por terem
pego a intrusa.
Mas a imperatriz nem olhava para elas.
Olhava para o teto, onde as estátuas e a invasora haviam batido contra a
pedra.
Quatro corpos tinham subido.
Vaisilla tinha visto com os próprios olhos.
Mas apenas três haviam descido.
Mogrificar-se para fugir do perigo era trapaça.
Mas, enquanto passava por baixo da entrada do Setor Diamante e
avançava pelos corredores tranquilos, protegidos do caos lá fora, Sophie
não se sentia nem um pouco culpada. Em todos os anos que passara na
escola, o Bem e o Mal haviam seguido as regras.
Mas nos anos que passara em Camelot ela aprendera que quem seguia as
regras morria.
Escolher uma borboleta azul fora um tanto insolente, mas mesmo diante
do pior dos perigos, Sophie precisava encontrar uma maneira de se divertir
um pouquinho que fosse. Quem começara tudo aquilo fora Evelyn Sader: a
mãe perversa dos gêmeos, que havia enganado o Rei Arthur e dado à luz
seus herdeiros.
Ou pelo menos foi o que Sophie vira no cristal de sangue de Rhian.
Só que, no casamento, Japeth havia dito outra coisa a Tedros. Ela ouvira
a voz dele de dentro da bolha, porque o scim estava conectado aos outros
dentro da cabeça dela. Japeth dissera a Tedros que não era seu irmão... que
não era filho de Arthur...
Verdade, mentira, presente, passado... agora tudo se misturava.
Se tentasse resolver aquilo, Sophie não teria tempo de concluir sua
missão.
Encontrar a Cobra.
O Setor Diamante era uma fantasia exuberante, mesmo para os padrões
de Sophie. Enquanto seguia como borboleta, ela via clientes fazendo as
unhas e recebendo massagens, comendo caviar e tomando champanhe,
fazendo ioga enquanto alguém do banco lia seu extrato bancário. Plantas
anormalmente perfeitas espalhavam uma fragrância de rosas no ar,
enquanto um coro de lagartinhos verdes flutuava em uma bolha de sabão,
em meio a uma cantoria suave. Além dos guardas enfileirados diante do
vidro lacrado a ferro, sussurrando para as insígnias do Leão na armadura,
em contato com os colegas lá fora, não havia qualquer sinal de que havia
algum problema no banco. Sophie se aproximou deles para ouvir melhor.
“Nenhum sinal de Sophie aqui, imperatriz”, um guarda murmurou para a
insígnia. “Sim, imperatriz. Como desejar.”
Ele sussurrou para o guarda ao lado. “Vamos esvaziar o andar. O Rei
Rhian acaba de chegar. Já foi informado sobre a intrusa, e quer privacidade
para falar com o gerente.”
Os guardas começaram a abordar funcionários e clientes, insistindo que,
por uma questão de segurança, o andar precisava ser esvaziado.
Sophie bateu as asas mais forte. Japeth chegaria a qualquer minuto. Ela
precisava encontrar a sala de Albemarle, para pegar a Cobra de surpresa.
A borboleta percorreu os corredores, verificando os crachás dos
funcionários: Rajeev, vice-presidente... Francesca, vice-presidente... Clio,
vice-presidente... todo mundo era vice-presidente. Então Sophie encontrou
uma sala diferente de todas as outras, com uma porta pesada e preta como
ônix.
GERENTE, dizia a placa.
Sophie tentou passar pela fresta debaixo da porta, mas era tão apertada
que ficou presa. Achou que havia destruído o vestido de Evelyn ao se
mogrificar, mas agora que o sentia queimando seu tórax estava certa de que
continuava ali, e reapareceria no instante em que voltasse ao normal. Sophie
fez ainda mais força para passar, quase rasgando as asas... uffff!
Ela finalmente passou.
Albemarle, o gerente, estava em meio a uma conversa acalorada com
uma cliente.
A borboleta se sobressaltou.
Albemarle! O pica-pau!
O mesmo da Escola do Bem e do Mal, responsável pela tabuleta de
avaliações!
Sophie sabia o nome dele, claro, mas nunca imaginara que um
funcionário de médio escalão da escola pudesse ter ido trabalhar no banco
de maior prestígio da Floresta. No entanto, ali estava ele, com seus óculos
brancos e o topo da cabeça vermelho, empoleirado à mesa, com um cofre de
aço imenso atrás de si, discutindo acaloradamente com uma cliente.
Cliente que era outra surpresa.
Sentada à frente de Albemarle estava uma mulher esquelética com
cabelo grisalho e seco, testa grande e olhos finos e cortantes.
Sophie a reconheceu no mesmo instante.
Bethna.
A terceira das Irmãs Mistrais, a que estivera ausente de Camelot.
“Não se pode congelar uma conta diamante”, ela argumentou. “O ouro é
nosso...”
“Mas quem administra o banco sou eu”, disse Albemarle. “E está claro
que a Encantadora Camelot é uma conta fraudulenta. A senhora e suas
irmãs têm roubado fundos de Camelot e guardado aqui há anos. E agora,
voilà, querem devolver os fundos a Camelot, para que o novo rei possa usá-
los.”
“Isso é irrelevante”, Bethna disse. “O dinheiro agora é de Rhian.”
“É de Camelot”, Albemarle corrigiu. “E, segundo o testamento de
Arthur, no momento Camelot não tem um rei que possa fazer uso dele. Não
até que o Torneio dos Reis seja encerrado. Assim, até que a Excalibur
escolha seu vencedor, a conta está congelada.”
“Vamos ver o que seu superior tem a dizer”, Bethna o desafiou. “Alguém
que tenho certeza de que não passa seu tempo livre brincando de bedel.”
“O banco escolheu uma família de pica-paus para controlar as contas
pelo mesmo motivo que a escola nos escolheu para controlar seus alunos:
somos planejadores por natureza. O que significa que acima de mim só está
meu pai, assim como acima dele só está o pai dele, e nenhum dos dois está
vivo para atender a senhora. Quanto ao período em que passo na escola, é
uma sorte que minhas asas me permitam trabalhar lá em meio período,
quando não tenho reuniões no banco. E tive ainda mais sorte de poder
trabalhar com Clarissa Dovey, a qual seu rei achou por bem executar. Assim
como eu, a Professora Dovey acreditava que dinheiro não significa muita
coisa sem uma bússola moral interna que indique como gastá-lo.”
Albemarle ficou olhando para Bethna. “E, como Clarissa, acredito que seja
mais importante me dedicar aos estudantes que aos velhos e corruptos.”
Bethna se levantou. “Quando o Rei Rhian chegar, corrigirá seu erro.”
“Minha espiã me disse que Rhian quer acesso ao cofre 41”, disse o pica-
pau, abrindo as penas. “Um cofre que pertence aos reinos de Quatro Pontos.
Rhian pode estar planejando entrar lá, mas eu estou planejando impedi-lo.
Não me importa se o povo de Putsi e o de outras localidades são escravos
da palavra de Rhian. Aqui eu sou o senhor destes cofres. Eu decido quem
entra.” Albemarle endireitou a coluna, com as costas para o cofre de aço.
“Apenas meu toque pode abri-los.”
A porta da sala se abriu com tudo.
“É bom saber”, disse uma voz.
Scims dourados avançaram sobre a mesa e empalaram Albemarle.
A borboleta de Sophie se recolheu a um canto, mal conseguindo escapar
da bota de Japeth quando ele entrou na sala do gerente, seguido por Kei.
Os scims voltaram ao traje azul e dourado de Japeth, que já se ajoelhava
para arrancar uma pena do cadáver do pica-pau. Enojada, Sophie deu as
costas. Quando voltou a se virar, viu a Cobra se aproximar da porta de aço
atrás da mesa e passar a pena pela fechadura.
A porta se abriu na hora.
“Fiquei sabendo que Sophie está no banco”, disse Japeth.
Ele olhou para Kei e Bethna, depois para o cadáver de Albemarle.
“Façam parecer que foi ela quem fez isso”, a Cobra ordenou.
Japeth entrou nos cofres, e a porta começou a se fechar atrás dele. Sophie
voltou a si e o seguiu, passando pela abertura cada vez menor no aço. Suas
asas tremularam com a brisa repentina. Ela olhou para trás e viu Kei
derrubando a mobília e Bethna escrevendo mensagens nas paredes – “VIDA
LONGA A TEDROS! A BRUXA ESTÁ DE VOLTA” –, enquanto o sangue de
Albemarle manchava o chão.
Foi então que Sophie notou que Kei olhava para ela através da frestinha
da porta. O capitão acompanhou a borboleta com os olhos arregalados,
antes que a escuridão o deixasse lá fora e a trancasse ali dentro, com o
inimigo.
Uma emboscada no escuro.
Era o que ia fazer, Sophie decidiu, seguindo a Cobra.
Tinha encurralado a fera.
Seria fácil.
Ainda assim, suas asas tremulavam.
Ela não conseguia se lembrar de ter ficado sozinha com a Cobra. Sempre
houvera alguém com eles: Agatha, Tedros, Hort... Rhian. Agora, no escuro,
Sophie ouvia as botas dele contra as pedras ásperas, clac, clac, clac, o
mesmo ritmo com que se livrava dos inimigos. Sem parar. Sem sentir
qualquer remorso.
Sophie tinha que puni-lo da mesma maneira. Sem hesitar. Sem
misericórdia. Quanto mais rápido o fizesse, mais rápido acabaria. A
Floresta seria poupada. A história voltaria aos trilhos.
O Mal ataca. O Bem defende.
Era a primeira regra dos contos de fadas.
Mas não dessa vez.
Ninguém veria aquele ataque como do Mal.
Seria um ato do Bem.
Uma morte merecida.
Só que havia obstáculos.
Para começar, Sophie era um inseto. Uma borboleta não durava muito
em um ninho de cobras. Ele ouviria na hora se ela voltasse à forma humana,
e seus scims a atacariam como haviam feito com o pica-pau. Além do mais,
estava no completo breu, ao ponto de Sophie não conseguir ver as paredes,
o chão ou o teto. Era como se ela e seu arqui-inimigo flutuassem em um céu
sem estrelas. Somava-se a isso os scims e os talentos mágicos da Cobra,
sem contar o fato de que ele já havia matado homens maiores que ela –
Chaddick, Lancelot, o xerife, o próprio irmão –; logo, as chances de Sophie
não pareciam muito boas, não importava o quanto Japeth estivesse
encurralado. Ainda que ela conseguisse derrotá-lo, ficaria presa no cofre,
sem que ninguém pudesse deixá-la sair, além de um banco cheio de
inimigos que seriam levados a acreditar que Sophie havia acabado de matar
seu gerente.
Assim, pelo momento, Sophie continuou seguindo Japeth, mantendo
distância na câmara que parecia infinita, guiando-se pelo cheiro gelado dele
e por sua silhueta.
Até que ele parou.
A cabeça dos scims despontou do traje, como se fossem cobras.
“A Bruxa de Além da Floresta”, ele disse. “A imperatriz insistiu que
haviam dado um jeito em você, mas senti que hesitava. Sei muito bem que
não morre tão fácil. Não a Sophie que conheço. Não a minha rainha. Na
verdade, considerei voltar a Camelot quando soube que você havia
escapado. Para te encontrar. Para te punir. Mas sabia que viria a mim.”
Os olhos dele vasculharam a escuridão, como pedras preciosas em uma
caverna. A borboleta fugiu de seu campo de visão.
Lá se foi a emboscada, Sophie pensou.
“Sua escola de magia não vai te proteger por muito tempo mais, sabia?”
O traje dos scims ficou preto e desapareceu na escuridão. “Garotas têm um
cheiro que não sai. Aric sabia descrever bem: de rosa apodrecendo. Sempre
sinto. Mas você... receio que seja quem carrega o pior cheiro.”
As asas de Sophie roçaram uma parede, tocando levemente a pedra.
Enguias saltaram do traje de Japeth, lançando-se na direção dela. Sophie
mergulhou rumo ao chão, e conseguiu evitá-las por pouco. Os scims deram
com os tijolos, suas cabeças escorregadias passando centímetros acima das
asas dela. A Cobra baixou os olhos brilhantes, prestes a encontrá-la.
Sophie deslizou para a frente, sobre o tórax minúsculo. Mais enguias
saltaram de Japeth, seguindo o som. Sophie mergulhou entre elas. O
movimento dos scims a lançou a um canto coberto de fuligem. Ela ergueu
as antenas. Onde quer que olhasse, havia scims saltando no ar, parecendo
fitas pretas, caçando-a na escuridão. Em silêncio, ela submergiu da fuligem,
sujando as asas de preto, contaminando-se com o cheiro denso e velho.
Japeth não se moveu.
Ela o ouvia farejando no ar.
Ele esperou um momento, como se duvidasse de si mesmo.
Por que ele não usa seu brilho? Ele me veria em um segundo, Sophie
pensou. Rhian podia acender o dedo, o que significa que Japeth também
deveria poder.
Talvez ele não tenha brilho no dedo, ela percebeu.
Mas por que o irmão dele tinha e Japeth não?
A Cobra xingou baixo. “Garota esperta. Deve ter ido embora antes que
chegássemos. Foi só o fedor que ficou para trás.” Os scims voltaram a se
fundir a Japeth, que estava visivelmente tenso. “O cofre... se ela chegou
primeiro...” Ele já estava avançando. Sophie conseguiu ver sua mão indo
para o traje, tirando algo de lá... um volume peludo... mexendo-se na
escuridão...
O que quer que fosse, estava vivo.
Ela voou para mais perto, para enxergar melhor. As mãos de Japeth, com
suas luvas de scims, cintilaram no escuro, acariciando a forma peluda, antes
que ele a soltasse no ar.
A criatura acendeu, em um azul elétrico, uma fosforescência no escuro,
como a Floresta Azul à meia-noite.
O brilho neon preencheu a câmara. A criatura brilhava mais forte que
uma tocha em uma mina, revelando as fileiras de portas de cofre mais à
frente. Sophie procurou se camuflar à parede, enquanto avaliava o animal
de pele manchada, cujo corpo parecia... uma chave.
A mesma chave que a Rainha de Jaunt Jolie havia dado a Japeth antes
que ele partisse para Putsi. A chave de que precisava para concluir o
primeiro teste de Arthur.
Cofre 41. Pertence aos reinos de Quatro Pontos, Sophie recordou. Jaunt
Jolie é um deles. A chave da rainha deve servir. A resposta do teste deve
estar lá dentro.
Fragmentos de lembranças retornaram: um pergaminho caído do céu... a
chegada do Cavaleiro Verde a Camelot... ele queria algo de Arthur... que
estava escondido onde as árvores feiticeiras crescem...
A chave perscrutou o corredor, conferindo os arredores. A parte de cima
era a cabeça da criatura, com um olho grande sem pálpebra de cada lado, no
lugar de um buraco. A haste era o focinho, cheio de dentes. A ponta era a
abertura da boca.
A chave se virou para seu novo mestre e piscou para ele.
“Bhanu Bhanu”, algaraviou.
Então voou pelo corredor, iluminando de passagem os números dourados
nas portas pretas, à esquerda e à direita, completamente fora de ordem – 28,
162, 43, 9, 210 –, até que virou uma esquina e desapareceu.
“Bhanu Bhanu”, a chave repetiu, como um sinal de retorno para que a
Cobra a encontrasse.
Japeth seguia o chamado da chave, enquanto Sophie o acompanhava de
uma distância segura, perdendo fuligem e tentando não tossir.
Ela queria matá-lo.
Queria assumir forma humana e arrancar cada scim de seu corpo.
No entanto...
O que Aggie faria?, Sophie pensou, espelhando-se na melhor amiga, que
estava em algum lugar na Floresta. Uma melhor amiga que ela havia
tentado matar no casamento com Japeth. Sophie se lembrou do horror nos
olhos de Agatha, ao perceber que a amiga estava sob o controle da Cobra,
que podiam manipulá-la para fazer com que machucasse as pessoas que
amava. Mas agora Sophie era livre. Tinha chegado até ali. Agatha ficaria
orgulhosa. O que ela me diria para fazer?
Siga-o, ela diria.
Siga o desgraçado até o cofre 41.
Deixe que ele encontre a resposta do primeiro teste.
Depois roube-a dele.
O que quer que houvesse no cofre, Sophie precisava pegar primeiro.
“Bhanu Bhanu”, a chave insistiu.
A borboleta continuava caçando a Cobra, seu coraçãozinho batendo
como se fossem dois. Virou para a esquerda e a direita, passando pelos
cofres – “Bhanu Bhanu”, “Bhanu Bhanu” –, adentrando as entranhas do
banco, antes de enfim alcançar a chave, que estava parada diante de uma
porta, com um número brilhando em azul.
41
A chave entrou na fechadura e abriu a porta, depois se colou ao teto para
iluminar o interior do cofre, como uma claraboia.
Japeth entrou na câmara com a borboleta em seu encalço. Ela se
escondeu atrás da porta e ficou vendo tudo pelas dobradiças.
Seus olhos saltaram.
Dentro da modesta câmera, quatro paredes de cobre refletiam o conteúdo
do cofre 41.
Não havia ouro, joias ou tesouros ali.
Só uma árvore.
Era uma bétula branca, enraizada no chão de pedra, com quatro galhos
finos e compridos e um tronco largo, marcado por talhos em preto. Havia
uma caixinha branca com o selo de Camelot pendurada em cada galho,
como se fossem enfeites de Natal.
Japeth passou os dedos por uma das caixinhas, procurando uma abertura.
Uma substância polvorenta se soltou, como se a caixa fosse feita de pó.
“Se eu fosse você, tomaria cuidado”, disse uma voz baixa e suave.
“Cinzas humanas são mais delicadas do que se imagina.”
Japeth recolheu a mão. Sophie ficou olhando para as quatro caixinhas
penduradas na árvore.
Cinzas humanas?
“E tem outra coisa”, disse a voz.
De repente, o traje mágico de Japeth se desfez, e seu exército de scims
foi ao chão, como se tivessem virado um jogo de tabuleiro. A Cobra ficou
nua, a não ser por uma faixa na cintura.
“Nada de magia nos cofres”, a voz concluiu.
Sophie se deu conta de que era a árvore quem falava, os talhos escuros
na casca formando seus olhos e sua boca.
“Do outro lado da porta, seus poderes voltarão, quaisquer que sejam
eles”, prosseguiu a árvore.
Sophie se afastou na hora. Suas asas estiveram muito próximas de
atravessar a soleira. Um centímetro a mais e estaria de volta à forma
humana, sem ter onde se esconder.
A árvore continuou se dirigindo à Cobra. “Se chegou até aqui, deve saber
que este cofre contém as cinzas de Sir Kay. Ou, oficialmente, Sir Japeth
Kay de Camelot, filho de Sir Ector de Camelot e irmão de criação do Rei
Arthur. Era desejo de Kay ser cremado, e era desejo de Arthur proteger as
cinzas do irmão. Ele as confiou aos líderes de Quatro Pontos, proprietários
deste cofre. Nenhum deles sabe que Sir Kay era o Cavaleiro Verde.
Ninguém sabe o que realmente aconteceu entre Arthur e o irmão. Mas você
sabe. Você sabe o que o Cavaleiro Verde queria em Camelot. Arthur queria
que seu herdeiro soubesse disso. Da história por trás da morte de Sir Kay.
Do desejo que levou a isso. Porque conhecimento é o primeiro passo rumo
ao verdadeiro poder. Só que o teste ainda não foi concluído. Você precisa
achar a resposta que veio buscar.”
A árvore inclinou o tronco na direção da Cobra. “Que ramo conterá a
resposta? Há quatro caixas, e apenas uma chance. O verdadeiro herdeiro de
Arthur saberá em seu sangue onde está a resposta. Escolha a caixa certa e o
conteúdo será seu. Escolha a caixa errada e...”
Uma centena de pontas de aço surgiram nas paredes, aproximando-se do
corpo pálido da Cobra de todas as direções e parando a um fio de cabelo de
distância.
A árvore olhava fixo para Japeth. “Escolha com sabedoria.”
Sem produzir nenhum som, as pontas retornaram às paredes.
Sophie viu Japeth se aproximar das caixinhas, inspecionando uma a uma
com seus olhos azuis e frios. O fato de que eram feitas de cinzas humanas
não parecia incomodá-lo nem um pouco, assim como o frio dentro do cofre.
Seu corpo magro se curvava para a frente conforme ele se movia entre os
galhos.
O que está procurando?, Sophie se perguntou. O que o Cavaleiro Verde
queria?
Não importava.
O que quer que fosse, ela não podia deixar que Japeth conseguisse.
Presumindo que ele escolhesse a caixa certa, claro.
Porque se não escolhesse, bem... o problema estaria resolvido.
No momento, a segunda opção parecia mais provável. A Cobra não
parecia estar mais próxima de escolher uma caixa, porque as quatro eram
idênticas em todos os aspectos...
Então ele parou.
A segunda caixa.
Algo nela o fez parar.
A Cobra se aproximou, com o nariz nas cinzas.
Agora Sophie via: o brilho verde e sutil que pulsava no centro sempre
que Japeth chegava mais perto.
“Ah, isso é inesperado”, disse a árvore, com tranquilidade. “Você não é
ligado a Arthur, e sim ao Cavaleiro Verde...”
Os dedos compridos de Arthur se fecharam em torno da caixa,
derramando cinzas, fazendo o brilho verde pulsar mais forte e mais claro.
A árvore buscou algo nos olhos da Cobra. “Muito inesperado. Então
quem é você?”
Japeth esmagou a caixa, e as cinzas se espalharam no ar.
As outras três caixas entraram em combustão também, enchendo o cofre
de pó.
No galho escolhido pela Cobra havia um chumaço de pelos brancos,
enrolados dentro de uma pérola transparente e brilhante, do tamanho de
uma moeda.
A árvore pareceu franzir a testa. “Sua escolha foi acertada. A barba de
Merlin é sua”, ela disse. “Ao engolir a pérola, o primeiro teste estará
concluído. Então será informado do segundo.”
Japeth sorriu. O aço duro retornou a seus olhos, com qualquer dúvida
quanto ao resultado do torneio agora eliminada. Ele estendeu a mão para a
pérola...
CRACK!
A Cobra se virou e viu a porta do cofre ser arrancada das dobradiças e
lançada lá dentro. Japeth quase foi esmagado pelo material pesado, mas
conseguiu saltar a tempo. Assustado, ele saiu para o corredor.
Não havia ninguém ali.
A Cobra voltou para a árvore.
A barba de Merlin não estava mais lá.
A pérola havia sumido.
A árvore parecia sorrir ligeiramente.
Por um momento, Japeth ficou boquiaberto, como se não estivesse
entendendo.
Então viu.
Nas paredes de cobre do cofre.
O reflexo distorcido da pele de uma garota.
Ele se virou.
Sophie saía do cofre, com o vestido branco de Evelyn Sader
magicamente se adequando a seu corpo.
E a pérola na mão.
A Bruxa e a Cobra se olharam através da soleira da porta.
Ela olhou para o corpo despido dele.
“O imperador realmente está nu”, comentou.
Scims voaram para o corpo de Japeth assim que ele passou para a porta,
e atacaram Sophie em seguida.
Mas ela já estava bem à frente. Embrenhava-se ainda mais pelos cofres e
virava sempre que podia, as enguias em seu encalço. Ela sabia que aquele
labirinto precisava ter um fim, por isso dobrou esquinas e desviou de mais e
mais scims até o barulho dos ataques se reduzir a um zumbido suave,
depois um guincho solitário, quando restava uma última enguia, e então o
silêncio e o som sufocado da própria respiração. Sophie segurou a pérola
com a barba ainda mais firme na palma da mão escorregadia. Ela iria se
esconder até encontrar uma maneira de fugir e encontrar Agatha. Ficaria ali
por dias, semanas, o tempo necessário. A salvação de Tedros estava em suas
mãos. Ela ganharia o primeiro teste por ele. Seria mais esperta que o
inimigo. Enquanto tivesse a barba de Merlin, o príncipe estava à frente na
disputa. Sophie só precisava esperar. O alívio a atingiu com força.
Com tanta força que ela nem viu o que estava vindo.
Um único golpe forte na nuca.
Ela arfou, mais por conta da ironia que de dor.
Tinha sido emboscada no escuro.
Uma bruxa morta no lugar da Cobra, caindo, caindo, caída antes mesmo
de chegar ao chão.
W 12 w
SOPHIE
De volta ao início
Orgulho e princesa
“Tem certeza de que sua namorada não é meio doida?”, perguntou Hort, o
homem-lobo, andando de um lado para o outro da floresta escura.
Tedros o ignorou. Estava tentando fazer com que Merlin dormisse.
“Olha só as evidências”, Hort continuou falando. “Primeiro ela diz que
Robin Hood lhe deixou uma mensagem no pó mágico do Flecha. Uma
mensagem que ninguém mais viu. Então ela diz que Merlin apareceu para
ela e mandou que fosse para Putsi. Tudo isso parece bem maluco aos meus
olhos.”
Através do mato, Tedros viu a árvore feiticeira à distância, erguendo-se
alto sobre a terra. Algo sacudiu seus galhos, mas eles estavam longe demais
para ver o que era. Putsi era uma cidade bem armada: o choque de uma
árvore feiticeira irrompendo do banco atrairia imediatamente os guardas do
local e os lacaios da imperatriz.
O estômago de Tedros se revirava, enquanto o bebê agarrava sua camisa.
Ele não devia ter deixado Agatha ir sozinha.
“Você está preocupado que ela possa estar errada? Eu estou preocupado
que possa estar certa”, o príncipe retrucou, tão focado na árvore que nem
notou Merlin escapando de seus braços. “E se for verdade que a resposta
sempre esteve em Putsi?”
“Então reze para que a encontremos antes da Cobra”, Hort respondeu,
resgatando Merlin antes que caísse. “Quem vencer o primeiro teste vai sair
na frente. E se a Cobra se distanciar demais...”
O vento castigou as árvores, concluindo o pensamento de Hort por ele.
Tedros ficou vendo o furão ninar Merlin em seus pelos escuros. Os olhos do
bebê começavam a se fechar. Como pude ser tão idiota?, Tedros pensou.
Com certeza o pai não poderia esperar que ele rastreasse o feiticeiro e
arrancasse a barba do velho. Em especial considerando que Arthur e Merlin
haviam seguido caminhos separados. Até onde Arthur sabia, Merlin poderia
estar morto fazia tempo. No entanto, Tedros havia feito o que sempre fazia:
presumido coisas, sem pensar direito.
Agatha estava certa.
A barba estava em Putsi.
E Tedros só soubera daquilo tarde demais.
O que significava que o primeiro teste não dependia mais dele.
Dependia dela.
De Agatha, que estava lá agora mesmo, travando a batalha por Tedros.
Completamente sozinha.
Enquanto Tedros ficava ali, inquieto, assim como havia sido em Camelot,
quando Agatha assumira o lugar dele pela primeira vez.
Muito antes de haver um Rei Rhian ou um Rei Japeth, um agressor
mascarado havia desafiado Tedros a lutar contra ele. Mas quem respondera
ao chamado fora Agatha, e ele concordara em ficar para trás.
O erro que havia dado início a tudo.
Mas ele aprendera com aquilo, Tedros pensou, nervoso. Era uma pessoa
diferente agora. Estava pronto para ser rei. Só precisava que sua princesa se
mantivesse fora do caminho...
O sangue de Tedros esquentou. O anel do pai pareceu frio em sua mão.
O torneio deveria ser isso, não? Uma oportunidade de Tedros se provar. A
própria Agatha havia admitido, na pousada. Então por que ele estava à toa
ali, como uma princesa, esperando por ela, que ia atrás da resposta do
primeiro teste?
Tedros havia tentado impedi-la. Na curta viagem desde Bloodbrook, ele
presumira que lutariam contra a Cobra juntos. Que encontrariam a barba
perdida de Merlin como uma equipe. Mas, quando chegaram aos limites da
floresta e a árvore feiticeira surgiu em seu campo de visão, Agatha ordenara
que ele e Hort ficassem ali.
“Como assim? A Cobra está lá!”, Tedros exclamou, chocado.
“Se Japeth matar você agora e pegar seu anel, todos morreremos”, disse
Agatha, descendo do lombo de Hort. “Mantenha Merlin a salvo. Volto logo.”
“Não seja tola”, Tedros disse, indo atrás dela. “Você não vai sozinha, de
jeito nenhum...”
Agatha se virou para ele. “Não estarei sozinha.”
O modo como ela disse aquilo.
De maneira tão cortante e clara que, quando ele se recuperou, ela já havia
se perdido na escuridão.
“Não estarei sozinha.”
Não estarei sozinha?
Então ele se deu conta.
O grito.
O grito que ecoara quando a árvore feiticeira irrompeu da terra... O grito
que fez os olhos de Agatha brilharem antes que ela assumisse o controle dos
planos deles.
Não estarei sozinha.
O brilho em seus olhos.
A insinuação de um sorriso.
Agatha só podia estar falando de uma pessoa.
Por isso ela acelerara tanto Hort no caminho até ali.
Por isso ela havia deixado o príncipe e o homem-lobo para trás.
Agatha estava atrás de mais do que a barba de Merlin.
Agatha estava atrás de seu próprio graal.
Sophie.
Sophie, que ela ouvira gritar por ajuda, lá longe.
Sophie, a bruxa que estava sempre entre Tedros e sua princesa.
As entranhas dele se reviraram.
Para onde quer que Sophie fosse, o Mal a seguia.
Ele tirou Sininho do bolso e a sacudiu até que acordasse. “Siga Agatha e a
mantenha a salvo. Se estiver em perigo, mande um sinal. Compreendido?”
Sininho bocejou e retiniu de volta.
“Não, não vou te dar um beijo por isso”, Tedros respondeu.
Sininho voltou a falar.
“Não ligo se Peter beijou você”, disse o príncipe. “Agora vá. Antes que
eu te dê de comida para Hort.”
Resmungando, a fada voou atrás da princesa de Tedros.
E fora assim que ele ficara ali: impotente e frustrado, com um bebê no
colo, enquanto sua princesa ia atrás da melhor amiga dela. De novo.
“Agora você sabe como me senti durante todos os anos que passei atrás
de Sophie”, uma voz se queixou.
O príncipe olhou para Hort.
“Sempre em segundo lugar”, o homem-lobo concluiu, suspirando.
Tedros inspirou fundo.
Hort estava certo.
Aquele era O conto de Sophie e Agatha.
Sempre seria.
Até que ele criasse coragem para viver sua própria história.
Uma luz brilhou na escuridão, uma labareda dourada.
Tedros e Hort se viraram.
Chamas vinham em sua direção.
Por um segundo, Tedros achou que estavam sendo atacados.
Então viu que as chamas tinham um rosto.
Era uma fada, com as asas pegando fogo.
“Sininho?”, ele conseguiu dizer.
Queimando, ela só conseguiu soltar um gritinho.
Uma palavra que abalou a alma de Tedros.
“Cobra.”
A labareda a engoliu.
Ela se foi.
Ele estava contaminado de raiva, o que o impedia de bolar um plano.
Enquanto avançava na direção da árvore feiticeira, com as botas
escorregando pela floresta, Tedros só conseguia pensar em seu verdadeiro
amor, frente a frente com um inimigo que queimava fadas vivas.
Era o que o Mal fazia. Usava suas fraquezas para te humilhar, atacava
diante de qualquer demonstração de clemência. Sempre que Tedros hesitava,
a Cobra estava lá para puni-lo. Japeth era mais que seu inimigo mortal. Era
sua sombra, como o Cavaleiro Verde fora a do Rei Arthur, uma maldição que
estava com ele o tempo todo, mas para a qual Tedros estava totalmente
despreparado.
Hort tinha tentado ir junto, mas Tedros ordenara que ficasse para proteger
Merlin. (O príncipe não tocou no nome de Sophie. Se o furão soubesse de
sua possível presença, levaria o bebê para a batalha.) Sem o homem-lobo,
Tedros não tinha nenhuma arma ou escudo contra alguém que ainda não
sabia como matar. Ele chutou um pedaço de pau para cima e o agarrou,
depois acendeu o dedo e o transformou em uma estaca.
Logo, ouviu os sons da guerra: gritos humanos e animais, aço se
chocando, os gemidos da árvore sitiada. Tedros saiu correndo da floresta,
dando em campo aberto. As ruínas do banco estavam cobertas de folhas
brancas como fantasmas.
Conforme se aproximou, ele viu o sangue respingado.
Gansos mortos.
Contou doze.
Então deparou com o corpo de um guarda do banco, com os membros
retorcidos, como se tivesse caído de uma grande altura.
Quanto mais perto Tedros chegava da árvore, as silhuetas nos galhos
ficavam mais claras. Ele viu duas pérolas brilhantes tremeluzindo no topo,
uma dourada e a outra rosa-choque.
Então parou na hora.
No alto da árvore feiticeira, Agatha e Sophie se agarravam aos galhos
enquanto se defendiam de uma tempestade de scims, os dedos acesos de
ambas pulsando na noite. Daquela distância, Tedros não conseguia ver o
rosto delas ou qualquer sinal de Japeth, mas ouviu os gritos – “Cuidado,
Sophie!”, “Atrás de você, Aggie!” – antes que ambas desaparecessem atrás
das folhas brancas. Conforme as enguias atacavam as folhas, os gritos de
Agatha e Sophie ficavam mais altos, o que fez o príncipe enfiar a estaca de
madeira na calça e começar a subir.
Só então ele viu a guerra que se desfraldava no caminho.
Gansos e guardas lotavam os galhos tentando chegar às garotas, mas eram
impedidos por conhecidos de Tedros: Willam... Bogden... Robin Hood?
Além de uma jovem de cabelo castanho, que parecia... Betty? Eles
costumavam brincar juntos quando crianças. O que ela estava fazendo ali?
As perguntas podiam esperar.
No momento, seus amigos precisavam de ajuda.
Tedros entrou na briga, tirando gansos da frente com uma cabeçada antes
de se lançar sobre a primeira guarda que encontrou no caminho. Ela investiu
contra ele com um grito e rasgou sua camisa, depois enlaçou o pescoço dele
com as pernas e apertou forte. Mais acima, Bogden também lutava,
imprensado contra um galho por dois guardas que o socavam, enquanto ele
se debatia. A guarda apertou ainda mais o pescoço de Tedros. Ele tentou
respirar, o que só piorou as coisas. Ela o estrangulava com os dentes
arreganhados, certamente pensando na recompensa que conseguiria pelo
príncipe morto. Tedros não tinha o que fazer. Príncipes não batiam em
mulheres. Eram as regras. Seu corpo relaxou e ele se engasgou com a
própria saliva. Sua mente começou a nublar.
Tedros cerrou os dentes.
Os tempos mudaram.
Ele deu um chute na cara da guarda, depois outro na orelha, e bateu sua
cabeça contra um galho. Tonta, a mulher o atacou de novo, mas foram as
botas dele que se enroscaram no pescoço dela antes que Tedros lançasse o
corpo para cima, lançando-a de cabeça contra os guardas que acossavam
Bogden. Eles caíram para trás, e em seguida os três despencaram da árvore.
Respirando com dificuldade, Tedros se segurou a Bogden como se ele fosse
uma boia, e o jovem ensanguentado piscou para o príncipe algumas vezes
antes que seus olhos focassem em um ponto mais adiante. “Willam!”
Tedros se virou para o garoto ruivo mais acima, encurralado contra um
galho enquanto gansos atacavam.
“Não... gosto... de gansos...”, Willam conseguiu dizer, protegendo o rosto.
Tedros se lançou para cima no mesmo instante, acertando os gansos com
os punhos e afastando-os de Willam. Eles se voltaram contra o príncipe,
atacando-o com asas e bicos, acabando com o que restava de sua camisa, até
que Bogden surgiu ao seu lado e os empurrou para fora do caminho. Tedros
tentava fazer o Bem. Matar animais era coisa de vilões. Mas aqueles gansos
não parariam até que estivessem mortos. Seus bicos tiravam sangue do peito
de Tedros, chegando cada vez mais perto de seu coração. Ele se esforçava
para se defender, ainda que não conseguisse enxergar direito, por causa das
penas em sua cara, lutando inutilmente com sua estaca de madeira. Através
da confusão, vislumbrou mais gansos atacando Willam, que começava a
perder as forças. Ao lado dele, um pássaro prendia o pescoço de Bogden,
prestes a cravar o bico em seu crânio.
“Socorro!”, Bogden gritou.
Tedros arreganhou os dentes.
Era o fim do cavalheirismo.
Ele passou pelo bloqueio de pássaros, partiu para cima do ganso que
atacava Bogden e, com um rosnado primitivo, usou sua estaca contra ele,
separando a cabeça do corpo. Tedros se virou, preparado para matar outros,
mas os gansos estavam boquiabertos, e saíram voando na noite.
Willam estava caído em um galho, com ferimentos nos braços e nas
pernas, seu rosto estava uma confusão ensanguentada.
Tedros segurou o corpo magro de Willam e levou a cabeça ao peito do
garoto, tentando ouvir seu coração fraco.
Bogden segurou Tedros. “Ele está...?”
“Me deixem”, Willam conseguiu dizer. “Salvem Agatha.”
Tedros olhou para o jovem ruivo e se lembrou de um garoto muito
parecido com ele, muito tempo atrás, agarrado a uma árvore. Não fora capaz
de salvar Tristan naquele dia. Aric se certificara daquilo. Mas a Pena dá uma
segunda chance aos melhores homens.
“Leve Willam para a floresta”, Tedros ordenou a Bogden. “Hort está lá.
Diga a ele para levar vocês dois à escola. Os professores vão curá-lo.”
Bogden olhou para Tedros, depois para o bando de guardas que vinha na
direção deles.
“Agora!”, Tedros insistiu.
Bogden colocou o corpo de Willam sobre o ombro e começou a descer a
árvore com ele.
“Aggie, cuidado!”, Sophie gritou lá em cima.
Tedros apertou os olhos para o alto e conseguiu ver Agatha caindo e
aterrissando pesadamente alguns galhos abaixo, escondida pelas folhas. Um
bando de scims acorreu no mesmo instante onde ela havia caído, seus gritos
monstruosos ressonavam.
“Aggie, você está bem?”, Sophie gritou.
Enquanto os guardas se aproximavam, Tedros aguardava pela resposta de
Agatha. Ou por qualquer sinal de seu dedo aceso. Algo que indicasse que
estava viva.
Nada veio.
Com o coração dilacerado, ele se transformou em um Leão à caça.
Ninguém que entrasse em seu caminho tinha chance. Tedros empurrava
os guardas da frente ou os agarrava pela camisa e cravava a adaga em suas
pernas ou mãos para desarmá-los, depois os arremessava da árvore. Já estava
a uma altura mortal, e continuava escalando para tentar chegar aonde Agatha
havia caído. De repente, ele vislumbrou movimento. Robin e Betty se
digladiavam com uma sombra equilibrada em um membro, segurando uma
espada dourada com as duas mãos.
Kei.
Bettina o atingiu com um galho comprido, tentando derrubá-lo, e Robin o
agarrou por trás, tentando roubar sua espada. Betty notou Tedros mais
abaixo. “Me ajude a subir!”, ele sussurrou.
“Não! Precisamos que fique a salvo!”, Betty sussurrou de volta.
“Preciso que Agatha fique a salvo”, Tedros retrucou, olhando para ela
como quando eram crianças e brigavam.
O olhar dele fez com que Bettina vacilasse, até que ela acabou baixando
um galho na direção dele.
Do outro lado, Robin prendia Kei em um mata-leão.
“Ouça...”, Kei tentou dizer, lutando contra Robin, que tirou a espada do
capitão e apontou a lâmina dourada para ele. Kei recuou e tropeçou.
“Agatha... Temos que falar de Agatha...”, Kei insistiu.
Tedros saltou do galho de Betty e aterrissou na frente de Robin,
imprensando Kei contra o tronco. Antes que o capitão pudesse falar, as mãos
de Tedros já estavam no pescoço dele. “O que tem Agatha?” Ele pôs ainda
mais força nos dedos.
Algo nos olhos de Kei fez o príncipe parar. Ele já tinha visto aquilo antes.
Na noite em que o pegara enterrando Rhian. Era um olhar que dizia que, não
importava o lado pelo qual Kei lutasse, naquele momento estava do lado
dele.
“Agatha tem a resposta”, Kei respondeu, arfando. “Eu vi, na mão dela. A
pérola com a barba. Engula antes de Japeth. Assim vai passar ao segundo
teste.”
Tedros ficou sem fala.
“Ele é um monstro”, Kei disse. “Sempre foi, desde a escola. Matou
Rhian. Meu melhor amigo. O verdadeiro rei. Foi por isso que queimei o
mapa. É por isso que venho protegendo vocês. Fingi ser leal àquela Cobra
pelo máximo de tempo que pude. Para poder me vingar de Rhian quando
tivesse a chance.” Ele olhou para o alto da árvore. “Dei uma punhalada nele
antes que conseguisse pegar a barba de Agatha. Antes que as matasse. Teria
acabado com ele se não tivesse fugido.” Kei se virou para Tedros. “Vá.
Depressa. Encontre a pérola. Vou ajudar vocês a...”
Uma espada dourada o empalou.
Kei não produziu nenhum som. Seu rosto ficou da cor das nuvens. Então
ele caiu da árvore, revelando Betty logo atrás...
...refém da Cobra.
Os olhos de Japeth permaneciam frios. Sangue brilhava em seu torso, no
traje rasgado, que se transformava em scims pretos. Uma mão segurava o
pescoço de Betty. A outra segurava a espada de Kei, manchada com o
sangue de seu dono.
A espada, Tedros pensou.
Estava com Robin pouco antes.
O que significava...
Ele se virou.
Robin estava dependurado em um galho, com scims enrolados no
pescoço, o rosto roxo, a segundos da morte.
“Vamos jogar meu jogo preferido”, Japeth disse, ainda segurando Betty.
“Você só pode salvar um deles.”
Tedros ficou tenso.
Não tinha tempo para pensar.
Ele correu para Robin e soltou seu pescoço, que caiu para um galho mais
baixo, mal conseguindo se segurar a tempo. Então Tedros já correu para
Bettina, estendendo uma mão para ela...
Mas Japeth a segurou mais perto.
“Regras são regras”, ele disse.
Então a atirou da árvore.
“Não!”, Tedros gritou.
Bettina caiu de costas, agitando os braços e gritando.
A escuridão a engoliu.
Tedros congelou no meio de um passo.
Uma amiga morta, de uma hora para a outra.
Como o xerife, Lancelot e Dovey antes dela.
Outra alma valiosa que ele não conseguira salvar.
Devagar, Tedros olhou para a Cobra, do outro lado do galho.
“Agora você sabe qual é a sensação”, Japeth disse. “De tirarem de você
alguém que ama.”
“Diz a pessoa que matou o próprio irmão”, o príncipe retrucou, furioso.
“Rhian mentiu para mim. Quebrou um juramento”, Japeth respondeu, sem
se abalar. “Onde você vê Mal, eu vejo justiça. Você acha que é o herói deste
conto. Acha que é o verdadeiro rei. Mas está enganado. Só eu sei a verdade.”
“A verdade de que você é um mentiroso? De que você é uma fraude?”,
Tedros soltou. Podia ouvir Robin mais abaixo, esforçando-se para recuperar
o fôlego. “Você tem o sangue de Rhian, o que significa que é filho do meu
pai. Só que não é meu irmão. Como você mesmo disse.”
“Ainda assim, o torneio é entre nós dois. O torneio do seu pai”, a Cobra
disse, com os olhos vívidos. “Então quem sou eu?”
Tedros não tinha resposta para aquilo. Continuava perdido.
“Talvez a pergunta não seja essa”, falou Japeth, olhando para ele. “Talvez
devêssemos estar nos perguntando quem é você?”
As palavras fizeram Tedros gelar por dentro.
Ele sempre presumira que seu pai queria que assumisse o trono.
Por isso havia lhe deixado o anel.
No entanto, seu pai também havia dado uma chance à Cobra. Um
monstro. Um assassino.
Por quê?
“Sophie?”, a voz de Agatha chamou, fraca.
“Cadê você?”, Sophie gritou de volta.
Tedros voltou a se concentrar no que acontecia lá em cima. Em Agatha.
Ela tinha a pérola. Ele precisava chegar lá. Se vencesse o primeiro teste,
poderia passar ao segundo.
Vá até Agatha, Tedros disse a si mesmo.
No entanto...
Seus olhos retornaram a Japeth.
Mate a Cobra agora e será o fim dos testes.
Japeth pareceu ler seus pensamentos. Suas pupilas cintilaram no escuro.
Olhou para o anel de Tedros.
“Talvez você seja mesmo meu irmão”, a Cobra disse. “Porque é tão tolo
quanto Rhian.”
Tedros se lançou contra ele, do outro lado do galho.
Japeth atacou também, os scims se desprendendo de seu traje.
Robin saltou do galho abaixo, aterrissando na frente de Tedros, como um
escudo.
“Vá até Agatha e pegue a pérola”, ele disse ao príncipe. “Eu o seguro.”
Tedros tentou tirá-lo da frente.
“A princesa é mais importante que o seu orgulho!”, Robin vociferou para
ele.
As palavras atingiram Tedros com tudo.
Robin estava certo.
Se a Cobra o matasse, Agatha seria a próxima.
Nem mesmo seu arqui-inimigo valia aquilo.
Com um salto, ele já tinha deixado Robin e estava no próximo galho. O
príncipe olhou para trás – scims atacavam Robin enquanto ele corria na
direção da Cobra –, então mordeu os lábios e seguiu em frente, dizendo a si
mesmo que Robin Hood se virava melhor que ninguém nas árvores e
conseguiria sobreviver. A Cobra não mataria mais outro amigo seu... não
naquele dia...
Tedros foi subindo pela árvore feiticeira, enquanto o som de Robin e
Japeth ficava mais distante. Ele estava sozinho agora, sem gansos, sem
guardas, sem inimigos a enfrentar. De onde estava, vislumbrava os aldeões,
fora de suas casas, contemplando a árvore feiticeira que havia crescido sobre
o reino, como o pé de feijão de João. Os guardas de Putsi logo estariam ali,
assim como outros que eram leais a “Rhian”, mas Tedros já estava quase no
topo, as mãos machucadas e o corpo dolorido, mas motivado por um nome
entoado em silêncio: Agatha, Agatha, Agatha. Muitos príncipes já haviam
escalado torres para resgatar uma princesa, mas era bastante apropriado que
a de Tedros exigisse que ele chegasse ao topo do mundo. Apesar de tudo o
que fora perdido, ele sentia certa estabilidade, uma harmonia entre a vontade
e o destino, o Homem e a Pena. Fora Agatha que o deixara para trás,
achando que poderia salvá-lo. Só que agora seria ele quem a salvaria. Enfim
ele era o protagonista da história. Finalmente, era o príncipe. Tedros alçou o
corpo para cima...
E parou em um galho, com os olhos arregalados.
“Teddy?”, uma garota loira disse, baixo.
Do outro lado do galho, Sophie segurava Agatha.
A princesa de Tedros estava coberta de folhas, com a respiração rasa. Seu
rosto e seus braços estavam cortados. Sua perna estava quebrada, torcida no
joelho. No entanto, mesmo em meio à dor, Agatha abriu um sorriso radiante
ao ver seu príncipe.
“Você veio”, ela falou.
“Diz a garota que mandou que eu não viesse”, Tedros resmungou,
colocando-se ao lado dela. Ele a tirou de Sophie e abraçou junto ao peito,
enchendo-a de beijos. “Está machucada. É o que acontece quando prefere
confiar nela, em vez de mim. É o que acontece quando luta minhas
batalhas.”
“No entanto, ela tem a resposta do seu teste”, Sophie disse. “A resposta
que eu encontrei. Nós duas nos saímos muito bem sem você.”
Tedros cerrou os dentes. “Onde está?”
Agatha procurou no vestido. “Kei nos salvou. Ele nos protegeu de...”
“Eu sei”, Tedros disse.
Agatha olhou para ele. Para as feridas em seu peito. Para as marcas e os
hematomas em seu rosto e pescoço.
“Onde está Robin?”, Sophie perguntou. “E Betty, Bogden e Willam?”
“Precisamos levar você para a escola”, Tedros disse a Agatha. “Yuba e os
professores podem consertar sua perna. Eu te levo lá para baixo.”
“Não há tempo, Tedros. Eu fico com Sophie”, Agatha disse. “Você tem
que começar o segundo teste.”
Tedros encostou o nariz no dela. “Não vou deixar você aqui.”
A pérola cintilante estava na mão de Agatha. “Só isso importa. Vencer a
corrida. Retomar a Floresta. Pelo Bem.”
Tedros avaliou a pequena esfera, que parecia congelada e continha a
barba de Merlin.
“Engula, Tedros”, Agatha ordenou. “Descubra qual é o próximo teste.”
“O que quer que seja, pode esperar até você estar a salvo”, Tedros
insistiu.
“Não, não pode”, Sophie retrucou. “Engula agora. Lute depois.”
Ela está certa, Tedros admitiu, ainda que não tivesse intenção de deixar
sua princesa para trás. Ele respirou fundo, focado na pérola na mão de
Agatha. Então levou a boca a ela.
O galho foi chacoalhado com força
Em uma fração de segundo, a pérola escapou dos dedos de Agatha e dos
lábios de Tedros.
Assustados, o príncipe, a princesa e Sophie assistiram à barba de Merlin
cair no galho abaixo e se aninhar entre as folhas.
A árvore continuou sacudindo, a pérola tremulando perigosamente e os
galhos se curvando.
Alguém estava vindo.
Tedros apontou o dedo aceso para a escuridão.
“Robin?”
Através das folhas, os contornos de um rosto se tornaram visíveis.
Agatha ficou rígida nos braços de Tedros. Ao lado dele, Sophie parou de
respirar.
Japeth se aproximava, esgueirando-se na direção do galho deles.
Com as mãos cobertas de sangue.
O sangue de Robin, pensou Tedros, gelando.
O príncipe olhou para a pérola, aninhada entre as folhas.
Japeth notou o olhar.
E viu a esfera também.
O silêncio pairou entre o príncipe e a Cobra.
Ambos saltaram.
Bateram um contra o outro, jogando a pérola para cima. Scims
dispararam do traje de Japeth para pegá-la.
Sophie agarrou a barba de Merlin antes, com o corpo equilibrado a um
galho, que então se quebrou, fazendo-a cair três ramos abaixo. As enguias a
atacaram no mesmo instante, e Japeth foi em sua direção.
“Engole, Tedros!”, ela gritou, jogando a pérola na direção do príncipe.
Ele avançou, mas perdeu a esfera de vista em meio ao brilho de Sophie.
Ela bateu em seu crânio e voltou para o céu noturno.
Tedros, Japeth e Sophie mergulharam sobre ela, vindo cada um de uma
direção, tendo cada um uma chance.
Mas alguém agiu mais depressa, os membros cobertos de folhas brancas,
caindo na noite como um cisne em pedaços.
Agatha.
De boca aberta.
Tedros arfou.
Ela engoliu a pérola.
Agatha caiu nos braços de Tedros, e os dois bateram com força contra o
tronco da árvore. Sophie e a Cobra se encontravam alguns galhos acima.
Por um momento, tudo ficou em silêncio.
Todos os olhos correram para Agatha, que se contorcia de dor.
Ela tinha vencido o primeiro teste.
O teste de Tedros.
“Aggie?”, Sophie disse, baixo. “O que você fez?”
Tedros e Agatha olharam um para o outro, como se o conto tivesse
sofrido uma reviravolta ao mesmo tempo inevitável e inesperada.
Então Agatha se engasgou, convulsionando, e suas bochechas coraram,
como se algo fermentasse de dentro dela. A princesa abriu os lábios e soltou
uma poeira prateada que se ergueu na escuridão, transformando-se em um
fantasma de rosto familiar.
O Rei Arthur olhou para Agatha, na árvore feiticeira.
Uma reviravolta na história...
Dois disputam minha coroa,
E você não é um deles.
É amiga?
Ou inimiga?
Ambas podem derrubar um rei.
Você interferiu na busca
E por isso deve morrer.
Este é o segundo teste.
Quem a matar saberá do terceiro.
O Rei Arthur desapareceu.
Agatha e Tedros se viraram um para o outro.
Então começaram a flutuar, assim como Sophie. Garras de stymph os
pegaram, resgatando-os na noite e seguindo a oeste, a comando de Ravan,
Vex, Mona e outros estudantes de quarto ano que estavam montados nos
pássaros ossudos.
Chocado, Tedros olhou para a árvore lá atrás. Japeth se mantinha imóvel
contra as folhas, como uma sombra, observando o príncipe sumir em meio às
nuvens, com um sorriso sombrio no rosto.
O próximo teste estava ganho antes mesmo de começar.
W 14 w
AGATHA
Clareira
Agatha olhou em volta no cartão. A cama do meio estava desfeita. Nela,
havia uma tigela de salada de pepino e uma cesta de cremes e poções.
Agatha sentia o cheiro da nuvem de lavanda deixada para trás. Havia um
livro na mesa de cabeceira, Curas para a magia negra, nível 2, aberto a
uma página que ensinava a consertar membros quebrados.
Ela afastou o lençol, o que deixou à mostra sua perna direita, que
algumas horas antes estivera toda estilhaçada.
Mas fora consertada.
Agatha se levantou, pondo o peso com cuidado na perna.
Além de uma dor interna ao osso um pouco incômoda, parecia realmente
curada.
A última coisa de que se lembrava era de estar deitada em Sophie, a
bordo de um stymph, enquanto sua melhor amiga sussurrava: “Está tudo
bem, Aggie. Vai ficar tudo bem”. Ela mesma não conseguira dizer nada, em
choque. Devia ter desmaiado ou pegado no sono depois. Não se lembrava
da chegada à escola ou de ter seguido para o quarto. Com certeza não
recordava que sua perna tivesse sido alvo de bruxaria.
Agatha respirou fundo. Estava viva. Conseguia andar. Era hora de
encarar o que vinha pela frente. Mas ela não podia. Em vez disso, comeu o
que Sophie havia lhe levado e se demorou vendo o nascer do sol violeta e
lambendo todo o açúcar do dedo. Agatha encontrou um uniforme de garota
Sempre no guarda-roupa e foi para o banheiro mais adiante no corredor. Ela
tirou o vestido rasgado e imundo e entrou no banho. Quando a água
escaldante atingiu sua pele, Agatha se perdeu em meio ao prazer e ao
silêncio. Fingiu que podia se esconder ali, bloqueando o mundo exterior,
como havia feito no cemitério, muito tempo antes.
Então o medo veio, trazendo o pânico e o arrependimento, sentimentos
que ela vinha tentando reprimir.
Aquele tempo todo, eles vinham lutando pelo Storian.
Lutando pela Pena e pelo destino de seus contos.
Do conto de Tedros, acima de tudo.
A história do garoto que tentava se provar rei.
Mas ela havia se apossado daquela história.
Ela a engolira por inteiro, como uma baleia devorando o mar.
Queria poder dizer que fora um acidente.
Mas não fora.
Agatha vira uma saída e aproveitara, perdendo de vista quem estava
sendo testado.
E agora havia um preço a pagar.
Para que Tedros se tornasse rei, ela tinha que morrer.
E morrer não bastava: ele tinha que matá-la.
Sua pele toda se arrepiou, como se a água tivesse ficado fria.
Para que seu verdadeiro amor derrotasse Japeth e permanecesse vivo,
para que todos os amigos dela permanecessem vivos, Agatha precisava
abrir mão da própria vida.
Era o mesmo sacrifício que a mãe fizera para salvá-la.
Com as palmas suadas e sentindo náuseas, ela se blindou com o
uniforme cor-de-rosa, a cor pútrida compensada pela ilusão de que tinha
voltado a ser apenas uma aluna comum de primeiro ano, prestes a ir para a
aula. Só que ela não encontrou nenhum outro aluno no corredor. Ou
professores, fadas, lobos. Só uma ninfa solitária, varrendo pó de doce que
se desprendera das paredes do Refúgio de João e Maria, pilhas delicadas de
restos de balas de goma e chicletes sobre as quais Agatha pisou ao passar.
No passado, ela fora a vilã de um conto de fadas. A escolha certa para a
Escola do Mal, enquanto Sophie estava destinada para o Bem. Então
ocorrera o Grande Equívoco. As amigas foram colocadas nas escolas
erradas. Só que não era um equívoco, a Pena garantira. Agatha era a
princesa. Sophie era a bruxa.
Só que agora Agatha tinha passado para o Mal.
Era a bruxa que estragava a história do príncipe.
E o mais estranho era que aquilo não parecia surpresa. Era como se ela
nunca tivesse acreditado realmente que fosse uma princesa. Não como a
Professora Dovey acreditava, insistindo que ela era cem por cento do Bem.
Não como os outros acreditavam, ao esperar que ela sempre fizesse a coisa
certa. No fundo, Agatha nunca se sentira tão do Bem quanto as pessoas
achavam que era. Agora, a verdade havia sido revelada, para todos verem.
O Grande Equívoco fora real: no fim das contas, ela pertencia ao Mal.
Foi só quando Agatha já estava na metade do caminho dos passadiços de
vidro, ainda pensando na antiga reitora, que algo lhe ocorreu. A visão que a
pérola proporcionara... o enigma que Arthur havia escondido nela... E se
descobrisse do que se tratava? A ligação entre a Cobra e o Cavaleiro Verde,
entre os dois Japeths e Evelyn Sader. Talvez assim ela pudesse expor a
Cobra! Talvez pudesse consertar tudo!
Seus ombros caíram, e a esperança foi embora tão rápido quanto havia
chegado.
Não importava quem Japeth era.
Não quando por culpa dela seu príncipe enfrentava um teste impossível.
Matar sua princesa ou entregar o trono à Cobra.
Era a armadilha em que ela o havia feito cair.
Tedros a protegeria, claro.
Abriria mão de Camelot, por amor.
Mas o segundo teste não era só para ele.
Por isso a Cobra abrira um sorriso perverso enquanto o príncipe se
afastava.
Japeth sabia que Tedros nunca a mataria.
Mas ele sim.
Caçaria Agatha até acabar com ela e restar apenas um teste antes de a
Excalibur matar Tedros.
Dois coelhos com uma única cajadada.
Agatha havia colocado a si mesma e a seu príncipe em uma armadilha
mortal.
Ela era a verdadeira Bruxa de Além da Floresta agora.
Até mesmo a Professora Dovey pensaria assim.
Através da passagem de vidro, ela olhou para a Escola do Bem e do Mal,
conectada pela Ponte do Meio do Caminho, o céu acima dos castelos azul
cristalino...
O coração de Agatha parou.
Havia uma nova mensagem de Lionsmane brilhando a oeste.
Tedros usou sua princesa para trapacear no primeiro teste.
Agora vai pagar o preço.
Porque Agatha é o segundo teste.
Peço a ajuda da Floresta.
Aonde quer que ela vá...
Tragam-na a mim. Viva.
O coração de Agatha voltou a bater com tanta força que ela achou que ia
quebrar suas costelas.
Ela sentiu que alguém a vigiava.
Seus olhos foram para a torre do Diretor da Escola, no meio do vão.
Bilious Manley e o Storian eram visíveis na janela do pináculo, a pena
pairando sobre um livro aberto. Os olhos do professor se demoraram em
Agatha. Ele a encarou com dureza antes que as nuvens escondessem o sol,
relegando-o às sombras.
Agatha acelerou o passo. Quando chegou ao Túnel das Árvores, que
dava para o exterior, já ouvia um ruído de conversa.
A Clareira estava cheia, como costumava ficar no horário de almoço. Só
que, agora, não havia divisória entre o Bem e o Mal. Amigos, o corpo
docente e os alunos de primeiro ano se reuniam na área para piquenique,
diante dos portões da Floresta Azul. Assim que saiu do túnel, Agatha viu
garotos e garotas Sempre ao fundo. Bodhi, Laithan, Devan, Bert, Beckett e
Priyanka estavam ali. Em frente dos Sempre estavam os Nunca de primeiro
ano: Valentina, Aja, Bossam, Laralisa e outros. Ela também viu a turma de
quarto ano que a havia resgatado em Putsi – Vex, Ravan, Mona –, além de
outros que haviam se recuperado de seus ferimentos, incluindo Brone, de
estrutura larga e cabeça grande, cuja perna continuava engessada. (Por que
não usaram magia para curá-lo?, Agatha se perguntou.) Em seguida,
localizou seus companheiros: Hort, sem camisa, com os pés em blocos de
gelo, o rosto e o braço com queimaduras de sol e o peito branco como uma
flor, resmungando sozinho enquanto tomava uma sidra gelada, como se
tivesse passado de homem-lobo a pirata frito. Ao lado dele estavam Bogden
e Willam, ambos cheios de ataduras e com unguentos coloridos na pele.
Então vinham Hester, Anadil e Dot, que continuava velha e carregava o
bebê Merlin no colo. Nas laterais do campo, o corpo docente se reunia: a
Professora Emma Anêmona, a Professora Sheeba Sheeks, Cástor, o
Cachorro, e outros, tanto do Bem quanto do Mal. Só faltavam Yuba e a
Princesa Uma. E Sophie, Agatha se deu conta. Alunos e professores
olharam para Agatha quando ela entrou, seus antigos aliados, agora sua
única família, silenciosa e sombria, como testemunhas em um julgamento.
No céu, a mensagem de Lionsmane cintilava como uma cicatriz dourada.
Todos voltaram a olhar para a frente: para seu líder, sentado em um toco
de árvore entre dois túneis.
Tedros.
Ele estava sem camisa, o corpo cheio de ferimentos e cortes, a calça
rasgada e suja de terra. Ainda havia folhas em meio a seus cachos loiros.
Sua bochecha direita ostentava arranhões de scims. Agatha dormira, comera
e se banhara, mas ele não. Quando seus olhos azuis e turvos se
concentraram nela, o príncipe endireitou as costas.
Agatha pretendia dizer alguma coisa, mas Tedros foi mais rápido.
“Sente-se”, ele ordenou.
Ela obedeceu, procurando em vão por Sophie e então se sentando ao lado
de Hort.
“Oi, Fátima”, Hort soltou.
Agatha olhou para ele.
“Fátima, da Terra do Nunca. O Storian contou a história dela, que tinha
um monte de amigos, mas foi fazendo coisas idiotas até perder todos, um a
um.” Hort tomou mais um pouco de sidra. “Fátima Sem Amigos. Essa é
você.”
Agatha tentou ignorá-lo.
“Você sabia que Sophie estava lá. E não me contou”, Hort continuou
falando, coçando as queimaduras. “Em vez de protegê-la, fiquei de
motorista-lobo, carregando Bilbo Bogden, o namorado dele e o bebê por
toda a extensão de Mahadeva, no maior calor, isso depois de ter carregado
você e Tédios pela Floresta. Sofri tanta insolação que Cástor teve que me
fechar em um caixão de gelo até que eu conseguisse lembrar meu próprio
nome. Mas não esqueci o que você fez. Ah, não. Quis Sophie só para si. Me
impediu de ajudar.” Ele olhou feio para Agatha, que podia ver que Tedros a
observava com a mesma intensidade de onde estava.
“As bruxas contaram que foram elas que mandaram os stymphs para nos
resgatar”, disse o príncipe, sem qualquer emoção na voz.
“Sem querer ofender, mas não podíamos confiar em vocês sozinhos por
aí”, Hester explicou a Agatha. “Não com a Cobra a solta. Quando chegamos
à escola, contamos tudo aos professores. Sugerimos que eles destacassem
uma equipe para proteger vocês.”
“Que bom que fizeram alguma coisa, considerando que mandamos vocês
para cá para encontrar um feitiço de envelhecimento”, Hort resmungou.
“E encontramos um”, Anadil disse, cortante.
“Não um que funcione”, Hort desdenhou. “Dot continua sendo uma
velha e sinto o cheiro da fralda de Merlin daqui.”
“Porque é um processo, seu roedor chamuscado”, Hester retrucou.
“O nome é Contestador de Idade”, Anadil explicou, com os dois ratos
dormindo em seus ombros. “Envelhece ou rejuvenesce um ano por dia,
enquanto a poção for tomada.”
“É a mesma que minha mãe usou para me ter mesmo em uma idade
avançada”, comentou Hester. “A professora Sheeks nos ajudou a fazer.
Leva lágrimas de rato, escamas de tartaruga e queijo mofado. Tem que
tomar pelando para envelhecer, e gelado para rejuvenescer.”
“Eu e Merlin tomamos um pouco hoje de manhã”, Dot disse, ajeitando o
bebê. “O gosto é pior que a morte.”
Agatha olhou para Dot mais atentamente. Ela parecia mesmo um
tantinho mais nova do que em Bloodbrooke, enquanto Merlin estava mais
comprido e gorducho, usando vestes roxas de veludo e sapatinhos peludos,
os olhos irradiando inteligência.
“Mamãe!”, ele balbuciou, ao ver Agatha, e pulou do colo de Dot para
engatinhar até ela. “Mamãe lhama! Mamãe lhama!”
Uma inteligência ainda um tanto limitada, Agatha pensou.
Ela pegou Merlin e sentiu a barriguinha macia dele contra o peito. O
bebê feiticeiro agora tinha cachos quase brancos de tão loiros por baixo do
chapéu pontudo, e cheirava a leite doce. Os dedos de Merlin roçaram as
bochechas de Agatha. “Mamãe lhama!”
“Em questão de dias, Merlin estará falando frases coerentes e se
comunicando conosco”, continuou Hester. “Em algumas semanas, chegará à
nossa idade e terá todos os seus poderes de volta.”
“Se ele mantiver seus poderes”, a Professora Sheeks disse, preocupada.
“Não sabemos o que se perdeu.”
“E NÃO TEMOS SEMANAS!”, Cástor, o Cachorro, gritou, apontando a
mensagem de Lionsmane com uma pata. “A FLORESTA TODA ESTÁ
ATRÁS DE AGATHA!”
“Ele está certo”, disse a Professora Anêmona, incomumente
desgrenhada. “Não podemos proteger Agatha aqui. Não aguentaremos esse
tipo de ataque.”
“Claro que podemos”, disse Laithan, o garoto Sempre musculoso de
cabelo ruivo, levantando-se. “O Bem sempre vence. É nosso dever como
Sempres. Nos manter firmes e lutar pela nossa rainha.”
“Os Nuncas também”, disse Valentina, cuja pele era negra, também se
levantando. “Temos que defender Agatha. E a escola!”
“Como fizemos contra Rafal”, disse Ravan, juntando-se a eles.
“Acabamos com ele e seu exército de zumbis. Podemos fazer de novo!”
“Não podemos, não”, Tedros disse. “Os zumbis de Rafal eram zumbis.
Foi só matar Rafal que morreram com ele. Agora estamos falando de toda a
Floresta, homens, mulheres e criaturas de uma centena de reinos, lutando
por um líder que nem sabem que é seu inimigo. Um líder muito mais
terrível que Rafal. Robin Hood não conseguiu derrotar a Cobra. Tampouco
Kei, que era um assassino treinado. Japeth matou Sininho. Matou minha
amiga Betty como se não fosse nada. Matou Lancelot, Chaddick, o Xerife
de Nottingham, e muitos outros. E vocês acham que podem vencer a guerra
por mim. Assim como Agatha achou que podia. Motivo pelo qual estamos
aqui. Prestes a perder.”
Agatha ficou tão vermelha como se tivesse levado um tapa.
Todos os olhos estavam nela. Inclusive os de Merlin. O bebê parecia
irrequieto, mas se manteve mudo.
Tedros olhou demoradamente para ela. Não com raiva ou frieza, mas
cansado, derrotado, como se, quando um príncipe não agia como um
príncipe e uma princesa não agia como uma princesa, o resultado só
pudesse ser aquele.
“O que fazemos então?”, perguntou Bert, com seu cabelo loiro.
“Como vamos vencer?”, perguntou Beckett, que era ainda mais loiro.
“Que opção temos? Tedros precisa matar Agatha”, uma voz disse.
A multidão se virou para Hort.
“É o segundo teste, não é?” Ele fez um movimento com a caneca,
derrubando sidra em toda parte. “O velho Teddy vai ter que matá-la para
vencer. Depois é só concluir o terceiro teste e a Cobra está morta. Vamos
trocar a vida de Agatha pela nossa. É o que um rei faria.”
Agatha olhou para Hort, sem fala.
“É o que você merece, por monopolizar Sophie”, Hort murmurou.
“Você tem namorada!”, Agatha disparou.
“E você tem namorada e namorado!”, ele retrucou. “Você beija qualquer
um!”
“Chega!”, a Professora Sheeks interrompeu. “Enquanto Agatha e Tedros
forem alunos desta escola, ninguém vai matar ninguém!”
“Agatha não é mais aluna”, Bossam, que era peludo e tinha três olhos,
apontou. “E Hort está certo. Se Agatha morrer, ficaremos todos a salvo.”
“Acham que o ‘Rei Japeth’ não vai destruir a escola na primeira chance
que tiver? E tudo dentro dela?”, a Professora Anêmona perguntou.
“Enquanto Agatha estiver aqui, é uma aluna. E nossa melhor aluna, aliás.”
“Se ela é a melhor, como foi que estragou tudo?”, Bossam insistiu.
“É”, Aja disse, com raiva. “Por que temos que morrer defendendo
Agatha, se foi ela quem errou?”
Outros Nuncas concordaram. Sempres também.
“Porque não foi um erro, seus idiotas”, uma voz declarou de dentro do
túnel, antes que Sophie entrasse na Clareira, com o cabelo penteado,
maquiada e o vestido branco transformado em um quimono cintilante com
asas. “Desculpem o atraso. O feitiço para consertar a perna de Aggie
acabou quebrando um dos meus próprios ossos.” Ela mostrou a mão direita,
toda enfaixada. “Poderia ter sido pior, claro, mas se embelezar com uma só
mão é tão encantador quanto passar uma noite com Hort.” Ela sorriu para o
furão, como se tivesse ouvido tudo o que ele dissera a Agatha antes.
Ele ficou vermelho.
“Bom, sobre esse suporto erro”, Sophie voltou a falar, abarcando a
multidão com a mão boa. “Agatha engoliu a resposta para impedir que
Japeth o fizesse. Tedros teve várias chances de vencer o teste, mas, como
sempre, não concluiu o trabalho. Agatha impediu a derrota. Foi ela quem
impediu que a Cobra saísse à frente na corrida. Foi ela quem agiu como um
rei.”
Agatha corou, grata. Sophie. Seu cavaleiro de armadura brilhante.
Sophie, que havia quebrado o próprio osso para curar o da amiga. Sophie,
que havia encontrado o Bem em Agatha, quando ela própria só encontrara o
Mal. Sua amiga não era uma bruxa. Assim como Agatha não era uma
princesa. As duas eram ambas as coisas, sempre tinham sido. O limite era
tão estreito quanto o limite entre as histórias e a vida real.
Tedros lançou um olhar pétreo para Sophie. “Então a culpa é minha?
Minha própria princesa interfere no meu teste e a culpa é minha? Se meu
pai disse que tenho que matá-la, a culpa é minha?”
“Acha que teria feito isso se soubesse o que ia acontecer?” Agatha se
levantou, sentindo o corpo do bebê se sacudir contra seu peito. “Estava
tentando nos salvar. Não pensei direito...”
“Nisso concordamos”, disse Tedros.
“E você é o modelo do raciocínio calmo e deliberado”, Sophie ironizou,
protegendo Agatha.
Os olhos dos alunos e professores se alternavam entre o príncipe, sua
princesa e a melhor amiga dela, as três pontas de um triângulo.
“O que eu deveria ter feito?”, Agatha o desafiou, encorajada por Sophie.
“Deixado que Japeth vencesse?”
“Você não me deu a chance de vencer!”, Tedros disse, ficando de pé de
um salto. “Sou eu que estou disputando o trono. Preciso que me ajude. Não
que se coloque no meu caminho!”
“Não estou tentando ficar no seu caminho! Quero que você pense!”,
disse Agatha.
“Isso é difícil para ele”, Sophie interrompeu.
Merlin bateu palmas, feliz.
“É por isso que Japeth vai ganhar”, Tedros murmurou, voltando a se
sentar no toco de árvore. “Porque não tem ninguém que o atrapalhe. Porque
luta por si mesmo!”
“Achei que essa fosse a nossa vantagem”, Agatha respondeu. “Lutarmos
um pelo outro.”
Tedros só olhou para ela.
“E você está errado. Japeth não luta por si mesmo”, Sophie acrescentou.
“Ele quer trazer alguém de volta dos mortos. Por isso precisa dos poderes
do Storian. Por isso precisa do seu anel. Por amor. Que nem você.”
“Não me compare a ele”, Tedros contra-atacou, ainda irritado. “Ele quer
a mãe de volta. A terrível da Sader. Já sabemos disso.”
“Não. Não Evelyn”, Sophie disse, com dureza. “Quem a amava era
Rhian. Foi por isso que Japeth o matou. A Cobra quer trazer outra pessoa. O
melhor amigo dele. Seu verdadeiro amor.”
As palavras de Sophie atingiram Agatha como uma pancada. Ela se virou
para Tedros, cujo ardor se dissipava diante da constatação.
“Aric?”, ele disse. “É isso que ele quer? Trazer Aric de volta à vida?”
Agatha sentiu a escola toda ficar tensa ao contemplar o retorno do filho
de Lady Lesso, um sádico com um buraco-negro no lugar da alma. A única
coisa pior que a Cobra seriam duas Cobras, unidas pelo amor.
Tedros e Agatha se encararam. A expressão do príncipe parecia sofrida,
como se o momento de atribuir culpa tivesse passado.
“Não há um lugar aonde possamos ir que Japeth não a encontre”, ele
disse a ela. “Não há o que fazer quanto ao teste. Não temos como ambos
sobreviver.”
“Mas você pode sobreviver”, Agatha respondeu, suada e com o pescoço
vermelho. As mãozinhas de Merlin agarraram a blusa dela. “Você ainda
pode vencer o teste.”
A expressão de Tedros se alterou na hora. Ele se inclinou para a frente, a
imagem de um verdadeiro homem. “Ouça bem, Agatha. Nunca vou
machucar você. Nunca. Vou lutar até morrer para manter você a salvo.”
Ele falou com tanta firmeza, tanta clareza, que mesmo com a morte
pairando entre ambos Agatha sentiu uma onda de amor. Ela não queria
morrer. Mas precisava ouvir seu príncipe dizer que estavam juntos naquilo.
Que ela ainda significava tudo para ele. Que ele a amava,
independentemente de qualquer outra coisa.
Tedros abriu um sorriso triste para ela. Nem mesmo o amor podia salvá-
los. Estavam encurralados, não havia escapatória. Ele suspirou e olhou para
Sophie, como se, uma vez na vida, estivesse disposto a aceitar uma sugestão
dela. Mas Sophie também estava perdida.
Os três estavam encurralados.
Sua história chegara a um beco sem saída.
Até que uma voz profunda interrompeu o silêncio.
“Há uma saída.”
Por um segundo, Agatha achou que a voz vinha do céu ou do bebê em
seus braços.
Então viu o Professor Manley, dentro do túnel da árvore do Mal, com a
pele pálida cheia de protuberâncias, seus olhos penetrantes refletindo a
escuridão.
“Venham comigo”, ele disse, voltando pelo túnel.
Todo mundo na Clareira se levantou.
“Não. Vocês.” Manley apontou uma unha suja e afiada para Tedros e
Agatha. “Só vocês.”
Agatha e o príncipe olharam um para o outro. Então se apressaram para
ir atrás dele, ela ainda carregando Merlin.
Sophie bloqueou o caminho e enfrentou Manley. “Aonde ela for, eu
vou.”
O professor fez menção de responder, mas Sophie o impediu. “Ainda sou
a reitora da escola em que você leciona, Bilious, uma vez que não renunciei
ao cargo.”
A cabeça ovalada do Professor Manley estremeceu, como se fosse
explodir. “Faça o que quiser”, ele rosnou, avançando pelo túnel, com três
pares de pés o seguindo.
E depois quatro.
“Eu não vou ficar pra trás!”
Agatha se virou e viu Hort correndo atrás de Sophie, seminu e descalço.
“Dessa vez, não, Fátima! Nunca mais!”, o furão vociferou.
Sophie piscou para ele. “Quem é Fátima?”
“Nem pergunte”, disse Agatha, puxando sua melhor amiga.
Na torre do Diretor da Escola, o Storian estava parado a uma página
quase em branco. O Professor Manley olhou para ele, e Agatha e seus
amigos formaram um círculo à sua volta.
Não havia nada pintado. Nenhuma cena.
Havia uma única frase escrita em letras pretas e grossas, ao fim do
espaço vazio.
A confiança é o caminho
“Do que acha que eles estão falando?”, Sophie perguntou, vendo Hort
abraçado a Tedros no alto enquanto Agatha se segurava nela em terra.
“Do que é que os garotos falam?”, Agatha retrucou, com Merlin preso a
suas costas.
O camelo podia carregar três pessoas, e imaginava que seus passageiros
seriam Agatha, Tedros e a Princesa Uma, mas também havia Sophie, Hort e
o bebê. Quando ficou claro que Agatha não deixaria Merlin, Sophie não
deixaria Agatha e Hort não deixaria Sophie, a Princesa Uma invocou um
stymph para levar os garotos, que acompanhariam Agatha e Sophie de
cima, enquanto elas seguiam no camelo mais abaixo. (“Posso ir com
Sophie”, Hort se voluntariara. “E eu com Agatha”, Tedros dissera na
sequência. “Uma já fez a divisão”, Sophie os cortou.) Eles não tinham ideia
de seu destino, porque o camelo se recusava a revelá-lo. “Para que ninguém
possa nos entregar ao inimigo”, o animal dissera a Uma. Quando a princesa
insistira que o camelo dissesse ao menos em que direção seguiriam ou
como salvariam Agatha, ele respondera: “A confiança é o caminho”.
“Ou pelo menos é o que acho que o camelo disse”, Uma confessara
depois, com um suspiro. “Na língua dos camelos, há uma única palavra para
‘confiança’ e ‘morte’, mas acho que é seguro presumir que nesse caso era a
primeira opção.”
“Tem certeza de que podemos confiar no camelo?”, Sophie perguntara a
Agatha, quando Uma e os garotos foram se encontrar com o stymph.
Agatha acariciara o camelo como se fosse um animal de estimação. “O
Sultão de Shazabah mandou o camelo como presente de casamento para
Rhian, e salvei esta criatura das mãos do rei. Ouvi seu desejo, quer
reencontrar a família. Mas não pode voltar para Shazabah, ou seria morta
por desobedecer a ordens. Uma disse que o camelo estava escondido na
Floresta e viu a mensagem de Lionsmane sobre mim e o segundo teste.
Sabendo que eu precisava de ajuda, mandou um recado para a princesa
através dos animais da floresta, torcendo para que ela pudesse trazê-lo a
mim.”
Sophie vira Merlin passando o rostinho nos pelos do camelo. “Da última
vez que confiamos em um animal, foi naquele castor desprezível que tentou
usar cobras para nos matar”, ela dissera. “Não confio em bichos de modo
geral. Não importa o que Uma diga.”
“Falou como uma verdadeira bruxa”, Agatha brincou.
Sophie franzira a testa. “Que cheiro é esse?”
O camelo havia feito xixi no sapato dela.
Com metade da Floresta caçando Agatha, eles só podiam viajar à noite,
de modo que lhes restava o dia para dormir. Tedros havia atribuído novas
tarefas àqueles deixados para trás. Um grupo de alunos de primeiro ano
liderados por Valentina e Laithan se esgueiraria até Camelot para
acompanhar todos os movimentos de Japeth, enquanto Bogden e Willam
visitariam o padre Pospisil, de quem Willam tinha sido coroinha, para ver se
poderia ajudar a derrotar a Cobra.
“O bibliotecário da Biblioteca Viva sugeriu que ele poderia ser um
amigo”, dissera Tedros.
Durante o tempo que passaram na torre do Diretor da Escola, chegara
uma noz de esquilo.
“É uma mensagem de Jaunt Jolie”, Tedros dissera às bruxas. “A Rainha
Jacinda quer ver vocês.”
“Jaunt Jolie?”, repetira Hester. “Mas é território Sempre.”
“Mande Beatrix ou Reena”, Anadil dissera.
“Ninguém sabe onde estão”, a velha Dot lembrara. “Ou Kiko.”
“Isso não é problema nosso”, Hester retrucara. “Nem rainhas Sempre.”
“Bom, esta rainha Sempre pediu para ver vocês, por isso as três vão”,
Tedros ordenara. “Contem a Jacinda que a filha dela morreu nas mãos da
Cobra. A rainha precisa saber a verdade. E descubram o que aconteceu com
Nicola e minha mãe. Elas iam pedir a ajuda da rainha. Os Onze podem ser
nossa melhor chance de matar Japeth antes que ele encontre Agatha. E
temos que matá-lo. Porque, enquanto o segundo teste estiver em
andamento, ele não vai parar até matar Agatha.”
Sophie percebera que sua amiga pensava a respeito, mas Aggie não
dissera nada.
Tedros ainda ordenara que, ao longo do caminho, o coven parasse na
Montanha de Vidro e descobrisse onde Robin Hood havia escondido
Marian. (“Como vamos dizer a ela que Robin morreu?”, Dot se queixara.
“Somos mesmo as emissárias da morte”, Anadil resmungou em seguida.)
O restante dos Sempres e Nuncas, incluindo professores, deveria voltar
às aulas normalmente, para acabar com qualquer suspeita de que estivessem
com Agatha e manter o Storian protegido. Como a professora Sheeks
apontara, o camelo havia feito uma escolha sábia: como não revelara seus
planos, a escola de fato não sabia de nada, de modo que nem mesmo o mais
poderoso feiticeiro poderia extrair informações de seus membros.
Bem, Mal, Meninos, Meninas, Jovens, Velhos... a missão era mesma:
seguir em frente, confiando que o camelo os guiaria, mesmo que não
tivessem ideia de para onde estavam indo.
Agora, Sophie sentia esse movimento adiante de forma bastante literal. A
jornada tinha começado, e o camelo balançava a cada passo. O nariz e a
boca de Sophie estavam cobertos de seda branca. Em algum lugar entre a
Clareira e a Floresta, o quimono branco dela tinha se transformado
magicamente em um conjunto de montaria muito chique, com lenço de
cabeça e véu. “Sabe, fico tentando me livrar desse vestido, mas quanto mais
tento, mais ele se transforma em algo divino, como se soubesse exatamente
como me conquistar. Nem sei mais dizer se sua magia é boa ou ruim.”
“Tudo relacionado a Evelyn Sader é ruim”, disse Agatha, atrás de
Sophie, usando uma capa escura com capuz. O bebê dormia nas costas dela.
“Evelyn é o que liga a Cobra ao Cavaleiro Verde”, Sophie lembrou. “Não
foi isso que você viu na pérola?”
“Tinha uma espécie de enigma escondido nela. Um enigma que Arthur
queria que o vencedor do primeiro teste visse”, respondeu Agatha.
“Deve ser importante então, mesmo que não faça sentido”, Sophie
comentou.
“Quando investigamos o sangue de Rhian, o que temos certeza de que
vimos?”, disse Agatha. “Que Evelyn encantou Arthur para ter um filho
dele. Que Evelyn colocou a corda no pescoço dele, e não Lady Gremlaine.
O que significa que Arthur teve mesmo um filho secreto com Evelyn Sader.
Ou dois filhos. Não há dúvida.”
“No entanto, a Cobra não é filho de Arthur. Ou pelo menos foi o que
disse”, lembrou Sophie. “Mas Japeth é um grande mentiroso, assim como o
irmão era.” Ela balançou a cabeça. “Mas por que ele mentiria quanto a isso?
Vai ver que a Cobra não é mesmo o filho que Evelyn teve com Arthur. Vai
ver que o pai da Cobra é o Cavaleiro Verde.”
“Mas o sangue de Rhian diz que o pai é Arthur!”, Agatha insistiu.
“No entanto, o Cavaleiro Verde tem o mesmo nome da Cobra. Japeth.
Fora que a árvore feiticeira disse que a Cobra está ligada à alma do
Cavaleiro Verde. Como pode ser, a menos que os dois Japeths tenham o
mesmo sangue?”, Sophie insistiu também. “O Cavaleiro Verde tem que ser
pai da Cobra.”
“E Evelyn Sader a mãe? Mas por que o sangue de Rhian mentiria? E
como enganou a Excalibur quando Rhian puxou a espada da pedra?”
“Talvez não tenha mentido”, Sophie arriscou. “Pode ser que Rhian era
filho de Arthur, enquanto Japeth era filho do Cavaleiro Verde... e Evelyn
Sader era a mãe dos dois.” O coração de Sophie batia mais forte. “Eles
podem ser gêmeos divididos pela magia...”
“Como nós”, Agatha comentou, baixo.
Sophie notou que a voz da amiga falhara. Elas nunca haviam conversado
a respeito do que haviam visto na história de August Sader, muito tempo
antes. Que eram irmãs, mas apenas no nome. Duas almas, eternamente
irreconciliáveis, uma o espelho da outra. Uma do Bem, outra do Mal. E se
for a mesma coisa com Rhian e Japeth?, Sophie pensou.
Agatha rejeitou a ideia. “Não faz sentido. Como gêmeos podem ter pais
diferentes?”
Sophie jogou as mãos para o alto. “E quem é o pai então? Arthur ou o
Cavaleiro Verde? Quem está certo, o sangue de Rhian ou o sangue de
Japeth? Se o sangue de Rhian estiver errado, quem disse que Evelyn Sader
é a mãe dos dois?”
Agatha suspirou. Aquilo ia dar um nó no cérebro das duas.
Elas ficaram em silêncio por um tempo. Merlin balbuciou, como se
tivesse ouvido tudo. Sophie olhou para o alto, para Tedros e Hort, usando
capas pretas e ainda conversando, enquanto Uma conduzia o stymph de
modo a acompanhar o ritmo do camelo.
“Você quebrou mesmo o pulso para salvar minha perna?”, Agatha
perguntou.
“A Cobra está vindo atrás de você, não podemos te deixar mancando por
aí. É claro que o feitiço de reparo poderia ter quebrado minha própria perna
ou coisa pior, mas imaginei que a gente pudesse se revezar para se curar até
chegar a um arranjo menos inconveniente.”
Agatha riu. “Nossa, como foi que chegamos aqui?”
“Você quer dizer: a bordo de um camelo fedido, indo sabe-se lá para
onde, seu príncipe com a ordem de te matar, toda a Floresta atrás de você e
um bebê feiticeiro nas costas?”
O camelo cuspiu uma bola de fogo que passou perto da orelha de Sophie.
“Tudo na nossa história tem que ser tão complicado e brutal?”, Sophie se
queixou.
Ela olhou para Agatha, esperando a resposta torta de sempre. Mas a outra
só parecia temerosa. Mais que isso. Parecia perdida.
“Não, digo, como chegamos a esse ponto?”, Agatha insistiu. “Tão longe
de um final feliz?”
“Fomos feitas para uma vida mais grandiosa, Agatha”, Sophie a
lembrou. “Sempre fomos. August Sader disse ao Diretor da Escola que uma
Leitora seria o verdadeiro amor dele, a alma do Mal que Rafal vinha
aguardando. Foi por isso que Rafal sequestrou Leitoras como nós e as levou
para seu mundo. Para encontrar seu verdadeiro amor. Mas Sader mentiu
para ele, porque sabia que nós duas mataríamos Rafal. Que nosso amor o
destruiria. Quando Rafal morreu, achamos que era o fim da história.
Presumimos que nosso final feliz duraria para sempre. Porque é o que os
livros de contos nos ensinam. Que o Bem sempre vence. Que o Para
Sempre é para sempre. Mas nosso conto de fadas mudou as regras. Abrimos
buracos nas velhas definições de Bem e Mal. E agora estamos em outra
história, na qual não basta mais ser do Bem. O Storian quer mais de nós. O
bastante para arriscar a própria destruição. Para vencer, temos que seguir
nossa história aonde quer que nos conduza. Além do Sempre e Nunca.
Além do Homem e da Pena. Até o Fim dos Fins.”
Agatha ficou em silêncio atrás de Sophie. Seu corpo não estava mais
rígido, e uma calma parecia ter tomado conta dela. Agatha tocou o ombro
da amiga.
“Até o Fim dos Fins”, ela repetiu.
As palavras ecoaram pela floresta escura.
Filetes de fumaça azul desceram flutuando do céu e formaram uma
mensagem diante de Sophie, na caligrafia desgrenhada de Hort: “Diga a
Agatha para trocar de lugar comigo”.
Sophie espalhou a fumaça com a mão. “Ele age como alguém que não
tem namorada.”
“Por isso me pergunto o que Nicola faz com ele”, disse Agatha, em um
tom mais leve, como se fofocar sobre a vida amorosa de outra pessoa fosse
um tônico restaurador. “Nicola é muito inteligente. Leu nosso conto de
fadas e conhece todos os detalhes de cor. Deve saber que Hort não
conseguiria abrir mão de você.”
“Tendo lido nossa história, ela também acha que Hort é bom demais para
mim, por isso continua com ele”, disse Sophie. “Nic é uma Leitora, como
nós. Cresceu lendo contos em que bruxas não têm namorado. Para ela, Hort
gostar de mim é antinatural. Nic acredita de verdade que ele merece alguém
melhor. Alguém como ela. E que, se ficar com ele, Hort vai acabar caindo
em si. Mas isso é acreditar que o amor é racional. Que, quando encurralado,
o coração faz a coisa mais sensata. Só que é nisso que Hort e eu somos
iguais. Nenhum de nós tem o menor controle sobre o próprio coração.”
“Hum... Interessante”, Agatha disse.
“Não estou gostando disso.”
“No terceiro ano, Hort viu algo no lago dos peixes do desejo. Quando
estávamos no esconderijo de Guinevere. Os peixes disseram que, no fim,
vocês dois acabariam se casando. E ainda não estamos no Fim...”
“Sei que isso vai surpreender você, mas já pensei a respeito, Aggie”,
Sophie disse. “Principalmente depois que Hort tentou me resgatar de Rhian.
Pelo mais breve momento, vi nele meu príncipe. Vi como nossa história
poderia ser. E há momentos, agora mais que nunca, em que penso: arrisca.
Namora o furão. Escolhe o garoto carinhoso e gentil, em vez do bonitão que
no fim acaba tentando te matar. Pelo menos eu teria amor. Pelo menos seria
beijada sem uma faca nas minhas costas.” Sophie fez uma pausa. “Daí
penso: mas cadê o desafio?” Ela sorriu para a amiga.
“E você se pergunta por que bruxas não namoram...”, comentou Agatha.
Nunca entre na Floresta à noite.
Fora uma das primeiras regras que Sophie aprendera na Escola do Bem e
do Mal. E por uma boa razão. Depois do pôr do sol, a floresta se
transformava em um terreno assombrado. Olhos vermelhos e amarelos
reluziam como joias entre a vegetação rasteira, seguidos pelo brilho de
dentes afiados. Contornos sombrios esvoaçavam por entre as árvores:
focinhos, garras, asas. A noite vinha com seus próprios sons, uma sequência
constante de rosnados, movimentos rápidos e gritos. Quanto mais a pessoa
se embrenhava na Floresta, mais a Floresta se embrenhava nela, fazendo
cócegas atrás do joelho, respirando em seu pescoço. Mas, montada no
camelo em segurança, Sophie via a noite com novos olhos. Os esporos
verdes fluorescentes da hera venenosa. Os escorpiões pretos, brilhando
como obsidianas. As cobras vermelhas e azuis, enroscadas em árvores.
Havia beleza no perigo, caso a pessoa se permitisse vê-la.
Os pensamentos eram passageiros. Sophie sabia que era questão de
tempo até que deparassem com alguém atrás de Agatha. Com apenas
algumas horas de viagem, já haviam visto de relance dois adolescentes, um
anão sozinho e uma bruxa empurrando um carrinho... todos tinham ido
embora com apenas uma olhada, como se usassem a escuridão para se
esconder de algo.
“A poção deve estar funcionando”, Agatha disse. “Merlin está ficando
mais pesado.”
Sophie considerou a criança presa às costas da amiga. Seu corpo estava
maior e seu cabelo estava mais cheio do que quando haviam deixado a
escola. A roupa parecia crescer magicamente com Merlin. Ele tomava leite
com vontade do chapéu azul, derramando tudo em Agatha.
“Molha mamãe!”, o feiticeiro disse, passando leite no cabelo dela.
“Agora sei por que você odeia crianças”, disse Agatha.
“Ele deve estar com uns dois anos, é uma idade terrível. Mas só vai durar
uma noite”, Sophie comentou. “Hester disse para dar a próxima dose da
poção. Amanhã ele já vai estar com três.”
“Com dois já está pesado para minhas costas.”
“Deixa que eu seguro. Pelo menos um pouco.”
“Ele vai fazer cocô.”
“Passa a criança, Aggie.”
Agatha tirou Merlin das costas com um suspiro e o entregou a Sophie
que usou a mão boa para ajeitá-lo em seu colo.
A Floresta desapareceu.
De repente, Sophie estava em uma nuvem. Estrelas prateadas piscavam
contra o céu roxo.
O Celestium.
Havia alguém sentado ao lado dela.
Tedros.
Tedros, sem cabeça.
Seu pescoço era um coto ensanguentado.
“Cadê?”, uma voz disse.
Ela se virou e viu a cabeça decapitada de Tedros flutuando logo atrás.
“Bu!”
Sophie gritou.
Agora estava de volta à floresta, tão abalada que quase caiu do camelo,
levando o bebê consigo. Agatha se apressou a salvar os dois.
“Está maluca?”, Agatha a recriminou.
Sophie olhou para Merlin, que sorria para ela. O feiticeiro havia feito
aquilo. Era uma brincadeira? Só porque ele estava em uma idade terrível?
Merlin sorria, parecendo calmo e seguro de si.
“Espera aí. Aconteceu alguma coisa?”, Agatha perguntou de repente,
com a expressão alterada, como se houvesse tido sua própria cota de
truques de Merlin. “Sophie, o que você viu?”
Seu namorado em duas partes.
“Nada”, Sophie disse. “Só fiquei tonta.”
A fumaça de Hort voltou à frente dela, com outra mensagem: “Vi você
caindo. Vou descer”.
Sophie respondeu com seu brilho cor-de-rosa: “Se descer, te dou um
tapa”, depois mandou a mensagem para ele.
Hort permaneceu onde estava.
Eles seguiram em frente. Sem precisar carregar Merlin, Agatha logo
pegou no sono, apoiada no ombro da amiga. O feiticeiro cutucou o frasco
que despontava do bolso do vestido de Sophie.
“Suco”, ele disse.
Sophie pegou a garrafa de gosma verde que Hester havia lhe dado e
pingou algumas gotinhas na língua de Merlin, que parecia ávido por aquilo,
apesar do cheiro horrível da poção e da cara que ele fez ao engolir. Sophie
tentou esquecer o que havia visto no Celestium, enquanto a criança
cantarolava coisas sem sentido e brincava com o frasco. A cada vez que ela
olhava para Merlin, ele parecia ter crescido mais. Sua fralda já não ficava
molhada a cada hora. Em vez disso, ele puxava o vestido de Sophie com
uma expressão assustada, maneira como indicava que precisa fazer suas
necessidades. O tempo desacelerou, parecendo rastejar, o crescimento do
feiticeiro mais rápido que a noite. Até que o céu preto começou a ficar azul.
O camelo olhou para Uma, para que ela olhasse em volta e escolhesse um
lugar onde pudessem se esconder durante o dia. Mas o stymph parou, e
Uma pareceu hesitar.
Havia fogueiras de acampamento à frente, circuladas por sombras.
“Aggie, olha”, Sophie chamou a amiga.
Agatha acordou. Seus olhos se arregalaram. “Piratas”, ela disse, baixo,
ao ver a frota de guardas de Camelot, guiados por Wesley, cujo rosto
queimado de sol era visível sob o elmo.
Não só piratas, Sophie percebeu.
Lobos.
Dezenas deles, homens-lobos e lobisomens, misturados ao exército de
Japeth, seus corpos enormes e rostos ferozes inflamados, enquanto todos
dividiam coelhos e esquilos assados.
Sophie olhou para Uma, querendo instruções, mas a copa das árvores e a
fumaça que subia agora escondiam o stymph. Ela puxou as rédeas do
camelo, alterando o curso, só que mais lobos vinham naquela direção,
trazendo um javali morto. O camelo avançou depressa, esgueirando-se por
um caminho estreito que contornava o acampamento. Sophie ajeitou o véu e
Agatha pegou o chapéu azul de Merlin para fazer de máscara. As duas
mantiveram a cabeça baixa.
“Bloodbrook não tem amizade com Camelot”, Wesley disse para o maior
homem-lobo, enquanto o javali ia para o fogo. “O rei deve ter prometido
uma boa grana para ajudarem a gente a pegar Agatha.”
“Faz cem anos que o Storian não escreve o conto de um Nunca de
Bloodbrook. O mais perto que chegamos foi com o patético do Hort, que foi
o bufão do conto de Agatha”, disse o líder dos lobos. “Não temos mais
lendas ou heróis em quem acreditar. Por isso somos um cortiço, em vez do
reino que já fomos. Rhian prometeu restaurar a glória de Bloodbrook caso
tenha o poder da Pena.”
“Com o focinho de vocês do nosso lado, o rei vai ganhar o segundo teste
rapidinho”, disse Wesley. “É só farejarem aquela cachorra.” Ele sorriu para
o líder dos lobos. “Sem querer ofender.”
No entanto, com a fumaça e a carne, eles não sentiram o cheiro de
Agatha, que passava por eles, nos limites do mato. Sophie tentava
tranquilizar Merlin, que se contorcia para Agatha e enquanto o camelo
contornava o acampamento inimigo. Já estavam quase chegando à parte
encoberta da Floresta quando Merlin se debateu com mais força nos braços
de Sophie, tentando chegar a Agatha.
O chapéu, Sophie se deu conta.
Ele queria o chapéu de volta.
Merlin começou a ficar vermelho.
Não, não, não, Sophie rezou.
Ele foi ficando mais, mais e mais vermelho.
Sophie cobriu a boquinha dele.
Mas o feiticeiro explodiu.
O choro alto e penetrante assustou até mesmo o camelo.
Agatha e Sophie congelaram. Merlin também.
Os lobos e os guardas ergueram os olhos.
A Floresta ficou em silêncio.
O camelo tentou fugir na mesma hora, mas lobos o cercaram. Cuspiu
uma bola de fogo, queimando um, mas os outros o derrubaram no chão,
tirando Sophie e Agatha do lombo do animal e separando-as de Merlin. Em
seguida, cortaram as rédeas do camelo e enfiaram em sua boca.
Com os lobos segurando as duas garotas de véu e um guarda
amordaçando Merlin, Wesley se aproximou, de espada na mão.
“Olá, belas damas. Posso perguntar aonde estão indo no meio da noite
com um camelo de Shazabah?”
Sophie olhou para Agatha. Agatha olhou para Sophie. Elas sabiam quem
mentia melhor.
“À ilha de Markle Markle. Hafsah e eu vamos dançar para o rei”, Sophie
respondeu, acenando com a cabeça para Agatha, que usava o chapéu como
máscara. O véu branco que cobria o nariz e a boca de Sophie se apertou
magicamente, deixando apenas seus olhos verdes visíveis. “Fomos enviadas
pelo sultão em uma missão diplomática.”
“Markle Markle, é?”, disse Wesley. “E onde fica isso? A leste de
Shangri-la e a oeste da casa do Papai Noel?”
“Na costa de Ooty”, Sophie respondeu.
Wesley sorriu. “Mentira.”
“A um guarda de Camelot, pode parecer”, disse Sophie. “A ilha fica
escondida pela névoa. É visível apenas a donzelas e piratas. Parece-me que
vocês não são nem um nem outro.”
Os olhos esmeralda dela eram penetrantes.
Wesley parou de sorrir.
“Mostrem os rostos”, ele disse. “As duas.”
As garotas não obedeceram.
“Eu mesmo faço isso”, ele rosnou, apontando a espada para o véu de
Sophie.
“Eu não faria isso se fosse você”, Sophie disse, calma. “Quem tira o véu
de uma garota é amaldiçoado e morre antes do fim do dia.”
Wesley olhou para ela. Depois para Agatha.
“É uma morte terrível!”, Agatha acrescentou, com um sotaque medonho.
Wesley se virou para seus homens. “É verdade?”
Ninguém discordou.
“Então já vamos indo”, Sophie disse, soltando-se.
“Não antes de dançar”, disse uma voz.
O maior homem-lobo do grupo deu um passo à frente, ficando sob a luz
da fogueira. Era o líder.
“Como é?”, Sophie disse, pega de surpresa.
“Toda a Floresta está atrás de uma fugitiva mais ou menos da idade de
vocês. Por ordens do Rei Rhian”, o homem-lobo disse. “Se forem quem
são, provem. Uma dança e estarão livres para partir.”
Sophie hesitou, mas Agatha respondeu. “Não tem música”, ela disse,
soando como uma cabra com dor de barriga.
“Exatamente”, Sophie concordou. “Sem música, não dá para dançar.”
Uma batida constante interrompeu o silêncio.
As duas olharam para os lobos, que batiam com gravetos nas armaduras
dos guardas.
Tica tic toc... Tica tic toc...
Outro lobo começou a bater a bata a uma pedra: duc duc dop... duc duc
dop...
Um último jogou folhas secas na fogueira, produzindo um tsss tsss
percussivo.
O líder arreganhou os dentes para Sophie.
“Dancem”, o lobo disse.
Sophie olhou para ele.
Se lobos e homens tinham algo em comum, era o fato de subestimarem o
poder das garotas.
Sophie sentia que o vestido de Evelyn se alterava em sua pele, como se
agora tivesse total controle sobre ele, como Japeth tinha com os scims.
Logo, suas roupas brancas de montaria tinham se transformado em um
conjunto de corpete e calça harém cintilantes, e o véu brilhava.
O lobo recuou um passo, assustado.
Sophie tirou os sapatos, já movendo os braços e o corpo. Ela dançou em
volta de seus inimigos, deixando-os tontos com seus rodopios e giros, a
mão enfaixada tocando de forma provocadora Wesley e o lobo, antes de
arranhar suas bochechas com a mão boa, tirando sangue. Eles estavam em
tamanho transe que não reagiram, continuando a ver Sophie girar com
velocidade e brilho, como uma sílfide nascida do fogo, puxando o cabelo
dos guardas para saltar sobre eles e agarrando o pescoço dos lobos para se
lançar em arabescos sedutores. O ritmo acelerou, enquanto os lobos
babavam. Muito tempo antes, uma Fera havia punido Sophie roubando-lhe
a beleza. Agora, seus afins eram escravos dela. A música acelerava cada
vez mais, enquanto Sophie intensificava seus passos de balé, abria o
espacate e coroava cada movimento com piscadelas e trinados. Ela chegou
a jogar a comida de um guarda no fogo para aumentar as chamas para o
grande final... então ergueu o salto em um chute alto que atingiu a cabeça
de Wesley, lançando o elmo dele na fogueira e deixando seu rosto
descascado e sarapintado à mostra.
“É estranho que não conheça Markle Markle”, Sophie disse, olhando
para ele. “Parece mais um pirata que um guarda de Camelot.”
Os lobos olharam para Wesley como se concordassem com ela.
“Boa sorte para encontrar a fugitiva. Vamos, Hafsah”, Sophie disse,
pegando Merlin de um guarda e seguindo na direção do camelo amarrado.
“Parem.”
Sophie se virou.
O lobo apontava para Agatha. “Ela também tem que dançar.”
Sophie pigarreou. “Hafsah só faz danças particulares. Para reis que
pagam seu peso em ouro.”
“Dance”, Wesley ordenou, olhando para Agatha.
Um guarda tirou Merlin de Sophie.
A música retornou.
Tica tic toc.
Tica tic toc.
Agatha olhou para a copa das árvores, mas o stymph havia muito
passara, depois olhou para Merlin, nos braços do guarda, como se esperasse
que o feiticeiro a salvasse. Ele só chupava a mordaça como se fosse uma
chupeta, olhando para a “mamãe” e batendo palma no ritmo dos lobos.
O homem-lobo bateu uma garra na terra, seus lábios se recolhendo sobre
os dentes afiados.
Sophie procurou encorajar Agatha com um aceno de cabeça. Vamos,
Aggie. Ela devia ser capaz de dançar uma valsa, uma volta ou alguma coisa.
Tinha feito aula de dança na escola. E depois em Camelot. Além do mais,
dançar era a coisa mais fácil do mundo. Só exigia estar à vontade no próprio
corpo, ter movimentos graciosos e uma noção de ritmo que até uma criança
teria.
Então Sophie notou a palidez fantasmagórica no rosto de Agatha e se
lembrou de que a amiga não tinha nada daquilo.
Agatha ergueu uma perna e a sacudiu algumas vezes. A princípio,
Sophie achou que era um aquecimento para a dança, mas não, já era a
dança. Agatha girou como um flamingo antes de fazer um agachamento
sofrível e balançar de um lado para o outro, com os joelhos ossudos
estalando. “Uh lali, uh lali”, Aggie murmurou, como se seguisse um ritmo
que não tinha nada a ver com o que os lobos tocavam. Aggie devia ter visto
a expressão de Sophie, porque começou a balançar a bunda e movimentar
os braços como se acenasse para uma carruagem. Em seguida, começou a
correr no lugar, como se a carruagem tivesse partido sem ela. Agatha
insistiu naquilo, na corrida fantasma, e acrescentou movimentos de mão
estranhos, em uma versão terrível de tai chi chuan, depois arrancou a capa e
se deitou de barriga no chão, fingindo que aquilo tudo fazia parte da dança.
Suas pernas se agitavam, revelando a anágua empoeirada, então ela se virou
de lado, toda suja, como uma múmia trazida para a areia pela água do mar.
O véu dela caiu.
Agatha e Sophie ficaram olhando para o chapéu de feiticeiro encolhido
no chão.
Merlin parou de bater palmas.
A música parou também, e o público ficou em completo silêncio.
Devagar, Agatha ergueu os olhos, seu rosto a plena vista.
“Ah. Oi”, ela disse.
Foram todos para cima dela, armados de espadas e focinhos. Sophie
acendeu o dedo, mas os lobos já a tinham pegado. Amarraram as duas com
uma corda cheirando a porco, enquanto Merlin foi enfiado em um saco de
estopa. Sophie tinha dificuldade para respirar, com o joelho de Wesley em
seu peito, as unhas pretas arranhando o pescoço dela, e o rosto rançoso
colado no dela.
“O rei quer sua amiga viva. Mas não disse nada sobre você.”
Ele estrangulou Sophie com tanta força que o coração dela desacelerou
enquanto a vida era tirada de seu corpo. Agatha era forçada a assistir à
melhor amiga morrendo, enquanto gritava com a boca amordaçada.
Ouviu-se um trovão no céu.
Um lobo caiu em cima de Wesley, rugindo e quebrando seu crânio com
os próprios punhos.
Uma cratera se formou abaixo, engolindo lombos e guardas, enquanto o
recém-chegado colocava Agatha, Sophie e Merlin nas costas. Ele também
pegou o javali no espeto e usou contra os lobos que restavam, queimando-
os e atirando-os pela Floresta, antes de derrubar os últimos poucos guardas
a golpes na cabeça. Foi só quando não havia mais ninguém que o lobo
voltou a respirar, seus dentes manchados de sangue, seus pelos iluminados
pelas brasas. Hort pegou Sophie com uma pata e ficou cara a cara com ela.
“Pode me dar aquele tapa agora.”
Um dia depois, eles estavam acampados à margem fria das Planícies de
Gelo, protegidos pelo embarcadouro congelado que se estendia pelo Mar
Selvagem.
Quando a noite caiu, Uma os acordou, esperando que o camelo os
conduzisse pela próxima perna da jornada.
Mas o camelo não se moveu, permanecendo encolhido sob o abrigo.
“O que estamos esperando?”, ela perguntou, tremendo.
“Que nosso barco chegue”, o camelo respondeu.
Dois dias depois, o barco ainda não havia chegado.
Enquanto Uma sobrevoava o mar com o stymph atrás de mais peixes, os
outros se amontoavam sob o embarcadouro enquanto o sol nascia,
aquecidos por uma pequena fogueira e os corpos, uns dos outros,
aconchegados na barriga do camelo. Ninguém conseguia dormir, nem
mesmo Merlin, que estava com cinco anos e se mantinha totalmente alerta.
Ele ficava em volta do fogo, lançando nas chamas gravetos, algas marinhas
e o que mais conseguisse encontrar, depois vendo queimar.
“Quando esse maldito barco vai chegar?”, Tedros resmungou, olhando
para o camelo que dormia. “E aonde essa criatura está nos levando?”
“O mais longe de Shazabah que conseguir”, Hort arriscou, defumando
pedaços de salmão e passando a Sophie, que estava sob seu braço.
“Provavelmente vai nos esconder nos reinos não mapeados.”
“Mas como isso vai me ajudar a vencer o segundo teste sem matar
Agatha?”, perguntou Tedros, abraçando a princesa contra o peito. “Aonde
quer que a gente vá, a Cobra vai nos caçar. Fugir não o impede nem
mantém Agatha a salvo. Meu pai não ia querer que eu fugisse. É pura...
covardia.”
“A confiança é o caminho. Foi o que o camelo disse”, Agatha lembrou,
com um suspiro, aconchegando-se mais nos braços do príncipe.
“Confiança também significa ‘morte’ em camelês”, Tedros apontou.
“Até agora, essa criatura salvou nossa vida”, Agatha disse. “Foi por isso
que o Storian nos conduziu a ela.”
“O mesmo Storian colocou gêmeos assassinos no nosso conto de fadas
quando deveríamos estar nos casando.”
Algo no modo como Tedros havia dito aquilo, com raiva e carinho ao
mesmo tempo, fez a expressão de Agatha se alterar. “Não queria ter
engolido a pérola”, ela disse, baixo. “Queria ter dado a você. Aí você já
estaria atrás da resposta do segundo teste. Do segundo teste de verdade,
como deveria ter sido.”
Tedros passou a mão no cabelo dela. “A confiança é o caminho,
lembra?”
Sophie podia ver Agatha relaxando com o carinho do príncipe, os olhos
fechados de prazer. “É melhor parar de fazer isso ou vou me acostumar”,
Agatha murmurou.
“Você é bem mandona”, disse Tedros. “Pare de pensar e relaxe um
pouco, para variar.”
Agatha se ajeitou ainda mais no peito dele. Então se apoiou nos
cotovelos. “Aquilo que vi na pérola tem algum significado para você?
Evelyn Sader como a ligação entre Japeth e o Cavaleiro Verde?”
Tedros parou com a massagem. “Pensei a respeito disso durante a
viagem no stymph, depois que você mencionou. Mas Evelyn Sader não
tinha nada a ver com o Cavaleiro Verde. Tampouco Japeth, até onde
sabemos. Por que meu pai esconderia isso na pérola? Não faz o menor
sentido. Nem essa história toda.”
Eles viram Merlin jogar outras coisas no fogo e gritar “Shazam!”, como
se fosse ele quem estivesse dando vida às chamas.
“Nosso menino cresceu”, disse Tedros, puxando Agatha para si.
Sophie mordiscou o salmão enquanto via os dois se beijando.
“O gosto está bom?”, Hort perguntou, com o bíceps sobre ela. “Tentei
deixar no ponto certo.”
Sophie sabia que não devia deixar que Hort a abraçasse assim. Daria a
ele a ideia errada. Mas o frio era glacial. E Hort era uma delícia de abraçar,
macio em todos os pontos certos. Além do mais, Agatha estava com Tedros,
então ou ela ficava juntinho do furão ou dormia sozinha, perto da bunda de
um camelo.
Mas havia outra coisa, claro.
O modo como ele a salvara.
Não era apenas o fato de Hort a ter livrado da morte, mas também o fogo
em seu olhar, a chama ardente, como se o menino tivesse se transformado
em homem. Ela sempre o vira como um fraco, um panaca apaixonado, mas
agora tinha vislumbrado o macho alfa, o lobo que exigia seu amor e não
voltava atrás. Sophie nunca admitiria que gostava daquilo. Tramaria a morte
de qualquer garoto ou fera que ousasse reivindicá-la. No entanto, ali estava,
deixando que ele a tocasse, muito embora seus dedos cheirassem a fumaça e
peixe.
Virou-se para Hort. “Sobre o que você e Tedros falaram no stymph?
Sempre que via, vocês estavam envolvidos em uma conversa.”
Hort e Tedros olharam um para o outro.
“Dicas de malhação”, Hort falou.
“Rúgbi”, Tedros completou.
“Ah”, Sophie disse.
Mentirosos.
“Talvez este seja o segundo teste de verdade”, Agatha comentou,
finalmente separada dos lábios de Tedros. “Quanto mais penso no torneio,
mais estranho me parece.”
“Lá vai ela”, o príncipe disse. “Tendo ideias.”
“O que pra você deve ser muito incomum, imagino”, Sophie provocou.
“Do que está falando, Aggie?”
“O torneio é uma corrida. Com três testes. E quem chegar primeiro
ganha”, Agatha raciocinou. “Se Tedros ou Japeth engolissem a pérola, um
deles sairia na frente, enquanto o outro teria que descobrir qual era o
segundo teste. Como Arthur sabia que nenhum deles ganharia? Como já
tinha o segundo teste preparado?”
Tedros se sentou. “Não entendi.”
“Claro que não”, Sophie disse. “Mas Aggie está certa. O fantasma de
Arthur fala dos mortos. No entanto, estava pronto para a eventualidade de
nem você nem Japeth vencerem.”
“Meu pai era minucioso”, Tedros garantiu. “Deve ter se preparado para
todas as possibilidades.”
“Ou ele sabia o tempo todo que matar Agatha seria o segundo teste”,
disse Sophie. “Porque o plano era que Agatha vencesse o primeiro.”
“Você acha que meu pai queria que eu matasse minha futura rainha?”,
Tedros zombou.
Mas Agatha continuou olhando para Sophie. “Aquela frase de quando
ele anunciou o torneio... ‘O futuro que vi envolve muitas possibilidades...’”
“De alguma forma, ele viu o futuro”, Sophie disse, concluindo a ideia de
Agatha.
Tedros zombou de novo: “Meu pai não era mágico. Não tinha como ver
o futuro”.
“No entanto, seu pai sabia que iríamos ao arquivo dele atrás da primeira
resposta. Foi por isso que fez Sader nos deixar pistas lá”, disse Agatha. “Ou
Arthur era bom de palpite, ou ele viu o que viria, mesmo quando August
Sader não conseguiu.”
A expressão de Tedros mudou. “Mas quem teria dito a ele? Quem o teria
ajudado a ver o futuro?”
“São as perguntas erradas”, disse Hort.
Todos se viraram para ele.
“A pergunta certa é se essa pessoa está do seu lado”, ele concluiu.
Sophie e os outros ficaram em silêncio.
Juntos, olharam para Merlin, que agora parecia controlar o fogo,
invocando formas mágicas das chamas: uma árvore, uma caverna, uma
espada...
“Mamãe, Mer-Mer é um feiticeiro!”, ele disse, pulando. “Viu só,
mamãe?”
“Estou vendo, Merlin”, disse Agatha, parecendo ao mesmo tempo
aliviada por ele ainda ser mágico e desconcertada com a velocidade em que
o menino crescia. Desde o dia anterior, tornara-se imprevisível: em sintonia
com seus poderes, mas ainda a semanas de ter ciência de todo o seu
potencial.
“Há tanta coisa que a gente não sabe”, disse Tedros. “Por que meu pai
escondeu o enigma... qual é a ligação entre o Cavaleiro Verde e a Cobra...
se meu futuro está decidido ou se eu o controlo...” O príncipe acariciou o
camelo que dormia. “É melhor que a confiança seja mesmo o caminho, Sir
Camelo. Porque é o único caminho que nos resta.”
“Na verdade, Sir Camelo é fêmea”, disse Agatha.
O príncipe e a princesa logo pegaram no sono.
Hort também começou a bocejar, deixando Sophie de guarda enquanto o
sol se erguia, tingindo o embarcadouro com sua luz invernal. Logo, Uma
voltou com um estoque escasso de peixes. Ela também pegou sono,
enquanto o stymph voltou a voar sobre o mar. Enquanto isso, Merlin
continuava tagarelando, atirando coisas no fogo e criando formas aleatórias.
Depois de um tempo, até o menino se cansou. Sophie lhe deu mais uma
dose da poção, e ele se deitou entre ela e Hort.
Sophie se forçou a ficar acordada, com os olhos fixos no mar, atentos a
qualquer barco que se aproximasse. Suas pálpebras pesaram, e o fogo
embaçou sua vista. As chamas pareceram mais altas, ganharam cores pouco
naturais, assumiram novas formas, como se Merlin as controlasse mesmo
dormindo, como se fossem um vislumbre de seu inconsciente. Primeiro,
uma borboleta azul... depois uma cobra preta... então um homem verde, sem
cabeça, erguendo-se do fogo, o pescoço era um coto ensanguentado...
Mas ele tinha cabeça, Sophie via agora.
E a carregava debaixo do braço.
Era a cabeça de Tedros.
“Bu!”, Tedros disse.
Sophie despertou, já banhada pelo sol.
O fogo tinha apagado, e as cinzas havia muito haviam esfriado.
Merlin dormia profundamente, aconchegado no peito de Hort. Agatha e
Tedros também dormiam.
Mas havia algo de diferente.
O camelo, Sophie se deu conta.
Tinha sumido.
Ela ergueu os olhos.
Havia um barco no cais.
As velas, vermelhas e douradas.
Um nome estava gravado na popa.
Shazabah Sikander
Uma sombra recaiu sobre Sophie e os amigos, como se nuvens
bloqueassem o sol.
Só que não havia nenhuma nuvem no céu, que estava todo branco.
Sophie se virou, devagar.
Seu sangue gelou.
“Aggie?”, chamou.
Agatha se virou para onde Sophie estava olhando. Ela endireitou o corpo
na hora e acordou Tedros. Hort e Uma também se despertaram, e o furão
pegou Merlin.
Pelo menos cinquenta soldados olhavam para eles, todos usando
armadura vermelha e dourada, com sabres curvos e lanças na mão.
Estavam com o camelo. Tinham posto uma coleira no animal e o
acorrentado.
Mas o camelo não resistia. Não lutava contra seus captores.
Só sorria.
Sorria para Agatha e Tedros, como se aquele fosse o barco pelo qual
tinham passado todo aquele tempo esperando.
A criatura grunhia, tranquila, produzindo o mesmo som repetidamente.
Um som que Sophie já tinha ouvido. O lema daquele camelo.
A confiança é o caminho.
A confiança é o caminho.
A confiança é o caminho.
Quando os guardas avançaram na direção dela e de seus amigos, com os
sabres erguidos, Sophie de repente compreendeu.
O camelo não estava falando de “confiança”.
Estava falando de outra coisa.
Porque havia uma só palavra para “confiança” e “morte” em camelês.
E eles tinham entendido errado.
W 16 w
O COVEN
Onze
THE MIRAGE
Best Food in the Desert
Appearing Nightly
Arma secreta
Olhos de cobra
Carne e osso
O quarteto de Agathas
As Feras e a Bela
CANTE
Sophie se virou para não o perder de vista, mas a carruagem já tinha
virado para oeste e entrava no coração da floresta de Camelot.
Ela se conteve. Enquanto a copa das árvores escurecia o céu, as Mistrais a
observavam através do reflexo no vidro. Lá fora, os guardas de Camelot não
passavam de contornos. Sophie já havia cantado mil músicas na vida,
músicas de amor que não tinham dado em nada, de modo que não conseguia
se lembrar de nenhuma. Ela não tinha tempo para pensar. Cante! Cante
alguma coisa!
“Sou Uísque Woo, a rainha pirata!”
Não aquilo.
De novo, a fumaça apareceu do outro lado da janela.
ALTO
“Sou Uísque Woo, a rainha pirata!”, ela gritou.
“Chega”, Alpa a cortou.
“Uísque Woo! Uísque Woo!”, Sophie cantou, em um tom infernal. “Sou
Uísque Woo, a rainha pirata! Não tenho nem dezoito, mas me garanto na
bravata!”
“Chega!”, Bethna vociferou.
“Sou Uísque Woo, pirata sem igual! Antes conhecida como a Reitora do
Mal!”
Ela cantarolou tão alto que a carruagem pareceu se sacudir. Sua voz
parecia iniciar um estranho farfalhar do lado de fora. “Sou Uísque Woo, a
rainha do mar! Sem autógrafos, por favor, ou vou invocar!”
“Já dissemos que chega!” Omeida retorceu a mão, e o scim perfurou a
pele de Sophie.
Ela não desistiu, enquanto a carruagem seguia aos solavancos, em meio
aos sons abafados das flores. O scim a cortou mais fundo, e a música se
tornou um grito de dor: “Uísque Woo! Uísque Woo!”.
A carruagem parou com violência, lançando Sophie na direção das
Mistrais, o scim esmagado entre as cabeças de Alpa e Bethna, as irmãs e a
prisioneira jogadas no chão.
Lá fora, a floresta se encontrava em silêncio, agora que a carruagem tinha
parado.
As Mistrais pareceram confusas. Então abriram a porta e saíram,
arrastando Sophie consigo.
Havia alguns guardas no chão, nocauteados, com o rosto cortado e o
capacete esmagado. Sophie já tinha visto aquele tipo de massacre. Então viu
o restante dos guardas reunidos em torno da carruagem, com os olhos
assombrados, espadas e bestas apontados para o que quer que tivesse atacado
na escuridão. As Mistrais também revistaram a noite, segurando a prisioneira
pelas correntes. A cantoria de Sophie as havia distraído da força que havia
acabado de destripar metade dos guardas.
Uma coisa era certeza.
Quem quer que tivesse feito aquilo estava com raiva.
Com muita raiva.
Sophie sorriu sozinha.
Ela provocava mesmo aquele efeito nos homens.
Das árvores, veio uma forma maciça, cheia de dentes e pelos, rosnando.
Ela caiu sobre a carruagem e a destroçou, antes de pegar Sophie em suas
garras e se lançar de galho em galho pela escuridão, começando com o mais
próximo.
Sophie relaxou no peito da fera, que atravessava a floresta enquanto
tentava soltar a coleira que tinham posto nela.
“Meu príncipe.” Sophie suspirou. “Só que mais peludo.”
“Você gosta de mim assim, não é?”
“Se ao menos você não cheirasse a cachorro molhado...”
“Se ao menos você não vivesse se metendo em perigo, me fazendo suar
para te salvar...”
“Eu e os problemas somos como você e...”
“Você?”
“Sou uma loba solitária, muito obrigada.”
“Uma loba solitária que tem que ser resgatada o tempo todo.”
“Está dizendo que não posso cuidar de mim mesma?”
“Estou dizendo que você pode cuidar de si mesma se deixar que eu cuide
de você.”
“Ah, meu bem. Quando você voltar a ser o furãozinho pelado, vamos
fingir que essa conversa nunca aconteceu.”
O focinho dele roçou a orelha dela. “A Bela e a Fera. O final é feliz, não
é?”
“Se você acha que uma garota beijar uma fera é um final feliz... Eu não
acho.”
“Estou bem tentado a te largar agora mes...”
Ele gritou de dor. Sophie se virou e viu os guardas de Camelot se
aproximando, com as bestas apontadas, acompanhados pelos soldados
mascarados de Pifflepaff, que disparavam suas flechas. Uma atingiu as
costelas do homem-lobo, outra, o ombro. O terror era visível nos olhos dele.
Mais flechas foram lançadas na direção da árvore em que se encontravam...
Sophie acendeu o dedo e transformou as flechas em flores – flores com
dentes afiados, devoradoras de homens, que choveram como piranhas sobre
os soldados aos gritos. Ela se virou para o lobo, que estava todo
ensanguentado, sua pegada cada vez mais fraca na árvore.
“Precisamos descer”, Sophie ordenou, com a bochecha contra a dele.
“Ponha o braço à minha volta. Vamos juntos.”
Ele balançou a cabeça, sem dizer nada.
“Por favor”, Sophie implorou. “Precisamos encontrar ajuda.”
Ele olhou para ela, um garoto assustado em um corpo de homem-lobo.
“Eu te amo, Sophie”, disse. “Amo tudo em você. Mesmo as piores partes.
São tão lindas quanto as partes boas. No momento em que te conheci, soube
que não poderia amar outra pessoa. Não como amo você. Eu tentei, Sophie.
Tentei abrir mão de você. Mas o amor não permite esse tipo de escolha. Não
o amor verdadeiro. Pelo menos agora você sabe. Que sua história sempre
teve um final feliz. Que você teve amor verdadeiro. Sempre.”
Lágrimas rolaram pelo rosto de Sophie, misturadas ao sangue dele. “Não
fale assim. Você é minha Fera. E essa história tem um final feliz, como você
disse. Vamos dar um jeito. Fique aqui. Comigo. Não me deixe, está bem?
Não desista de mim.”
Mas a vida já se esvaía dos olhos dele. Em seu reflexo, ela viu mais
guardas chegando, centenas deles, empunhando arcos e espadas.
Um mar branco começou a chegar, como neve varrendo um campo, e
arrastou os exércitos mais abaixo. Estou vendo coisas, Sophie pensou.
Cisnes fantasmas que vinham salvar os dois. Quando a onda branca chegou
mais perto, cercando a árvore em que se encontravam, ela viu que não eram
cisnes.
Eram cabras.
Inúmeras delas, lideradas pelo velho bibliotecário da Escola do Bem e do
Mal, com seu bigode grisalho. Sophie sorriu para o bando de anjos
mandados pelo céu... depois voltou a olhar para seu lobo e viu que os olhos
dele tinham se fechado, que o corpo dele estava caído contra uma árvore,
que sua pegada enfraquecia.
“Não!”, Sophie gritou.
Ele a soltou, e Sophie tentou segurá-lo enquanto seu corpo caía, gritando
seu nome como uma canção de amor, Hort, Hort, Hort, até que sentiu o
abraço de pelos brancos e macios muito diferente do abraço da fera que ela
deixava para trás.
Algo quente e fofinho roçou a bochecha dela.
“Hort?”, Sophie sussurrou, despertando do sono.
Seus olhos estremeceram ao se abrir para um banho de luz e para uma
mama cor-de-rosa pressionada contra seu rosto. Ela estava presa à parte de
baixo de uma cabra, seu peito colado à barriga gorda do animal, seu rosto
próximo ao traseiro. Estava prestes a gritar...
...até que viu duas outras cabras correndo atrás da dela, no meio de um
mercado lotado, com Willam e Bogden presos à barriga de cada uma.
Os dois levaram o dedo à boca, mandando-a ficar quieta.
Por um momento, Sophie não entendeu como tinha ido parar embaixo da
cabra, até que se deu conta de que seu vestido tinha aderido magicamente à
barriga do animal. Ela virou o pescoço e viu mais cabras à frente,
conduzidas por um pastor usando capa e capuz verde em meio às barracas
movimentadas, cheirando a romã, pêssego, sândalo, óleo de rosa, canela e
cardamomo. Habitantes locais em vestes caras se locomoviam por entre as
cópias de Excalibur, preocupados demais com as compras para prestar muita
atenção, enquanto os becos próximos ao mercado estavam lotados de
camponeses pobres que usavam as espadas de Arthur como mastro para suas
barracas.
Sophie conhecia aquele lugar.
Estavam no Mercado dos Produtores, o principal ponto da cidade de
Camelot. O vestido de Sophie a prendeu com mais força contra a cabra,
camuflando-a contra a pele cor de pêssego do animal. Estavam saindo do
mercado. A multidão se dispersou e o pastor continuou conduzindo suas
cabras pelo caminho que levava ao castelo do rei.
Sophie se virou para os outros. “Onde está Hort? O que está acontecendo?
Precisamos ir a Foxwood.”
Bogden tampou o nariz enquanto sua cabra fazia cocô. “Conte a ela,
Will.”
O outro explicou rápido. “Enquanto vocês estavam em Shazabah, Bogs e
eu viemos a Camelot. Foi o que Tedros nos pediu: para vir até o velho padre,
de quem eu costumava ser coroinha, para ver se ele podia nos ajudar. Então
Hort chegou de Shazabah, com duas cabras que tinha encontrado ao longo
do caminho... dois bibliotecários, na verdade. Um da escola e um da
Biblioteca Viva, que conhecia Pospisil e queria ajudar a encontrar a
Excalibur. Então ouvimos dizer que você tinha encontrado a espada em
Foxwood e estava sendo levada para a masmorra de Camelot. Hort pirou e
insistiu que fôssemos te resgatar. Por sorte, os bodes tinham amigos. Hort te
rastreou e nos disse para esperar na floresta de Camelot, com as cabras, até
ouvirmos o sinal.”
“Que sinal?”, Sophie perguntou.
“Uma cantoria horrível”, respondeu Bogden.
Sophie ficou vermelha. “Mas onde ele está?”
“Hort nos disse que, não importava o que acontecesse, Bogs e eu
devíamos te levar embora assim que te encontrássemos. Que você era nossa
missão. Ele nos encontraria no lugar combinado depois”, respondeu Willam.
Bogden viu o pânico na expressão de Sophie. “É o Hort. Nada de ruim
pode acontecer com ele.”
“Hort vai estar no ponto de encontro”, Willam garantiu. “Depois vamos
todos ajudar Tedros.”
Sophie reprimiu uma sensação ruim. Aqueles garotos eram jovens e
estavam apaixonados. Acreditavam no Para Sempre. Acreditavam nas
regras. Mas o mundo havia mudado. Regras não significavam nada agora, ou
Lesso, Dovey e Robin Hood ainda estariam vivos. Naquela história, coisas
ruins aconteciam com pessoas boas. E algo de ruim tinha acontecido com
Hort. Mesmo assim, Sophie não podia perder as esperanças. Ainda não. Hort
sempre mantivera suas promessas. E, se dissera que estaria no ponto de
encontro, ele daria um jeito.
“Vocês disseram que estamos indo para o ponto de encontro.” Sophie
olhou para os garotos. “Por que o ponto de encontro seria no castelo da
Cobra?”
Então os animais viraram para o leste, distanciando-se do castelo e
descendo uma estrada que Sophie conhecia muito bem.
A igreja.
Mas aquele tampouco podia ser o ponto de encontro. Porque, à frente, ela
avistou o pináculo da capela de Camelot, cuja porta estava bloqueada, a
entrada protegida por dois guardas armados.
“O padre é prisioneiro de Japeth. Meu antigo capelão, Pospisil”, Willam
sussurrou para Sophie. “A Cobra não confiava nele depois do discurso que
fez na sua Bênção.”
Ela se lembrava bem daquilo. O padre sabia que o casamento dela com a
Cobra era uma fraude. Tinha usado seu discurso para alertar que, em uma
guerra entre o Homem e a Pena, a Pena sempre venceria: “Com o tempo, a
verdade será escrita, não importa quantas mentiras alguém conte para
escondê-la. E a verdade vem com um exército”.
Mas a verdade também trazia consequências, e o padre agora era
prisioneiro em sua própria igreja. A Cobra havia dado um jeito em outro
aliado de Tedros.
Os homens diante da capela abriram os elmos, revelando os rostos sujos
enquanto o pastor passava com as cabras, sem demonstrar qualquer interesse
por aquilo.
“Isso é o máximo de ação que temos aqui”, o primeiro guarda resmungou.
“Anime-se. Depois vamos para a masmorra, não é?”, disse o segundo. “É
para onde Sophie vai ser mandada.”
O primeiro guarda abriu um sorriso sórdido. “Pena que teremos que
manter a garota viva até o casamento.”
“Acidentes acontecem”, o segundo comentou.
Sophie memorizou o rosto dos dois.
Um dia, iria atrás deles.
As cabras seguiram em frente, passando pela igreja e pelos campos
cultivados na direção dos estábulos de Camelot. Alguns porcos enlameados
enfiaram a cabeça por entre o cercado e ficaram olhando. À frente, a porta
do galinheiro estava aberta, e um bando de galinhas confusas foi para o sol.
Havia algumas mortas também, sem a cabeça, como se os porcos tivessem
escapado. E dizem que porcos são vegetarianos!, Sophie pensou. O pastor
conduziu as cabras para dentro. Assim que Sophie e os garotos, que estavam
escondidos nos últimos animais, entraram, ele fechou a porta e a bloqueou
com um pedaço de madeira. Estava escuro e o cheiro era forte lá dentro. As
cabras estavam cansadas, e as galinhas remanescentes, que cacarejavam com
estridência, logo pararam.
“E agora?”, Sophie sussurrou.
Em algum lugar, uma chama se acendeu, iluminando o local.
Willam e Bogden desceram da barriga das cabras e sacudiram as mãos e
pernas tensos, enquanto o vestido de Sophie a derrubou em meio aos seixos
do chão. Ela se levantou e viu que o pastor, cujo rosto continuava escondido
pelo capuz, segurava uma tocha.
“Há uma razão para as cabras gostarem de mim”, disse uma voz seca e
ofegante.
O pastor tirou o capuz.
“Eu mesmo sou um bode velho”, Pospisil gracejou.
Sophie arregalou os olhos para o padre perigosamente velho e de nariz
vermelho de Camelot. “Mas os guardas... como você...?”
Pospisil acenou para as cabras. “Muito bem, meus filhos! Vamos fazer a
chamada? Bossman! Ajax! Valhalla! O restante! É só dizer seus nomes e
tudo certo!”
Sophie conteve um gemido. Ela não tinha mesmo sorte. O único adulto
disponível para ajudar era um velho senil.
Ouviram-se baques por toda a sala.
De corpos caindo no chão.
Foi então que Sophie se deu conta.
Não eram apenas três cabras escondendo passageiros.
Eram todas.
“Em primeiro lugar, é Bossam, e não Bossman”, disse um garoto Nunca
peludo e com três olhos.
“Eu sou Valentina, não Valhalla. E ele é Aja”, disse uma garota Nunca de
sobrancelhas finas.
“Ajax parece nome de gorila”, resmungou um garoto Nunca com cabelo
cor de fogo e cara de desamparado.
Sophie viu dois bodes velhos dando risadinhas em um canto – um era o
bibliotecário da escola, o outro usava um crachá com o nome GOLEM. Era
como se a falta de aptidão de seu amigo padre com nomes fosse uma piada
interna. Sophie começou a listar os nomes mentalmente: Valentina, Aja,
Priyanka, Bossam, Laithan, Bodhi, Devan, Laralisa, Ravan, Vex, Brone,
Mona, Willam, Bogden...
“Hort?”, Pospisil chamou. “Onde está Hort?”
Sophie olhou em volta, para o espaço lotado de amigos e alunos de
primeiro ano, para muitos dos quais costumava dar aula.
Hort não estava ali.
“Ele era o líder”, disse Laithan, com preocupação. “O que fazemos agora?
Como vamos ajudar Tedros?”
Todos os olhos se voltaram para Sophie.
Ela continuava olhando para a porta, à espera de que Hort entrasse.
Seus pensamentos foram para a árvore, para Hort ferido por flechas...
Ela procurou ser forte. Não podia pensar naquilo. Ele estava vivo. Hort
ainda estava vivo.
“De onde vocês vieram?”, Sophie perguntou a um grupo, depois se virou
para o padre. “Como você escapou da igreja?”
“Todo padre sabe que não pode depender da boa vontade de um rei”,
Pospisil respondeu. “A igreja tem rotas de fuga secretas desde sua
construção. Por sorte, Willam foi um coroinha atento e sabia onde me
encontrar. Com Hort e meus velhos amigos, elaboramos um plano.”
“Quanto a nós, a Princesa Uma foi à escola depois que escapou de
Shazabah”, Ravan respondeu. “Ela ficou sabendo pelos amigos animais que
você tinha sido capturada. Professores não podem interferir em histórias; por
isso, Manley e Anêmona nos enviaram: para resgatar você.”
“Encontramos com Hort na Floresta”, concluiu Vex, que tinha orelhas
pontudas.
“E quanto às Onze?”, Sophie perguntou.
Valentina ignorou a pergunta. “Olha, señora Sophie, a serpiente está a
caminho de Foxwood, para vencer o terceiro teste. Os amigos animais da
Princesa Uma vão tentar segurar Japeth, mas é só uma questão de tempo até
que ele chegue à Excalibur e aí bum, bum, bum!, estaremos todos mortos e
enterrados debaixo de um pé de graviola. Você precisa guiar a gente, como
Hort guiou. Somos seu exército, como fomos o dele. Sempres e Nuncas.
Inteligentes, talentosos e elegantes. Ou pelo menos a maior parte de nós.”
Ela olhou feio para Aja. “Vamos fazer o que pedir, señora Sophie. O que
podemos fazer para ajudar Tedros a vencer?”
Era naquele tipo de situação que Sophie brilhava. Assumindo o comando.
Bolando planos. No entanto, ela só conseguia pensar em Hort. Nos olhos
dele se fechando. Em suas patas se abrindo.
Ela balançou a cabeça. “Japeth tem a seu lado milhares de homens,
exércitos do Bem e do Mal, e o Rei de Foxwood. Os garotos que vivem na
casa onde a espada se encontra, Cedric e Caleb, são apoiadores do ‘Leão’...
Japeth não vai ter nenhuma dificuldade em entrar.” Ela olhou para Pospisil.
As brasas da tocha que o padre segurava estalavam ruidosamente,
iluminando a ele e seus amigos bodes, todos parecendo perdidos, como se já
tivessem feito tudo o que podiam. Sophie recorreu ao vestido, que tampouco
parecia ter respostas. “Não há o que fazer. Não com toda a Floresta do lado
dele.”
“Isso é ridículo. Você é Sophie, a rainha bruxa suprema”, Aja comentou,
com as mãos na cintura. “Você liderou uma escola de Nuncas em uma
revolução glamourosa. Você ganhou o Circo de Talentos e inventou o Sem
Baile. Você matou Rafal, beijou Tedros como menino e menina, transformou
a torre do Diretor da Escola em seu hotel particular, e parecia uma bruxa
totalmente no controle enquanto fazia tudo isso. Você não dá desculpas. Não
desiste. Sempre encontra uma maneira. É por isso que você é você.”
Sophie olhou para Aja, para Valentina, para todos os alunos que a
olhavam, como se ela ainda fosse a reitora, mestra da injúria e da
manipulação. Só que ela não era mais isso. Era só uma garota. Uma garota
que finalmente tinha se aberto para o amor, para o amor verdadeiro, só que
tarde demais. “É Tedros quem tem que sacar a espada. E ele está longe”, ela
disse, tentando engolir o nó em sua garganta. “Ele e Aggie nem sabem onde
Excalibur se encontra...”
As brasas da tocha do padre estalavam mais alto, cortando as palavras de
Sophie. De repente, mais brasas eram cuspidas das chamas, como se a tocha
fosse se desfazer. Por uma fração de segundo, Sophie achou que o lugar todo
ia virar fumaça, mas então notou que as brasas pairavam estranhamente no
ar, como se tivessem vida própria, como se fossem pequenas pérolas âmbar,
zumbindo e cintilando tal qual...
Vaga-lumes.
No mesmo instante, os insetos piscantes formaram uma matriz laranja,
como tinham feito na Terra dos Gnomos. Na tela mágica, Sophie viu a
imagem granulada de Tedros e Agatha em meio à neve, montados em um
animal, afastando-se do castelo de Avalon. Então Sophie notou que Agatha a
encarava, com os olhos brilhando, como se conseguisse ver a amiga em uma
tela de vaga-lumes do outro lado.
“Sophie? É você?”
“Aggie!” Sophie perdeu o ar. “Encontrei a espada!”
“Na casa de Chaddick”, Tedros a cortou.
“I-isso!”, Sophie confirmou, surpresa. “Como vocês...?”
Tedros virou o rosto para a tela. “Encontre a gente na cabana da Branca
de Neve. Em Foxwood. Depressa!”
“Não! Foxwood é perigoso demais!”, Sophie disse, enquanto a tela
falhava, como se a conexão estivesse instável. “Vão ter exércitos lá!
Milhares de homens! Vocês não podem ir para lá!” Os vaga-lumes se
apagaram. Seus amigos sumiram. “Não! Não posso perder os dois
também!”, ela gritou. Todo o medo que ela vinha reprimindo extravasou. O
luto tomou conta, ela levou o rosto às mãos, respirando com dificuldade.
“Ele morreu. Sei que morreu... Tentei salvá-lo... Fiz tudo o que pude... Mas
ele me soltou... Eu disse para não fazer isso...” Sophie soluçava tanto que
seu corpo todo se sacudia. “Eles não podem ir a Foxwood... Por favor... Não
posso perder mais ninguém... Não depois dele...” Devagar, o choro foi se
abrandando. “Só que vou perdê-los de qualquer jeito, não é?” Sophie ergueu
a cabeça, com as bochechas molhadas. “Se deixarmos que a Cobra vença,
todos perderemos. De modo que tudo o que Hort fez para me salvar terá sido
em vão. Ele me diria isso, se estivesse aqui. Para ser corajosa por ele. Para
concluir seu trabalho.” Sophie endireitou o corpo, enxugando os olhos. “Mas
como? Aggie e Teddy estarão mortos no segundo em que se aproximarem de
Foxwood. A menos que haja outro modo de entrar no reino... outro modo de
colocar os dois lá dentro...”
“Tem o modo como dei conta dessas galinhas todas, claro”, disse uma voz
jocosa.
Sophie se virou para o canto.
Os dois bodes bibliotecários se separaram, revelando um gato sem pelos e
enrugado, mexendo em uma pilha de cabeças de galinha com a pata.
“Agi como se fosse amigo delas”, ele explicou.
Os vaga-lumes formaram uma coroa sobre as orelhas dele.
“Bruxa de Além da Floresta”, o gato a cumprimentou, com os olhos
amarelos brilhando.
“Rei Teapea”, Sophie sussurrou.
Ela voltou a pensar em Hort.
Daquela vez, não houve lágrimas.
Em vez disso, seus olhos também brilharam no escuro.
W 29 w
AGATHA
Ela nunca tinha visto aquele tipo de dor nos olhos de Sophie. Nem em
Gavaldon, nem na escola, nem nos anos que se seguira,
Algo havia acontecido à amiga desde que haviam se separado. Algo que a
mudara.
Pelo menos Sophie estava viva.
E não só isso: ela tinha um exército.
Também encontrara a Excalibur.
Como Agatha e seu príncipe.
Claro que sim, Agatha pensou.
Ela não esperava menos da melhor amiga.
Como se O conto de Sophie e Agatha nunca tivesse acabado, a Pena ainda
escrevia seus destinos em uma sinfonia inextricável, mesmo quando estavam
separadas, com harmonia e melodia na mesma medida.
O rato preto gigante avançava depressa pelas Planícies de Gelo,
contornando as espadas, chutando a neve gelada da frente, forçando Agatha
a se agarrar à cintura de Tedros e se encolher às suas costas, como se ele
fosse um escudo. O príncipe segurava a coleira do rato e pressionava seu
flanco com os calcanhares, para que fosse mais rápido, absorvendo todo o
impacto do ar gelado. No segundo rato, que vinha atrás dele, estavam
Anadil, Hester e Merlin. O jovem bruxo estava vomitando para o lado
quando o rato de Anadil pareou com o de Tedros.
“Isso é porque você comeu aquele monte de porcaria do seu chapéu”, o
príncipe o repreendeu.
“Você... não... é... meu pai”, Merlin retrucou, então vomitou de novo.
“É por isso que não gosto de meninos”, Hester resmungou. “Eles são
incapazes de passar pela puberdade sem causar.”
“Para ser justa, você não gosta de meninos por um monte de outros
motivos também”, disse Anadil.
“Como vocês nos acharam?”, Agatha perguntou às bruxas.
Hester acenou com a cabeça para seu demônio, que estava no alto, em
meio ao céu azul da noite, procurando possíveis perigos à frente. “Depois de
Shazabah, pedi a ele que sobrevoasse a Floresta atrás de vocês dois.”
“Falei pra ela não fazer isso. Se o demônio morrer, ela também morre”,
Anadil comentou, azeda.
“Ele encontrou os dois, não foi? E senti quando isso aconteceu, assim
como você sentiu que seus ratos estavam por perto antes que os
encontrássemos na Floresta. Um pouco detonados”, disse Hester, acariciando
uma parte sem pelo do corpo do animal, onde ele havia sido atingido pelo
fogo do camelo, “mas não estamos todos assim?” Ela se virou para Agatha.
“Vocês têm certeza de que a espada está na casa de Chaddick?”
“Tem que estar”, disse Tedros, quase que para si mesmo, ainda pensando
no que havia acontecido na caverna da Dama do Lago. “É a única opção.”
“E Sophie confirmou”, Agatha disse para as bruxas, que pareciam
desconcertadas com tudo o que ela e Tedros haviam contado depois de seu
reencontro em Avalon.
“Chaddick, o rei”, Anadil disse, baixo. “Não parece certo.”
“Por isso Chaddick nunca se tornou rei”, Hester comentou. “O Storian dá
um jeito de consertar as coisas, mesmo que pareça errado.”
As bruxas e Agatha olharam para Tedros, procurando entender como se
sentia, mas o príncipe manteve os olhos no caminho congelado.
“Estamos... chegando?”, Merlin conseguiu perguntar.
Então vomitou de novo, despertando os vaga-lumes pousados no rato.
Eles piscaram brevemente, depois voltaram a dormir, exaustos da viagem e
do esforço que haviam feito para que Agatha pudesse ver Sophie.
“Vaga-lumes da Terra dos Gnomos... Deve haver alguns com Sophie
também... Só assim para ela ter nos visto”, Tedros disse, olhando para
Agatha. “O que significa que os gnomos sabem onde ela está.”
Agatha viu aonde ele queria chegar.
Reaper.
O gato dela era rei dos gnomos.
O vento ficou mais forte. Os ratos grunhiram alto, esforçando-se para
avançar em frente. “Sophie encontrou a espada. O que significa que ela sabe
onde fica a casa de Chaddick, coisa de que não faço ideia”, Tedros gritou
para Hester. “Pedi a ela para nos encontrar na cabana da Branca de Neve, em
Foxwood. Foi o primeiro lugar em que consegui pensar. Está vazia desde
que os zumbis de Rafal mataram os anões. Se Sophie sabe mesmo onde
Chaddick morava, pode nos levar até lá.”
Agatha notou que Hester e Anadil se entreolharam. “O que foi?”
“Japeth deve saber que a espada está em Foxwood”, respondeu Anadil.
“Foi por isso que a mensagem da Lionsmane desapareceu.”
“Estes ratos são tão velozes quanto os cavalos dele”, Tedros afirmou.
“Mas Japeth é só um dos nossos problemas”, Hester o cortou. “Toda a
Floresta está mandando exércitos para protegê-lo e garantir que vença o
terceiro teste. Vimos esse deslocamento, logo depois que a mensagem
desapareceu. Se a espada está na casa de Chaddick, deve ter milhares de
soldados indo para lá também.”
“O que significa que levar você para qualquer lugar perto de Foxwood vai
ser... um desafio”, concluiu Anadil.
Agatha pensou nas últimas palavras de Sophie, transmitidas pelos vaga-
lumes: “Não! Foxwood é perigoso demais!”.
Ela sentiu os músculos de Tedros se enrijecerem sob seus braços. “O que
quer que nos aguarde, vamos dar um jeito”, ele disse, seguro.
Agatha não disse nada.
O que era estranho.
Estava acostumada a temer por seu príncipe, o que a fazia se meter nas
buscas deles e tentar sempre protegê-lo. Mas algo havia mudado em Tedros
desde que ouvira a história da Dama do Lago. Suas antigas dúvidas haviam
desaparecido, substituídas pela certeza de sua missão. Agora Agatha
confiava nele. Porque ele confiava em si mesmo. Por cima do ombro de seu
príncipe, ela podia ver o ardor em suas bochechas cobertas pela barba por
fazer, o azul cristalino de seus olhos. Ele mantinha o peito aberto, orgulhoso;
seus cachos dourados voavam ao vento. Agatha permaneceu em silêncio,
deixando-o sossegado, assim como havia se mantido à distância enquanto
Tedros se despedia da Dama, à margem do lago. Agatha só observou a
silhueta de ambos, a dele, forte e ereta; a dela, encolhida e assustada,
enquanto o príncipe sussurrava para a Dama, cuja expressão de repente se
alterou. Tedros dissera algo que a afetara, e as sombras e a dor já se esvaíam.
Atrás dos dois, o lago começara a descongelar. De suas águas prateadas, a
Dama retirou uma maçã, tão verde quanto possível, que entregou ao
príncipe, como se fosse um presente. Não podia ser mágica, Agatha
concluíra, porque tinha perdido seus poderes de feiticeira, mas Tedros não
parecera se importar. Ele a beijou no rosto, perdoando a Dama do Lago por
seus equívocos. Já não havia raiva, agora que os segredos tinham sido
revelados. Seria a última vez que os dois se veriam. Agatha tinha certeza. A
Dama do Lago estava em paz. Seus dias logo terminariam, por vontade
própria. Mas Tedros ainda tinha muitos dias de luta pela frente. Uma luta
com um fim incerto. Agora, Agatha o abraçava forte, com uma mão em seu
peito, a maçã dentro do gibão, firme contra o coração do príncipe.
“Vamos dividir”, Agatha falou. “A maçã, digo. Não comemos nada desde
Shazabah.”
Tedros tirou a mão dela do peito e a beijou.
“Onde está Dot?”, ele perguntou às bruxas.
“A mãe a levou a uma médica bruxa na Floresta de Sherwood, para tentar
rejuvenescê-la”, disse Hester.
“A mãe de Dot conhece muito bem a Floresta de Sherwood”, Anadil
acrescentou.
Surpresa, Agatha olhou para as duas. Hester deu uma piscadela para ela.
As bruxas também tinham descoberto.
“A mãe dela?”, Tedros perguntou, sem tirar os olhos do caminho. “Quem
é a mãe de Dot?”
“Não se preocupe. Não é a sua”, Merlin respondeu, enfim se endireitando
no rato.
Tedros virou a cabeça para o jovem feiticeiro. Por um segundo, Agatha
achou que ia bater nele. Então uma risada irrompeu do príncipe. “O mesmo
Merlin de sempre...”
A noite se aprofundou, deixando o céu preto. Os ratos seguiam em frente
mesmo assim, com os olhos brilhando no escuro, enquanto Merlin se livrava
das espadas à frente usando raios cor-de-rosa, que ficavam maiores e mais
fortes conforme o jovem feiticeiro aperfeiçoava o controle sobre eles. A luz
cortava as planícies geladas em todas as direções com estalos furiosos,
conforme o caos da adolescência dava lugar à maturidade, e as cinzas das
espadas de Arthur emanavam uma fumaça cor-de-rosa. Então, de repente,
árvores se fecharam sobre eles, cada vez mais próximas, prendendo-os na
escuridão da floresta. As folhas farfalharam com um movimento, e o brilho
de ossos brancos e órbitas vazias acompanhava os invasores. Os pássaros
recuaram, deixando que passassem. Ali, na Floresta dos Stymphs, não
haveria forças inimigas, uma vez que era território da Escola do Bem e do
Mal, e ninguém se aproximava dela sem sofrer as consequências. Os zumbis
de Rafal e os piratas de Rhian haviam aprendido a lição do jeito mais difícil.
Agora, era a única parte da Floresta intocada pelas espadas falsas, como se
Arthur também soubesse que a escola estava além de seus domínios, igual e
separada de Camelot como era. O demônio de Hester voltou para o pescoço
dela, tendo concluído seu trabalho, e os ratos puderam avançar mais
rapidamente pelo caminho desimpedido. O rato em que Tedros estava seguiu
à frente, deixando as bruxas e Merlin para trás. O caminho agora parecia tão
suave e as costas de Tedros se apresentavam tão quentes e firmes contra o
peito de Agatha que ela sentiu as pálpebras pesarem. Quando seu príncipe
falou, sua princesa não tinha certeza se era um sonho ou não.
“Agatha, preciso que me prometa uma coisa.”
“Hum?”
“Se algo acontecer comigo em Foxwood, não chore por mim.”
Agora ela estava totalmente desperta. “Tedros...”
“Me escute. Você precisa seguir em frente. Tem que continuar lutando.
Fazer o que precisa ser feito. Não deixe que o que acontecer comigo nos
impeça de chegar ao Fim. Estarei com você na vida e na morte.”
“Não deixarei que nada aconteça com você.”
“Me prometa que vai seguir em frente. Me prometa que vai lutar.”
“Tedros, você e eu... somos um só. O que quer que aconteça com você
acontece comigo.”
“Prometa, Agatha.” Ele levou a mão à coxa dela. “Por favor.”
Sua voz era firme, como se não pudessem seguir em frente sem que
Agatha prometesse. Como ela poderia dizer a ele que nunca concordaria com
algo do tipo? Que a morte dele representaria a morte dela? Tedros não
deixava espaço para os sentimentos dela. Era o rei ordenando algo a sua
princesa. Por seu reino. Pelo Bem maior. E o Bem era sagrado para Agatha,
mais sagrado que o amor.
“Prometo”, ela disse.
Tedros exalou devagar. Seus ombros relaxaram, como se a promessa dela
o libertasse.
“Pode fazer a mesma promessa?”, Agatha pediu. “Caso algo aconteça
comigo?”
Agora o segundo rato os acompanhava, com Merlin e as bruxas brigando.
“Vocês não podiam ter encontrado uma poção de envelhecimento melhor?
Uma que não funcionasse no ritmo de uma lesma?”, o jovem feiticeiro dizia.
“Podiam ter ido a qualquer bruxa...”
“Essa receita é da minha mãe, que era uma bruxa”, Hester retrucou. “Os
professores da escola não tinham nenhuma opção melhor.”
“Era só ter ido à biblioteca”, Merlin insistiu. “Tem milhares de poções de
envelhecimento mais eficientes que esta. O antigo eu poderia recitar várias
dormindo!”
“Então faz uma você!”, Anadil exclamou.
“Sua poção é tão inútil que nem me lembro dos meus feitiços!”
“E eu achando que você ficaria grato por tudo o que fizemos”, Hester
resmungou, como uma mãe magoada.
“Se não fosse pela gente, você ainda seria um bebê em uma caverna, em
vez de um adolescente encrenqueiro enchendo a paciência com suas
mudanças de humor”, Anadil acrescentou.
O jovem feiticeiro gemeu. “Não aguento isso, ter que ficar na companhia
de duas garotas que não querem saber de nada além de defender uma à
outra.”
“Isso porque somos companheiras”, Hester retrucou.
“Ah, então agora sou sua companheira?”, Anadil disse, olhando para ela,
logo atrás. “Isso não precisa ser conversado?”
“No sentido de colegas”, disse Hester.
“Não foi o que pareceu”, insistiu Anadil.
“Por favor, meu Deus, que eu não seja adolescente por muito tempo
mais”, Merlin implorou.
“Você quer que eu diga te amo, como os meninos Sempre fazem?”
“Se fizer isso vou cortar sua garganta”, Anadil retrucou.
Agatha ouviu Tedros rir. A seriedade da promessa anterior havia passado,
e a pergunta que ela fizera foi esquecida. Ela sabia que não devia insistir. A
voz das bruxas sumiu quando os ratos seguiram cada um para um lado de
modo a contornar um aglomerado de árvores, deixando Agatha e seu
príncipe sozinhos.
“No que está pensando?”, Tedros perguntou.
“Ah, só nos diferentes tipos de amor”, Agatha respondeu.
“Tipo, o que aconteceria caso Hester e Anadil se casassem? Se terminaria
em massacre em vez de baile?”
“Só no massacre de príncipes de mente fechada.”
“Eu já beijei garotos, virei uma menina e vou me casar com você.
Ninguém pode dizer que tenho a mente fechada.”
“É engraçado, não é? Há tantas maneiras de amar”, Agatha disse,
melancólica. “Eu e você, Sophie e eu, você e... Filip.”
“Não me envergonho disso. Só de quem Filip acabou se revelando.”
“Sophie virou um garoto bem bonito.”
“Sem dúvida. Mas de que vale a beleza quando se baseia em uma
mentira?”
“Às vezes, o mundo todo parece uma mentira.”
“Do que está falando?”
“Só que nada é o que parece. Sempre acho que entendi a história, aí
percebo que não é o caso.”
“Não era assim no Mundo dos Leitores?”
“Aqui, tudo é possível. Na vida real, as pessoas temem o que não
entendem.” Agatha pensou na mãe, Callis, perseguida pelos que achavam
que era uma bruxa. “É por isso que, no lugar de onde venho, apenas crianças
leem contos de fadas. Em algum momento, as pessoas ficam com medo dos
mistérios da vida. Com a idade, a vida em si fica cada vez mais reduzida. As
pessoas julgam com base nos medos, e não no coração. No seu mundo, nem
todos podem ter um final feliz. A Pena não permite. No meu mundo, todos
acham que merecem isso. Quando as coisas dão errado, as pessoas se viram
umas contra as outras. Tentam mudar seu destino. E quando não
conseguem... o Mal nasce. O verdadeiro Mal. Do tipo que matou minha
mãe.”
“Parece que Japeth se daria bem lá”, comentou Tedros.
Agatha pensou a respeito. “Tedros...” Ela olhou para seu príncipe. “E se
Japeth trapacear? E se usar o sangue de Chaddick de novo, como usou com
Rhian? E se a Excalibur achar que ele é o herdeiro?”
Tedros sorriu para ela. “Estou contando com isso.”
Agatha não fazia ideia do que ele queria dizer, mas a tranquilidade nos
olhos de seu príncipe impediu que fizesse mais perguntas. Era como se, pela
primeira vez, Tedros estivesse à frente dela. A floresta se abriu para um
campo de salgueiros, suas folhas cintilavam, prateadas, como enfeites numa
árvore de Natal, e o brilho da alvorada já afastava a escuridão. Agatha olhou
para trás, para o segundo rato, bem distanciado deles, que só agora saía da
Floresta de Stymphs. Ela sentiu um buraco no estômago, de fome. Não
podiam parar, e o chapéu de Merlin estava fora de alcance.
“Acha que Chaddick teria dado um bom rei?”, Tedros perguntou.
“Não. Acho que não”, respondeu Agatha. “Ele sempre recorreria a você.”
“Você só está querendo me agradar.”
“Estou faminta demais para isso. Chaddick nasceu para ser um cavaleiro.”
“Um cavaleiro leal”, completou Tedros.
Ele ficou pensando em seu amigo e suserano.
“Mas não foi feito para liderar”, admitiu.
Os dois ficaram quietos.
Agatha beijou a nuca de Tedros. “Posso comer sua maçã?”
Ele suspirou. “Acho que vou guardar para mais tarde.”
Sua voz soou distante. De repente, Agatha sentiu a cabeça pesada e lenta.
O sono a tomou de assalto, mais forte que antes, com uma sensação de
impotência que não era desconhecida a ela. A princesa olhou para os
salgueiros, para as folhas prateadas no alto, que pareciam estrelas...
Salgueiros do Sono... Ela levou a mão ao peito de Tedros para avisá-lo, seus
olhos já se fechavam, mas ele não dava sinais de fraquejar, seus músculos
estavam rígidos, seus olhos, alertas, sua determinação e avidez rebatiam o
feitiço. Agatha procurou se manter acordada, com os punhos cerradas,
decidida a protegê-lo.
Quando abriu os olhos, já era manhã, e o sol brilhava forte sobre
Foxwood.
Seu príncipe havia desaparecido.
Assim como o rato.
Agatha estava encolhida sob uma magnólia, o cheiro doce de mel
invadindo seus sentidos, o burburinho da multidão e o tilintar do metal
soando ao redor. Ela afastou um ramo de flores e avistou no horizonte as
torres finas do castelo real de Foxwood. Antes do castelo havia uma muralha
de soldados, de milhares de homens, vestindo armaduras e portando escudos
variados, reunidos sob bandeiras de diferentes reinos: o verde-ervilha de
Kyrgios, o roxo brilhante de Floresta de Baixo, o xadrez amarelo e laranja de
Hamelin, o vermelho e preto de Akgul. Então Agatha ouviu vozes atrás dela:
dois guardas de Akgul, usando armadura e elmo, cortavam os arbustos com
suas espadas, vindo em sua direção.
“Vi com meus próprios olhos. Era o Príncipe Tedros”, grunhiu um.
“Montado em algo que parecia um rato gigante.”
“Ele deve ter vindo com suas amigas bruxas”, conjecturou o outro.
Eles cortaram mais arbustos, chegando cada vez mais perto de Agatha.
Ela se levantou para fugir...
...então foi puxada de volta.
Agatha se virou e deparou com Hester e Anadil, com o dedo nos lábios.
Agatha fez menção de dizer algo, mas os ratos de Anadil fizeram “shiu!”, de
dentro do bolso dela. Hester apontou adiante, para Tedros e Merlin,
camuflados em meio a um arbusto. Sem produzir som, seu príncipe
sussurrou: Não se mova.
Os dois guardas continuaram cortando os arbustos, e agora estavam a
poucos passos de Agatha. Tedros contou nos dedos, virado para Hester:
três... dois... um...
Merlin e Hester saltaram e lançaram um feitiço em cada um dos guardas.
O de Hester derrubou um homem; o de Merlin fez o elmo do outro aumentar
dez vezes de tamanho, encobrindo sua visão e fazendo com que golpeasse às
cegas. Então Merlin lançou outro feitiço, que transformou a espada do
guarda em um furão. Ele tentou de novo, mas só fez a calça do homem
desaparecer.
“Pelo amor de Deus, Merlin”, Tedros grunhiu.
Ele derrubou o guarda com um soco.
“É a poção. Eu avisei”, Merlin se queixou.
“Nem começa”, disse Hester, soltando o furão em meio aos arbustos.
Alguns minutos depois, dois soldados de armadura vermelha e preta se
juntaram ao exército. Todos os outros procuravam se manter alertas à
presença de Tedros de Camelot.
“A cabana da Branca de Neve fica a leste”, Tedros sussurrou através do
elmo.
“Vai estar bem guardada. O reino todo está”, Agatha sussurrou de volta.
“Vamos direto para a casa de Chaddick...”
“Não sabemos onde fica! Por isso precisamos de Sophie!”, disse Tedros.
Através da viseira, Agatha viu Merlin, Hester e Anadil seguindo a passos
rápidos para o posto de controle de cidadãos, onde guardas procurando por
Tedros voltaram pareadores para eles e permitiram que passassem. O nome
Merlin fizera com que olhassem duas vezes para o adolescente bem-vestido,
mas então eles deram de ombros e deixaram que seguisse em frente. Tedros
sabia que ele e Agatha não passariam pelos pareadores, por isso sugerira se
misturar aos exércitos e encontrar as bruxas e Merlin na cabana da Branca de
Neve. Mas agora o plano parecia tolo.
“Não consigo me mover”, Tedros disse por entre os dentes, apertado entre
dois trolls.
“Nem eu”, disse Agatha, bloqueada por um bando de ninfas de Rainbow
Gale.
Tambores rufaram à distância.
“Pare de empurrar”, um troll vociferou para Tedros. “O Rei Rhian já está
vindo. Todos vamos conseguir vê-lo.”
Tedros e Agatha abaixaram a cabeça, torcendo para que o troll não os
tivesse visto muito de perto.
Os tambores rufaram mais alto, seguidos pelos floreios das cornetas.
“Deve ser Japeth!”, Agatha sussurrou para o príncipe. “Precisamos nos
apressar.”
Uma fanfarra irrompeu atrás deles, com as trombetas de uma procissão
real. As árvores e os arbustos nos limites de Foxwood começaram a tremer.
A folhagem se abriu, e um desfile de cavalinhos de brinquedo teve início,
cada um deles do tamanho de um elefante, cada um deles completamente
coberto de mosaicos de... doce. Havia um cavalo de jujubas, um cavalo de
pirulitos, um cavalo de marzipãs, um cavalo de pés-de-moleque, um cavalo
de trufas, um cavalo de macarons e até mesmo um cavalo coberto de
caramelos. O maior cavalo de todos, duas vezes mais alto que o restante, era
todo de alcaçuz vermelho-vivo. Em cima dele, se erguia uma figura coberta
da cabeça aos pés por um véu também vermelho, seus olhos brilhavam
através da seda diáfana, e uma coroa enorme de fios brancos de açúcar
despontando de sua cabeça, como chifres. A fanfarra parecia vir de dentro do
cavalo, e a figura desconhecida mudava de pose a cada alteração na batida –
fazendo a postura da árvore, a postura da ponte e até praticando uma
invertida sobre a cabeça na sela, em uma espécie de ioga equestre, antes que
os cavalos de brinquedo e os tambores parassem. Com as mãos na cintura, a
mulher de vermelho apoiou o pé na cabeça do cavalo e olhou para as
centenas de exércitos abaixo dela.
“Quem ousa exercer a autoridade aqui?”, ela perguntou, com um estranho
sotaque, ao mesmo tempo refinado e popular.
Um mar de homens olhava boquiaberto para a mulher.
“Perguntei quem alega ser a autoridade aqui”, ela insistiu.
“Eu! Eu!”, gritou uma voz à distância, antes que um homem baixo que já
ficava careca e usava uma coroa torta na cabeça se destacasse dos exércitos,
abrindo caminho. Tinha o rosto corado e suado, usava uma túnica amarelo-
ovo e um lenço marrom horroroso que o deixava um pouco parecido com
Humpty Dumpty. “Sou o Rei Dutra de Foxwood! Este é meu reino!”
“Incorreto, homenzinho”, retrucou a desconhecida em vermelho. “Este é
o meu reino. A Floresta inteira é o meu reino. Sou a Rainha do Açúcar, diva
suprema e senhora dos reinos ao longo do Mar Selvagem. Vim reivindicar o
trono de Camelot, como é meu direito.”
O rei pareceu tão perplexo quanto os soldados à sua volta. “M-m-mas é o
território do Rei Rhian... do Rei Rhian de Camelot...”
“Até onde sei, Camelot não tem um rei no momento”, a Rainha do
Açúcar retrucou. “O testamento de Arthur especificava dois concorrentes ao
trono. Pouco me importa quem é o outro, mas um dos concorrentes sou eu.
O Torneio dos Reis ainda está em andamento, não? Uma espada presa na
pedra decidirá quem é o próximo rei. Bem, quando a Excalibur sentir meu
toque, posso garantir... que eu serei rei.”
Tedros apertou o braço de Agatha. “Mas o quê...” Só que ela estava
avaliando a Rainha do Açúcar, que parecia olhar diretamente para a princesa.
Enquanto isso, o Rei de Foxwood jogava a barriga para a frente e
endireitava as costas para parecer mais alto. “Minha lealdade está com o
Leão. Como a de todos aqui. Você não tem jurisdição deste lado do mar. É
hora de voltar para o pântano de açúcar de onde saiu!”
Através do véu, a Rainha do Açúcar olhou para ele. “Você é baixinho e
incompetente. Uma combinação imperdoável em um homem. Se disser mais
uma palavra, abrirei meus cavalos, espalhando uma névoa de açúcar
envenenado que matará não só você, mas também seus exércitos na primeira
respirada. Então poderei conquistar suas terras como conquistei todas as
outras: em silêncio e em paz.” O rei pareceu horrorizado, mas a Rainha do
Açúcar continuou falando. “Dito isso, sou conhecida por ser justa e
generosa. Se o Rei Rhian acredita que tem direito à espada, que venha a mim
e se explique, antes que tenhamos nossa chance aos olhos do povo.”
O Rei de Foxwood suava tão profusamente que chegava a molhar sua
boca. “O Rei Rhian ainda não chegou... está atrasado devido a um ataque de
mangustos traidores na floresta...”
“Então seguirei para minhas acomodações, na cabana da Branca de Neve.
Branca e eu nos conhecemos anos antes de sua triste morte. Ela cruzava o
Mar Selvagem para ficar comigo, na Mansão do Açúcar. Éramos boas
amigas. Ela me deixou sua cabana em testamento, que acabou se tornando
meu palácio real deste lado do mar”, declarou a Rainha do Açúcar. Sua
procissão de cavalos seguia na direção de Agatha, conforme soldados
perplexos abriam caminho. “Levem o Rei Rhian até mim no instante em que
chegar. Se falharem, acabarão todos mortos, incluindo ele próprio. E, como
não confio nem um pouco em vocês, levarei dois reféns, que serão os
primeiros a morrer caso me desobedeçam.”
De repente, duas mãozinhas saíram da boca do cavalo de caramelos e
puxaram Agatha e Tedros para dentro.
Agatha ouviu Tedros gritar, surpreso. Os dois ficaram de mãos dadas no
escuro, até que foram separados, quando ela foi pega por corpos quentes que
não conseguia enxergar. O cheiro de doce era enjoativo demais, e ela teve
que tirar o capacete. Por entre os caramelos da carcaça, ela conseguiu ver o
Rei de Foxwood perseguindo o cavalo. “Você sequestrou soldados de Akgul!
Isso é ilegal! Não tem esse direito!”
“Leve o Rei Rhian a mim ou o sangue de ambos manchará as suas
mãos!”, a Rainha do Açúcar gritou. Sua procissão acelerou o passo ao passar
pelos últimos soldados. O Rei de Foxwood deu alguns passos incertos na
direção deles, acompanhado de seus guarda-costas, gritando coisas que
Agatha não conseguia mais ouvir, enquanto seu corpo era contido por
alguém que ela ainda não sabia quem era.
Alguém arfou atrás dela.
Agatha se virou e deparou com Tedros, sem elmo, com o dedo aceso.
“Gnomos!”, ele disse.
À luz do brilho de seu príncipe, ela pôde ver uma frota inteira de anões
corados e com chapéus pontudos dentro do cavalo, os pezinhos fincados no
chão para empurrar a procissão de doces adiante. Eles protegeram os olhos
do brilho de Tedros, até que uma gnoma velha e desdentada cerrou o punho
em torno do dedo do príncipe, fazendo com que todos voltassem a mergulhar
na escuridão. Já estavam se aproximando da cabana da Branca de Neve, que
ficava em uma clareira. Arbustos com flores coloridas tinham crescido em
volta da casa decrépita feita de madeira estufada, que tinha dois andares e
telhado abobadado, lembrando o chapéu de uma princesa. “Ah, não, não,
não. Isso não vai funcionar”, Agatha ouviu a Rainha do Açúcar dizer, com
um suspiro, então uma leva de feitiços cor-de-rosa foi disparada contra a
cabana, transformando-a em um chalé refinado, com beiral de biscoito de
gengibre, revestimento de chiclete e janelas polvilhadas de açúcar. Agora
havia uma cerca letalmente afiada de pirulitos em volta da casa, e uma placa
com os seguintes dizeres piscando:
Mansão do Açúcar do Leste
Nada de visitas
(A não ser de Rei Rhian)
Os cavalos avançaram, e a porta da Mansão do Açúcar do Leste se abriu
magicamente. Os animais cobertos de açúcar passavam um a um, até que,
quando o de alcaçuz o fez, por último, a porta se bateu logo atrás, enquanto
os gritos beligerantes do Rei de Foxwood ainda ecoavam lá fora.
Agatha sentiu que o busto do cavalo se abria no mesmo instante. Os
caramelos se espatifaram, e os gnomos se dispersaram, agachando e
comendo os detritos. O mesmo ocorreu com os outros cavalos, em uma
carnificina de doces, mas não foram apenas gnomos que saíram (incluindo
uma banda marcial completa): ali estavam também seus amigos e alguns
alunos de primeiro ano, como Willam, Bogden, Valentina, Aja, Laithan,
Ravan, Vex, Brone... Agatha nem conseguiu contar todos, porque uma pilha
fantasmagórica de seda vermelha avançava em sua direção e imprensava ela
e Tedros contra uma parede. A Rainha do Açúcar tirou o véu e revelou a
ambos seus olhos verde-esmeralda.
“Vou matar aquela Cobra suja e podre, e vou explicar como”, disse
Sophie.
O plano era brutalmente simples.
Primeiro passo, que já estava em andamento: atrair Japeth para lá. No
momento em que chegasse a Foxwood, ele ficaria sabendo de sua nova rival
e iria direto para a Mansão do Açúcar do Leste.
Segundo passo: agir como se fosse amiga dele, uma colega governante
que estava ali para esclarecer um mal-entendido.
Terceiro passo: fazer com que entrasse na casa sozinho.
Quarto passo: encurralá-lo com uma centena de gnomos e alunos da
escola e livrar a Floresta da Cobra de uma vez por todas.
“Estará tudo resolvido em questão de minutos”, Sophie disse, enquanto
seu véu vermelho se transformava magicamente no vestido branco de
Evelyn. “Então, sem Japeth... Tedros aparece, tira a espada da pedra e
pronto! O Leão se revela. É um plano infalível. O Fim dos Fins. À prova de
idiotas.”
“Vocês sabem que não sou fã dos planos de Sophie, em especial de um
em que fico presa em uma imitação da casa da minha mãe”, disse Hester,
saindo de outro cômodo com Anadil, uma vez que as duas já estavam lá,
“mas esse não parece ruim.”
“Mas não precisava de todo esse circo”, Anadil resmungou, enquanto os
gnomos em volta se enchiam de doce.
“Nossos espiões avisarão quando ele estiver vindo”, Sophie acrescentou,
olhando através das cortinas para Bodhi e Laithan, vestidos com as
armaduras, e os elmos, que Tedros e Agatha haviam roubado dos soldados
de Akgul, estavam postados aos portões de pirulitos. Sophie fechou as
cortinas, para que ninguém visse dentro da casa. Então se virou para a
melhor amiga. “O que acha, Aggie?”
Havia algumas partes do plano que Agatha odiava.
Convidar a Cobra para entrar.
Deixar que Sophie corresse todo o risco.
Mas também havia partes de que gostava. O caminho de Tedros para
vencer o terceiro teste estaria livre. Não importava que Japeth lutasse
injustamente, era uma emboscada grande demais para que ele conseguisse se
livrar. A Cobra provaria de seu próprio remédio ao morrer.
Tedros era o único que parecia discordar.
Tinha uma expressão pensativa, com as costas apoiadas à parede, os olhos
fixos nas cortinas fechadas.
“É um bom plano, Teddy”, disse Sophie. “Mas não posso levar todo o
crédito. Um amigo serviu de inspiração.”
Ela olhou por cima do ombro de Agatha, que se virou.
“Reaper!”, a princesa exclamou.
O gato foi levado até ela em uma almofada de veludo azul, carregada por
dois gnomos. Ele curvou a cabeça para Agatha, o que fez sua coroa
escorregar da cabeça careca e enrugada. “Os gnomos pouco se importam
com o mundo dos humanos. Mas se importam com seu rei”, ele disse. “Por
isso, quando descobri que você e seus amigos estavam em perigo, eles se
mostraram dispostos a abandonar os confortos de sua terra e me seguir até a
batalha.”
Agatha o tirou da almofada e o abraçou forte. Reaper fez uma careta. “Na
presença dos meus súditos, prefiro uma abordagem mais distante.”
“Na presença do meu gato, não posso evitar ser amorosa”, retrucou
Agatha, apertando-o. “Achei que você só conseguisse falar com humanos
quando enfeitiçado.”
“Aprender a língua humana não é muito difícil”, explicou Reaper, “com
suas construções simplórias e falta de finesse.”
A cabeça de Brone despontou da porta de outro cômodo, nos fundos. “Se
alguém quiser comida de verdade, o chapéu de Merlin está cozinhando!”
De uma vez só, todos os alunos foram na direção dele, embora os gnomos
estivessem satisfeitos com os doces. Reaper se aproveitou do burburinho
para se soltar dos braços de Agatha e fugir.
“É melhor estarmos de barriga cheia quando a Cobra chegar”, Sophie
disse, puxando Agatha consigo.
A princesa beliscou o braço dela, brincalhona. “Gosto dessa nova Sophie,
que come bolo de mel, é a rainha do doce e acha que comer é uma prioridade
diante do perigo.”
“Sabe quando um dia você acordou e descobriu que os garotos não eram
o veneno tóxico que sempre achou que fossem? Bem, garotos e doces são
muito parecidos, na verdade”, Sophie disse, com uma piscadela.
Agatha soltou a mão dela. “Sophie... está tudo bem? Quando te vi através
dos vaga-lumes, você parecia...”
O sorriso da outra desapareceu. Ela evitou os olhos de Agatha e assoviou
para Tedros. “Teddy, querido, o que está esperando? Quando foi que você
recusou comida?”
Mas o príncipe se manteve no lugar, fazendo apenas um gesto que
indicava que logo iria também, então foi encurralado por algumas garotas de
primeiro ano, Valentina, Laralisa e Priyanka, que começaram a fazer
perguntas sobre seus tempos de escola. (“Em que cama você dormia?”, “O
que você mais gostava de fazer na Sala de Embelezamento?”)
Agatha olhou para Sophie. “É melhor esperarmos por Tedros.”
“Sempre vai ter alguém em cima dele, querida. Afinal de contas, é Teddy.
Mas ele sempre vai amar só você”, Sophie disse, puxando-a para a sala de
estar. “Agora me diga, quem é esse?” Ela olhou para um garoto alto e
estiloso que servia um banquete em uma mesa de madeira.
“Esse é Merlin”, disse Agatha.
“Perdi o apetite”, disse Sophie, com um suspiro.
A sala de estar estava bem movimentada, os corpos se amontoavam em
torno das cadeiras aconchegantes de musselina e iam de um lado para o
outro no tapete fofo marrom-avermelhado para se servir de opções bastante
coloridas – pakoras de couve, raízes assadas e condimentadas, cogumelos
fritos com chutney de alho, macarrão à provençal, rabanete com beterraba,
curry de abóbora com quiabo, favas com tomatinhos amarelos, arroz com
canela e coco, churros com chocolate –, como se o chapéu de Merlin
estivesse determinado a se certificar de que seu jovem mestre e seus colegas
adolescentes comessem legumes.
Enquanto isso, entre um e outro churro, Ravan e Vex comparavam os
atiçadores de ferro da lareira suja de fuligem, à procura da melhor arma para
emboscar a Cobra. Já Bossam, Devan e outros garotos de primeiro ano
procuravam por facas de cozinha que pudessem fazer as vezes de adaga.
Agatha viu Beatrix, Kiko e Rena perto dos garotos, usando as armaduras das
Onze, enquanto ferviam uma panela grande de óleo.
“Vocês estão aqui!”, Agatha exclamou, correndo até elas.
“Depois de Shazabah, Marian levou algumas de nós para a Floresta de
Sherwood”, disse Beatrix, acelerando a fervura com seu brilho.
“Encontramos uma médica bruxa, que tinha uma bola de cristal.”
“Foi assim que ficamos sabendo que vocês estavam viajando para cá, e
viemos o mais rápido possível”, disse Reena.
“Chegamos ontem à noite”, Kiko acrescentou, olhando para Agatha com
cara de quem não tinha dormido. “As camas foram feitas para anões.”
A princesa endireitou as costas. “Espera. Se vocês foram com Marian,
isso significa que estavam com...”
“Oi, queridas”, cantarolou uma voz.
Todo mundo se virou para ver Dot descendo por uma escadinha, de novo
uma adolescente de rosto redondo, mastigando um prato de legumes
transformados em chocolate.
“Acho que vou ser uma bruxa médica quando crescer”, ela comentou.
Perto de Agatha, Hester resmungou. “Bem quando já estava me
acostumando com a Dot velha.”
“Pelo menos a outra era deprimida em vez de falante”, Anadil concordou.
Mas Dot já estava abraçando e beijando as duas, que se contorciam e
reclamavam, mas não faziam nada de efetivo para se soltar.
“Marian também está aqui?”, Hester perguntou.
“Ela e Nicola foram ajudar Jacinda em Jaunt Jolie”, respondeu Dot. “Os
antigos cavaleiros se viraram contra a rainha depois que os substituímos.
Tentaram dar um golpe e assumir o castelo. Foram desleais com a própria
rainha... Nunca vi Marian tão determinada a colocar os homens em seu lugar.
Talvez queira ser lembrada na história como mais que a donzela de ladrões e
xerifes.” Dot deu uma piscadela. “É o que a filha dela quer.”
Hester e Agatha olharam uma para a outra.
“Ah, não lhe deem crédito demais por ter descoberto”, Anadil resmungou.
“Não é como se tivesse resolvido o enigma da esfinge.”
“Isso significa que metade de mim é Sempre”, Dot disse, parecendo tensa.
“Não sou totalmente bruxa.” Olhou para Hester e Anadil, nervosa, como se
pudesse ser expulsa do coven por conta disso.
“Bem”, Hester deu de ombros, “ninguém é perfeito.”
Willam se aproximou por trás das bruxas. “Querem ficar de vigia lá em
cima com a gente? Podemos pular como bombas em cima de Japeth quando
ele chegar.”
“A ideia foi minha, embora Will esteja ficando com os créditos”, Bogden
acrescentou.
Agatha sorriu enquanto via as bruxas e os garotos subirem. Havia tanto
amor entre eles que quase se esqueceu de que a cabeça de seu próprio amor
corria risco e que o inimigo estava a caminho. A princesa se virou para
procurar Tedros...
Mas Sophie a interceptou, mordiscando um churro. “Lembra que Merlin
sempre tinha um cheiro de malha velha guardada por tempo demais? O
jovem Merlin não cheira nem um pouco assim. Não que pareça muito
animado em me ver. Mas você sabe que gosto de um desafio. Por que não
está comendo, Agatha? Vou ter que fazer um prato para você?”
Algo no tom dela, maníaco e forçado, incomodava Agatha, lembrando-a
da antiga Sophie. A fingidora. A atriz. Foi então que a princesa se deu conta.
“Sophie”, ela olhou para a amiga, “onde está Hort?”
A fachada caiu. A dor extravasou, e os olhos de Sophie se encheram de
lágrimas. Agatha perdeu o fôlego e levou a mão à boca na hora.
Duas cornetas soaram lá fora, urgentes e mal tocadas.
“É o sinal!”, Sophie chamou, forçando-se a manter a compostura. Ela deu
meia-volta. “Todo mundo em seu lugar! Ele está chegando! A Cobra está
chegando!”
Todo mundo se pôs em movimento, como convidados de uma festa
surpresa bizarra, empunhando armas improvisadas: cadeiras, talheres e
pratos de porcelana. Agatha olhou por entre as cortinas. Diante dos portões
de pirulitos, vislumbrou Bodhi e Laithan, soprando cornetas apropriadas ao
tamanho de gnomos enquanto milhares se aproximavam da Mansão do
Açúcar do Leste: soldados de outros reinos, cidadãos de Foxwood entoando
“Leão! Leão!” e uma legião de soldados de Camelot, portando escudos
dourados. Diante deles, seguia um garoto de azul e dourado, sobre um
cavalo branco. Agatha fechou as cortinas e se virou, procurando por Tedros.
Então Sophie a empurrou para trás do sofá, enquanto a Rainha do Açúcar
voltava a seu véu vermelho, dando ordens ao próprio exército dentro da casa.
“Todo mundo se esconde! Fora de vista! E silêncio completo a partir de
agora!”, ela disse. “Quando ele bater, vou deixar que entre. E aí ataquem o
cretino!”
A casa mergulhou em um silêncio ansioso, com todos escondidos atrás de
uma parede, cadeira, poltrona ou sofá, ou metidos na cozinha ou no andar de
cima. Sophie ficou sozinha, de pé no meio da sala. Agatha se levantou e
pegou o braço dela.
“Vai se esconder, sua tonta!”, Sophie sibilou, tentando empurrar sua
amiga para um grupo de gnomos, armados com doces pontiagudos. Agatha,
no entanto, segurou firme o pulso dela.
“Onde está Tedros?”, a princesa perguntou.
“Escondido em silêncio, como você deveria estar!”, Sophie disse. Ela se
soltou de Agatha e seguiu na direção da porta, usando suas vestes vermelho-
sangue.
Então parou no lugar.
“Teddy?”, ela sussurrou.
Agatha se pôs de pé.
Tedros estava à porta. Com a mão na maçaneta.
Ele olhou para sua princesa.
“Lembre-se do que me prometeu”, disse.
Sophie olhou para o amigo. “O que ela prometeu?”
Tedros já tinha aberto a porta.
Sophie e Agatha foram atrás dele, tropeçando na confusão de doces. A
primeira tirou o véu, mas a segunda saiu ao sol primeiro. “Tedros, não!”, ela
gritou.
O príncipe estava desarmado nos portões, com milhares de espadas,
flechas e lanças apontados para ele.
O cavalo branco parou a poucos passos dele. A floresta ficou em silêncio
enquanto Japeth desmontava, ainda disfarçado como o irmão morto.
Japeth olhou para Sophie e Agatha, congeladas à porta da casa.
Então se concentrou no príncipe.
“Cada um tem uma tentativa de puxar a espada”, Tedros declarou. “A
Excalibur vai decidir quem é o rei.”
O príncipe estendeu a mão.
Por um momento, seu inimigo não disse nada.
Os dois só ficaram se olhando, dois rivais querendo o mesmo trono.
Verdade contra Mentira. Presente contra Passado. Pena contra Homem.
Toda a Floresta segurou o fôlego.
Os olhos da Cobra cintilaram.
“A Excalibur vai decidir quem é o rei”, Japeth repetiu.
Então apertou a mão de Tedros.
O acordo estava feito.
Entre o filho de Arthur e o filho de Rafal.
As pernas de Agatha fraquejaram, mas a amiga estava lá para ampará-la.
Sophie lhe perguntava repetidamente o que a princesa havia prometido a
Tedros, o que havia dito a ele, mas tudo o que Agatha conseguia se lembrar
era da última vez que havia tocado seu príncipe, no escuro, em meio ao
cheiro de doce velho.
W 30 w
AGATHA
A Cobra e o Leão
Quase dez anos atrás, Tedros e eu nos reunimos para uma aula na Floresta
do Desfecho.
Mas minha intenção não era de que fosse uma aula.
Era para ser uma despedida.
Arthur havia matado Kay, e eu decidira deixar Camelot, mas não sem
antes ver o jovem príncipe uma última vez.
Enquanto esperava sob o carvalho roxo, as lágrimas embaçaram meus
olhos, atrás dos óculos, e minha mão agarrou ansiosamente meu queixo sem
barba. Como eu poderia deixar o garoto? Quando ainda estávamos só
começando? Minha intenção era ficar com o pai e depois com o filho até o
futuro distante, quando meu trabalho estivesse completo. Mas as coisas
haviam mudado. Arthur se tornara inconstante e vivia cheio de segredos. Em
vez de seu mentor, eu agora era um incômodo contra o qual ele podia se
revoltar. Lá no íntimo, Arthur havia perdido a fé em mim ou, o mais
provável, em si mesmo. A única cura era partir, deixando-o para encarar seu
destino sozinho. Quanto a Tedros, eu ficaria de olho nele, mas à distância,
como um falcão no alto, até que chegasse o dia em que mais precisaria de
mim. Eu não podia lhe dizer aquilo, claro, ou ele passaria a vida me
procurando e esperando pelo meu retorno, em vez de aprender a se virar
sozinho. Não, tinha que ser um rompimento direto, não importava as
lágrimas que derramássemos.
“Merlin!”, uma voz entoou.
Eu me virei e o vi se aproximando por entre as lavandas, os cachos
dourados cobertos de folhas, as vestes de príncipe rasgadas. Ele era tão
pequeno, e estava sempre corado e em movimento, como uma raposa
impetuosa.
“Merlin, só precisei de cinco tentativas para entrar! Fiz tudo o que você
me ensinou! Fechei os olhos e pensei em encontrar o portal, então me
concentrei em relaxar o cérebro e permiti que meus pés me levassem, aí abri
os olhos e ali estava! Tentei entrar rápido demais, aí respirei fundo algumas
vezes, o que não funcionou, mas pelo menos me acalmei e puf! A floresta se
abriu. Foi a primeira vez que consegui sozinho, sem você precisar ficar com
pena de mim e me deixar entrar. Só cinco vezes! Não está orgulhoso de
mim? Merlin?” Ele olhou para mim e inclinou a cabeça. “Você fica tão
estranho sem barba. Não pode fazer crescer?”
Naquele momento, quaisquer planos que eu tivesse de contar a ele que era
nossa última aula evaporaram.
Ele tinha acabado de fazer nove anos, e como eu mesmo estava com nove
anos uma semana atrás, sei em primeira mão como se é sensível nessa idade,
como se está carregado de energia de ambição, e Tedros mais ainda. Ele
costumava ter uma postura muito ereta, como se ficasse na ponta dos pés,
como se não aguentasse esperar para crescer. Fazia apenas algumas semanas
que tinha perdido a mãe, e eu já perdia a coragem de admitir que também
estava prestes a deixá-lo. Então jurei a mim mesmo que faria com que ele
nunca se esquecesse de nossa última aula.
“Diga-me, futuro rei”, comecei a falar, tirando as folhas de seu cabelo. “O
que gostaria que eu lhe ensinasse, mais do que tudo no mundo? Esta é sua
chance. Não há limites. Pode ser qualquer coisa que desejar.”
“A morrer e voltar à vida”, o príncipe disse no mesmo instante, como se
já tivesse pensado bastante a respeito.
Eu me ajoelhei diante dele. “Bem, isso é impossível, a menos no caso de
um mago, que tem seu Desejo de Feiticeiro.”
“Não é, não”, Tedros discordou. “Papai cortou a cabeça do Cavaleiro
Verde, e depois ele a botou de volta sobre o pescoço. Todo mundo no castelo
está comentando. Ele fez isso bem aqui, na frente do papai! Slash! Pluc! Bu!
Quero ser capaz de fazer isso! Quero ser forte e nunca morrer! Quero ser
como o Cavaleiro Verde!”
“Mas o Cavaleiro Verde morreu”, apontei.
“Tá, então me dá seu Desejo de Feiticeiro. Você acabou de dizer que
assim vou poder morrer e voltar à vida.”
“Não o tenho mais.”
Tedros cerrou as mãos em punho, sentindo as bochechas esquentarem.
“Você me perguntou o que eu queria que ensinasse, sem limites, e agora está
voltando atrás.” Parecia prestes a chorar.
Mesmo então, Tedros já se aferrava a um profundo senso de justiça. Olhei
para seus olhos azuis e trêmulos e vi que não adiantava discutir. É claro que
não tinha como ensiná-lo a morrer e voltar à vida – a imortalidade de Kay se
devia a uma maldição única –, mas talvez pudesse lhe dar a sensação de que
havia morrido, para que não visse mais a morte como inimiga e acabasse se
esquecendo de seu desejo.
“Venha”, chamei, aprofundando-me em minha floresta, com abetos
lilases, pinheiros roxos e dragoeiros cor de ameixa curvando seus galhos
para mim, sentindo minha tendência a repaginar a folhagem da Floresta do
Desfecho a qualquer momento e esperando se manter nas minhas boas
graças. Ouvi Tedros saltitando atrás de mim, falando de maneira cifrada
sobre sua mãe e Lancelot (“Quando eu for um cavaleiro sem cabeça, vou
caçar outros cavaleiros! Cavaleiros de que não gosto!”), escalando
animadamente pedras e troncos que eu colocava em seu caminho (“Merlin,
dificulta mais!”) e assustando todos os pássaros e esquilos que encontrava
(“Bu! Bu!”).
Logo a floresta se abriu e chegamos a um espelho d’água, cercado por um
belo gramado roxo, como um oásis. O céu estava limpo, e não se via nada
além da água que não a extensão do gramado ametista. Os esquilos, as flores
e os insetos favoritos de Tedros estavam ausentes da paisagem conjurada
para que ele não se distraísse, concentrando-se totalmente no que estavam
prestes a fazer.
“Nunca estive nesta parte da floresta!”, o menino comentou, ficando de
joelhos na margem e enfiando um punho na água.
“O que eu te disse sobre olhar antes de fazer, Tedros? Até onde você
sabe, pode ser um lago de piranhas.”
“É mesmo?”, Tedros perguntou, com os olhos arregalados. Ele pôs as
duas mãos e o rosto todo na água, para procurar nas profundezas. “Ouvi
dizer que elas têm dentes afiados e comem gente!”
Balancei a cabeça. Tedros era teimoso, imprudente, orgulhoso, emotivo e
tinha um péssimo instinto... Ah, como eu sentiria saudade dele. “Vamos
começar”, eu disse.
Algo veio à tona, cuspindo água na cara dele.
“Peixes dos desejos!”, o príncipe concluiu, vendo as criaturas prateadas se
revolvendo na água. “Papai diz que na Escola do Bem tem um lago cheio
deles! Vou para lá quando fizer treze anos, se continuar comendo legumes e
deixando tudo arrumado. Foi o que papai me disse. Mas não sei o quanto
acredito nele ultimamente...” Tedros olhou para mim. “São mesmo peixes
dos desejos?”
“Mergulhe seu dedo na água e vai ver”, eu disse. “Se morrer e voltar à
vida é seu maior desejo, é isso que os peixes vão te mostrar.”
Tedros enfiou um dedinho na água.
Os peixes se dispersaram, como fogos de artifício, então voltaram a se
unir, criando uma imagem... Guinevere. No mesmo instante, o príncipe
retirou o dedo, com o rosto pálido. “Que peixes idiotas!”
Ele fechou os olhos, como se quisesse apagar a imagem da mãe, e voltou
a enfiar o dedo na água.
Daquela vez, os peixes formaram a imagem de Lancelot, abraçando-o
com amor.
Tedros se levantou e chutou a água, o que fez os peixes irem mais para o
fundo. “Odiei isso”, ele disse, então se deitou de barriga na grama. Não
percebia, claro, que o que havia visto era o que mais desejava de fato.
Eu me sentei ao lado dele. “Por que você quer morrer e voltar à vida?”
Tedros não olhou para mim. “Parece incrível.”
“Mas por quê, Tedros?”
Ele pensou a respeito por um momento, então levantou a cabeça. “Se eu
puder morrer e voltar à vida, ninguém vai poder me machucar.”
“Ah, meu menino”, eu disse. “Receio que ser capaz de voltar da morte
não impeça ninguém de se machucar. Na verdade, viver mais significa sofrer
mais. Porque viver também é se abrir para todas as emoções, mesmo as
ruins.”
Tedros me deu as costas. “Não gosto que me machuquem.”
“E quem machucou você?”
“Ninguém.” Ele engoliu em seco. “Estou bem.”
“Então você tem sorte, porque eu mesmo estou bastante machucado.”
Ele olhou para mim. “É mesmo? Onde?”
“Aqui”, eu disse, com a mão no coração.
“Ah.” Ele assentiu. “Quem te machucou?”
“Alguém que eu amava muito”, eu disse.
Tedros assentiu de novo. “Eu também.” Ele fungou e se encolheu todo,
assumindo uma posição fetal, de costas para meus joelhos. “Quando a dor
vai passar?”
“Quando fizermos as pazes com ela. Quando virmos a dor não como algo
a temer ou de que fugir, mas como uma parte importante da gente. Tão
importante quanto o amor, a esperança e a felicidade. Tudo isso constituiu
seu coração e é igualmente importante. Ignorar a dor ou fingir que não dói
não resolve nada. Só indica que não estamos usando todo o nosso coração.
Essa parte pode até se secar e quebrar. E ninguém quer isso. Um rei forte
precisa de todo o seu coração. O mais engraçado é que, quando você reúne
coragem o bastante para receber a dor, abraçá-la e encará-la sem medo... de
repente, ela passa.”
Tedros ficou em silêncio, os olhos azuis fixos no próprio peito, onde o
coração devia estar. Ele se virou para mim. “O que aconteceu com seu
Desejo de Feiticeiro?”
Eu me inclinei para a frente e suspirei.
“Vai, dá seu Desejo de Feiticeiro pra mim”, ele insistiu.
“Não o tenho mais, Tedros.”
“Se tivesse, você me daria?”
“Não.”
“Vou encontrar e roubar de você. Ou de outro feiticeiro. E não vou te
contar”, ele disse. “Pelo menos me diz o que você ia pedir. Para morrer e
voltar à vida? Como eu?”
“Ah, não. Quando for minha hora, não vou precisar voltar”, respondi.
Tedros se sentou. “Por que não? Você não quer viver para sempre?”
Baguncei o cabelo dele. “Porque meu trabalho estará feito, meu menino.”
“Você nunca diz coisa com coisa”, o príncipe resmungou, antes de se
inclinar para a frente e voltar a enfiar o dedo na água.
“Agora se concentre”, pedi. “Pense no que deseja...”
Os peixes entraram em formação, com as cores dançando por suas
escamas brilhantes, aço azul, ouro dourado, pêssego seco, em uma visão rica
que refletia o jovem príncipe... sua própria cabeça, de olhos fechados,
separada do corpo e sendo carregada sob o braço.
“Merlin, eu consegui! Estou morto! Como o Cavaleiro Verde!”, ele
gritou, olhando para a água. “Tornei realidade! Olha, Merlin! Olha!”
“Estou vendo, Tedros.”
Ele assoviou, orgulhoso, pulando e apontando para seu gêmeo decapitado.
Então, de repente, ficou quieto, como se absorvesse a cena de sua morte, a
realidade além do desejo. Seu sorriso desapareceu, e uma ansiedade se
tornou visível em seu rosto. Ele olhava para a imagem mais de perto, para a
tranquilidade de seu eu imaginado, a paz nos olhos fechados, pois fora
aquilo que ele quisera, a morte que escolhera, para provar algo a si mesmo,
para poder voltar mais forte. O medo o deixou, e uma nova sensação de
poder inflamou...
Seus olhos se abriram na imagem, e a cabeça ganhou vida. “Bu!”
Tedros gritou e saiu correndo.
“Você disse que queria voltar à vida, não foi?”, perguntei quando o
encontrei.
Ele só me abraçou forte, agarrando minhas vestes, muito depois que o
medo tinha ido embora, como se em algum lugar, lá no fundo, soubesse que
estávamos prestes a ter nossa própria morte, com nossos dias juntos
chegando ao fim.
Deixei Camelot com o coração pesado, perturbado pelas dúvidas quanto
ao que aconteceria com Arthur e com o filho dele nos anos que se seguiriam.
Mas, depois da última aula na floresta, eu tinha certeza de duas coisas em
relação ao príncipe.
Quando a hora chegasse, ele não teria medo da morte.
E ele roubaria um Desejo de Feiticeiro na primeira chance que tivesse.
A maçã.
Que a Dama do Lago havia lhe dado.
Guardada no gibão de Tedros, perto do coração.
Tinha me parecido um estranho presente de despedida, uma vez que não
podia conter magia, com ela desprovida da maior parte de seus poderes.
Mas, pelo que eu tinha visto, Tedros havia insistido, sussurrando no ouvido
da Dama do Lago, evocando um sorriso de amor e gratidão, até que ela tirara
a maçã da água, um símbolo de seu afeto por ele. Eu presumira que o
príncipe havia dito a Nimue que seus pecados estavam perdoados, que ele
ainda a amava e admirava, para que ela pudesse ter a paz de que precisava.
Mas agora, olhando em retrospecto, vejo que foi mais que isso.
Ele queria algo dela.
Queria seu Desejo de Feiticeira.
E o que quer que tivesse dito à Dama do Lago, fizera com que ela o
cedesse.
Esses são os pensamentos que me ocorrem ao ver a cabeça de Tedros
separada do corpo, como eu havia visto na imagem dos peixes do desejo,
tanto tempo atrás. Preso à escada, faço cálculos rápidos, com as mãos
algemadas aos outros prisioneiros, minha mente acelerada com a adrenalina
adolescente.
Para que Tedros tivesse o desejo da Dama do Lago, precisaria tê-lo
colocado em palavras. Precisaria tê-lo dito em voz alta.
Claro!
Ele disse.
Depois que a Cobra o provocou quanto a ter o sangue do herdeiro, o
sangue do rei.
Tedros olhou diretamente para Japeth e disse: “Sendo verdade, desejo que
a Excalibur corte minha cabeça”.
Sendo verdade.
Sendo o quê verdade?
Que Japeth tinha o sangue do herdeiro.
Que Japeth tinha o sangue do rei.
Mas o herdeiro era Chaddick.
O que significa que Japeth tem o sangue de Chaddick nele.
E Agatha sabe disso.
Por isso pareceu tão abalada quando viu a Cobra ao passar pela porta.
Por isso gritou, apesar da mordaça, com o intuito de alertar Tedros.
Por isso o príncipe olhou diretamente para ela antes que a Excalibur
cortasse sua cabeça.
Porque ele sabe que ela sabe.
Está contando que ela saiba.
Só que Agatha ainda não entendeu. Viro a cabeça para ela e entendo o
porquê. Agatha está chocada, com o rosto branco, o corpo todo trêmulo,
perdida no horror de ver seu príncipe dividido em dois. Enquanto isso,
Japeth permanece triunfante em meio ao caos de líderes bajuladores, com a
Excalibur de volta a suas mãos. Preciso que Agatha olhe para mim, mas
Sophie e as bruxas estão em cima dela, todas banhadas em lágrimas. Os
guardas virão a qualquer momento nos levar para a masmorra. Olhe para
mim, Agatha, penso. Olhe para mim. Olhe para...
Meu chapéu sai do bolso, ouvindo meus pensamentos.
Não você. Agatha.
Ele se lança escada abaixo e bate na cabeça de Agatha.
Bom menino.
Ela olha para mim.
Por uma fração de segundo.
A magia já está se formando entre minhas mãos acorrentadas, meus dedos
se distanciando apenas o bastante para lançá-la no ar... uma esfera de luz cor-
de-rosa sai das minhas palmas... na forma de...
...uma maçã.
Agatha olha para ela, através das lágrimas, depois olha para mim,
confusa.
Eu a encaro com firmeza, querendo que pense como eu.
Agatha volta a olhar para a maçã.
A maçã que Tedros não deixou que ela comesse na viagem, apesar de sua
princesa ter pedido.
Seu olhar se torna cortante como uma faca.
A maçã.
A Dama do Lago.
A magia.
Agatha compreende.
As lágrimas secam.
Uma expressão determinada toma conta de seu rosto.
Sophie vê a mudança nela e segue seus olhos, direcionados a mim...
Só que Agatha já está pulando por cima do corrimão, mergulhando como
uma fênix rumo à Cobra, com os braços algemados abertos.
O único problema é que estamos todos acorrentados a ela.
Sophie é puxada por Agatha, que cai com um grito rumo ao andar de
baixo, antes que as bruxas e eu seguremos a corrente, suspendendo as duas
no ar, de cabeça para baixo, balançando. Japeth se vira, surpreso. Agatha
está bem na cara dele. Ela o golpeia com as mãos algemadas, fazendo com
que perca o equilíbrio, então o agarra pelo colarinho e tira algo de lá. Com o
dedo aceso, Dot lança um feitiço e transforma a corrente em chocolate.
Agatha e Sophie se soltam, caindo sobre o Rei de Foxwood e a Imperatriz
Vaisilla, que gritam e tentam tirá-las de cima com tapas, ao mesmo tempo
que chamam pelos guardas. Com os punhos ainda algemados, Sophie usa
seu brilho para tentar soltar Agatha, que faz o mesmo com ela. As algemas
se rompem ao mesmo tempo. Sophie rouba um broche de Vaisilla e o usa
para cortar as mordaças dela e de Agatha. Os soldados correm para as duas,
liderados por Japeth, com as espadas empunhadas para atacá-las.
Então eles param, assustados.
Porque a coroa de Japeth está se movendo.
Sem produzir nenhum som, ela deixa a cabeça dele.
Atravessa o cômodo, com suas cinco pontas douradas, brilhando ao sol
que entra pelo buraco no telhado, passando pelas cabeças dos líderes
embasbacados, antes de pousar em outra cabeça.
Na de Agatha.
Japeth vai para cima dela, mas Sophie o impede, com o dedo brilhando
em cor-de-rosa.
“Pode se curvar, verme”, ela sibila.
Então ela olha para o Rei Agatha e pergunta, sem produzir som: O que
está acontecendo?
Agatha não tira os olhos de Japeth.
Perplexos, os guardas não sabem para quem apontar as armas.
Quando Agatha fala, sua voz é puro fogo.
“Eis seu mentiroso. Eis sua Cobra. Ele roubou o sangue do herdeiro e
fingiu que era rei esse tempo todo.” Ela revela um pedaço de tecido,
manchado de sangue. “A Excalibur nunca o escolheu. Nem da primeira vez
nem agora. Foi isto que a espada escolheu. Sem isto, ele não seria rei. Ele
não é ninguém. Não é nada.”
“Mais truques rebeldes”, Japeth zomba, pensando nos líderes.
“Ah, é?”, diz Agatha.
Ela passou o pedaço de tecido a Sophie, que se vê envolvida na história.
Com o sangue de Chaddick nas mãos, ela sorri imperiosamente enquanto a
coroa passa da cabeça de Agatha para a dela. Seu vestido branco se
transforma magicamente em um vestido apropriado a uma coroação.
“Poderia me acostumar com isso”, Rei Sophia diz.
O Rei Dutra de Foxwood se põe de pé. “Explique isso, Rhian!”
“Não estou entendendo”, diz a Imperatriz Vaisilla. “Por que a coroa iria
para elas, Rhian?”
“Rhian?”, Sophie bufa. “Ah, não. Não, não, não. Rhian está morto.” Ela
voltou seus olhos cor de esmeralda e cortantes para a Cobra. “Este é Japeth.
Ele matou o irmão gêmeo e tem se passado por ele desde então. Fez todos
vocês de bobos.”
A princípio, todos acham que ela está brincando. Então veem o olhar
férreo de Sophie, além da coroa em sua cabeça. Uma comoção irrompe na
sala, exigindo que Rhian responda às acusações e puna as mentiras das
garotas.
Vejo que a casca de tranquilidade de Japeth foi afetada. Ele quer se
transformar na Cobra, crucificar as duas com mil scims. Mas não pode se
entregar. Está fingindo que é o irmão. O irmão do Bem, o irmão que parece
um rei.
Japeth se vira para os soldados. “Matem as duas!”
Mas eles não se movem. Até os piratas de Camelot estão atordoados com
a coroa na cabeça de Sophie.
A fachada de Japeth se desfaz. Ele ruge, como um assassino, seu rosto
monstruoso e retorcido. Então saca a Excalibur e investe contra Sophie,
contra o tecido com sangue que ela tem na mão. Sophie recua, surpresa,
deixando o tecido cair no ar, prestes a ser alvo da espada de Japeth.
Então o brilho de Agatha queima o tecido, incinerando-o até que não reste
nada.
As cinzas flutuam à luz do sol, como poeira.
Então se vão.
Assim como a coroa de Camelot.
A Excalibur se desvencilha das mãos de Japeth e volta para a pilha de
pedras.
Ninguém se move. A casa fica em silêncio total.
Japeth olha para a Agatha, com o dedo ainda brilhando em dourado.
“Há um único herdeiro agora. Um único rei”, ela diz, com a voz
estrondosa. “Um rei que te alertou de que a verdade não pode ser dita, só
vista.”
A princípio, Japeth não vê a verdade.
Então ele ouve a surpresa geral.
Devagar, a Cobra se vira.
Tedros se levanta. O Leão, o Rei, com a coroa de Camelot brilhando na
cabeça.
Os líderes voltam a ficar de joelhos, deslumbrados, vencidos, finalmente
humildes e leais.
“Longa vida ao rei!”, Agatha proclama.
“Longa vida ao rei!”, os líderes ecoam.
Tedros adentra a luz e saca a Excalibur, e a pedra se estilhaça com sua
força.
Tudo isso sem que seus olhos se desviem de Japeth.
A espada de Arthur deixa as mãos de Tedros.
Ela flutua sobre a Cobra, brilhando em vermelho-vivo.
Japeth arregala os olhos de um azul reptício.
“Tal pai, tal filho”, diz o rei.
A espada cai.
Dessa vez, no lugar certo.
W 32 w
O STORIAN
Samsara
MINHA
SALA
17H
Agatha escondeu o espelhinho no vestido antes de dar meia-volta e
conduzir Sophie para fora do esgoto, com aquela expressão estranha e
assombrada de que a amiga se lembrava no rosto.
Então a cena se desfez, depois que o segredo fora exposto. Sophie sentiu
que era puxada de volta para a sala do Professor Sader. Levemente tonta e
com a pulsação acelerada, seus olhos voaram para a mesa, as migalhas, os
livros e a caligrafia ruim nos manuscritos que não eram dele, e sim do garoto
que havia assumido como professor de história depois que o velho vidente se
fora.
Minha sala.
Minha.
Devagar, Sophie se virou para Agatha, com o coração em chamas, o
corpo tremendo tanto que ela nem conseguia ver direito.
Agatha acenou com a cabeça na direção do armário de vassouras.
As palmas de Sophie estavam suadas. Cada passo que dava parecia oito
para trás, como se ela estivesse despertando e tentasse se agarrar a um
sonho. Não conseguia respirar quando a mão roçou a porta do armário.
Hesitou na maçaneta, virou-a para o lado errado e só depois para o certo. A
porta estava emperrada, e ela teve que recorrer a um feitiço, que a arrancou
das dobradiças, fazendo com que a luz inundasse a escuridão no interior.
Sophie deixou cair o espelho, que se estilhaçou.
Cada caco o refletia.
Estava mais magro que antes, parecia pálido e fraco usando camisa e
calça preta, o cabelo escuro e irregular, os braços e pernas com cortes,
bandagens brancas despontando nos ombros e no peito. Mas seus olhos
estavam firmes, cheios de vida e concentrados em Sophie, como se ele
tivesse medo de piscar.
“É um truque...”, Sophie sussurrou. “É impossível...”
O garoto saiu do armário.
“Toda boa história precisa de um toque do impossível”, disse Hort. “Ou
ninguém acreditaria nela.”
As pernas de Sophie fraquejaram. A distância entre os dois parecia tão
ampla quanto um oceano.
“Vou deixar vocês a sós”, Agatha disse, já à porta.
“Aggie?”, Sophie a chamou.
Agatha olhou para ela; as lágrimas de felicidade faziam seus olhos
brilharem, extravasando amor. De repente, Sophie percebeu que tinha
entendido errado. Agatha faria qualquer coisa por ela. Sempre tinha feito.
Sempre ia fazer. Mesmo no dia de seu casamento, não era seu próprio final
feliz que ela estava determinada a fazer acontecer. Era o da melhor amiga.
Agatha deu uma piscadela para Sophie, depois fechou a porta.
Sophie engoliu em seco, precisando se esforçar para focar em Hort, como
se olhasse para o sol. “Como?”
“Me mantive vivo por tempo o bastante para ser resgatado”, ele explicou.
“Um velho amigo me encontrou, que por acaso é um especialista em
sobrevivência na floresta. E me trouxe de volta à vida.”
“Um velho amigo? Quem?”, Sophie perguntou.
“Um amigo velho, quero dizer. Bem velho”, disse Hort, apontando com a
cabeça para a janela.
Sophie viu um gnomo enrugado e de barba na grama, que apontava a
bengala para alguns garotos Nunca e gritava com eles. “Comendo o bolo?
Seus baderneiros! Yuba está de volta! Comportem-se! Comportem-se!”
“Esse tempo todo, Yuba esteve procurando os arquivos perdidos de Rhian
e Japeth na Biblioteca Viva”, Hort contou. “Nunca os encontrou, mas
encontrou o espelho de Aladim em uma loja de penhores nas Dunas de
Pasha. Tedros deve ter perdido o espelho no deserto, e um dos soldados do
sultão deve tê-lo vendido, sem saber o que era. Eu pretendia usar o espelho
para revelar meus segredos a você, mas então Agatha apareceu e estragou
tudo, como sempre. Aí tive que improvisar...”
É de verdade, Sophie pensou.
Está realmente acontecendo.
Ela se virou e observou Hort, finalmente se permitindo acreditar. “Achei
que tivesse te perdido. Achei que estivesse morto”, Sophie disse,
aproximando-se dele. Ela estendeu os braços.
“Espere”, Hort pediu, recuando. Ele deu as costas para ela, trêmulo. “Tem
algo que preciso contar.”
O estômago de Sophie se revirou.
Ela já estava esperando por aquilo.
Seu final feliz sempre vinha com um porém.
Lágrimas rolaram pelas bochechas de Hort. “Minha parte lobo”, ele disse,
baixo. “O lobo que foi atingido na árvore...” Hort não conseguia olhar para
Sophie. “Ele... morreu.”
Sophie ficou imóvel.
“A parte de mim de que você gostava. A parte forte. A fera. Os
ferimentos eram graves demais para que sobrevivesse”, Hort confessou, com
a voz falha. “Agora sou só eu. O velho furão. Sei que isso não é o bastante
para você.”
Por um momento, Sophie não disse nada. Então endireitou a coluna.
“Não, não é o bastante para mim.”
A cabeça de Hort pendeu.
Ao vê-lo, lágrimas se acumularam nos olhos de Sophie. “É mais que o
bastante.”
Ele ficou paralisado, a não ser pela cabeça que se erguia lentamente.
“Você sempre foi o bastante, Hort de Bloodbrook”, disse Sophie. “Você,
que é forte o bastante para morrer pela garota que ama e ainda dar um jeito
de voltar para ela. Você, corajoso, de bom coração, lindo. Eu é que não era o
bastante. Eu que vivia atrás de uma fantasia, em vez do amor verdadeiro. Eu
que não te merecia.” Tocou o rosto dele. “Até abrir meu coração e encontrar
você ali, esperando com paciência, sempre um pedaço de mim.”
Ela o beijou, abraçando-o com força, os lábios de Hort tão macios e
perfeitos que a faziam se sentir em casa. Para onde iriam depois ou quem
iam se tornar, Sophie não sabia. Os dois não estavam ligados por nada além
de seus sentimentos um pelo outro e da gratidão por aquele momento. Pela
primeira vez, Sophie não precisava saber o futuro para ser feliz. Não
precisava de promessas, de príncipes ou de uma vida de livro. Tudo o que
queria era o fim mais comum que havia: amar com todo o coração e ser
amada da mesma maneira.
Seus lábios se distanciaram quando Sophie precisou respirar. “Vamos
contar aos outros?”, ela perguntou, já indo para a porta.
“Ainda não”, disse Hort, trancando-a. “Eles podem esperar.”
Sophie sorriu enquanto ele se aproximava. “Quem disse que a fera
morreu?”
Tedros ficou tentado a ir espiar a sala de Sader para ver Hort em carne e
osso, mas a julgar pela cena que Agatha havia lhe descrito e a intensidade
que se instalara entre Sophie e o furão... preferiu deixar para depois.
Só Agatha poderia executar uma trama amorosa perfeita no dia do próprio
casamento, Tedros pensou, enquanto seguia pelo passadiço de vidro,
vestindo um traje branco e dourado e botas brancas, o cabelo dourado
perfeitamente penteado e o coração explodindo de felicidade. Felicidade
porque tinha beijado sua noiva antes de deixá-la com as ninfas que iam
arrumá-la. Felicidade porque Hort estava vivo e se recuperando. Felicidade
porque ele e Agatha iam se casar sabendo que a melhor amiga dela havia
encontrado o amor. E felicidade por Sophie, em que ele não pensava mais
como um espinho em seu flanco, mas como uma amiga verdadeira e
insubstituível. O castelo estaria sempre aberto para ela, que já fora sua
inimiga e agora era parte de sua família. Sem dúvida, novos desafios
surgiriam ao longo de seu reinado, de modo que era bom saber que o Rei de
Camelot podia contar com a ajuda da Bruxa de Além da Floresta.
Através do vidro, Tedros via os convidados chegando: Marian, com
alguns dos antigos Homens Alegres de Robin Hood; a Rainha Jacinda,
resplandecente depois de controlar o golpe que se iniciara em seu palácio,
acompanhada de onze novas cavaleiras, como se elas fossem guarda-costas;
Boobeshwar e sua tropa de mangustos, que receberam todos um beijo da
Princesa Uma na cabecinha peluda, pelo trabalho que haviam feito
retardando os exércitos de Japeth; Caleb, Cedric e a Diretora Gremlaine, a
quem Tedros havia visitado alguns dias antes para contar sobre Chaddick de
Foxwood, seu suserano, amigo e irmão; e João e Maria, a Rosa e o João, o
matador de gigantes, antigos membros da Liga dos Treze.
Todos chegavam ao gramado, tomando chá com especiarias e provando
musse de açafrão e biscoitos de pistache da mãe de Reena, que insistira que
ela e Yousuf cuidassem da comida e da bebida do casamento, incluindo o
banquete elaborado que se seguiria e o bolo de doze camadas de cardamomo
e água de rosas.
Então Tedros notou Pólux subindo a colina às escondidas, sua cabeça
oleosa sobre o corpo de poodle, tentando se manter distante de Cástor, que já
havia visto o irmão e olhava feio para ele. Pólux não tinha sido convidado,
claro, mas sempre que tinha a chance aproveitava para puxar o saco dos
poderosos. Mais convidados chegavam: a Fada Rainha de Gillikin, o Gigante
Gelado das Planícies de Gelo e a Rainha Ooty, além de alunos e professores
da escola. Pospisil também tinha vindo. Vestindo dourado, o velho padre foi
levado ao altar, onde conduziria a cerimônia. Estavam todos ali, Tedros
pensou, as velhas divisões e os pecados prévios esquecidos, a Floresta unida
sob o Leão, todos os amigos presentes.
Menos um.
Tedros seguiu depressa para a Galeria do Bem. Teria se esquecido
completamente de Merlin se o chapéu dele não estivesse fazendo o maior
escândalo por ser mantido separado do feiticeiro e acabara enfiado sob os
travesseiros do quarto em que as ninfas vestiam sua noiva.
A princípio, Tedros achou que o jovem de dezenove anos já estava no
gramado, mas não o vira, e não se podia esperar que ele fosse um modelo de
pontualidade e responsabilidade. Provavelmente tinha perdido a noção do
tempo na Galeria do Bem, praticando feitiços antigos e determinado a voltar
a ser o grande mago de antes. Tedros desceu a escada aos pulos, atravessou
os corredores depressa e empurrou as portas duplas para entrar, pronto para
dar uma bronca em Merlin.
Mas ele não estava ali.
Tedros olhou para a galeria deserta, com seus itens expostos celebrando
os melhores de seus ex-alunos. Merlin tinha seu próprio canto no museu, um
tributo a seu humilde início como aluno da escola, muitos anos antes.
Continuava tudo no lugar na seção sobre ele, tanto as vitrines com seus
antigos livros de feitiços quanto suas tarefas do primeiro ano e a medalha
que recebeu por ter vencido a Prova dos Contos, como se Merlin nem tivesse
ido para lá, como havia dito.
Então ele deve estar mesmo com os outros convidados, Tedros pensou,
com um suspiro, já voltando.
Então algo atraiu sua atenção.
Um dos livros de feitiços.
Estava aberto em uma pintura recente de uma praia radiante ao pôr do sol,
a areia rosa e a água roxa, o mar se desdobrando em ondas calmas e
brilhantes... até parar abruptamente. A água, as ondas, tudo ficou em branco,
como se a cena não tivesse sido concluída.
Mas foi o título que chamou a atenção de Tedros.
SAMSARA
“Onde o Tempo Termina”
Samsara.
Tedros já tinha ouvido falar daquele lugar.
O feiticeiro adolescente o havia mencionado em Avalon, quando estava
irritado com ele e com Agatha.
“Acha que estaria aqui, décadas mais novo do que deveria... em vez de
estirado nas praias de Samsara?”, ele havia resmungado. “Porque é lá que
gostaria de passar meu futuro.”
Tedros voltou a olhar para a imagem, para as águas roxas e vibrantes
interrompidas.
Onde o tempo termina.
Ele sentiu o corpo gelar.
“Tedros?”
Então se virou.
Agatha.
Ela estava com o vestido de noiva, acompanhada de Sophie e Hort. Com
o rosto pálido, todos olhavam para algo nas mãos de Agatha.
O chapéu de Merlin.
O veludo azul desbotava, as costuras se desfaziam. Ele envelhecia diante
de seus olhos.
Ele cuspiu uma nuvem de poeira: “Câmara da Honra”.
Tedros já estava correndo.
Quando chegaram, o cabelo de Merlin já tinha ficado grisalho, e as rugas
marcavam seu rosto antes liso.
Ele estava recostado no sofá, as velhas vestes de veludo se espalhando ao
seu redor como um mar roxo. A lareira estava acesa, iluminando murais com
sereias e reis.
Todos se reuniram em volta dele, e Tedros se ajoelhou.
“Meu menino”, Merlin disse.
“O que está acontecendo? Você tem que impedir”, Tedros implorou,
vendo-o ficar cada vez mais velho, com quarenta, quarenta e cinco,
cinquenta anos na melhor das suas hipóteses. As bochechas dele
descoravam, a pele se soltava dos ossos. “Por favor, Merlin.”
“Ninguém volta a ser jovem sem um custo, Tedros”, o feiticeiro falou.
“No passado, o Rei e a Rainha de Borna Coric aprenderam essa lição,
quando tentaram se manter jovens para sempre. Eles descobriram que seu
tempo era apenas emprestado. E é o mesmo comigo. Vivi dezenove anos em
dezenove dias. Mais anos do que ainda me restavam. Agora o Tempo veio
cobrar seu preço.”
“Mas é claro que você pode lutar contra isso”, Agatha insistiu. “É claro
que pode fazer alguma coisa.”
“Tudo o que quero é ficar bem aqui, com vocês”, disse o feiticeiro, com o
cabelo agora branco. Ele olhou para Tedros em seu traje branco e para
Agatha em seu vestido de noiva, para o batom borrado de Sophie e o cabelo
bagunçado de Hort. “Ah, as coisas que vocês farão. Há tanto amor entre
vocês.”
Seus ombros se curvaram, manchas pontuaram sua pele.
Sessenta. Setenta. Setenta e cinco.
Lágrimas molharam o rosto de Tedros. “Fique comigo, Merlin... Podemos
ficar juntos... Podemos ver o mundo...”
Os olhos do feiticeiro pareceram opacos atrás dos óculos. “Já vi o mundo
em você, meu menino. Agora é hora de ir para onde o tempo termina. De
atravessar o limite entre a visão e o silêncio...” Suas palavras ficavam cada
vez mais lentas. “Diga-me... o que você falou à Dama do Lago? O que disse
para fazer com que ela lhe oferecesse seu Desejo de Feiticeira?”
Tedros viu que ele ficava mais ossudo e flácido. “Merlin...”
O feiticeiro agarrou a mão dele. “Diga-me, meu menino.”
Tedros segurou as lágrimas. “Contei como pedi Agatha em casamento.”
O peito de Merlin subiu e desceu.
Agatha olhou para Tedros e acenou com a cabeça para que ele contasse a
história.
“Acordei Agatha no meio da noite”, Tedros disse, segurando firme a mão
de Merlin. “Estávamos em Camelot. Não fazia muito que tínhamos voltado
da escola. Ela dormia em seu quarto. Disse que precisava da ajuda dela. É
claro que Agatha veio na mesma hora. Passamos despercebidos pelos
guardas, pelos jardins e seguimos até a costa do Mar Selvagem. Expliquei
que havia encontrado um vidente que me dissera que meu reino poderia ser
protegido do Mal por um talismã mágico. Uma joia secreta que aparecia uma
vez por ano, quando a lua encontrava o mar. Disse a Agatha que aquela era a
noite certa e apontei para uma rocha ao luar, em meio às ondas distantes. A
água estava gelada e a corrente era forte. Mas prometi a ela que, se
conseguíssemos a joia, estaríamos protegidos para sempre do Mal. Ela
mergulhou antes mesmo de mim, o que não me surpreendeu. Nadamos
juntos, enfrentando a ressaca. Ela me trouxe à tona quando afundei, cortei
com os dentes as algas marinhas que a prendiam, ambos congelados, nossas
forças diminuindo conforme avançávamos pela água. Bem quando
achávamos que não aguentávamos mais, com os pulmões falhando, os olhos
ardendo tanto com o sal que nem conseguíamos enxergar, vimos a superfície
da rocha refletindo o luar, e o talismã lá em cima. Foi então que Agatha viu
o anel de diamante que eu havia deixado ali. Foi então que compreendeu. O
talismã era o pedido. Nossa jornada até ali era a prova de nosso amor. Eu
estava lhe pedindo para ser seu marido, para ela ser minha esposa. E a
resposta era o fato de que tínhamos arriscado nossa vida um pelo outro, no
mar invernal. A morte nunca seria um obstáculo para o nosso amor, mas
apenas um desafio a superar. Disse à Dama do Lago que aquele era o motivo
pelo qual precisava do Desejo de Feiticeira. Para não me separar do amor
que eu lutara tanto para encontrar. Um amor que a Dama do Lago ainda
poderia encontrar, mesmo sem seus poderes. Disse que ela tinha que dar uma
chance à sua própria história. Que precisava confiar no destino. Um destino
que havia nos unido. Disse que ainda não era a hora de ela morrer. Nem era a
minha. Disse que éramos parte da história um do outro, assim como ambos
tínhamos sido parte da história do meu pai, e que estávamos unidos pelo
amor, pela dor e pelo perdão, mas principalmente pela esperança. A
esperança de que todos pudéssemos ser tão valentes quanto ela, a ponto de
encarar nossos erros, aceitar nossas fraquezas e seguir em frente, aonde quer
que sejamos levados, não rumo ao Bem ou ao Mal, não rumo à glória, mas
rumo à verdade de quem devemos ser.”
Merlin olhou nos olhos de Tedros.
“Meu rei”, ele sussurrou.
O cômodo ficou em silêncio. Os quatro jovens estavam ajoelhados diante
do feiticeiro.
Ele olhou para todos.
“O Fim dos Fins... as histórias contadas... Que almas extraordinárias as de
vocês...”
Ele soltou Tedros e se afundou no veludo roxo.
“Por favor, Merlin”, pediu o rei. “Fique um pouco mais.”
Merlin conseguiu sorrir. “Não está vendo?” Ele fechou os olhos, já
seguindo para novas praias. “Meu trabalho está feito.”
A Escola do Bem e do Mal
Chainani, Soman
9788582351666
352 páginas