Bianca Freire Medeiros17
Bianca Freire Medeiros17
Bianca Freire Medeiros17
Bianca Freire-Medeiros
CPDOC/FGV
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As várias oposições que guarda esse par antinômico constituem, portanto, não
uma unidade conceitual, mas uma polifonia de noções de que se valem
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Destes lados do Atlântico, a “grande dicotomia” de que nos fala Noberto Bobbio
investe-se de fardagem ainda mais faustosa, elevada que é, na interpenetração
das duas esferas, à marca central da nossa cultura política, da nossa
sociedade e do nosso Estado. “O baralhamento entre público e privado”,
escreve André Botelho, “constitui uma das construções intelectuais mais
tenazes do pensamento social brasileiro”. É a partir da “tese do papel do
baralhamento” entre as duas esferas na composição e reprodução das
relações de dominação política que Oliveira Vianna, Sérgio Buarque, Freyre,
Faoro, Maria Isaura Pereira de Queiroz, entre tantos outros e a seu modo
particular, explicam o Brasil.
Quando contei à Katia, moradora da Rocinha desde que nasceu, que o meu
livro, Gringo na Laje: Produção, circulação e consumo da favela turística, seria
publicado em inglês e que eu estava penando para explicar para os
estrangeiros o que era, afinal, a laje, ela rindo, se solidarizou: “Ih, coitada! Seu
vocabulário é bom mesmo? Estou perguntando isso porque você vai precisar
de muitas palavras!”. Seu comentário jocoso foi seguido de uma justificativa
pertinente que resume esse que hoje constitui um dos espaços mais
significativos no imaginário e na sociabilidade da favela: “Você sabe, Bianca, as
pessoas fazem de tudo nas lajes. Cada um faz um uso diferente, só depende
mesmo da imaginação”.
A despeito de seu tamanho, as lajes não raro são tomadas como espaços
provisórios, sempre em mutação – vergalhões expostos, às vezes sinalizados e
protegidos por garrafas pet, acenam que outras edificações ainda estão por vir.
Não raro a intenção é que sirvam como base para se construir uma nova
residência a ser ocupada por outros membros da família ou para uso no
mercado imobiliário: afinal, como ressalta Licia Valladares, na Rocinha lajes
são vendidas e alugadas como se fossem um lote regular. Em ambos os
casos, observam Jailson de Sousa e Jorge Barbosa, elas representam um
valioso patrimônio familiar, a maior herança que os pais podem prover a seus
filhos.
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Desde a laje é possível refletir sobre como o tema do espaço público – sua
definição, constituição e usos -- relaciona-se diretamente com o tema da
mobilidade e da acessibilidade. Antes de tudo, é importante atentar para o fato
de que o acesso à laje geralmente se dá por meio de escadas que começam
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no nível da rua e são externas à casa propriamente dita. Uma regra não
escrita, porém bastante respeitada, prevê que não se deve subir por essas
escadas e chegar à laje de alguém sem o devido convite ou autorização. Nesse
sentido, estamos falando de um espaço privado, dos limites da Casa nos
termos de DaMatta. Por outro lado, apesar de esse acesso físico limitado ao
nível da rua reforçar seu status privado, as lajes estão, tanto física quanto
visualmente, conectadas com o exterior, com o espaço público. São
potencializadoras de diversas mobilidades que, por sua vez, nos ajudam a
refletir sobre o que pode constituir o “espaço do público” na modernidade
mundo de que nos fala Renato Ortiz. Esse ponto, a meu ver, merece
elaboração.
A laje permite pelo menos dois tipos de mobilidades: o primeiro tem a ver
justamente com a construção e a participação nesses fóruns públicos
desterritorializados pois, em muitas partes da favela, é no alto da laje onde se
consegue o melhor sinal wireless que o Estado passou a prover recentemente.
Pequeníssimos cômodos são construídos em um dos cantos da laje
exclusivamente com o intuito de abrigar uma mesa, uma cadeira e o
computador. Não é incomum ver pessoas sentadas na laje num domingo à
tarde com seus laptops acomodados ao colo.
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4.700 moradores. São 4,7 metros quadrados por pessoa (em Copacabana tem-
se 30 metros quadrados por habitante)! Além de estreitas, as ruas possuem
trechos muito escorregadios e íngremes; em outros, seu fluxo é interrompido
por escadarias. Torna-se inviável, portanto, transportar objetos de maior
volume – uma geladeira ou um sofá, por exemplo. Para contornar esse sério e
cotidiano problema de mobilidade, os moradores criam caminhos alternativos
por cima das casas. Seu caminhar por lajes adjacentes possibilita a criação de
verdadeiras „ruas suspensas‟, as quais prescindem, obviamente, de um traçado
prévio ou de qualquer lógica que não seja a do mais puro pragmatismo.
Quando percorridas assim, as lajes são casa ou rua, privadas ou públicas?
Nesse sentido, as lajes nos fazem atentar para o fato de que espaços públicos
precisam ser compreendidos não apenas em relação aos diferentes domínios
públicos do Estado e suas subdivisões, mas também como “espaço público
urbano” nos termos tão bem formulados por Isaac Joseph -- espaço de
comunicação, circulação e de mobilidade.
Isso não significa ignorar que o uso das lajes está referido, via de regra, à
noção de propriedade privada e que nem sempre a laje estabelece ou provê
uma relação positiva com a mobilidade, acessibilidade e movimento: basta
pensarmos que é do alto da laje que os traficantes dos bandos armados
observam e controlam o fluxo de pessoas e bens que entram e saem do
território que julgam seu. Quando falamos em público aqui, tampouco podemos
tomar como modelos ideais a ágora grega ou o fórum romano -- espaços de
discussão dos negócios e interesses públicos por excelência. Estamos falando
em uma noção de público a qual remete à de uma acessibilidade física e
psicológica que não se assenta em qualquer tipo de contrato de adesão.
Acessibilidade, nesse sentido, se coaduna com a noção de mobilidade porque
é da garantia de uma circulação ampla de pessoas, produtos e idéias de que
estamos falando.
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Eu não poderia encerrar esse nosso passeio sem mencionar uma outra função
que, desde o início dos anos 90, as lajes passaram acumular e que decorre da
popularidade da favela no mercado turístico internacional. Como muitos já
devem saber, na Rocinha atuam regularmente operadoras de turismo (sete
com registro na RioTur) que organizam tours de três ou quatro horas pelos
quais cobram uma média de R$70,00. Durante os passeios – que podem ser
feitos de jeep ou van, a pé ou na garupa de motos velozes -- estão previstas
pelo menos três paradas: a primeira em um dos três pontos de venda de
suvenires (quadros, camisetas, bolsas, bijuterias produzidos e comercializados
por artesãos locais); a segunda, no Largo do Boiadeiro, onde proliferam
barracas de produtos nordestinos; e a terceira em alguma laje que passa a
funcionar, então, como um mirante informal.
Os moradores que alugam suas lajes recebem das agências um valor fixo, algo
em torno de R$ 2,00 por turista. “Quando algum grupo pede, faço churrasco ou
feijoada. Mas, aí, eu cobro por fora”, explica Seu Carlinhos. No caso de haver
um contrato de exclusividade entre morador e agência, os guias já ficam em
posse da chave da casa do morador e sobem com os turistas mesmo se o
proprietário estiver ausente. É durante o „momento laje‟ que os guias
reproduzem seu texto explicativo sobre a favela e a sociedade brasileira em
termos mais gerais, respondem eventuais perguntas e incentivam os turistas a
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Muito obrigada.
Referências
Sheller, Mimi and Urry, John. 2000. „Mobilities and the Transformation of
"Public" and "Private" Life‟. Paper prepared for the Annual Meeting of the
American Sociological Association, Session on Place and Space.
Sheller, Mimi and Urry, John. 2006. The new mobilities paradigm. Environment
and Planning A 38 (2), 207–26.
Souza, Jaílson e Barbosa, Jorge Luís. 2005. Favela: Alegria e dor na cidade.
Rio de Janeiro: SenacRio.