Teoria Queer e Contextos Sociais de Aprendizagem
Teoria Queer e Contextos Sociais de Aprendizagem
Teoria Queer e Contextos Sociais de Aprendizagem
T314
Livro em PDF
ISBN 978-65-5939-745-7
DOI 10.31560/pimentacultural/2023.97457
CDD: 370
PIMENTA CULTURAL
São Paulo . SP
Telefone: +55 (11) 96766 2200
[email protected]
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CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO
Doutores e Doutoras
Seção 1
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 5
Capítulo 6
Seção 2
Capítulo 7
Capítulo 8
F[r]icções do humano:
dissidências em cena..................................................................... 181
Fernando Pocahy
Capítulo 9
Seção 3
Capítulo 10
Dependência, vulnerabilidade
e reconhecimento: ontologia e filosofia
política em Judith Butler................................................................. 225
Alipio De Sousa Filho
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Traduzindo a Travessia:
Judith Butler des-re-territorializada
e o queer como saber nômade...................................................... 296
Marcos Mariano Viana da Silva
Sobre os organizadores............................................................... 315
sumário 12
leituras interseccionais, a ampliação da própria ideia do que viria a ser
queer e do que viria a ser educação.
sumário 13
medida é possível pensar em aberturas para o estabelecimento de
um diálogo entre a educação confessional católica e os estudos de
gênero e sexualidades sob uma perspectiva da aprendizado com as
diferenças. Em Educação cristã e estudos de gênero: em defesa de um
diálogo fecundo, os autores partem da análise do dispositivo da ideo-
logia de gênero e da iconografia católica e apontam como, apesar do
cristianismo ser um campo discursivo que se transformou durante sua
história, é preciso reconhecer e preocupar-se com o caráter problemá-
tico e potencialmente nocivo que alguns grupos cristãos têm revelado.
Frente a isso, seria necessário a adoção de uma teologia afirmativa,
bem como a elaboração de uma pedagogia confessional afirmativa,
engajada nos debates a respeito de gêneros e sexualidades.
sumário 14
vida, propiciando um ensino de literatura que seja uma forma de ginga
antirracista, antifóbico, antimisógino, contra preconceitos às popula-
ções originárias, às classes trabalhadoras e à população do campo.
sumário 15
não noutras, da repetição de alguns gestos e não doutros, cria corpos
contorcidos, desobedientes que, ao “falharem” em reproduzir normas
como formas de vida, criam interessantes fluxos políticos e éticos.
sumário 16
Em capítulo intitulado Dependência, vulnerabilidade e reconhe-
cimento – ontologia e filosofia política em Judith Butler, Alipio de Sousa
Filho realiza uma reflexão sobre os temas da dependência, vulnera-
bilidade e reconhecimento em Judith Butler. O autor defende que a
reflexão da filósofa em torno desses temas pode ser analisada a partir
de quatro questões principais: a dependência do ser humano a um
outro; de nossa permanente vulnerabilidade; das precariedades do
viver que aumentam essa vulnerabilidade; e o assunto do necessário
reconhecimento do “eu” por um “outro”, como consciência da fatal
interdependência humana e como consciência comprometida a su-
perar a vulnerabilidade e a precariedade da vida. Assim, esses temas
tornam-se os fundamentos de uma ontologia e de uma filosofia política
que faz de Butler uma filósofa de conceitos de grande força teórica e
pensadora de problemas sociais absolutamente incontornáveis hoje.
sumário 17
assim, a figura do “eu autor”, os seus privilégios e a funcionalidade que
a palavra adquire para a criação de uma zona cinzenta do saber pre-
tensamente neutra. A partir de um olhar desconstrutivista recuperado
por Judith Butler da obra de Jacques Derrida, a hipótese introduzida é a
de que a opção por uma escrita baseada em uma linguagem que não
reifica o caráter neutro do gênero pode apresentar uma dinâmica que
perturba o idealismo do espírito científico moderno.
Por fim, partindo dos muitos territórios habitados por Judith Butler
e suas teorizações, Marcos Mariano Viana da Silva, em capítulo intitula-
do Traduzindo a travessia: Judith Butler des-re-territorializada e o queer
como saber nômade, pensa as obras de Butler e os estudos queer como
territórios que foram agenciados nos últimos anos no Brasil. Nesse sen-
tido, sofreram alterações no momento de sua travessia, recepção e dis-
tribuição em território estrangeiro, e podem ainda estar envolvidas em
constante exercício de interpretação, contestação e tentativas de ressig-
nificação, o que pode ser evidenciado pelas traduções das obras da fi-
lósofa, que apesar das possíveis querelas em seu processo de tradução
adentraram em diferentes áreas da produção acadêmica das ciências
humanas no Brasil, fazendo rizoma com a realidade brasileira.
sumário 18
Seção 1
Aprendizagens queer e
Seção 1
experiências subalternas
Aprendizagens
queer e experiências
subalternas
1
Capítulo 1
Concepções e criações
acerca das pedagogias
queer: relato de experiência
na formação pós-graduada
em Pernambuco
Concepções
e criações acerca
das pedagogias queer:
relato de experiência na formação
pós-graduada em Pernambuco
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.1
INTRODUÇÃO
sumário 21
É possível que as discussões realizadas no decorrer do semes-
tre tenham influenciado essa decisão, dado que em muitos momen-
tos os aparatos normativos dos contextos acadêmicos e escolares
foram postos em questão. Dessa forma, o paradigma da neutralidade
e objetividade foi sendo colocado em coabitação com uma lógica si-
tuada e contextual do conhecimento (HARAWAY, 1995) que amplia as
possibilidades epistêmicas e subjetivas nos processos de formação
e pesquisa acadêmica.
sumário 22
pontual e localizada, mas que, como advoga Guacira Louro (2012) em
relação a pequenos movimentos queer na educação, tem sua impor-
tância pela abertura a outras formas de atuação pedagógica.
PEDAGOGIAS QUEER
sumário 23
fechar o conceito muitas vezes poderá significar que esse perca seu
caráter disruptivo. Assim,
Na medida em que queer sinaliza para o estranho, para a con-
testação, para o que está fora-do-centro, seria incoerente supor
que a teoria se reduzisse a uma “aplicação” ou a uma extensão
de idéias fundadoras. Os teóricos e teóricas queer fazem um
uso próprio e transgressivo das proposições das quais se utili-
zam, geralmente para desarranjar e subverter noções e expec-
tativas (LOURO, 2001, p. 548).
sumário 24
Na escola, os processos hegemônicos no que tange à relação
dos sujeitos com as diferenças reproduzem uma série de violências
sociais através de um cânone normativo que define quem está den-
tro e quem está fora das normas (SÁINZ, 2019). Nesse cenário, uma
questão que emerge é a de como seria possível pensar uma pedago-
gia queer, dado o caráter questionador e desconstrucionista que essa
perspectiva possui, uma vez que, “se, de um lado, o queer privilegia
estratégias desconstrutivas, a educação, por outro, adota a prescri-
ção” (LOURO, 2012, p. 366).
sumário 25
caso, longe de pretender atingir, finalmente, um modelo ideal,
esse sujeito – e essa pedagogia – assumem seu caráter intencio-
nalmente inconcluso e incompleto (LOURO, 2001, p. 552).
sumário 26
POLÍTICAS DA DIFERENÇA
NA FORMAÇÃO PÓS-GRADUADA
sumário 27
O essencialismo no campo dos gêneros e das sexualidades é
o que permite a defesa da lógica binária como a única possível. Essa
lógica, por sua vez, é criada e mantida a partir da reiteração dos có-
digos de masculinidade e feminilidade, sempre atrelados a um corpo
específico, uma vez que é a genitália o que definiria para a cultura qual
gênero se deve performativizar (BUTLER, 2008).
sumário 28
Fonte: Maria Rita, 2022.
sumário 29
Esse é um grande desafio quando pensamos na educação es-
colar, uma vez que na escola encontramos frequentemente o funciona-
mento de uma instituição comprometida com as normas de gênero e
sexualidade. Nesse contexto, torna-se importante pensar os processos
pelos quais muitas vezes a diferença é expulsa dos contextos escola-
res, dado frequentemente ocultado sob o termo geral e individualista
de evasão (BENTO, 2011).
sumário 30
Fonte: Sergivano, 2022.
sumário 31
No ambiente escolar é fácil notar
Que se convive com muita diferença
Essa não escapa ao olhar, mas...
Passa a ser invisibilizada, tendo que se calar
sumário 32
um lugar a ser disputado, dada sua importância na formação subjetiva
e social em nossa realidade e, por isso, com grande potencial transfor-
mador das realidades de opressão e exclusão das diferenças.
sumário 33
O espaço da universidade, para a personagem, ao invés de
aparecer como lugar de reforço das lógicas opressivas pôde cons-
tituir-se como lugar de experiências e aprendizagens para a dife-
rença. Nota-se, com isso, como essas instituições podem contribuir
com o desmantelar das estruturas heteronormativas existentes na
educação, tornando esses espaços mais interessantes às experiên-
cias queer. É dessa forma que as pedagogias queer podem ser
compreendidas, como “[...] uma forma aberta, afetiva, estranha,
curiosa e demolidora de buscar maneiras de fugir da educação for-
mal e de poder criar, dentro dela, lugares de aprendizagem que nos
atravessem, que nos faça refletir sobre nosso lugar no mundo, que
nos permita ser” (SÁINZ, 2019, p. 64).
sumário 34
Fonte: Maria de Fátima Caldas, 2022.
sumário 35
Quando você lida com o diferente, você também se transforma, se
coloca em questão. Diversidade é “cada um no seu quadrado”:
uma perspectiva que compreende o Outro como incomensuravel-
mente distinto de nós e com o qual podemos conviver, mas sem
nos misturarmos a ele. Na perspectiva da diferença, estamos to-
dos implicados/as na criação desse Outro, e quanto mais nos rela-
cionamos com ele, o reconhecemos como parte de nós mesmos,
não apenas o toleramos, mas dialogamos com ele sabendo que
essa relação nos transformará (MISKOLCI, 2012, p. 15-6).
sumário 36
A peça foi assim descrita pela estudante/escultora:
Nesse trabalho apresento a escultura, sem nome, feita em ar-
gila crua, com 18cm de altura, baseada na obra Pietá, de Mi-
chelangelo, que foi feita durante o período de transição final da
idade média, momento histórico da humanidade que lembra em
alguns fatos a atualidade. Nessa obra pretendo trazer a figura
do filho privado do direito de ser completo em sua sexualidade
e livre expressão de gênero. Questiono a base dos discursos
heteronormativos que constroem suas bases nos ditos valo-
res familiares, mas que, todavia, não reconhecem as pessoas
que fazem parte de movimentos sociais e políticos feministas,
LGBTQIA+, negros, indígenas que ultrapassem e transgridam
essas normas de manutenção da doutrinação milenar da social.
Na obra a figura da mão busca remeter à figura masculina como
a mãe, buscando construir uma personalidade queer, a ideia
do filho não ser fisicamente parecido com a mãe reforça esse
equilíbrio que surge das diferenças que são a base real de toda
sociedade. Nessa perspectiva, essa figura também carrega a
esperança de que as inquietações, as ações políticas e edu-
cativas da teoria ou pedagogia queer nos levarão a superação
das práticas cultuais preconceituosas e limitantes da capacida-
de humana de ser simplesmente “humano”.
Figura 5 – quadrinhos
sumário 37
Fonte: Luiz Felipe, 2022.
sumário 38
de anormalidade, de estranheza, mas também como a própria
base com a qual a escola pode trabalhar. Ao invés de punir, vi-
giar ou controlar aqueles e aquelas que rompem as normas que
buscam enquadrá-los, o educador e a educadora podem se
inspirar nessas expressões de dissidência para o próprio edu-
car. Em síntese, ao invés de ensinar e reproduzir a experiência
da abjeção, o processo de aprendizado pode ser de ressig-
nificação do estranho, do anormal como veículo de mudança
social e abertura para o futuro (MISKOLCI, 2012, p. 63).
sumário 39
das instituições escolares, até a inserção de proposições que desesta-
bilizem essa hegemonia, indo em direção à criação de novos espaços
para as aprendizagens, estabelecendo as salas de aula como lugares
de movimento e transformação (SÁINZ, 2019).
sumário 40
Figura 6 – O pote que não queria ser fechado
sumário 41
REFERÊNCIAS
BENTO, Berenice. Na escola se aprende que a diferença faz a diferença.
Estudos Feministas, Florianópolis, v.19 n.2, p. 549-59, 2011.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de
identidade. 2ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
HARAWAY, Donna. SABERES LOCALIZADOS: a questão da ciência para o
feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu, Campinas, v.
5, p. 07-41, 1995.
LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer – uma política pós-identitária para a
educação. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 9, n.2, p. 541-53, 2001.
LOURO, Guacira Lopes. Os Estudos Queer e a Educação no Brasil:
articulações, tensões, resistências. Contemporânea, São Carlos, v. 2, n. 2, p.
363-369, 2012.
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo
Horizonte: Autêntica & UFOP, 2012.
SÁINZ, Mercedes Sánchez. Pedagogías queer – ¿Nos arriesgamos a hacer
otra educación?. Madrid: Catarata, 2019.
sumário 42
2
Capítulo 2
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.2
INTRODUÇÃO
9 Optamos por usar a “linguagem neutra” ou “não-binária” para não reforçar o binário de
gênero, consoante a perspectiva das Teorias Queer, e para melhor incluir diversas iden-
tidades de gênero que nele não se encaixam. Por isso, termos como “es alunes” em vez
de “os/as alunos/as” aparecerão ao longo do texto. A escolha pelo “e” no lugar do “x” é
devido a seu potencial de mudança linguístico-social. Já que palavras como “alunxs” não
são pronunciáveis, acabam ficando restritas à escrita, enquanto palavras como “alunes”
podem ser empregadas no discurso escrito e oral. Como as mudanças linguísticas ten-
dem a surgir e se concretizar na fala, a escolha de usar o “e” não somente contribui para
desestabilizar o binário de gênero dentro das páginas deste capítulo, mas também para
fomentar a mudança linguística de forma mais geral.
sumário 44
seja incorporada às regras escolares e as tornem mais rigorosas em
relação às manifestações de afeto, atingindo até mesmo as heteros-
sexuais, em geral mais toleradas. Paradoxalmente, é também na es-
cola que, muitas vezes, es adolescentes têm mais oportunidades e se
sentem mais livres para vivenciar suas relações afetivas, pressionando
a comunidade escolar a encontrar caminhos para que a convivência
se mantenha harmoniosa e mesmo para que es discentes não sofram
opressões devido às suas identificações de gênero ou sexualidade.
sumário 45
que encontramos é um artigo de Torres (2022), que embora discuta
bastante questões de vigilância e controle de gêneros e sexualidades
no âmbito escolar, também aponta que a escola pode ser um lugar
para a criação de laços entre alunas lésbicas e para compreender
identificações de gênero e sexualidade. Desta maneira, o presente
capítulo pretende contribuir para preencher duas lacunas na literatura
acadêmica: a falta de estudos sobre lésbicas e sobre experiências
positivas de pessoas não heterossexuais nas escolas.
CURRÍCULO GENERIFICADO
E POLÍTICAS DE RECONHECIMENTO
sumário 46
Na instituição escolar, aponta a autora, a produção da hete-
ronormatividade acontece não apenas por meio dos conteúdos das
disciplinas criados sob uma perspectiva masculina e eurocêntrica,
mas também através dos subtextos presentes nas formas de organi-
zação escolar: nas divisões dos grupos, dos banheiros ou nos papeis
sociais que são esperados de meninos e meninas. A partir de relatos
de pesquisas realizadas em escolas entre os anos 1990 e o início dos
anos 2000, Louro (2000) demonstra como a reprodução dos estereó-
tipos de gênero e de sexualidade se efetivam na própria dinâmica de
socialização des estudantes e como o ambiente escolar, mesmo que
permeado pela fluidez que caracteriza a vivência da sexualidade, é
cenário privilegiado para a “demarcação das fronteiras” que separam
a norma da identidade desviante ou marcada.
sumário 47
e sexualidade em direção à busca pelos mecanismos de agentividade
dissonante em meio aos processos de reprodução da heteronorma-
tividade. Dedicado a pensar como as trajetórias escolares de meni-
nos gays interpelam as redes de poder nas instituições educacionais,
Ranniery propõe uma perspectiva sobre o currículo que ultrapassa a
tradicional associação com o ensino e o conhecimento e inclui toda
a trama de relações que se estabelecem nas escolas e a partir delas.
10 Em seu artigo, Ranniery opta por usar as aspas ao tratar os entrevistados por “meni-
nos gays” por entender que, embora esse seja o termo que circula nas escolas e por
isso o tenha escolhido para categorizá-los, ele não dá conta das formas de existência
desses e de outros meninos. Assim, as aspas têm, nessa ocasião, a função de pro-
duzir um efeito desnaturalizador e demonstrar o caráter limitante dos termos usados
para descrever gênero e sexualidade.
sumário 48
A inteligibilidade destas existências já irrecusáveis é atribuída,
percebe Ranniery (2017), a partir da categoria “menino gay”, através
da qual se apaziguam as tensões criadas pela não identificação en-
tre os parâmetros de gênero, desejo sexual e “sexo biológico”. Esse
reenquadramento no campo do gênero não acontece, no entanto,
sem estar acompanhado de outros movimentos de produção de sen-
tido em torno dessas vidas:
Com efeito, quando são nomeados, tipificados e caracterizados,
esses corpos não são apenas objeto de descrições e diferen-
ciações pretensamente dadas, mas discriminados no sentido
de que são alvo de investimentos discursivos que pressupõem,
valorizam e produzem experiências de subjetivação que generi-
ficam e sexualizam corpos (RANNIERY, 2017, p. 13-14).
sumário 49
[...] seus corpos desvelam como as normas funcionam, ao
mesmo tempo, como campo de sujeição e fonte de agência,
apontando para a necessidade de uma analítica da normati-
vidade menos estreita, que dê conta da multiplicidade da sua
incrustração na vida e evite a saída apressada de que ou os cor-
pos foram totalmente subsumidos pelas normas, ou só existem
quando são capazes de enfrentá-las (RANNIERY, 2017, p. 18).
ESTUDOS DA NARRATIVA
E POSICIONAMENTOS
sumário 50
Os estudos da narrativa se originaram no âmbito da sociolin-
guística interacional e têm como marco os trabalhos pioneiros de La-
bov (1972) e Labov e Waletski (1967) que propuseram uma definição
estrutural da narrativa, cujas categorias constituem repertório analíti-
co fundamental ainda hoje. A estrutura formal padrão das narrativas
proposta por Labov e Waletski – conhecida como modelo canônico
de narrativa – possui seis partes com funções distintas. A primeira
delas, o sumário, é uma introdução da narrativa, onde a pessoa que
narra apresenta o motivo de contar a história e um breve resumo dela.
Nas orientações, quem narra contextualiza os eventos narrados, des-
crevendo os lugares onde ocorre a ação, es personagens envolvides,
a época e qualquer outro elemento que ajude a situar es interlocuto-
res. O cerne da narrativa seria sua ação complicadora, quando quem
narra de fato expõe os acontecimentos a partir de uma sequência de
orações no passado. Constituem elementos de avaliação as partes
da narrativa em que a pessoa que narra indica sua opinião diante
dos fatos relatados, destacando algum trecho em relação ao outro
ou ressaltando o motivo pelo qual a narrativa merece ser reportada
naquele contexto de interação. O resultado é o momento em que a
pessoa que narra apresenta o desfecho das ações complicadoras. Já
a coda, é o encerramento da narrativa, quando é retomado o tempo
presente e podem ser avaliados os efeitos das ações narradas.
sumário 51
2015). Segundo Bastos, as narrativas não devem ser “consideradas
como representações diretas e transparentes de eventos passados,
mas sim como recontagens seletivas e contextualizadas de lembran-
ças de eventos” (2005, p. 80). Assim, Bastos defende que as narrativas
são sempre recriações de experiências passadas e jamais um relato
transparente. Segundo a autora, a cada momento em que contamos
uma história, passamos nossas experiências pelo “filtro de nossas
emoções” e “podemos estar tanto transformando nossas lembranças,
quanto solidificando determinadas interpretações e formas de rela-
tá-las” (2005, p. 80). Dessa forma, a autora compreende a narrativa
como uma construção social sempre atravessada pelas contingências
da situação de comunicação, mais do que apenas a representação
verbal de algo que aconteceu. Nas palavras de Bastos:
[...] quando contamos estórias, construímos um mundo, num
determinado tempo e lugar, no qual circulam pessoas que con-
versam, pensam, trabalham, brigam, se divertem, etc. Ao criar
esse universo narrativo, estamos necessariamente mostrando
quem somos, ou, pelo menos, algumas dimensões de quem
somos. As escolhas (mais ou menos automáticas) que fazemos
ao introduzir cenários, personagens e suas ações dizem respei-
to a como nos posicionamos frente a esses personagens e suas
ações nas situações que criamos [...] (2005, p. 81).
sumário 52
ser) no mundo social emerge de um constante movimento de reivindicar,
aceitar ou refutar posições no discurso [...]”.
METODOLOGIA DE PESQUISA
sumário 53
Meet. Foram analisados para este capítulo os trechos das entrevistas em
que as entrevistadas contavam histórias que cruzavam a trajetória esco-
lar e o processo de identificação da sexualidade. As narrativas selecio-
nadas foram transcritas com base nas convenções de Sacks, Schegloff
e Jefferson (2003) (ver Tabela 1), que possibilitam a identificação de va-
riações expressivas des interlocutores fundamentais para a compreen-
são dos aspectos pragmáticos e semânticos das narrativas.
SÍMBOLO SIGNIFICADO
. entonação descendente (tom de final de elocução)
? entonação ascendente (tom de pergunta)
, entonação de continuidade
↑ subida de entonação (mais aguda)
↓ descida de entonação (mais grave)
-
parada abrupta
e.g. palav-
: ou ::
prolongamento do som (mais de um : indica mais prolongamento)
e.g. pala::vra
sublinhado sílaba ou palavra enfatizada (acentuada)
ênfase maior (“volume” alto, mais do que uma simples ênfase numa palavra
MAIÚSCULA
ou sílaba)
°palavra° fala em voz baixa (“volume” baixo)
>palavra< fala mais rápida/acelerada
<palavra> fala mais lenta
Hh aspiração
@ Risos
.h inspiração audível
= elocuções contíguas, enunciadas sem pausa entre elas (engatamento)
[ ] início e fim de falas simultâneas/sobrepostas
(2.0) pausa medida (em segundos)
(.) pausa breve (micropausa, de menos de um segundo)
( ) fala inaudível ou não compreendida
sumário 54
transcrição duvidosa (quem transcreve não tem certeza sobre a palavra que foi
(palavra)
dita)
(( )) comentário de quem fez a transcrição, descrição de atividade não verbal
Fonte: Adaptadas a partir de Sacks et al., 2003.
sumário 55
Para este trabalho, selecionamos narrativas que tratam do pro-
cesso de identificação com a sexualidade ou de “saída do armário”,
como conhecemos popularmente. Como explica Lewis (2012), o pro-
cesso de “saída do armário” não acontece em um momento pontual na
trajetória da vida das pessoas, mas perdura por toda a vida, em todos
os momentos em que uma pessoa decide ou é forçada a reafirmar sua
sexualidade diante de uma sociedade para a qual a heterossexualida-
de é presumida. Como veremos adiante, esse processo fragmentado
está presente nas narrativas analisadas de diversas formas, demons-
trado a partir de marcas textuais como as repetições, a estrutura de
narrativas múltiplas e curtas, a escolha lexical e as ênfases.
sumário 56
Marina faz um breve relato, um pouco orgulhosa, mas também
envergonhada, sobre a lembrança dos primeiros dias na escola, quan-
do fez muito sucesso e as pessoas ficavam se perguntando quem era
“aquela menina”, que era muito bonita. A seguir, no trecho selecionado
para análise, Marina narra um processo bastante estendido de com-
preensão e aceitação de sua identificação enquanto homossexual ao
longo de seu percurso escolar. Após ser perguntada sobre como se
identifica com respeito à sua sexualidade e como foi o processo de
compreensão dessa identificação, Marina responde:
sumário 57
34 confirmação que eu gostava de:
35 de pessoas do mesmo gênero que [ eu ] >entendeu<?
36 Carol [mm hm]
37 Marina e aí: >e aí eu acho que isso<
38 tipo com quatorze anos eu ti- tive meio que uma confirmação
39 mas eu acho que só fui me aceitar de fato de fato na eteat
40 porque foi tipo:
41 ver muitas pessoas com a mesma sexualidade que eu
42 e ver muitas pessoas como eu >tipo<
43 acho que: (.) >aquela questão da representatividade
44 mas eu não gosto muito de tender pra esse lado<
45 eu acho que: >sei lá< conversar com pessoas
46 entender: tipo me entender mais:
47 me identificar com as coisas foi crucial (.)
48 e saber que não é erra:do essas paradas (.) porque:: né tipo
49 a escola que eu tava antes (1.0) é: (.)
50 tinha uma tendência a: a: a: pré julgar né e tal
48 não tinha muitas pessoas é::
49 eu não conversava com muitas pessoas que:
50 que tinha a mesma sexualidade que eu enfim que
51 ou eram lgbts e aí- ou que: enfim falassem sobre isso
52 eu não falava sobre isso (2.0)
53 e aí ou falavam só que as pessoas eram preconceituosas e: enfim
54 crianças também podem ser preconceituosas falar coisa >enfim<
55 e aí (.) quando eu fui pra eteat foi libertador foi muito libertador
56 porque lá eu podia ser quem eu quisesse ser
57 e aí: ou pelo menos tentar chegar per::to >enfim<
58 e aí foi isso >eu aí eu fui< @
59 eu fui muito animada porque eu lembro que dois mil e dezessete
60 tinha sido muito ruim no nono ano né?
61 tinha sido muito ruim pra mim (.)
62 porque eu queria sair da minha escola logo
sumário 58
63 e aí dois mil e dezoito foi tipo::
64 melhor ano da na minha vida foi o primeiro ano
65 mas também só fiz merda [@@]
66 Carol [@@]
67 Marina mas foi muito bom
68 Carol [ e tem alguma coisa ]
69 Marina [assim questão de aceitação] e tal foi- foi ↑crucial
sumário 59
dos quais se posiciona na narrativa, são chamados genericamente de
“menina”, “pessoas” ou “crianças”.
sumário 60
desconhecimento sobre sua própria sexualidade, denotando que pa-
recia absurdo que esse questionamento viesse de outras pessoas, na
linha 34 ela retoma a ênfase, mas com a função de dar um desfecho a
essa dúvida (“eu acho que por aí eu tive tipo a [...] confirmação que eu
gostava de pessoas do mesmo gênero que eu”, linhas 33 a 35).
sumário 61
Ainda nessa terceira parte, Marina relembra que não tinha mui-
tos exemplos que possibilitassem que ela compreendesse sua se-
xualidade e faz a avaliação de que convivia com pessoas preconcei-
tuosas, inclusive as crianças. Essa avaliação demonstra bem a forma
como Marina se posiciona ao longo da narrativa para sua audiência
(nível 2, conforme a proposta de Bamberg), como alguém que supe-
rou a opressão vivida na escola e no momento do relato se vê como
superior às pessoas preconceituosas, em oposição às quais constrói
sua identidade. Vale ressaltar que Marina é risonha na maior parte de
sua narrativa, mesmo quando fala de momentos que considera ruins,
expressando assim também que esses são problema pelos quais já
passou e não a afetam mais.
Por fim, enfatiza que mudar para a escola nova “foi libertador”
e depois pondera, dizendo que pode “pelo menos tentar chegar per-
to”, do que ela “quisesse ser”. A questão da liberdade não é o foco
da narrativa que ela conta, por isso, talvez, ela termine essa parte da
entrevista trazendo novamente para a narrativa sua construção social:
ela conseguiu ser quem ela gostaria de ser a partir dessa mudança
de ambiente escolar. Nessa ponderação final, fica mais claro o nível
3 de seu posicionamento, quando articula sua relação com es outres
personagens da narrativa e seu posicionamento para es interlocutores
criando uma imagem de si. Marina mostra nesse trecho que o proces-
so de se tornar quem ela quer ser ainda está em curso e que, apesar de
reconhecer a relevância da ETEAT nesse processo, ele ainda depende-
rá de sua própria agência da qual demonstra muito orgulho.
sumário 62
era a entrevistada com quem a entrevistadora tinha maior intimidade.
A entrevista com Rafa aconteceu no dia 11 de agosto de 2021 e du-
rou 44 minutos. Diferente de Marina, Rafa relata que não tinha muita
ideia de como era a escola, mas que precisava escolher uma escola
técnica para fazer o Ensino Médio e escolheu a ETE Anísio Teixeira
pelo curso de produção audiovisual que era com o qual se identifica-
va mais e também porque a irmã dela já havia estudado lá. Apesar
de dizer que não tinha nenhuma expectativa específica em relação à
ETE Anísio Teixeira, reconhece que tinha uma sensação de que teria
maior liberdade porque iria para um colégio diferente daquele em
que havia estudado durante toda sua vida escolar até então. Relata
brevemente a atividade de apresentação da escola feita por profes-
sores e alunes veteranes que já achou “muito divertido”. Descreve
também sua turma como muito comunicativa e unida e que, por isso,
não foi muito difícil fazer novas amizades. Rafa diz que desde o início
já podia notar que era uma escola “bem diferente”, que as pessoas e
a própria escola levantavam muitas discussões, diferente do colégio
em que estudava antes, que era “de bairro”.
sumário 63
64 Rafa e tá, ok, aí , né? eu lembro de uma vez, de uma situação que:: (.)
65 isso antes de eu entrar na eteat (.) né?
66 que:: alguém chegou assim e falou assim
67 “rafaela, você go-“ é:: “você gosta de meninas?” falou assim
68 porque, tipo, via que: sempre quando tentavam arranjar um garoto pra mim
69 eu ficava: “não” ((tom assertivo)).h
70 e eu falei assim tsc “↑não, claro que não” ((tom irônico)) @@
71 ( ) e aí eu fico lembrando essa situação assim, né?
72 aí::, tá, e aí depois eu lembro que, na época que eu tava fazendo
73 pré:- pré-técnico pra entrar na escola técnica (.) né?
74 como eu morava na ((nome da favela)) também aí eu fazia parte de um pré-técnico
75 lá que era supe::r questão também assim, desse assunto de diversidade
76 uma coisa muito mais ampla assim também, já-
77 já abre a cabeça pra novos horizontes e::
78 e era um cursinho comunitá:rio e ta:l
79 aí eu (tava) começando a entender algumas coisas assim
80 aí tinha uma amiguinha lá: também,
81 a gente ficava assim
82 ((faz um gesto com as mãos dando a entender um flerte))
83 ma::s (.) mas nada:: concre:to também
84 mas eu já identificava a partir daquele momento
85 que assim @ eu tava identificando que algo estava acontecendo
86 em relação a gostar de mulheres (.) é:: (.)
sumário 64
aconteceu antes de entrar na ETEAT, adiantando a importância que a
convivência na escola teria na sua relação com sua sexualidade.
Nas linhas 68 e 69, Rafa cria uma justificativa para a terem ques-
tionado se gostava de meninas e cita o fato de sempre tentarem con-
vencê-la a ficar com algum menino, algo que também tinha comenta-
do em trechos anteriores não analisados no presente recorte. Nesse
momento da narrativa ela já representa a si como alguém que nega
essas tentativas de forma mais veemente, enfatizando, na linha 69, sua
negação e a representado com um tom assertivo e até agressivo. Essa
ênfase demonstra também a escalada de impaciência que estrutura
toda a narrativa, dando uma sensação de adiamento e, por fim, de uma
resolução que virá após a entrada na ETEAT.
sumário 65
95 e aí: a pessoa quer deixar claro também às vezes que ela é assim .h e aí
96 > e aí eu não fui uma pessoa que deixou claro desde o início <, né?
97 mas eu tava assim observando, porque eu fico observando assim
98 e: é:: , aí enfim
99 no primeiro ano eu vi que tinha gostado de uma menininha lá
100 e aí: que inclusive é minha amiga até hoje @
101 e aí eu fiquei tipo
102 um ano gostando dessa menina (.)
103 aí todo mundo já: (.) assim (.) das minhas amigas que tavam perto de mim
104 que são todas héteros é::
105 >já tinham ficado- se arranjado com um menino
106 porque é assim, né?< você chega num colégio novo aí você
107 ↑tem que ficar com alguém,
108 e aí::, só que assim (.)
109 zero interesse em qualquer garoto de lá e::,
110 mas, por outro lado,
111 eu já tinha: ficado meio assim
112 ((faz um gesto indicando interesse ou curiosidade))
113 com a menininha lá
114 e aí eu até fiquei um pouquinho::
115 eu demorei um tempo pra falar pras meninas,
116 >mas também quando eu falei pras meninas< foi supe::r (1.0) .h
117 natural assim
118 e as meninas tavam arranjando depois pra @@
119 pra ficar com a menina
sumário 66
dá a entender que era isso o que era o mais comum em outros luga-
res ou em suas experiências escolares anteriores.
sumário 67
e da sexualidade. Diferente de Marina, ela não se posiciona em um
lugar de oposição aos demais, mas marca uma sensação de inade-
quação que era ainda pouco clara.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
sumário 68
Um ponto que diferencia as experiências de Rafa e Marina é
a relação entre performatividade de gênero e de sexualidade, que
marcará as formas como cada uma delas viveu seu processo de
compreensão da identificação sexual e afetiva. Ao performar em seu
corpo marcas de gênero que não correspondiam socialmente às da
feminilidade, Marina tem sua homossexualidade presumida e é for-
çada a ter que pensar sobre isso desde muito cedo, já informada de
que essa era uma opção que desviava das normas e era passível de
agressão. Já Rafa escapou dessa marca pois “passava” como héte-
ro, ou seja, performava as marcas da feminilidade, o que, por outro
lado, faz com que ela precise fazer um esforço maior para entender e
declarar sua atração por meninas.
sumário 69
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sumário 71
3
Capítulo 3
Educação cristã
e estudos de gênero:
em defesa de um diálogo fecundo
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.3
INTRODUÇÃO
sumário 73
campo discursivo sempre igual a si mesmo, revelado de forma cabal
por um deus que jamais muda, ou, se ao invés disso, poderia ser inter-
pretada como uma tradição em constante movimento, que ambiciona,
ainda que a passos lentos, acompanhar as principais mudanças histó-
ricas de modo a superar seus próprios erros e a contornar postulados
por ela mesma construídos a partir de estágios já superados da refle-
xão humana. Para tanto, evocamos a Teologia da Libertação – tradição
mística católica que assinalou de maneira tonitruante a necessidade de
construirmos um exercício da espiritualidade que não seja capaz de nos
desligar da terra, mas que, ao contrário disso, encontre na superação
das contradições sociais uma maneira de manifestar o amor de Deus
pela humanidade, tal qual nos ensinou Leonardo Boff (2009). Lembra-
mos ainda que o trato das problemáticas concernentes a gêneros e se-
xualidades no âmbito religioso não é recente: tais questões já foram alvo
de enfrentamento sensível por mestres da arte sacra, como Bernini, Do-
natello, Boticelli entre outros, que se opuseram à maneira ascética com
que a Igreja tratou tais temas, tal qual nos mostrou Camille Paglia (1999).
sumário 74
(pensemos nas grandes construções religiosas, desde as pirâmides
do continente africano e americano até as portentosas e conhecidas
catedrais como A Sagrada Família, em Barcelona, ou a Basílica de
Aparecida, em São Paulo); na música (desde o canto gregoriano, no
medievo europeu, aos pontos de candomblé e umbanda no Brasil de
nossos dias); na filosofia (que nasce em berço mítico e jamais se apar-
ta completamente da metafísica), mas, sobretudo, na educação.
sumário 75
bem como a trajetória dos movimentos de diversidade sexual no Brasil
e em todo mundo, atesta o quanto as sociedades modernas demos-
traram e demonstram enorme dificuldade em se abrir de forma pacífica
para tudo aquilo que se mostra diferente do que se tem determinado
socialmente como norma (FACCHINE, 2005; TELES, 2018).
11 Segundo dados do IBGE de 2020, 50% da população brasileira declara-se católica. Com
a margem de erro de 2% para mais ou para menos.
sumário 76
foi substancialmente assumido e ampliado por diversas tradições cris-
tãs, torna-se possível compreender porque o sexo foi e tem sido um
tema tão interdito por grande parte das ramificações do cristianismo,
um tabu – já que o ato sexual pode ser descrito como fenômeno de
encontro humano que se realiza indiscutivelmente no e a partir do cor-
po. Contudo, mesmo nos contextos cristãos, a exegese que marca a
experiência sexual como algo que deve ser vivenciado exclusivamente
dentro do contexto ascético do casamento heterossexual e para a
reprodução humana, apesar de hegemônica, não é unívoca. Também
não é recente o movimento de insurgência que brota no interior mes-
mo da Igreja Católica no intuito de disputar discursos e significados
da cosmovisão cristã, a fim de propor hermenêuticas que sejam mais
afirmativas da vida na terra, das diferenças, do corpo e do sexo.
sumário 77
Não obstante a heterogeneidade e a abertura para a transfor-
mação que se pode verificar em alguns de seus desdobramentos, em
termos políticos e democráticos, é preciso reconhecer e preocupar-
-se com o caráter problemático e potencialmente nocivo que alguns
grupos cristãos têm revelado, principalmente nos últimos decênios da
história do Brasil. Para determinados setores reacionários, católicos e
protestantes (sobretudo os pentecostais e neopentecostais), não bas-
ta que seus membros vivam de acordo com as interpretações bíblicas
e com as visões de mundo que livremente escolheram. Para esses gru-
pos, não é suficiente que eles mesmos tenham a autonomia de viver
de acordo com suas crenças e tradições e de transmiti-las à sua des-
cendência, bem com àqueles indivíduos que livremente as desejarem.
O que vimos no Brasil, a partir da década de 1990 e, de maneira mais
radical nos anos seguintes à década de 2000, foi o desenvolvimento
de um projeto de poder proselitista/religioso, profundamente descom-
prometido e que viola os direitos humanos e com os próprios pilares
do cristianismo12, vinculado a valores ultraconservadores e reacioná-
rios, que representam uma ameaça à sociedade de maneira geral e,
particularmente, às pessoas que vivenciam suas subjetividades fora da
normativa heterossexual, que tenta se apropriar do dispositivo sexuali-
dade para barrar o avanço de grupos subalternizados e categorizados
como minorias sociais e para levar a cabo seu plano de dominação.
sumário 78
desqualificar os estudos feministas e da diversidade sexual elaborados
nesse campo de investigações diante de grande parte da população
brasileira, bem como tem se revelado potente em espalhar o pânico
moral por onde circula, principalmente nos espaços educativos13.
sumário 79
Em 1998 [...], a Comissão Episcopal do Apostolado Laical e a
Conferência Episcopal do Peru lançaram um documento intitu-
lado La ideologia de género: sus peligros y alcances, associan-
do a perspectiva de gênero ao marxismo, ao ateísmo e à “visão
construcionista” que negaria a dimensão natural e instintiva de
homens e mulheres [...] (MACHADO, 2018, p. 4).
sumário 80
a autoridade de emitir os discursos de verdade sobre sexo e gênero.
Diz respeito à tentativa de fazer com que instituições e instâncias au-
todeclaradas laicas (como o Estado, o debate público, a saúde, as
políticas públicas, mas sobretudo a educação) sejam orientadas por
discursos chancelados, não pela ciência, mas por dEUs14, ou, melhor
dizendo, por aqueles que desejam falar em nome dele. Trata-se, em
último caso, de fazer de um determinado conjunto de interpretações da
Bíblia a regra máxima que balizará todas as questões, mesmo sobre
a vida das pessoas que não a escolheram como regra de fé – projeto
que parece nos perguntar se o medievo realmente terminou. Um dos
elementos mais problemáticos desse projeto é que essa disputa tem
na escola sua principal arena. A batalha contra o pânico moral pro-
movido por discursos como o dispositivo “ideologia de gênero” e o
movimento Escola Sem Partido (JUNQUEIRA, 2017; BALIEIRO, 2018;
DUARTE; MIRANDA, 2022) certamente tem se constituído como um
enorme empecilho no que diz respeito ao desenvolvimento de políti-
cas públicas voltadas às pessoas que vivenciam gêneros e sexuali-
dades fora da normativa heterossexual. De norte a sul do Brasil, tes-
temunham-se constrangimentos e perseguições políticas, calúnias e
mesmo agressões físicas a docentes, gestoras e gestores de escolas
públicas, estaduais e municipais que demonstraram abertura para tra-
tar as questões de gêneros e sexualidades de maneira cientificamente
referenciada (SANTOS, LAGE, 2016).
14 Essa grafia tenta desnudar a maneira egóica com a qual muitas pessoas se utilizam da
ideia de um deus para fazerem valer seus próprios desejos.
sumário 81
Segundo Bittar (2010), a educação confessional, em linhas ge-
rais, pode ser caracterizada por professar expressamente a orientação
de uma certa ordem religiosa. Em muitos casos, essas escolas podem
estar associadas ou pertencerem a determinadas igrejas. No Brasil,
existem escolas confessionais de diversas ordens: franciscanas, je-
suítas, salesianas, luteranas, presbiterianas, batistas, adventistas etc.
Diferentemente do que ocorre nas instituições laicas, na prática pe-
dagógica das escolas confessionais um dos objetivos principais é o
desenvolvimento de uma consciência religiosa e a adoção de uma
conduta moral baseadas nos princípios que essa instituição assume.
sumário 82
que não precisam estudar, uma vez que são naturalmente mais inte-
ligentes (LOURO, 1997; SILVA, 2018).
sumário 83
dissidências sexuais e de gênero sejam pressionadas, por parte de
líderes e discursos religiosos, a abrir mão de sua sexualidade.
sumário 84
No mesmo sentido, pense-se nas profundas mudanças que
ocorreram na maneira com que os discursos cristãos enxergam dife-
rentes sujeitos como comerciantes bem-sucedidos, mulheres e crian-
ças. Se anteriormente os primeiros eram vistos como avaros que não
herdariam o Reino dos Céus, a partir das contribuições calvinistas, tor-
naram-se sujeitos predestinados para a vida eterna e multiplicadores
de bençãos (CAMBI, 1999) – processo que se intensificou exponencial-
mente com a Teologia da Prosperidade a partir da década de 1990. As
mulheres, assinaladas pelos pais fundadores da Igreja como impuras
e destinadas ao silêncio, ainda no passado, tornam-se místicas e escri-
toras reconhecidas, como Santa Tereza de Ávila, ou como as inúmeras
pastoras e cantoras evangélicas do tempo presente. Por fim, as crian-
ças – de adultos em miniatura, cujos pecados deveriam ser endireita-
dos com a violência da vara, transmutaram-se em centro da família e
objeto de carinho e cuidado por parte dos pais (MANACORDA, 2010).
sumário 85
Algunos discursos eclesiales y sociales han creado una disyun-
tiva entre ser una persona con orientación sexual o identidad de
género diversa y la posibilidad de la vivencia de la espiritualidad
cristiana; sin embargo, la realidad eclesial evidencia que mu-
chas personas LGBT+ profesan la fe cristiana y encarnan en
su propia vida los valores del Evangelio; realidad a la que no es
indiferente el Papa Francisco como se puede ver en la ya men-
cionada frase “Si una persona es gay y busca al Señor y tiene
buena voluntad, ¿quién soy yo para juzgarla?
sumário 86
na hermenêutica oficial da espiritualidade cristã, ela representa a ma-
terialidade do Verbo – o elemento carne, já que foi da matéria de seu
ventre que brotou o Cristo. Contudo, sua expressão facial revela ser ela
tão situada no Éter quando aquele que a criou. Não há alegria ou triste-
za – ela parece não pertencer a este mundo. Do seu corpo, somente se
vê o rosto e as mãos (ou a identidade e as obras, se quisermos) – não
há nenhuma menção à carne – não há colo, não há pés desnudos. Seu
manto lembra as asas de uma águia em estado de repouso – isso de-
nota que ela talvez seja capaz de voar. Ela estende os braços para cima:
o gesto é ambíguo, pode ser de aceitação ou de exibição. No centro de
seu peito, em seu coração, há um círculo de onde brota uma criança
régia. De um total de nove círculos, os cinco maiores se destacam na
cena: um sobre cada uma de suas mãos, no interior dos quais pode-
-se ver anjos ostentando a cruz, um circundando a cabeça da virgem,
um em seu peito, de onde brota o menino e, por último, um menor,
circundando a cabeça do menino. A disposição dos círculos forma um
triângulo – símbolo pagão de sacralização do milagre que ocorre em
cada ventre das fêmeas humanas. Há uma enorme semelhança entre o
resplendor de Jesus e o de Maria. Do mesmo modo, o menino parece
seguir os movimentos das mãos da mãe – há possibilidade de um eco
poético se consideramos que foi ela quem o ensinou a falar e a agir.
O quadrante superior da cena quer sugerir que a cabeça de Maria per-
tence ao céu – Jesus parece ser uma ideia sua, algo que aconteceu em
sua mente antes de descer para seu ventre/terra.
sumário 87
também em outras obras de arte – como na Ascenção, da escola de
Rublev (século XV), entre uma série de outros possíveis exemplos.
sumário 88
do Davi esculpido por Donatello, entre 1430 e 1432 e, de fato, somente
pelo pequeno pênis, é possível identificar que a escultura retrata um
jovem rapaz ao invés de uma moça.
sumário 89
Nesse sentido, julgamos ver no pensamento pedagógico de
Martin Buber17 e em sua filosofia do diálogo caminhos que podem nos
ajudar a pensar como essa categoria pode ser propositiva para a edu-
cação confessional, sobretudo no que concerne às problemáticas de
sexualidades e de gêneros.
sumário 90
experiência mediada por um movimento de intelecção. Desse modo,
para o filósofo alemão, o ser humano é essencialmente um ser de re-
lação e encontra sua realização na vida em comunidade, como vida
marcada pelo encontro entre pessoas (SANTIAGO, 2008).
sumário 91
conformar aqueles humanos recém-chegados a um mundo já pronto,
acabado e sem possibilidade de transformação.
sumário 92
direcionada às questões de gêneros e sexualidades nas escolas bra-
sileiras, inclusive nas confessionais.
ÚLTIMAS PALAVRAS
sumário 93
ser profundamente opressores e segregadores. Em virtude disso, dife-
rentes sujeitos não têm visto a escola como um lugar no qual se deve
demorar e ou considerá-la como um espaço que contribui para a mobi-
lidade social, na democracia e pluralidade (CARRITO; ARAUJO, 2011).
sumário 94
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sumário 97
4
Capítulo 4
Subversões queer no
território escolar:
da normalização dos
corpos à invenção de
novas normas de gênero
Mariana Pombo
Mariana Pombo
Subversões queer
no território escolar:
da normalização dos corpos
à invenção de novas normas
de gênero
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.4
Quero imaginar uma instituição educativa mais atenta à sin-
gularidade de cada estudante que à preservação da norma.
Uma escola microrrevolucionária, onde seja possível potencia-
lizar uma multiplicidade de processos de subjetivação singular
(PRECIADO, 2020a, p. 199).
INTRODUÇÃO
sumário 99
de gênero, visando à desconstrução de binarismos estanques e redu-
cionistas, além de não ter sido aproveitado nesse sentido produtivo,
acabou culminando com uma atitude escolar que apenas reforça es-
ses binarismos e as discriminações e violências que os acompanham.
E seria, é claro, uma ilusão acreditar que não falar sobre conflitos e
desconfortos experimentados na escola teria o efeito de reduzir mal-
-estares. Muito pelo contrário, quanto mais o ambiente escolar recalca
temas sensíveis, mais consequências negativas eles produzem, como
evasão (ou melhor, expulsão) escolar e adoecimento psíquico e, mes-
mo, suicídio de alunos e professores.
sumário 100
TEORIA QUEER E DESCONSTRUÇÃO
DE BINARISMOS
sumário 101
Assim, em vez de demandar respeito, aceitação e assimilação
a uma ordem excludente e normativa, os teóricos e militantes queer
questionam essa própria ordem e afirmam a legitimidade das sexuali-
dades ditas “periféricas” e “desviantes”, integrando, em sua luta políti-
ca, também as problemáticas de raça e classe social, além de sujeitos
marginalizados excluídos de outros coletivos (SÁEZ, 2005).
sumário 102
e a institui. E, repetidas ao longo do tempo, as construções performáti-
cas, que são normas subjetivantes, produzem efeitos de realidade que
acabam sendo percebidos como fatos, como atos disseminados e cor-
riqueiros. Foi desse modo que a repetição da diferença sexual foi trans-
formando a contingência dos sexos em uma divisão sexual cristalizada,
rígida, com aparência de classificação natural.
O fato de a realidade do gênero ser criada mediante performan-
ces sociais contínuas significa que as próprias ações de sexo
essencial e de masculinidade ou feminilidade verdadeiras ou
permanentes também são constituídas, como parte da estraté-
gia que oculta o caráter performativo do gênero e as possibilida-
des performativas de proliferação das configurações de gênero
fora das estruturas restritivas da dominação masculina e da
heterossexualidade compulsória (BUTLER, 1990/2013, p. 201).
sumário 103
campo, formado por aqueles tidos como não sujeitos, ou sujeitos inin-
teligíveis, como gays, lésbicas, pessoas trans e intersexo.
sumário 104
das instituições disciplinares que colonizam o corpo trans, ao lado da
mídia, da medicina, da indústria farmacêutica, do mercado18. E, po-
deríamos também acrescentar a essa lista uma das instituições disci-
plinares mais centrais no processo de formação da subjetividade, de
acordo com Foucault (1987) em Vigiar e punir: a escola.
18 Para uma discussão sobre diferença sexual, teoria queer e psicanálise, conferir Pombo, 2021.
sumário 105
aluno e mais bem acolhido e tratado ele será. Inversamente, quanto
menor a nota de um aluno, mais punido ele será.
sumário 106
da aberração, da anormalidade e mesmo da doença, e as instituições
e práticas sociais logo agem para “corrigi-la” e “readequá-la” ao regi-
me de inteligibilidade forçada.
sumário 107
doente, anormal e, ainda, sofrer estigmatização – significa, portanto,
adentrar, na zona de abjeção. Para alguns indivíduos trans, segundo
a filósofa, a força da patologização e da estigmatização pode ser
debilitadora e até levar à morte e ao suicídio.
sumário 108
Indo de encontro a essa análise de Preciado, João Paulo Sil-
va, em seu “Manifesto por um pensamento queer no currículo esco-
lar”, também afirma que a escola e o currículo entram em crise diante
dos corpos dissidentes, queer, trans, não-binários, justamente porque
esses corpos evidenciam que, se algo fracassa e escapa do regime
normativo de sexo e de gênero, é sinal de que esse regime é artificial,
contingente, e precisa mudar urgentemente.
ENCONTROS E ALIANÇAS
QUEER: SUBVERSÕES
NO TERRITÓRIO ESCOLAR
sumário 109
é ocasião para expandir nossas categorias mais fundamentais e, as-
sim, a matriz cultural de ininteligibilidade, de modo que toda vida seja
considerada vida, que todo corpo importe.
sumário 110
também a validade da identidade sexual como único fundamento da
política e visa a uma proliferação de diferenças: de práticas sexuais
não normativas, de raça, de classe, de idade, de deficiências.
Por fim, mas não menos importante, para que haja mudanças
efetivas no ambiente escolar, além da aposta na força das alianças e
revoluções minoritárias, é preciso que a própria escola se responsabilize
por suas práticas e processos, e se engaje e encoraje a transformação
das normas e o alargamento do campo de inteligibilidade dos sujeitos e
dos corpos, como defendem as autoras Nascimento et al. (2021).
É compromisso das escolas e dos/as profissionais que nela
trabalham proporcionar um ambiente onde o coletivo de estu-
dantes possa se sentir à vontade para ser quem são, questio-
narem e desestabilizarem as normas que causam discrimina-
ção e sofrimento para as pessoas que não se adequam a elas
(NASCIMENTO et al., 2021, p. 76).
sumário 111
estudantes gays, lésbicas, bissexuais, trans e travestis. Além disso,
Nascimento et al. (2021) destacam que essas atividades não devem
ocorrer apenas em datas comemorativas, como no dia da diversida-
de sexual, por exemplo, porque isso equivaleria a repetir uma lógica
separatista que destaca o diferente e, em última instância, acaba por
reforçar a norma. Pelo contrário, então, as discussões devem ser real-
mente incorporadas ao cotidiano escolar, ao currículo e aos materiais
didáticos, para que sejam vislumbrados novos padrões de convivên-
cia, de aprendizado, de produção e transmissão de conhecimento.
sumário 112
REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de
identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2013. Originalmente
publicado em 1990.
BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”.
São Paulo: N-1 Edições, 2019. Originalmente publicado em 1993.
BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo
Horizonte: Autêntica, 2017. Originalmente publicado em 1997.
BUTLER, Judith. Deshacer el género. Barcelona: Paidós, 2012.
DEAN, Tim. Lacan et la théorie queer. Cliniques Méditerranéennes, n. 74,
2006, p. 61-78.
DE LAURETIS, Teresa. Teoria queer, 20 anos depois: identidade, sexualidade
e política. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista:
conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019, p. 397-409.
Originalmente publicado em 2010.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987. Originalmente
publicado em 1975.
GOMES, Beatriz; CANAVEZ, Fernanda. A medicalização da infância na
educação. Ecos, v. 8, n. 2, 2018, p. 314-327.
GUARIDO, Renata; VOLTOLINI, Rinaldo. O que não tem remédio, remediado
está? Educação em Revista, v. 25, n. 1, 2009, p. 239-263.
MOMBAÇA, Jota. Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
NASCIMENTO, Letícia; MIGUEL, Raquel; SOMBRIO, Paula. Gênero,
sexualidade e contextos educativos. In: GROFF, Apoliana; MORAES, Marta;
ROSA, Rogério (Orgs.). Formação continuada: Psicologia Escolar e
Educacional na contemporaneidade. Florianópolis: Edições do Bosque,
2021, p. 60-81.
PATTO, Maria Helena Souza. A produção do fracasso escolar: histórias de
submissão e rebeldia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.
POMBO, Mariana. A diferença sexual em mutação: subversões queer e
psicanalíticas. Curitiba: Calligraphie, 2021.
PRECIADO, Paul B. Manifiesto contrasexual. Madrid: Opera Prima, 2002.
PRECIADO, Paul B. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”.
Estudos Feministas, v. 1, n. 19, 2011, p. 11-20.
sumário 113
PRECIADO, Paul B. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era
farmacopornográfica. São Paulo: N-1 Edições, 2018a.
PRECIADO, Paul B. Transfeminismo. São Paulo: N-1 Edições, 2018b.
PRECIADO, Paul B. Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Rio
de Janeiro: Zahar, 2020a.
PRECIADO, Paul B. Je suis un monstre qui vous parle. Paris: Grasset
(versão Kindle), 2020b.
SÁEZ, Javier. Théorie queer et psychanalyse. Paris: EPEL, 2005.
SILVA, João Paulo. Manifesto por um pensamento queer no currículo
escolar. Mimeo, s/d.
sumário 114
5
Capítulo 5
Renata Pimentel
Sherry Almeida
Renata Pimentel
Sherry Almeida
Terreiro
da ginga:
a sala de aula como
o lugar do jogo para
“minar de dentro” e ser
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.5
PARA ABRIR A RODA
sumário 116
silenciamento sobre artistas afrodescendentes, descendentes de co-
munidades originárias, artistas mulheres e as comunidades periféricas,
sejam urbanas ou rurais. Em realidade, o que se percebe é que mesmo
o discurso “multicultural”, adotado pelos documentos oficiais nos pri-
meiros decênios deste século XXI, foi sequestrado pela colonialidade
e convertido em estratégia de manutenção da hegemonia social, pois
parece incluir as/os marginalizadas/os e subalternizadas/os, contudo
impede transformações sociais efetivas e controla possíveis sujeitas/
os rebeldes ao sistema, conforme nos elucida Catherine Walsh:
o reconhecimento e respeito à diversidade cultural se conver-
tem em uma nova estratégia de dominação que ofusca e man-
tém, ao mesmo tempo, a diferença colonial através da retórica
discursiva do multiculturalismo e sua ferramenta conceitual, a
interculturalidade “funcional”, entendida de maneira integracio-
nista. Essa retórica e ferramenta não apontam para a criação de
sociedades mais equitativas e igualitárias, mas para o controle
do conflito étnico e a conservação da estabilidade social, com o
fim de impulsionar os imperativos econômicos do modelo neo-
liberal de acumulação capitalista, agora “incluindo” os grupos
historicamente excluídos (WALSH, 2009 p.16).
sumário 117
uma falha, isso não importa muito” (2017, p. 71). Por isso, queremos
aqui pensar uma pedagogia da dúvida que consolide a escola nesse
lugar privilegiado de ação e de transgressão social no jogo da vida,
propiciando um ensino de literatura que seja antirracista, anti-fóbi-
co, anti-misógino, contra preconceitos às populações originárias, às
classes trabalhadoras e à população do campo.
Por que principiamos nosso texto com tais ideias? São décadas
de reiterada escolha do chão da sala de aula como terreiro de ação no
mundo, de alunas a docentes, nunca saímos desta arena – no sentido
teatral mesmo: do espaço de semicírculo, onde se instaura a assembleia,
segundo a concepção apontada por Denis Guénoun em A exibição das
palavras: uma ideia (política) do teatro (“O círculo é a forma das assem-
bleias”. 2003, p. 23). Para nós, é o espaço para o exercício de nega-
cear, como na capoeira, quando o jogo se instaura como procedimento.
A ginga é a própria capoeira, é o movimento base de tudo, o jogador
que não ginga não se mantém na roda, não se equilibra, não se protege.
O princípio da ginga é manter-se em movimento para iludir o adversário:
concentra ação de proteção, defesa e estratégia retórica na gramática
do corpo que joga. Segundo o dicionário, negacear é verbo com senti-
dos de: seduzir, provocar, enganar e, ainda, de recusar, negar20.
sumário 118
alicerces do Novo Mundo (...). // Vamos pensar o mundo, o
nosso tempo e as possibilidades de transformação. Assim,
reivindico como flecha a educação e sugiro que a partir dela
deveremos considerar que os fenômenos humanos, proces-
sos e práticas culturais se tecem em cotidianos permeados
pelos efeitos da raça, racismo e dominação colonial. As edu-
cações em curso na sociedade brasileira são plurais, assim,
existem modos conservadores, mantenedores de desigual-
dades, redutores da complexidade do mundo, violentos, ir-
responsáveis, modos calçados no pilar da política colonial.
Ao mesmo tempo, há outras possibilidades, outros modos,
emergentes, transgressivos, inconformados, rebeldes e com-
prometidos com a libertação (RUFINO, 2019, p.55-56).
sumário 119
cifras financeiras. “A pedagogia das Encruzilhadas não exclui as pro-
duções centradas na ciência e em suas tradições como possibilidades
credíveis, mas as contesta como modo único ou superior” (RUFINO,
2019, p. 80). Trata-se de promover zonas borradas, cruzos de saberes
para mobilizar a fricção, revolver aparentes verdades incontestáveis
erguidas pelo discurso oficial de quem ocupa o poder, pondo em cena
as zonas de conflito, as fronteiras, o dialogismo.
sumário 120
culturais é fundamental, fazê-las flechas de fricção e perfuração à
colonialidade é tão urgente, quanto compreender as estratégias de
apropriação dos saberes subalternizados pelas estruturas coloniza-
doras. Como adverte bell hooks: “o multiculturalismo obriga os edu-
cadores a reconhecer as estreitas fronteiras que moldaram o modo
como o conhecimento é partilhado na sala de aula. Obriga todos
nós a reconhecer nossa cumplicidade na aceitação e perpetuação de
todos os tipos de parcialidade e preconceito” (2017, p. 63). Quando
a diferença perde sua potência crítica e é transformada em produto
neoliberal e capitalizado apenas. Dessa forma, nos diz bell hooks:
Quando nós, como educadores, deixamos que nossa peda-
gogia seja radicalmente transformada pelo reconhecimento da
multiculturalidade do mundo, podemos dar aos alunos a edu-
cação que eles desejam e merecem. Podemos ensinar de um
jeito que transforma a consciência, criando um clima de livre
expressão que é a essência de uma educação em artes liberais
verdadeiramente libertadora (2017, p. 63).
sumário 121
erudição/ conhecimento, mas como ponte relacional entre o texto e o
leitor. Entra na gira, na roda de nossa capoeira, o espaço da singulari-
dade de cada corpo/ subjetividade/ vivência: “Poderia falar-se, então,
de uma alfabetização que não tem a ver com ensinar a ler no sentido da
compreensão, senão no sentido da experiência” (2011, p.09).
sumário 122
indignações, ignorâncias, sustos, pulsões, desejos... Mas é preci-
so que permaneça acesa a chama e a consciência de que cada
singularidade é complexa em si e uma experiência pode ser com-
partilhada pela abertura à/ao outra/o, mas será sempre única. Por
isso, não se pode falar pela generalização, quando se invoca como
procedimento a pedagogia da experiência.
Uma outra proposição que nos parece ser uma soma importan-
te, então, para esta empreitada surge quando conectamos/ introdu-
zimos a perspectiva queer, segundo o olhar de Guacira Lopes Louro,
no âmbito do ensino de humanidades/ artes (mais especificamente
na área de letras e literatura). O termo queer “pode ser traduzido por
estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário” (LOURO,
2001, p. 546); assim sendo, ancora-se à experiência evocada por Lar-
rosa, pois constitui em si a invocação à estranheza, à vulnerabilidade.
O uso da expressão é contraditório: pode tanto representar a ofensa,
o xingamento, o insulto, quanto, ao ser assumido por uma parte dos
movimentos de dissidências de gênero e sexualidade, se converter
em uma perspectiva de contestação e oposição à heteronormatividade
compulsória: “Queer representa claramente a diferença que não quer
ser assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais
transgressiva e perturbadora” (LOURO, 2001, p. 546).
sumário 123
TRANSBORDAR CONVENÇÕES:
UMA PEDAGOGIA DA DÚVIDA
Eu Falo
A Fala é um falo
Que abre suas entranhas
Atravessa suas certezas culturais
(Miriam Alves)
sumário 124
Esse estereótipo angelical idealizado se confirma e se amplia no Ro-
mantismo brasileiro, presente nos vários poetas canônicos, dos quais
destacamos Gonçalves Dias e Álvares de Azevedo. Na prosa românti-
ca, outro canônico merece maior atenção, José de Alencar, pois é de
sua pena que surgem figurações idealizadas da mulher brasileira que
se configuram arquétipos de nossa cultura. Seu projeto de literatura
nacional, sob pretensão de contar histórias do Brasil de norte a sul, do
campo e da cidade, do passado e do presente, logrou um arcabouço
de distorções (não somente no que tange à mulher) resultantes do seu
desconhecimento sobre o já tão diverso Brasil oitocentista: Iracema,
personagem arquifamosa do chamado indianismo romântico, prota-
gonista do romance homônimo publicado em 1865, nativa de um povo
originário do início do processo de colonização, é descrita de forma
inverossímil, em moldes de divinização europeia medieval, e tem, em
sua morte, a reedição da sentença cultural de impossibilidade de ha-
ppy end romântico de nativos com os brancos da visão de Alencar.21
21 Lembrando que o fim mítico de desaparecimento do casal, Peri e Ceci, ele nativo, ela
branca, no romance O Guarani (1957), é quem inaugura o precedente jurídico de tal
sentença de morte que impede a figuração de um enlace amoroso entre diversidades
étnicas na obra alencariana.
sumário 125
de sua obra, como se desejando o apagamento da contribuição africa-
na à formação da cultura e da nacionalidade brasileiras22.
22 Importante chamar a atenção para as únicas obras em que Alencar traz o negro como
personagem: as peças O demônio familiar (1857), nela o menino escravizado domesti-
camente, Pedro, é responsável por ardis que provocam confusões no âmbito da família
burguesa à qual serve, pois deseja se tornar cocheiro; e Mãe (1859), cujo enredo repete
as questões românticas de falências e preocupações financeiras burguesas entrelaçados
ao tema romântico do amor/ casamento nesta classe econômica e o tema subjacente é
a mãe que dá título ao drama: a personagem Joana, escravizada (tratada como “parte
da família”, do protagonista Jorge), de quem é a mãe não revelada e que abre mão de
o ser, para não “sujar” a condição de mestiço embranquecido e burguês (estudante de
medicina) de que o filho goza.
23 Embora reconhecida como grande escritora e mestra da língua por seus pares – muitos
intelectuais que eram recebidos no Salão Verde de sua casa – a carioca Júlia Lopes de
Almeida não conseguiu vencer a barreira do preconceito de gênero da sociedade brasi-
leira dos fins século XIX e sofreu injustiça emblemática ao ver ser eleito em seu lugar, à
Academia Brasileira de Letras, seu marido Filinto Almeida, que passou a ser chamado,
com ironia, de “acadêmico consorte”.
sumário 126
história da literatura brasileira, poderiam ser apresentados, mas não nos
interessa aqui traçar um panorama do apagamento da voz da mulher
escritora no Brasil. Antes queremos propor questionamentos e reflexões
que incitem ao debate e à insubmissão, que façam a gira girar.
sumário 127
Para nossa Pedagogia, interessa sobremaneira chamar ao de-
bate em sala de aula não apenas os textos literários de Cassandra
Rios, mas também a forma como lidou com a perseguição militar e
com o desdém da crítica literária, especialmente no tom provocativo
e ousado, para se posicionar sobre a homessexualidade, conforme
João Silvério Trevisan:
Apesar de manter sua vida pessoal cuidadosamente envolta
em mistério, Cassandra incomodava por suas declarações pú-
blicas de que “homossexualismo24 (sic) é uma forma especial
de amar”, coisa que nenhum intelectual, por mais progressista
que fosse, ousaria afirmar em plena década de 1970 (TREVI-
SAN, 2019, p. 255).
sumário 128
Essa representação artística de mulheres afro-brasileiras na
nossa tradição literária, como demonstrado, inferiorizadas em estereó-
tipo de sexualização dos corpos oculta (seja como motivo estético seja
como voz de autoria) as vozes próprias destas escritoras, vide o tempo
que se passou – e ainda se passa – desconhecendo-se sistematica-
mente, nos currículos oficiais, escritoras como Maria Firmina dos Reis,
Carolina Maria de Jesus, entre muitas outras escritoras afro-brasileiras.
Por isso, vemos a literatura de Miriam Alves potente à ginga que per-
mite transformar a sala de aula em terreiro, posto que literatura impõe
rasuras a essa tradição. Leia-se, então, o poema Gotas:
GOTAS
Mesmo que eu não saiba falar a língua
dos anjos e dos homens
a chuva e o vento
purificam a terra
Mesmo que eu não saiba falar a língua
dos anjos e dos homens
Orixás iluminam e refletem-me
derramando
gotas
iluminadas de Axé no meu Ori (ALVES, 2022a, p.285)
sumário 129
um diálogo que instaura uma crítica à imposição do Cristianismo na
sociedade brasileira e, ainda, mostra o quanto a concepção cristã
aniquila existencialmente aquele que não está de acordo com o que
preconiza seus ditames. Em outras palavras, com axé, ela instaura
uma dúvida no leitor e promove uma fissura em conceitos eurocen-
trados estabelecidos como verdade pela colonialidade.
sumário 130
as gotas de chuva em vogais e consoantes reluziram outros
significados, redescobrindo outros símbolos, ressignificando
a minha verdadeira nudez. Ao olhar-me no espelho vi a mulher
nua tranquila e me veio à mente uma frase de Nelson Rodri-
gues: “Toda nudez será castigada”. A mulher sorriu: “Não, toda
nudez é exuzíaca” (ALVES, 2021, p.19).
sumário 131
NÃO SE FECHA A RODA:
ABREM-SE OUTRAS
E SE MANTÉM A GIRA
sumário 132
Miriam), e com a fala se joga e se mina de dentro o convencionalismo
das coisas instaurado pelo falo da tradição. Como lucidamente afirma
Cristian Sales, “num caminho à margem da tradição literária brasileira,
entre texto e o tecido, a rebeldia e a abertura, tal qual um rio que se dilui
ao desaguar, Miriam” – e por ela queremos aqui fazer ecoar as muitas
vozes dissonantes e dissidentes de nossa literatura – “entrega uma
maneira de ser, escrever e estar no mundo que reinventa os caminhos
da crítica literária” (SALES In: ALVES, 2022b, p.119). Que existências
atentas no chão da sala de aula sigam revelando o quanto vale a pena,
o quanto é urgente e inadiável proliferar essa abertura a vozes disso-
nantes que mantêm em movimento a (noção de) arte viva, orgânica,
plural, interseccional: uma ginga, um negaceio que não se rende aos
colonialismos e às suas insidiosas cooptações.
REFERÊNCIAS
ALVES, Miriam. BrasilAfro Autorrevelado: Literatura Brasileira
contemporânea. Belo Horizonte: Nandyala, 2010.
ALVES, Miriam. Juntar Pedaços. Rio de Janeiro: Malê, 2021.
ALVES, Miriam. Miriam Alves Plural: teoria, ensaios críticos e depoimentos.
São Paulo: Fósforo, 2022b.
ALVES, Miriam. Poemas reunidos. São Paulo: Círculo de poemas, 2022a.
BÍBLIA ONLINE. Disponível em https://www.bibliaonline.com.br/acf/1co/13.
Acesso em 28 de agosto de 2022.
GUÉNOUN, Denis. A exibição das palavras: uma ideia (política) do teatro.
Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003.
hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da
liberdade. 2ª Ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.
LARROSA, Jorge. Experiência e alteridade em educação. In: Revista
Reflexão e ação. V. 19, n. 2, Santa Cruz do Sul, 2011, p. 04-27.
LORDE, Audre. A poesia não é um luxo. In: Irmã Outsider: Ensaios e
conferências. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
sumário 133
LOURO, Guacira Lopes. Teoria Queer: uma política pós-identitária para a
educação. In: Estudos feministas. Ano 9, v. 9, n.2, Florianópolis, 2001, p. 541-553.
RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula, 2019.
TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: A homossexualidade no
Brasil da colônia à atualidade. 4 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.
WALSH, Catherine. Interculturalidade Crítica e Pedagogia Decolonial: in-
surgir, re-existir e re-viver. In: CANDAU, Vera M. Educação Intercultural na
América Latina: entre concepções, tensões e propostas, 2009.
sumário 134
6
Capítulo 6
Tiago Duque
Tiago Duque
A Teoria Queer
vai ao banheiro:
reflexões currículo-pedagógicas
a partir de Mato Grosso do Sul
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.6
“[…] é fundamental que se reconheça que o problema dos
banheiros públicos é muito mais do que uma falha na má-
quina de segregação de gênero: é mais bem descrito como
uma aplicação violenta do nosso atual sistema de gênero”
Judith/Jack Halberstam (2008, p. 48)
INTRODUÇÃO25
sumário 136
afinal, sabemos que essas pedagogias e currículos “produzem valores
e saberes; regulam condutas e modos de ser, fabricam identidades e re-
presentações, constituem certas relações de poder” (SABAT, 2001, p. 9).
sumário 137
Nesse sentido, metodologicamente esses artefatos tecnológi-
cos-digitais foram encontrados por meio de “perambulação”, isto é,
pela circulação aparentemente despretensiosa em torno das notícias e
comentários (repercussão) da implementação do banheiro “neutro” na
UFMS em diferentes ambientes e plataformas digitais, identificando ca-
racterísticas topográficas e de ritmos na interação e/ou postagens, em
busca do levantamento dos dados (LEITÃO; GOMES, 2017). Conco-
mitantemente, utilizei no ambiente digital o que é próprio da etnografia
“tradicional”: caderno de campo, imersão na realidade estudada, des-
crição da experiência e dos envolvidos, sistematização das informa-
ções para posterior análise dos dados (NOVELI, 2010). Esse processo
também envolve atenção às questões éticas de pesquisa, acessando
apenas o que está divulgado publicamente, de acesso livre, e sem
identificar os personagens envolvidos pelos nomes, mesmo aqueles
que ocupam cargos públicos (NUNES, 2019), entendendo que o foco
é a experiência e não a identidade pessoal dos envolvidos.
sumário 138
quando nos referimos à Teoria Queer (BENTO, 2011; PEREIRA, 2012;
PELÚCIO, 2012; MISKOLCI, 2012; DUQUE, 2014; FERNANDES; GON-
TIJO, 2016; MATEBENI, 2017; LEOPOLDO, 2020, entre outros). Mas, no
que se refere ao pós-crítico, entendo que se trate de uma perspectiva
teórica, entre outros aspectos, pós-identitária – não em uma recusa às
identidades, como se elas não existissem ou sequer fossem necessárias
academicamente e/ou politicamente, mas no sentido desconstrucionista
e não sistêmico ou essencialista das identidades, o que inclui análises
críticas não necessariamente celebratórias das políticas identitárias.
sumário 139
pode se provar necessária precisamente para atingir a viabilidade da
vida fora dos seus termos” (BUTLER, 2018, p. 69).
sumário 140
o currículo do banheiro “neutro” como um “espaço de significação”,
isto é, como sendo parte de processos de formação de identidades
sociais (SILVA, 2001), independentemente das experiências de gêne-
ro e sexualidade serem dissidentes ou não. Essa inspiração é atual e
necessária para que, do ponto de vista queer, na área da Educação,
possamos pôr em questão o currículo no seu efeito pedagógico de
nos fazer conhecer determinadas coisas e não outras (LOURO, 2004).
sumário 141
entre outras coisas, pelo agronegócio e seus crimes ambientais, por
conflitos étnico-raciais com diferentes populações quilombolas e in-
dígenas, alto índice de feminicídio e trans-homofobia, preconceitos
contra imigrantes, pouco avanços nas políticas de inclusão de pes-
soas deficientes, etc. Essas “marcas regionais” se encontram ainda
em um contexto neoliberal mais amplo, em que verdadeiras “batalhas
morais” são empreendidas, dando destaque às recusas das media-
ções intelectuais e políticas, impactando organizações como movi-
mentos sociais, partidos e universidades com certa anti-intelectuali-
dade (MISKOLCI, 2021). Isso ocorre em um país que, cada vez mais,
busca fortalecer as liberdades individuais sem um compromisso co-
letivo, com forte incentivo à responsabilização de si, com viés fascista
de desprezo do outro e de certas formas de vida (LOCKMANN, 2020).
sumário 142
Diferentes matérias jornalísticas reproduzem essa ideia associa-
da a imagens da placa do banheiro, onde se lê na cor branca, no fundo
azul-claro: “banheiro neutro” (em português, inglês e espanhol). Com-
põem a identificação pictogramas de um homem (silhueta de cabelos
curtos e calça comprida), uma mulher (silhueta de cabelos compridos
e saia) e uma terceira pessoa (silhueta em que metade é um homem
e outra uma mulher conforme aqui descrito). Considerando essa iden-
tificação do espaço arquitetônico, sabemos que a iniciativa está pro-
duzindo pedagogicamente currículos não tradicionais de significados
“sexo”, gênero e sexualidade. Portanto, em um contexto de inteligibili-
dade binária, fixa e naturalizada da diferença sexual (LAQUEUR, 2001),
esse artefato aponta para a política identitária em termos de “sexo”,
gênero e sexualidade que multiplica as possibilidades interpretativas
e culturalmente conceituais da “natureza” inteligível do corpo sexuado.
sumário 143
de reconhecimento de “sexo”, gênero e sexualidade que a antecedem.
Ela é uma das mais de 80 acadêmicas trans da UFMS. Esse número é
subnotificado por se referir a uma aproximação de acadêmicos que so-
licitaram o nome social, pedidos esses que aumentaram muito depois
do retorno das aulas pós-pandemia da Covid-19 (FERNANDES, 2022).
Por isso, a voz dessa referida acadêmica trans na primeira notícia di-
vulgada na mídia sobre a iniciativa divide espaço com outras vozes,
entre elas a de um acadêmico contrário (a notícia não informa sobre
sua identidade de gênero ser cis ou trans): “Acho perigoso esse tipo
de coisa” (TORRES; MARQUES, 2022). Assim, a notícia não apenas
informava sobre o banheiro, mas apresentava a polêmica em que ele
está envolvido, inclusive no título: “Universidade adota banheiro neutro
e a polêmica já começou” (TORRES; MARQUES, 2022).
sumário 144
Mesmo sendo apenas quatro “neutros” em um universo de 410
banheiros no campus e com o esclarecimento da Pró-Reitoria de Admi-
nistração e Infraestrutura (PROADI) que nos espaços escolhidos para
os banheiros neutros permanecem também à disposição os banheiros
binários, há um movimento de servidores, acadêmicos e pais de acadê-
micos contrário à decisão (FERNANDES, 2022). Na contramão da ideia
que o justificaria, isto é, a proteção de pessoas trans em relação à trans-
fobia envolvendo o uso dos banheiros binários, comumente o banheiro
“neutro” é entendido como uma “ameaça” à segurança da população
em geral, que não se identifica como vulnerável ao usar os banheiros
separados como masculino ou feminino. Seja pelas reações contrárias
ou de apoio, seja pelo próprio artefato arquitetônico-protético não binário
em si, tal suposta “neutralidade” do banheiro causa certo estranhamento
teórico-político, afinal, conforme os dados encontrados, é possível en-
tendê-lo currículo-pedagogicamente como um artefato cultural, isto é,
um “local pedagógico” de gênero e sexualidade onde o poder se orga-
niza e se exercita (STEINBERG, 1997). Portanto, nada “neutro”.
sumário 145
“toda a comunidade acadêmica”: “Nossas lutas sempre foram contra
qualquer tipo de discriminação, seja racial, de cor, credo, gênero ou
orientação sexual” (FERNANDES, 2022).
sumário 146
da dignidade humana, do direito à saúde, à autodeterminação e à li-
berdade sexual. Mesmo em casos de usos de banheiros femininos por
transexuais femininas, sabe-se que esse direito está garantido consti-
tucionalmente. “Em sociedades plurais e democráticas, o incômodo e
o constrangimento alheio não autorizam a restrição de direitos funda-
mentais de terceiros, desde que não ocorra prejuízos relevantes aos
demais” (RIOS; RESADORI, 2015, p. 225). Nesse sentido, o banheiro
“neutro”, que não segrega por não ser exclusivo para um grupo espe-
cífico de pessoas, mas livre para qualquer pessoa independentemente
de sua identidade de gênero e sexual, pode ser mais do que uma
solução sanitária no campo dos direitos, antes, uma oportunidade ao
exercício democrático. Portanto, trata-se de uma iniciativa cientifica-
mente fundamentada e democrática, mesmo porque com as “marcas
regionais” de Mato Grosso do Sul não haveria garantia de que ela seria
aprovada em instâncias colegiadas, mesmo em contexto universitário.
sumário 147
iniciativa, concordando com o sindicalista não no que se refere à falta
de debates, mas no sentido de não concordar com o banheiro “neu-
tro”. Uma jovem analisa: “O problema é que o politicamente correto
impera nas universidades federais”. Outra jovem também critica a
universidade: “É que a instituição não tem nada para fazer, está tudo
certinho, tudo funciona bem, nenhuma reclamação, os universitários,
estão super bem, saúde mental super boa, nada pra melhorar, então
fica procurando esse tipo de (nem sei que tipo de expressão usar)
isso aí para fazer ”. Há outros comentários que apoiam a iniciativa,
mas aparecem em menor número. Um jovem afirma: “Se o banheiro
é de uso optativo, fiquei sem entender o barraco ”. Outro se refere
ao sindicalista: “Vc não precisa concordar e sim respeitar, e principal-
mente não usar o neutro vai lá no de funcionários!”.
sumário 148
ditos progressistas como ditos conservadores (essa separação aqui é
puramente didática, ainda que bastante limitada), que se sustenta em
um sentimento anti-igualitário. Isso ocorre a partir de manifestações cur-
rículo-pedagógicas de medo, desprezo, rejeição ou ódio à alteridade.
A CULPA É DO BANHEIRO? –
A TÍTULO DE CONCLUSÃO
sumário 149
desses banheiros. A notícia na imprensa se baseava em um relato pos-
tado na comunidade “Segredos UFMS”, feito pela própria vítima. Isso
ocorreu a partir da ação de um homem “pai de família, casado”, que
colocou a mão, segurando um celular para filmá-la ou fotografá-la, por
baixo da divisória da cabine onde fica o vaso sanitário em que ela es-
tava. Segundo a notícia, a universidade deu apoio psicológico à vítima
e a corregedoria irá investigar o caso (MENDONÇA; MOREIRA, 2022).
A vítima não se autodeclarou trans ou não binária. Isso, somado ao fato
de ela justificar o uso do banheiro “neutro” por estar precisando e não
ter outro por perto, dá a entender que ela não é do público prioritário
da iniciativa, indicando o quanto a experiência não é necessariamente
identitária em termos trans/travesti/não binárie. A partir desse momento
as notícias deixam de ser publicadas na seção “Comportamento” do
jornal e passam a estar na editoria de “Segurança”.
sumário 150
As reações nas redes sociais foram intensas após a circula-
ção da informação do assédio sexual. Por exemplo, na página do
Facebook de um dos jornais que noticiou o ocorrido, a maior parte
das postagens não condena o autor da violência, mas a jovem que
usou o banheiro. Uma mulher afirma: “Quem entra não deveria ter
direito de reclamar!”. Outra faz alusão, ao também responsabilizar a
vítima, ao jargão feminista “meu corpo, minhas regras”: “Se é meu
corpo minhas regras então é minha responsabilidade tbm”. O que
se percebe em muitas postagens críticas ao banheiro é a linguagem
“neutra”. Um homem ironiza: “Que coise, isso é ume ofense aos neu-
tres”. A decisão da universidade é criticada também de forma irônica:
“Essa UFMS é uma piada. Quer entrar na onda da modinha e só vai
arrumar mais mimizera”. Há ainda críticas político-partidárias fazendo
referência ao número do Partido dos Trabalhadores (PT): “Aperta o
13 que tudo melhorará”. Junto delas, memes do atual presidente Jair
Messias Bolsonaro rindo aparecem nos comentários, do ex-presiden-
te Luiz Inácio Lula da Silva também. Na contramão da maioria dos co-
mentários e reações, uma postagem que pouco foi curtida é a de um
homem tentando apontar que o culpado é o autor da violência e não
a iniciativa da UFMS; ele questiona: “Agora a culpa é do banheiro?”.
sumário 151
Mesmo a polêmica vindo à tona por meio de um sindicalista que
a classificou como “modismo”, sindicatos reconheceram o valor do
banheiro “neutro”, mas criticaram a sua implementação sem a aprova-
ção coletiva, indicando uma visão limitada de democracia. Entre outros
críticos da iniciativa, seja no “Segredos UFMS” ou no Facebook de um
dos jornais da cidade, não há grandes destaques ao reconhecimento
da importância dos banheiros “neutros”; antes, apresentam ataques
de diferentes ordens, tanto à instituição como a quem usa o banheiro,
por meio de críticas político-partidárias e contra o “politicamente corre-
to”, independentemente da identidade de gênero de quem faz o uso.
A abordagem jornalística não buscou entrevistar ou consultar qualquer
especialista em termos de direitos ou mesmo pesquisadores da área
de gênero e sexualidade para contribuir com as matérias.
sumário 152
trans, em um jogo representativo dúbio que pode ser estendido à
própria identidade de gênero alvo do referido banheiro: como saber
quem é de fato identitariamente trans e quem não é? Esse perigo
classificatório em tom religioso é deslegitimador das diferenças de
gênero e dos direitos garantidos em termos de dignidade da pessoa
humana. Ele aparece como fundamentação para a denúncia junto
ao próprio Ministério Público, portanto, ao aparato institucional de
garantia de direitos, mesmo sendo absolutamente falso por não se
sustentar a ideia de que mulheres estariam em risco por usos de
homens passando por mulheres nos banheiros país afora.
sumário 153
currículo-pedagógica aqui analisada indica o quanto ele não é “neu-
tro” nem em termos da política identitária envolvendo “sexo”, gênero
e sexualidade; nem em termos da política universitária que envolve
supostos “progressistas” e “conservadores”.
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sumário 158
Seção 2
2
Educação estética e Teoria Queer
Seção
Educação estética
e Teoria Queer
7
Capítulo 7
Djalma Thürler
Marcelo Nogueira
Djalma Thürler
Marcelo Nogueira
“A cor púrpura”
enquanto política
de desorientação
heteronormativa
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.7
INTRODUÇÃO
sumário 161
Púrpura – O Musical”27 se constitui, simultaneamente, enquanto espaço
reivindicador, seja do desmoronamento da estrutura social heteronorma-
tiva (ROLNIK, 2008), seja do direito performativo de aparecimento de cor-
pos dissidentes e da cultura queer, numa perspectiva lésbica e decolonial.
27 “A cor púrpura” é romance de Alice Walker, publicado em 1982 que retrata a vida das
mulheres afro-americanas na Geórgia rural do início do século XX. Ganhou um Prêmio
Pulitzer, em 1983.
28 “A Cor Púrpura - O Musical”, com roteiro de Marsha Norman, estreou na Alliance Theatre
Company em Atlanta, Geórgia e na Broadway a 1 de novembro de 2005 e permaneceu
em cartaz até o ano de 2008 e realizou 910 apresentações, e foi indicado para onze Prê-
mios Tony, incluindo Melhor Musical, Melhor Livro, e Melhor Partitura Original, produzido
por Oprah Winfrey, Quincy Jones, Scott Sanders e Harvey Weinstein. De 2015 a 2017, o
espetáculo ganhou uma nova montagem da Broadway, que recebeu diversas indicações
e teve uma quantidade maior de premiações: 2 prêmios Tony (de Melhor Rivaval de Mu-
sical e Melhor Atriz de Musical), 2 Prêmios Drama Desk (Melhor Atriz de Musical e Melhor
Diretor de Musical), 1 Prêmio Drama League, 2 homenagens pelo Teatre World Award,
Prêmio Emmy Diurno, pelo Excelente desempenho musical em um programa diurno e
mais um Prêmio Grammy na categoria de Melhor Álbum de Teatro Musical. O musical teve
outras temporadas e produções: Londres (2013), África do Sul (2018), Holanda (2018),
Leicester e Birmingham (2019), Canadá (2019) até chegar ao Brasil (2019), poucos meses
antes do início da paralização oficial, pelo avanço da Covid -19.
sumário 162
Segundo Judith Butler, nesse propósito, de oposição à precarieda-
de, se faz necessária uma série de conjunções e ações para agir e viver,
pois “nenhum de nós age sem as condições para agir, mesmo que algu-
mas vezes tenhamos que agir para instalar e preservar essas condições
(BUTLER, 2019, p. 22), ou “como sugere Dra. Brené Brow, a vulnerabilida-
de é pré-requisito para a conexão, e a conexão é o antídoto às estratégias
de desunião e conquista usadas para manter as mulheres separadas
uma das outras e silenciadas por séculos” (SAUER, 2019, p. 10).
Celie narra a sua vida através de cartas – o único meio que Celie
tem para expressar os seus sentimentos – dolorosamente honestas e re-
veladoras, primeiramente a Deus, suscitadas quando o seu padrasto abu-
sivo, Alphonso, depois de a ter violado e ela engravidado pela segunda
29 Alice Walker, Adrienne Rich, Audre Lorde “não aceitaram coletivamente o National Book
Award de poesia em 1974 em nome de todas as escritoras que não foram ouvidas e que
só teriam seus esforços cooptados após a morte, subordinadas ao culto capitalista da per-
sonalidade que sustenta violentamente as ideias dominantes que rodeiam a arte, a cultura
e a classe” (SAUER, 2019, p. 10), mas Alice Walker, que foi a primeira escritora negra a ser
laureada com o prêmio Pulitzer, pelo seu livro “A cor púrpura”, lançado em 1982.
sumário 163
vez aos 14 anos de idade, a avisa para não contar a ninguém, somente a
Deus; depois através de uma série de cartas à irmã, Nettie – e vice-versa –
que se estende por vinte anos, aliás, “o ato de escrever assinala a própria
sobrevivência de Celie” (SARIAN, 2002, p. 164).
30 Nos referimos aqui à ideia de Despentes e Preciado (2021): “Uma cachorra sozinha é uma
cachorra morta, uma matilha é um comando político” (p. 11).
sumário 164
os nossos sentimentos de superioridade cultural – ao apontar que não te-
mos nada mais do que gramática e estilo para a defesa contra a invenção
da natureza, como pensou Segato (2018), também abre reflexões para
duas questões dominantes e contemporâneas que revelam e contestam
construções naturalizadas e concordantes de gênero e sexualidade.
31 “no início, recusou a ideia de ter outra pessoa a contar a sua história. Mas depois de ver
E.T. ela cedeu ao dizer numa entrevista que ‘Se ele pode fazer marcianos, ele pode fazer-
-nos’ (entrevista apresentada, como bónus, no DVD)”.
sumário 165
O filme preservou a história e título originais, apresentou um
elenco de futuras grandes estrelas, como a protagonista e iniciante
Whoopi Goldberg, que mesmo sendo uma comediante conhecida no
teatro, teve neste filme a sua primeira oportunidade no universo cine-
matográfico, na pele de Celie Johnson, e a atriz e apresentadora Oprah
Winfrey, no papel coadjuvante de Sofia.
32 Para os espectadores negros, há uma reação diferente. Você é dividido em dois (ha uma
divisão). Por um lado, você vê a personagem Mister e fica incomodado com o estereótipo.
No entanto, por outro lado, e esta é a base do apelo desse filme para tantas pessoas, é
que as mulheres que você vê no filme, você nunca viu mulheres negras assim colocadas
na tela antes. Não estou falando sobre o que acontece com elas no filme, estou falando
sobre os planos futuros (desejos) em si. Quando você vê Whoopi Goldberg em close-up,
um close-up amoroso, você olha para essa mulher, você sabe que nos filmes americanos
do passado, nos anos 1930, 1940, ela interpretaria uma empregada doméstica. Ela teria
sido uma empregada clownesca (comica). De repente, a câmera está focando nela e nós
dizemos Eu já vi essa mulher em algum lugar, eu a conheço.
sumário 166
Apesar do grande sucesso e suas 11 indicações ao Oscar, o filme
é relembrado como um dos maiores perdedores da história do cinema,
pois apesar das indicações, não foi contemplado em nenhuma categoria.
sumário 167
comparecesse às salas de cinema, principalmente os espectadores
negros, alegando que o filme fortalecia os estereótipos dos homens
negros, o que confirma a afirmação de Jessica Valenti, de que “parte
do problema é que a cultura americana ainda enxerga o sexismo dos
homens em grande parte como algo inato, e não como algo desvian-
te” (apud SAUER, 2019, p. 12). Afinal, incesto, maus tratos a crianças,
violação e violência doméstica – os fundamentos do romance epistolar
de Walker – estavam todos lá, no entanto, a história de sobrevivência
de uma mulher contra as estatísticas de morte – já que “mulheres com
idades de 15 a 44 anos tem mais probabilidade de serem mortas ou
mutiladas por homens do que por casos de câncer, malária, guerra e
acidentes de trânsito somados” (SAUER, 2019, p. 12) – tem um sentido
maior de realização e torna o seu tema sombrio, curiosamente, palatável
para um mercado mainstream. Aliás, a noção popular de que o teatro
musical equivale a “light and fluffy”, ameaçou a versão musical de “A cor
púrpura”, a legitimidade da sua adaptação, que já tinha assombrado sua
versão cinematográfica, recaindo sobre os produtores, receios sobre o
quão apropriado era musicalizar a história de Celie.
sumário 168
“A Cor Púrpura” também suscitou grandes preocupações aos
fãs do teatro musical, numa altura em que a tendência de reciclar
filmes conhecidos em produções teatrais musicais levou os críticos a
questionar uma vez mais o próprio futuro do teatro musical: a Broad-
way não tinha nada de novo e original para oferecer, como tinha nas
décadas anteriores?
34 Importante lembrar que o filme também recebeu críticas devido à sua controvérsia no
processo de adaptação do romance. Primeiro, muitas pessoas afirmaram que Steven
Spielberg, sendo judeu, branco, de classe média e tendo dirigido principalmente filmes
de fantasia, não seria capaz de retratar em “A cor púrpura”, os sofrimentos de uma comu-
nidade negra que vivia num ambiente racista e sexista.
35 Anteriormente a essa montagem, em 2016, o mesmo diretor, Tadeu Aguiar, e o produtor, Eduar-
do Bakr, já haviam encenado uma versão brasileira do filme “Love Story” para teatro musical,
com elenco formado somente por atores negros, e protagonizado por mulheres negras.
sumário 169
baseado no livro escrito por Alice Walker e no filme da Warner Bros e
da Amblin Entertainment.
sumário 170
Pensando a partir de Ahmed (2014), para quem as relações
sociais são organizadas espacialmente, a queerness provocada pela
relação amorosa entre Celie e Shug Avery, ao não seguir os caminhos
da heterossexualidade, perturba os estreitos limites da normalidade
(ZIGA, 2021) e reordena as relações sociais, provocando outras políti-
cas de subjetivação, “representações torcidas” (idem, p. 46) ao alcan-
ce daqueles que, à primeira vista, podem parecer estranhas.
36 Para Butler, performatividade é, portanto, sobre o “poder do discurso para produzir efeitos
através da reiteração” (BUTLER 1993, p. 20).
37 “limite, rigidez e superfície” – tradução nossa.
38 “oferecer uma nova forma de pensar sobre a espacialidade da sexualidade, gênero e
raça” (Tradução nossa).
sumário 171
“the emotions are directed to what we come into contact with: they
move us ‘toward’ and ‘away’ from such objects”39 (AHMED, 2006, p.98).
39 “as emoções são dirigidas para aquilo com que entramos em contato: elas nos movem
‘na direção’ e ‘para longe’ de tais objetos” (Tradução nossa).
40 “a experiência intelectual da desordem, mas a experiência vital da vertigem e náusea, que é a
consciência da nossa contingência, e o horror com que ela nos preenche” (Tradução nossa).
sumário 172
definimos como existência lésbica, à medida que delineamos
um continuum lésbico, começamos a descobrir o erótico em
termos de mulheres: como aquilo que não é confinado a uma
única parte do corpo ou exclusivamente a corpo; como uma
energia não apenas difusa mas, como a descreveu Audre Lor-
de, onipresente ao “compartilharmos a alegria, seja física, emo-
cional, psíquica”, e ao compartilharmos o trabalho; como a ale-
gria que nos dá força, que “nos torna menos dispostas a aceitar
a impotência, ou aqueles outros estados proporcionados de ser
que não me são inerentes, como a resignação, o desespero, o
retraimento, a depressão, a autonegação (RICH, 2019, p. 68).
41 Para saber mais referências, consultar: BAUER, Heike; MAHN, Churnjeet. “Introduction:
Transnational Lesbian Cultures”. Journal of Lesbian Studies, 18, 2014, p. 203–208.
sumário 173
Agora Eu sei
Porque ela provoca furor
Nem na Nettie, Nem na Sofia
Nem em ninguém eu vejo essa magia (XEXÉO, 2019, p. 51-52).
sumário 174
Shug – Me diz a verdade, Dona Celie. Você se importa se Albert
dormir comigo?
Celie – Você aind’ ama ele?
Shug – Eu sinto por ele o que pode se chamar de paixão. Eu sei
que ele é fraco, mas ele tem o cheiro certo. Ele me faz dar risada.
Celie – E você gosta de dormi com ele?
Shug – Eu adoro. Você não?
Celie – Não gosto nem um pôco. Na maioria das vezes, eu finjo
que nem tô ali. Ele nunca percebe a diferença mesmo. Só faz o
que tem que fazê, sai de cima e dorme.
Shug – Faz o que tem que fazê? Falando assim, parece até que
ele te usa como um banheiro.
Celie – É exatamente assim que eu me sinto
Shug – Você não aproveita? Nunca?
Celie – Não. Nunca. Ele me acha feia. Tudo bem.
Shug – Que é isso? Mas você não é feia. Você é uma dádiva de
Deus, se é que alguma vez eu vi isso. Se eu fosse um pingo do
que você é, eu não teria que sair por aí balançando os meus
peitos e sacudindo a minha bunda na frente de todo mundo.
(um tempo)
Shug – você não tá acreditando em mim... (Shug leva Celie pra
frente do espelho) Dona Celie, Dona Celie... olha só. Olha para
você (XEXÉO, 2019, p. 57-58).
sumário 175
Seremos nós duas pra sempre
Celie - O que o amor
Shug - O que o amor
Celie & Shug - Faz
Sim, pra mim, você é a paz
Que aparece em seguida ao tufão
E rouba meu coração
Celie - E me traz luz
Shug - E me traz luz
Celie - E me faz rir
Shug - E me faz rir
Celie & Shug - O que me traaaaaz esse choro
Mesmo se eeeeeeu tô feliz
A história vai ser só eu e você
Seremos nós duas pra sempre
Shug - O que o amor
Celie - O que o amor
Shug - O que o amor
Celie - O que o amor
Celie & Shug - Faz (...)
Shug & Celie -Para mim para mim
Você é o amor para mim
O que o amor o que o amor
O que o amor faz (XEXÉO, 2019, p. 71-73).
sumário 176
vítimas de discriminação racial e de gênero-sexual. O das mulheres,
ainda, duplamente exploradas no seio da família – vítimas da comu-
nidade negra e da comunidade branca.
sumário 177
e, embora a desigualdade esteja a se arrefecer, a condição da mulher
ainda é altamente deficiente, afinal, “em quase nenhum país, seu estatu-
to legal é idêntico ao do homem e muitas vezes este último a prejudica
consideravelmente”, como também pensou Beauvoir (1970, p. 14).
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sumário 178
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ZIGA, Itziar. Devir-cachorra. Trad. Beatriz Regina Guimarães Barbosa; Maria
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sumário 180
8
Capítulo 8
F[r]icções do humano:
dissidências em cena
Fernando Pocahy
Fernando Pocahy
F[r]icções
do humano:
dissidências em cena
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.8
FLUXOS EM TELA
sumário 182
Acredito que um filme pode causar alguma repercussão sobre
condutas individuais ou relações sociais, por vezes com certa inten-
cionalidade – mas isso é apenas uma vontade (algo que se coloca
em demanda) e que pode se realizar como pode nunca se concre-
tizar; pode até arranhar, arriscar alguma mudança ou impacto, mas
não temos como avaliar os sentidos que cada pessoa atribui ao filme.
Porém, algo dos filmes (sempre) escapa: “A obra fica sempre em
falta, ao fim, em relação ao absoluto da teoria: mas ela não ficará
nunca em falta com a sua própria capacidade de atuação e de inova-
ção” (AUMONT, 2008, p. 32). Filmes podem funcionar, nesse sentido,
como maquinações do desejo, agenciamento de enunciação… acio-
nam prazer pela fruição que lhe é constitutiva, mas também podem
agenciar certo aplacamento, pelo horror que igualmente lhe pode
ser próprio, pode denunciar a crueldade quanto pode dela participar,
pode agir na insurgência e em rotas de fuga… um filme, o que pode?
sumário 183
aquilo que compõe o próprio universo do filme (ou como diriam os ci-
neastas, a sua diegese), elementos que poderão acionar forças, fluxos,
rotas de produção de sentidos. Um filme opera, incide, disputa, mas
não determina, não fecha (mas pode aplacar): podemos “compreen-
der o cinema não só como arte, mas como linguagem mobilizadora e
desestabilizadora de nossas certezas” (MARCELLO, 2008, p16).
sumário 184
Parece que esta experiência contrapõe-se ao regime de in-
teligibilidade da teoria (com seus esquemas próprios de sua ela-
boração – abstração, esquema, modelo, o que segundo o autor,
pressupõe um certo distanciamento do gesto de irresponsabilida-
de, próprio ao cinema/filme… e nos interroga: assiste-se a um filme
pela teoria? O filme possui uma organização discursiva? O filme
possui uma finalidade? Se considerarmos por Teoria, seguindo o
rastro de Aumont (2008), os núcleos da especulação, sistematicida-
de, força explicativa, temos aqui um bom desafio…
A arte não pensa menos que a filosofia, mas pensa por afectos
e perceptos, nos dizem Gilles Deleuze e Felix Guattari (1997, p. 88);
pensa-sente outramente: o pensamento como afecção. Portanto, não
pensa menos, mas pensa na diferença – com sua audiovisualidade
narrativa ou pós-narrativa – situada como e desde um discurso (lem-
brem-se dos novos modos de pensar com imagens, disputando a
própria noção de arte, cinema etc.). “A obra fica sempre em falta, ao
fim, em relação ao absoluto da teoria: mas ela não ficará nunca em
falta com a sua própria capacidade de atuação e de inovação” (AU-
MONT, 2008, p. 32). Ela, a arte, pode ser, neste sentido, maquinação
do desejo... prazer, fruição e também horror.
sumário 185
(DES)CAMINHOS EM PESQUISA
sumário 186
de um determinado discurso (aquilo que define em nossa época, lugar
e cultura o que conta ou não para se aceder ao status de humano).
45 Faço uso do sinal “x” como forma de colocar sob rasura noções consagradas e infle-
xões binárias de gênero. A noção de que certos conceitos, expressões, noções “não
servem mais – não são mais ´bons para pensar´ - em sua forma original, não recons-
truída” (HALL, 2000, p. 104). Portanto, mais do que fazer caber múltiplos gêneros ou
posições de sexualidade através de sinais como o próprio X ou @, *, #, _, ´e´, etc, tento
com essa rasura linguística evidenciar que a gramática marca a diferença. Não se trata
de uma forma inclusiva, embora guarde essa potencialidade, mas justamente desejo
expor que a linguagem não somente não é neutra, mas que corresponde a uma arena
de disputa sobre regimes de visibilidade que se articulam vivamente na produção e na
marcação da diferença. Ao mesmo instante, introduz-se aqui uma materialidade estéti-
ca (estilística do signo e do sinal) que corresponde a uma disposição ética, abrindo os
termos de uma agonística (política) da/na/com a língua.
sumário 187
Mas fazer morada não significa, aqui, possuir, apropriar-se…
será ocupação efêmera. Certos filmes acionam em mim possibilidades
para experimentações que me aproximam de uma ascese: o trabalho
de uma estética da existência (FOUCAULT, 1984/ 2001). E, ao habitá-
-los, eu me refaço. Eu (des)aprendo com os filmes sobre modos de
pensar a mim mesmo. Toda vez que um filme se abre em uma proje-
ção, formas de atualização do nosso tempo-(in)mundo se expandem.
sumário 188
da antiguidade em seus movimentos para uma ascese, balizada pelas
formas como cada um se conduz diante de um determinado código
moral (Foucault, 1984/2001). Não é uma busca hedonista. Ao contrá-
rio: é para viver melhor como cidadão/sujeito (professor, amigo, filho,
irmão, companheiro, militante et cetera) e consequentemente com xs
outrxs, que eu me permito e desejo ser “desconstruído” (desterritoriali-
zado, reterritorializado, redesterritorializado) por certos filmes. É, pois,
uma prática de liberdade, é um desejo de liberdade. É uma paixão pelo
devir: “a diferença relativo-absoluto corresponde à oposição entre a
história e o devir, a desterritorialização absoluta sendo o momento do
desejo e do pensamento” (ZOURABICHVILLI, 2004, p. 46)
sumário 189
forma de pensar o humano passa a ser engendrada (com alguma agên-
cia e liberdade) ou forjada (ali onde somos interpeladxs por discursivida-
des) e ocupa nossas vidas, disputa nossos des(a)tinos.
sumário 190
DAS ARTES DE F(R)ICIONAR
46 Uma versão ampliada deste texto foi publicada em Pocahy (2020), pela Athenea Digital,
Espanha.
47 A cisnorma é percebida, aqui, através da manutenção de privilégios dirigidos a pessoas
supostamente consideradas coerentes ao sistema corpo-gênero (anátomo-gendradas).
Essa posição teria como efeito regulatório e hierarquizador a interpelação abjeta e a pa-
tologização da transexualidade – e mais amplamente da transgeneridade. Como afirma
Leila Dumaresq, citando Viviane Vergueiro (2014), a crítica da cisgeneridade compulsória
“(...) pode significar uma virada descolonial no pensamento sobre identidades de gênero”
(s/p). De outra parte, e em consonância às proposições supracitadas, recorro à ideia de
hetero/cisnormatividade como forma de evidenciar os efeitos desses ideais regulatórios de
gênero, que estariam associados à suposta naturalidade do corpo (através da linha de inte-
ligibilidade corpo->gênero->sexualidade – uma matriz fundacional) e sua articulação com
os privilégios daí decorrentes. Note-se com isso que a cisnormatividade também marcaria
posições privilegiadas para aquelas pessoas que de alguma forma também poderiam ser
consideradas desviantes (agora apenas do ponto de vista da sexualidade – ou “orientação
sexual”). Isto é, a cisnormatividade compreende as posições gay e lésbica, igualmente. E
no caso de uma performance normativa, seu correspondente seria a homocisnormatividade
ou mesmo uma lgbcisnormatividade – para ampliar o jogo de significantes.
sumário 191
Interesso-me por acompanhar os efeitos de uma dada econo-
mia política da verdade que pode encontrar suas formas de proble-
matização em vários espaços-tempos de produção do pensamento
– como as teorias, por exemplo, que se podem constituir tanto em
cartografias, como sugere Suely Rolnik (2006/2011), quanto eviden-
ciar seus jogos performativos, produzindo realidades que elas mes-
mas forjam (HALL, 2000) ou engendram48... de qualquer forma, que
delas participam (LOURO, 2008). E estou convencido de que alguns
filmes nos permitem politizar a produção de sujeitos e suas histórias
em torno de normas de gênero e sexualidade (em intersecção com
outros marcadores, notadamente lugar de moradia, raça e classe).
Eles conduzem (e aqui já se pode avaliar uma tomada de posição ou
mesmo a agência de uma determinada produção cinematográfica,
a partir de uma política da imagem-movimento) a pensar as formas
de governo a partir da marcação da diferença. Ou: onde a diferença,
enquanto relação, fluxo, força, devir, passa a ser fixada.
sumário 192
sujeito constituído por e constituindo experiências em face de processos
de subjetivação. Esse último argumento é resíduo das leituras de Lopes
(2002, p. 250): “As narrativas, mesmo escritas em primeira pessoa, são
recriações, interpretações, incluem as fragilidades das alterações por que
passamos. Não é uma teoria, é uma prática de lidar com diferenças”.
sumário 193
mas o conjunto de convenções (ou críticas) visuais e políticas da
sociedade que olha” (PRECIADO, 2020, p. 104).
sumário 194
Ali onde um conjunto de práticas sociais opera na estabiliza-
ção de um ideal regulatório, como a heterossexualidade compulsória
ou a heterocisnormatividade e a branquitude, algo no momento dessa
apreensão do corpo-desejo-prazer pode assumir recusa, fazendo emer-
gir um modo de vida outro – singular (o desvio ou a dissidência como
singularidade). A contribuição de François Ewald (1993) é central nessa
análise sobre a medida do viável e do possível para uma vida:
(...) a norma tem relação com o poder, mas o que a caracteriza
não é o uso da força, uma violência suplementar, uma coerção
reforçada, uma intensidade acrescida, mas uma lógica, uma
economia, uma maneira de o poder reflectir as suas estraté-
gias e definir os seus objetos. A um tempo, aquilo que faz que
a “vida” possa ser objeto de poder e o tipo de poder que toma
a seu cargo a “vida”. Numa palavra, aquilo que lhe dá a forma
de uma “biopolítica” (p. 78).
sumário 195
quais vidas devem ser preservadas e o que devem dar a ver e dizer para
que se as identifique como vidas viáveis e possíveis de serem vividas.
sumário 196
conduzir eticamente a minha vida ou a de assujeitar-me a um determi-
nado regramento moral, à normalidade.
(CINE)CARTOGENEALOGIAS
sumário 197
De Foucault (1984/2001), faço uso aqui de elementos que com-
põem sua genealogia da ética. Ela ocupa lugar privilegiado na compo-
sição deste modo de acompanhar processos de subjetivação, lócus
de minhas análises-experimentações. O trabalho de problematização
das condições de possibilidade e de emergência dos discursos que
se opõem e/ou associam aos jogos de verdade e que dão contornos
à relação dos sujeitos consigo mesmos/as no processo de sua (auto)
constituição é central nesta aposta ético-epistemológica.
sumário 198
Do mesmo modo que por certas práticas somos cartografadxs,
um esquema ético-processual nos coloca em relação com o/a outro/a e
não sobre elx. É desse modo que tomo a ideia de uma “junção” daquilo
que em tese esteve desde sempre reunido: a carto-genealogia como
possibilidade de traçar as linhas que constituem o regime de materialida-
de de um enunciado, redefinindo as suas possibilidades de (re)inscrição
e legitimidade nos jogos de poder – saber (FOUCAULT, 1999) e aquilo
que nos coloca em uma posição de dobra, uma inflexão ética – o den-
tro-fora de nós mesmos na relação com o mundo – in mundo.
sumário 199
A questão que movimenta o desejo de experimentar o encon-
tro cartográfico e genealógico é acompanhar fluxos de produção de
subjetividade. Isto é: como os sujeitos são constituídos, como são go-
vernadxs e como governam a si mesmxs? Especialmente a partir dos
jogos de verdade que engendram ou forjam significações para o corpo
e o gênero, a sexualidade, a raça e a idade, busco elementos para um
diagnóstico do presente (nos termos foucaultianos).
sumário 200
Eu participo do mundo, sou regido pelas coisas deste mundo
(o tempo presente encharcado de outras tantas coisas que me ante-
cederam), in-mundiçado de minha época. A partir das contingências
que me colocam em modos de agir, modos pelos quais tenho a chan-
ce de examinar (a partir de várias práticas sociais) o modo como me
relaciono com os outros/ as outras, ali pode estar um agenciamento
de liberdade. Minha aposta principal, portanto, é na produção de uma
ética-estética-política de como nos tornamos isso o que dizemos ser, a
partir das formas de governo de nós mesmxs e na relação com outrem.
sumário 201
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e a puta multicartográfica, ou como fazer uma cartografia “zorra” com Annie
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PRECIADO, Paul B. Um apartamento em Urano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020
POCAHY, Fernando. Entre Vapores e Dublagens: dissidências homo/
eróticas nas tramas do envelhecimento. Salvador: Editora Devires, 2017.
POCAHY, Fernando Altair. Os filmes que habito: cartogenealogias do
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20, n. 2, p.1-22, 2020.
RABINOW, Paul. Antropologia da razão. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas
do desejo. Porto Alegre: Editora Sulina/ Editora da UFRGS, 2011.
SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987.
ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2004.
sumário 203
9
Capítulo 9
“Eu já queria
ser o que eu sou”:
experiências, memórias
e representações travestis
em Divinas Divas, de Leandra Leal
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.9
INTRODUÇÃO
sumário 205
A produção do conhecimento no campo das ciências humanas
e sociais, assim como a produção artística, podem ser consideradas
a partir de seu aspecto público, ou seja, aquele da publicização e
ampliação do público que tem acesso às questões ali gestadas, ao
conhecimento e à arte elaborados. Podemos integrar esses esforços
àqueles de ampliação do acesso às memórias outras, de grupos e
sujeitos não hegemônicos.
sumário 206
que bastaria para simplesmente matar o sujeito. Alguns casos ocu-
param grande espaço na mídia, entretanto, a maioria segue apresen-
tada em notas nas páginas policiais a serem esquecidas pela breve
notícia do próximo crime. Apenas cinco anos nos separam de um dos
mais violentos casos de assassinato de uma travesti no Brasil:
Cerca de três horas da tarde, uma mulher liga informando que
uma mulher loira estava sendo espancada. Na segunda ligação,
minutos depois, a mesma mulher liga e fala que a mulher está
muito machucada. Na terceira ligação, um homem fala que é
uma travesti e que os bandidos vão tocar fogo nela viva. A quar-
ta ligação, a mesma pessoa informa que estão levando a tra-
vesti em um carrinho de mão e irão matá-la. E na última ligação,
outro homem fala que mataram a travesti a tiros e que quem
teria matado seriam dois homens conhecidos pela alcunha de
‘Bin’ e ‘Chupa Cabra’ (HOLANDA, 2019, p. 119).
sumário 207
Ao nos determos nas informações trazidas por órgãos gover-
namentais ou Organizações Não Governamentais (ONGs) especiali-
zadas na observação da violência, os números relativos às pessoas
reunidas na letra T da sigla se mostram assustadores: enquanto a
expectativa de vida da população brasileira é de 76,6 anos (IBGE,
2021), a destas pessoas (T) é de 35 anos (BENEVIDES, 2022, p. 41).
Talvez por isso seja pouco comum encontrarmos travestis e transe-
xuais velhas e velhos nas ruas do país.
sumário 208
O teatro carioca da passagem do século XIX para o século XX
foi marcado pela revista, um gênero de origem francesa que juntava
aspectos do teatro popular das feiras e a música, organizado em es-
quetes. No Brasil, a primeira revista foi encenada em 1854, vindo a al-
cançar efetivo sucesso a partir dos textos de Arthur Azevedo, nos idos
de 1884 (MARQUES, 2001). O gênero, apesar das críticas sofridas,
permaneceria em voga até 1961, quando o sucesso da peça O diabo
que a carregue lá pra casa, de Walter Pinto e Roberto Ruiz, apresentada
no Teatro Recreio, seria o último, se tornando o marco do declínio do
gênero a partir de então (SUDARE, 2018). Após o fim do áureo teatro
de revista, Américo Leal levou para os palcos do Rival espetáculos de
transformistas. As grandes vedetes do teatro de revista davam espaço
para essas novas estrelas do teatro musicado.
sumário 209
Rio de Janeiro Film Festival 2016; Prêmio Felix de Melhor Filme – Festival
do Rio 2016; Melhor Diretora – Troféu Aruanda – Festival Aruanda 2016;
Melhor Filme – Juri Popular – Festival Aruanda 2016; Melhor Documen-
tário – 12º Prêmio FIESP/SESI-SP de Cinema e TV 2018; Melhor Roteiro
de Longa-metragem Documentário – II Prêmio ABRA de Roteiro; Melhor
Documentário e Melhor Edição – Grande Prêmio do Cinema Brasileiro
2018. As informações podem ser conferidas no sítio virtual da Daza Fil-
mes (https://www.dazafilmes.com.br/projetos/divinas-divas).
sumário 210
acerca da homossexualidade entre os teóricos do chamado construcio-
nismo social e dos historiadores essencialistas. Em que pese o valor do
debate em si, destaco apenas uma de suas constatações: os trabalhos
no âmbito do construcionismo têm privilegiado ver os homossexuais (e
os dissidentes da cisgeneridade) a partir do viés médico ou daquele
oferecido pelos juristas, por organismos do Estado; deste modo, che-
garíamos muito mais a uma história da homofobia (ou, da lgbtbifobia) do
que propriamente a uma história de pessoas lésbicas, gays, bissexuais,
transexuais, travestis, intersexos, assexuais e outras com variabilidade
de gênero ou de orientação sexual. Isso me leva a observar de forma
mais detida as experiências das divas que se mostram à lente de Lean-
dra Leal, em um momento de suas trajetórias que lhes dá condições
de fazer um balanço de suas atuações artísticas, dos enfrentamentos
necessários para chegarem àquele ponto de suas vidas.
sumário 211
Um videografismo é apresentado na tela enquanto Nelson Gonçalves
interpreta a canção Escultura (Nelson Gonçalves e Adelino Moreira):
Cansado de tanto amar/ Eu quis um dia criar/ Na minha imagi-
nação/ Uma mulher diferente/ De olhar e voz envolvente/ Que
atingisse a perfeição// Comecei a esculturar/ No meu sonho
singular/ Essa mulher fantasia/ Dei-lhe a voz de Dulcinéia/ A
malícia de Frinéia/ E a pureza de Maria!// Em Gioconda fui bus-
car/ O sorriso e o olhar/ Em Du Barry o glamour/ E para maior
beleza/ Dei-lhe o porte de nobreza/ De madame Pompadour//
E assim, de retalho em retalho/ Terminei o meu trabalho/ O meu
sonho de escultor/ E quando cheguei ao fim/ Tinha diante de
mim/ Você, só você meu amor!
sumário 212
surgir aquilo que não tem,/ e o que tem ter que fazer sumir ou enrus-
tir./ Je suis comme je suis!”.
sumário 213
mulher, a travesti, e o homem. Tanto que sempre utilizou Astolfo, seu nome
masculino, ao lado de Rogéria. São as ambiguidades apresentadas sem
a necessidade de sua superação: “Voltei definitivamente transformada
em mulher!” (PASCHOAL, 2016, p. 67), mas afirmando que jamais ope-
raria, pois não deixaria de ser Astolfo. Em uma das cenas do Divinas
Divas, ela responde sobre os amores: “Eu tenho lovers... Para quê ter
apenas um? Esse lado é bem homem!”, em referência a um padrão ideal
masculino de comportamento sexual, menos monogâmico, aparece em
sua fala. A ideia da operação de transgenitalização é permanentemente
refutada por ela. E Rogéria como uma persona, uma elaboração, um ser
que divide aquele espaço físico e mental com Astolfo, é reiterada.
sumário 214
Pinheiro, que compôs o segundo volume do Relatório final da Comis-
são Nacional da Verdade; escrevem eles:
Não houve uma política de Estado formalizada e tão coerente
no sentido de exterminar os homossexuais, a exemplo de como
existia uma campanha anunciada e dirigida para a eliminação
da luta armada com repressão de outros setores da oposição
ao longo dos anos da ditadura. Porém, também é muito eviden-
te que houve uma ideologia que justificava o golpe, o regime
autoritário, a cassação de direitos democráticos e outras vio-
lências, a partir de uma razão de Estado e em nome de valores
conservadores ligados à doutrina da segurança nacional. Essa
ideologia continha claramente uma perspectiva homofóbica,
que relacionava a homossexualidade às esquerdas e à subver-
são. Acentuou-se, portanto, assumida agora como visão de Es-
tado, a representação do homossexual como nocivo, perigoso
e contrário à família, à moral prevalente e aos “bons costumes”.
Essa visão legitimava a violência direta contra as pessoas LGBT,
as violações de seu direito ao trabalho, seu modo de viver e de
socializar, a censura de ideias e das artes que ofereciam uma
percepção mais aberta sobre a homossexualidade e a proibição
de qualquer organização política desses setores (Comissão Na-
cional da Verdade, 2014, vol. II, p. 301).
sumário 215
de limpar a cidade de vagabundos, anormais (também conhe-
cidos por homossexuais), decaídas ou mundanas, marginais e
desocupados em geral. Como é que se limpa uma cidade de
milhões de habitantes, refúgio dos miseráveis de todo o Brasil,
com taxa de desemprego atingindo 8’o da população ativa?
Fácil: dando serviço para a polícia que, nestes tempos de se-
mi-anistia, é menos solicitada, mas precisa mostrar serviço.
E dá-lhe, desvairada Paulicéja!
sumário 216
Rogéria e Brigitte, recordando o início de suas atividades trans-
formistas justamente no período da ditadura apontam para as difi-
culdades e a impossibilidade de tratar de temas políticos diretamen-
te. Rogéria – “Era um momento horroroso do Brasil, politicamente.”
“Eu já era confusão, meu amor! Eu tava vestida de mulher e nem o
pau tinha cortado!”. Essas artistas, ao simplesmente exercerem sua
arte, agiam contra a norma instalada. Os limites de atuação, portanto,
eram bastante mais rígidos para elas, que eram lembradas o tempo
todo para permanecerem caladas.
sumário 217
exames, “um encefalograma”. Levada para lá, ao descobrir a farsa,
chorou, mas foi amparada por um enfermeiro, que já havia recebido
no mesmo lugar Briggite de Búzios. Saída da internação, disse à mãe:
“Eu sei que minha irmã lhe convenceu a isso, mas não faça mais isso,
não. O que eu sou, eu sou, mamãe”. Marquesa abre esse trecho de
seu relato afirmando: “Minha mãe nunca aceitou isso”. Com a arte imi-
tando a vida, são mostradas cenas de um dos antigos espetáculos
protagonizados por Marquesa no qual ela aparece com uma grande
mitra brilhante na cabeça, envolta em longo manto também brilhante
que, ao ser retirado, ao som de I put a spel on you, de Jay Howkins,
interpretada por Nina Simone, a mostra em uma camisa de força.
sumário 218
A disruptividade esteve presente na transformação de corpos,
evidenciando a imagem que tinham de si, moldando a carne à seme-
lhança da feição que imaginavam para si. No palco isso também se
mostrou, a exemplo da performance de Marquesa, mas também da
empreitada que daria um sobrenome a Eloína, “dos Leopardos”. Em
um dos depoimentos ela diz: “Eu tenho muito fascínio pelo nu.”. Isso
guiaria a produção de seus espetáculos e casas. Ela fica conhecida
nacionalmente por abrigar um show, simples, na Galeria Alaska, centro
do Rio de Janeiro. Alguns números que ela fazia, uma participação ca-
ricata, cômica... e homens nus. Se homens sem roupa já tinham sido
vistos antes, Eloína os colocava para retornarem todos ao palco, no fim
da apresentação, com seus pênis eretos, rígidos, intumescidos. Um su-
cesso absoluto. Um dos garotos ganha um carro, “documento e chave,
em cima do palco”, de um admirador. Ela ganha uma jaguatirica, em
certa oportunidade. O dinheiro entra, e vai embora; “Gastei, Leandra!”,
afirma a diva, com humor. Em outra oportunidade, em um baile de
carnaval, coloca os garotos em caixas de vidro, nus, se masturbando.
O que lhe chamou a atenção não foram os garotos, mas ela destaca
a agonia de bichas e travestis, tocando as caixas, impedidos/as de
tocarem os corpos. Uma visão cinematográfica, felliniana: “Eu sempre
delirei nisso”, afirma. Seria ela a rainha da bateria da escola de samba
Beija Flor, em 1976, na estreia de Joãozinho Trinta com o enredo Sonhar
com rei dá leão. Essas pessoas romperam com o lugar a que estavam
destinadas, sem dúvida. E, na terceira idade, mais uma vez.
sumário 219
Búzios, em 2018, Rogéria, em 2017. A primeira a partir foi Marquesa.
Ela não pode assistir à estreia do documentário que traz parte de suas
memórias, pois morreu ainda em 2015, quando as gravações já tinham
sido encerradas. A penúltima cena do filme é dela, seu monólogo. Ar-
fante, caminhando lentamente, ela segue das coxias para o palco, tra-
jando um amplo vestido amarelo, com aplicações de flores, maquiada
com brilho. Charles Aznavour interpreta Comme il disent, enquanto
imagens são projetadas no palco e Marquesa traduz o que está sendo
cantado: “Eu moro sozinho com a minha mãe, num apartamento velho.
Rua Salazarte. E tenho para me fazer companhia uma tartaruga, dois
canários e uma gata. Para deixar minha mãe descansar eu vou sempre
fazer as compras e cozinho, também. Eu lavo, eu arrumo, eu enxugo e,
na ocasião, também, eu faço um vestido (à máquina, Augusto). O tra-
balho não me dá medo. Sou um pouco decorador, um pouco estilista,
mas, a minha verdadeira profissão é à noite que eu a exerço, como tra-
vesti. Mas, sou artista! Ninguém tem o direito na verdade de me culpar
ou de me julgar. E eu preciso, que é a natureza somente a responsável
por eu ser o homossexual como vocês agora pensam”. E, num átimo,
retira a peruca, deixando à mostra uma cabeça de parcos e curtos
fios brancos. A música, dramática, encerra aí, neste exato ponto. Em
seguida, uma tela preta nos apresenta seu nome, in memorian. Em seu
velório estavam as divas, Leandra Leal e outras travestis e transformis-
tas, chamando-a por seu nome, Marquesa, não pelo nome masculino
pronunciado pelo padre oficiante (COLAÇO, 2015). Tamsin Spargo, no
voo que a levava de volta ao Reino Unido, depois de participar de um
evento no Brasil, assiste Divinas Divas, e escreve sobre ele:
Este relato poderoso e comovente das vidas de Camille K,
Eloína dos Leopardos, Jane di Castro, Rogéria, Divina Valéria e
Brigitte de Búzios, celebra a encenação, a performance, a dife-
rença durante os piores momentos. Ver as divas falarem sobre
suas vidas – seus desafios, tristezas, triunfos e alegrias, déca-
das atrás, e vê-las subirem ao palco novamente, agora, com
setenta anos, era tão comovente. Ouvir sobre o impacto sobre
seus fãs, seus públicos, aqueles que encontraram a alteridade
por meio de suas performances, e de suas vidas, foi fascinante.
sumário 220
Isso me lembrou da relevância continuada, do poder continua-
do do “queer” entendido, como sempre achei mais útil, como
um verbo, e não um adjetivo (SPARGO, 2020, p. 31-32).
sumário 221
ser redimida de algo. A ideia de sucesso não é norteadora de qual-
quer depoimento, tampouco o seu contrário. São pessoas vivendo
diante da câmera, contando sobre o que foi, mas saboreando o
que a vida lhes oferecia naquele momento: um espetáculo de êxito,
protagonizar um filme, conviver umas com as outras, se divertirem.
Não apenas sobreviver às agruras de uma sociedade lgbtbifóbica e
violenta, mas ter prazer em suas ações, em suas vidas, consideran-
do a possibilidade do fim: é Marquesa quem diz “Vou te falar uma
coisa, vai ser um canto do cisne lindo o que eu vou fazer”.
As divas nos contam que é possível ser o que se quer ser, mes-
mo que nem sempre consigamos dar um nome a isso.
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sumário 223
Seção 3
Seção
da Teoria Queer3
Aspectos teórico-metodológicos
Aspectos
teórico-metodológicos
da Teoria Queer
10
Capítulo 10
Dependência,
vulnerabilidade e
reconhecimento: ontologia
e filosofia política
em Judith Butler
Dependência,
vulnerabilidade
e reconhecimento:
ontologia e filosofia política
em Judith Butler
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.10
DEPENDÊNCIA ONTOLÓGICA
E VULNERABILIDADE HUMANA
sumário 226
situam no âmbito de uma filosofia política crítica para a qual a lingua-
gem, em sua dimensão ontológica, está “dividida em si mesma”, pois
ela é tanto o que “nos concede uma certa forma de existência social
e discursiva” como é o que “fecha, de um golpe, a possibilidade de
autonomia radical” (BUTLER, 2004, p. 52; tradução nossa).
sumário 227
(inconscientização) de uma linguagem que é só dessa espécie e de
nenhuma outra e tendo que ser transmitida a todos que no grupo hu-
mano chegam. Se a linguagem animal (com seus códigos, percepções
etc.) é biologicamente dada (cada espécie tem sua linguagem própria e
não requer processos de aprendizagem como os humanos), o caso hu-
mano é o de uma espécie cujo desamparo (biológico, inicialmente, por
ausência de especialização, e, posteriormente, desamparo em outras
formas) atira seus indivíduos na dependência fatal a outros indivíduos
que possam lhes legar os atributos da espécie (se não tiver quem lhes
ponha de pé, não serão bípedes permanentes; se não tiver quem lhes
fale, não falarão; entre outros exemplos) e lhes transmitir a linguagem
humana e sua ordem. Para tudo isso, cabe lembrar, como tantos auto-
res fizeram, que apontar a carência fundamental do ser humano em ser
a priori à linguagem ou à cultura que o performa nada tem a ver com
antropocentrismo ou especismo, como erradamente concluem alguns,
mas tão somente reconhecer que o ser humano é também “o animal
humano”. É Butler, após tantos outros autores, quem também dirá: “o
animal humano é como tal um animal. Isso não é uma afirmação relativa
ao tipo ou espécie de animal que é o humano, mas o reconhecimento de
que a animalidade é uma condição prévia do humano, ou seja, que não
existe humano que não seja um animal humano” (BUTLER, 2010, p. 37).
sumário 228
No que, então, a experiência de ser (existir) como humano nos
expõe a todos os riscos dessa dependência ao outro: dependência
que gera uma “vulnerabilidade” também “primária”. Essa “vulnerabi-
lidade primária” (ibid, 2004, p. 52 et seq.; ibid, 2006a, p. 44 et seq.) é,
em primeiro lugar, “física”: entre outras de suas formas, estão o de-
samparo, o abandono, a precarização da vida, a agressão física, os
maus-tratos físicos, diversos tipos de violência. Quando pensamos,
por exemplo, em recém-nascidos, a vulnerabilidade é física no pla-
no primeiro da alimentação. Se não há quem os alimente, morrerão
como inanidos; ou, se não há quem os abrigue e proteja, poderão
morrer por condições ambientais extremas ou ataques de peçonhas.
Essa vulnerabilidade primária guardará para sempre, como pensa a
filósofa, uma “conexão metafórica” com outras formas da vulnerabili-
dade, entre as quais, por exemplo, o que ela chamará “vulnerabilida-
de linguística” (ibid, 2004, p. 15 et seq.; tradução nossa), susceptível
que somos aos proferimentos ofensivos, injuriosos ou caluniosos dos
discursos de ódio, estigmas, preconceitos, discriminação. Butler no-
meará “dano linguístico” ao efeito desses atos discursivos e chamará
a atenção para sua “dimensão somática”: “certas palavras ou certas
formas de dirigir-se a alguém operam não apenas como ameaças
contra seu bem-estar físico mas tais expressões preservam e amea-
çam o corpo” (ibidem, p. 21; tradução nossa). Mas ser vulnerável,
em várias outras dimensões corpóreas, que ligam sempre as muitas
vulnerabilidades à vulnerabilidade primária, é algo que, para a autora,
tem a configuração de uma “opressão vital”: “compreender a opres-
são vital é precisamente entender que não há maneira de desfazer-se
dessa condição de vulnerabilidade primária, de ser entregue ao con-
tato com o outro, inclusive quando – ou precisamente quando – não
há outro e não há apoio para nossas vidas (ibid, 2006a, p. 44).
sumário 229
e, necessariamente, para a vida em sociedade. O que, por essas
áreas do conhecimento, foi sempre apontado como também sen-
do a dependência do ser humano ao espaço de cultura, ao espaço
de sociedade. Lócus único do “habitat” humano, sua morada, onde
ocorre o aprendizado das normas culturais e sociais e dos signifi-
cantes e significados institucionalizados; o que chamamos, em seu
todo, apropriação da linguagem humana – quando também, simulta-
neamente, do humano a linguagem se apossa. Em incontáveis estu-
dos, autores repetiram essa tese, e que há um modo humano de ser
(genérico e particular) que só se aprende na transmissão cultural e
na subsunção na linguagem praticadas por cada grupo humano nos
diversos povos. Transmissão e subsunção realizadas desde muito
cedo na vida de todos e sem as quais não se constituirá o humano
almejado pelas culturas e sociedades – ou o ser humano, tão sim-
plesmente. A existência no mundo requer que o ser humano seja
capaz de apreendê-lo, situar-se nele, o que ocorre sob o domínio da
linguagem, isto é, o ser humano dela sendo sujeito. Com diferenças,
e cada um a seu modo, abordaram o tema autores como Norbert
Elias (1994), Althusser (1974; 1985), Bourdieu (1998; 1999), Foucault
(2001), entre outros. Assim é que um dos assuntos mais aborda-
dos e importantes das ciências humanas é o da socialização, pois
é como chamamos todo esse processo pelo qual o ser humano é
“transformado em membro de alguma sociedade” (como se dizia nos
velhos clássicos da antropologia e sociologia), seja pela aquisição
da linguagem humano-cultural a que todo humano é confrontado e
obrigado, seja por meio dos “modos de subjetivação” que “transfor-
mam o ser humano em sujeito” (FOUCAULT, 2001, p. 1042; tradução
nossa) ou “interpelações” (ALTHUSSER,1974) que os tornam “sujei-
tos ideológicos” de alguma identidade, categoria etc. Na socialização
das crianças, a chamada “socialização primária”, e na socialização
dos adultos, chamada “secundária” (BERGER; LUCKMANN 1985, p.
173 et seq.), dependência e vulnerabilidade aparecem entrelaçadas.
O desamparo – para autores como Freud, em suas duas formas,
“desamparo biológico” e “desamparo psíquico” (FREUD, 1976, p.179
sumário 230
et seq.) – gera dependência, que gera vulnerabilidade. Toda negli-
gência, abandono, ausência do outro ou uma ação sua agressiva,
torna-se, para o vulnerável ser humano, um dano potencial ou efetivo.
A vulnerabilidade do vulnerável ser humano (dependente do outro)
reclama amparo sempre (do outro). Amparo que requer o reconhe-
cimento do ser humano por um outro, concedendo-lhe o status de
“humano”, merecedor de atenção, cuidado, estima.
sumário 231
Essa vulnerabilidade a que estamos expostos, alerta a auto-
ra, exacerba-se a partir de certas condições sociais e políticas que
a agravam: isto é, por sobre uma vulnerabilidade primária comum,
indivíduos e seus corpos podem experimentar a redobradura dessa
vulnerabilidade pela discriminação, exclusão, repressão, opressão,
guerra, ultraje, sob diversas formas. E quando e também porque essa
vulnerabilidade “pode ser a base para reclamar soluções políticas”
que se atenham à “própria vulnerabilidade corpórea em si mesma”
(ibidem, p. 42; tradução nossa). Afinal,
Em parte, cada um de nós se constitui politicamente em virtu-
de da vulnerabilidade social de nossos corpos – como lugar
de desejo e de vulnerabilidade física, como lugar público de
afirmação e de exposição. A perda e a vulnerabilidade pare-
cem ser a consequência de nossos corpos socialmente cons-
tituídos, sujeitos a outros, ameaçados pela perda, expostos a
outros e susceptíveis de violência por causa dessa exposição
(ibid, 2006b, p. 46; tradução nossa).
sumário 232
como o modo de conceituar a realidade, ontologia como os conceitos
que a definem e governam-na e o que nela existindo é conceituado
e governado. É o que também chamamos senso comum, imaginário
social ou ideologia em seus efeitos como normas sociais e como os
modos como são constituídos e reproduzidos os indivíduos, as institui-
ções sociais, e como são compreendidos, aceitos ou negados.
sumário 233
de saber o que há que reconhecer, ou, melhor, o que há que assegurar
contra a lesão e a violência” (ibid, 2010, p. 16).
INTELIGIBILIDADE, RECONHECIBILIDADE
E RECONHECIMENTO: “EXISTIRMOS,
A QUE SERÁ QUE SE DESTINA?”
sumário 234
reconhecimento, pois não pode haver do si-mesmo, em sua vontade
de “tomar posse do que queira”, ignorar que apossar-se das coisas
“tem por significado a exclusão de um terceiro”. O reconhecimento
funciona como um “contrato” entre indivíduos com vontade (ibidem,
p. 174-192). Na filosofia moderno-contemporânea, o tema do reco-
nhecimento tem a abordagem de Hegel (aqui, simplificada) como um
ponto de partida. Para o filósofo Axel Honneth,
Com essa reinterpretação do modelo hobbesiano, Hegel in-
troduz uma versão do conceito de luta social realmente ino-
vadora, em cuja consequência o conflito prático entre sujeitos
pode ser entendido como um momento do movimento ético no
interior do contexto social da vida; desse modo, o conceito re-
criado de social inclui desde o início não somente um domínio
de tensões moral mas abrange ainda o medium social através
do qual elas são decididas de maneira conflituosa (HONNETH,
2003, p. 48; grifo do autor).
sumário 235
tornar experiências negativas de reconhecimento, isto é, reconhecimen-
to denegado, recusado. Conceitos negativos não só podem se tornar
“estorvos à liberdade de ação dos sujeitos ou lhes infligir danos”, como
podem configurar “um comportamento lesivo pelo qual as pessoas são
feridas numa compreensão positiva de si mesmas, que elas adquiriram
de maneira intersubjetiva” (ibidem, p. 213).
sumário 236
respeito e valor decorrem de representações sociais e valorações ideo-
lógicas que incluem ou excluem, valorizam ou rebaixam a cada um na
vida social, produzindo reconhecimento ou o “não reconhecimento”.
Como observou a autora: “o não reconhecimento […] significa subor-
dinação social no sentido de ser privado de participar como um igual
na vida social” (ibidem, p. 107; grifos da autora). E como complemen-
ta: “os padrões institucionalizados de valoração cultural constituem
alguns atores como inferiores, excluídos, completamente “os outros”
ou simplesmente invisíveis, ou seja, como menos do que parceiros
integrais na interação social, então, nós podemos falar de não reco-
nhecimento e subordinação de status” (FRASER, 2007, p. 109).
sumário 237
Porque são convenções, normas ou uma linguagem da socia-
bilidade e, pois, um a priori histórico-social que antecede o indivíduo,
o problema da reconhecibilidade está imediatamente conectado ao
problema da inteligibilidade. Se o indivíduo não pode ser quem é sem
recorrer à sociabilidade de normas que lhe precedem e lhe excedem,
diz Butler (2006a, p. 56), e, pois, sem que possa deixar de se haver
com as concepções do que é a vida, o que é ser humano – conforme
normas e categorias de reconhecibilidade e reconhecimento –, para
poder resultar reconhecível, terá que se constituir inteligível nessas
mesmas normas, apoiadas que são em esquemas de inteligibilidade
(que, como tais, são falhos, incompletos, cambiantes). Um circuito ao
qual o indivíduo se vê preso, ainda que, como sugere a autora, “seria
um erro entender o funcionamento das normas de maneira determi-
nista” (ibid, 2010, p. 17). Como dirá: “assim como as normas da reco-
nhecibilidade preparam o caminho ao reconhecimento, os esquemas
da inteligibilidade condicionam e produzem normas de reconhecibili-
dade” (ibidem, p. 21). Desse circuito os indivíduos parecem não poder
escapar, mas o que é apenas uma primeira impressão, pois, como
repetidamente assinala em suas reflexões, Butler aponta que “as nor-
mas mesmas podem desconsertar-se, mostrar sua instabilidade e
abrir-se à ressignificação” (ibid, 2006a, p. 48; tradução nossa); são
variáveis e históricas, independentemente do seu caráter apriorístico
como condição de aparição dos sujeitos sociais (ibid, 2010, p. 19).
sumário 238
para ou nas categorias epistêmicas, convenções sociais, normas
sociais. A existência desses indivíduos é questionada, conferida,
estranhada ou recusada em função de não receberem a tradução
da reconhecibilidade, independente que em cada um deles habite
potencial, qualidade, habite um ser humano, mas cuja existência
não se reconhece porque nos esquemas precedentes e atuantes
da inteligibilidade não se tornam cognoscíveis (Ibidem, p. 20-21).
sumário 239
Porém, atenta às dinâmicas das transformações sociais, Butler
lembrará também que o “marco” das normas se rompe, pois não con-
segue nem manter o que ele contém conjuntizado como seu conteú-
do, nem consegue evitar de ser ele próprio rompa com seu contexto;
“rompimento perpétuo” ou “este autorroper-se” torna-se destino do
próprio marco. O que produz “tanto a eficácia do marco como sua
vulnerabilidade à inversão, a subversão e, inclusive, a sua instrumen-
talização crítica” (ibidem, p. 26).
sumário 240
VULNERABILIDADE E PRECARIEDADE
HUMANAS COMUNS: CORPOS QUE
VIVEM, CORPOS QUE IMPORTAM,
CORPOS EM ALIANÇA
sumário 241
estão expostas ao dano, à degradação e à violação, em âmbitos os mais
diversos (da alimentação à moradia, da saúde aos direitos de participa-
ção política), os “corpos precários” buscam construir no espaço público
possibilidades para algum nível de agência política.
sumário 242
os ataques violentos a gays, lésbicas e transexuais, grupos de lin-
chamento e, poderia acrescentar, as movimentações de massa da
extrema-direita demandando golpes e regimes autoritários, como vi-
mos recentemente no Brasil e em outras partes, são alguns exemplos
que corroboram com a reflexão da autora. Como assevera: “as as-
sembleias não são intrinsecamente boas nem intrinsecamente ruins,
mas assumem valores diferentes, dependendo do motivo pelo qual
se reúnem e de como essa reunião funciona. [...] Podemos no mínimo
dizer que as manifestações que têm como objetivo concretizar a justi-
ça e a igualdade são dignas de louvor” (ibidem, p. 138-139).
sumário 243
Afinal, “a vida exige apoio e umas condições capacitadoras para
poder ser uma vida vivível” (ibid, 2010, p. 40).
REFERÊNCIAS
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Presença/Martins Fontes, 1974
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AUSTIN, John. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990
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Petrópolis: Vozes, 1985
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BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas linguísticas. São Paulo:
EdUSP, 1998
BUTLER, Judith. Lenguaje, poder e identidad. Madrid:
Editorial Sintesis, 2004
BUTLER, Judith. Deshacer el género. Barcelona: Paidós, 2006a
BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos
Aires: Paidós, 2006b
BUTLER, Judith. Marcos de Guerra: las vidas lloradas. Buenos Aires:
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Cadernos de Ética e Filosofia Política (USP), Sao Paulo, 2013.
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Jorge Zahar, 1994
FOUCAULT, Michel. Le sujet et le pouvoir. In : Dits et écrits II. Paris:
Gallimard, 2001
FRASER, Nancy. Reconhecimento sem etica? Lua Nova, Sao Paulo, v. 70,
p. 101-138, 2007.
sumário 244
FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e ansiedade. Rio de Janeiro: Imago,
1976 (Obras Completas, v. XX)
HEGEL, Friedrich. Filosofia Real. Madrid: Fondo de Cultura Economica, 1984
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos
sociais. São Paulo: Ed.34, 2003
LACAN, Jacques. O seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
sumário 245
11
Capítulo 11
Diferença sexual e
abjeção: qual o gênero das
negras escravizadas?
Berenice Bento
Berenice Bento
Diferença
sexual e abjeção:
qual o gênero das negras
escravizadas?
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.11
INTRODUÇÃO
sumário 247
pesquisas sobre gêneros dissidentes. Lembro-me de que, em uma
conversa com uma historiadora, eu apontava os limites da concepção
de gênero de Joan Scott, uma vez que a diferença sexual entrava em
suas formulações como um dado e não como um problema. Essa cris-
talização da diferença sexual me levaria para os braços das teorias que
analisam as existências trans como transtorno. O argumento de minha
colega historiadora, em defesa do conceito, foi a sua utilidade em es-
tudos históricos. Naquele momento, esse argumento parece-me coe-
rente. No meu artigo “Gênero, uma categoria útil de análise?” (BENTO,
2022), no entanto, tento refutar esse argumento e aponto como a ca-
tegoria gênero em Scott está atravessada por uma visão eurocêntrica.
Dos exemplos que ela aciona à ausência da categoria raça, todo o
conceito pode servir exclusivamente para abordagens que invisibilizam
a existência de disputas internas aos gêneros, inclusive para corpos
que, embora tenham aparência de um determinado gênero, não são
reconhecidos como seus membros. A longa luta das mulheres negras
tem sido pelo reconhecimento de suas identidades de gênero, vincu-
lando-se historicamente ao passado das mulheres negras escraviza-
das. Entre os pontos que constituem essa agenda, destaca-se o direito
à maternidade. Ou seja, não basta compartilhar o mesmo campo do
dimorfismo sexual para que haja uma correspondência com o reco-
nhecimento ontológico, conforme tentarei discutir ao longo do artigo.
sumário 248
para os processos constitutivos das identidades de gênero, que nomeio
de universal, relacional de dois e plural. Essas perspectivas foram apre-
sentadas por meio de uma incursão histórico-teórica e o diálogo foi de-
senvolvido a partir de obras que considerei referências: as obras de Si-
mone Beauvoir (universal), Joan Scott (relacional de dois) e Judith Butler
(plural). Esse arranjo, no entanto, não obedeceu a qualquer intenção
de montar uma linha cronológica, uma história dos estudos de gênero.
Essas perspectivas seguem coabitando o mundo das teses, das dis-
sertações, dos movimentos sociais e das políticas públicas. No âmbito
das políticas de Estado, ainda se nota certa primazia da concepção uni-
versal, embora haja uma considerável problematização dessas políticas
por feministas que propõem políticas públicas com viés interseccional.
50 Para informações sobre os países em que as sexualidades e gêneros dissentes são con-
siderados crimes, cuja pena pode variar da prisão à pena de morte, acessar: https://www.
ilga-europe.org/.
sumário 249
movermos para abordagens analíticas que apostam na intersecciona-
lidade. No entanto, aqui se instaura um outro nó porque, ao se propor
a articulação de identidades para complexificar a análise, se realiza
essa operação por justaposição, como se as camadas de opressão,
ao serem combinadas por um hífen, fossem suficientes para descrever
as posições de exclusão e vulnerabilidades que se ocupa nas estrutu-
ras e estratificações sociais. Como entender que há corpos nos quais
as categorias que estamos articulando em nossas análises não os al-
cançam, ainda que se tenha a interseccionalidade como um pressu-
posto metodológico? Seria possível acionar esses marcadores como
“camadas que se sobrepõem” para interpretar níveis diferenciados de
desumanização para corpos construídos como abjetos?
sumário 250
discursos que anunciavam certa valorização desses mesmos corpos
por parlamentares defensores do projeto51?
51 Ariza (2021) aponta como parlamentares defensores do projeto de lei “ventre livre” irão apre-
sentar uma nova interpretação para a maternidade entre as mulheres negras escravizadas,
passando a atribuir qualidades antes só reconhecidas às mulheres brancas, a exemplo da
bondade, abnegação em favor do bem-estar dos filhos e das filhas. No entanto, antes de
1871, no contexto do debate sobre o tráfico negreiro (na década de 1820), se pode observar
que há textos que apresentam preocupações em relação ao cuidado das mulheres escravi-
zadas grávidas e com alta taxa de mortalidade infantil entre seus/suas filhos/filhas (Taunay,
2001). Nesse momento, há uma proto-valorização da maternidade negra.
sumário 251
ontológico52. Se é alterado um dos termos desse arranjo, altera-se a
totalidade. As múltiplas formas de se definir gênero não seriam mo-
dalidades do gênero, mas seria ela mesma outra substância53. Talvez
se possa argumentar que eu esteja acionando uma experiência que
está registrada no passado para apontar os limites de se utilizar meto-
dologicamente interseccionalidade-por-adição na contemporaneidade.
No entanto, as continuidades entre passado e presente seguem mo-
tivando compreensões e agendas diferenciadas entre os feminismos.
52 Não tenho como objetivo discutir a ficção das ontologias nesse artigo. Quando me referir ao
caráter ontologizante do gênero, distancio-me de concepções que pensam a constituição
do ser (nesse caso, o ser generificado) como uma substância. Dessa forma, aproximo-me
das discussões sobre a produção do ser nos marcos propostos pela teoria crítica (antologia
social), com destaque às formulações de Honneth (2003; 2018) e Butler (2015).
53 Não utilizo “substância” como um dado, uma coisa ou essência, mas processos históri-
cos e políticos que fazem o trabalho de substancializar as identidades.
sumário 252
GÊNERO E ESCRAVIDÃO
sumário 253
substância, de uma classe natural de ser” (BUTLER, 2010, p. 59). Es-
tamos diante da impossibilidade de se separar identidade de gênero
das práticas que fazem o gênero.
sumário 254
com “outras modalidades discursivas”, ainda parte de um dado: o gê-
nero existe, ainda que seja resultado de reiterações que performam os
gêneros. Estaria Sojourner Truth (2014) errada e tomada por delírios ao
perguntar “e eu não sou uma mulher?”, para uma plateia de homens que
silenciosamente deve ter respondido: “você é uma negra”?
sumário 255
sociais. Eles (homens e mulheres negros) já chegam nessa operação
com identidades de gênero, mas a inclusão da marca da diferença
anterior (a raça) os retira do gênero.
COMO TRANSFORMAR
PESSOAS EM COISAS
54 Pode-se argumentar que essa afirmação da falta de interesse pelo mundo das pessoas
escravizadas seja um erro, uma vez que a influência cultural de africanos/as está espa-
lhada em todos os níveis da sociedade brasileira (linguagem, comida, religião, música),
como reiteradamente apontou Gilberto Freyre. O que aparece na obra do sociólogo como
um encontro entre culturas, produzindo efeitos híbridos que caracterizam a identidade
nacional, foi resultado de resistências continuadas de africanos/as e seus/suas descentes
em solo brasileiro. A presença negra na cultura brasileira existe, apesar das políticas volta-
das para apagar o “cancro que o/a escravo representava”, como foi amplamente repetido
pelos parlamentares em 1871.
sumário 256
que a travessia do Atlântico representava. Não há escolha: “o passado
lentamente desapareceu com o passar dos anos, ou o choque de ser
escravizado o destruiu num só golpe. Quanto tempo levou para que a
língua materna fosse substituída pelo novo idioma?”. Não bastava co-
locar as pessoas em tumbeiros. A longa travessia do Atlântico obede-
cia a uma temporalidade necessária para trabalhar o esvaziamento da
alma, temporalidade que já tinha sido precedida pela captura, seguida
pelo tempo de espera em cativeiros imundos nos portos da costa afri-
cana até o embarque (HARTMAN, 2021; CONRAD, 1985).
55 Interessa-me aproximar das posições de Hannah Arendt no que se refere à relação entre
cidadania (sujeito de direitos políticos) e a produção do “humano” (negação do reconhe-
cimento político) como pura matéria biológica. No entanto, distancio-me de suas teses
quando, ao comparar o apátrida ao escravo, afirmará que seria preferível à condição
escrava porque esta tinha um lugar garantido nas leis, e sua importância era assegurada
nas estruturas sociais. Exatamente por razões inversas (não eram representados na lei e
eram corpos abjetos), me pergunto se não foram o eurocentrismo e o etnocentrismo da
filósofa que a levaram a concluir que “ser um escravo significava, afinal, ter uma qualidade
diferente, mas sempre com um lugar na sociedade; portanto, algo mais que a abstrata
nudez de ser unicamente humano e nada mais.” (Arendt, 2009, p. 331).
sumário 257
popular e nacional, sendo oprimida por déspotas estrangeiros
ou nativos. Toda a questão dos direitos humanos foi associada
à questão da emancipação (ARENDT, 2009, p. 324).
sumário 258
foge dos conceitos de representação56. Estava em curso a produção
microfísica de corpos abjetos (BENTO, 2021).
sumário 259
Robert Conrad recupera a descrição do mercado de pessoas
escravizadas em Valongo, no Rio de Janeiro, feita pelo Dr. F. J. T. Me-
yen, médico e naturalista do navio prussiano Princesa Louisa.
Visitamos os depósitos de escravos no Rio e encontramos mui-
tas centenas praticamente nus, os cabelos quase todos cor-
tados e parecendo objetos medonhos. Estavam sentados em
bancos baixos ou amontoados no chão, e sua aparência nos
fez estremecer. A maioria daqueles que vimos era de crianças,
e quase todos esses meninos e meninas tinham sido marcados
com ferro quente no peito ou em outras partes do corpo. Devido
à sujeira dos navios em que haviam sido trazidos e à má qua-
lidade de sua dieta (came salgada, toucinho e feijão), tinham
sido atacados por doenças cutâneas, que a princípio apareciam
em pequenas manchas e logo se transformavam em feridas ex-
tensas e corrosivas. Devido à fome e miséria a pele havia per-
dido sua aparência preta e lustrosa, e assim como as manchas
das erupções esbranquiçadas e cabeças raspadas, com suas
fisionomias estúpidas e pasmas, certamente pareciam criaturas
que dificilmente alguém gostaria de reconhecer próximo. Para
nosso espanto, encontramos no Rio pessoas reputadas pela
cultura e humanidade que friamente nos asseguraram que não
deveríamos supor que os negros pertenciam à raça humana.
De acordo com esses princípios extraordinários os escravos
eram (como alardeiam as pessoas no Rio) tratados muito bran-
damente. Deve-se ter vivido o bastante para estar acostumado
à sua miséria e degradação para compreender tal maneira de
falar (Dr. F. J. T. Meyen, In Conrad, 1985, p. 61).
sumário 260
mais terrível que o olho humano pode testemunhar. Pessoas
decentes não se atreviam a ir às janelas; os inexperientes aí
conheciam o que não sabiam e não deveriam saber; e tudo isso
era permitido sem qualquer restringi-o, e apenas para render o
ganho absurdo que os mercadores de escravos, seus donos,
obtinham por trazê-los à noite para os andares terrenos ou des-
pensas sob as casas em que viviam. Minha decisão foi a de que
quando os escravos fossem desembarcados na alfândega, de-
veriam ser enviados em botes ao lugar chamado Valongo, que
fica em um subúrbio da cidade, separado de todo o contato; e
que aí as muitas lojas e armazéns deveriam ser utilizados para
alojá-los. (Marquês de Lavradio, In Conrad, 1985, p. 58).
sumário 261
Vi hoje o Val Longo. É o mercado de escravos do Rio. Quase
todas as casas desta longuíssima rua são um depósito de es-
cravos. Passando pelas suas portas à noite, vi na maior parte
delas bancos colocados rente às paredes, nos quais filas de
jovens criaturas estavam sentadas, com as cabeças raspadas,
os corpos macilentos, tendo na pele sinais de sarna recente.
Em alguns lugares as pobres criaturas jazem sobre tapetes, evi-
dentemente muito fracos para sentarem-se (1956, p. 254-255).
sumário 262
Eram mulheres escravizadas e homens escravizados. A diferença se-
xual, contudo, não nos autoriza a afirmar que estamos diante de cor-
pos generificados, qualidade dos corpos inteligíveis. É como se, ao falar
“mulheres e homens escravizados”, eu os empurrasse para dentro da
humanidade, mas a condição escrava os expulsasse. A diferença sexual
é outro nome para a vida nua, vida desprovida de cultura. As pessoas
livres tinham gênero, as escravizadas, diferença sexual, uma diferença
que será valorizada exclusivamente para efeitos de mercantilização.
59 Não estou reivindicando ou propondo que os/as senhores/as vestissem as pessoas es-
cravizadas com as mesmas vestimentas que usavam, mas apontando que um corpo
vestido ou desnudo era um indicador de moralidade fundamental (no contexto da moral
cristã) que poderia aproximá-lo ou distanciá-lo do reconhecimento de humanidade. Man-
ter-se intencionalmente os corpos das pessoas escravizadas semidesnudos pode inferir
que esse era um mecanismo fundamental para realização da reiteração da abjeção.
sumário 263
Pouca importância tem sido dada ao processo ou às políticas de
produção da abjeção no contexto escravocrata. A proibição do uso de
sapatos, o controle do corte dos cabelos, o uso de trapos miseráveis
para cobrir parcialmente o corpo, as marcas a ferro e fogo com as ini-
ciais do/a proprietário/a, entram nas narrativas históricas como descri-
ção da desumanização. Contudo, não estamos diante de cenas descri-
tivas, mas produtoras continuadas da abjeção. O controle minucioso de
todas as performances dos corpos escravizados seria a garantia de que
a fronteira do humano não seria atravessada, que os corpos negros não
ousariam migrar de um território para outro. Aqueles/as que conseguiam
a alforria passariam a viver sob a égide de uma fiscalização e descon-
fiança permanentes. Os libertos nunca se tornaram livres. Suas vidas
eram reguladas por legislações específicas (CUNHA, 2012). Poderiam
ascender aos objetos que lhes garantiam certa passibilidade como se-
res humanos, mas deveriam carregar grudados aos seus corpos alguma
prova de que eram libertos, sob pena de serem interrogados nas ruas
por policiais ou por qualquer pessoa livre. Na ausência desses compro-
vantes, poderiam ser detidos em prisões (CUNHA, 2012).
CORPOS COBERTOS,
CORPOS HONRADOS
sumário 264
por ela, mediante o contrato do casamento60. Uma das penas para o
crime seria constituir família61. Apresento dois casos históricos, tendo
como ponto de unidade entre eles a discussão sobre a honra em mu-
lheres negras escravizadas. Elegi esses dois casos porque a honra é
um dos atributos fundamentais para as mulheres. O primeiro caso se
passa na Inglaterra, em 1791, e o segundo, em Olinda, em 1884.
60 O termo “defloramento” aparece no Código Penal de 1830, e definia o crime por estupro,
no artigo 219: “Deflorar mulher virgem, menor de 17 anos.” (Sartori, 2011).
61 Sobre o caso de Honorata, ver Bento (2022a; 2022b) e Nequete (1988).
sumário 265
à matriz de inteligibilidade local para que houvesse algum tipo de co-
moção e pedido de justiça. Ele caminha na contramão da tradução
cultural. A menina não era pura bios, não era pura diferença sexual.
Outras substâncias, além de sangue, carne, vísceras, a constituíam: ti-
nha honra e vergonha. Para salvar a jovem, o parlamentar a tornou uma
mulher cristã e ocidental. Negar-se a mostrar o seu corpo em público
seria a prova de que ela fora admitida na humanidade generificada.
sumário 266
contra estes senhores. Um dos raros casos em que a violência sexual
chegou aos tribunais foi o de Honorata. No mesmo dia em que fora
comprada, aos 12 anos de idade, foi estuprada por Henrique Ferreira
Fontes, seu novo senhor. Aquela criança que portava o nome da dig-
nidade e honraria não tinha honra. O juiz decide a favor do senhor,
pois a lei não previa a tipificação de estupro quando a violência fosse
cometida contra uma mulher escravizada.
O defloramento ou estupro, não compreendido no art. 222 do
Código Criminal, de uma escrava menor de dezessete anos por
seu senhor, é, sem dúvida, um ato contrário aos bons costumes,
imoral, revoltante e digno de severa punição; no entanto, porém,
da nossa legislação, escapa, infelizmente, à sanção penal. Re-
cife, 20.6.1884 (NEQUETE, 1988, p. 67).
64 Sobre honra, processos na justiça contra assassinatos motivados pela “lavagem da hon-
ra”, ver Caulfield (2000), Correa (1981), Morgan (2004) e Ramos (2012).
sumário 267
se refere e está circunscrita ao âmbito da família assentada na figura
do pai como o lócus do poder, para se referir à apropriação absoluta
dos corpos das mulheres escravizadas? Nesse âmbito, nos movemos
em um tipo de “patriarcado” sem pai? Se os homens livres tinham auto-
rização social para acessarem livremente os corpos das mulheres ne-
gras escravizadas e não eram submetidos a nenhum constrangimento
legal ou social para assumirem a paternidade e outras responsabilida-
des (por exemplo, casar-se com a vítima), pode-se utilizar o mesmo
conceito (patriarcado) para se referir a relações radicalmente distintas?
MITO DA SORORIDADE:
COROLÁRIO DO MITO
DA DEMOCRACIA RACIAL
65 Há uma discussão nos estudos de gênero inaugurada por Oyěwùmí (2021) sobre o caráter
eurocêntrico da categoria gênero e da impossibilidade de se compreender o funcionamento
da sociedade Iorubá acionando uma interpretação sobre o local que os corpos ocupam nas
estruturas sociais a partir da diferença sexual. O que estou propondo não é o deslocamento
para outras sociedades para negar o valor heurístico da categoria. Não é preciso ir aos
iorubás para se argumentar que a categoria gênero não alcança todas as relações sociais.
O não pertencimento dos corpos negros à ordem de gênero seria a prova de que gênero
tem sido usado para significar relações radicalmente diferentes. Conforme tentarei apontar,
a diferença sexual nunca foi o fundamento mediante o qual se distribui atos de reconheci-
mento de pertencimento a uma determinada identidade de gênero.
sumário 268
Essa concepção teórica termina por contribuir para a narrativa do
mito da sororidade. Esse tipo de prestidigitação epistemológica, pelo
caminho do gênero, reforça a ideologia oficial do Estado brasileiro: o
mito da democracia racial. É como se o mito da sororidade fosse a
expressão, na esfera do privado (lugar das mulheres), das relações
simétricas que acontecem na vida pública (espaço dos homens).
sumário 269
escravocratas estadunidenses que estupravam as mulheres negras
escravizadas, o forte (o senhor) torna-se fraco diante da tentação da
mulher negra. Ela seria a responsável, por suas artimanhas e nature-
za sedutora, por levar os senhores a perderem qualquer controle sob
suas ações. Freyre ocupa o lugar de porta-voz acadêmico da teoria
da sedução. Na aparente descrição da beleza, viço, juventude, ma-
lemolência da mucama, Freyre está nos conduzindo a concluir que a
sedução tinha origem nas escravizadas.
Há uma estrutura narrativa no texto que nos faz deslizar dos víncu-
los cúmplices aos de violência entre pessoas escravizadas e livres. Essa
é a urdidura fundamental da obra. Das confidências que as sinhazinhas
faziam às mucamas, aos olhos de negras boiando na sopa servido ao
esposo, Freyre nos faz esquecer que estamos diante de contextos de
radical assimetria de poder. A razão que levava sinhás a arrancar os
mamilos das negras escravizadas e servi-los em bandejas seria a beleza
e juventude das jovens negras. Movidas pela insegurança, as mulheres
brancas eram tomadas por uma inveja incontrolável que as fazia vender
ou deformar os rostos e corpos das “jovens negras”.
sumário 270
Estamos no centro do mundo feminino: ciúme, beleza, juven-
tude. São mulheres que estão disputando homens. Nessa economia
do desejo e sexo, as mulheres brancas freyrianas estão em desvanta-
gem porque envelhecem muito cedo, engordam e perdem qualquer
encanto que possa despertar a libido dos homens. Mas isso não pas-
sa, afinal, de assuntos femininos. Em alguns momentos, se odeiam.
Em outros, tecem segredos e cumplicidades. São esses movimentos
internos da obra que contribuem para obliterar o enquadramento no
qual aconteciam as descrições dos encontros. Não estamos diante de
mulheres com o mesmo capital de gênero ou, mesmo, com capitais de
gênero diferentes ou desiguais. As mulheres brancas tinham gênero,
as negras escravizadas, diferença sexual.
sumário 271
os preços mais elevados. O significante compartilhado (mulher ou ho-
mem) não irá produzir expectativas comuns66. O que sobrou de uma
possível aparência de humano, a diferença sexual, seria exclusivamen-
te possíveis formas de explorar os corpos. O dimorfismo em corpos
escravizados não os retira da condição de bios, ao contrário, é a pura
diferença sexual que os mantém na condição de vida nua.
66 A diferença sexual seria, portanto, um dos itens que comporia o preço final da peça.
Idade, saúde, presença/ausência de dentes são alguns dos itens que aparecem com
regularidade nos anúncios dos jornais de comercialização de gente no século XIX.
A diferença sexual, nesse contexto, cumpre outras funções que não podem ser lidas
como similares à diferença sexual de homens e mulheres brancas. Esses anúncios são
uma fonte interessante de pesquisa para se alcançar as expectativas em relação aos
homens e mulheres negras escravizadas (Telles, 2018).
67 Não há qualquer possibilidade de transformações políticas e sociais sem políticas de
aliança. O que estou sugerindo aqui é a impossibilidade de produzir um campo artificial
de identidade e unidade para, a partir daí, se propor agendas políticas. O caminho talvez
seja o inverso. Reconhecer as diferenças e, por elas, se estruturar possíveis canais de
diálogo e de pontos de unidade política.
sumário 272
QUAL O GÊNERO DA NECROBIOPOLÍTICA?
68 Embora o título da discussão nos Anais fosse “elemento servil”, quando os debates co-
meçam, a expressão “servil” desaparece e surge “escravidão” e “escravos”. Vale se per-
guntar por que os parlamentares não adotaram “elemento escravo”. Seria por algum tipo
de embaraço ou vergonha? “Servil” anunciaria a suposta diferença no tratamento que os
senhores davam às pessoas escravizadas que, segundo os parlamenteares, se caracte-
rizava pela bondade dos senhores?
sumário 273
para o país o fim da escravidão. Não há nomes ou histórias de vidas
das mulheres escravizadas, tampouco dos pais dos/as filhos/as. Ter-
minada a ordem do dia referente ao “elemento servil”, nos deslocamos
para a esfera do cuidado, das políticas públicas: aprovação de recur-
sos para as Santas Casas e para colégios, aprovação de pensões para
senhoras viúvas (com nome e sobrenome) de combatentes na Guerra
do Paraguai, alocação de recursos para construção de estradas69.
sumário 274
na Constituição de 1824 (embora sem direito ao voto): tinham nome,
sobrenome, geravam filhos/as, compunham famílias, tinham honra e
eram garantidoras da respeitabilidade da família no espaço público70.
70 Sobre a importância que a família irá assumir no projeto de nação a partir do final do
século XIX, ver Costa (1979).
71 Durante os debates do projeto da lei do ventre livre, argumentou-se que seria inconstitu-
cional libertar os filhos das mulheres escravizadas porque “as crias” seriam propriedade
privada e tudo derivado do seu corpo também pertenceria ao senhor. O contra-argumento
foi certeiro: não havia nada de inconstitucional no projeto, uma vez que não havia qual-
quer menção às pessoas escravizadas na Constituição de 1824. De fato, a Constituição
é destinada exclusivamente às pessoas nascidas livres.
sumário 275
brancas, pode-se argumentar. Essa capacidade reprodutiva não é da
mesma ordem. A diferença sexual das mulheres brancas está inserida
no gênero. Aliás, não está inserida, é gênero. Ao contrário das mulhe-
res negras escravizadas, a diferença sexual está apartada dos atribu-
tos socialmente construídos para definir feminilidade.
sumário 276
do Estado. Quando saímos da esfera da biopolítica para a necropo-
lítica, é preciso estarmos atentos/as ao deslizamento das categorias.
No escopo desse artigo, estou relacionando a necrobiopolítica com
o gênero. O reconhecimento das identidades de gênero desaparece
quando nos movemos no âmbito da necropolítica. Embora eu esteja
separando as duas esferas (bio e necro) para se analisar o enquadra-
mento das políticas do Estado, não é possível fazer essa separação.
CONCLUSÕES
72 As reflexões aqui esboçadas tiveram como eixo a relação entre negras escravizadas e
mulheres livres, mas acredito que é possível fazer aproximações com os debates sobre a
produção das existências trans.
sumário 277
dos feminismos negros tem na luta pelo reconhecimento da
identidade de gênero um ponto nodal de suas agendas73. Na
interseccionalidade-por-adição, é como se todos tivessem gê-
nero e bastaria fazer alguns entrecruzamentos e apontar: as
mulheres negras ocupam as posições mais desqualificadas no
mercado de trabalho e recebem os salários mais baixos. So-
mos levados a supor que a natureza da identidade de gênero
dessa mulher é alterada pela raça e pela classe. No entanto,
o que estou sugerindo é a necessidade de “darmos um passo
atrás” e problematizarmos essa operação. Por que não se utili-
za mulher-branca-periférica? Os corpos das mulheres brancas
continuam sem as marcas da raça. Se eu digo “mulher” e não
adiciono “negra”, sei que a referência se destina à mulher bran-
ca que segue sendo a universal do gênero feminino.
73 A luta contemporânea das mães (em sua grande maioria mulheres negras) que perdem
seus filhos contra o terrorismo do Estado é uma demanda por justiça que está em linha
de continuidade com a negação da identidade de gênero para as negras escravizadas.
sumário 278
estruturante das normas, sem inseri-la em contextos que irão
condicionar e determinar quem pode ser reconhecido como ho-
mem e mulher, reitera que a diferença sexual seria a definidora
nas posições dos corpos nas relações de gênero74.
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sumário 282
12
Capítulo 12
Engajamento, Escrita
e Gênero: a questão da
agência na escrita científica
Engajamento,
Escrita e Gênero:
a questão da agência
na escrita científica
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.12
INTRODUÇÃO
75 Para melhor compreender a discussão sobre a complexa relação entre lugar social e o de
pesquisador(a), recomendo: Questões teórico-epistemológicas à pesquisa social contem-
porânea: o pesquisador, o ator social e outros aspectos (CARDOSO; CARVALHO, 2018).
sumário 284
simbólica e sensível do texto, que ressalta a desconstrução de uma
pré-consciência sobre o sujeito universal da teoria do conhecimento.
sumário 285
A ESCRITA E O SUJEITO
OU O SUJEITO COMO ESCRITA
sumário 286
Nesse sentido, a experimentação na/da estilística butleriana rele-
va que existe um universo semântico insurgente e insubmisso no fazer
filosófico e epistêmico. Trata-se da circularidade. A escrita reúne, numa
forma espiralada, a meditação que precede as próprias notas. Ou seja,
o significado (experimentado) só existe – ao mesmo que transcende
– em relação àquilo que se projeta. Tal aspecto remete à vontade ca-
racteristicamente imaterial (BUTLER, 2015a) do discurso que, por sua
vez, relança o sujeito à circularidade da meditação, da própria cons-
ciência77. A insubmissão a qual recorre a autora, metaforiza a noção de
experimentação em sua escrita como algo que, ao passo que delimita
os limites discursivos da experiência, também denuncia os termos de
dada relação de poder, cultural e hegemonicamente estabelecida.
77 Quanto a esta noção, Butler (2017) observa que as descrições de Nietzsche sobre a
formação da consciência estão implicadas no discurso moral que ele descreve, já que
os termos que faz menção são efeitos da formação da consciência. Para tanto, a autora
retoma o pensamento de Michel Foucault como forma de explicar (e, ao mesmo tempo,
criticar o autor) a resistência psíquica ao poder como um efeito de poder, uma produção
discursiva que situa nos limites da normalização.
sumário 287
no ato da escrita, de revisitar, reanalisar e revisar de maneira circular as
condições a partir das quais o discurso emerge. Contra as premissas
unidimensionais, o relato de si é centralizado na estilística da autora
como um operador da transformação das verdades em êthos78.
78 Em ‘Relatar a si mesmo: crítica da violência ética’, Judith Butler dedica-se a refletir sobre a
complexa relação (e tensão) entre êthos coletivo e moral. Questiona sobre a instrumentali-
zação da violência como meio de manutenção do anacronismo que cerca o êthos coletivo
e adverte sobre a posição e formação do “eu” neste universo. Para tanto, desenvolve a
partir da crítica adorniana algumas questões que, para ela, permanecem sem resposta:
“em que consiste esse “eu”? Em que termos ele pode se apropriar da moral, ou melhor,
dar um relato de si mesmo?” (BUTLER, 2015b, p. 17-18).
79 Trata-se daquilo que, segundo Foucault (2001, p. 227): “tem a qualidade de transformar
o modo de ser de um indivíduo”. Assim, a verdade, no sentido etopoético, traduz-se na
“qualificação de enunciados como verdadeiros quando atuam como matrizes de consti-
tuição do êthos do sujeito, de sua maneira de ser” (CANDIOTTO, 2008, p. 95).
sumário 288
sequência, oferecendo, talvez, ligações causais ou pelo menos uma
estrutura narrativa” (BUTLER, 2015b, p. 88). Afinal, para ela, é a ence-
nação de si-mesmo que “funciona como ponto de apoio para a narra-
tiva” e, nesse sentido, impede o
[...] o erro da posição oposta, quando o “eu” se compreen-
de separado de suas condições sociais, quando é adotado
como pura imediaticidade, arbitrária e acidental, apartado de
suas condições sociais e históricas – as quais, afinal de con-
tas, constituem as condições gerais de seu próprio surgimento
(BUTLER, 2015b, p. 17).
sumário 289
ontológicos e epistemológicos destacados por ela estão presentes
não apenas perguntas, mas, sobretudo, chaves de desestabilização
e de subversão de estruturas opressivas do saber. Reside a potência
política dos corpos-que-narram, dos corpos-que-enunciam e impõem
ou invocam as suas existências radicalmente.
sumário 290
o que contará como realidade e o que não contará” (BUTLER, 2019,
p. 08). Nesses termos, a linha que alude a como e ao que pode ser fala-
do também funciona como um instrumento implícito de censura.
sumário 291
qual a desconstrução do lugar comum do ‘eu autor’ decorre de signos
diferenciais que desarticulam o ‘dentro’ e o ‘fora’ da suplementaridade
do texto, é um efeito sem causa. E, como sugere a autora, a referida
estrutura de ‘endereçamento’ tem a ver com o modo pelo qual somos
endereçados pelo(a) Outro(a) e, assim:
Essa obrigação é diferente da reabilitação do autor-sujeito per
se. Trata-se de um modo de resposta por algo ter sido ende-
reçado a mim, um comportamento em relação ao Outro so-
mente depois que o Outro exigiu algo de mim, me acusou de
ter falhado ou me pediu para assumir uma responsabilidade.
Essa é uma troca que não pode ser equiparada ao esquema
em que o sujeito está aqui como um tópico a ser interrogado
reflexivamente, e o Outro está lá, como um tema a ser alcan-
çado (BUTLER, 2019, p. 48).
O GÊNERO E OS LIMITES
DA ESCRITA CIENTÍFICA
sumário 292
acepção comum da palavra, e está inclinada a problematizar a des-
construção da razão a partir das margens.
sumário 293
escritura provoca. Optando-se, assim, por espaços da experiência e
diálogos (a)metodológicos, insurgentes, para além da mera disciplina,
preocupados com a palavra.
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sumário 295
13
Capítulo 13
Traduzindo a Travessia:
Judith Butler des-re-
territorializada e o queer
como saber nômade
Traduzindo
a Travessia:
Judith Butler
des-re-territorializada
e o queer como saber nômade
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.13
INTRODUÇÃO
81 ZADJERMANN, Paule. Judith Butler, Filósofa en todo Género. Arte France, 2006. Duração:
52min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KkB8O7-jGoM&feature=you-
tu.be acesso em 11 out. 2022.
82 BUTLER; SPIVAK (2007).
sumário 297
continua a fazer em Bodies that matter (1993) quando aprofunda o
conceito de abjeção. Ou em Precarios life (2004b) e Undoing Gender
(2004), ao evidenciar os limites do reconhecimento de corpos e vidas
vulneráveis que demandam reconhecimento como sujeitos que preci-
sam ter a sua humanidade e cidadania garantidas, como são os casos
das pessoas intersexos e dos detentos indefinidos de Guantánamo.
O TERRITÓRIO PODE
SE DESTERRITORIALIZAR
sumário 298
série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos
espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos (GUATTARI &
ROLNIK, 1996, p. 323).
sumário 299
Pode-se encontrar diferentes exemplos da amplitude geográfica
dos estudos queer como são os casos da Queer African Reader83, Eu-
rope Queer84 e ‘Queer’ Ásia85, redes de ativistas, estudiosos/as, acadê-
micos/as, performers e/ou artistas que mobilizam de alguma maneira a
perspectiva queer em seus continentes. Parece ser comum em todas
esses arranjos o interesse em problematizar contextualmente o queer,
isto é, não o aceitar como uma espécie de teoria industrial encaixante
de dissidências sexuais e de gênero locais de cada região, mas como
uma força produtiva capaz de levantar questões, além da demanda gay
e lésbica, nas lutas feministas, na agenda pública e na reivindicação
por garantia dos direitos humanos das minorias sexuais e de gênero.
A inserção e ressignificação da teoria queer nesses territórios estran-
geiros talvez tenha permitido o encontro de maneira não-hierárquica e,
portanto, bastante efetiva do corpo abjeto reconhecido como queer, ou
seja, o corpo que está nas fronteiras ou além dos limites da inteligibi-
lidade de gênero com o corpo negro africano e o corpo asiático, por
exemplo, que são atravessados por outras marcas: de classe, religiosas,
territoriais, etc., possibilitando assim, tanto uma mudança daquilo que se
pode compreender como sendo teoria queer quanto uma transformação
nas tensões sociais locais derivadas de novas produções filosóficas ca-
pazes de dar um sentido para o queer nesses outros territórios.
sumário 300
foram traduzidos para o português décadas após a publicação origi-
nal, como é o caso de “A vida psíquica do poder: teorias da sujeição”,
publicado originalmente em 1997 no Estados Unidos e no Brasil so-
mente em 201786. Possivelmente, não compreendemos Butler do mes-
mo modo dos/as leitores/as estadunidenses/as porque não lemos a
mesma Butler, afinal não se pode afirmar que todos que se interessam
pelo pensamento da autora leram os seus livros no original em inglês.
Não que isso seja negativo, os movimentos e significados importados
é que são diferentes porque o referencial temporal é outro.
O QUEER NÔMADE
86 Consultar a análise de Carla Rodrigues (2019) sobre o espaço temporal das publicações
no original e as traduções em português.
sumário 301
mas não bem embalado. Ao longo dos últimos anos, ele sofreu altera-
ções no momento de sua travessia, recepção e distribuição em terri-
tório estrangeiro, e pode ainda estar envolvido em constante exercício
de interpretação, contestação e tentativas de ressignificação. Assim, o
queer parece ser nômade, no sentido ofertado por Deleuze & Guattari:
O nômade não é de modo algum o migrante, pois o migrante vai
principalmente de um ponto a outro, ainda que este outro ponto
seja incerto, imprevisto ou mal localizado. Mas o nômade só vai
de um ponto a outro por consequência e necessidade de fato;
em princípio, os pontos são para ele alternâncias num trajeto
(DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 51).
sumário 302
Os estudos queer brasileiros compartilham os mesmos marca-
dores de significantes, de experiências de vida, de processos de sub-
jetivação com a teoria queer estadunidense? A resposta mais prudente
parece ser um não, mas as duas correntes teóricas não se entendem e
são entendidas como queer?
TRADUZINDO A TRAVESSIA
sumário 303
“trair” o texto, visto que é muito difícil que uma tradução seja totalmente
fiel ao original, pelo fato de algumas palavras não encontrarem signifi-
cados idênticos quando interpretados em outros idiomas.
sumário 304
com elas, é um corpo que adquiriu (ou melhor adquire, porque
esse processo é dinâmico e constante) inteligibilidade, inserindo-
-se no esquema hegemônico de significação (e “humanizando”
o sujeito). O tradutor traduz esse termo de formas bem diferentes
como: “gênero”, “categoria de gênero”, “traços de gênero”, “to-
mada em seu gênero”, “cujo gênero”, “de gênero”, “característi-
cas de gênero”, “seu gênero”, “marcas de gênero” (essa última
representando na página 27 também a expressão “mark of their
gender”. Aliás isso pode querer dizer que ela é uma boa tradução,
ou a melhor dentre as escolhidas por Renato Aguiar), nenhuma
das quais consegue abarcar o que o termo quer dizer, me parece
que o termo pressupõe uma construção, movimento, o que o tra-
dutor não conseguiu captar (GABRIEL, 2020, s/n).
sumário 305
[..] - Na página 148 temos um erro muito grosseiro: “reprodução
da matriz homossexual do desejo” deveria ser “matriz heteros-
sexual do desejo” (GABRIEL, 2020, s/n).
sumário 306
que as populações se tornem lamentáveis, não é necessário
conhecer a singularidade de cada pessoa que está em risco ou
que, na realidade, já foi submetida ao risco. Na verdade quer
dizer que a política precisa compreender a precariedade, como
uma condição compartilhada, e a condição precária como a
condição politicamente induzida que negaria uma igual exposi-
ção através da distribuição radicalmente desigual da riqueza e
das maneiras diferenciais de expor determinadas populações,
conceitualizadas de um ponto de vista racial e nacional, a uma
maior violência (BUTLER, 2015b, p. 50).
90 Precarious Life: The Power of Mourning and Violence é um título de livro de Butler publica-
do originalmente em 2004 e traduzido para o português em 2019 sob o título Vida Precária:
os poderes do luto e da violência.
sumário 307
em questão forma a palavra “happyness” que significa felicidade.
Nesse sentido, pode-se entender que a melhor tradução para pre-
cariousness seja mesmo precariedade. Já, o sufixo “Y” em inglês
quando adicionado a um substantivo pode gerar um adjetivo, por
exemplo: cloud (nuvem), cloudy (nublado); rain (chuva), rainy (chu-
voso); luck (sorte), lucky (sortudo); isto é, “precarity” poderia ser
traduzido também como precário ou talvez até como precarizado,
entretanto, a tradução de “precarity” para condição precária parece
conseguir abranger a intenção original da palavra. Ainda assim, é
intrigante o fato de Butler usar poucas vezes o termo “precarity”
ao longo de Frames of War (2009), “precarity” aparece apenas na
introdução e no primeiro parágrafo do primeiro capítulo. Apesar de
que em alguns momentos do início do texto, Butler associa a pre-
cariedade à condição precária, explicitando, por exemplo, que: [...]
“A concepção mais ou menos existencial da ‘precariedade’ está,
assim, ligada à noção mais especificamente política de ‘condição
precária’” (BUTLER, 2015b, p. 16), e também quando revela que:
A condição precária designa a condição politicamente indu-
zida na qual certas populações sofrem com redes sociais e
econômicas de apoio deficientes e ficam expostas de forma
diferenciada às violações, à violência e à morte. Essas popu-
lações estão mais expostas a doenças, pobreza, fome, deslo-
camentos e violência sem nenhuma proteção. A condição pre-
cária também caracteriza a condição politicamente induzida
de maximização da precariedade para populações expostas
à violência arbitrária do Estado que com frequência não têm
opção a não ser recorrer ao próprio Estado contra o qual pre-
cisam de proteção (BUTLER, 2015b, p. 46-47).
sumário 308
reconhecidas como precárias e que, portanto, são tomadas como
não merecedoras de proteção91.
91 Em Frames of War (2009), Butler usa o termo “precarity” quinze vezes ao longo do livro, já
o termo “precariousness” aparece setenta e uma vezes.
sumário 309
mais o termo “precarity” do que “precariousness”92. Apesar disso,
ela repete a definição formulada em Frames of War (2009):
“Precarity” designates that politically induced condition in which
certain populations suffer from failing social and economic networ-
ks of support more than others, and become differentially expo-
sed to injury, violence, and death. As I mentioned earlier, precarity
is thus the differential distribution of precariousness. Populations
that are differentially exposed suffer heightened risk of disease,
poverty, starvation, displacement, and vulnerability to violence wi-
thout adequate protection or redress” (BUTLER, 2015d, p. 33).
sumário 310
CONSIDERAÇÕES FINAIS
sumário 311
Em suma, a minha sugestão é que o pensamento de Judith
Butler e a teoria queer se expandiram ao longo do tempo em diferen-
tes áreas da produção acadêmica das ciências humanas no Brasil, ou
seja, os conceitos e discussões provocadas por Butler e os estudos
queer fizeram rizoma com a realidade brasileira, que não entraram so-
mente por uma porta, mas que foram capturados e ajudaram a cons-
truir corredores de pesquisas e campos de atuação, primeiramente,
nas universidades brasileiras, e posteriormente, nos movimentos so-
ciais de lutas em prol da população LGBTQIAP+.
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watch?v=KkB8O7-jGoM&feature=youtu.be acesso em 11 out. 2022.
sumário 314
Sobre os organizadores
sumário 315
Sobre os autores e as autoras
Berenice Bento
Professora associada do Programa de Pós-Graduação em Sociologia/UnB,
pesquisadora ID do CNPQ, pós-doutora pela CUNY/EUA e pesquisadora
visitante no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Publi-
ca em periódicos nacionais e internacionais e é autora de diversos livros.
Sua agenda de pesquisa está na intersecção de gênero, sexualidade, raça
e colonialismo. Foi agraciada em 2011 com o Prêmio Nacional dos Direitos
Humanos, da Presidência da República, maior honraria do Estado Brasileiro
para os defensores dos Direitos Humanos.
E-mail: [email protected]
sumário 316
Carolina Real Assis Ribeiro
Mestra em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Pon-
tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Graduada em Comu-
nicação Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Letras
pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
E-mail: [email protected]
Djalma Thürler
Doutor em Literatura Comparada, Professor Associado do IHAC/UFBA e Pro-
fessor Permanente do Pós-Cultura (UFBA). Investigador do NuCuS e Diretor
Artístico da ATeliê voadOR Teatro (https://www.atelievoadorteatro.com.br/), é
autor de vários artigos e capítulos de livros sobre teatro, temáticas LGBT+ e
queer nas artes e sobre políticas de enfrentamento da cena contemporânea
com foco na diversidade sexual e de gênero.
E-mail: [email protected]
sumário 317
Fernando Pocahy
Doutor em Educação, Professor Associado da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, docente do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Pro-
grama de Pós-Graduação em Psicologia Social. Líder do geni - estudos de
gênero e sexualidade. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, Jovem
Cientista do Nosso Estado (FAPERJ) e Procientista UERJ-FAPERJ.
E-mail: [email protected]
Marcelo Nogueira
Ator, cantor, produtor e doutorando do Pós-Cultura com bolsa de estudos da
FAPESB.
E-mail: [email protected]
Mariana Pombo
Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Gradua-
ção em Psicologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Graduou-se em Psicologia e em Comunicação Social na UFRJ, onde também
sumário 318
cursou mestrado em Comunicação e Cultura e doutorado em Teoria Psica-
nalítica. Realizou estágio de doutorado sanduíche na Université Paris Diderot
e pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da
UFRJ. É autora do livro A diferença sexual em mutação: subversões queer e
psicanalíticas (Calligraphie, 2021).
E-mail: [email protected]
sumário 319
Renata Pimentel
Nasceu no Recife, desde 2010 é docente no Departamento de Letras da Uni-
versidade Federal Rural de Pernambuco, na sede do Recife, mas atua como
professora há mais de trinta anos, tendo atuado também no Ensino Fundamen-
tal e Médio. É graduada em Letras pela Universidade Federal de Pernambu-
co (UFPE), com bacharelado em Pesquisa e bacharelado em Tradução (Lín-
gua e Literatura Francesa). Fez mestrado e doutorado em Teoria da Literatura,
também pela UFPE. É escritora, dramaturga, curadora em artes, roteirista e
cineasta e criadora-intérprete com formação em dança e teatro.
E-mail: [email protected]
Sherry Almeida
Nascida no Recife, é professora há mais de 20 anos, tendo trabalhado no En-
sino Básico e Superior da rede privada em Pernambuco e no sertão da Bah-
ia. É docente da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) desde
2009, quando atuou no curso de Letras da Unidade Acadêmica de Serra
Talhada, no sertão do Pajeú (PE), e desde 2013 é professora do Departa-
mento de Letras na sede da UFRPE no Recife. Possui doutorado e mestrado
em Teoria da Literatura e bacharelado em Crítica Literária pela Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE).
E-mail: [email protected]
Tiago Duque
Professor no Programa de Pós-Graduação em Educação do Campus do Pan-
tanal e na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – PQ nível 2
– Comitê de Assessoramento da Área de Educação/CA-EDU.
E-mail: [email protected]
sumário 320
Índice remissivo
sumário 321
G negras escravizadas 10, 17, 246, 248, 250,
gestores escolares 44 251, 252, 254, 255, 258, 264, 265, 266,
grupos sociais 93, 101 268, 270, 271, 272, 274, 275, 276, 277,
278
H normalização sexual 14, 100, 108, 109
hegemônico transfigurado 35 normas sociais 233, 234, 239, 291
heteronormativa 9, 15, 23, 26, 31, 40, 69,
O
101, 116, 160, 162, 172
heteronormatividade 40, 47, 48, 68, 69, 82, orientação ideológica 44
101, 123, 249 orientação sexual 146, 171, 172, 173, 191,
heteronormativo 44, 48 206, 211
heterossexuais 45, 46, 53, 67, 101, 104, P
106, 139, 161, 171, 247
padrões sociais 93
heterossexualidade compulsória 82, 103,
paisagem lésbica 173, 174, 175
161, 178, 195
paradigma científico 50, 51
historiadores essencialistas 211
parâmetros heteronormativos 23
homossexualidade 50, 59, 60, 63, 67, 69,
pedagogia confessional 14, 89
104, 107, 134, 171, 211, 215
pensamento pedagógico 90, 97
I perseguição militar 128
iconografia católica 14, 86 personagens femininas 15, 126, 164, 177,
identidade lésbica 60, 174 178, 322
identidade sexual 110, 111, 179 pessoas lésbicas 206, 211
identificações sexuais 55 plenitude espiritual 88, 129
igualdade natural 35 políticas queer 8, 12, 38
imperativos biológicos 249 políticos feministas 37
instituições educacionais 48 preconceito racial 168, 178
instituições educativas 94 predisposição sexual 103
instrumento transfóbico 107 processo educativo 44, 91
inteligibilidade humana 234 produção artística 128, 206
produções cinematográficas 187
L propriedade emocional 165
lógica heteronormativa 26, 31, 40
Q
M questões raciais 170
meninos gays 48, 50, 56, 69, 71
R
mitologia cristã 129
mulheres escritoras 14 racismo estrutural 165
múltiplas filosofias 229 realidade brasileira 18, 312
reconhecimento social 240
N redes sociais 55, 84, 137, 141, 151, 308
narrativa acadêmica 247 regime normativo 109, 110
narrativa documental 16 regime político 103
narrativa feminista 177 regulações sociais 104
sumário 322
relações sociais 52, 128, 165, 171, 183, T
226, 268, 275 teologia contemporânea 90
representações sociais ideológicas 236 teorias educacionais 46
S teóricas feministas 102
território escolar 9, 14, 98, 106, 111
sexo 14, 15, 44, 49, 70, 77, 79, 81, 83, 86,
território estrangeiro 18, 302, 304
100, 102, 103, 104, 106, 108, 109, 110,
tradicional associação 48
113, 114, 136, 142, 143, 144, 149, 153,
transformação social 23, 26, 35, 120, 281
154, 156, 158, 161, 164, 179, 202, 207,
transgressão social 14, 118
217, 236, 253, 268, 271, 276, 313
sexo biológico 49 V
sexualidade humana 44, 79 valoração cultural 236, 237, 240
sexualidades 8, 12, 13, 14, 23, 28, 43, 45, vida social 70, 235, 237
46, 73, 74, 75, 78, 81, 89, 90, 93, 102, 127, violência despendida 35
156, 177, 249, 301, 311 violência legítima 164
sexualidades lésbicas 8, 13, 43 violência masculina 170
sociedades complexas 235
submissão feminina 108
superioridade cultural 165
sumário 323