Teoria Queer e Contextos Sociais de Aprendizagem

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

T314

Teoria Queer e contextos sociais de aprendizagem/


Organizadores Mário de Faria Carvalho, André Luiz dos S. Paiva.
– São Paulo: Pimenta Cultural, 2023.

Livro em PDF

ISBN 978-65-5939-745-7
DOI 10.31560/pimentacultural/2023.97457

1. Educação. 2. Estudos Queer. 3. Gêneros. 4. Sexualidades. 5.


Cultura e educação. I. Carvalho, Daniela Cleusa de Jesus. II. Ilari,
Mayumi (Coordenadora). III. Ferraz, Daniel (Coordenador). IV. Título.

CDD: 370

Índice para catálogo sistemático:


I. Educação.
Jéssica Oliveira – Bibliotecária – CRB-034/2023
Copyright © Pimenta Cultural, alguns direitos reservados.
Copyright do texto © 2023 os autores e as autoras.
Copyright da edição © 2023 Pimenta Cultural.

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Imagens da capa Garrykillian, Javiguti, Freepik - Freepik
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André Luiz dos S. Paiva

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Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade Federal da Paraíba, Brasil
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Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil
PARECERISTAS E REVISORES(AS) POR PARES
Avaliadores e avaliadoras Ad-Hoc

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Universidade Luterana do Brasil, Brasil Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Alexandre João Appio Lucimar Romeu Fernandes
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil Instituto Politécnico de Bragança, Brasil
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Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Federal da Bahia, Brasil
Carlos Eduardo Damian Leite Michele de Oliveira Sampaio
Universidade de São Paulo, Brasil Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil
Catarina Prestes de Carvalho Pedro Augusto Paula do Carmo
Instituto Federal Sul-Rio-Grandense, Brasil Universidade Paulista, Brasil
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Elizabete de Paula Pacheco Thais Karina Souza do Nascimento
Universidade Federal de Uberlândia, Brasil Instituto de Ciências das Artes, Brasil
Elton Simomukay Viviane Gil da Silva Oliveira
Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil Universidade Federal do Amazonas, Brasil
Francisco Geová Goveia Silva Júnior Weyber Rodrigues de Souza
Universidade Potiguar, Brasil Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Brasil
Indiamaris Pereira William Roslindo Paranhos
Universidade do Vale do Itajaí, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

PARECER E REVISÃO POR PARES


Os textos que compõem esta obra foram submetidos para
avaliação do Conselho Editorial da Pimenta Cultural, bem
como revisados por pares, sendo indicados para a publicação.
Sumário

Introdução: interseções de aprendizagens


a partir das teorias e políticas queer................................................. 12
Mário de Faria Carvalho
André Luiz dos Santos Paiva

Seção 1

Aprendizagens queer e experiências subalternas

Capítulo 1

Concepções e criações acerca


das pedagogias queer: relato de experiência
na formação pós-graduada em Pernambuco................................... 20
André Luiz dos Santos Paiva
Mário de Faria Carvalho

Capítulo 2

“Lá eu podia ser quem eu quisesse ser”:


experiências de acolhimento de sexualidades
lésbicas no ambiente escolar........................................................... 43
Carolina Real Assis Ribeiro
Elizabeth Sara Lewis

Capítulo 3

Educação cristã e estudos de gênero:


em defesa de um diálogo fecundo................................................... 72
Luiz dos Santos Mattos Júnior
Perycles Emmanoel Gomes de Macedo
Marcelo Henrique Gonçalves de Miranda
Capítulo 4

Subversões queer no território escolar:


da normalização dos corpos à invenção
de novas normas de gênero............................................................. 98
Mariana Pombo

Capítulo 5

Terreiro da ginga: a sala de aula como


o lugar do jogo para “minar de dentro” e ser.................................. 115
Renata Pimentel
Sherry Almeida

Capítulo 6

A Teoria Queer vai ao banheiro:


reflexões currículo-pedagógicas
a partir de Mato Grosso do Sul....................................................... 135
Tiago Duque

Seção 2

Educação estética e Teoria Queer

Capítulo 7

“A cor púrpura” enquanto política


de desorientação heteronormativa.............................................. 160
Djalma Thürler
Marcelo Nogueira

Capítulo 8

F[r]icções do humano:
dissidências em cena..................................................................... 181
Fernando Pocahy
Capítulo 9

“Eu já queria ser o que eu sou”:


experiências, memórias e representações
travestis em Divinas Divas, de Leandra Leal................................... 204
Miguel Rodrigues de Sousa Neto

Seção 3

Aspectos teórico-metodológicos da Teoria Queer

Capítulo 10

Dependência, vulnerabilidade
e reconhecimento: ontologia e filosofia
política em Judith Butler................................................................. 225
Alipio De Sousa Filho

Capítulo 11

Diferença sexual e abjeção: qual o gênero


das negras escravizadas?.............................................................. 246
Berenice Bento

Capítulo 12

Engajamento, Escrita e Gênero:


a questão da agência na escrita científica...................................... 283
Fernando da Silva Cardoso
Mário de Faria Carvalho

Capítulo 13

Traduzindo a Travessia:
Judith Butler des-re-territorializada
e o queer como saber nômade...................................................... 296
Marcos Mariano Viana da Silva
Sobre os organizadores............................................................... 315

Sobre os autores e as autoras .................................................... 316

Índice remissivo............................................................................ 321


Introdução:
interseções de aprendizagens a partir
das teorias e políticas queer

Mário de Faria Carvalho

André Luiz dos Santos Paiva

No contexto brasileiro é notável a relação que o campo da Edu-


cação estabelece com a Teoria Queer. Isso ocorre desde o ingresso
sistemático dessas teorizações na academia brasileira, que podemos
identificar com as publicações pioneiras de Guacira Lopes Louro, até
a ampliação das aplicações e reinvenções da teoria, bem como dos
espaços educativos sobre os quais recaem as análises. Nesse sen-
tido, é compreensível que a Teoria Queer permaneça um referencial
importante quando das discussões acerca dos corpos, gêneros e
sexualidades em contextos educativos e de aprendizagem, e, além
disso, dos cruzamentos desses marcadores de diferença com ou-
tros, não tão vinculados ao queer inicialmente, mas que, como os
capítulos reunidos na presente obra demonstram, ganham cada vez
mais espaço devido à legítima e salutar reivindicação de estudos que
operem a partir de perspectivas interseccionais.

É provável que os maiores ganhos nesse campo de estudos


sejam advindos justamente de sua capacidade de modificação e in-
clusão de variados marcadores sociais que permitem tanto análises
mais integradas e politicamente potentes, como a manutenção do
sentido aberto defendido pelos estudos queer. Dessa forma, reúne-se
neste livro uma variedade de trabalhos que, tendo o queer como base,
irradiam em muitas direções. Assim, a depender do foco, encontra-
mos capítulos muito distintos que atestam que as relações entre Teo-
ria Queer e Educação ampliaram-se enormemente, exigindo, além de

sumário 12
leituras interseccionais, a ampliação da própria ideia do que viria a ser
queer e do que viria a ser educação.

Os capítulos foram divididos em três seções. Na primeira delas,


Aprendizagens queer e experiências subalternas, são apresentados tex-
tos que discutem a experiência queer em contextos formais de aprendi-
zagem pautando-se numa lógica de educação para as diferenças.

No primeiro capítulo, intitulado Concepções e criações acerca


das pedagogias queer: relato de experiência na formação pós-gradua-
da em Pernambuco, André Luiz dos Santos Paiva e Mário de Faria Car-
valho apresentam relato de experiência docente focado nas produções
artístico-acadêmicas de uma turma da pós-graduação em Educação
Contemporânea da Universidade Federal de Pernambuco. A partir das
produções discentes, os autores discutem as potencialidades das pe-
dagogias queer e de como essas foram apropriadas pelas pessoas
estudantes da turma em seus trabalhos acadêmicos.

Em seguida, no capítulo “Lá eu podia ser quem eu quisesse


ser”: experiências de acolhimento de sexualidades lésbicas no am-
biente escolar, de autoria de Carolina Real Assis Ribeiro e Elizabeth
Sara Lewis, parte-se de observações de uma das autoras como do-
cente em uma escola de Ensino Médio profissionalizante na cidade
do Rio de Janeiro para investigar, a partir de narrativas de duas ex-
-alunas dessa escola que se identificam como lésbicas, como elas
compreendem hoje a relação entre o processo de entender a sexua-
lidade e suas trajetórias escolares. Inserindo-se no campo da Análise
da Narrativa na Linguística, o trabalho teve como objetivo compreen-
der de que maneiras as alunas entrevistadas constroem verbalmente
a experiência do processo de saída do armário no contexto escolar
e, especialmente, como posicionam a si mesmas ao relatar esse pro-
cesso no contexto interacional das entrevistas.

Luiz dos Santos Mattos Júnior, Perycles Emmanoel Gomes de


Macedo e Marcelo Henrique Gonçalves de Miranda discutem em que

sumário 13
medida é possível pensar em aberturas para o estabelecimento de
um diálogo entre a educação confessional católica e os estudos de
gênero e sexualidades sob uma perspectiva da aprendizado com as
diferenças. Em Educação cristã e estudos de gênero: em defesa de um
diálogo fecundo, os autores partem da análise do dispositivo da ideo-
logia de gênero e da iconografia católica e apontam como, apesar do
cristianismo ser um campo discursivo que se transformou durante sua
história, é preciso reconhecer e preocupar-se com o caráter problemá-
tico e potencialmente nocivo que alguns grupos cristãos têm revelado.
Frente a isso, seria necessário a adoção de uma teologia afirmativa,
bem como a elaboração de uma pedagogia confessional afirmativa,
engajada nos debates a respeito de gêneros e sexualidades.

Já Mariana Pombo, em capítulo intitulado Subversões queer


no território escolar: da normalização dos corpos à invenção de novas
normas de gênero apresenta, em primeiro lugar, a proposta da teoria
queer de desconstrução de binarismos reducionistas, para, em se-
guida, realizar uma crítica ao processo de normalização sexual e de
gênero empreendido pela instituição escolar. Por fim, defende a pos-
sibilidade de vislumbre da escola como território potente para sub-
versões e ressignificações das normas de sexo e de gênero através,
principalmente, de sua abertura a modos de subjetivação minoritários
e acolhimento às diferenças, em vez da reafirmação de normas vio-
lentas de sexo e de gênero.

Em Terreiro da ginga: a sala de aula como o lugar do jogo para


“minar de dentro” e ser, Renata Pimentel e Sherry Almeida realizam a
crítica ao beletrismo do controle conservador da cisheteronormativida-
de branca, misógina, patriarcal, meritocrática, racista e fóbica. Nesse
sentido, as autoras apontam o silenciamento das experiências diver-
gentes, sequestradas pela colonialidade. Opondo-se a isso, e des-
tacando obras e experiências de mulheres escritoras brasileiras, as
autoras propõem uma pedagogia da dúvida que consolide a escola
como lugar privilegiado de ação e de transgressão social no jogo da

sumário 14
vida, propiciando um ensino de literatura que seja uma forma de ginga
antirracista, antifóbico, antimisógino, contra preconceitos às popula-
ções originárias, às classes trabalhadoras e à população do campo.

Encerrando a primeira seção, a partir da experiência de im-


plementação de banheiros neutros na Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, Tiago Duque, em A teoria queer vai ao banheiro: refle-
xões currículo-pedagógicas a partir de Mato Grosso do Sul, analisa as
repercussões dessa iniciativa, evidenciando como os banheiros põem
em funcionamento currículos e pedagogias que envolvem diferentes
relações de poder, instituições e experiências identitárias. A partir do le-
vantamento de dados em mídias digitais, o autor identifica característi-
cas topográficas e de ritmos na interação ou postagens mobilizadoras
de programas currículo-pedagógicos diversos. Nesse sentido, os ba-
nheiros apresentam-se como artefatos arquitetônicos-protéticos e cur-
rículo-pedagógicos que garantem parte da inteligibilidade de “sexo”,
gênero e sexualidade, de forma que o currículo do banheiro “neutro”
tem conceitos que rompem e, ao mesmo tempo, mantêm certa conti-
nuidade de sentidos em relação a “sexo”, gênero e sexualidade.

Passando à segunda seção da obra, Educação estética e Teoria


Queer, buscou-se a reunião de trabalhos que evidenciam como as ex-
pressões artísticas podem operar como ferramentas de aprendizagem
social queer para além dos contextos formais de educação.

Dessa forma, no capítulo “A cor púrpura” enquanto política de


desorientação heteronormativa, Djalma Thürler e Marcelo Nogueira
partem do que denominam de paisagens lésbicas em A Cor Púrpura –
O Musical, evidenciando como o espetáculo se constitui como espaço
reivindicador do desmoronamento da estrutura social heteronormati-
va e do direito performativo de aparecimento de corpos dissidentes e
da cultura queer, numa perspectiva lésbica e decolonial. Baseando-se
na ideia de scavenger methodology, lançam mão de diversas fontes
para análise do corpus, concluindo que em A Cor Púrpura, através da
reorientação das suas personagens femininas em algumas direções e

sumário 15
não noutras, da repetição de alguns gestos e não doutros, cria corpos
contorcidos, desobedientes que, ao “falharem” em reproduzir normas
como formas de vida, criam interessantes fluxos políticos e éticos.

Fernando Pocahy, em F[r]icções do humano: dissidências em


cena, apresenta uma experiência com filmes, na qual eles nos permi-
tem acompanhar algo das políticas de subjetivação do/no presente.
Através de um escrito-(auto)experimentação, o autor propõe a figura
da cartogenealogia como disposição ético-político-estético-episte-
mológica para a produção de entradas de problematização em pes-
quisa. Os resultados dessa experimentação sugerem rotas pós-críti-
cas sobre modos de produção e fixação da diferença, especialmente
desde seus efeitos de norma, abjeção e resistência. Assim, o autor
defende que certas obras incidem sobre um terreno pavimentado por
relações históricas e por um modo de pensar o desejo e a vida, pró-
prios à urgência e as convenções do seu tempo.

Partindo dos dados de violência cometidos contra pessoas tran-


sexuais, que culmina com a baixa expectativa de vida dessa população
no Brasil, Miguel Rodrigues de Sousa Neto, em “Eu já queria ser o que
sou”: experiências, memórias e representações travestis em Divinas Di-
vas de Leandra Leal, analisa o documentário Divinas Divas, no qual são
retratadas oito travestis e transformistas da terceira idade ligadas ao Tea-
tro Rival. O autor evidencia como no percurso do documentário o bina-
rismo dos gêneros aparece e se dissolve, ultrapassando a norma e de-
safiando o período no qual as protagonistas produziram-se inicialmente
como pessoas trans, a ditadura militar brasileira, de maneira que essas
artistas, ao simplesmente exercerem sua arte, no passado histórico e
no presente da narrativa documental, agiram contra a norma instalada.

Após esse capítulo, inicia-se a terceira seção, Aspectos teórico-


-metodológicos da Teoria Queer, que reúne capítulos de cunho teórico-
-epistemológico acerca da teoria queer no diálogo com as ciências hu-
manas, evidenciando as irradiações desse campo de saber, bem como
conceitos e aspectos relevantes para sua transformação e ampliação.

sumário 16
Em capítulo intitulado Dependência, vulnerabilidade e reconhe-
cimento – ontologia e filosofia política em Judith Butler, Alipio de Sousa
Filho realiza uma reflexão sobre os temas da dependência, vulnera-
bilidade e reconhecimento em Judith Butler. O autor defende que a
reflexão da filósofa em torno desses temas pode ser analisada a partir
de quatro questões principais: a dependência do ser humano a um
outro; de nossa permanente vulnerabilidade; das precariedades do
viver que aumentam essa vulnerabilidade; e o assunto do necessário
reconhecimento do “eu” por um “outro”, como consciência da fatal
interdependência humana e como consciência comprometida a su-
perar a vulnerabilidade e a precariedade da vida. Assim, esses temas
tornam-se os fundamentos de uma ontologia e de uma filosofia política
que faz de Butler uma filósofa de conceitos de grande força teórica e
pensadora de problemas sociais absolutamente incontornáveis hoje.

Em seguida, Berenice Bento, em Diferença sexual e abjeção:


qual o gênero das negras escravizadas? problematiza a concepção
de interseccionalidade-por-adição e aponta como a teoria da perfor-
matividade pode ajudar a compreender a relação entre os corpos de
mulheres livres e escravizadas. Para isso, a autora explicita como a
diferença sexual produziu uma falsa interpretação de que mulheres
livres e negras escravizadas habitavam o mesmo mundo ontológico
do gênero, quando em realidade as mulheres livres transitavam no
âmbito da biopolítica e as escravizadas na esfera da necropolítica,
as pessoas livres tinham gênero, as escravizadas, diferença sexual.
Dessa forma, o questionamento central do capítulo é acerca da onto-
logia das pessoas escravizadas que, não sendo consideradas pes-
soas, ainda assim, nas discussões gênero, foram assimiladas a um
estatuto ontológico que, de fato, não lhes incorporava.

Em Engajamento, escrita e gênero: a questão da agência na es-


crita científica, Fernando da Silva Cardoso e Mário de Faria Carvalho
problematizam algumas inquietações sob interpelações vivenciadas no
cotidiano sobre os limites da escrita científica. Os autores questionam,

sumário 17
assim, a figura do “eu autor”, os seus privilégios e a funcionalidade que
a palavra adquire para a criação de uma zona cinzenta do saber pre-
tensamente neutra. A partir de um olhar desconstrutivista recuperado
por Judith Butler da obra de Jacques Derrida, a hipótese introduzida é a
de que a opção por uma escrita baseada em uma linguagem que não
reifica o caráter neutro do gênero pode apresentar uma dinâmica que
perturba o idealismo do espírito científico moderno.

Por fim, partindo dos muitos territórios habitados por Judith Butler
e suas teorizações, Marcos Mariano Viana da Silva, em capítulo intitula-
do Traduzindo a travessia: Judith Butler des-re-territorializada e o queer
como saber nômade, pensa as obras de Butler e os estudos queer como
territórios que foram agenciados nos últimos anos no Brasil. Nesse sen-
tido, sofreram alterações no momento de sua travessia, recepção e dis-
tribuição em território estrangeiro, e podem ainda estar envolvidas em
constante exercício de interpretação, contestação e tentativas de ressig-
nificação, o que pode ser evidenciado pelas traduções das obras da fi-
lósofa, que apesar das possíveis querelas em seu processo de tradução
adentraram em diferentes áreas da produção acadêmica das ciências
humanas no Brasil, fazendo rizoma com a realidade brasileira.

sumário 18
Seção 1

Aprendizagens queer e
Seção 1
experiências subalternas

Aprendizagens
queer e experiências
subalternas
1
Capítulo 1

Concepções e criações
acerca das pedagogias
queer: relato de experiência
na formação pós-graduada
em Pernambuco

André Luiz dos Santos Paiva

Mário de Faria Carvalho


André Luiz dos Santos Paiva
Mário de Faria Carvalho

Concepções
e criações acerca
das pedagogias queer:
relato de experiência na formação
pós-graduada em Pernambuco
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.1
INTRODUÇÃO

O presente texto trata de relato de experiência docente ocorri-


da no Programa de Pós-graduação em Educação Contemporânea da
Universidade Federal de Pernambuco, Centro Acadêmico do Agreste,
no semestre letivo 2022.1. A disciplina ministrada denominou-se Peda-
gogias Queer e foi ofertada para estudantes de mestrado e doutorado
em formato remoto, com oito encontros de duas horas. O foco do rela-
to recairá nos trabalhos finais apresentados pelas pessoas discentes.

No início da disciplina, os formatos para a realização do trabalho


final foram expostos, sendo facultado às estudantes escolher entre as
seguintes opções: ensaio fotográfico comentado; curta-metragem fic-
cional; curta-metragem documental; roteiro de curta-metragem ficcional;
pintura ou escultura; ilustração; tirinha ou estória em quadrinhos; apre-
sentação de teatro, dança ou performance; entrevistas em vídeo ou es-
critas; texto literário de ficção; poesia; música; e artigo ou ensaio teórico.

A variedade de formatos possíveis foi justificada pela intenção


de colocar em prática algumas das potências das pedagogias queer,
no sentido de abertura para múltiplas formas de expressão que extra-
polassem o tradicional formato de artigo ou ensaio como trabalho final,
ainda que esse tenha sido mantido como opção, pelo entendimento
de que também é uma importante forma de expressão nos contextos
acadêmicos, e preferência de algumas pessoas da turma.

Os trabalhos que aqui aparecem são das estudantes que au-


torizaram expressamente sua utilização através de e-mail. A escolha
entre colocar o nome ou utilizar um pseudônimo também foi realizada
pelas participantes da disciplina, que em sua totalidade optaram pela
utilização do nome próprio. Manter os nomes no decurso do texto rela-
ciona-se com a compreensão de que, além de não haver prejuízos às
estudantes, tem-se a vantagem de reconhecimento dos discursos por
elas produzidos, em seus aspectos teóricos e artísticos.

sumário 21
É possível que as discussões realizadas no decorrer do semes-
tre tenham influenciado essa decisão, dado que em muitos momen-
tos os aparatos normativos dos contextos acadêmicos e escolares
foram postos em questão. Dessa forma, o paradigma da neutralidade
e objetividade foi sendo colocado em coabitação com uma lógica si-
tuada e contextual do conhecimento (HARAWAY, 1995) que amplia as
possibilidades epistêmicas e subjetivas nos processos de formação
e pesquisa acadêmica.

Evidentemente que os movimentos de abertura no que tange


às opções de formato de trabalho, bem como a identificação das
narrativas das estudantes como forma de reconhecer-se nas produ-
ções que muitas vezes trouxeram matizes pessoais de suas produ-
toras são pequenos movimentos de modificação, mas podem servir
para complexificar as relações instituídas nos contextos acadêmicos,
dado que as relações estabelecidas entre docente e discentes são
amostras sociais de realidade que tanto reforçam como podem ques-
tionar lógicas hegemônicas (SÁINZ, 2019).

Assim, a partir da prática docente, situada como realizada por


um homem cisgênero, branco e gay com trajetória de pesquisas vin-
culada aos estudos queer, não ocorre o apagamento dos locais de
privilégio enunciativo, tampouco a renúncia da posição de poder como
“autoridade da aula” (SÁINZ, 2019, p. 96), mas sim, como propõe Mer-
cedes Sáinz (2019), a tomada e explicitação da consciência desses
lugares, bem como sua instrumentalização para a tentativa de reequi-
libração das relações de poder.

Esse é um exercício proposto pelas pedagogias queer, que


deslocam o foco dos processos de ensino-aprendizagem de uma lógi-
ca normativa e tomam a diferença e a multiplicidade como parâmetro
para o pensar e o agir educativo (SÁINZ, 2019). Essa é uma perspec-
tiva que aos poucos ganha espaço e impacto na educação, juntamen-
te a outras concepções críticas e pós-críticas em educação, sendo
nesse contexto que o presente capítulo insere-se: como uma iniciativa

sumário 22
pontual e localizada, mas que, como advoga Guacira Louro (2012) em
relação a pequenos movimentos queer na educação, tem sua impor-
tância pela abertura a outras formas de atuação pedagógica.

O capítulo foi dividido em três seções. Na primeira delas, deli-


mita-se o conceito de pedagogia queer; na segunda, os trabalhos fi-
nais da disciplina são trazidos em diálogo com a teoria explicitando-se
como as políticas da diferença queer foram expressas no processo
de formação das estudantes; por fim, conclui-se com uma defesa de
construção de uma outra educação, engajada em processos de trans-
formação e reconhecimento das diferenças.

PEDAGOGIAS QUEER

Pensar a partir das experiências queer comumente apresenta-se


como um desafio epistemológico e político. Isso porque a característica
que mais se associa a essa concepção teórica e prática política é a do
questionamento das identidades. O gesto pós-identitário queer emerge
já na delimitação de seu nome, uma vez que essa passou pela apropria-
ção de um insulto com o intuito de questionar desde um gesto linguístico
uma estrutura social delimitada pelos parâmetros heteronormativos.

O termo queer como xingamento foi e é direcionado às pessoas


que vivenciavam experiências dissidentes de gênero e sexualidades,
produzindo uma injúria que alcança gays, lésbicas, pessoas trans, den-
tre outras identidades excluídas pela normatização heteronormativa.
A afirmação do xingamento teve como efeito uma reformulação do espa-
ço da injúria em direção a uma legitimação não fechada das diferenças e
suas potencialidades de questionamento e transformação social.

A partir dessas características, nota-se as dificuldades que


qualquer tentativa de delimitação do queer terá, num sentido de que

sumário 23
fechar o conceito muitas vezes poderá significar que esse perca seu
caráter disruptivo. Assim,
Na medida em que queer sinaliza para o estranho, para a con-
testação, para o que está fora-do-centro, seria incoerente supor
que a teoria se reduzisse a uma “aplicação” ou a uma extensão
de idéias fundadoras. Os teóricos e teóricas queer fazem um
uso próprio e transgressivo das proposições das quais se utili-
zam, geralmente para desarranjar e subverter noções e expec-
tativas (LOURO, 2001, p. 548).

Percebe-se com isso que a utilização do termo queer toma um


caráter estratégico para o pensamento e políticas pós-identitárias.
A manutenção da abertura é um dos focos dessa perspectiva, pois
ela permite a continuidade da força subversiva que torna possível a
reivindicação de uma estrutura social pautada numa lógica ética de
reconhecimento da diferença.

Essa reivindicação de reconhecimento necessariamente passa


pela recusa do condicionante da assimilação. “Queer representa cla-
ramente a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada e, por-
tanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora”
(LOURO, 2001, p. 546). A ambiguidade e a multiplicidade deixam de
ser vistas como características negativas para experiências que devem
ser padronizadas e passam a configurar a forma privilegiada de pro-
dução de subjetividades, o que leva não apenas a uma nova forma de
vislumbre de si, mas também da cultura, dos processos de produção
de conhecimento e, consequentemente, da educação (LOURO, 2001).

Quando do olhar sobre a educação escolar no encontro com as


concepções queer, o desafio apresenta-se ainda mais intenso. Isso ocor-
re devido ao caráter normativo predominante dos contextos escolares.
A escola é uma das instituições responsáveis por fixar categorias identitá-
rias, muitas das vezes pautadas em lógicas de opressão das diferenças,
tendo nessa função grande influência e privilégio (SÁINZ, 2019).

sumário 24
Na escola, os processos hegemônicos no que tange à relação
dos sujeitos com as diferenças reproduzem uma série de violências
sociais através de um cânone normativo que define quem está den-
tro e quem está fora das normas (SÁINZ, 2019). Nesse cenário, uma
questão que emerge é a de como seria possível pensar uma pedago-
gia queer, dado o caráter questionador e desconstrucionista que essa
perspectiva possui, uma vez que, “se, de um lado, o queer privilegia
estratégias desconstrutivas, a educação, por outro, adota a prescri-
ção” (LOURO, 2012, p. 366).

Essa foi uma inquietação presente no decurso da disciplina


de Pedagogias Queer objeto deste relato. Isso relaciona-se com a
preocupação legítima com o que fazer na prática docente cotidia-
na, lugar de atuação de muitas das pessoas integrantes da turma.
No decorrer do semestre alguns descaminhos puderam ser expli-
citados, num sentido da construção de diálogos que denotavam a
ampliação tanto do que se concebia como queer, como do que se
entende por pedagogias e educação.

As dificuldades em pensar-se uma pedagogia queer vai ceden-


do a partir de uma lógica antinormativa que, ao invés de pretender
gerar e manter identidades fixas, coloca essas identidades em risco
desde a educação. Trata-se de uma pedagogia que trabalha a partir da
incerteza e heterogeneidade, reivindicando a manutenção do caráter
aberto das identidades de gênero e sexualidade no encontro com ou-
tros marcadores sociais de opressão, que vão sendo questionados na
tentativa de produzir outras formas de educação (SÁINZ, 2019).
Uma tal pedagogia sugere o questionamento, a desnaturalização
e a incerteza como estratégias férteis e criativas para pensar qual-
quer dimensão da existência. A dúvida deixa de ser desconfortá-
vel e nociva para se tornar estimulante e produtiva. As questões
insolúveis não cessam as discussões, mas, em vez disso, su-
gerem a busca de outras perspectivas, incitam a formulação de
outras perguntas, provocam o posicionamento a partir de outro
lugar. Certamente, essas estratégias também acabam por contri-
buir na produção de um determinado ‘tipo’ de sujeito. Mas, neste

sumário 25
caso, longe de pretender atingir, finalmente, um modelo ideal,
esse sujeito – e essa pedagogia – assumem seu caráter intencio-
nalmente inconcluso e incompleto (LOURO, 2001, p. 552).

Pode-se afirmar que uma pedagogia queer apropria-se do lu-


gar necessário da crítica à instituição escolar, direcionando-se à sua
transformação num espaço de coabitação das diferenças. Nesse
contexto, as práticas educativas partiriam de incorreção educativa,
uma vez que, desde as margens e das experiências consideradas
anormais, reformulariam as lógicas normativas excludentes e violen-
tas de produção de subjetividades identificadas com a lógica hetero-
normativa (SÁINZ, 2019).

Uma pedagogia queer consiste no questionamento da lógica da


diversidade como alteridade, rompendo com a dicotomia entre iden-
tidade e diferença, na qual no máximo se tolera o diferente em nome
de uma perspectiva que ao delimitar o lugar da diversidade referenda
o lugar da norma, dado não ocorrer o reconhecimento das diferenças,
mas apenas sua inclusão exotizante (MISKOLCI, 2012).

O queer estabelece, assim, o constante movimento da impossi-


bilidade de delimitação perene de uma identidade específica, além de
evidenciar e combater os momentos de fixidez identitária que produzem
violências a partir de variadas modalidades de exclusão. Nesse sentido,
Entendido dentro da educação, haveria que se considerar o
queer como um adjetivo e como movimento, ação, como um
verbo: queerizar a escola, a sala de aula, o conhecimento, as
metodologias. Mais que uma definição ou uma teoria, seria
uma prática, uma pedagogia da resistência e da subversão
(SÁINZ, 2019, p. 58).

O queer no contexto escolar realizar-se-ia nas práticas cotidianas


de transformação social, sempre ampliando os lugares estabelecidos
pelos aparatos educativos hegemônicos e, nesse sentido, perceben-
do-se sempre o movimento necessário na reconstrução das práticas,
o caráter incerto das experiências e do fazer educativo e as brechas a
partir das quais se pode transformar a realidade.

sumário 26
POLÍTICAS DA DIFERENÇA
NA FORMAÇÃO PÓS-GRADUADA

Pensar as possibilidades das pedagogias queer exige olhar


para a produção das anormalidades, uma vez que é a construção do
outro como estranho ou abjeto que possibilita a consolidação de con-
textos sociais excludentes. Essa exclusão pode tanto adquirir a forma
da violência direta, como ser expressa através de invisibilizações e si-
lenciamentos dos sujeitos tidos por anormais.

No entanto, a anormalidade ocupa o paradoxal lugar de deli-


mitador dos limites do normal, ou seja, a anormalidade é constituti-
va do culturalmente instituído como normal (BUTLER, 2008). Nesse
momento, nota-se novamente a dinâmica de invisibilização operada
pelas normas hegemônicas, pois “os ‘normais’ negam-se a reconhe-
cer a presença da margem no centro como elemento estruturante e
indispensável. Daí as instituições eliminarem-na obsessivamente por
insultos, leis, castigos, assassinatos” (BENTO, 2011, p. 553).

Essa é a forma pela qual se consolida o espaço da abjeção, en-


tendido como aquilo que, enquanto permite a constituição dos limites da
normalidade, é estabelecido como o inominável para o campo da cultura
(BUTLER, 2008). As relações com as experiências abjetas configuram-
-se no campo social através da impossibilidade de reconhecimento das
experiências de diferença e consequente repulsa em relação a elas:
O abjeto é algo pelo que alguém sente horror ou repulsa como
se fosse poluidor ou impuro, a ponto de ser o contato com isso
temido como contaminador e nauseante. Acho que isso ajuda a
entender de onde brota a violência de um xingamento, de uma
injúria. Quando alguém xinga alguém de algo, por exemplo,
quando chama essa pessoa de “sapatão” ou “bicha”, não está
apenas dando um “nome” para esse outro, está julgando essa
pessoa e a classificando como objeto de nojo. A injúria classifi-
ca alguém como “poluidora”: como alguém de quem você quer
distância por temer ser contaminado (MISKOLCI, 2012, p. 40).

sumário 27
O essencialismo no campo dos gêneros e das sexualidades é
o que permite a defesa da lógica binária como a única possível. Essa
lógica, por sua vez, é criada e mantida a partir da reiteração dos có-
digos de masculinidade e feminilidade, sempre atrelados a um corpo
específico, uma vez que é a genitália o que definiria para a cultura qual
gênero se deve performativizar (BUTLER, 2008).

É contra essa lógica de produção e reprodução performativa


dos gêneros e da abjeção que se levantam as perspectivas queer. Não
num sentido de buscar a inclusão através da adequação às normas,
mas utilizando-se do lugar de abjeto para tensionar o campo normati-
vo que relegou a diferença às margens pretensamente não habitáveis
da cultura. O questionamento passa a ser o lugar privilegiado para o
pensar e agir. Essa posição de enfrentamento pode ser notada nas
poesias escritas pela estudante Maria Rita1:

Figura 1 – poesias de Maria Rita

1 Doutoranda e Mestra em Educação Contemporânea pela Universidade Federal de Per-


nambuco. Graduada em Direito e graduanda em Pedagogia.

sumário 28
Fonte: Maria Rita, 2022.

A estudante, em suas produções, evidenciou o questionamen-


to acerca do que viria a ser natural, reivindicando o questionamento
da norma como forma de ocupar o corpo e o mundo. Além disso,
o vislumbre dos processos de silenciamento, bem como as resis-
tências dali emergentes, permitem o questionamento dos discursos
hegemônicos e a produção de contradiscursos que emergem a partir
do paradigma das diferenças.

As poesias explicitam o lugar de embate no qual se colocam


as perspectivas queer, pois, para além do diagnóstico da operação
das normas, é indispensável o direcionamento do pensar e agir à
transformação das lógicas de opressão. Nesse sentido, a questão
da anormalidade é recolocada, ocupando não mais o lugar do que
deve ser afastado, mas estabelecendo-a como princípio organizativo
das lutas (SÁINZ, 2019).

sumário 29
Esse é um grande desafio quando pensamos na educação es-
colar, uma vez que na escola encontramos frequentemente o funciona-
mento de uma instituição comprometida com as normas de gênero e
sexualidade. Nesse contexto, torna-se importante pensar os processos
pelos quais muitas vezes a diferença é expulsa dos contextos escola-
res, dado frequentemente ocultado sob o termo geral e individualista
de evasão (BENTO, 2011).

Uma das experiências de dissidência de gênero que comumen-


te sofre com os processos de expulsão realizados pelas instituições
escolares é a trans. Esse foi o tema elegido por Sergivano2 em seu tra-
balho final de disciplina, unindo as discussões empreendidas nas au-
las com sua experiência profissional na gestão educacional. Em qua-
drinhos, o estudante expressou as dificuldades no percurso de uma
estudante transexual. Destaco dois dos quadrinhos que sintetizam a
intenção comunicativa do trabalho:

Figura 2 – quadros de “Meu reflexo”

2 Cientista Social e professor da educação básica em Caruaru/PE. Doutorando em Educa-


ção Contemporânea pela Universidade Federal de Pernambuco.

sumário 30
Fonte: Sergivano, 2022.

É notável a partir dos quadros acima como as práticas educa-


tivas escolares podem contribuir com a exclusão de estudantes que
não se adequam às normas hegemônicas de gênero e sexualidade.
Muitas vezes, as instituições formais de educação em seu interesse de
reprodução da lógica heteronormativa “levam a violências em direção
a quem não entra nos cânones normativos baseados no binarismo
masculino-feminino, provocando danos nas pessoas ao não verem le-
gitimadas suas realidades” (SÁINZ, 2019, p. 79).

Percebe-se, assim, as tensões que podem ocorrer no espaço


escolar quando do confronto com as experiências queer. Foi pensando
a partir dessas tensões e propondo questões mobilizadoras para a
ação que a estudante Allyne Combé3, em trabalho intitulado A escola
como lugar de diferença, propôs os seguintes versos:

3 Psicóloga especialista em Psicologia Organizacional. Preceptora de estágio em Psicolo-


gia em Caruaru/PE. Estudante temporária no Programa de Pós-graduação em Educação
Contemporânea da Universidade Federal de Pernambuco.

sumário 31
No ambiente escolar é fácil notar
Que se convive com muita diferença
Essa não escapa ao olhar, mas...
Passa a ser invisibilizada, tendo que se calar

Já dizia Bento, que desde o nascimento


Temos uma série de gostos e comportamentos
Que diante de um campo discursivo
servem para nortear

Mas, “os corpos não se conformam” Butler vem nos lembrar


E os processos continuam
Nas reiterações da norma a se perpetuar

Entre o normal e o patológico


Freud vai questionar...
E sobre a sexualidade
Novos discursos propagar

É bem verdade que sobre ela


Todos querem questionar
Reprimir, debater, subverter
Há um gozo afinal nesse saber

Mas há outro corpo, um outro


Sobre o qual nem mesmo o binarismo
Pode-se valer, haja vista estar além
Vivendo numa fronteira onde lhe convém

É possível então se questionar


O muito que ainda se tem que lutar
Nos rumos de uma educação
Que visa combater desigualdades?

É possível Queerizar a escola?


Essa não ouso responder
Mas posso torcer para como traz Miskolci
Um dia a escola ser um real instrumento de desconstrução

Na luta pela razão de ser quem se quiser ser


Sem ter que responder ou mesmo manter
Um padrão para se viver

Partindo do questionamento dos processos normativos, como


propõe Allyne Combé em sua poesia, é possível pensar outras possi-
bilidade e funções para a escola. Deve-se pensar esse espaço como

sumário 32
um lugar a ser disputado, dada sua importância na formação subjetiva
e social em nossa realidade e, por isso, com grande potencial transfor-
mador das realidades de opressão e exclusão das diferenças.

Nesse sentido, as mesmas instituições que são muitas vezes


apontadas como locais de violência podem atuar em direção ao re-
conhecimento das diferenças, permitindo às pessoas nelas inseridas
o desenvolvimento de um senso de si com maior valor, bem como o
engajamento nas questões vivenciadas por elas e por seus pares.

É a partir desse lugar de potência dos espaços formais de edu-


cação que Luís Massilon4, em conto intitulado Um café que não rolou,
apresenta a experiência de sua protagonista, uma personagem não
binária, quando do ingresso na universidade:
Após a entrada na Universidade, Rani, passou a assumir a
postura que lhe mais convinha em seus processos de reco-
nhecimento de si, deixou o cabelo e as unhas crescerem, pas-
sou a ter outros modos de se vestir e ganhou mais notoriedade
a partir da compreensão dos estudos queers, onde passou a
encontrar justificativas para as suas identificações. Em casa,
obviamente, a convivência passou a ser de embates, de en-
frentamentos, inclusive pareciam ser mais difíceis os momen-
tos em família do que a vivência em outros ambientes sociais,
onde também tinha duras provas para se manter em estado
emocional de equilíbrio e segurança.

Rani percebia através de seus estudos que a identidade, aquela


que a sociedade exigia como ponto de aceitação de corpos e
corpas, era algo que nos violentava quase sempre, mas que
era também necessária para nosso reconhecimento. Daí, por
todas as mudanças operadas em sua subjetivação, Rani toma-
va consciência de que esses movimentos de alterações do seu
modo de ser e agir eram, segundo o pensamento queer, com
o qual começou a ter certeza de quem era, movimentos de re-
sistência, e por isso os embates em família e nas instituições
que frequentava, a universidade, a igreja, que logo abandonou,
e o clube onde treinava vôlei, foram se tornando uma marca de
superação de tudo aquilo que limitava suas ações.

4 Psicólogo. Doutorando e Mestre em Educação Contemporânea pela Universidade Fede-


ral de Pernambuco.

sumário 33
O espaço da universidade, para a personagem, ao invés de
aparecer como lugar de reforço das lógicas opressivas pôde cons-
tituir-se como lugar de experiências e aprendizagens para a dife-
rença. Nota-se, com isso, como essas instituições podem contribuir
com o desmantelar das estruturas heteronormativas existentes na
educação, tornando esses espaços mais interessantes às experiên-
cias queer. É dessa forma que as pedagogias queer podem ser
compreendidas, como “[...] uma forma aberta, afetiva, estranha,
curiosa e demolidora de buscar maneiras de fugir da educação for-
mal e de poder criar, dentro dela, lugares de aprendizagem que nos
atravessem, que nos faça refletir sobre nosso lugar no mundo, que
nos permita ser” (SÁINZ, 2019, p. 64).

Foi também apostando nessas potências que o trabalho de Ma-


ria de Fátima Caldas5 foi apresentado, em quadrinhos intitulado Esco-
la: espaço de diálogo e respeito às diferenças a estudante expressa:

Figura 3 – Escola: espaço de diálogo e respeito às diferenças

5 Licenciada em Ciências – habilitação Matemática. Doutoranda em Educação Contempo-


rânea pela Universidade Federal de Pernambuco.

sumário 34
Fonte: Maria de Fátima Caldas, 2022.

São essas proposições que nos permitem interrogar acerca das


possibilidades e defender tentativas de utilização das pedagogias queer
nos contextos formais de educação. Com isso ganha importância repen-
sar o lugar ocupado pelas diferenças, uma vez que a igualdade entre as
pessoas integrantes das comunidades escolares não é realista, sendo
falsamente produzida através de silenciamentos e violações de variadas
formas. Nesse sentido, “não se trata de identificar ‘o estranho’ como ‘o
diferente’, mas de pensar que estranho é ser igual e na intensa e reite-
rada violência despendida para se produzir o hegemônico transfigurado
em uma igualdade natural” (BENTO, 2011, p. 556).

Essa recolocação impõe a modificação do paradigma da di-


versidade, muito ligado à tolerância, para o paradigma da diferença,
pautado na ideia de reconhecimento, pois é através deste que se pode
produzir movimentos de transformação social (MISKOLCI, 2012). A fi-
nalidade das pedagogias queer não se relacionam com a busca da
igualdade, mas do reconhecimento e da equidade, de forma que a
ideia de diversidade não se torne um eufemismo que reproduz lógicas
de desigualdade e opressão (SÁINZ, 2019).

Ao se pensar a partir da lógica de diferença, todos os sujeitos


envolvidos implicam-se e reconhecem-se como parte de um contexto
múltiplo, no qual ocorrem trocas diversas que modificam todas as pes-
soas envolvidas. Isso ocorre porque

sumário 35
Quando você lida com o diferente, você também se transforma, se
coloca em questão. Diversidade é “cada um no seu quadrado”:
uma perspectiva que compreende o Outro como incomensuravel-
mente distinto de nós e com o qual podemos conviver, mas sem
nos misturarmos a ele. Na perspectiva da diferença, estamos to-
dos implicados/as na criação desse Outro, e quanto mais nos rela-
cionamos com ele, o reconhecemos como parte de nós mesmos,
não apenas o toleramos, mas dialogamos com ele sabendo que
essa relação nos transformará (MISKOLCI, 2012, p. 15-6).

Essa possibilidade de transformação a partir das diferenças é


expressa na escultura realizada por Luciana Rodrigues6, que reconfi-
gurou uma obra clássica com a finalidade de questionar padrões he-
gemônicos na sociedade e suas representações:

Figura 4 – escultura sem nome

Fonte: Luciana Rodrigues, 2022.

6 Licenciada em Letras e em Arte-educação. Professora de Artes no ensino básico em Osasco/


SP. Mestranda em Educação Contemporânea pela Universidade Federal de Pernambuco.

sumário 36
A peça foi assim descrita pela estudante/escultora:
Nesse trabalho apresento a escultura, sem nome, feita em ar-
gila crua, com 18cm de altura, baseada na obra Pietá, de Mi-
chelangelo, que foi feita durante o período de transição final da
idade média, momento histórico da humanidade que lembra em
alguns fatos a atualidade. Nessa obra pretendo trazer a figura
do filho privado do direito de ser completo em sua sexualidade
e livre expressão de gênero. Questiono a base dos discursos
heteronormativos que constroem suas bases nos ditos valo-
res familiares, mas que, todavia, não reconhecem as pessoas
que fazem parte de movimentos sociais e políticos feministas,
LGBTQIA+, negros, indígenas que ultrapassem e transgridam
essas normas de manutenção da doutrinação milenar da social.
Na obra a figura da mão busca remeter à figura masculina como
a mãe, buscando construir uma personalidade queer, a ideia
do filho não ser fisicamente parecido com a mãe reforça esse
equilíbrio que surge das diferenças que são a base real de toda
sociedade. Nessa perspectiva, essa figura também carrega a
esperança de que as inquietações, as ações políticas e edu-
cativas da teoria ou pedagogia queer nos levarão a superação
das práticas cultuais preconceituosas e limitantes da capacida-
de humana de ser simplesmente “humano”.

Outro trabalho que explicita a diferença como paradigma para


pensar o pensamento e experiência queer, são os quadrinhos apre-
sentados pelo estudante Luiz Felipe7, que de uma forma lúdica e ex-
plicativa expõe como pensar o queer de forma aberta desde uma
lógica de reconhecimento:

Figura 5 – quadrinhos

7 Licenciado em Matemática. Mestrando em Educação Contemporânea pela Universidade


Federal de Pernambuco.

sumário 37
Fonte: Luiz Felipe, 2022.

É interessante notar como em todos os trabalhos aqui trazidos


para pensar as possibilidades das pedagogias queer, apesar de suas
diferenças de formato e foco, destacam-se os processos de diferença
como centrais. Percebe-se, assim, o potencial disruptivo do pensa-
mento e políticas queer no campo da educação formal, permitindo o
encontro entre uma instituição predominantemente associada às disci-
plinas e manutenção da ordem social com uma perspectiva que insere
uma outra demanda a essas instituições, pois
A demanda queer é a do reconhecimento sem assimilação, é
o desejo que resiste às imposições culturais dominantes. A re-
sistência à norma pode ser encarada como um sinal de desvio,

sumário 38
de anormalidade, de estranheza, mas também como a própria
base com a qual a escola pode trabalhar. Ao invés de punir, vi-
giar ou controlar aqueles e aquelas que rompem as normas que
buscam enquadrá-los, o educador e a educadora podem se
inspirar nessas expressões de dissidência para o próprio edu-
car. Em síntese, ao invés de ensinar e reproduzir a experiência
da abjeção, o processo de aprendizado pode ser de ressig-
nificação do estranho, do anormal como veículo de mudança
social e abertura para o futuro (MISKOLCI, 2012, p. 63).

PARA UMA OUTRA EDUCAÇÃO

Provavelmente a maior potência das pedagogias queer seja sua


capacidade de produzir interrogações em contextos marcados pela
necessidade de certezas e estabilidade. As pessoas educadoras são
convocadas a tomar parte num debate contemporâneo, questionar
suas práticas e recriar seus fazeres sem, para isso, haver uma receita
queer para a educação escolar e os currículos, o que torno o processo
ainda mais inquietante.
Efetivamente, os contornos de uma pedagogia ou de um currí-
culo queer não são os usuais: faltam-lhes as proposições e os
objetivos definidos, as indicações precisas do modo de agir,
as sugestões sobre as formas adequadas para ‘conduzir’ os/as
estudantes, a determinação do que ‘transmitir’. A teoria que lhes
serve de referência é desconcertante e provocativa. Tal como os
sujeitos de que fala, a teoria queer é, ao mesmo tempo, pertur-
badora, estranha e fascinante. Por tudo isso, ela parece arrisca-
da. E talvez seja mesmo... mas, seguramente, ela também faz
pensar (LOURO, 2001, p. 552).

A prática docente vê-se desafiada a abrir-se para a ambigui-


dade, incerteza e diferenças. Essas são as principais marcas para a
produção de uma educação queer, como foi possível notar nas expres-
sões dos trabalhos aqui expostos. Assim, as dinâmicas colocam-se
desde um questionamento diagnóstico do funcionamento hegemônico

sumário 39
das instituições escolares, até a inserção de proposições que desesta-
bilizem essa hegemonia, indo em direção à criação de novos espaços
para as aprendizagens, estabelecendo as salas de aula como lugares
de movimento e transformação (SÁINZ, 2019).

Isso denota o encontro entre a instituição escolar com os de-


mais dispositivos de nossa organização social. O que se percebe é
o intercâmbio de concepções que permitem à escola não apenas
reproduzir a heteronormatividade, mas também questioná-la. Daí a
importância de ter-se os ambientes escolares como espaços de dis-
puta e não de sua recusa como instituição central aos processos de
subjetivação contemporâneos.

Paulatinamente as discussões acerca das diferenças num viés


crítico, como o da teoria queer, adentram as escolas através das bre-
chas de curiosidade e engajamento político das pessoas que formam
essas instituições, isso permite a produção de contradiscursos que
se refletem desde o cotidiano escolar até as proposições de políticas
púbicas para a educação. As reflexões em direitos humanos numa
perspectiva ampla estabelecem-se como uma necessidade para do-
centes e pessoas gestoras que se propõem a pensar e agir seriamente
em relação aos processos de produção de diferença (BENTO, 2011).

Partindo disso, é possível o vislumbre de uma educação que ex-


trapola a escola, dada as profundas relações que essa tem com os apa-
ratos culturais que mantêm a lógica heteronormativa (MISKOLCI, 2012).
Nesse sentido, a abertura exercitada pela perspectiva queer deve ser
experimentada na escola sempre em contato com outros artefatos cul-
turais de educação não escolar, mantendo-se, como propôs o estudante
Márcio Rubens8 em quadrinhos, a concepção acerca do queer sempre
aberta, única forma de continuidade de seu potencial disruptivo.

8 Psicólogo e Mestre em Educação. Doutorando em Educação Contemporânea pela Uni-


versidade Federal de Pernambuco.

sumário 40
Figura 6 – O pote que não queria ser fechado

Fonte: Márcio Rubens, 2022.

sumário 41
REFERÊNCIAS
BENTO, Berenice. Na escola se aprende que a diferença faz a diferença.
Estudos Feministas, Florianópolis, v.19 n.2, p. 549-59, 2011.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de
identidade. 2ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
HARAWAY, Donna. SABERES LOCALIZADOS: a questão da ciência para o
feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu, Campinas, v.
5, p. 07-41, 1995.
LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer – uma política pós-identitária para a
educação. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 9, n.2, p. 541-53, 2001.
LOURO, Guacira Lopes. Os Estudos Queer e a Educação no Brasil:
articulações, tensões, resistências. Contemporânea, São Carlos, v. 2, n. 2, p.
363-369, 2012.
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo
Horizonte: Autêntica & UFOP, 2012.
SÁINZ, Mercedes Sánchez. Pedagogías queer – ¿Nos arriesgamos a hacer
otra educación?. Madrid: Catarata, 2019.

sumário 42
2
Capítulo 2

“Lá eu podia ser quem eu


quisesse ser”: experiências
de acolhimento de
sexualidades lésbicas
no ambiente escolar

Carolina Real Assis Ribeiro

Elizabeth Sara Lewis


Carolina Real Assis Ribeiro
Elizabeth Sara Lewis

“Lá eu podia ser


quem eu quisesse ser”:
experiências de acolhimento
de sexualidades lésbicas
no ambiente escolar

DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.2
INTRODUÇÃO

Crianças e adolescentes estabelecem a maior parte de suas re-


lações no ambiente escolar e é nele que, muitas vezes, se manifestam
os primeiros amores, os desejos sexuais e os conflitos pessoais que
eles podem representar. Apesar disso, ao longo da formação de pro-
fessores e gestores escolares pouco se debate sobre a afetividade e
a sexualidade des9 estudantes, exceto sob uma perspectiva biológica,
que prioriza aspectos relativos à reprodução e à saúde, sempre suge-
rindo a ideia do sexo como uma experiência permeada pelo risco.

Entre planos de aula, grades horárias, matrizes curriculares,


distribuição de salas, calendários de avaliação e tantas outras formas
de sistematizar, normatizar e classificar o processo educativo, as pes-
soas que constituem a comunidade escolar vivem, se relacionam e se
tensionam, de modo que aquilo que transborda a estrutura planejada
é o que, de fato, dá forma à experiência escolar. Assim, apesar das
tentativas de grupos de orientação ideológica conservadora – como
o Escola sem Partido – de limitar as possibilidades de abordagem a
respeito da sexualidade humana na escola, esse tema é inescapável
no cotidiano escolar e gera tensões especiais por ser um possível
motivo de conflito entre a escola e as famílias.

Ainda que as escolas tratem como tabu toda expressão de de-


sejo sexual de crianças e adolescentes, o desafio é maior quando se
trata de expressões da sexualidade que não correspondem ao padrão
heteronormativo. Nesse caso, é comum que a moralidade LGBTfóbica

9 Optamos por usar a “linguagem neutra” ou “não-binária” para não reforçar o binário de
gênero, consoante a perspectiva das Teorias Queer, e para melhor incluir diversas iden-
tidades de gênero que nele não se encaixam. Por isso, termos como “es alunes” em vez
de “os/as alunos/as” aparecerão ao longo do texto. A escolha pelo “e” no lugar do “x” é
devido a seu potencial de mudança linguístico-social. Já que palavras como “alunxs” não
são pronunciáveis, acabam ficando restritas à escrita, enquanto palavras como “alunes”
podem ser empregadas no discurso escrito e oral. Como as mudanças linguísticas ten-
dem a surgir e se concretizar na fala, a escolha de usar o “e” não somente contribui para
desestabilizar o binário de gênero dentro das páginas deste capítulo, mas também para
fomentar a mudança linguística de forma mais geral.

sumário 44
seja incorporada às regras escolares e as tornem mais rigorosas em
relação às manifestações de afeto, atingindo até mesmo as heteros-
sexuais, em geral mais toleradas. Paradoxalmente, é também na es-
cola que, muitas vezes, es adolescentes têm mais oportunidades e se
sentem mais livres para vivenciar suas relações afetivas, pressionando
a comunidade escolar a encontrar caminhos para que a convivência
se mantenha harmoniosa e mesmo para que es discentes não sofram
opressões devido às suas identificações de gênero ou sexualidade.

Neste capítulo, uma das autoras parte de suas observações


como docente em uma escola de Ensino Médio profissionalizante na
cidade do Rio de Janeiro para investigar, a partir de narrativas de duas
ex-alunas dessa escola que se identificam como lésbicas, como elas
compreendem hoje a relação entre o processo de entender a sexuali-
dade e suas trajetórias escolares. A pesquisa, que se insere no campo
da Análise da Narrativa na Linguística e também dialoga com outras
áreas como a Educação, teve como objetivo compreender de que ma-
neiras as alunas entrevistadas constroem verbalmente a experiência
do processo de saída do armário no contexto escolar e, especialmen-
te, como posicionam a si mesmas ao relatar esse processo no con-
texto interacional da entrevista. Em uma perspectiva mais abrangente,
pretendemos também, a partir da escuta dessas histórias, obter pistas
sobre como diferentes ambientes escolares proporcionam vivências
mais ou menos positivas e diversas ao longo do percurso de identifi-
cação com sexualidades não heterossexuais.

A maior parte da literatura acadêmica sobre as experiências


de pessoas não cisgêneras e/ou não heterossexuais nas escolas
foca em dificuldades, bullying e sofrimento, embora alguns estudos
(RANNIERY, 2017; TORRES, 2022) tenham mostrado que outras ex-
periências mais positivas são possíveis. Ao mesmo tempo, há pou-
cos estudos sobre as vivências de lésbicas nas escolas, e aqueles
que existem tendem também a focar em questões de discriminação
e sofrimento (ver, por exemplo, CAVALEIRO, 2009). A única exceção

sumário 45
que encontramos é um artigo de Torres (2022), que embora discuta
bastante questões de vigilância e controle de gêneros e sexualidades
no âmbito escolar, também aponta que a escola pode ser um lugar
para a criação de laços entre alunas lésbicas e para compreender
identificações de gênero e sexualidade. Desta maneira, o presente
capítulo pretende contribuir para preencher duas lacunas na literatura
acadêmica: a falta de estudos sobre lésbicas e sobre experiências
positivas de pessoas não heterossexuais nas escolas.

As narrativas serão analisadas com base nas categorias pro-


postas por Labov (1967) e Labov e Waletsky (1972) e na teoria do
posicionamento articulada por Davies e Harré (1990) e Bamberg (1997;
2002). Os estudos sobre performatividade de gênero (BUTLER, 2019;
2021), narrativas de saída do armário (LEWIS, 2012) e educação e se-
xualidade (LOURO, 2000; RANNIERY, 2017) constituem a base teórica
a partir da qual a análise será desenvolvida.

CURRÍCULO GENERIFICADO
E POLÍTICAS DE RECONHECIMENTO

Em seu artigo Corpo, Escola e Identidade, Guacira Lopes Lou-


ro defende que as teorias educacionais modernas que fundamentam
a formação docente ignoram o corpo e parecem supor que os pen-
samentos e as operações conceituais “fluem de seres incorpóreos”
(2000, p. 60). Por outro lado, no entanto, os processos de escolari-
zação, historicamente, sempre se basearam no disciplinamento dos
corpos, restringindo e modelando movimentos de meninos e meninas
e obtendo um ambiente adequado e controlado para o disciplinamento
das mentes. Assim, na educação, o corpo não apenas é apartado da
mente, mas está também sob constante suspeita (LOURO, 2000).

sumário 46
Na instituição escolar, aponta a autora, a produção da hete-
ronormatividade acontece não apenas por meio dos conteúdos das
disciplinas criados sob uma perspectiva masculina e eurocêntrica,
mas também através dos subtextos presentes nas formas de organi-
zação escolar: nas divisões dos grupos, dos banheiros ou nos papeis
sociais que são esperados de meninos e meninas. A partir de relatos
de pesquisas realizadas em escolas entre os anos 1990 e o início dos
anos 2000, Louro (2000) demonstra como a reprodução dos estereó-
tipos de gênero e de sexualidade se efetivam na própria dinâmica de
socialização des estudantes e como o ambiente escolar, mesmo que
permeado pela fluidez que caracteriza a vivência da sexualidade, é
cenário privilegiado para a “demarcação das fronteiras” que separam
a norma da identidade desviante ou marcada.

A importante contribuição de Louro para a compreensão das


formas de reprodução da heteronormatividade no ambiente escolar
no Brasil na virada do século pode ser, no entanto, submetida a revi-
são se considerarmos as importantes mudanças que acontecem pau-
latinamente em nossa sociedade, sobretudo entre os jovens. Thiago
Ranniery, em seu artigo Currículo, normalidade e políticas de reconhe-
cimento (2017), contesta a ideia bastante presente no pensamento so-
bre o currículo segundo a qual a escola seria um “campo de guerra,
no qual um dos lados já teria perdido”. Sob essa perspectiva, a escola
seria um “espelho da sociedade” e, no campo da sexualidade, ope-
raria como reprodutora da heteronormatividade, contribuindo para um
“projeto de normalização dos corpos” (2017, p. 4). O autor propõe, em
contraposição, um olhar para o currículo que considere a agentividade
dos sujeitos envolvidos na comunidade escolar e escape de um olhar
paternalista que, ao subjugar a capacidade de ação das pessoas, se
aproxima da lógica reprodutivista à qual pretende se opor.

No cerne dessa mudança de ponto de vista defendida por Ran-


niery (2017), está a teoria da performatividade de Butler (2019, 2021),
que também promove um deslocamento do olhar a respeito de gênero

sumário 47
e sexualidade em direção à busca pelos mecanismos de agentividade
dissonante em meio aos processos de reprodução da heteronorma-
tividade. Dedicado a pensar como as trajetórias escolares de meni-
nos gays interpelam as redes de poder nas instituições educacionais,
Ranniery propõe uma perspectiva sobre o currículo que ultrapassa a
tradicional associação com o ensino e o conhecimento e inclui toda
a trama de relações que se estabelecem nas escolas e a partir delas.

Ao analisar trajetórias de “meninos gays”10 em escolas de En-


sino Médio de Aracaju, Ranniery (2017) identifica que as experiências
relatadas por eles não corroboram a visão de um ambiente escolar
que reprime os corpos e impõe os parâmetros da heteronormatividade.
Pelo contrário, o que esses adolescentes descrevem é um lugar onde
eles tinham espaço e liberdade para experimentar formas de expres-
são que desejavam e que rompiam com os padrões de comportamen-
to associados à masculinidade.

Ranniery (2017) entende que o currículo opera através da pró-


pria existência dos “meninos gays”, existência aqui compreendida no
sentido do habitar e agir no mundo ao longo do tempo. Os modos de
vida desses meninos, da mesma forma que são atravessados pelo
paradigma heteronormativo, pressionam por constantes adaptações
da linguagem a partir da qual a escola e a sociedade inteligibilizam
as potencialmente infinitas maneiras de experimentar gênero e sexua-
lidade. Assim, em sua pesquisa a partir das vidas de três “meninos
gays” estudantes do Ensino Médio em Aracaju, Ranniery identifica
que suas existências na escola são valorizadas por serem vistos
como bons alunos, o que é determinante para que sejam reconheci-
das e reinscritas dentro do sistema de significados circulantes nesse
território interseccional do currículo e do gênero.

10 Em seu artigo, Ranniery opta por usar as aspas ao tratar os entrevistados por “meni-
nos gays” por entender que, embora esse seja o termo que circula nas escolas e por
isso o tenha escolhido para categorizá-los, ele não dá conta das formas de existência
desses e de outros meninos. Assim, as aspas têm, nessa ocasião, a função de pro-
duzir um efeito desnaturalizador e demonstrar o caráter limitante dos termos usados
para descrever gênero e sexualidade.

sumário 48
A inteligibilidade destas existências já irrecusáveis é atribuída,
percebe Ranniery (2017), a partir da categoria “menino gay”, através
da qual se apaziguam as tensões criadas pela não identificação en-
tre os parâmetros de gênero, desejo sexual e “sexo biológico”. Esse
reenquadramento no campo do gênero não acontece, no entanto,
sem estar acompanhado de outros movimentos de produção de sen-
tido em torno dessas vidas:
Com efeito, quando são nomeados, tipificados e caracterizados,
esses corpos não são apenas objeto de descrições e diferen-
ciações pretensamente dadas, mas discriminados no sentido
de que são alvo de investimentos discursivos que pressupõem,
valorizam e produzem experiências de subjetivação que generi-
ficam e sexualizam corpos (RANNIERY, 2017, p. 13-14).

Aos olhos des professores, esses meninos absorvem atributos


positivos ideologicamente associados à feminilidade, como o capricho
e o bom desempenho escolar, que para eles se apresentam associa-
das ao “talento”, em contraste com as meninas que são vistas como
“passivas” (RANNIERY, 2017, p. 16). Assim, com a categoria “gay” as
marcas de gênero se sobrepõem à sexualidade, ao mesmo tempo em
que a assimilam, antes mesmo que esses meninos iniciem suas vidas
sexuais, ressalta Ranniery. Esse autor destaca que o atributo do “bom
aluno” associado às suas marcas de gênero permite que a relação
entre o “gay” e o “feminino” não seja incluída no campo da abjeção.
Assim, a existência insistente desses indivíduos que incorporam a flui-
dez de gênero no ambiente escolar desestabiliza e constrange a matriz
discursiva sobre a qual se ergue o currículo tradicional. A categoria
“menino gay” viria, então, aplacar essa tensão já inescapável e rein-
corporar esses alunos à malha de sentidos que compõem a escola.

Em sintonia com a perspectiva de Butler (2019, 2021), Ranniery


(2017) insiste que não devemos supor que as experiências desses
meninos aconteçam de forma paralela às normas ou apesar delas,
mas que se efetuam através e por meio delas, tensionando-as e,
como vimos, criando horizontes normativos. Nas palavras do autor
sobre os meninos entrevistados:

sumário 49
[...] seus corpos desvelam como as normas funcionam, ao
mesmo tempo, como campo de sujeição e fonte de agência,
apontando para a necessidade de uma analítica da normati-
vidade menos estreita, que dê conta da multiplicidade da sua
incrustração na vida e evite a saída apressada de que ou os cor-
pos foram totalmente subsumidos pelas normas, ou só existem
quando são capazes de enfrentá-las (RANNIERY, 2017, p. 18).

Olhando para as trajetórias desses “meninos gays” e os discur-


sos sobre elas, Ranniery identifica que elas não se enquadram na pers-
pectiva que compreende a experiência da homossexualidade a partir
do paradigma da violência e que vemos em curso uma atualização
das políticas de reconhecimento operadas pelos currículos. A partir
da reiteração dos atributos que os constituem como uma categoria
específica de indivíduos no ambiente escolar, os “meninos gays” con-
quistam seus lugares de reconhecimento desviando das tradicionais
associações à posição de vítima de violência.

ESTUDOS DA NARRATIVA
E POSICIONAMENTOS

Desde as últimas décadas do século XX, diversas áreas das


ciências humanas têm se voltado para os estudos das narrativas como
um meio de compreensão dos fenômenos sociais e subjetivos. Esse
movimento, conhecido como virada narrativa, decorre de uma mudan-
ça de perspectiva entre parte des pesquisadores das ciências huma-
nas que criticavam o paradigma científico vigente, de caráter positivis-
ta, pautado por métodos quantificadores e de pretensão generalizante
advindos das ciências exatas. Fenômeno da sociabilidade humana
amplamente difundido nos mais diversos contextos culturais, a narra-
tiva forneceria um extenso material para a compreensão das maneiras
de viver as experiências e de compartilhá-las, sem ignorar a complexi-
dade que lhes é própria (BASTOS, 2005).

sumário 50
Os estudos da narrativa se originaram no âmbito da sociolin-
guística interacional e têm como marco os trabalhos pioneiros de La-
bov (1972) e Labov e Waletski (1967) que propuseram uma definição
estrutural da narrativa, cujas categorias constituem repertório analíti-
co fundamental ainda hoje. A estrutura formal padrão das narrativas
proposta por Labov e Waletski – conhecida como modelo canônico
de narrativa – possui seis partes com funções distintas. A primeira
delas, o sumário, é uma introdução da narrativa, onde a pessoa que
narra apresenta o motivo de contar a história e um breve resumo dela.
Nas orientações, quem narra contextualiza os eventos narrados, des-
crevendo os lugares onde ocorre a ação, es personagens envolvides,
a época e qualquer outro elemento que ajude a situar es interlocuto-
res. O cerne da narrativa seria sua ação complicadora, quando quem
narra de fato expõe os acontecimentos a partir de uma sequência de
orações no passado. Constituem elementos de avaliação as partes
da narrativa em que a pessoa que narra indica sua opinião diante
dos fatos relatados, destacando algum trecho em relação ao outro
ou ressaltando o motivo pelo qual a narrativa merece ser reportada
naquele contexto de interação. O resultado é o momento em que a
pessoa que narra apresenta o desfecho das ações complicadoras. Já
a coda, é o encerramento da narrativa, quando é retomado o tempo
presente e podem ser avaliados os efeitos das ações narradas.

A perspectiva de Labov, é, nas palavras de Bastos e Biar (2015,


p. 105), “um método de se recapitular experiências passadas que
combina, a partir de propriedades identificáveis bem delimitadas,
seqüências verbais e seqüências de eventos”. Essa visão laboviana,
coerente com as demandas do paradigma científico positivista, dá lu-
gar, atualmente, a uma compreensão mais interacional dos fenômenos
discursivos. A perspectiva contemporânea dos estudos da narrativa
enfatiza o seu caráter interacional e situado, isto é, o fato de que ela
não apenas depende de uma situação de interlocução, como também
é construída colaborativamente a partir de uma constante negociação
com os diversos fatores que atravessam a interação (BASTOS; BIAR,

sumário 51
2015). Segundo Bastos, as narrativas não devem ser “consideradas
como representações diretas e transparentes de eventos passados,
mas sim como recontagens seletivas e contextualizadas de lembran-
ças de eventos” (2005, p. 80). Assim, Bastos defende que as narrativas
são sempre recriações de experiências passadas e jamais um relato
transparente. Segundo a autora, a cada momento em que contamos
uma história, passamos nossas experiências pelo “filtro de nossas
emoções” e “podemos estar tanto transformando nossas lembranças,
quanto solidificando determinadas interpretações e formas de rela-
tá-las” (2005, p. 80). Dessa forma, a autora compreende a narrativa
como uma construção social sempre atravessada pelas contingências
da situação de comunicação, mais do que apenas a representação
verbal de algo que aconteceu. Nas palavras de Bastos:
[...] quando contamos estórias, construímos um mundo, num
determinado tempo e lugar, no qual circulam pessoas que con-
versam, pensam, trabalham, brigam, se divertem, etc. Ao criar
esse universo narrativo, estamos necessariamente mostrando
quem somos, ou, pelo menos, algumas dimensões de quem
somos. As escolhas (mais ou menos automáticas) que fazemos
ao introduzir cenários, personagens e suas ações dizem respei-
to a como nos posicionamos frente a esses personagens e suas
ações nas situações que criamos [...] (2005, p. 81).

Segundo essa autora, construímos nossas identidades sempre


que contamos histórias e, nelas, nos posicionamos diante de uma
“rede de relações sociais, crenças, valores” (BASTOS, 2005, p. 81).

A noção de posicionamento, articulada por Davies e Harré (1990),


tem sido uma importante ferramenta teórica para as pesquisas que tra-
tam das construções identitárias em contextos discursivos (CRUZ; BAS-
TOS, 2015). Para Davies e Harré, as identidades – ou self, como optam
por chamar – possuem caráter dinâmico e são construídas a partir da
maneira como os sujeitos se posicionam nas situações em que vivem e
nas histórias que são por eles narradas. Sobre essa perspectiva de iden-
tidade como posicionamento, Cruz e Bastos (2015, p. 368) afirmam que
“[...] a compreensão que temos sobre quem somos (ou acreditamos

sumário 52
ser) no mundo social emerge de um constante movimento de reivindicar,
aceitar ou refutar posições no discurso [...]”.

Cruz e Bastos (2015) destacam também o trabalho de Bamberg


(1997; 2002), que propõe um modelo de análise de posicionamentos
em narrativas a partir de três níveis de ocorrência. O nível 1, segundo
a estrutura proposta por Bamberg, diz respeito a como quem narra, a
partir de suas escolhas linguísticas, posiciona entre si es personagens
da história narrada. Já o nível 2 trata do posicionamento da pessoa que
narra em relação à sua audiência, voltando a análise para o momento
da interação a fim de compreender o objetivo pelo qual aquela história
é contada. Por fim, o nível 3 seria aquele em que se observa como a
pessoa que narra se posiciona na história para si mesma a partir da
articulação entre os dois níveis anteriores e seu repertório sócio-his-
tórico-cultural. É nesse último nível que se observa como quem narra
constrói seu self, uma imagem de si.

METODOLOGIA DE PESQUISA

Em 2021, foram realizadas quatro entrevistas semi-estrutura-


das com ex-alunas da Escola Técnica Estadual Anísio Teixeira que se
identificavam como não-heterossexuais. Os nomes da escola e das
entrevistadas são fictícios e foram alterados para manter a privacida-
de das participantes da pesquisa. O recorte de gênero não havia sido
previsto desde o princípio, mas após as primeiras entrevistas perce-
bemos que havia algo de particular na experiência de meninas LGBT
que poderia ser melhor aprofundado restringindo a pesquisa a elas.
Nosso interesse nas narrativas das meninas também foi fortalecido
pela percepção que há poucos estudos sobre lésbicas nas escolas,
como mencionamos na introdução.

Por conta da pandemia de coronavírus, todas as entrevistas foram


realizadas de forma remota e gravadas por meio da plataforma Google

sumário 53
Meet. Foram analisados para este capítulo os trechos das entrevistas em
que as entrevistadas contavam histórias que cruzavam a trajetória esco-
lar e o processo de identificação da sexualidade. As narrativas selecio-
nadas foram transcritas com base nas convenções de Sacks, Schegloff
e Jefferson (2003) (ver Tabela 1), que possibilitam a identificação de va-
riações expressivas des interlocutores fundamentais para a compreen-
são dos aspectos pragmáticos e semânticos das narrativas.

Tabela 1 – Convenções de transcrição

SÍMBOLO SIGNIFICADO
. entonação descendente (tom de final de elocução)
? entonação ascendente (tom de pergunta)
, entonação de continuidade
↑ subida de entonação (mais aguda)
↓ descida de entonação (mais grave)
-
parada abrupta
e.g. palav-
: ou ::
prolongamento do som (mais de um : indica mais prolongamento)
e.g. pala::vra
sublinhado sílaba ou palavra enfatizada (acentuada)
ênfase maior (“volume” alto, mais do que uma simples ênfase numa palavra
MAIÚSCULA
ou sílaba)
°palavra° fala em voz baixa (“volume” baixo)
>palavra< fala mais rápida/acelerada
<palavra> fala mais lenta
Hh aspiração
@ Risos
.h inspiração audível
= elocuções contíguas, enunciadas sem pausa entre elas (engatamento)
[ ] início e fim de falas simultâneas/sobrepostas
(2.0) pausa medida (em segundos)
(.) pausa breve (micropausa, de menos de um segundo)
( ) fala inaudível ou não compreendida

sumário 54
transcrição duvidosa (quem transcreve não tem certeza sobre a palavra que foi
(palavra)
dita)
(( )) comentário de quem fez a transcrição, descrição de atividade não verbal
Fonte: Adaptadas a partir de Sacks et al., 2003.

As entrevistas partiram de questões que tratavam de temas re-


lativos à trajetória escolar das entrevistadas, à identificação de gêne-
ro e sexualidade de cada uma delas e da relação com es familiares e
com a formação religiosa. As duas entrevistadas cujas narrativas são
analisadas neste capítulo foram ex-alunas de uma das autoras, que já
conhecia suas identificações sexuais por terem alguma proximidade, es-
pecialmente por meio das redes sociais. Nessa escola, a relação entre
professores e discentes é bastante próxima e é comum que discentes e
professores mantenham algum contato mesmo após o fim do percurso
escolar, o que cria uma atmosfera de maior intimidade nas entrevistas.

Desde que uma das autoras ingressou como docente na ETE


Anísio Teixeira, identificou que havia um ambiente de bastante liber-
dade e tolerância em relação às diferentes formas de manifestação
da sexualidade, especialmente se comparado às outras escolas em
que havia trabalhado. Essa perspectiva é compartilhada entre dis-
centes e professores que, em sua maioria, expressam orgulho dessa
característica da escola, cuja “fama”, inclusive, é conhecida por dis-
centes de outras escolas da rede de escolas técnicas estaduais e até
de escolas de ensino fundamental.

Essa escola diferencia-se também das demais escolas da rede


por oferecer cursos profissionalizantes ligados ao campo da cultura,
o que explica, de alguma forma, o ambiente mais progressista que
se forma em sua comunidade. Outro aspecto relevante, comum às
escolas profissionalizantes de ensino médio que tem impacto nas
narrativas das entrevistas, é o fato de todes es alunes estarem in-
gressando em uma nova escola e em um curso que escolheram por
terem algum interesse em comum, o que cria também um clima de
pertencimento e acolhimento.

sumário 55
Para este trabalho, selecionamos narrativas que tratam do pro-
cesso de identificação com a sexualidade ou de “saída do armário”,
como conhecemos popularmente. Como explica Lewis (2012), o pro-
cesso de “saída do armário” não acontece em um momento pontual na
trajetória da vida das pessoas, mas perdura por toda a vida, em todos
os momentos em que uma pessoa decide ou é forçada a reafirmar sua
sexualidade diante de uma sociedade para a qual a heterossexualida-
de é presumida. Como veremos adiante, esse processo fragmentado
está presente nas narrativas analisadas de diversas formas, demons-
trado a partir de marcas textuais como as repetições, a estrutura de
narrativas múltiplas e curtas, a escolha lexical e as ênfases.

ANÁLISE DAS NARRATIVAS DE MARINA

Marina foi aluna de uma das autoras em 2018 e em 2020.


Também participaram juntas de um grupo de trabalho sobre Direitos
Humanos e, por essa proximidade, foi a primeira entrevistada para a
pesquisa. A entrevista aconteceu no dia 14 de dezembro de 2020 e a
conversa durou 50 minutos.

Em sua entrevista, Marina relata que os primeiros dias na ETE


Anísio Teixeira foram “sensacionais” e que era uma escola “super acolhe-
dora com pessoas LGBT”. Ela comenta que já tinha essa perspectiva da
escola porque estudava numa escola de ensino fundamental da rede e
que já havia rumores de que era uma escola com ambiente “mais diver-
so” e que, por isso, optou por ela para seguir o Ensino Médio. Ao longo
dessa narrativa e também da outra analisada neste capítulo, percebere-
mos que, assim como observa Thiago Ranniery (2017) em sua pesquisa
com “meninos gays” em Aracaju, nem toda experiência LGBT no am-
biente escolar é marcada pela violência e muitas vezes a escola pode
representar um lugar de liberdade para a expressão da sexualidade.

sumário 56
Marina faz um breve relato, um pouco orgulhosa, mas também
envergonhada, sobre a lembrança dos primeiros dias na escola, quan-
do fez muito sucesso e as pessoas ficavam se perguntando quem era
“aquela menina”, que era muito bonita. A seguir, no trecho selecionado
para análise, Marina narra um processo bastante estendido de com-
preensão e aceitação de sua identificação enquanto homossexual ao
longo de seu percurso escolar. Após ser perguntada sobre como se
identifica com respeito à sua sexualidade e como foi o processo de
compreensão dessa identificação, Marina responde:

11 Marina eu acho que foi é- é eu não sei o momento


12 porque:: e eu não sei (.) também tipo ah se foi um pro-
13 ↑foi um processo gradativo (.) mai::s
14 lá pelos meus(.) onze anos tipo:: as pessoas
15 eu não tinha ideia
16 eu não tinha ideia
17 <eu não tinha ideia> do que:: do que eu era e tal
18 mas o jeito que eu me vestia (.) é::
19 as pessoas julgavam o jeito que eu me vestia
20 e aí: tinha uma tendência (.)
21 eu tinha uma tendência a pensar que::: eu tinha que meio que: que
22 escapar daquilo >tá ligado?< tipo: (.)
23 eu não sabia se eu era ou não lésbica e aí: (.)
24 mas as pessoas já pré julgavam
25 e aí:::: pelos meus onze anos
26 aí depois eu comecei a pensar sobre isso depois desse pré julgamento
27 com (1.0) uns treze anos? com uns treze anos
28 eu já consegui me ver tipo:: gostando de- de-
29 de pessoas do mesmo gênero que eu (.)enfim-
30 eaí::: (1.0) e aí (.) eu lembro que: (.) ((faz um estalo com a língua))
31 eu dei meu primeiro beijo em menina eu acho
32 com uns <quatorze anos> e tal
33 e aí eu acho que por aí eu tive tipo: a (1.0) a: >tipo<

sumário 57
34 confirmação que eu gostava de:
35 de pessoas do mesmo gênero que [ eu ] >entendeu<?
36 Carol [mm hm]
37 Marina e aí: >e aí eu acho que isso<
38 tipo com quatorze anos eu ti- tive meio que uma confirmação
39 mas eu acho que só fui me aceitar de fato de fato na eteat
40 porque foi tipo:
41 ver muitas pessoas com a mesma sexualidade que eu
42 e ver muitas pessoas como eu >tipo<
43 acho que: (.) >aquela questão da representatividade
44 mas eu não gosto muito de tender pra esse lado<
45 eu acho que: >sei lá< conversar com pessoas
46 entender: tipo me entender mais:
47 me identificar com as coisas foi crucial (.)
48 e saber que não é erra:do essas paradas (.) porque:: né tipo
49 a escola que eu tava antes (1.0) é: (.)
50 tinha uma tendência a: a: a: pré julgar né e tal
48 não tinha muitas pessoas é::
49 eu não conversava com muitas pessoas que:
50 que tinha a mesma sexualidade que eu enfim que
51 ou eram lgbts e aí- ou que: enfim falassem sobre isso
52 eu não falava sobre isso (2.0)
53 e aí ou falavam só que as pessoas eram preconceituosas e: enfim
54 crianças também podem ser preconceituosas falar coisa >enfim<
55 e aí (.) quando eu fui pra eteat foi libertador foi muito libertador
56 porque lá eu podia ser quem eu quisesse ser
57 e aí: ou pelo menos tentar chegar per::to >enfim<
58 e aí foi isso >eu aí eu fui< @
59 eu fui muito animada porque eu lembro que dois mil e dezessete
60 tinha sido muito ruim no nono ano né?
61 tinha sido muito ruim pra mim (.)
62 porque eu queria sair da minha escola logo

sumário 58
63 e aí dois mil e dezoito foi tipo::
64 melhor ano da na minha vida foi o primeiro ano
65 mas também só fiz merda [@@]
66 Carol [@@]
67 Marina mas foi muito bom
68 Carol [ e tem alguma coisa ]
69 Marina [assim questão de aceitação] e tal foi- foi ↑crucial

No breve sumário, na linha 13 (“foi um processo gradativo”),


Marina já indica como será a estrutura da sua narrativa que percorrerá
brevemente um período que vai do início do Ensino Fundamental ao
Ensino Médio ressaltando alguns momentos-chave, em que identifica
algum ponto de virada. Ela demonstra assim que “sair do armário” é
também um processo de compreensão que pode acontecer ao longo
de muitos anos de uma vida. Após esse sumário, Marina constrói sua
narrativa central a partir de três subnarrativas que representam mo-
mentos do questionamento, da confirmação e da aceitação.

Na primeira delas, que vai da linha 14 à 26 na transcrição, Marina


fala de quando tinha cerca de onze anos e as pessoas julgavam a for-
ma como ela se vestia, a fazendo começar a pensar sobre sua sexua-
lidade a partir do olhar dos outros, que são identificados apenas como
“as pessoas”. Na segunda subnarrativa, da linha 27 à 38, Marina narra
a situação do seu primeiro beijo em uma menina, o que identifica como
uma “confirmação” de sua homossexualidade. Já na terceira subnarra-
tiva, da linha 39 à 69, ela fala sobre sua entrada na ETE Anísio Teixeira,
no Ensino Médio, momento em que ela passa a se “aceitar de fato”.

Essas subnarrativas são marcadas por orientações de ordem


cronológica, apresentadas a partir da idade que a entrevistada tinha
naquele período narrado, demonstrando que se trata do processo de
uma experiência que é simultaneamente coletiva e individual. Outra
marca da narrativa de Marina é o fato de não haver outres persona-
gens nomeades, os demais indivíduos, com os quais interage e diante

sumário 59
dos quais se posiciona na narrativa, são chamados genericamente de
“menina”, “pessoas” ou “crianças”.

Em relação aos posicionamentos e construções identitárias pre-


sentes nas narrativas, quando Marina repete (nas linhas 15 a 17) que
“não tinha ideia” do que “era”, se apresenta como uma criança inocente
que, mais adiante na narrativa, é forçada a pensar sobre sua sexualidade
quando está diante do julgamento das “pessoas”, os outros (linha 19).
Segundo conta, são essas pessoas que fazem associar a forma como
ela gostava de se vestir com uma suposta atração por meninas, algo em
que não havia pensado ainda. Esse julgamento, em um momento em
que ela ainda não se dedicava a refletir sobre sua sexualidade, impele,
como relata, que ela tente escapar dessa imagem (linha 22).

Considerando a proposta de Bamberg de segmentar em três


níveis a ocorrência dos posicionamentos nas narrativas, Marina se po-
siciona nessa narrativa diante des demais personagens (nível 1) como
alguém que foi oprimido em sua forma de se comportar e, naquele mo-
mento, tentou se adaptar às normas impostas através do julgamento
de modo a não se sentir marcada pelo estigma da homossexualidade.
Ela demonstra como a vida escolar pode operar para a reprodução de
uma associação entre uma determinada performance de gênero e a
escolha do objeto sexual, constrangendo uma criança a adotar certas
marcas de gênero para que não seja estigmatizada desde muito cedo.
A escolha do tempo verbal e a impessoalidade do sujeito da ação (“as
pessoas julgavam o jeito que eu me vestia” – linha 19) demonstram
que se trata de um processo reiterado de construção de um estereóti-
po que marcaria certa identidade lésbica através da forma de se vestir.

Marina, então, faz uma pequena elipse temporal na narrativa e


salta para sua segunda subnarrativa, que acontece entre seus treze e
quatorze anos e indica o momento em que ela teve a “confirmação”
de que era lésbica. Enquanto na linha 23 (“eu não sabia se eu era ou
não lésbica”), ao relatar sua experiência ainda criança com a pressão
a respeito de sua sexualidade, Marina usa a ênfase para ressaltar seu

sumário 60
desconhecimento sobre sua própria sexualidade, denotando que pa-
recia absurdo que esse questionamento viesse de outras pessoas, na
linha 34 ela retoma a ênfase, mas com a função de dar um desfecho a
essa dúvida (“eu acho que por aí eu tive tipo a [...] confirmação que eu
gostava de pessoas do mesmo gênero que eu”, linhas 33 a 35).

Nesse ponto da narrativa, ela já se apresenta como alguém


que coloca em ação seu próprio desejo e nem mesmo cita qualquer
julgamento ou hesitação. Nesse trecho, a ação complicadora está
mais determinada, com sujeito e momento bem definidos (“eu dei
meu primeiro beijo em menina” – linha 31) e é interessante observar
que agora é ela o sujeito da ação e não cita qualquer pressão contrá-
ria, mudando sua relação com es demais personagens que deixam
de ser sujeitos da ação opressiva dando lugar a uma personagem
que é objeto de sua ação (“uma menina”).

Já na terceira parte da narrativa, quando trata da entrada na ETE


Anísio Teixeira, Marina volta a falar sobre o impacto das “pessoas” no
processo, mas, desta vez como um fator incentivador da sua “aceita-
ção”. O ambiente escolar diverso serve aqui como autorização, um lo-
cal onde não está institucionalizado o preconceito. O termo que ela usa
indica que, para ela, havia algo de sua própria essência que tomou um
longo tempo para que ela mesma pudesse “aceitar”. Isto demonstra
como, apesar de ter posto em ação seu desejo beijando uma menina,
havia ainda uma etapa a superar que só foi possível quando, na escola
nova, ela encontra outras “pessoas” com as quais se identifica.

Nessa breve narrativa da entrada na nova escola, é Marina que


olha para “pessoas” (“ver muitas pessoas com a mesma sexualidade
que eu e ver muitas pessoas como eu” – linhas 41 e 42) e as reco-
nhece como semelhantes. Apesar de dizer que não gosta do termo
representatividade – linhas 43 e 44 –, é a ele que recorre quando trata
da experiência vivida na escola. Na nova escola, Marina já não se sente
em uma posição oposta às outras “pessoas”, que olhavam para ela e a
julgavam. Ela descreve, nessa etapa, uma experiência de pertencimen-
to a um grupo, que teria sido “crucial” para sua própria “aceitação”.

sumário 61
Ainda nessa terceira parte, Marina relembra que não tinha mui-
tos exemplos que possibilitassem que ela compreendesse sua se-
xualidade e faz a avaliação de que convivia com pessoas preconcei-
tuosas, inclusive as crianças. Essa avaliação demonstra bem a forma
como Marina se posiciona ao longo da narrativa para sua audiência
(nível 2, conforme a proposta de Bamberg), como alguém que supe-
rou a opressão vivida na escola e no momento do relato se vê como
superior às pessoas preconceituosas, em oposição às quais constrói
sua identidade. Vale ressaltar que Marina é risonha na maior parte de
sua narrativa, mesmo quando fala de momentos que considera ruins,
expressando assim também que esses são problema pelos quais já
passou e não a afetam mais.

Por fim, enfatiza que mudar para a escola nova “foi libertador”
e depois pondera, dizendo que pode “pelo menos tentar chegar per-
to”, do que ela “quisesse ser”. A questão da liberdade não é o foco
da narrativa que ela conta, por isso, talvez, ela termine essa parte da
entrevista trazendo novamente para a narrativa sua construção social:
ela conseguiu ser quem ela gostaria de ser a partir dessa mudança
de ambiente escolar. Nessa ponderação final, fica mais claro o nível
3 de seu posicionamento, quando articula sua relação com es outres
personagens da narrativa e seu posicionamento para es interlocutores
criando uma imagem de si. Marina mostra nesse trecho que o proces-
so de se tornar quem ela quer ser ainda está em curso e que, apesar de
reconhecer a relevância da ETEAT nesse processo, ele ainda depende-
rá de sua própria agência da qual demonstra muito orgulho.

ANÁLISE DAS NARRATIVAS DE RAFA

Rafa frequentou a escola alguns anos antes de Marina e se


formou em 2018, quando também foi aluna de uma das autoras do
presente capítulo. Elas mantiveram contato desde a sua formatura e

sumário 62
era a entrevistada com quem a entrevistadora tinha maior intimidade.
A entrevista com Rafa aconteceu no dia 11 de agosto de 2021 e du-
rou 44 minutos. Diferente de Marina, Rafa relata que não tinha muita
ideia de como era a escola, mas que precisava escolher uma escola
técnica para fazer o Ensino Médio e escolheu a ETE Anísio Teixeira
pelo curso de produção audiovisual que era com o qual se identifica-
va mais e também porque a irmã dela já havia estudado lá. Apesar
de dizer que não tinha nenhuma expectativa específica em relação à
ETE Anísio Teixeira, reconhece que tinha uma sensação de que teria
maior liberdade porque iria para um colégio diferente daquele em
que havia estudado durante toda sua vida escolar até então. Relata
brevemente a atividade de apresentação da escola feita por profes-
sores e alunes veteranes que já achou “muito divertido”. Descreve
também sua turma como muito comunicativa e unida e que, por isso,
não foi muito difícil fazer novas amizades. Rafa diz que desde o início
já podia notar que era uma escola “bem diferente”, que as pessoas e
a própria escola levantavam muitas discussões, diferente do colégio
em que estudava antes, que era “de bairro”.

Ao início da entrevista, Rafa afirma que se identifica como lés-


bica e feminina, embora reconheça que passou por períodos de dú-
vida e de se considerar bissexual. A narrativa de Rafa é bem menos
sucinta e linear, mas, assim como a de Marina, também percorre vá-
rios períodos de sua infância a sua adolescência até identificar o mo-
mento em que julga ter tido uma “confirmação” de sua sexualidade.
Em trechos não analisados aqui, podemos ver que sua experiência se
distingue diametralmente da descrita por Marina. Rafa não expressa
em seu corpo nenhuma marca que remeta à homossexualidade e,
por isso, tem sua heterossexualidade presumida por amigues. Em
diversos momentos de sua narrativa também fica claro que a hete-
rossexualidade não apenas é presumida como também é forçada,
pois ela demonstra que se sentia obrigada a ficar com meninos em
situações que eram arranjadas e das quais ela fugia.

sumário 63
64 Rafa e tá, ok, aí , né? eu lembro de uma vez, de uma situação que:: (.)
65 isso antes de eu entrar na eteat (.) né?
66 que:: alguém chegou assim e falou assim
67 “rafaela, você go-“ é:: “você gosta de meninas?” falou assim
68 porque, tipo, via que: sempre quando tentavam arranjar um garoto pra mim
69 eu ficava: “não” ((tom assertivo)).h
70 e eu falei assim tsc “↑não, claro que não” ((tom irônico)) @@
71 ( ) e aí eu fico lembrando essa situação assim, né?
72 aí::, tá, e aí depois eu lembro que, na época que eu tava fazendo
73 pré:- pré-técnico pra entrar na escola técnica (.) né?
74 como eu morava na ((nome da favela)) também aí eu fazia parte de um pré-técnico
75 lá que era supe::r questão também assim, desse assunto de diversidade
76 uma coisa muito mais ampla assim também, já-
77 já abre a cabeça pra novos horizontes e::
78 e era um cursinho comunitá:rio e ta:l
79 aí eu (tava) começando a entender algumas coisas assim
80 aí tinha uma amiguinha lá: também,
81 a gente ficava assim
82 ((faz um gesto com as mãos dando a entender um flerte))
83 ma::s (.) mas nada:: concre:to também
84 mas eu já identificava a partir daquele momento
85 que assim @ eu tava identificando que algo estava acontecendo
86 em relação a gostar de mulheres (.) é:: (.)

No trecho selecionado acima, Rafa destaca dois momentos de


transição para a compreensão da sua identificação enquanto lésbica.
No primeiro deles, retoma uma situação em que alguém questiona se
ela gostava de meninas, o que ela nega (linhas 67 e 70). Ao fim dessa
narrativa curta, Rafa faz uma avaliação aberta (“e aí eu fico lembrando
essa situação assim, né?” – linha 71), demonstrando que houve algo
naquele momento que a marcou de modo que possa hoje rememorá-
-lo sob uma nova perspectiva. Nota-se também que Rafa interrompe
o início dessa narrativa na linha 65 com a observação de que isso

sumário 64
aconteceu antes de entrar na ETEAT, adiantando a importância que a
convivência na escola teria na sua relação com sua sexualidade.

Nas linhas 68 e 69, Rafa cria uma justificativa para a terem ques-
tionado se gostava de meninas e cita o fato de sempre tentarem con-
vencê-la a ficar com algum menino, algo que também tinha comenta-
do em trechos anteriores não analisados no presente recorte. Nesse
momento da narrativa ela já representa a si como alguém que nega
essas tentativas de forma mais veemente, enfatizando, na linha 69, sua
negação e a representado com um tom assertivo e até agressivo. Essa
ênfase demonstra também a escalada de impaciência que estrutura
toda a narrativa, dando uma sensação de adiamento e, por fim, de uma
resolução que virá após a entrada na ETEAT.

Logo em seguida, Rafa relata uma situação em que teve uma


aproximação especial com uma “amiguinha” a partir da qual identifica
uma possível atração por mulheres, o que ela julga ter sido proporciona-
do pelo ambiente do cursinho comunitário, mais aberto a “esse assunto
de diversidade”. Em todo esse trecho selecionado, ela apresenta alguns
indícios de que talvez seu interesse afetivo e sexual se orientasse para
meninas, mas isso só ficaria claro no momento relatado adiante.

Na parte mais extensa e detalhada de sua narrativa, Rafa des-


creve como a sua entrada na ETE Anísio Teixeira influenciou seu enten-
dimento sobre sua sexualidade:

87 Rafa e ↑aí, quando eu entrei pra eteat enfim @


88 eu vi que, assim:: (.) sabe?
89 todo mundo tinha:::, assim, todo mundo tinha uma questão com isso
90 mas era todo mundo aberto a isso, a falar sobre isso, e não tinha
91 ninguém que julgasse isso, sabe?
92 não tinha a galera que a gente via e tal que:: era- era:
93 desde o começo quis meio que colocar a sua personalidade ali també:m
94 você tá entrando num colégio novo e tal

sumário 65
95 e aí: a pessoa quer deixar claro também às vezes que ela é assim .h e aí
96 > e aí eu não fui uma pessoa que deixou claro desde o início <, né?
97 mas eu tava assim observando, porque eu fico observando assim
98 e: é:: , aí enfim
99 no primeiro ano eu vi que tinha gostado de uma menininha lá
100 e aí: que inclusive é minha amiga até hoje @
101 e aí eu fiquei tipo
102 um ano gostando dessa menina (.)
103 aí todo mundo já: (.) assim (.) das minhas amigas que tavam perto de mim
104 que são todas héteros é::
105 >já tinham ficado- se arranjado com um menino
106 porque é assim, né?< você chega num colégio novo aí você
107 ↑tem que ficar com alguém,
108 e aí::, só que assim (.)
109 zero interesse em qualquer garoto de lá e::,
110 mas, por outro lado,
111 eu já tinha: ficado meio assim
112 ((faz um gesto indicando interesse ou curiosidade))
113 com a menininha lá
114 e aí eu até fiquei um pouquinho::
115 eu demorei um tempo pra falar pras meninas,
116 >mas também quando eu falei pras meninas< foi supe::r (1.0) .h
117 natural assim
118 e as meninas tavam arranjando depois pra @@
119 pra ficar com a menina

Rafa começa descrevendo a escola como um ambiente di-


ferente, com pessoas mais abertas a falar sobre questões relativas
à sexualidade (“todo mundo tinha:::, assim, todo mundo tinha uma
questão com isso, mas era todo mundo aberto a isso, a falar sobre
isso e não tinha ninguém que julgasse isso, sabe?”– linhas 80 a 91).
Nesse trecho ela enfatiza também a ausência de julgamento, o que

sumário 66
dá a entender que era isso o que era o mais comum em outros luga-
res ou em suas experiências escolares anteriores.

Essa expectativa do julgamento aparece novamente quando


relata que havia ficado interessada por uma menina, mas demorou
a contar para suas amigas, que eram todas heterossexuais. A forma
como ela relata o que aconteceu quando contou para suas amigas,
com o uso da conjunção adversativa e a ênfase na naturalidade com
a qual elas receberam a notícia, dão a entender que ela adiou esse
momento com medo de que pudesse ser julgada por elas.

É interessante perceber que, mesmo nesse ambiente que ela


descreve como aberto e diverso, Rafa hesitou em falar sobre sua se-
xualidade com suas amigas, demonstrando que o receio do julgamen-
to continuou a acompanhando ao ponto de marcar sua narrativa atual.
Considerando os acontecimentos descritos nessa narrativa, essa foi a
primeira vez que ela falou para alguém sobre seu interesse por meninas.

Apesar de ser uma escola aberta à diversidade sexual, Rafa


identifica um comportamento comum às outras escolas: “>porque é
assim, né?< você chega num colégio novo aí você ↑tem que ficar com
alguém” – linhas 106 e 107. Com a exigência de ter que ficar com al-
guma pessoa sem identificar sua homossexualidade, Rafa se vê diante
do risco de reviver a situação comum na outra escola, quando se sen-
tia obrigada a ficar com meninos, especialmente porque suas amigas
eram, mais uma vez, todas heterossexuais.

Em relação aos posicionamentos e construções identitárias,


em diversos momentos Rafa se posiciona como alguém que já não
se adapta à forma de funcionamento das relações heterossexuais
e, como narradora, retrata de maneira irônica seu comportamento
no passado (ver, por exemplo, linha 70). Diante des outres persona-
gens de sua história (nível 1), Rafa se posiciona como alguém que
se relacionava bem com as amigas de escola, mas que não se en-
quadrava nas normas vigentes entre elas no campo da afetividade

sumário 67
e da sexualidade. Diferente de Marina, ela não se posiciona em um
lugar de oposição aos demais, mas marca uma sensação de inade-
quação que era ainda pouco clara.

A marca da narrativa de Rafa não é a da opressão ou do


sofrimento, mas a da dúvida. O processo que ela narra é muito mais
interno e aponta para uma tentativa de compreensão da própria
identificação. Ao longo de sua narrativa, Rafa se posiciona para a au-
diência (nível 2) como quem julga a si mesma, muito mais do que os
outros. Mesmo quando estava em uma escola em que não havia muito
espaço para “assuntos de diversidade” (em um trecho não reprodu-
zido aqui), Rafa não descreve o ambiente como opressivo e não se
coloca em qualquer posição de conflito com outras pessoas. O tom de
sua narrativa, afinal, está muito mais pautado no autoquestionamento,
apontando para a entrevistadora a sua inquietação em relação a ter
levado tanto tempo para entender-se e assumir-se lésbica.

Em relação a como Rafa se posiciona no presente (nível 3), é


como alguém que, após um longo processo de dúvida, já conhece sua
identificação sexual, não tem qualquer dúvida de sua atração exclusiva
por meninas e não apresenta qualquer sinal de viver situações de con-
flito por conta de sua sexualidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As narrativas de Marina e Rafa, guardadas as devidas diferen-


ças, têm em comum o fato de demonstrarem o grande impacto que
o ambiente escolar tem no processo de compreensão das crianças
e jovens sobre a sexualidade e suas identificações. Ambas relatam
que, de alguma forma, a convivência escolar no Ensino Fundamental
foi marcada pela reiteração constante da heteronormatividade, o que
muda completamente após a entrada na ETE Anísio Teixeira.

sumário 68
Um ponto que diferencia as experiências de Rafa e Marina é
a relação entre performatividade de gênero e de sexualidade, que
marcará as formas como cada uma delas viveu seu processo de
compreensão da identificação sexual e afetiva. Ao performar em seu
corpo marcas de gênero que não correspondiam socialmente às da
feminilidade, Marina tem sua homossexualidade presumida e é for-
çada a ter que pensar sobre isso desde muito cedo, já informada de
que essa era uma opção que desviava das normas e era passível de
agressão. Já Rafa escapou dessa marca pois “passava” como héte-
ro, ou seja, performava as marcas da feminilidade, o que, por outro
lado, faz com que ela precise fazer um esforço maior para entender e
declarar sua atração por meninas.

O que podemos identificar como aproximação entre as narrati-


vas de Marina e Rafa e os resultados da pesquisa de Ranniery (2017)
sobre os “meninos gays” das escolas de Sergipe é a constatação de
que o currículo engloba muito mais do que aquilo que é planejado
pela equipe e lecionado em sala de aula. As narrativas apontam que
é nos corredores escolares, no pátio, nos intervalos, nas festas que
acontecem os maiores aprendizados sobre o afeto e a sexualidade.
É nesses espaços intersticiais da escola que estudantes experimen-
tam as restrições da heteronormatividade, mas também a desafiam,
seja a partir da cooperação ou do conflito.

Esses relatos nos permitem observar que a instituição não é um


objeto generalizável e que é possível que mesmo em uma instituição
fortemente hierarquizada e de ensino tradicional haja espaço para que
es alunes experimentem diferentes performances de sexualidade e de
gênero. Por outro lado, as mesmas narrativas nos lembram que a força
da matriz heteronormativa se impõe também entre crianças e pode
gerar sofrimento em um período muito importante da formação, caso
a escola se abstenha de discutir o assunto e de proporcionar um am-
biente em que es alunes possam descobrir as diversas possibilidades
do desejo sexual e das manifestações da afetividade.

sumário 69
REFERÊNCIAS
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of Narrative and Life Story, v. 7, n. 1-4, p. 335-342, 1997.
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In: LOPES, L.P.M.; BASTOS, L.C. (orgs). Identidades: recortes multi e
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BASTOS, Liliana Cabral. Contando estórias em contextos espontâneos e
institucionais – uma introdução ao estudo da narrativa. Calidoscópio, v. 3,
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BASTOS, Liliana Cabral; BIAR, Liana de Andrade. Análise de narrativa e
práticas de entendimento da vida social. D.E.L.T.A., v. 31, n. especial,
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V. Daminelli; D. Y. Françoli. São Paulo: n-1 edições/ Crocodilo Edições, 2019.
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Rio de Janeiro: Civilização
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CRUZ, Claudia Almada Gavina da; BASTOS, Liliana Cabral. Histórias de
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identidades. Linguagem em (Dis)curso, v. 15, n. 3, p. 367-384, 2015.
DAVIES, Bronwyn; HARRÉ, Rom. Positioning: The discursive production of
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LABOV, William. Language in the Inner City. Filadélfia: University of
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LEWIS, Elizabeth Sara. “Não é uma fase”: Construções identitárias em
narrativas de ativistas LGBT que se identificam como bissexuais. 267f.
Dissertação (Programa de pós-graduação em Letras) – Faculdade de Letras,
PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2012.

sumário 70
LOURO, Guacira Lopes. Corpo, escola e identidade. Educação & Realidade,
v. 25, n. 2, p. 59-75, jul./dez. 2000.
RANNIERY, Thiago. Currículo, normatividade e políticas de reconhecimento
a partir de trajetórias escolares de “meninos gays”. Archivos analíticos de
políticas educativas, v. 25, n. 51, p. 1-32, 2017.
SACKS, Harvey; SCHEGLOFF, Emanuel A.; JEFFERSON, Gail. Sistemática
Elementar para a organização da tomada de turnos para a conversa. Trad. de
A. M. S. da Cunha, C. F. Duque, J. R. Medeiros, L. M. Silva, M. P. Borges e M.
B. P. Schittini. Veredas, v. 7, n. 1-2, p. 9-73, 2003.
TORRES, Thais Priscila de Souza. Trajetórias lésbicas entre (re)invenções
do silêncio na educação (escolar-familia). Teias, v. 23, n. 68, p. 104-122,
jan./mar. 2022.

sumário 71
3
Capítulo 3

Educação cristã e estudos


de gênero: em defesa de
um diálogo fecundo

Luiz dos Santos Mattos Júnior

Perycles Emmanoel Gomes de Macedo

Marcelo Henrique Gonçalves de Miranda

Luiz dos Santos Mattos Júnior


Perycles Emmanoel Gomes de Macedo
Marcelo Henrique Gonçalves de Miranda

Educação cristã
e estudos de gênero:
em defesa de um diálogo fecundo

DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.3
INTRODUÇÃO

Neste ensaio pretendemos refletir em que medida é possível


pensar em aberturas para que se estabeleça um diálogo entre a edu-
cação confessional católica e os estudos de gênero e sexualidades
sob uma perspectiva inclusiva, de respeito e aprendizado com as
diferenças. Sabemos que escolas confessionais são colégios que, de
modo diverso daqueles pretensamente laicos, professam abertamen-
te seu vínculo a uma determinada tradição religiosa, assumindo-a
como a filosofia que deve permear a prática pedagógica e como parâ-
metro para a construção de uma conduta religiosamente referenciada
em seus discentes. Nesse sentido, nos perguntamos se tal diálogo
seria possível e, em caso de resposta afirmativa, resta-nos pensar se
tal abertura descaracterizaria o ensino religioso, uma vez que a her-
menêutica oficial católica tem se posicionado historicamente contra o
avanço das políticas e das discussões de gênero, sobretudo através
do dispositivo discursivo “ideologia de gênero” (JUNQUEIRA, 2017;
BALIEIRO, 2018; MIRANDA; LIMA, 2019).

A questão central sobre a qual nos debruçamos é: haverá pos-


sibilidade de trato das questões de gênero e sexualidades por parte
das escolas confessionais, sob a perspectiva de reforço e aprendiza-
do com os direitos humanos ampliando a tradição cristã em relação
ao respeito e ao amor ao próximo? Nos perguntamos ainda se, uma
vez que o educativo seja um tipo de encontro eminentemente dialó-
gico, e que o verdadeiro diálogo só se realize a partir do humano em
sua integralidade (BUBER, 1982), seria possível chamar de educativo
aquele tipo de reunião em que, embora se dê entre professoras/es e
estudantes, empenha-se intransigentemente, em fragmentar a pessoa
discente de modo a deixar sua sexualidade e seu gênero, invisibilizado
e silenciado, do lado de fora das salas de aula?

Por último, a partir de alguns marcos teológicos e iconográficos,


questionamo-nos se a doutrina católica deve ser admitida como um

sumário 73
campo discursivo sempre igual a si mesmo, revelado de forma cabal
por um deus que jamais muda, ou, se ao invés disso, poderia ser inter-
pretada como uma tradição em constante movimento, que ambiciona,
ainda que a passos lentos, acompanhar as principais mudanças histó-
ricas de modo a superar seus próprios erros e a contornar postulados
por ela mesma construídos a partir de estágios já superados da refle-
xão humana. Para tanto, evocamos a Teologia da Libertação – tradição
mística católica que assinalou de maneira tonitruante a necessidade de
construirmos um exercício da espiritualidade que não seja capaz de nos
desligar da terra, mas que, ao contrário disso, encontre na superação
das contradições sociais uma maneira de manifestar o amor de Deus
pela humanidade, tal qual nos ensinou Leonardo Boff (2009). Lembra-
mos ainda que o trato das problemáticas concernentes a gêneros e se-
xualidades no âmbito religioso não é recente: tais questões já foram alvo
de enfrentamento sensível por mestres da arte sacra, como Bernini, Do-
natello, Boticelli entre outros, que se opuseram à maneira ascética com
que a Igreja tratou tais temas, tal qual nos mostrou Camille Paglia (1999).

ENTRE IMPOSIÇÃO E ABERTURA:


CAMINHOS PARA O DIÁLOGO

Primeiramente, é preciso admitir que a dimensão religiosa, ou


se quisermos, o exercício da espiritualidade, é certamente uma das ex-
periências que atravessa a humanidade de maneira mais marcante ao
longo de toda sua trajetória. Desde a pré-história até os nossos dias,
é possível perceber como esse elemento tem se revelado persistente
no curso dos desenvolvimentos culturais. Em certo sentido, é razoável
dizer que a história das produções humanas e das espiritualidades
se confundem. Para isso, basta que pensemos nas mais antigas des-
cobertas artísticas da arqueologia – todas elas dotadas de profundo
significado espiritual. De modo semelhante, o elemento que assinala a
busca humana pelo transcendente pode ser identificado na arquitetura

sumário 74
(pensemos nas grandes construções religiosas, desde as pirâmides
do continente africano e americano até as portentosas e conhecidas
catedrais como A Sagrada Família, em Barcelona, ou a Basílica de
Aparecida, em São Paulo); na música (desde o canto gregoriano, no
medievo europeu, aos pontos de candomblé e umbanda no Brasil de
nossos dias); na filosofia (que nasce em berço mítico e jamais se apar-
ta completamente da metafísica), mas, sobretudo, na educação.

A escola que conhecemos, a qual aborda os conhecimentos


de maneira isolada, cuja complexidade das disciplinas se intensifica
gradualmente, que serializa os grupos de estudantes com base na
idade e que conta com uma figura de autoridade que deve coordenar
os movimentos de aprendizagem, é uma construção que, embora
parta do Egito e seja significativamente reelaborada pelo mundo gre-
go, desenvolveu seus principais traços, a maioria deles ainda em
plena vigência, no seio da Igreja Católica de Roma, entre a primeira
e a segunda metade do medievo (MANACORDA, 2010). Assim como
nos demais construtos culturais que assinalamos, nos quais se po-
dem identificar elementos que revelam uma certa necessidade de
transcendência, a escola também exibe em suas formas uma história
que atesta não ter suplantado de maneira disruptiva muitos dos ele-
mentos religiosos que a compuseram originalmente – sobretudo se
considerarmos o caráter conservador e até mesmo reacionário que
acompanha muitas tradições cristãs no que diz respeito às questões
de gêneros e sexualidades (OLIVEIRA, MIRANDA, SILVA, 2018).

Desde a primeira metade do século XVIII, quando os feminismos


começaram a elaborar suas primeiras reinvindicações a respeito das
dissimetrias observadas entre homens e mulheres, até o momento pre-
sente, multiplicaram-se as exigências de legitimidade por parte de su-
jeitos historicamente negados, silenciados e subalternizados em virtu-
de de não se enquadrarem na ordem normativa heterossexual. Como
não poderia deixar de ser, multiplicaram-se também as resistências
reacionárias contra essas reinvindicações. A história dos feminismos,

sumário 75
bem como a trajetória dos movimentos de diversidade sexual no Brasil
e em todo mundo, atesta o quanto as sociedades modernas demos-
traram e demonstram enorme dificuldade em se abrir de forma pacífica
para tudo aquilo que se mostra diferente do que se tem determinado
socialmente como norma (FACCHINE, 2005; TELES, 2018).

A Igreja Católica – tradição cristã que agrega (ou pelo menos


persuade) 105,911 milhões de pessoas no Brasil – não é exceção nes-
se sentido, pois ela segue a regra. Ainda assim, é possível dizer que
a aversão de setores cristãos aos distintos grupos de diversidade se-
xual e de gênero ganha contornos bastante singulares em território
brasileiro. Inclusive, no que diz respeito à educação e às políticas que
a evolvem. De certa forma, é possível dizer que na tradição católica,
assim como em grande parte das demais ramificações históricas do
cristianismo e do judaísmo, perdura um discurso em que o corpo (e
a matéria, de modo geral) é marcado como naturalmente pecamino-
so – como uma realidade que deve ser superada caso o ser huma-
no almeje religar-se à Deus. De modo distinto das antigas tradições
religiosas ligadas à natureza, nas quais as divindades, via de regra,
fazem parte de um mundo manifesto já existente; na polêmica nar-
rativa do Gênesis, Javé, ser que existe desde sempre, sendo jamais
criado, imaterial e incorpóreo, cria o mundo através da palavra – Fiat
Lux. Mesmo no Novo Testamento, no qual Deus aparece relativamente
humanizado na figura de Cristo, a rejeição da vida na carne, do corpo
e do mundo manifesto é atualizada tanto por Jesus (que afirma não
ser o seu reino da terra, mas do além, e que aqueles que desejam ser-
vi-lo devem negar seus próprios desejos) como por seus seguidores e
mestres fundadores da Igreja (que condenam as relações entre pes-
soas do mesmo gênero, assim como a agentividade da mulher, entre
uma infinidade de outras questões). Nesse sentido, ao atestarmos
que o discurso que assinala o corpo como naturalmente pecaminoso

11 Segundo dados do IBGE de 2020, 50% da população brasileira declara-se católica. Com
a margem de erro de 2% para mais ou para menos.

sumário 76
foi substancialmente assumido e ampliado por diversas tradições cris-
tãs, torna-se possível compreender porque o sexo foi e tem sido um
tema tão interdito por grande parte das ramificações do cristianismo,
um tabu – já que o ato sexual pode ser descrito como fenômeno de
encontro humano que se realiza indiscutivelmente no e a partir do cor-
po. Contudo, mesmo nos contextos cristãos, a exegese que marca a
experiência sexual como algo que deve ser vivenciado exclusivamente
dentro do contexto ascético do casamento heterossexual e para a
reprodução humana, apesar de hegemônica, não é unívoca. Também
não é recente o movimento de insurgência que brota no interior mes-
mo da Igreja Católica no intuito de disputar discursos e significados
da cosmovisão cristã, a fim de propor hermenêuticas que sejam mais
afirmativas da vida na terra, das diferenças, do corpo e do sexo.

É próprio das formações discursivas o elemento da hetero-


geneidade. Um discurso é sempre composto por uma infinidade de
discursos que se confrontam, que se influenciam, se aniquilam, se
reafirmam e se ressignificam (FISCHER, 2001; FOUCAULT, 2004;
2008). Como construtos culturais vivos, os discursos estão sujeitos a
mudanças, e tal não poderia ser diferente no caso daqueles desen-
volvidos e proferidos desde o interior das tradições cristãs. O cristia-
nismo é, antes de qualquer coisa, um campo discursivo que tem sido
elaborado, reelaborado, adaptado e significativamente transformado
durante os últimos dois milênios.

Assim, uma miríade de interpretações absolutamente diferentes


já se desenhou ao longo desse período de tempo – basta que pense-
mos nas profundas mudanças representadas pela Reforma Protestante
de Lutero e, posteriormente, nas contribuições de Calvino – que legou
para o cristianismo certas possibilidades de vida afirmativa na terra, ou,
se quisermos pensar em exemplos mais radicais, basta que lembre-
mos os movimentos profundamente sincréticos que se desenvolveram
nas Américas – onde o catolicismo se amalgamou às espiritualidades
afro-brasileiras, à Umbanda, aos cultos da Jurema, à Santeria e a uma
série de outras tradições espirituais de povos originários.

sumário 77
Não obstante a heterogeneidade e a abertura para a transfor-
mação que se pode verificar em alguns de seus desdobramentos, em
termos políticos e democráticos, é preciso reconhecer e preocupar-
-se com o caráter problemático e potencialmente nocivo que alguns
grupos cristãos têm revelado, principalmente nos últimos decênios da
história do Brasil. Para determinados setores reacionários, católicos e
protestantes (sobretudo os pentecostais e neopentecostais), não bas-
ta que seus membros vivam de acordo com as interpretações bíblicas
e com as visões de mundo que livremente escolheram. Para esses gru-
pos, não é suficiente que eles mesmos tenham a autonomia de viver
de acordo com suas crenças e tradições e de transmiti-las à sua des-
cendência, bem com àqueles indivíduos que livremente as desejarem.
O que vimos no Brasil, a partir da década de 1990 e, de maneira mais
radical nos anos seguintes à década de 2000, foi o desenvolvimento
de um projeto de poder proselitista/religioso, profundamente descom-
prometido e que viola os direitos humanos e com os próprios pilares
do cristianismo12, vinculado a valores ultraconservadores e reacioná-
rios, que representam uma ameaça à sociedade de maneira geral e,
particularmente, às pessoas que vivenciam suas subjetividades fora da
normativa heterossexual, que tenta se apropriar do dispositivo sexuali-
dade para barrar o avanço de grupos subalternizados e categorizados
como minorias sociais e para levar a cabo seu plano de dominação.

Nesse sentido, pode-se pensar nos inúmeros projetos de lei em


tramitação nas diferentes instâncias do Legislativo, postos em pauta
por membros e personalidades conhecidas das comunidades cristãs
(católicas e protestantes), que almejam conter os avanços e as con-
quistas dos grupos de diversidade sexual e de gênero. Julgamos haver
nesses projetos o objetivo de definir as formas como o ser humano
deve interpretar, não somente a sexualidade, mas também sua própria
dimensão ética e reflexiva de pessoa humana. No que diz respeito às
questões de gêneros e sexualidades, o dispositivo “ideologia de gêne-
ro” tem se mostrado uma estratégia discursiva bastante eficiente em

12 Chamamos aqui de cristianismo os valores ensinados pela figura histórica/literária de Jesus.

sumário 78
desqualificar os estudos feministas e da diversidade sexual elaborados
nesse campo de investigações diante de grande parte da população
brasileira, bem como tem se revelado potente em espalhar o pânico
moral por onde circula, principalmente nos espaços educativos13.

A título de compreensão, Maria Machado (2018) nos oferece


uma visão privilegiada dos elementos que estão presentes no momen-
to da construção do dispositivo “ideologia de gênero”. Segundo afirma,
essa ferramenta discursiva tem origem na segunda metade da década
de 1990. Por ocasião da Conferência Internacional da Mulher, realizada
pela ONU em Pequim, no ano de 1995, tem início um debate entre as
estudiosas e ativistas feministas e representantes do vaticano ali pre-
sentes. Nesse episódio, os membros da Santa Sé questionaram o uso
da palavra “gênero”. A exigência desse grupo de religiosos era que os
documentos em pauta usassem a palavra “sexo” ao invés de “gênero”.
Com isto, o que eles pretendiam era reafirmar a ideia de que a mulher é
uma realidade essencial, natural, provinda de Deus, ou seja, eles dese-
javam sustentar a origem biológica do construto social “mulher”.

A partir daí, intelectuais ligados à Igreja Católica começaram a


elaborar diversos argumentos no sentido de desmobilizar aquilo que
passaram a chamar de “ideologia de gênero” – ou seja, se organizaram
para descredibilizar o diverso e heterogêneo conjunto de teorizações
que sustentam que gênero é uma formulação paulatina, que não nasce
com os indivíduos, sendo, portanto, um aparato social e historicamente
construído. Nesse sentido, a autora nos conta ainda que:

13 Perceba-se o tom conspiracionista e o expediente de descredibilização pessoal (falácia


ad hominem) presentes na fala do bispo da cidade do Rio de Janeiro Antônio Augusto
Duarte: “[...] essa ideologização da educação acaba oferecendo aos futuros construtores
da civilização brasileira e da cultura do povo mais acolhedor do mundo, a oportunidade
de ‘monopolizarem’ os três alicerces fundamentais da sociedade: a sexualidade humana,
a família e os valores éticos. A ideologia do gênero é tão perniciosa, que não atrai nem
convence as pessoas bem-educadas, e por isso mesmo, só pode ser implantada de forma
totalitária. Trata-se, em definitiva, da ditadura do relativismo, tão de moda numa sociedade
e numa cultura, que se auto intitulam democráticas. A educação não deve – não pode – ser
entregue nas mãos desses ‘pseudo-mestres’ de ‘verdade geradas’ na penumbra das ideias
e das opiniões tão alheias à dignidade da inteligência e da liberdade humana [...]” (DUARTE,
ARQUIDIOCESE DO RIO DE JANEIRO, 2014 apud Mendonça, 2018, p. 110, grifos nossos).

sumário 79
Em 1998 [...], a Comissão Episcopal do Apostolado Laical e a
Conferência Episcopal do Peru lançaram um documento intitu-
lado La ideologia de género: sus peligros y alcances, associan-
do a perspectiva de gênero ao marxismo, ao ateísmo e à “visão
construcionista” que negaria a dimensão natural e instintiva de
homens e mulheres [...] (MACHADO, 2018, p. 4).

De modo geral, o sintagma “ideologia de gênero” tenta desqua-


lificar os estudos de gênero e os direitos sexuais e reprodutivos a partir
de uma ressignificação anacrônica e capiciosa da palavra ideologia.
A argumentação desse grupo de reacionários afirmava que os estudos
de gênero não poderiam ganhar status de teorias, pois, segundo eles,
uma teoria necessita ser verificável através de experimentos e isso
seria impossível no caso em questão. A ideologia, por outro lado, seria
um corpo fechado de ideias, um falso discurso inventado por algum
grupo ou indivíduo pessoalmente implicado na situação em questão,
logo, não é neutra e, por conseguinte, também não é científica (MA-
CHADO, 2018). Sabemos que a ideia de teoria não se restringe àquilo
que pode ser verificável por meio de experimentos. Parece haver nes-
se modo de compreender o exercício da teorização resquícios das
ilustrações infantis que apresentam o cientista como alguém cercado
por tubos de ensaio em um laboratório. A noção de teoria está, na
realidade, muito mais próxima da descrição que assinala tal exercício
como um conjunto de elaborações lógicas em um dado campo de sa-
ber. Por outro lado, sabe-se largamente que nenhuma argumentação
teórica é isenta de certos aspectos ideológicos que apontam para o
caráter interessado de toda e qualquer construção científica, mesmo
nas ciências da natureza ou da vida, onde o elemento autobiográfico
e autorreferenciado da ciência costuma ser menos evocado. Assim, é
possível afirmar com certeza que a ficcional ideia de uma neutralidade
e distanciamento foi superada a partir de aprofundamento epistemo-
lógicos no campo das ciências (MIRANDA, 2016).

O que está em jogo, no pano de fundo do dispositivo “ideologia


de gênero”, é antiga e pretensamente superada dicotomia que se es-
tabelece entre fé e ciência. Trata-se de reclamar para o campo religioso

sumário 80
a autoridade de emitir os discursos de verdade sobre sexo e gênero.
Diz respeito à tentativa de fazer com que instituições e instâncias au-
todeclaradas laicas (como o Estado, o debate público, a saúde, as
políticas públicas, mas sobretudo a educação) sejam orientadas por
discursos chancelados, não pela ciência, mas por dEUs14, ou, melhor
dizendo, por aqueles que desejam falar em nome dele. Trata-se, em
último caso, de fazer de um determinado conjunto de interpretações da
Bíblia a regra máxima que balizará todas as questões, mesmo sobre
a vida das pessoas que não a escolheram como regra de fé – projeto
que parece nos perguntar se o medievo realmente terminou. Um dos
elementos mais problemáticos desse projeto é que essa disputa tem
na escola sua principal arena. A batalha contra o pânico moral pro-
movido por discursos como o dispositivo “ideologia de gênero” e o
movimento Escola Sem Partido (JUNQUEIRA, 2017; BALIEIRO, 2018;
DUARTE; MIRANDA, 2022) certamente tem se constituído como um
enorme empecilho no que diz respeito ao desenvolvimento de políti-
cas públicas voltadas às pessoas que vivenciam gêneros e sexuali-
dades fora da normativa heterossexual. De norte a sul do Brasil, tes-
temunham-se constrangimentos e perseguições políticas, calúnias e
mesmo agressões físicas a docentes, gestoras e gestores de escolas
públicas, estaduais e municipais que demonstraram abertura para tra-
tar as questões de gêneros e sexualidades de maneira cientificamente
referenciada (SANTOS, LAGE, 2016).

Nesse ponto, desejamos chamar atenção para aquilo que


constitui a indagação principal deste ensaio: se, no âmbito do ensino
público, as questões de gêneros e sexualidades têm causado tantos
desconfortos (mesmo quando o Estado brasileiro se autodeclara lai-
co e, portanto, não orientado por quaisquer sistemas religiosos), o
que se poderia esperar das escolas confessionais católicas – mode-
los de organização escolar legalmente previstos que declaradamente
professam a orientação católica como doutrina e princípio filosófico a
ser admitido como signo de verdade?

14 Essa grafia tenta desnudar a maneira egóica com a qual muitas pessoas se utilizam da
ideia de um deus para fazerem valer seus próprios desejos.

sumário 81
Segundo Bittar (2010), a educação confessional, em linhas ge-
rais, pode ser caracterizada por professar expressamente a orientação
de uma certa ordem religiosa. Em muitos casos, essas escolas podem
estar associadas ou pertencerem a determinadas igrejas. No Brasil,
existem escolas confessionais de diversas ordens: franciscanas, je-
suítas, salesianas, luteranas, presbiterianas, batistas, adventistas etc.
Diferentemente do que ocorre nas instituições laicas, na prática pe-
dagógica das escolas confessionais um dos objetivos principais é o
desenvolvimento de uma consciência religiosa e a adoção de uma
conduta moral baseadas nos princípios que essa instituição assume.

Para tanto, as referidas instituições procuram ampliar o alcance


de sua abordagem para além da esfera do cognitivo – isto é, procuram
oferecer um modelo educativo que seja também espiritual. Assim, uma
escola confessional católica é uma instituição educativa que professa
os princípios filosóficos/teológicos da Igreja Católica como valores ine-
gociáveis. Talvez, nessa altura de nossa reflexão, seja preciso fazer um
adendo importante no sentido de elucidar algo que nos parece signifi-
cativo sobre as discussões de gênero no campo educativo: julgamos
haver um erro na afirmação que assinala a maioria das escolas como
resistentes à abordagem dessas questões. Seria mais assertivo dizer
que elas, na realidade, são aversas apenas às discussões de gênero
que se orientam de maneira afirmativa das vidas que se enquadram
fora da heteronormatividade e ou da heterossexualidade compulsória.

Pensemos: os banheiros da escola, que separam meninos e


meninas, estão discutindo gênero, assim como as filas que também
o fazem. Quando docentes dizem como meninas e meninos devem
se sentar, quem podem e quem não podem amar, como e com quem
devem brincar, como devem se comportar, enfim, em todas essas si-
tuações a escola está tematizando gênero. Ela está pautando gênero
quando, ainda hoje, reproduz enunciados que assinalam os rapazes
como superiores, produzindo nas mulheres toda sorte de inseguran-
ças e nos próprios homens a vulnerabilidade advinda da crença de

sumário 82
que não precisam estudar, uma vez que são naturalmente mais inte-
ligentes (LOURO, 1997; SILVA, 2018).

Portanto, intuímos que o que está em questão não é abordar ou


não abordar as questões de gênero na escola, mas a partir de qual
perspectiva o faremos – se das que afirmam a vida ou das que a negam.

No que diz respeito à população católica do Brasil, é possível


afirmar que para a maioria dessas pessoas, leigas ou religiosas, gêne-
ro diz respeito a uma esfera ontológica do ser humano, isto é, uma rea-
lidade essencial, sempre igual a si mesma, não passível de mudança,
nem sujeita à transformação histórica – já que se trata da forma ade-
quada de ser homem e de ser mulher que foi designada por Deus des-
de o momento da criação da humanidade. Uma vez que assumida a
ideia de que os gêneros são expressão da vontade inequívoca de Deus
para os seres humanos, uma vez que se admita que esses gêneros
devem ser coerentes com as constituições biológicas/corporais que os
devem sustentar (segundo aquilo que foi culturalmente determinado)
e, que se reconheça que os seres humanos devem, obrigatoriamente,
orientar seus desejos no sentido heterossexual, parecem aniquiladas
quaisquer possibilidades de diálogo entre a profissão de fé católica e
as teorias de gênero – já que estas últimas compreendem sexo, gênero
e sexualidade como categorias contingenciais, cambiantes, sujeitas às
mudanças em cada contexto e período histórico.

Essa aparente impossibilidade de diálogo, essa maneira de


reduzir a complexidade dos fenômenos humanos e sociais a fórmulas
ingênuas nas quais vigora uma dicotomia ultrapassada que nunca foi
afirmativa da vida, têm sido causa de adoecimento, sofrimento psí-
quico e assassinato para um número incalculável de pessoas, sobre-
tudo para aquelas que não se enquadram na normativa cisheterosse-
xual15. É muito comum que pessoas cristãs situadas no espectro das

15 Cisheterossexualidade diz respeito ao sexo, gênero e sexualidade designado pela socie-


dade aos indivíduos no seu nascimento. A esse respeito ver: NASCIMENTO, Letícia C. P.
do. Transfeminismo. São Paulo: Jandaíra, 2021.

sumário 83
dissidências sexuais e de gênero sejam pressionadas, por parte de
líderes e discursos religiosos, a abrir mão de sua sexualidade.

Por outro lado, cristãos e cristãs também são questionadas com


relação à sua profissão de fé por setores mais progressistas da socie-
dade caso se afirmem fora do espectro heterossexual e não abandonem
suas convicções religiosas – nesses últimos casos, evoca-se a Fogueira
das Bruxas, a Santa Inquisição, Levítico 20:13, a homofobia e a miso-
ginia de Paulo de Tarso etc. Parece haver uma norma tácita que impõe
que esses sujeitos devem escolher entre sua sexualidade ou o exercício
da religiosidade cristã. O mesmo tipo de pacto de irreconciliabilidade
que parece querer se estabelecer no que diz respeito às possibilidades
de diálogo entre as doutrinas cristãs, em geral, e as teorias de gênero.

A própria reinvindicação de legitimidade por parte dos sujeitos


que simultaneamente se situam fora da norma cisheterossexual e se
autodeclaram católicos ou evangélicos deveria ser indicativa da ne-
cessidade do pensamento cristão reelaborar suas posições oficiais
com relação a estes sujeitos. Pense-se, nesse sentido, na imensa
quantidade de vezes em que movimentos semelhantes já ocorreram
em virtude da permuta de significados vivenciada por alguns sujeitos
históricos. Rememore-se, por exemplo, a profunda transformação do
pensamento cristão católico a respeito dos seres humanos escraviza-
dos em território brasileiro: se no passado a Igreja endossou a postu-
ra escravagista como sistema econômico legítimo, também ela, por
força das reivindicações populares e em virtude da imparável roda
da história, foi pressionada a reorganizar seus postulados de modo
a reconhecer seus equívocos e posicionar-se de maneira antirracista.
No dia 21 de março de 2021, dia Internacional de Luta pela Elimina-
ção da Discriminação Racial, o Papa Francisco em suas redes sociais
(Twitter), afirmou que o “racismo é um vírus sempre a espreita”. Onde
seguindo a vocação do seu papado segue se colocado ao lado dos
subalternizados e contra a exclusão e discriminação

sumário 84
No mesmo sentido, pense-se nas profundas mudanças que
ocorreram na maneira com que os discursos cristãos enxergam dife-
rentes sujeitos como comerciantes bem-sucedidos, mulheres e crian-
ças. Se anteriormente os primeiros eram vistos como avaros que não
herdariam o Reino dos Céus, a partir das contribuições calvinistas, tor-
naram-se sujeitos predestinados para a vida eterna e multiplicadores
de bençãos (CAMBI, 1999) – processo que se intensificou exponencial-
mente com a Teologia da Prosperidade a partir da década de 1990. As
mulheres, assinaladas pelos pais fundadores da Igreja como impuras
e destinadas ao silêncio, ainda no passado, tornam-se místicas e escri-
toras reconhecidas, como Santa Tereza de Ávila, ou como as inúmeras
pastoras e cantoras evangélicas do tempo presente. Por fim, as crian-
ças – de adultos em miniatura, cujos pecados deveriam ser endireita-
dos com a violência da vara, transmutaram-se em centro da família e
objeto de carinho e cuidado por parte dos pais (MANACORDA, 2010).

Ainda nessa direção, é preciso lembrar que, até a segunda meta-


de do século XIX, conforme nos lembra Foucault (2020), homens que vi-
viam experiências eróticas e afetivas fora da norma heterossexual eram
interpretados apenas como pessoas que cometeram um determinado
tipo de pecado – jamais um sujeito juridicamente constituído. Sodomia
dizia respeito a uma prática e não a uma configuração de sujeito. Den-
tro das categorias “sodomia” e “pederastia” eram agregadas diversas
formas de dissidências de gênero e sexualidade de modo completa-
mente assistemático. Não havia ainda um aparato discursivo capaz de
tornar inteligíveis as incontáveis formas de manifestação do gênero, dos
afetos e do desejo. Note-se que, nesses contextos, a experiência ho-
moerótica de mulheres, de tão impensável, quase não se discutia.

Assim, diante das profundas transformações ocorridas na malha


social, pequenos ensaios de mudança começam a se configurar em
nosso tempo, de maneira tímida, é verdade, porém, substancialmen-
te significativa, sobretudo se considerarmos o caráter marcadamente
conservador que constitui a Igreja Católica. Nesse aspecto, Ramírez e
Lopes (2021, p. 4) afirmam que:

sumário 85
Algunos discursos eclesiales y sociales han creado una disyun-
tiva entre ser una persona con orientación sexual o identidad de
género diversa y la posibilidad de la vivencia de la espiritualidad
cristiana; sin embargo, la realidad eclesial evidencia que mu-
chas personas LGBT+ profesan la fe cristiana y encarnan en
su propia vida los valores del Evangelio; realidad a la que no es
indiferente el Papa Francisco como se puede ver en la ya men-
cionada frase “Si una persona es gay y busca al Señor y tiene
buena voluntad, ¿quién soy yo para juzgarla?

Uma leitura das religiosidades que seja social e historicamente


referenciada – isto é, que a recoloque no movimento contínuo da his-
tória, certamente reconhecerá as diversas manifestações de exercício
sistematizado da fé como movimentos culturais abertos aos profundos
processos de mudança que marcam todas as civilizações humanas.

Parece singularmente curioso que os discursos que partem do


pressuposto da existência de uma verdade intransponível floresçam
no seio de uma tradição que já se reviu tantas vezes quanto a espiri-
tualidade cristã. A própria iconografia católica pode ser lida como uma
hermenêutica sensível, que assinala o quanto as questões de gênero e
sexualidade gozavam de um status de irresolução mesmo para artistas
e intelectuais cristãos do passado. Um olhar detido sobre alguns mar-
cos iconográficos pode ser eficaz em demostrar que a inquietação de
certos grupos católicos, tanto com relação à misoginia (que tem sido
insistentemente reiterada), quanto com as leituras ascéticas de que o
sexo tem sido objeto por tanto tempo.

Consideremos conhecida e recorrente misoginia cristã. Agora,


somente a título de exemplo, tragamos à memória a Grande Panaghia
(século XIII). Pensemos ainda na Virgem da Ternura de Vladimir (século
XII)16. Ambas parecem querer eclipsar a leitura misógina que aponta
para Eva (ou para “A mulher”) como fonte do mal e queda da humanida-
de. Na primeira pintura, cujo título poderia ser traduzido como “A grande
santíssima”, Maria aparece vestida da cabeça aos pés. Sabemos que,

16 Ambas abrigadas na galeria Tretjakov, em Moscou.

sumário 86
na hermenêutica oficial da espiritualidade cristã, ela representa a ma-
terialidade do Verbo – o elemento carne, já que foi da matéria de seu
ventre que brotou o Cristo. Contudo, sua expressão facial revela ser ela
tão situada no Éter quando aquele que a criou. Não há alegria ou triste-
za – ela parece não pertencer a este mundo. Do seu corpo, somente se
vê o rosto e as mãos (ou a identidade e as obras, se quisermos) – não
há nenhuma menção à carne – não há colo, não há pés desnudos. Seu
manto lembra as asas de uma águia em estado de repouso – isso de-
nota que ela talvez seja capaz de voar. Ela estende os braços para cima:
o gesto é ambíguo, pode ser de aceitação ou de exibição. No centro de
seu peito, em seu coração, há um círculo de onde brota uma criança
régia. De um total de nove círculos, os cinco maiores se destacam na
cena: um sobre cada uma de suas mãos, no interior dos quais pode-
-se ver anjos ostentando a cruz, um circundando a cabeça da virgem,
um em seu peito, de onde brota o menino e, por último, um menor,
circundando a cabeça do menino. A disposição dos círculos forma um
triângulo – símbolo pagão de sacralização do milagre que ocorre em
cada ventre das fêmeas humanas. Há uma enorme semelhança entre o
resplendor de Jesus e o de Maria. Do mesmo modo, o menino parece
seguir os movimentos das mãos da mãe – há possibilidade de um eco
poético se consideramos que foi ela quem o ensinou a falar e a agir.
O quadrante superior da cena quer sugerir que a cabeça de Maria per-
tence ao céu – Jesus parece ser uma ideia sua, algo que aconteceu em
sua mente antes de descer para seu ventre/terra.

De modo semelhante, em Virgem da Ternura de Vladimir, a mes-


ma expressão etérea sugere ser ela vinda de outro lugar. Novamente,
somente o rosto e as mãos podem ser vistos. Aqui, um jogo de olhares
interessante se percebe: enquanto a criança olha para a mãe, numa
proximidade edípica que poderia sugerir um beijo, ou um segredo pas-
sado de boca a boca, esta, não direciona seu olhar para nenhum ponto
reconhecível – seu interesse é ainda o alto. Ela é abstrata e inalcan-
çável – é como uma ideia. Todos esses elementos são amplamente
conhecidos dos estudiosos de mariologia e podem ser reconhecidos

sumário 87
também em outras obras de arte – como na Ascenção, da escola de
Rublev (século XV), entre uma série de outros possíveis exemplos.

Para Raniero Cantalamessa (1992), teólogo e cardeal italiano


da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, Maria ocupa lugar de
centralidade na fé cristã. Ela é o modelo mais acabado de plenitude
espiritual. É para ela que os cristãos devem olhar na busca da conduta
exemplar, ela é um tipo, um espelho. Segundo afirma, Maria é exemplo
num sentido em que nem mesmo Jesus poderia ser – visto que esse é,
ao mesmo tempo homem e Deus, enquanto ela é toda constituída de
humanidades. Ainda segundo o teólogo, há um importante paralelismo
entre as figuras de Eva e de Maria. Para ele, se adotamos esse sistema
de crenças e assumimos que Eva disse sim à Serpente e com isso
trouxe ruína ao mundo, teremos de admitir também que Maria disse sim
ao Anjo e, com isso, trouxe salvação. É por isso que o conhecido ditado
ensina: “o que Eva atou com sua ganância, Maria desatou com sua fé”.

Ainda sobre temas como as possibilidades de gozo na carne, ou


o homoerotismo latente em distintos episódios do imaginário cristão,
é possível identificar o mesmo tratamento sensível através da arte reli-
giosa. Pense-se a esse respeito no Êxtase de Santa Tereza – esculpido
por Bernini entre os anos de 1647 e 1652. Na escultura, que retrata a
visita do anjo à Santa Tereza, gozo celestial e prazer carnal parecem se
confundir ou se amalgamar. Historicamente a escultura causou contro-
vérsias devido seu caráter erótico – por diversas vezes historiadores da
arte viram na obra a afirmação de que o ato sexual pode ser uma ex-
periência sagrada – mais uma vez, um tema resgatado do paganismo.

Para Camille Paglia (1999, p. 115), “[...] o iconicismo homoeró-


tico completa seu círculo no tema popular italiano de São Sebastião,
um belo jovem seminu cravado de flechas fálicas [...]”. Tomando como
modelo a tela pintada por Boticelli, em 1474, sua leitura sugere que a
composição é herdeira do modelo clássico do “Menino de Krítios” –
tema que celebrava a beleza dos efebos da Grécia. Ainda nesse sen-
tido, a referida historiadora identifica a androgenia como tema central

sumário 88
do Davi esculpido por Donatello, entre 1430 e 1432 e, de fato, somente
pelo pequeno pênis, é possível identificar que a escultura retrata um
jovem rapaz ao invés de uma moça.

Queremos dizer com essa breve incursão na iconografia cristã


que, se nossa leitura se sustenta, seria possível afirmar que, ainda
que desejemos livremente pautar-nos pela espiritualidade cristã, ain-
da que decidamos viver segundo esses princípios, a misoginia, as
aversões fóbicas diante da diversidade sexual e de gêneros seriam
uma opção e não uma ordem expressa ou princípio fundamental de
fé. Dissemos acima que a ciência é sempre parcial e interessada.
Afirmamos agora que a teologia também o é. A pluralidade de leitu-
ras já estabelecidas, bem como a possibilidade de novas leituras da
religiosidade cristã sugerem que, se nos decidimos historicamente
por uma teologia da negação e da interdição – da misoginia, do sexis-
mo, das aversões fóbicas, sejam quais tenham sido os motivos, isso
não significa que não possamos, no presente e no futuro, optar por
uma teologia da afirmação da vida – que considere cada ser humano
como um milagre e como objeto de amor de Deus.

Portanto, intuímos que o que está em questão não é abraçar ou


não o cristianismo como sistema de crença, mas a partir de qual teologia
o faremos – se a partir das que afirmam a vida, ou das que a negam.

Acreditamos que um dos caminhos para a adoção de tal teo-


logia afirmativa no meio educativo, bem como para a elaboração de
uma pedagogia confessional afirmativa, assim como para o engaja-
mento das escolas confessionais católicas nos debates a respeito de
gêneros e sexualidades (em alinhamento com a perspectiva dos direi-
tos humanos), seja a assunção da categoria diálogo, como elemento
inegociável a qualquer prática pedagógica num tempo de tantas ten-
sões como o presente.

sumário 89
Nesse sentido, julgamos ver no pensamento pedagógico de
Martin Buber17 e em sua filosofia do diálogo caminhos que podem nos
ajudar a pensar como essa categoria pode ser propositiva para a edu-
cação confessional, sobretudo no que concerne às problemáticas de
sexualidades e de gêneros.

Como se sabe, a abertura do pensamento de Martin Buber fez


com que sua obra fosse significativamente apropriada por diversas
áreas do conhecimento como a teologia contemporânea, a filosofia, a
hermenêutica, os direitos humanos, o judaísmo, os estudos de tradu-
ção, a antropologia, e, sobretudo, a educação (ZUBEN, 2003). A obra
“Eu e Tu” certamente é o estágio mais maduro de sua conhecida filoso-
fia do diálogo – texto que representa sua maior contribuição à história
do pensamento humano e também às teorias pedagógicas.

De acordo com Buber (2001), o mundo é duplo para os seres


humanos, segundo a dualidade de suas atitudes. Dito de outro modo,
há duas maneiras pelas quais os humanos posicionam-se diante dos
seres do mundo. Essas maneiras podem ser compreendidas pelas
palavras-princípio “Eu-Tu” e “Eu-Isso”. Enquanto a palavra-princípio
Eu-Tu expressa relação, encontro e reciprocidade e só pode ser pro-
nunciada por um ser em sua integralidade, a palavra-princípio Eu-Is-
so expressa experiência, análise, conhecimento. É importante desta-
car desde já, nessa descrição breve que não pretende apresentar em
minúcias um pensamento tão multifacetado quanto o de Buber, que
é justamente a possibilidade de direcionar a palavra-princípio que
configura um Eu de onde ela possa partir.

Segundo Buber (2001, p. 51), “[...] não há um Eu em si, mas


apenas o Eu da palavra-princípio Eu-Tu e o Eu da palavra-princípio Eu-
-Isso. Quando o homem diz Eu, ele quer dizer um dos dois [...]”. Dito
de outro modo, não há ser em si, mas sempre ser para o outro, seja
na reciprocidade do encontro, seja na relação de apreensão de uma

17 Filósofo judeu significativamente adotado tanto no âmbito dos debates educacionais


quanto nos debates religiosos, sobretudo a partir da obra intitulada Eu e Tu (1923).

sumário 90
experiência mediada por um movimento de intelecção. Desse modo,
para o filósofo alemão, o ser humano é essencialmente um ser de re-
lação e encontra sua realização na vida em comunidade, como vida
marcada pelo encontro entre pessoas (SANTIAGO, 2008).

Em sua concepção pedagógica, observam-se traços que perpas-


sam toda sua filosofia do diálogo. Maria Betânia Santiago (2008) assi-
nala que a posição defendida por Buber pode ser situada dentro do
Personalismo Pedagógico – tradição de pensamento que reconhece a
esfera da transcendência ao lado do mundo natural. Nessa direção, ele
irá compreender o ser humano como possuidor de um caráter incon-
cluso, marcado pelo inacabamento. Com efeito, a partir de tal inacaba-
mento compreende-se o processo educativo como condição para que
a humanidade se realize no e a partir do próprio ser do humano – ser
humano não é coisa dada, mas fruto de um processo que não termina.

É importante ainda salientar que “[...] Buber parte do reconhe-


cimento de um princípio que orienta e impulsiona o educativo: o fato
de que o novo irrompe a cada nascimento e com isso nos oferece a
possibilidade de renovação dos humanos, uma possibilidade histó-
rico-antropológica de ‘começar de novo’ [...]” (SANTIAGO, 2008, p.
249). A partir dessa compreensão, que em muito se aproxima da ideia
de natalidade em Hanna Arendt, Buber compreende que os novos se-
res humanos surgem em cada momento com suas próprias aptidões,
com seus modos, com seus formatos únicos e, por isso, realizam o
que lhes é específico em dado tempo histórico, garantindo com isso o
surgimento do novo – do novo no humano e do novo no mundo.

O que Buber pretende com esses postulados é assinalar o po-


tencial renovador apresentado por cada nova geração que chega ao
mundo e, desse modo, atestar que a história não se encontra pre-
determinada, pronta, fadada a se repetir. Em contrapartida, diversas
práticas educativas têm cerceado esse movimento de renovação do
mundo uma vez que, a partir da adoção de ideias totalizantes, tentam

sumário 91
conformar aqueles humanos recém-chegados a um mundo já pronto,
acabado e sem possibilidade de transformação.

Para Buber (1982), existem duas maneiras básicas de influenciar


os seres humanos em seu modo de pensar e de viver. Destacamos
que essas duas concepções podem ser verificadas no exercício da
docência. Elas são: a imposição e a abertura.
Na primeira, a pessoa quer impor a si própria, impor sua opinião
e atitude de tal forma que o outro pense que o resultado psíquico
da ação é seu próprio entendimento, apenas liberado por aquela
influência. Na segunda maneira básica de agir sobre o outro, a
pessoa quer encontrar também a alma do outro [...] o outro deve
apenas abrir-se nesta sua potencialidade e essa sua abertura dá-
-se essencialmente não através de um aprendizado, mas através
do encontro, através da comunicação existencial entre um ente
que é um outro que pode vir a ser. A primeira maneira desen-
volveu-se com mais intensidade no campo da propaganda, a
segunda no da educação (BUBER, 1982, 149-150, grifo nosso).

O filósofo segue argumentado que o propagandista não se inte-


ressa de fato pela pessoa que deseja influenciar – as características in-
dividuais dos sujeitos somente interessam na medida em que possam
ser mobilizadas para que deles se tire proveito. Já para o educador,
cada ser humano possui, em sua singularidade, possibilidades de agir
sobre o mundo de uma maneira única. Nesse sentido, ambos, docen-
tes e discentes, estão envolvidos numa relação de mútua atualização
– atualização que, inclusive, se estende para atualização do mundo,
não cabendo por isso a imposição de um sobre o outro.

Diante disso, se junto com Buber, assumirmos que a educação


é um fenômeno essencialmente dialógico, e que o direcionamento
da palavra-princípio Eu-Tu (isto é, o verdadeiro diálogo) só é possível
a partir da integralidade do ser, ou do ser em sua integralidade, se
admitirmos que a imposição de um sobre o outro no seio do educa-
tivo não somente o descaracterizaria (fazendo-o aproximar-se muito
mais da propaganda que da educação, mas também impediria a re-
novação do mundo), seria preciso que repensássemos a interdição

sumário 92
direcionada às questões de gêneros e sexualidades nas escolas bra-
sileiras, inclusive nas confessionais.

Da mesma forma, se no rastro do filósofo reconhecermos que


“[...] as linhas de todas as relações, se prolongadas, entrecruzam-se
no Tu eterno [...]” – ou seja, que é no encontro entre o Eu e o Tu que
se realiza o encontro com Deus – seria então preciso admitirmos que,
negar as aberturas de diálogo, ou ainda, negar a possibilidade de que
o ser humano se presentifique em sua integralidade, se constituiria em
um tipo de violência que comprometeria não somente o caráter edu-
cativo das escolas confessionais, mas também o religioso.

A sexualidade e o caráter generificado dos seres humanos, tal


qual a religiosidade, são experiências profundamente marcantes na
trajetória dos grupos sociais e dos indivíduos. Não nos parece justo,
nem afirmativo da vida, que os seres humanos sejam obrigados a es-
colher entre suas sexualidades ou suas religiosidades. Entre um e ou-
tro, é preciso apostar na integralidade – já que a negação, a interdição
e a marginalização das dissidências de gênero e sexualidade, ou seja,
a fragmentação do humano por parte das escolas, transmutariam o
educativo em mera catequese.

ÚLTIMAS PALAVRAS

Os marcadores de gênero e sexualidade têm insistentemente se


reafirmado como causa de sofrimento, de perseguição e de violência
em inúmeros espaços, inclusive nos diversos níveis da escola. Estu-
diosos, como Bourdieu e Passeron (2014) dentre outros, começaram
a problematizar e a denunciar visões encantadas a respeito da escola
e do sistema educacional como garantia do progresso, de mobilida-
de social e de inclusão. A partir desses estudos, sabemos que essa
instituição (confessional ou não) não somente foca na construção de
conhecimentos, mas ao fazê-lo, reproduz padrões sociais que podem

sumário 93
ser profundamente opressores e segregadores. Em virtude disso, dife-
rentes sujeitos não têm visto a escola como um lugar no qual se deve
demorar e ou considerá-la como um espaço que contribui para a mobi-
lidade social, na democracia e pluralidade (CARRITO; ARAUJO, 2011).

Em virtude de sua alegada vocação ao amor e ao acolhimento


do outro, a superação das diversas violências, inclusive as de gêne-
ro, deveria ser algo eminente para as instituições educativas religio-
sas. Em consonância com essa perspectiva, o Papa Francisco (2013,
p. 88), em sua exortação apostólica Evangelii Gaudium, chama a aten-
ção dos cristãos católicos afirmando que “[...] na sua encarnação, o
Filho de Deus convidou-nos à revolução da ternura”. Os questiona-
mentos levantados em torno desse campo, certamente precisam de
amadurecimento e da elaboração de perguntas que ajudem todos
e todas a ir além da ingenuidade e da tentativa de manter o mundo
onde todos e todas vivenciam exclusivamente a cisheterossexualida-
de – ou seja, um mundo que nunca existiu.

Tal qual já vimos em tempos recentes, com as ecumênicas e


insurgentes teologias da libertação, as instituições católicas – dentre
elas as escolas, precisam ser aliadas às vozes que desejam traba-
lhar em prol da renovação do mundo e da afirmação da vida. Para
Buber (1982), assim como para Arendt (2016), o educativo atravessa
incontornavelmente o movimento de apresentar o mundo àqueles que
nele chegam. Trata-se de, em um mesmo movimento, preservá-lo e
renová-lo. Preservar as ideias, as ações e expressões que celebram
a humanidade em suas infinitas possibilidades e renovar aquilo que
já não cabe, superar as vozes que aprisionam, que negam, dividem,
marginalizam e matam. Tal empreendimento educativo/religioso certa-
mente se apresenta como tarefa que deveria inspirar responsabilidade
e abertura, e não imposição. E, imbuídos dessa responsabilidade ética
para com aqueles e aquelas que chegam ao mundo e não deveriam
ter de escolher entre suas vidas e sua fé, afirmamos que entre a edu-
cação confessional católica e os estudos de gênero não precisa haver
nenhuma dicotomia, mas um diálogo fecundo.

sumário 94
REFERÊNCIAS
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sumário 97
4
Capítulo 4

Subversões queer no
território escolar:
da normalização dos
corpos à invenção de
novas normas de gênero

Mariana Pombo

Mariana Pombo

Subversões queer
no território escolar:
da normalização dos corpos
à invenção de novas normas
de gênero

DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.4
Quero imaginar uma instituição educativa mais atenta à sin-
gularidade de cada estudante que à preservação da norma.
Uma escola microrrevolucionária, onde seja possível potencia-
lizar uma multiplicidade de processos de subjetivação singular
(PRECIADO, 2020a, p. 199).

A pane só está começando. Isso porque os corpos que povoam


o currículo já não aguentam mais o sufoco claustrofóbico do
dever-ser, da identidade fixa, dos conhecimentos totalizantes e
dos binarismos essencialistas, que trabalham para estancar os
movimentos subterrâneos da diferença. Corpos em devir esca-
pam e se espalham. Ressonâncias queer e descentramentos
da norma são produzidos, assombrando saberes ordeiros, ver-
dades universais e prescrições teleológicas (SILVA, s/d, p. 1).

INTRODUÇÃO

Recentemente, em uma aula da disciplina “Psicologia e Educa-


ção: conexões e diálogos”, ministrada por mim na Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro, uma estudante relatou uma situação que pre-
senciou na escola em que estagiava: em um evento comemorativo da
escola, cada criança recebeu um balão, que poderia ser levado para
casa. Havia balões de muitas cores diferentes. No final da distribuição
dos balões, um menino protestou por ter ganhado um balão rosa, argu-
mentando que rosa é cor de menina e que o pai não iria gostar de ver
o filho com aquele objeto “feminino”. A equipe da escola, ao conversar
posteriormente sobre o ocorrido, tomou a decisão de que, nos próximos
eventos, não haveria mais balões rosa a serem distribuídos, só balões
de outras cores, para evitar possíveis conflitos com as famílias.

Esse relato nos fornece um exemplo, evidente e desconcer-


tante, de que a abordagem dos temas do gênero e da sexualidade
é frequentemente obstaculizada, e mesmo reprimida, no ambiente
escolar. O que poderia ser ocasião para uma discussão superinte-
ressante com as crianças e seus pais sobre os papeis e estereótipos

sumário 99
de gênero, visando à desconstrução de binarismos estanques e redu-
cionistas, além de não ter sido aproveitado nesse sentido produtivo,
acabou culminando com uma atitude escolar que apenas reforça es-
ses binarismos e as discriminações e violências que os acompanham.
E seria, é claro, uma ilusão acreditar que não falar sobre conflitos e
desconfortos experimentados na escola teria o efeito de reduzir mal-
-estares. Muito pelo contrário, quanto mais o ambiente escolar recalca
temas sensíveis, mais consequências negativas eles produzem, como
evasão (ou melhor, expulsão) escolar e adoecimento psíquico e, mes-
mo, suicídio de alunos e professores.

Ou seja, as temáticas do gênero e da sexualidade se impõem no


cotidiano escolar e perpassam as relações entre os sujeitos, mesmo
que sejam empurradas para debaixo do tapete e mesmo que haja,
ainda, uma enorme pressão nesse sentido, muitas vezes das próprias
famílias dos alunos, e também de discursos reacionários contemporâ-
neos, como os contra a “ideologia de gênero” ou os a favor da “escola
sem partido”, que oprimem e constrangem os profissionais da educa-
ção a não abordar esses assuntos (NASCIMENTO et al., 2021). Tanto
as discussões sobre nome social e uso de uniforme, banheiros e filas
por estudantes trans e não binários, como questionamentos sobre as
marcas patriarcais, cis e heteronormativas dos currículos e materiais
didáticos são trazidas à tona pelos próprios alunos. Diante disso, é
preciso, portanto, tirar do lugar e sacudir os tapetes, e ouvir e acolher
as novas questões e demandas que surgem no ambiente escolar, so-
bretudo dos estudantes dissidentes sexuais e de gênero.

Seguindo essa aposta de escuta e de acolhimento das dissi-


dências, neste texto apresentarei, em primeiro lugar, a proposta da
teoria queer de desconstrução de binarismos reducionistas, para, em
seguida, realizar uma crítica ao processo de normalização sexual e
de gênero empreendido pela instituição escolar. Por fim, defenderei a
possibilidade de vislumbrarmos a escola como território potente para
subversões e ressignificações das normas de sexo e de gênero.

sumário 100
TEORIA QUEER E DESCONSTRUÇÃO
DE BINARISMOS

O movimento e a teoria queer florescem nos anos 1990, coadu-


nados com ativismos e pensamentos que emergem desde os anos 80
e que criticam os pressupostos e as estratégias políticas e discursivas
tanto do feminismo como dos coletivos de gays e de lésbicas hegemô-
nicos até aquele momento – movimentos brancos, heterossexuais, de
classe média, coloniais. Desse modo, sujeitos subalternos e excluídos
da militância iniciam suas próprias revoluções, dissidindo dos movi-
mentos tidos como normativos das décadas anteriores, questionando
o caráter supostamente natural e universal das identidades e propondo
a descentralização do sujeito político (PRECIADO, 2018a, 2018b).

Teresa de Lauretis (2010/2019) afirma que a expressão “teoria


queer”, inventada por ela em 1990, designa um projeto de crítica às
identidades de gays e de lésbicas, vistas como conservadoras, e um
gesto na direção de uma antinormatividade. Nesse contexto, a publi-
cação de Problemas de gênero por Judith Butler, também em 1990,
contribui de maneira decisiva para alavancar o debate sobre gênero e
sobre a necessidade de desconstrução de pressupostos identitários
essencialistas, sobretudo no âmbito do movimento feminista.

Tim Dean (2006) entende que as estratégias e as categorias


identitárias (o negro, a mulher, o gay e a lésbica) utilizadas na luta polí-
tica são importantes para suscitar mudanças sociais e garantir direitos
às minorias, mas aponta que é a própria noção de identidade como
motor da ação política que passa a ser criticada pelo movimento queer.
A militância queer propõe que grupos sociais diversos possam ultra-
passar seus particularismos identitários, para, juntos, resistirem melhor
à heteronormatividade. Nesse sentido, “queer” não é uma identidade
erótica, mas, sim, uma distância crítica, uma resistência à sociedade
heteronormativa, uma oposição à normalização social e sexual.

sumário 101
Assim, em vez de demandar respeito, aceitação e assimilação
a uma ordem excludente e normativa, os teóricos e militantes queer
questionam essa própria ordem e afirmam a legitimidade das sexuali-
dades ditas “periféricas” e “desviantes”, integrando, em sua luta políti-
ca, também as problemáticas de raça e classe social, além de sujeitos
marginalizados excluídos de outros coletivos (SÁEZ, 2005).

No âmbito de questionamento da ordem excludente, a teoria queer


enfoca e denuncia que muitas das ideias e das categorias do campo da
sexualidade e do gênero tidas por nós como naturais e ahistóricas são,
pelo contrário, historicamente construídas e, portanto, contingentes e
mutáveis. Butler (1990/2013, 1993/2019) argumenta que a própria noção
de binarismo sexual é uma construção, indo além de teóricas feministas
anteriores, como Simone de Beauvoir, para quem o sexo seria fixo, bio-
logicamente determinado, e o gênero, variável, culturalmente construído.

É a essa suposição de um binarismo natural do sexo sobre o


qual o gênero atuaria que Butler se contrapõe, defendendo que o pró-
prio sexo é já uma construção social. Desse modo, a autora dá um
passo importante no campo dos estudos feministas, rompendo com
a ordem temporal constituída por “primeiro o sexo, depois o gênero”,
quando entende o gênero como aparato de construção social que es-
tabelece o próprio binarismo dos sexos como categoria natural. Ou,
dito de modo inverso, o sexo, a diferença binária entre os sexos, não
é característica ou atributo natural e fixo de alguém, mas efeito, pro-
duto discursivo, das normas de gênero. Um corpo não pode ser dito
“masculino” ou “feminino” antes de sua determinação em um discurso
normativo que o investe de uma ideia de sexo natural.

A partir da ideia de performatividade – a reiteração de um conjun-


to de normas e discursos –, Butler (1990/2013, 1993/2019) elucida ainda
melhor a construção social do gênero e do sexo: o gênero é construído
e mantido em sua estrutura binária por meio de uma repetição estilizada
de performances, como atos, gestos, movimentos e estilos corporais.
Os atributos do gênero não são, portanto, expressivos, mas, sim, perfor-
mativos: isto é, não há uma identidade preexistente ao ato que a repete

sumário 102
e a institui. E, repetidas ao longo do tempo, as construções performáti-
cas, que são normas subjetivantes, produzem efeitos de realidade que
acabam sendo percebidos como fatos, como atos disseminados e cor-
riqueiros. Foi desse modo que a repetição da diferença sexual foi trans-
formando a contingência dos sexos em uma divisão sexual cristalizada,
rígida, com aparência de classificação natural.
O fato de a realidade do gênero ser criada mediante performan-
ces sociais contínuas significa que as próprias ações de sexo
essencial e de masculinidade ou feminilidade verdadeiras ou
permanentes também são constituídas, como parte da estraté-
gia que oculta o caráter performativo do gênero e as possibilida-
des performativas de proliferação das configurações de gênero
fora das estruturas restritivas da dominação masculina e da
heterossexualidade compulsória (BUTLER, 1990/2013, p. 201).

Na citação acima, quando Butler cita a dominação masculina e a


heterossexualidade compulsória, fica evidente a denúncia da autora de
que existe, em nossa cultura, uma hierarquia entre masculino e feminino
e um imperativo heterossexual (a heterossexualidade apresentada como
predisposição natural e prática sexual comum e obrigatória a todos os
indivíduos). A filósofa argumenta, então, que a heterossexualidade é tão
produzida quanto a categoria de sexo. Analogamente à divisão binária
dos sexos, a heterossexualidade não é uma predisposição sexual pré-dis-
cursiva, primária, anterior a seu surgimento como norma na linguagem e
na cultura. É, antes, um regime político, um dispositivo, uma instituição.

E a lógica binária e heterossexual, na medida em que produz


linhas causais que articulariam, de forma “coerente”, sexo, identidade
de gênero e desejo sexual, tem efeitos violentos sobre os sujeitos e os
corpos que não performam a coerência normativa exigida. Segundo
essa lógica, o sexo exige o gênero correspondente e o desejo hete-
rossexual, pelo gênero oposto: corpos femininos devem identificar-se
como mulheres e desejar homens; e corpos masculinos, identificar-se
como homens e desejar mulheres. Com isso, se circunscreve um cam-
po de inteligibilidade social e se produz um exterior constitutivo desse

sumário 103
campo, formado por aqueles tidos como não sujeitos, ou sujeitos inin-
teligíveis, como gays, lésbicas, pessoas trans e intersexo.

Paul B. Preciado (2002, 2020b) também denuncia a heterosse-


xualidade normativa e seus efeitos na produção de corpos inteligíveis e
ininteligíveis na atualidade. Ele define o sexo (órgão e prática) como uma
tecnologia de dominação heterossexual, que prescreve quais são os
órgãos sexuais legítimos e que eles devem ser utilizados de acordo com
sua “natureza”, isto é, em relações heterossexuais. “A (hetero)sexuali-
dade, longe de surgir espontaneamente de cada corpo recém-nascido,
deve reinscrever-se ou reinstituir-se através de operações constantes de
repetição e de recitação dos códigos (masculino e feminino) socialmen-
te investidos como naturais” (PRECIADO, 2002, p. 23, tradução minha).

Para Preciado, além da masculinidade e da feminilidade, também


a heterossexualidade e a homossexualidade são ficções construídas co-
letivamente, que funcionam como armaduras, no sentido de atravancar,
oprimir, e mesmo matar, os sujeitos. Ser sexuado é estar, portanto, sub-
metido a um conjunto rígido de regulações sociais, que cria correlações
necessárias entre sexo, gênero, prazeres e desejo e que, ainda, divide
as subjetividades entre as legítimas e as ilegítimas, entre as que po-
dem e as que não podem existir. As legítimas são as que demonstram
“coerência” e “continuidade” nessa sequência culturalmente produzida:
mulheres e homens cis e heterossexuais. Já as ilegítimas ou abjetas são
as que não se conformam a essa norma, como os gays e as lésbicas e,
mais radicalmente, as pessoas trans, que, com seus corpos e práticas
sexuais, rompem de maneira mais evidente com esse esquema rígido,
porém frágil, sexo-gênero-zonas erógenas-desejo.

Não à toa, em seu livro mais recente, endereçado a psicanalis-


tas, Preciado (2020b) se autonomeia como “monstro”, para denunciar
que a psicanálise, ao ainda dar sentido aos processos de subjetivação
de acordo com a “jaula” da diferença sexual, acaba aprisionando pes-
soas como ele – homem trans, corpo não binário – em outra jaula, a
da monstruosidade. A psicanálise é apontada pelo autor como uma

sumário 104
das instituições disciplinares que colonizam o corpo trans, ao lado da
mídia, da medicina, da indústria farmacêutica, do mercado18. E, po-
deríamos também acrescentar a essa lista uma das instituições disci-
plinares mais centrais no processo de formação da subjetividade, de
acordo com Foucault (1987) em Vigiar e punir: a escola.

A ESCOLA ESTÁ DOENTE

Foucault (1987) define a disciplina como uma anatomopolítica


do corpo: o controle de gestos, movimentos e comportamentos de
cada indivíduo é efetuado por meio de técnicas sutis de vigilância, ob-
servação, análise, medição, presentes em toda a sociedade e suas
instituições (como família, escola, prisão, fábrica e quartel). Ao mesmo
tempo que aumenta as forças e aptidões do corpo em termos eco-
nômicos, isto é, os torna mais úteis e produtivos, a disciplina diminui
essas mesmas forças do ponto de vista político, pois visa à docilidade
e à obediência dos corpos.

Foucault elucida que o efeito histórico dessas tecnologias de


poder de gestão da vida é uma sociedade normalizadora, uma socie-
dade que se organiza em torno da norma e de instituições disciplinares
reguladoras e que pressiona a todos, para que se submetam a um
mesmo modelo ideal de subjetividade. O autor diz ainda que a discipli-
na compõe um espaço analítico, que permite analisar e controlar cada
indivíduo, e também compará-los entre si. Na escola, a configuração
desse espaço analítico é bastante evidente, desde a organização do
próprio ambiente escolar a partir de filas e fileiras – o que favorece uma
melhor observação e vigilância dos alunos –, até o sistema de avalia-
ções e de notas, que classifica e hierarquiza os estudantes a partir de
uma espécie de escala de normalidade e de recompensa x punição.
Quanto maior a nota, mais normal, com mais valor, é considerado o

18 Para uma discussão sobre diferença sexual, teoria queer e psicanálise, conferir Pombo, 2021.

sumário 105
aluno e mais bem acolhido e tratado ele será. Inversamente, quanto
menor a nota de um aluno, mais punido ele será.

Além disso, segundo Foucault, o poder disciplinar estabelece


uma micropenalidade, ou seja, torna penalizáveis desvios mínimos e
menores da norma, comportamentos que não são considerados cri-
mes ou sequer alvo de preocupação das leis, como, no caso da esco-
la, matar aula, colar na prova, ir sem uniforme, etc. Os castigos, que
visam corrigir esses desvios, também são menores e sutis se compa-
rados às penas criminais, envolvendo privações, humilhações, repeti-
ções de exercícios e de avaliações.

Se a escola é uma instituição normalizadora – porque visa


normalizar, homogeneizar e “corrigir” os indivíduos com desvios de
comportamento, desvios que ela mesma identificou, com a ajuda da
medicina, da psicologia e da pedagogia –, as normas de sexo e de
gênero hegemônicas na cultura (binárias, patriarcais, cis e heteros-
sexuais) tendem a ser reafirmadas no território escolar e a população
LGBTQIA+ sofre as consequências e os castigos aplicados àqueles
categorizados como desviantes dos padrões. “A escola é um ambiente
altamente generificado, onde são ensinadas e reproduzidas pedago-
gias da sexualidade e do gênero, em que determinadas identidades
e práticas sexuais são legitimadas, enquanto outras são reprimidas e
marginalizadas” (NASCIMENTO et al., 2021, p. 73).

Portanto, quando certos corpos ou atos sexuais não são consi-


derados como verdadeiros ou legítimos, por não corresponderem às
expectativas das normas, são colocados em zonas de abjeção e pre-
carização, e sofrem o que Butler (2012) chama de “punições sociais”.
Essas punições envolvem tanto discriminação e violência, na família,
na rua, na escola, como patologização dos sujeitos, como acontece
com as pessoas trans e intersexo. A filósofa critica que uma pessoa
só tenha a qualidade de pessoa reconhecida quando expressa, no
corpo, as normas de gênero hegemônicas. Se uma pessoa não mani-
festa o ideal postulado pela norma binária, é categorizada no domínio

sumário 106
da aberração, da anormalidade e mesmo da doença, e as instituições
e práticas sociais logo agem para “corrigi-la” e “readequá-la” ao regi-
me de inteligibilidade forçada.

No que diz respeito à patologização e à medicalização de com-


portamentos, a escola vem sendo, há bastante tempo, criticada por
favorecer que cada vez mais crianças e adolescentes que não se ade-
quam a determinados ideais de performance, de concentração e de
obediência sejam diagnosticadas com transtornos mentais (TDAH,
autismo, TOD, etc.) e encaminhadas para tratamento medicamentoso
com psiquiatras, sem se levar em conta a singularidade de cada es-
tudante e de seu processo de aprendizagem, bem como a realidade
social e os processos educacionais e institucionais em questão (PAT-
TO, 1999; GOMES & CANAVEZ, 2018; GUARIDO & VOLTOLINI, 2009).

Em se tratando da sexualidade e do gênero, portanto, a patolo-


gização de qualquer tentativa de “fazer o gênero” que não se confor-
me às normas já existentes – ou à fantasia dominante de quais sejam
essas normas – também acontece nas escolas. No caso de pessoas
trans, Butler (2012) denuncia que, embora possa funcionar de muitas
formas (inclusive sendo necessário para o acesso a tratamentos mé-
dicos nos sistemas públicos de saúde de alguns países), o diagnós-
tico psiquiátrico é um instrumento transfóbico, de patologização, que
viola a vontade de grande parte da juventude queer e trans. Ser diag-
nosticado com disforia de gênero19 significa ser considerado como

19 A “transexualidade” entrou nos manuais diagnósticos de doenças – o DSM (Manual Diag-


nóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), produzido pela Associação de Psiquiatria
Americana, e o CID (Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à
Saúde), organizado pela Organização Mundial de Saúde –, respectivamente, em 1980 e
em 1990 e, curiosamente, nas mesmas edições em que a homossexualidade foi retirada
da lista de transtornos mentais. Inicialmente categorizada como “transexualismo”, passou
a ser classificada como Transtorno de Identidade de Gênero nos dois manuais, mas essa
nomenclatura foi substituída por Disforia de Gênero, na última edição do DSM (DSM-V),
de 2013, e por Incongruência de Gênero, na última edição do CID (CID-11), lançada em
2018. A aprovação, em junho de 2018, da migração da “transexualidade” no CID da
categoria de transtornos de identidade de gênero (que pertencia ao capítulo dos trans-
tornos de personalidade e comportamento) para a de incongruência de gênero (dentro
do capítulo de condições relacionadas à saúde) foi bastante comemorada no sentido
da despatologização e da desestigmatização das pessoas trans. Não nos esqueçamos,
porém, de que os saberes e as práticas médicas patologizantes da pessoas trans ainda
são, infelizmente, bastante presentes na nossa cultura e no ambiente escolar.

sumário 107
doente, anormal e, ainda, sofrer estigmatização – significa, portanto,
adentrar, na zona de abjeção. Para alguns indivíduos trans, segundo
a filósofa, a força da patologização e da estigmatização pode ser
debilitadora e até levar à morte e ao suicídio.

Preciado (2020a) parte justamente do suicídio em Barcelona de


Alan, um menino trans de 17 anos, para denunciar os episódios de
assédio e de humilhação que ele sofreu na escola durante três anos
– e que tantos outros jovens estudantes sofrem: mais da metade de
adolescentes homossexuais e trans se queixam de agressões físicas
e psicológicas na escola e, não por acaso, as taxas mais altas de sui-
cídio ocorrem precisamente entre eles. Retomando a ideia foucaultia-
na da escola como fábrica de subjetivação, Preciado faz uma crítica
contundente à normalização sexual e de gênero empreendida por ela:
Fora do ambiente doméstico, a escola é a primeira instituição
política na qual a criança é submetida à taxonomia binária do
gênero, através da exigência constante de nomeação e identi-
ficação normativas. Cada criança deve expressar um único e
definitivo gênero: aquele que lhe foi designado ao nascer. Aque-
le que corresponde à sua anatomia. A escola potencializa e va-
loriza a teatralização convencional dos códigos da soberania
masculina no menino e da submissão feminina na menina, ao
mesmo tempo que vigia o corpo e o gesto, castiga e patologiza
toda forma de dissidência (PRECIADO, 2020a, p. 196).

Além do “aprendizado” de gênero, que o filósofo descreve criti-


camente na passagem acima, a escola também reforça os códigos da
heterossexualidade normativa. Nesse sentido, como também diz Pre-
ciado, quando confrontada com os processos de dissidências sexuais
e de gênero, como os das transidentidades, a escola entra em crise,
evidenciando que é ela, e não o estudante dissidente, que está doente;
é ela que necessita ser curada, isto é, desnormatizada, tornada capaz de
lidar de modo mais criativo e diverso com seus processos institucionais.
Em outras palavras, a escola na contemporaneidade precisa se abrir
aos modos de subjetivação minoritários, acolher as diferenças, em vez
de reafirmar normas violentas e já ultrapassadas de sexo e de gênero.

sumário 108
Indo de encontro a essa análise de Preciado, João Paulo Sil-
va, em seu “Manifesto por um pensamento queer no currículo esco-
lar”, também afirma que a escola e o currículo entram em crise diante
dos corpos dissidentes, queer, trans, não-binários, justamente porque
esses corpos evidenciam que, se algo fracassa e escapa do regime
normativo de sexo e de gênero, é sinal de que esse regime é artificial,
contingente, e precisa mudar urgentemente.

ENCONTROS E ALIANÇAS
QUEER: SUBVERSÕES
NO TERRITÓRIO ESCOLAR

Se a escola se configurou historicamente como território de nor-


malização sexual e de gênero, poderíamos apostar que esse mesmo
espaço seria ocasião para resistências e ressignificações das normas?
Por mais paradoxal que pareça, a resposta é: sim, certamente. Em De-
shacer el género, Butler (2012) retoma precisamente dois paradoxos
principais: o paradoxo de que não podemos existir sem as normas,
mas tampouco podemos aceitá-las do jeito que são, bem como o pa-
radoxo de que as condições para nos conformarmos às normas são as
mesmas condições para resistirmos às próprias normas. As normas,
ao mesmo tempo, produzem sofrimento e se configuram como espaço
para politização. Lembremos também que a própria norma tem uma
vulnerabilidade, podendo ser transformada inclusive naquilo que se
opõe aos seus propósitos iniciais (BUTLER, 1997/2017).

Nesse sentido, portanto, se a escola é uma instituição normati-


va, de repetição e de reforço das normas hegemônicas, ela se torna,
na mesma medida, um ambiente propício à desconstrução e à mu-
dança dessas normas. E por que a ressignificação das normas é po-
liticamente importante? A resposta imediata é esta: como as normas
circunscrevem a esfera do humanamente inteligível, reelaborá-las

sumário 109
é ocasião para expandir nossas categorias mais fundamentais e, as-
sim, a matriz cultural de ininteligibilidade, de modo que toda vida seja
considerada vida, que todo corpo importe.

E nesse processo, é preciso apostar, é claro, no potencial sub-


versivo dos corpos, que nunca citam ou imitam as normas de gênero
de maneira igual ou constante, mas estão sempre no modo do devir,
podendo, então, devir de outras formas: “o corpo é aquilo que pode
ocupar a norma em uma miríade de formas, que pode exceder a
norma, voltar a desenhar a norma e expor a possibilidade da trans-
formação de realidades nas quais acreditávamos estar confinados”
(BUTLER, 2012, p. 306-307, tradução minha).

Como Butler, Preciado (2011) defende que é a partir da recita-


ção das normas, do interior do regime normativo, que deslocamentos
podem ocorrer e que novas gramáticas para pensar os corpos podem
ser inventadas. Além disso, o filósofo também aposta no potencial
político dos sujeitos subalternizados, colocados no lugar de abjeção:
os corpos e as identidades dos anormais, além de serem efeitos das
tecnologias e dos discursos sobre o sexo, são também potências po-
líticas, sobretudo porque carregam, como fracasso ou como resíduo,
a história desses dispositivos de normalização dos corpos. Por isso,
podem intervir e promover desvios dessas tecnologias do corpo que
os constituem como desviantes.

Preciado descreve, assim, uma política dos anormais, à qual dá


o nome de multidões queer – multidões constituídas por minorias se-
xuais e de gênero que têm por estratégia política a resistência à norma-
lização e à universalização das identidades e dos corpos, bem como
a desterritorialização da heterossexualidade. Ou seja, se o binarismo
sexual e a heterossexualidade são tecnologias sociais, sexopolíticas, e
não uma origem natural fundadora, é possível inverter e modificar suas
práticas de produção da identidade sexual. “Essa reapropriação dos
discursos de produção de poder/saber sobre o sexo é uma reviravolta
epistemológica” (PRECIADO, 2011, p. 16). É reviravolta que questiona

sumário 110
também a validade da identidade sexual como único fundamento da
política e visa a uma proliferação de diferenças: de práticas sexuais
não normativas, de raça, de classe, de idade, de deficiências.

Ao falar especificamente sobre a escola, Preciado (2020a) de-


fende uma transformação da instituição através de seus usos dissi-
dentes, que conduza ao acolhimento das subjetividades sexuais e de
gênero como processos abertos, e não identidades fechadas. Em seu
manifesto, Silva também aposta no potencial subversivo de crianças
e adolescentes dissidentes no território escolar, sobretudo em seus
encontros, alianças e amizades, que forjam possibilidades outras de
existir e de resistir e lutar juntos: “Nos pequenos acontecimentos, nos
entre-lugares da escola, um currículo-desordeiro, que acolhe e traba-
lha com um pensamento queer, pode ser inventado, fazendo ruir os
ordenamentos e o sistema de gênero e sexualidade” (SILVA, s/d, p. 4).

Por fim, mas não menos importante, para que haja mudanças
efetivas no ambiente escolar, além da aposta na força das alianças e
revoluções minoritárias, é preciso que a própria escola se responsabilize
por suas práticas e processos, e se engaje e encoraje a transformação
das normas e o alargamento do campo de inteligibilidade dos sujeitos e
dos corpos, como defendem as autoras Nascimento et al. (2021).
É compromisso das escolas e dos/as profissionais que nela
trabalham proporcionar um ambiente onde o coletivo de estu-
dantes possa se sentir à vontade para ser quem são, questio-
narem e desestabilizarem as normas que causam discrimina-
ção e sofrimento para as pessoas que não se adequam a elas
(NASCIMENTO et al., 2021, p. 76).

Nesse sentido de responsabilização e do compromisso com


as transformações no campo da sexualidade e do gênero, as autoras
ressaltam a importância de a escola promover discussões sobre os
padrões e papeis de gênero, visando desconstrui-los e flexibilizá-los,
bem como ações de enfrentamento da violência e dos preconceitos,
que rompam com a lógica de invisibilidade e de discriminação de

sumário 111
estudantes gays, lésbicas, bissexuais, trans e travestis. Além disso,
Nascimento et al. (2021) destacam que essas atividades não devem
ocorrer apenas em datas comemorativas, como no dia da diversida-
de sexual, por exemplo, porque isso equivaleria a repetir uma lógica
separatista que destaca o diferente e, em última instância, acaba por
reforçar a norma. Pelo contrário, então, as discussões devem ser real-
mente incorporadas ao cotidiano escolar, ao currículo e aos materiais
didáticos, para que sejam vislumbrados novos padrões de convivên-
cia, de aprendizado, de produção e transmissão de conhecimento.

Desse modo, se relembrarmos o exemplo relatado na introdu-


ção do texto, em que uma escola se eximiu da responsabilidade de
conversar com alunos e familiares sobre uma situação concernente
ao gênero vivenciada em seu território, as estratégias subversivas
descritas nesta seção vão exatamente na direção oposta. Não se
trata de evitar assuntos delicados, mas de abordá-los à exaustão,
para que uma mudança efetiva de pensamento possa se dar. Como
diz Jota Mombaça (2021), o primeiro passo para uma “redistribuição
desobediente de gênero e anticolonial da violência” é a nomeação da
norma, porque, quando a norma não é nomeada e é vista como natu-
ral e universal, tanto os sujeitos em posição majoritária não têm seu
privilégio marcado, como os sujeitos minoritários são hipermarcados
e deslegitimados em suas diferenças.

“Nomear a norma é devolver essa interpelação e obrigar o normal


a confrontar-se consigo próprio, expor os regimes que o sustentam, ba-
gunçar a lógica de seu privilégio, intensificar suas crises e desmontar sua
ontologia dominante e controladora” (MOMBAÇA, 2021, p. 76). Assim,
para que o sistema normativo seja revisto e ressignificado na escola, é
preciso, antes de mais nada, que as normas misóginas, homofóbicas
e transfóbicas sejam marcadas e denunciadas, abrindo caminho para
que outras referências de sexualidade e de gênero possam ser criadas,
coletivamente e com o protagonismo dos estudantes dissidentes.

sumário 112
REFERÊNCIAS
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identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2013. Originalmente
publicado em 1990.
BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”.
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BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo
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BUTLER, Judith. Deshacer el género. Barcelona: Paidós, 2012.
DEAN, Tim. Lacan et la théorie queer. Cliniques Méditerranéennes, n. 74,
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DE LAURETIS, Teresa. Teoria queer, 20 anos depois: identidade, sexualidade
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conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019, p. 397-409.
Originalmente publicado em 2010.
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publicado em 1975.
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GUARIDO, Renata; VOLTOLINI, Rinaldo. O que não tem remédio, remediado
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NASCIMENTO, Letícia; MIGUEL, Raquel; SOMBRIO, Paula. Gênero,
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ROSA, Rogério (Orgs.). Formação continuada: Psicologia Escolar e
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2021, p. 60-81.
PATTO, Maria Helena Souza. A produção do fracasso escolar: histórias de
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POMBO, Mariana. A diferença sexual em mutação: subversões queer e
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PRECIADO, Paul B. Manifiesto contrasexual. Madrid: Opera Prima, 2002.
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PRECIADO, Paul B. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era
farmacopornográfica. São Paulo: N-1 Edições, 2018a.
PRECIADO, Paul B. Transfeminismo. São Paulo: N-1 Edições, 2018b.
PRECIADO, Paul B. Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Rio
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PRECIADO, Paul B. Je suis un monstre qui vous parle. Paris: Grasset
(versão Kindle), 2020b.
SÁEZ, Javier. Théorie queer et psychanalyse. Paris: EPEL, 2005.
SILVA, João Paulo. Manifesto por um pensamento queer no currículo
escolar. Mimeo, s/d.

sumário 114
5
Capítulo 5

Terreiro da ginga: a sala de


aula como o lugar do jogo
para “minar de dentro” e ser

Renata Pimentel

Sherry Almeida

Renata Pimentel
Sherry Almeida

Terreiro
da ginga:
a sala de aula como
o lugar do jogo para
“minar de dentro” e ser

DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.5
PARA ABRIR A RODA

Ao longo da história do Brasil, percebe-se que a escola se con-


figurou como espaço de homogeneização e controle social, o que,
por conseguinte, instaurou a perpetuação de pedagogias que invisi-
bilizaram boa parte das vozes de grupos ditos minoritários (mulheres,
afrobrasileiras/os, descendentes de povos originários e pessoas com
sexualidade dissidente da heteronormativa), os quais, em verdade,
constituem a maioria da população brasileira. Tal violação identitária
se explica por possuirmos um sistema educacional que funcionou, e
até hoje funciona, juntamente com as demais instituições, como braço
ativo da colonialidade, a qual marca a sociedade brasileira pela explo-
ração predatória, pelo rentismo e pelo elitismo, os quais delineiam uma
hegemonia conservadora e deletéria à diversidade cultural do país.

Em reflexo e em consonância, a relação entre escola e literatura


no Brasil caminhou, quase que constantemente, pela via de tornar a
última um conhecimento restrito ao beletrismo e, como tal, servindo à
manutenção do controle conservador da cisheteronormatividade bran-
ca, misógina, patriarcal, ‘meritocrática’, racista e fóbica. Além disso,
a escolarização da literatura – ocorrida por volta de 1838 conjugada-
mente ao ensino de Gramática – foi efetivada de maneira acessória
às aulas de Língua Portuguesa e, mais adiante, às aulas de Redação,
com carga horária mínima e conteúdo programático de viés historicista
de marcos e datas, descolada do sentido de fruição que se espera
enquanto potencial de formação do leitor crítico e cidadão. Mesmo
quando, no avançar do tempo, ao fim do século XX, os documentos
oficiais orientavam um trabalho de leitura do texto literário como estí-
mulo à cognição e construção de criticidade, o ensino de literatura foi
sempre norteado, em sala de aula, pelos cânones dos manuais didá-
ticos e programas de vestibulares, em seguida pelo Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM), nos quais a tônica preponderante é a de

sumário 116
silenciamento sobre artistas afrodescendentes, descendentes de co-
munidades originárias, artistas mulheres e as comunidades periféricas,
sejam urbanas ou rurais. Em realidade, o que se percebe é que mesmo
o discurso “multicultural”, adotado pelos documentos oficiais nos pri-
meiros decênios deste século XXI, foi sequestrado pela colonialidade
e convertido em estratégia de manutenção da hegemonia social, pois
parece incluir as/os marginalizadas/os e subalternizadas/os, contudo
impede transformações sociais efetivas e controla possíveis sujeitas/
os rebeldes ao sistema, conforme nos elucida Catherine Walsh:
o reconhecimento e respeito à diversidade cultural se conver-
tem em uma nova estratégia de dominação que ofusca e man-
tém, ao mesmo tempo, a diferença colonial através da retórica
discursiva do multiculturalismo e sua ferramenta conceitual, a
interculturalidade “funcional”, entendida de maneira integracio-
nista. Essa retórica e ferramenta não apontam para a criação de
sociedades mais equitativas e igualitárias, mas para o controle
do conflito étnico e a conservação da estabilidade social, com o
fim de impulsionar os imperativos econômicos do modelo neo-
liberal de acumulação capitalista, agora “incluindo” os grupos
historicamente excluídos (WALSH, 2009 p.16).

Por outro lado, também é possível perceber que, no curso da


história, a “sala de aula continua sendo o espaço que oferece as
possibilidades mais radicais na academia” (2017, p.23), como afirma
bell hooks em Ensinando a transgredir: a educação como prática da
liberdade. Neste livro, o fecundo encontro do olhar de hooks com o
pensamento de Paulo Freire potencializa o abraço e o acolhimen-
to efetivos, como proposições práticas, da mudança, da consciên-
cia crítica como ética, inclusive quando ela, pensando as limitações
sexistas perceptíveis por uma feminista na obra freireana, chega a
um importante veredito: “O próprio modelo de pedagogia crítica de
Freire acolhe o questionamento crítico dessa falha na obra” (2017,
p. 70). E nos aponta que o pensamento feminista dá a força para
fazermos a crítica construtiva da obra de Freire e seguir avançando
a partir dela. Ainda nos diz mais: “Encontrar uma obra que promove
a nossa libertação é uma dádiva tão poderosa que, se a dádiva tem

sumário 117
uma falha, isso não importa muito” (2017, p. 71). Por isso, queremos
aqui pensar uma pedagogia da dúvida que consolide a escola nesse
lugar privilegiado de ação e de transgressão social no jogo da vida,
propiciando um ensino de literatura que seja antirracista, anti-fóbi-
co, anti-misógino, contra preconceitos às populações originárias, às
classes trabalhadoras e à população do campo.

PARA ENTRAR NA RODA


E CORRER OS RISCOS

Por que principiamos nosso texto com tais ideias? São décadas
de reiterada escolha do chão da sala de aula como terreiro de ação no
mundo, de alunas a docentes, nunca saímos desta arena – no sentido
teatral mesmo: do espaço de semicírculo, onde se instaura a assembleia,
segundo a concepção apontada por Denis Guénoun em A exibição das
palavras: uma ideia (política) do teatro (“O círculo é a forma das assem-
bleias”. 2003, p. 23). Para nós, é o espaço para o exercício de nega-
cear, como na capoeira, quando o jogo se instaura como procedimento.
A ginga é a própria capoeira, é o movimento base de tudo, o jogador
que não ginga não se mantém na roda, não se equilibra, não se protege.
O princípio da ginga é manter-se em movimento para iludir o adversário:
concentra ação de proteção, defesa e estratégia retórica na gramática
do corpo que joga. Segundo o dicionário, negacear é verbo com senti-
dos de: seduzir, provocar, enganar e, ainda, de recusar, negar20.

A esta altura, já com os corpos na roda e na gira, invocamos a


mais que pertinente e instigante proposição de Luiz Rufino:
A pedagogia das encruzilhadas entoa provocação, sedução
e desafio. Talvez pelos ecos da palavra encruzilhada e suas
associações a Exu e às demais práticas culturais codificadas
nas travessias do Atlântico. Racismo e colonialismo são os

20 Conferir: https://www.dicio.com.br/negacear/ (consulta em 15/07/2022).

sumário 118
alicerces do Novo Mundo (...). // Vamos pensar o mundo, o
nosso tempo e as possibilidades de transformação. Assim,
reivindico como flecha a educação e sugiro que a partir dela
deveremos considerar que os fenômenos humanos, proces-
sos e práticas culturais se tecem em cotidianos permeados
pelos efeitos da raça, racismo e dominação colonial. As edu-
cações em curso na sociedade brasileira são plurais, assim,
existem modos conservadores, mantenedores de desigual-
dades, redutores da complexidade do mundo, violentos, ir-
responsáveis, modos calçados no pilar da política colonial.
Ao mesmo tempo, há outras possibilidades, outros modos,
emergentes, transgressivos, inconformados, rebeldes e com-
prometidos com a libertação (RUFINO, 2019, p.55-56).

A compreensão do colonialismo estrutural e suas entranhadas


consequências passa a ser indispensável em um plano maior até que
como um efeito de consciência histórica distanciada, mas em nível
pessoal mesmo: cada pessoa em sala de aula é mulher, homem, pes-
soa não-binária que está inserida em um contexto no qual há plura-
lidades educacionais, sim, no entanto, a tônica dominante e violenta
é a da institucionalização conservadora da cisheteronormatividade
branca, misógina, patriarcal, “meritocrática”, racista, fóbica, ou seja,
“modos mantenedores de desigualdades e redutores da complexi-
dade”... Assim, invocar a “flecha da educação” como instrumento
transgressivo e comprometido com a libertação ecoa nossa proposi-
ção de constante jogo, ginga, negaceio, olhar crítico comprometido
com as diferenças, a pluralidade, a construção de conhecimento que
questiona os sedimentos opressores.

Voltamos a Rufino, quando nos aponta: “A educação é um fe-


nômeno que, além de tão diverso quanto às formas de ser e praticar
o mundo, por ser demasiadamente humano, está implicado a uma
dimensão ética de responsividade/ responsabilidade com o outro.”
(2019, p. 74). Logo, é preciso invocar saberes historicamente subal-
ternizados como um viés crítico aos efeitos cristalizados da normatiza-
ção, para olhar o avesso do colonialismo e seus efeitos perversos de
conservação da pobreza, da opressão, do individualismo calcado em

sumário 119
cifras financeiras. “A pedagogia das Encruzilhadas não exclui as pro-
duções centradas na ciência e em suas tradições como possibilidades
credíveis, mas as contesta como modo único ou superior” (RUFINO,
2019, p. 80). Trata-se de promover zonas borradas, cruzos de saberes
para mobilizar a fricção, revolver aparentes verdades incontestáveis
erguidas pelo discurso oficial de quem ocupa o poder, pondo em cena
as zonas de conflito, as fronteiras, o dialogismo.

Seguimos com o pensamento de Rufino, em direção a uma prá-


tica educativa descolonizadora/ decolonizadora, como uma ação que
se sabe, em certa medida, tão utópica e radical, quanto urgente e ne-
cessária para minar efeitos, heranças e estruturas coloniais em prol de
outro projeto de existência:
Assim, a descolonização deve emergir não somente como um
mero conceito, mas também como uma prática permanente de
transformação social na vida comum, é, logo, uma ação rebelde,
inconformada, em suma, um ato revolucionário. Por mais contun-
dente que venha a ser o processo de libertação, é também um
ato de ternura, amor e responsabilidade com a vida. A coloniza-
ção acarreta o destroçamento dos seres subordinados a esse re-
gime, os colonizados, mas também a bestialização do opressor,
o colonizador. Sobre a colonização não se ergue civilização, mas
sim barbárie. Dessa forma, inscreve-se o fato de, a partir desse
acontecimento, emergir também a necessidade da invenção de
novos seres. Assim, escrevo: resiliência = reconstrução tática a
partir dos cacos despedaçados pela violência colonial; transgres-
são = invenção de novos seres para além do cárcere racial, do
desvio e das injustiças cognitivas (2019, p. 11).

Mas a atenção precisa ser constante, pois os métodos e proce-


dimentos do colonialismo estão encrustados em nível estrutural nas
instituições mais diversas em todas as esferas sociais, políticas, pen-
samentais e até culturais estabelecidas. Busca-se apagar as diferen-
ças e, quando muito, ao se fazerem aparentes concessões a saberes
subalternos, esses são estereotipados, hierarquizados e vendidos
como folclore ou pitoresco, a “cota para a cultura popular”. Assim,
se pregam as políticas multiculturais. Reconhecer a pluralidade de

sumário 120
culturais é fundamental, fazê-las flechas de fricção e perfuração à
colonialidade é tão urgente, quanto compreender as estratégias de
apropriação dos saberes subalternizados pelas estruturas coloniza-
doras. Como adverte bell hooks: “o multiculturalismo obriga os edu-
cadores a reconhecer as estreitas fronteiras que moldaram o modo
como o conhecimento é partilhado na sala de aula. Obriga todos
nós a reconhecer nossa cumplicidade na aceitação e perpetuação de
todos os tipos de parcialidade e preconceito” (2017, p. 63). Quando
a diferença perde sua potência crítica e é transformada em produto
neoliberal e capitalizado apenas. Dessa forma, nos diz bell hooks:
Quando nós, como educadores, deixamos que nossa peda-
gogia seja radicalmente transformada pelo reconhecimento da
multiculturalidade do mundo, podemos dar aos alunos a edu-
cação que eles desejam e merecem. Podemos ensinar de um
jeito que transforma a consciência, criando um clima de livre
expressão que é a essência de uma educação em artes liberais
verdadeiramente libertadora (2017, p. 63).

Arte é processo relacional: toda e qualquer linguagem artística


só efetivamente se configura quando acontece a relação entre a cria-
ção artística – seja em música, literatura, artes da cena ou visuais, qual-
quer linguagem (inclusive e sobretudo as que hibridizam linguagens)
– quando o sujeito receptor se conecta de alguma forma e se produz
a experiência ética/ estética. E para mergulharmos com mais pertinên-
cia nessa noção de experiência, invocamos a este debate o percurso
proposto por Jorge Larrosa (em seu texto Experiência e alteridade em
educação, 2011), para quem “a questão da experiência tem muitas
possibilidades no campo educativo, sempre que estejamos capazes
de lhe dar um uso afiado e preciso” (2011, p. 04). Larrosa propõe um
percurso no qual se acendam e se ativem princípios como os da alte-
ridade, da exterioridade na dimensão de acontecimento no plano das
experiências, não em seu sentido de empirismo científico, mas de even-
tos externos, daqueles que acionam a subjetividade levando-a a uma
transformação: um dos exemplos que traz à tona é a leitura quando não
apenas tomada no âmbito da cognição ou como fonte de informação/

sumário 121
erudição/ conhecimento, mas como ponte relacional entre o texto e o
leitor. Entra na gira, na roda de nossa capoeira, o espaço da singulari-
dade de cada corpo/ subjetividade/ vivência: “Poderia falar-se, então,
de uma alfabetização que não tem a ver com ensinar a ler no sentido da
compreensão, senão no sentido da experiência” (2011, p.09).

O professor, portanto, precisa transmitir é sua capacidade de


escuta, sua abertura, sua inquietude, sua perplexidade, suas questões
inacabadas para contagiar passionalmente, afetivamente as inquietudes
dos que compartilham o chão da sala de aula com ele, como sujeitos
aprendizes em comunidade, mas sem apagamento das singularidades.
“Por isso, a experiência é atenção, escuta, abertura, disponibilidade,
sensibilidade, vulnerabilidade, ex/posição” (2011, p. 22). Tarefa comple-
xa, que exige estado de compromisso, de corpo vivo e pulsante:
O sujeito da experiência, esse sujeito que temos caracteriza-
do já como aberto, vulnerável, sensível e ex/posto, é também
um sujeito singular que se abre à experiência desde sua pró-
pria singularidade. Não é nunca um sujeito genérico, ou um
sujeito posicional. Não pode situar-se desde alguma posição
genérica, não pode situar-se ‘enquanto/ como’, enquanto
professor, ou enquanto aluno, ou enquanto intelectual, ou
enquanto mulher, ou enquanto europeu, ou enquanto hete-
rossexual, ou enquanto indígena, ou enquanto qualquer outra
coisa que lhes ocorra. O sujeito da experiência é também,
ele mesmo, inindentificável, irrepresentável, incompreensível,
único, singular. A possibilidade da experiência supõe, então,
a suspensão de qualquer posição genérica desde a que se
fala, desde a que se pensa, desde a que se sente, desde a
que se vive. A possibilidade da experiência supõe que o sujei-
to da experiência se mantenha, também ele, em sua própria
alteridade constitutiva (LARROSA, 2011, p. 18).

Tarefa que parece até utópica, quando aqui acrescentamos


que isso não significa, segundo a nossa concepção a partir da pro-
posição de Larrosa, abrir mão de quem se é, do corpo e da sub-
jetividade, das múltiplas facetas identitárias deste/a professor/a,
pois que a/o sujeita/o congrega em si contradições, perplexidades,

sumário 122
indignações, ignorâncias, sustos, pulsões, desejos... Mas é preci-
so que permaneça acesa a chama e a consciência de que cada
singularidade é complexa em si e uma experiência pode ser com-
partilhada pela abertura à/ao outra/o, mas será sempre única. Por
isso, não se pode falar pela generalização, quando se invoca como
procedimento a pedagogia da experiência.

Uma outra proposição que nos parece ser uma soma importan-
te, então, para esta empreitada surge quando conectamos/ introdu-
zimos a perspectiva queer, segundo o olhar de Guacira Lopes Louro,
no âmbito do ensino de humanidades/ artes (mais especificamente
na área de letras e literatura). O termo queer “pode ser traduzido por
estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário” (LOURO,
2001, p. 546); assim sendo, ancora-se à experiência evocada por Lar-
rosa, pois constitui em si a invocação à estranheza, à vulnerabilidade.
O uso da expressão é contraditório: pode tanto representar a ofensa,
o xingamento, o insulto, quanto, ao ser assumido por uma parte dos
movimentos de dissidências de gênero e sexualidade, se converter
em uma perspectiva de contestação e oposição à heteronormatividade
compulsória: “Queer representa claramente a diferença que não quer
ser assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais
transgressiva e perturbadora” (LOURO, 2001, p. 546).

Uma pedagogia que ponha em marcha a ginga, o negaceio


como estratégia, que converta a sala de aula em arena de troca pela
experiência, pela abertura à dessacralização, pela instabilização de
currículo e cânone como cristalizações: invocam-se a ambiguidade,
a multiplicidade e fluidez das identidades, seja em termos de gênero,
sexualidade, etnia, raça, classe social, sugerindo novas formas de pen-
sar a arte, a cultura, o conhecimento, o poder e a própria educação,
pelo prazer do jogo, dando espaço à irreverência, à dessacralização, à
diferença como potência viva e movente.

sumário 123
TRANSBORDAR CONVENÇÕES:
UMA PEDAGOGIA DA DÚVIDA

Eu Falo
A Fala é um falo
Que abre suas entranhas
Atravessa suas certezas culturais
(Miriam Alves)

Neste texto, a experiência é trazermos à sala de aula, aos de-


bates, ao ambiente de pesquisa, pelo viés insubmisso, tanto leituras
(obras e autoras/es) que “minam de dentro” os paradigmas de gênero
(seja literário, seja humano), de estilo ou de qualquer parâmetro, quan-
to esburacar as leituras convencionadas às obras entronizadas: virar
do avesso o currículo se torna desafio permanente. Olhar pela fronteira,
pelo desvio ao estabelecido converte em inquieto o corpo inteiro de
quem lê e aprende e se deixa inquietar.

Nesse sentido, escolhemos para entrar na roda e expor melhor


nossa pedagogia que quer pôr em dúvida as convenções como as do
cânone literário hegemônico da colonialidade brasileira, o debate sobre
a condição da mulher na nossa tradição literária, seja em sua represen-
tação seja na condição de autoria. Isto é, tanto no que tange à represen-
tação da mulher enquanto personagem quanto à representatividade da
mulher escritora, condições que, ao fim e ao cabo, interligam-se.

A relação entre a mulher e a literatura no Brasil foi engendrada


pelo olhar masculino, machista e patriarcal, logo estereotipada, ini-
ciada no período colonial, quando Gregório de Matos inaugura em
nossas letras o uso dos estereótipos básicos da mulher brasileira,
os quais serão reproduzidos exaustivamente ao longo de séculos, a
saber: a mulher pobre e, geralmente, negra, condenada ao trabalho
escravo e ao abuso sexual, figurada por um caráter demoníaco; e a
mulher branca, com mínimo traço de fidalguia, qualificada em idea-
lizações da visão medieval europeia, divinizada em figura angelical.

sumário 124
Esse estereótipo angelical idealizado se confirma e se amplia no Ro-
mantismo brasileiro, presente nos vários poetas canônicos, dos quais
destacamos Gonçalves Dias e Álvares de Azevedo. Na prosa românti-
ca, outro canônico merece maior atenção, José de Alencar, pois é de
sua pena que surgem figurações idealizadas da mulher brasileira que
se configuram arquétipos de nossa cultura. Seu projeto de literatura
nacional, sob pretensão de contar histórias do Brasil de norte a sul, do
campo e da cidade, do passado e do presente, logrou um arcabouço
de distorções (não somente no que tange à mulher) resultantes do seu
desconhecimento sobre o já tão diverso Brasil oitocentista: Iracema,
personagem arquifamosa do chamado indianismo romântico, prota-
gonista do romance homônimo publicado em 1865, nativa de um povo
originário do início do processo de colonização, é descrita de forma
inverossímil, em moldes de divinização europeia medieval, e tem, em
sua morte, a reedição da sentença cultural de impossibilidade de ha-
ppy end romântico de nativos com os brancos da visão de Alencar.21

Além da mulher de comunidade de povos originários, o autor,


cearense radicado no Rio de Janeiro, também distorce a figuração da
mulher no Brasil urbano do século XIX. Em seus chamados romances
de costumes, há um grande número de exemplos, dos quais desta-
camos aqui Lucíola, protagonista também de um romance homônimo
que veio a público em 1862. A cortesã, que recebe a chance de, ma-
chistamente, purgar seus pecados pelo amor de um homem, também
não obtém seu final feliz, adoece e morre. Ao longo da narrativa, a
transfiguração de Lucíola de um estereótipo a outro da tradição literária
brasileira é inegável: vai se transformando de mulher fatal e demoníaca
em uma mulher angelical, doce, insegura e apaixonada, o que corres-
ponde ao ideal romântico da heroína. E quanto à mulher negra? Bem,
Alencar, coerentemente à sua condição escravocrata, não moraliza as
mulheres afro-brasileiras com a morte em suas narrativas, ele as anula

21 Lembrando que o fim mítico de desaparecimento do casal, Peri e Ceci, ele nativo, ela
branca, no romance O Guarani (1957), é quem inaugura o precedente jurídico de tal
sentença de morte que impede a figuração de um enlace amoroso entre diversidades
étnicas na obra alencariana.

sumário 125
de sua obra, como se desejando o apagamento da contribuição africa-
na à formação da cultura e da nacionalidade brasileiras22.

Ainda na literatura dos oitocentos, cabe a menção “honrosa” a


Machado de Assis: o cânone dos cânones de nossas letras, não foge
à tradição de estereotipia da mulher na literatura brasileira; embora
construa personagens femininas com maior elaboração psicológica
que Alencar, o que resulta numa figuração de maior desvinculação
entre a classe social e a escolha estereotípica, isto é, em Machado
importa menos que a mulher seja pobre ou rica, o que a define é um
predisposição à dissimulação e ao ardil, algo que seria inato à condi-
ção do ser mulher, como se vê em Vírgilia, Marcela e, sobretudo, Ca-
pitu, representadas como figuras próximas ao estereótipo demoníaco
e uma Nhá-Ló-ló, representada no espectro do estereótipo angelical.

A essas representações masculinas trazemos um contraponto da


visão de uma escritora mulher do fim do século XIX sobre as persona-
gens femininas, Júlia Lopes de Almeida, cuja obra demonstra críticas
contundentes à condição da mulher brasileira, principalmente à educa-
ção voltada à aceitação da condição de vida doméstica e sem relevân-
cia intelectual e cidadã que lhe era ofertada. Contudo, pelo simples fato
de ela ser mulher, a obra de Júlia Lopes de Almeida passou muito tempo
silenciada e, por conseguinte, encontra-se ainda hoje marginal ao câ-
none brasileiro23. Muitos outros casos como o de Júlia, recorrentes na

22 Importante chamar a atenção para as únicas obras em que Alencar traz o negro como
personagem: as peças O demônio familiar (1857), nela o menino escravizado domesti-
camente, Pedro, é responsável por ardis que provocam confusões no âmbito da família
burguesa à qual serve, pois deseja se tornar cocheiro; e Mãe (1859), cujo enredo repete
as questões românticas de falências e preocupações financeiras burguesas entrelaçados
ao tema romântico do amor/ casamento nesta classe econômica e o tema subjacente é
a mãe que dá título ao drama: a personagem Joana, escravizada (tratada como “parte
da família”, do protagonista Jorge), de quem é a mãe não revelada e que abre mão de
o ser, para não “sujar” a condição de mestiço embranquecido e burguês (estudante de
medicina) de que o filho goza.
23 Embora reconhecida como grande escritora e mestra da língua por seus pares – muitos
intelectuais que eram recebidos no Salão Verde de sua casa – a carioca Júlia Lopes de
Almeida não conseguiu vencer a barreira do preconceito de gênero da sociedade brasi-
leira dos fins século XIX e sofreu injustiça emblemática ao ver ser eleito em seu lugar, à
Academia Brasileira de Letras, seu marido Filinto Almeida, que passou a ser chamado,
com ironia, de “acadêmico consorte”.

sumário 126
história da literatura brasileira, poderiam ser apresentados, mas não nos
interessa aqui traçar um panorama do apagamento da voz da mulher
escritora no Brasil. Antes queremos propor questionamentos e reflexões
que incitem ao debate e à insubmissão, que façam a gira girar.

Por isso, acreditamos oportuno questionar sobre o que aconte-


ce quando a condição do ser mulher se intersecciona com a condição
da sexualidade não heteronormatizada. E a resposta a que chegamos
é a de que haverá uma dupla motivação ao controle da voz e à violação
da alteridade. Nesses termos, é emblemático o caso da escritora Cas-
sandra Rios, pseudônimo da carioca Odete Rios, cuja obra suscita,
vinte anos após sua morte, pelo menos, um grande questionamento
sobre a marginalidade permanente e compulsória em relação à história
da literatura brasileira, em especial, às instituições e aos instrumentos
que compõem seu cânone: por que não se pode reconhecer a quali-
dade artística nem a importância social de uma escritora que foi a mais
lida durante a década de 1970? Mais vendida e, por conseguinte, mais
lida que Jorge Amado, Cassandra Rios ainda figura como a “escritora
mais perseguida pela ditadura militar”, à parte ser verdadeira a infor-
mação desse epíteto, é de se questionar por que não se popularizou,
também em forma de epíteto, outra verdade: Cassandra, a “escritora
mais lida da literatura brasileira na década de 1970”. Não apenas por
ser mulher, mas por ser mulher lésbica, Cassandra Rios e a sua lite-
ratura não cabiam e – ainda não cabem – no elenco de importância
do cânone literário brasileiro. Por ser lésbica e por tematizar figuras
marginalizadas da sociedade, gays, travestis e, sobretudo, lésbicas
– ofertando-lhes o direito à voz, figurando-os como sujeitos sociais,
a obra de Cassandra Rios (e a própria Cassandra) foi relegada a um
lugar intocável e sacralizado pelo preconceito e pelo purismo literário:
o lugar do esquecimento. Em verdade, a obra de Cassandra sofreu um
duplo silenciamento: o da censura leiga dos militares, pelo preconceito
em relação às sexualidades não heteronormatizadas, e o da crítica
acadêmica pelo preconceito de tomá-la como subliteratura.

sumário 127
Para nossa Pedagogia, interessa sobremaneira chamar ao de-
bate em sala de aula não apenas os textos literários de Cassandra
Rios, mas também a forma como lidou com a perseguição militar e
com o desdém da crítica literária, especialmente no tom provocativo
e ousado, para se posicionar sobre a homessexualidade, conforme
João Silvério Trevisan:
Apesar de manter sua vida pessoal cuidadosamente envolta
em mistério, Cassandra incomodava por suas declarações pú-
blicas de que “homossexualismo24 (sic) é uma forma especial
de amar”, coisa que nenhum intelectual, por mais progressista
que fosse, ousaria afirmar em plena década de 1970 (TREVI-
SAN, 2019, p. 255).

Cassandra Rios negaceia e, estrategicamente, ao mesmo tem-


po que atrai o público leitor pela curiosidade sobre essa “forma espe-
cial de amar”, questiona a norma, pondo em dúvida o sistema. Atitude
transgressiva, e por que não dizer “queerizada”, posto que subverte,
de forma insubmissa, a expectativa de não polemizar ainda mais uma
carreira marcada pela perseguição e pelo silenciamento.

Fazendo girar a gira mais intensamente, propomos chamar ao


debate a obra de uma escritora que intersecciona à condição de mu-
lher, as condições de lesbianidade e de afrodescendência. A paulista
Miriam Alves apresenta uma produção artística e intelectual intensa e
diversificada, que une sensibilidade estética e potência de militância
em prol da visibilização da mulher escritora afro-brasileira. Em sua obra
crítica BrasilAfro Autorrevelado afirma:
As mulheres afro-brasileiras, pertencem a dois grupos historica-
mente subordinados, Mulher e Mulher-Negra (...). Esta imagem
de mulher inferiorizada, muitas vezes pré-determina e condiciona
a posição a ser ocupada pelas afrodescendentes, não só nas re-
lações sociais, mas inclusive no mundo das representações artís-
ticas em geral e particularmente na literatura (ALVES, 2010, p.63).

24 Cassandra usava o termo ‘homossexualismo’, com a desinência indicativa de patologi-


zação, pois que imersa no contexto de seu tempo, quando ainda não se fizera a devida
revisão da linguagem, descortinando tais vieses nela encrustados (algo que também é
parte fundamental de uma pedagogia queer e insubmissa, como a aqui proposta).

sumário 128
Essa representação artística de mulheres afro-brasileiras na
nossa tradição literária, como demonstrado, inferiorizadas em estereó-
tipo de sexualização dos corpos oculta (seja como motivo estético seja
como voz de autoria) as vozes próprias destas escritoras, vide o tempo
que se passou – e ainda se passa – desconhecendo-se sistematica-
mente, nos currículos oficiais, escritoras como Maria Firmina dos Reis,
Carolina Maria de Jesus, entre muitas outras escritoras afro-brasileiras.
Por isso, vemos a literatura de Miriam Alves potente à ginga que per-
mite transformar a sala de aula em terreiro, posto que literatura impõe
rasuras a essa tradição. Leia-se, então, o poema Gotas:
GOTAS
Mesmo que eu não saiba falar a língua
dos anjos e dos homens
a chuva e o vento
purificam a terra
Mesmo que eu não saiba falar a língua
dos anjos e dos homens
Orixás iluminam e refletem-me
derramando
gotas
iluminadas de Axé no meu Ori (ALVES, 2022a, p.285)

Nesse poema vemos que a poeta faz referência a um trecho da


epístola 13 de São Paulo aos Coríntios, que se configura como texto
canônico da concepção do amor cristão. No original, o amor é toma-
do como condição de plenitude espiritual e de felicidade ao mesmo
tempo que indica como saber superior falar a língua dos anjos, uma
das personagens da mitologia cristã: “Ainda que eu falasse as línguas
dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que
soa ou como o sino que tine” (BÍBLIA, Coríntios 13:1). Miriam chama
a atenção para uma vivência espiritual fora do cristianismo, dentro
da religiosidade de matriz africana, a qual permite uma relação com
o sagrado libertária e natural: mesmo não tendo o tal saber sublime
cristão, o eu poético ainda receberá “gotas” iluminadas de Axé. Com
essa intertextualidade, ela põe em cena, como protagonistas, ele-
mentos da religião afro-brasileira, ao mesmo tempo em que promove

sumário 129
um diálogo que instaura uma crítica à imposição do Cristianismo na
sociedade brasileira e, ainda, mostra o quanto a concepção cristã
aniquila existencialmente aquele que não está de acordo com o que
preconiza seus ditames. Em outras palavras, com axé, ela instaura
uma dúvida no leitor e promove uma fissura em conceitos eurocen-
trados estabelecidos como verdade pela colonialidade.

Dando continuidade à exposição de formas de rasura, chama-


mos a atenção para o conto “O corpo pelado”, do livro Juntar peda-
ços, no qual Mirian Alves convida à reflexão sobre verdades identitárias
profundas a partir de uma personagem marcada, sobretudo, por uma
inocência transgressora. Nele é narrado o encontro de duas mulheres,
uma a narradora protagonista, e outra uma personagem negra, sem
nome e sem destino, que atravessa uma rua nua, com uma naturalida-
de inocente e transgressora que choca a narradora:
A mulher negra nua na rua, sem mais nem porquês, seria uma en-
tidade enviada pelo orixá Exu? Eu vestida sem mais nem porquês,
caminhávamos em sentidos opostos, personificávamos uma ale-
goria real. Naquele instante, éramos só nós duas. Luzes refletidas
na sua pele noite eram olhos indicando caminhos, desvelando os
vários signos de palavras que cobrem os nossos corpos negros,
como vestimentas eternas e naturais (ALVES, 2021, p.18).

Na nudez da mulher negra desconhecida desvela-se a hipocri-


sia social, que perverte discursos e sentidos em nome do controle: a
nudez que é o natural do ser humano é tomada como imoralidade e
tabu. Há aqui uma ousadia de ser que faz a personagem vestida (em
vestes e em cultura) sentir-se nua; um choque que a faz – e nos faz
– mergulhar na profundidade de reflexões existenciais mais uma vez
evocando o saber de elementos da religião afro-brasileira:
Meus pensamentos libertos formam o ápice, numa tempes-
tade de ideias. Trovejou, relampejou, intensificou. Os ventos
formaram um redemoinho, a chuva de palavras me encharcou,
desfazendo os significantes de vestes alheias, que cobrem,
vendam e insistem em me vender em modelos formais conge-
lados, coisificando a literatura negra que faço. Fui ficando nua,

sumário 130
as gotas de chuva em vogais e consoantes reluziram outros
significados, redescobrindo outros símbolos, ressignificando
a minha verdadeira nudez. Ao olhar-me no espelho vi a mulher
nua tranquila e me veio à mente uma frase de Nelson Rodri-
gues: “Toda nudez será castigada”. A mulher sorriu: “Não, toda
nudez é exuzíaca” (ALVES, 2021, p.19).

Mais uma vez, Miriam se vale da intertextualidade! Dessa vez,


citando de maneira direta Nelson Rodrigues, um dos mais importan-
tes dramaturgos brasileiros, como num convite ao jogo com grandes,
desconstruindo as visões masculinas sobre o corpo. Contraria para
ressignificar, mesmo aqueles que já são, dentro do cânone, considera-
dos como transgressores, como é o caso de Nelson Rodrigues. Con-
forme afirma Francy Silva, na apresentação do livro Juntar pedaços,
de Miriam Alves, “na tessitura de suas narrativas, no quebra-cabeça
de inúmeras peças que nos convida a montar, Miriam Alves joga com
o/a leitor/a. Um jogo em que não precisa necessariamente haver um/a
vencedor/a” (SILVA In: ALVES, 2021, p.12).

Nesse jogo, ganha a diversidade cultural e a arte experienciada


com consciência de sua dimensão política como toda arte deve ser.
Para nós, a proposta de literatura de Miriam Alves, em si, é eficiente
ao escrever “poesia como iluminação” – para usar expressão de Au-
dre Lorde, em seu texto “A poesia não é luxo” (LORDE, 2019, p.44)
– com possibilidades de revisar o discurso hegemônico de nosso
cânone nacional. Sua literatura nos faz conhecer personagens que
expõem violências de toda sorte, em especial, o silenciamento com-
pulsório, propondo um outro imaginário cultural brasileiro, mais justo
porque mais verossímil à realidade da nossa diversidade. Nas pala-
vras de Raffaella Fernandez, Miriam “rompe com os estereótipos da
tradição literária hegemônica, na medida em que suas personagens
não ocupam o lugar do exótico, nem servem de ilustração de mero
detalhe narrativo, ou então pertencem apenas aos espaços da subal-
ternização extrema e do sofrimento onde tentam encerrar os corpos
negros” (FERNANDEZ In: ALVES, 2022b, p.61).

sumário 131
NÃO SE FECHA A RODA:
ABREM-SE OUTRAS
E SE MANTÉM A GIRA

Cabe o retorno ao pensamento de Luiz Rufino, quando nos


diz que a sua Pedagogia das Encruzilhadas, a qual orienta nossa
proposta de Pedagogia da dúvida, apresenta a noção de povo de
rua, esta gente que “se desloca para protagonizar/credibilizar os des-
locamentos/desestabilizações produzidos na emergência de outros
lugares de enunciação”. Justamente o que percebemos nesse último
conto que aqui trouxemos e em toda a literatura de Miriam Alves,
uma mulher de rua e na rua enunciando com seu corpo a desesta-
bilização de pensamentos consolidados. Em síntese, sua literatura
põe em cena outras personagens e outras histórias que “emergem
codificando-se como potências de descolonização, produtoras de
subjetividades e ações transgressoras e comprometidas na busca
de uma transformação radical” (RUFINO, 2019, p.111).

Nesse sentido, as obras ficcional e intelectual de Miriam conver-


gem com todos os pensadores que aqui participaram dessa gira por en-
tenderem que o ato de escrever é político e, portanto, é importante para
qualquer sociedade, mas é indispensável para as que, como a brasileira,
derivam, há séculos, por sua estrutura colonial. Segundo Miriam, a
ação de militante maior de um escritor é escrever, produzir tex-
tos. A ação do dia a dia passa a ser matéria-prima de reflexão.
Ser militante não é o fim da ação de um escritor. Você pode ser
militante político do Movimento Negro, do Movimento Feminista,
do Movimento Gay, mas é a ação de escritor a que é política,
porque a sua escrita está refletindo tudo isto. Escrever é uma
ação política (ALVES, 2022b, p.97).

Nessas (e com essas) leituras de escrituras que são e se sabem


políticas, como as de Cassandra e Miriam, é possível agitar mentes e
corpos pensantes da/na sala de aula, mostrando, que, para as mu-
lheres “a fala é um falo” (para trazer mais uma vez a voz poética de

sumário 132
Miriam), e com a fala se joga e se mina de dentro o convencionalismo
das coisas instaurado pelo falo da tradição. Como lucidamente afirma
Cristian Sales, “num caminho à margem da tradição literária brasileira,
entre texto e o tecido, a rebeldia e a abertura, tal qual um rio que se dilui
ao desaguar, Miriam” – e por ela queremos aqui fazer ecoar as muitas
vozes dissonantes e dissidentes de nossa literatura – “entrega uma
maneira de ser, escrever e estar no mundo que reinventa os caminhos
da crítica literária” (SALES In: ALVES, 2022b, p.119). Que existências
atentas no chão da sala de aula sigam revelando o quanto vale a pena,
o quanto é urgente e inadiável proliferar essa abertura a vozes disso-
nantes que mantêm em movimento a (noção de) arte viva, orgânica,
plural, interseccional: uma ginga, um negaceio que não se rende aos
colonialismos e às suas insidiosas cooptações.

REFERÊNCIAS
ALVES, Miriam. BrasilAfro Autorrevelado: Literatura Brasileira
contemporânea. Belo Horizonte: Nandyala, 2010.
ALVES, Miriam. Juntar Pedaços. Rio de Janeiro: Malê, 2021.
ALVES, Miriam. Miriam Alves Plural: teoria, ensaios críticos e depoimentos.
São Paulo: Fósforo, 2022b.
ALVES, Miriam. Poemas reunidos. São Paulo: Círculo de poemas, 2022a.
BÍBLIA ONLINE. Disponível em https://www.bibliaonline.com.br/acf/1co/13.
Acesso em 28 de agosto de 2022.
GUÉNOUN, Denis. A exibição das palavras: uma ideia (política) do teatro.
Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003.
hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da
liberdade. 2ª Ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.
LARROSA, Jorge. Experiência e alteridade em educação. In: Revista
Reflexão e ação. V. 19, n. 2, Santa Cruz do Sul, 2011, p. 04-27.
LORDE, Audre. A poesia não é um luxo. In: Irmã Outsider: Ensaios e
conferências. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

sumário 133
LOURO, Guacira Lopes. Teoria Queer: uma política pós-identitária para a
educação. In: Estudos feministas. Ano 9, v. 9, n.2, Florianópolis, 2001, p. 541-553.
RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula, 2019.
TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: A homossexualidade no
Brasil da colônia à atualidade. 4 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.
WALSH, Catherine. Interculturalidade Crítica e Pedagogia Decolonial: in-
surgir, re-existir e re-viver. In: CANDAU, Vera M. Educação Intercultural na
América Latina: entre concepções, tensões e propostas, 2009.

sumário 134
6
Capítulo 6

A Teoria Queer vai ao


banheiro: reflexões
currículo-pedagógicas a
partir de Mato Grosso do Sul

Tiago Duque

Tiago Duque

A Teoria Queer
vai ao banheiro:
reflexões currículo-pedagógicas
a partir de Mato Grosso do Sul

DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.6
“[…] é fundamental que se reconheça que o problema dos
banheiros públicos é muito mais do que uma falha na má-
quina de segregação de gênero: é mais bem descrito como
uma aplicação violenta do nosso atual sistema de gênero”
Judith/Jack Halberstam (2008, p. 48)

INTRODUÇÃO25

Os espaços arquitetônicos produzem e são produzidos por


currículos e pedagogias de diferentes ordens, inclusive de “sexo”,
gênero e sexualidade. Muito recentemente, a Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul (UFMS), na região Centro-Oeste brasileira, im-
plementou banheiros “neutros”, e a repercussão dessa iniciativa tem
indicado o quanto esses currículos e pedagogias envolvem diferen-
tes relações de poder, instituições e experiências identitárias que se
tornam oportunidades de análises. Aqui, sob uma perspectiva teórica
queer, pretendo pensar o quanto o banheiro pode nos levar à teoria
e a teoria pode nos levar ao banheiro. Proponho esse movimento sa-
bendo que ele pode ser tanto oportuno como inoportuno, a depender
do ponto de vista e dos interesses em jogo.

Quando nos referimos a currículo e pedagogia, não nos referi-


mos àqueles ligados à instituição escolar em si, eles não estão restritos
às escolas ou universidades (SILVA, 2001; ANDRADE; COSTA, 2017).
Ainda que o banheiro “neutro” esteja em uma instituição de Ensino Su-
perior, interessa-me o que a sua existência produz, em termos de ensi-
no-aprendizagem, no nível mais amplo do que a instituição em si, e, ao
mesmo tempo, entendê-lo como sendo ele mesmo fruto de programas
currículo-pedagógicos diversos. Essa discussão interessa à Educação
e a qualquer outra área dedicada às questões de gênero e sexualidade,

25 Parte dessas reflexões foi apresentada no “GT 23 – Gênero, Sexualidade e Educação” da


16ª Reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação da Re-
gião Centro-Oeste (ANPed-CO) – realizada de modo híbrido pela Universidade Estadual
de Mato Grosso do Sul (UEMS) em outubro de 2022.

sumário 136
afinal, sabemos que essas pedagogias e currículos “produzem valores
e saberes; regulam condutas e modos de ser, fabricam identidades e re-
presentações, constituem certas relações de poder” (SABAT, 2001, p. 9).

Os dados aqui analisados sobre os banheiros “neutros” da


UFMS foram levantados a partir das mídias digitais. Eles são todos
públicos, com acessos livres, e estão em circulação em diferentes con-
textos digitais, como jornais, redes sociais, grupos de interação por
meio de aplicativos, etc. Isso é possível por estarmos em uma “era di-
gital”, caracterizada por mantermos conexão em rede através de meios
comunicacionais tecnológicos – equipamentos, redes de acesso e pla-
taformas de conectividades caracterizados como digitais (MISKOLCI,
2017). Nesse contexto, mesmo sabendo das desigualdades de acesso
a essas tecnologias em contextos culturais e econômicos diversos,
pode-se afirmar que, em termos de interação social, o digital envolve
“um público estruturado em rede cujas interações não prescindem da
co-presença, ao mesmo tempo, tratamos de práticas comunicativas
que cruzam corpos e tecnologias” (PADILHA; FACIOLI, 2018, p. 306).

Esses contextos digitais, portanto, favorecem o levantamento de


dados não apenas por suas oportunidades de socialidade na contem-
poraneidade, mas, também, por ter neles inúmeros artefatos culturais
em produção, circulação e interação. “O que chamamos aqui de di-
gital se refere a um conjunto heterogêneo e bastante amplo de obje-
tos, ações e relações sociotécnicas que se tornaram parte de nossa
experiência cotidiana, modulada por marcadores sociais […]” (LINS;
PARREIRAS; FREITAS, 2020, p. 02). Os artefatos culturais enquanto
campo de pesquisa, nesse sentido, são tecnológicos-digitais, favore-
cem socialidades e interações currículo-pedagógicas. No entanto, o
próprio banheiro, seja ele “neutro” ou não, é um artefato arquitetônico
– nesse caso, não tecnológico digital, mas igualmente cultural. Sejam
os arquitetônicos ou os tecnológicos-digitais, os artefatos são produ-
ções culturais que podem ser compreendidos a partir de sua natureza
currículo-pedagógica. Nesse caso, através do campo dos artefatos
tecnológicos-digitais, analisamos o processo currículo-pedagógico do
artefato arquitetônico banheiro “neutro”.

sumário 137
Nesse sentido, metodologicamente esses artefatos tecnológi-
cos-digitais foram encontrados por meio de “perambulação”, isto é,
pela circulação aparentemente despretensiosa em torno das notícias e
comentários (repercussão) da implementação do banheiro “neutro” na
UFMS em diferentes ambientes e plataformas digitais, identificando ca-
racterísticas topográficas e de ritmos na interação e/ou postagens, em
busca do levantamento dos dados (LEITÃO; GOMES, 2017). Conco-
mitantemente, utilizei no ambiente digital o que é próprio da etnografia
“tradicional”: caderno de campo, imersão na realidade estudada, des-
crição da experiência e dos envolvidos, sistematização das informa-
ções para posterior análise dos dados (NOVELI, 2010). Esse processo
também envolve atenção às questões éticas de pesquisa, acessando
apenas o que está divulgado publicamente, de acesso livre, e sem
identificar os personagens envolvidos pelos nomes, mesmo aqueles
que ocupam cargos públicos (NUNES, 2019), entendendo que o foco
é a experiência e não a identidade pessoal dos envolvidos.

Em um primeiro momento, abordarei os tópicos currículo e peda-


gogia, especialmente no que se refere às questões de gênero e sexuali-
dade em uma perspectiva queer. Posteriormente, discutirei a experiência
e a repercussão do referido banheiro a partir dos dados levantados. Por
fim, buscarei concluir respondendo à pergunta que norteia esse estudo:
como ocorre o processo currículo-pedagógico do “banheiro neutro” de
uma universidade pública no Centro-Oeste brasileiro?

SOBRE BANHEIROS E TEORIAS

A teoria queer tende a ser classificada como pertencente à pers-


pectiva teórica pós-crítica em Educação (MEYER; PARAÍSO, 2014). Há
uma variedade incrível dos usos teóricos queer nessa e em outras áreas
do conhecimento, inclusive usos críticos e/ou contraditórios entre si.
Nesse sentido, reconheço a diversidade teórica e política hoje em jogo

sumário 138
quando nos referimos à Teoria Queer (BENTO, 2011; PEREIRA, 2012;
PELÚCIO, 2012; MISKOLCI, 2012; DUQUE, 2014; FERNANDES; GON-
TIJO, 2016; MATEBENI, 2017; LEOPOLDO, 2020, entre outros). Mas, no
que se refere ao pós-crítico, entendo que se trate de uma perspectiva
teórica, entre outros aspectos, pós-identitária – não em uma recusa às
identidades, como se elas não existissem ou sequer fossem necessárias
academicamente e/ou politicamente, mas no sentido desconstrucionista
e não sistêmico ou essencialista das identidades, o que inclui análises
críticas não necessariamente celebratórias das políticas identitárias.

Dito de outro modo, a perspectiva queer que utilizo nesse texto


tem inspiração no movimento social norte-americano das décadas
de 1970 e 1980, que, diante do movimento gay comumente branco e
de classe média, criticava a sua pauta assimilacionista, que busca-
va os mesmos direitos que os heterossexuais para, conforme os/as
queer, propor outras formas de viver que não o modelo heterocen-
trado: “Ser queer significa levar um outro tipo de vida. Não é sobre
o mainstream […]” (MANIFESTO…, 2014). Como se sabe, é esse
clima de contestação de parte de dissidentes sexuais e de gênero
que não quiseram (ou não podiam) ficar parecidos com os heteros-
sexuais – inclusive adotando o xingamento queer como categoria de
autoidentificação – que inspirou feministas nas universidades a dar
consistência à crítica diante das limitações das categorias identitá-
rias em termos de política de representação (JAGOSE, 1996).

Parte das críticas que análises pautadas na chamada Teoria


Queer receberam e ainda recebem atualmente tem relação com distin-
tas visões em termos de gênero e sexualidade, especialmente quando
se observa a arena dos debates a partir dos essencialismos identitá-
rios ou políticas de reconhecimento que, diante do enfrentamento às
distintas violências e desigualdades, acabam reforçando binarismos.
Nesse sentido, tenho me atentado ao fato de que o reconhecimento
é uma condição da vida vivível, mas “ele pode servir ao propósito do
escrutínio, da vigilância e da normatização dos quais uma fuga queer

sumário 139
pode se provar necessária precisamente para atingir a viabilidade da
vida fora dos seus termos” (BUTLER, 2018, p. 69).

Dito isso, no contexto brasileiro, estou de acordo com Seffner


(2011, p. 60): “acho que nos últimos anos temos feito muito esforço para
ficar ‘adequados’ na hora da foto, e com isso perdemos energia criativa
para mudar o mundo, e a nós mesmos”. Carrara (2010, p. 144) também
se referiu a esse clima de experimentações e conquistas chamando a
atenção para o fato de que “se o imperativo da visibilidade no nível das
políticas públicas fortalece certas identidades ou grupos, também os
expõem a um controle mais minucioso por parte de diferentes instâncias
do poder estatal”. Ainda que os autores não se refiram ao que temos
vivido nesse momento atual, ao propor levar a Teoria Queer ao banhei-
ro, não vejo como não considerar a atualidade dessas críticas. Mesmo
sendo um banheiro “neutro”, penso ser necessário não “endeusar” a
postura de rompimento, o que não é o mesmo que condená-la, afinal,
estar na norma também tem seus gozos (SEFFNER, 2011).

Dentre as possibilidades existentes, ajuda-me a pensar em uma


perspectiva queer a noção de regimes de visibilidades. “Regime” aqui
é entendido não como algo que proíbe ou impede determinado modo
de se tornar visível, mas algo que regula e normaliza, algo que se en-
sina e se aprende em termos de códigos de valores e representações
de como se deve tornar-se reconhecido – leia-se visível (SEDGWICK,
1998; MISKOLCI, 2017; DUQUE, 2020). E isso está diretamente ligado
às nossas experiências de usos dos banheiros não apenas enquanto
artefatos arquitetônicos, mas também, conforme discutirei posterior-
mente, artefatos arquitetônicos-protéticos, sejam eles públicos ou pri-
vados, binários (unisexuados) ou “neutros”.

Observando mais as continuidades do que as descontinuidades


das normas e convenções sociais, como fez o movimento queer ao
criticar o ativismo gay assimilacionsita, aqui não pretendo nomear o
currículo e a pedagogia do banheiro “neutro” como queers, mas in-
teressa-me discutir pedagogias de gênero e sexualidade entendendo

sumário 140
o currículo do banheiro “neutro” como um “espaço de significação”,
isto é, como sendo parte de processos de formação de identidades
sociais (SILVA, 2001), independentemente das experiências de gêne-
ro e sexualidade serem dissidentes ou não. Essa inspiração é atual e
necessária para que, do ponto de vista queer, na área da Educação,
possamos pôr em questão o currículo no seu efeito pedagógico de
nos fazer conhecer determinadas coisas e não outras (LOURO, 2004).

Ao optar por não olhar para o banheiro “neutro” como sendo


um artefato mais currículo-pedagógico, em termos identitários, para
um grupo social do que para outro, reforço o quanto, mesmo sendo
uma demanda de acadêmicos trans ou não bináries da UFMS, ele não
se explica em termos cis ou trans – considerando o ponto de vista
teórico aqui apresentado. Quando me refiro a cis e trans, reconheço
a multiplicidade interna dessas categorias e suas implicações em ter-
mos de poder e de marcadores sociais da diferença (FAVERO, 2020).
Além disso, o fato de a escolha teórica ser a queer, nos termos aqui já
anunciados, não significa que eu negue necessariamente a existência
de um cistema (JESUS, 2016). Entendo que a cisgeneridade, mais do
que uma categoria acusatória presente nas mídias digitais e/ou redes
sociais, tem sido usada como uma categoria analítica que se propõe a
algo diferente do que, em termos queer, eu tenho pretendido. Afinal, ao
invés de questionar “os privilégios dos corpos que se entendem dentro
de uma perspectiva naturalizante e essencialista de gênero” (NASCI-
MENTO, 2021, p. 100), denunciando a cis-política (DEMÉTRIO, 2019),
pretendo compreender como os processos currículo-pedagógicos de
reconhecimento podem ir além da diferenciação identitária cis e trans,
mesmo quando o banheiro em que eu levo a teoria seja “neutro”.

Nesse sentido, além de levar a Teoria Queer ao banheiro, pa-


rece-me igualmente potente o movimento de o banheiro “neutro”
nos levar à Teoria Queer, isto é, a realidade local provocar a reflexão
teórica. A experiência aqui em questão é contextualmente localizada
em Mato Grosso do Sul, na região Centro-Oeste do Brasil, marcada,

sumário 141
entre outras coisas, pelo agronegócio e seus crimes ambientais, por
conflitos étnico-raciais com diferentes populações quilombolas e in-
dígenas, alto índice de feminicídio e trans-homofobia, preconceitos
contra imigrantes, pouco avanços nas políticas de inclusão de pes-
soas deficientes, etc. Essas “marcas regionais” se encontram ainda
em um contexto neoliberal mais amplo, em que verdadeiras “batalhas
morais” são empreendidas, dando destaque às recusas das media-
ções intelectuais e políticas, impactando organizações como movi-
mentos sociais, partidos e universidades com certa anti-intelectuali-
dade (MISKOLCI, 2021). Isso ocorre em um país que, cada vez mais,
busca fortalecer as liberdades individuais sem um compromisso co-
letivo, com forte incentivo à responsabilização de si, com viés fascista
de desprezo do outro e de certas formas de vida (LOCKMANN, 2020).

PARA ALÉM DE UMA CONQUISTA

Enquanto artefato cultural, os banheiros, sendo eles tidos como


“neutros” ou não, são próteses arquitetônicas que garantem parte
da inteligibilidade de “sexo”, gênero e sexualidade. São tecnologias
protéticas, isto é, um “acontecimento de incorporação”, e, como tan-
tas outras zonas de produção do gênero e do “sexo”, nada neutras
(PRECIADO, 2018). Isso porque estamos compreendendo “sexo” aqui
como “parte de uma prática regulatória que produz os corpos que
governa […]. O ‘sexo’ é, pois, não simplesmente aquilo que alguém
tem ou uma descrição estática daquilo que alguém é” (BUTLER, 2001,
p. 153). No processo curricular e pedagógico da cultura, o “sexo” é
“uma das normas pelas quais o ‘alguém’ simplesmente se torna viá-
vel, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio
da inteligibilidade cultural” (BUTLER, 2001, p. 154-155). Inteligibilidade
essa que implica não só em um determinado gênero como também
em uma determinada sexualidade (SEDGWICK, 1998; RICH, 2010).

sumário 142
Diferentes matérias jornalísticas reproduzem essa ideia associa-
da a imagens da placa do banheiro, onde se lê na cor branca, no fundo
azul-claro: “banheiro neutro” (em português, inglês e espanhol). Com-
põem a identificação pictogramas de um homem (silhueta de cabelos
curtos e calça comprida), uma mulher (silhueta de cabelos compridos
e saia) e uma terceira pessoa (silhueta em que metade é um homem
e outra uma mulher conforme aqui descrito). Considerando essa iden-
tificação do espaço arquitetônico, sabemos que a iniciativa está pro-
duzindo pedagogicamente currículos não tradicionais de significados
“sexo”, gênero e sexualidade. Portanto, em um contexto de inteligibili-
dade binária, fixa e naturalizada da diferença sexual (LAQUEUR, 2001),
esse artefato aponta para a política identitária em termos de “sexo”,
gênero e sexualidade que multiplica as possibilidades interpretativas
e culturalmente conceituais da “natureza” inteligível do corpo sexuado.

O investimento da instituição de ensino parece ser apenas nas


placas das portas, isso porque a placa anterior retirada era maior do
que atual, deixando a pintura descascada sob a nova placa já descrita
aqui. Assim, não ocorreram reformas ou adaptações, mas novo empla-
camento. Por isso, a permanência de mictórios é um dos sinais possí-
veis do que tenho chamado de continuidade normativa (não em uma
ideia simplista de reprodução) em torno do que entendemos sobre
“sexo”, gênero e sexualidade. Estou me referindo ao que escreveu Pre-
ciado (2019) em relação à arquitetura dos banheiros públicos mascu-
linos, que, desde o princípio do século XX, produziu essa separação:
urinar-em-pé-mictório/defecar-sentado-vaso sanitário. Para o autor,
essa é uma produção eficaz da masculinidade heterossexual porque
ela depende da separação imperativa de genitalidade e analidade, per-
mitindo que o homem urine visivelmente diante de outros na posição
em pé no mictório, mas para defecar tenha de entrar sozinho no com-
partimento onde está o vaso sanitário, fechar a porta e se sentar.

Para além da compreensão de o banheiro “neutro” ser, nas pa-


lavras de uma acadêmica trans, “uma conquista”, parte das repercus-
sões da sua implementação tem ligação direta com recusas históricas

sumário 143
de reconhecimento de “sexo”, gênero e sexualidade que a antecedem.
Ela é uma das mais de 80 acadêmicas trans da UFMS. Esse número é
subnotificado por se referir a uma aproximação de acadêmicos que so-
licitaram o nome social, pedidos esses que aumentaram muito depois
do retorno das aulas pós-pandemia da Covid-19 (FERNANDES, 2022).
Por isso, a voz dessa referida acadêmica trans na primeira notícia di-
vulgada na mídia sobre a iniciativa divide espaço com outras vozes,
entre elas a de um acadêmico contrário (a notícia não informa sobre
sua identidade de gênero ser cis ou trans): “Acho perigoso esse tipo
de coisa” (TORRES; MARQUES, 2022). Assim, a notícia não apenas
informava sobre o banheiro, mas apresentava a polêmica em que ele
está envolvido, inclusive no título: “Universidade adota banheiro neutro
e a polêmica já começou” (TORRES; MARQUES, 2022).

O perigo em torno do banheiro, seja ele “neutro” ou não, é algo


reconhecidamente presente em nossa sociedade. Ainda que ele se jus-
tifique em relação às violências possíveis contra pessoas cis e trans nos
seus mais variados usos, é inegável que, conforme aponta o grupo de
estudantes trans da UFMS que fizeram uma mobilização junto à Secre-
taria de Assistência Estudantil (SAE) para a criação do banheiro “neutro”
na instituição, há pessoas mais vulneráveis a essas experiências do que
outras, especialmente aquelas alvo de transfobia (FERNANDES, 2022).
O perigo real da violência tem relação direta com o perigo relacionado
também aos processos de reconhecimento do “sexo” que os banheiros
produzem para pessoas tidas como cis ou trans. Inspirado nas afir-
mações de Judith Butler durante uma de suas entrevistas (KNUDSEN,
2010), compreendo o reconhecimento, assim como o poder, como algo
que circula, isto é, não respeita as fronteiras identitárias; pelo contrário,
produz essas fronteiras a partir de histórias singulares, dentro de certo
quadro comum de inteligibilidade. Em um contexto sociocultural binário
em termos de gênero e sexualidade, as noções de perigo relacionadas
ao banheiro “neutro”, em especial, constam no processo currículo-pe-
dagógico que esse artefato está envolvido.

sumário 144
Mesmo sendo apenas quatro “neutros” em um universo de 410
banheiros no campus e com o esclarecimento da Pró-Reitoria de Admi-
nistração e Infraestrutura (PROADI) que nos espaços escolhidos para
os banheiros neutros permanecem também à disposição os banheiros
binários, há um movimento de servidores, acadêmicos e pais de acadê-
micos contrário à decisão (FERNANDES, 2022). Na contramão da ideia
que o justificaria, isto é, a proteção de pessoas trans em relação à trans-
fobia envolvendo o uso dos banheiros binários, comumente o banheiro
“neutro” é entendido como uma “ameaça” à segurança da população
em geral, que não se identifica como vulnerável ao usar os banheiros
separados como masculino ou feminino. Seja pelas reações contrárias
ou de apoio, seja pelo próprio artefato arquitetônico-protético não binário
em si, tal suposta “neutralidade” do banheiro causa certo estranhamento
teórico-político, afinal, conforme os dados encontrados, é possível en-
tendê-lo currículo-pedagogicamente como um artefato cultural, isto é,
um “local pedagógico” de gênero e sexualidade onde o poder se orga-
niza e se exercita (STEINBERG, 1997). Portanto, nada “neutro”.

MAIS BANHEIROS PARA A DEMOCRACIA

A informação da implementação do banheiro “neutro” veio à


tona em um jornal local por meio de uma sugestão de pauta em tom
de denúncia feita por uma liderança sindical (tida como “progressis-
ta”). O diretor jurídico do Sindicato dos Trabalhadores em Educação
da UFMS e dos Institutos Federais de Ensino (IFs) de MS (SISTA/MS)
afirmou à imprensa que a decisão institucional não foi tomada de forma
democrática e classificou a ação da reitoria (tida como “conservado-
ra”) como “modismo” e “nada científica”. O sindicalista afirmou ainda
que não achou ninguém que “concordasse com isso” (TORRES; MAR-
QUES, 2022). Em outra matéria o SISTA/MS se pronunciou dizendo
que a opinião do coordenador era pessoal e não refletia a posição
do referido sindicato, reafirmando o compromisso e o respeito com

sumário 145
“toda a comunidade acadêmica”: “Nossas lutas sempre foram contra
qualquer tipo de discriminação, seja racial, de cor, credo, gênero ou
orientação sexual” (FERNANDES, 2022).

A Associação dos Docentes da UFMS (ADUFMS) – Seção Sin-


dicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior
(ANDES-SN), diante da polêmica midiática, também se posicionou.
Os sindicalistas responsáveis por tal associação, em nota, assumem
reconhecer a necessidade da iniciativa, mas criticam a gestão da
instituição por não ter promovido debates: “A Diretoria da ADUFMS
defende que a gestão da universidade deve tomar as decisões de
forma coletiva, respeitando as suas instâncias colegiadas e as res-
pectivas representações de todos os segmentos que compõem a
comunidade universitária”. O sindicato segue a nota afirmando: “Não
há justificativas para que esta decisão não fosse tomada de forma
democrática, evitando os conflitos ora causados, frente a uma ação
legítima e necessária” (ADUFMS, 2022).

As críticas à gestão atual da UFMS, que está em seu segundo


mandato, existem independentemente do banheiro “neutro” (OLIVEI-
RA et al., 2020; JARA, 2021; OLIVEIRA, 2021;). Contudo, é falsa a in-
terpretação de que com debates não haveria polêmicas. Além disso,
é arriscado apostar que por meio de decisões coletivas, respeitando
as representações dos segmentos da universidade ou se a decisão
fosse supostamente “tomada de forma democrática” não haveria
conflitos. Há experiências em outras regiões que apontam para o fato
de que a discussão por meio de debates institucionais sobre o uso
do banheiro de modo não binário em termos de gênero e sexualidade
não apenas pode deixar de enfrentar as polêmicas como, inclusive,
em alguns casos, inviabiliza a implementação da iniciativa (FERRARI;
BEZERRA; CASTRO, 2020; CERVI et al., 2019).

Nesse sentido, ainda que debates sejam fundamentais, há con-


sensos sobre o quanto a importância do uso do banheiro por todas as
pessoas, independentemente da identidade de gênero, está no campo

sumário 146
da dignidade humana, do direito à saúde, à autodeterminação e à li-
berdade sexual. Mesmo em casos de usos de banheiros femininos por
transexuais femininas, sabe-se que esse direito está garantido consti-
tucionalmente. “Em sociedades plurais e democráticas, o incômodo e
o constrangimento alheio não autorizam a restrição de direitos funda-
mentais de terceiros, desde que não ocorra prejuízos relevantes aos
demais” (RIOS; RESADORI, 2015, p. 225). Nesse sentido, o banheiro
“neutro”, que não segrega por não ser exclusivo para um grupo espe-
cífico de pessoas, mas livre para qualquer pessoa independentemente
de sua identidade de gênero e sexual, pode ser mais do que uma
solução sanitária no campo dos direitos, antes, uma oportunidade ao
exercício democrático. Portanto, trata-se de uma iniciativa cientifica-
mente fundamentada e democrática, mesmo porque com as “marcas
regionais” de Mato Grosso do Sul não haveria garantia de que ela seria
aprovada em instâncias colegiadas, mesmo em contexto universitário.

A repercussão dessas notícias com os mais variados posicio-


namentos da instituição, de acadêmicos e de sindicalistas perdurou
por vários dias nas mídias digitais. Um desses ambientes foi a co-
munidade no Facebook intitulada “Segredos UFMS”. Segundo o que
consta em sua definição, o espaço é para aquelas pessoas que estão
“a fim de denunciar algo totalmente anônimo”, isto é, “contar segre-
dos, desabafos, o que fizeste pela nossa UFMS”. Em uma tentativa
de deixar as pessoas à vontade, a comunidade afirma: “aqui é o seu
lugar. Mande Inbox”. O tema das postagens e dos comentários na co-
munidade envolvendo banheiro é antigo, desde pelo menos 2016, e,
por mais variados que os recortes temáticos se apresentem (limpeza,
sexualidade, achados e perdidos, hierarquia entre cursos, etc.), no
geral são poucas as referências a esse artefato arquitetônico-proté-
tico. No que se refere ao banheiro “neutro”, assim que as primeiras
notícias começaram a ser postadas, o assunto foi repercutido.

Considerando os comentários na comunidade, é possível


acessar parte do conteúdo que esse artefato arquitetônico-protético
apresenta em termos curriculares. Há vários comentários críticos à

sumário 147
iniciativa, concordando com o sindicalista não no que se refere à falta
de debates, mas no sentido de não concordar com o banheiro “neu-
tro”. Uma jovem analisa: “O problema é que o politicamente correto
impera nas universidades federais”. Outra jovem também critica a
universidade: “É que a instituição não tem nada para fazer, está tudo
certinho, tudo funciona bem, nenhuma reclamação, os universitários,
estão super bem, saúde mental super boa, nada pra melhorar, então
fica procurando esse tipo de (nem sei que tipo de expressão usar)
isso aí para fazer ”. Há outros comentários que apoiam a iniciativa,
mas aparecem em menor número. Um jovem afirma: “Se o banheiro
é de uso optativo, fiquei sem entender o barraco ”. Outro se refere
ao sindicalista: “Vc não precisa concordar e sim respeitar, e principal-
mente não usar o neutro vai lá no de funcionários!”.

Os comentários na referida comunidade do Facebook indicam


o quanto os banheiros “neutros” contribuem, independentemente das
pessoas que irão utilizá-lo, para a construção das subjetividades de
quem acessa a informação sobre a sua existência, portanto, o seu
currículo, em um processo dinâmico, “produto de intensas lutas que se
dão nos seios das redes de poder, com diferentes forças e interesses
– muitas vezes contraditórios ou até mesmo opostos – enfrentando-se
sem cessar” (SIBILIA, 2015, p. 143). Midiaticamente, essa experiência
de enfrentamentos e de oposições em torno desse e de outros temas,
como sabemos, está diretamente ligada a um contexto social mais
amplo em que as subjetivações se localizam.

Atualmente existem tentativas de silenciamentos agressivos por


parte da extrema-direita que buscam deslegitimar a cidadania de gru-
pos mais vulneráveis através da crítica ao que se convencionou chamar
de “politicamente correto”. Silenciamentos também ocorrem por parte
de “ativismos que transformaram demandas de igualdade em vigilância
comportamental e linguística, apropriando-se do “lugar de fala”, como
uma espécie de mordaça moral (PELÚCIO; DUQUE, 2020). A crítica às
universidades está diretamente ligada a essas tentativas de silenciamen-
tos e, de forma mais ampla, a um contexto antidemocrático, que envolve

sumário 148
ditos progressistas como ditos conservadores (essa separação aqui é
puramente didática, ainda que bastante limitada), que se sustenta em
um sentimento anti-igualitário. Isso ocorre a partir de manifestações cur-
rículo-pedagógicas de medo, desprezo, rejeição ou ódio à alteridade.

Essa experiência “está no centro dos processos de adoecimen-


to, agonia e morte das democracias modernas, fato que pode se dar
independentemente da manutenção da regularidade de processos
eleitorais nos países” (DESLANDES, 2019, p. 3). Por isso, a solução
aparentemente fácil de parte daqueles que comentaram a existência
do banheiro “neutro”, a de que “se não quiser não use, mas respeite a
iniciativa da UFMS”, parece pouco efetiva nesse contexto geral de crí-
tica política à universidade e à sociedade altamente binário em termos
de “sexo”, gênero e sexualidade em que nos encontramos. Afinal, os
banheiros, como espaços de alta densidade simbólica desde as nos-
sas infâncias (TEIXEIRA; RAPOSO, 2017), não são os mesmos em to-
dos os lugares (MATEBENI, 2017). Os da universidade não passariam
livres de críticas condenatórias; o currículo aqui tem peso diferenciado
caso o banheiro “neutro” fosse em outro lugar, como em casas notur-
nas, empresas públicas ou privadas, aeroportos e shoppings centers
– eles não teriam a mesma repercussão, a mesma intensidade dos
alertas de perigo. Isso pode ser um indicativo de o quanto a universi-
dade segue sendo um espaço democraticamente importante, mesmo
que ameaçada por sentimentos anti-igualitários.

A CULPA É DO BANHEIRO? –
A TÍTULO DE CONCLUSÃO

O processo currículo-pedagógico em torno do quão perigosa é


a iniciativa da UFMS em relação à implementação do banheiro “neutro”
ganhou força argumentativa nas mídias digitais após a denúncia de
uma acadêmica em ter sido vítima de assédio sexual quando usava um

sumário 149
desses banheiros. A notícia na imprensa se baseava em um relato pos-
tado na comunidade “Segredos UFMS”, feito pela própria vítima. Isso
ocorreu a partir da ação de um homem “pai de família, casado”, que
colocou a mão, segurando um celular para filmá-la ou fotografá-la, por
baixo da divisória da cabine onde fica o vaso sanitário em que ela es-
tava. Segundo a notícia, a universidade deu apoio psicológico à vítima
e a corregedoria irá investigar o caso (MENDONÇA; MOREIRA, 2022).
A vítima não se autodeclarou trans ou não binária. Isso, somado ao fato
de ela justificar o uso do banheiro “neutro” por estar precisando e não
ter outro por perto, dá a entender que ela não é do público prioritário
da iniciativa, indicando o quanto a experiência não é necessariamente
identitária em termos trans/travesti/não binárie. A partir desse momento
as notícias deixam de ser publicadas na seção “Comportamento” do
jornal e passam a estar na editoria de “Segurança”.

Com esse caso de violência é possível problematizar a interpre-


tação de Preciado (2019) que associou apenas o espaço do mictó-
rio de urinar em pé com a produção de masculinidade heterossexual,
conforme já discutido aqui. Maia (2012) já havia apontado os limites,
a partir de mensagens homofóbicas em cabines privadas dos banhei-
ros masculinos, em relacionar apenas os mictórios de se urinar em pé
à socialidade e à produção de masculinidade heterossexual. Nesse
sentido, o banheiro “neutro”, mesmo com a sua cabine privada com
vaso sanitário, não impediu, via a violência sexual denunciada, uma
certa produção e afirmação de desejo masculino heterocentrado. Isso
ocorre a partir do formato das divisórias das cabines: elas não chegam
até o chão, formato pensado para que se visualize se há mais de uma
pessoa a usando. Inclusive, em banheiros masculinos, em alguns ca-
sos, esse formato expõe as relações sexuais entre homens. Isso indica
o quanto a “cancela de gênero” (CERVI et al., 2019), que são as placas
nas portas dos banheiros, não são os únicos dispositivos de vigilância
presente nesse artefato arquitetônico-protético que é o banheiro.

sumário 150
As reações nas redes sociais foram intensas após a circula-
ção da informação do assédio sexual. Por exemplo, na página do
Facebook de um dos jornais que noticiou o ocorrido, a maior parte
das postagens não condena o autor da violência, mas a jovem que
usou o banheiro. Uma mulher afirma: “Quem entra não deveria ter
direito de reclamar!”. Outra faz alusão, ao também responsabilizar a
vítima, ao jargão feminista “meu corpo, minhas regras”: “Se é meu
corpo minhas regras então é minha responsabilidade tbm”. O que
se percebe em muitas postagens críticas ao banheiro é a linguagem
“neutra”. Um homem ironiza: “Que coise, isso é ume ofense aos neu-
tres”. A decisão da universidade é criticada também de forma irônica:
“Essa UFMS é uma piada. Quer entrar na onda da modinha e só vai
arrumar mais mimizera”. Há ainda críticas político-partidárias fazendo
referência ao número do Partido dos Trabalhadores (PT): “Aperta o
13 que tudo melhorará”. Junto delas, memes do atual presidente Jair
Messias Bolsonaro rindo aparecem nos comentários, do ex-presiden-
te Luiz Inácio Lula da Silva também. Na contramão da maioria dos co-
mentários e reações, uma postagem que pouco foi curtida é a de um
homem tentando apontar que o culpado é o autor da violência e não
a iniciativa da UFMS; ele questiona: “Agora a culpa é do banheiro?”.

Todos esses comentários precisam ser analisados no contexto


político das “batalhas morais” e de binarismos em termos de gênero
e sexualidade que foram apresentados até aqui. Eles reforçam um
conteúdo curricular de ataque à universidade, isto é, com viés anti-
-intelectual, ao mesmo tempo em que não reconhecem experiências
de alteridade em termos de gênero e sexualidade, portanto, caracteri-
zando-se também como anti-igualitário e antidemocrático. Pedagogi-
camente ele circula de modo polêmico e, por vezes, irônico, inclusive
se utilizando da “linguagem neutra”. Sua circulação não está ausente
de lideranças tidas como progressistas. Isso não significa que esse
conteúdo se repita da mesma forma ou intensidade independente-
mente do posicionamento político dos envolvidos.

sumário 151
Mesmo a polêmica vindo à tona por meio de um sindicalista que
a classificou como “modismo”, sindicatos reconheceram o valor do
banheiro “neutro”, mas criticaram a sua implementação sem a aprova-
ção coletiva, indicando uma visão limitada de democracia. Entre outros
críticos da iniciativa, seja no “Segredos UFMS” ou no Facebook de um
dos jornais da cidade, não há grandes destaques ao reconhecimento
da importância dos banheiros “neutros”; antes, apresentam ataques
de diferentes ordens, tanto à instituição como a quem usa o banheiro,
por meio de críticas político-partidárias e contra o “politicamente corre-
to”, independentemente da identidade de gênero de quem faz o uso.
A abordagem jornalística não buscou entrevistar ou consultar qualquer
especialista em termos de direitos ou mesmo pesquisadores da área
de gênero e sexualidade para contribuir com as matérias.

Essa caracterização currículo-pedagógica se materializa ainda


em um vídeo que circulou em diferentes grupos de WhatsApp em que,
“com indignação”, um candidato a deputado federal, em frente a um
monumento símbolo da instituição, gravou um vídeo pedindo voto, in-
formando em tom alarmista que fez uma denúncia junto ao Ministério
Público Federal “contra o reitor da faculdade sobre o banheiro neutro”,
pois havia ocorrido uma violência sexual no local – uma “menina estava
usando e tinha um camarada, que se diz menina, mas estava filmando
a menina”. A referência a uma suposta identidade trans, ou de alguém
passando por trans, do autor da violência é uma mentira diante do fato
relatado pela vítima. Antes de se despedir fazendo referência a Deus
e pedir para que o vídeo seja compartilhado, ele promete não deixar
“que esse tipo de situação aconteça em nosso estado e no nosso Bra-
sil”. A sua intenção seria “fazer cumprir a lei”, e acrescenta que é “para
que as pessoas tenham segurança, principalmente as mulheres”.

Didaticamente, a circulação curricular do conteúdo referente


à iniciativa da UFMS não apenas reforça os ataques às universida-
des, sendo feita, por exemplo, por meio de um celular dentro da pró-
pria instituição, como associa o perigo às supostas falsas pessoas

sumário 152
trans, em um jogo representativo dúbio que pode ser estendido à
própria identidade de gênero alvo do referido banheiro: como saber
quem é de fato identitariamente trans e quem não é? Esse perigo
classificatório em tom religioso é deslegitimador das diferenças de
gênero e dos direitos garantidos em termos de dignidade da pessoa
humana. Ele aparece como fundamentação para a denúncia junto
ao próprio Ministério Público, portanto, ao aparato institucional de
garantia de direitos, mesmo sendo absolutamente falso por não se
sustentar a ideia de que mulheres estariam em risco por usos de
homens passando por mulheres nos banheiros país afora.

Ao invés de privilégios em relação às identidades de gêneros


mais conformes e menos dissidentes às normas e convenções sociais,
o banheiro “neutro”, enquanto um artefato arquitetônico-protético cur-
rículo-pedagógico, favorece ser compreendido para além das iden-
tidades cis e trans que justificariam a sua existência. Envolto em um
certo “regime de visibilidade” de “sexo”, gênero e sexualidade, com
“cancelas de gênero” diversas e com circulação midiática-digital de
diferentes ordens e envolvendo corpos variados, traz em certos contex-
tos alívio e tranquilidade por não ser implementado em todos os campi
universitários, como uma reportagem em que o diretor de uma das
unidades da UFMS do interior do Estado afirma que não há previsão
para a sua implementação. De modo indireto, ele tranquiliza a popula-
ção de Três Lagoas (MS), que, considerando as “marcas regionais” já
citadas neste capítulo, teve projeto de lei pela implantação na cidade
dos banheiros “multigêneros” vetado pelo prefeito (REDAÇÃO, 2022).

Concluo afirmando que as normas e as convenções currículo-


-pedagógicas binárias não são totalmente dribladas e contestadas
pela implementação do banheiro “neutro”. Tal artefato mantém a
continuidade de significados que, por serem históricos, não são fa-
cilmente transformados, ainda que alguns o classifiquem como “mo-
dismo”. Ao mesmo tempo, a iniciativa deve ser vista como ampliado-
ra de possibilidades de visibilidade e inteligibilidade em termos de
“sexo”, gênero e sexualidade nos contextos violentos. A repercussão

sumário 153
currículo-pedagógica aqui analisada indica o quanto ele não é “neu-
tro” nem em termos da política identitária envolvendo “sexo”, gênero
e sexualidade; nem em termos da política universitária que envolve
supostos “progressistas” e “conservadores”.

O currículo do banheiro “neutro” tem conceitos que rompem e,


ao mesmo tempo, mantêm certa continuidade de sentidos em relação
a “sexo”, gênero e sexualidade. A sua pedagogia organiza e execu-
ta aprendizados por meio de denúncias, polêmicas, reivindicações e
contestações de diferentes pessoas, inclusive ironicamente a partir da
linguagem neutra. Essa experiência em Mato Grosso do Sul indica o
quanto as teorias necessitam ser levadas ao banheiro e, ao mesmo
tempo, o quanto os banheiros precisam impactar as teorias para que
reflexões sigam sendo feitas no sentido de buscarmos compreender
continuidades e descontinuidades de normas e convenções em tem-
pos de violência e visibilidade de gênero e sexualidade.

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sumário 158
Seção 2

2
Educação estética e Teoria Queer
Seção

Educação estética
e Teoria Queer
7
Capítulo 7

“A cor púrpura” enquanto


política de desorientação
heteronormativa

Djalma Thürler

Marcelo Nogueira

Djalma Thürler
Marcelo Nogueira

“A cor púrpura”
enquanto política
de desorientação
heteronormativa
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.7
INTRODUÇÃO

O teatro musical brasileiro, precisamente o straight play, dadas


as suas especificidades históricas e o contexto (social, cultural, econô-
mico e político) no qual está inserido, tem se firmado muito timidamen-
te como espaço de reflexão crítica, mantendo o seu potencial transfor-
mador limitado, servindo muitas vezes para reafirmar estereótipos e o
padrão heterocêntrico. No entanto, em sua recente história, é possível
encontrar brechas emancipadoras e carregadas de ressignificação,
desfamiliarização e descontinuidade subversiva.

O gênero Teatro Musical é frequentemente considerado como


segmento comercial de puro entretenimento para o deleite de um pú-
blico generalizado de espectadores brancos, conservadores, de classe
média e, predominantemente, heterossexuais que ao aplaudir repre-
sentações de gays/lésbicas tendenciosas26, perpetuam e reforçam a
“heterossexualidade compulsória” (RICH, 2019) na sociedade, contu-
do, algumas produções têm se organizado em realizar uma gama de
leituras queer, anti e contra-normativas. Essa poética queerness, iden-
tificável com uma agenda de desaprendizagem (THÜRLER, 2018), se
manifesta a partir de uma atitude específica em relação à problematiza-
ção do poder e às estratégias de mudança social, expondo os modos
de produção do cistema sexo-gênero dominantes (PRECIADO, 2014,
2018) e intervindo nos modos de produção subjetiva e economia sim-
bólica, oferecendo outras diferentes formas de ser, alternativas a eles.

Não se trata aqui de uma cronologia ou uma história queer dos


musicais nacionais, mas sim, abordar cenas específicas e exemplos par-
ticulares, dotados, em alguns casos, de forte componente queerness.
Neste ensaio, discutimos como a versão brasileira do espetáculo “A Cor

26 Bôer (2008) aponta como a indústria cinematográfica de Hollywood tende a representa-


ções gays e lésbicas, quase sempre como, depravados, monstros/vampiros, assassinos
brutais ou aqueles que fazem as pessoas rirem. Colling (2007), em estudo pioneiro, tam-
bém fala sobre as representações gays em telenovelas, quase sempre relacionadas com
a criminalidade – vilões ou assassinos – e efeminados caricatos.

sumário 161
Púrpura – O Musical”27 se constitui, simultaneamente, enquanto espaço
reivindicador, seja do desmoronamento da estrutura social heteronorma-
tiva (ROLNIK, 2008), seja do direito performativo de aparecimento de cor-
pos dissidentes e da cultura queer, numa perspectiva lésbica e decolonial.

Nesse sentido, achamos fundamental expor algumas práticas e


processos no tocante à obra desde a sua origem literária, a partir da
seguinte pergunta: de que modo a obra de Walker encenada no teatro
musical altera o straight play e provoca novas formas de inclusão e visi-
bilidade? Para tanto, nos posicionamos como sujeitos, pesquisadores
e agenciadores, assumindo, assim um o papel de catador (scavening),
baseado na ideia de scavenger methodology sugerida por J. Halberstam
(1998), sobretudo na escolha de diversas fontes para análise do corpus.

Pensando com Butler (2019), é na perspectiva em assembleia,


na busca por uma conjunção social mais justa e igualitária, de luta con-
tra a precariedade e a invisibilidade que corpos dissidentes se juntam
para exercitar “um direito plural e performativo de aparecer (...) em sua
função expressiva e significativa” (BUTLER, 2019, p. 17), que não sejam
mais perturbados por condições precárias normatizadas. É, pois, em
assembleia que se encontra a montagem de “A Cor Púrpura - O Musi-
cal”28, tanto no que concerne as posições de destaque e protagonismo
no teatro musical, quanto nas dramaturgias e artes negras no Brasil.

27 “A cor púrpura” é romance de Alice Walker, publicado em 1982 que retrata a vida das
mulheres afro-americanas na Geórgia rural do início do século XX. Ganhou um Prêmio
Pulitzer, em 1983.
28 “A Cor Púrpura - O Musical”, com roteiro de Marsha Norman, estreou na Alliance Theatre
Company em Atlanta, Geórgia e na Broadway a 1 de novembro de 2005 e permaneceu
em cartaz até o ano de 2008 e realizou 910 apresentações, e foi indicado para onze Prê-
mios Tony, incluindo Melhor Musical, Melhor Livro, e Melhor Partitura Original, produzido
por Oprah Winfrey, Quincy Jones, Scott Sanders e Harvey Weinstein. De 2015 a 2017, o
espetáculo ganhou uma nova montagem da Broadway, que recebeu diversas indicações
e teve uma quantidade maior de premiações: 2 prêmios Tony (de Melhor Rivaval de Mu-
sical e Melhor Atriz de Musical), 2 Prêmios Drama Desk (Melhor Atriz de Musical e Melhor
Diretor de Musical), 1 Prêmio Drama League, 2 homenagens pelo Teatre World Award,
Prêmio Emmy Diurno, pelo Excelente desempenho musical em um programa diurno e
mais um Prêmio Grammy na categoria de Melhor Álbum de Teatro Musical. O musical teve
outras temporadas e produções: Londres (2013), África do Sul (2018), Holanda (2018),
Leicester e Birmingham (2019), Canadá (2019) até chegar ao Brasil (2019), poucos meses
antes do início da paralização oficial, pelo avanço da Covid -19.

sumário 162
Segundo Judith Butler, nesse propósito, de oposição à precarieda-
de, se faz necessária uma série de conjunções e ações para agir e viver,
pois “nenhum de nós age sem as condições para agir, mesmo que algu-
mas vezes tenhamos que agir para instalar e preservar essas condições
(BUTLER, 2019, p. 22), ou “como sugere Dra. Brené Brow, a vulnerabilida-
de é pré-requisito para a conexão, e a conexão é o antídoto às estratégias
de desunião e conquista usadas para manter as mulheres separadas
uma das outras e silenciadas por séculos” (SAUER, 2019, p. 10).

“A Cor Púrpura”, da escritora afro-americana Alice Walker29, do-


cumenta os traumas e o triunfo gradual de Celie, uma adolescente
afro-americana criada em isolamento rural na Geórgia, à medida que
vem a resistir às normas paralisantes do “hetero-planeta” (DESPEN-
TES, PRECIADO, 2021, p. 10) que lhe são impostas. Após Celie dar
à luz ao segundo filho, Alphonso leva a criança, como fez com o seu
primeiro bebê, deixando-a a acreditar que ambos foram mortos.

Quando um viúvo, o Sr. Albert propõe casamento à Nettie, Al-


phonso pressiona-o a levar Celie em vez de Nettie, forçando-a a mais
uma relação abusiva, dessa vez um casamento abusivo no qual “o
malvado patriarcado” (ZIGA, 2021, p. 63) seguia inscrevendo em seu
corpo sua vergonhosa marca. Pouco depois Nettie foge de Alphonso
e vive brevemente com Celie, contudo, o interesse sexual continuado
de Albert em Nettie resulta na sua partida. Separadas, as irmãs Celie e
Nettie sustentam a sua lealdade e esperança uma na outra através do
tempo, distância e silêncio.

Celie narra a sua vida através de cartas – o único meio que Celie
tem para expressar os seus sentimentos – dolorosamente honestas e re-
veladoras, primeiramente a Deus, suscitadas quando o seu padrasto abu-
sivo, Alphonso, depois de a ter violado e ela engravidado pela segunda

29 Alice Walker, Adrienne Rich, Audre Lorde “não aceitaram coletivamente o National Book
Award de poesia em 1974 em nome de todas as escritoras que não foram ouvidas e que
só teriam seus esforços cooptados após a morte, subordinadas ao culto capitalista da per-
sonalidade que sustenta violentamente as ideias dominantes que rodeiam a arte, a cultura
e a classe” (SAUER, 2019, p. 10), mas Alice Walker, que foi a primeira escritora negra a ser
laureada com o prêmio Pulitzer, pelo seu livro “A cor púrpura”, lançado em 1982.

sumário 163
vez aos 14 anos de idade, a avisa para não contar a ninguém, somente a
Deus; depois através de uma série de cartas à irmã, Nettie – e vice-versa –
que se estende por vinte anos, aliás, “o ato de escrever assinala a própria
sobrevivência de Celie” (SARIAN, 2002, p. 164).

Celie começa subsequentemente a construir relações com ou-


tras mulheres negras, especialmente as que se envolvem forçosamen-
te com a opressão do “lixo do hétero-capital” (DESPENTES, PRECIA-
DO, 2021, p.10). De notar é relação com a desafiante Sofia, que se
casa com o filho de Albert, Harpo, depois de a engravidar e Shug Avery,
a ‘Queen Honey Bee’, cantora de Blues glamorosa e independente
com quem acaba por se tornar amante. Juntas, em matilha30, as mu-
lheres de “A cor púrpura”, ao narrarem suas vidas, através da sua dor
e luta, companheirismo e crescimento, resiliência e bravura, rompem o
silêncio em torno do “monopólio da violência legítima” (ZIGA, 2021, p.
74), do abuso doméstico e sexual e, não à toa, se tornaram algumas
das mais fortes personagens femininas da ficção americana, repre-
sentantes do womanismo, profundamente relacionadas à tomada de
consciência, à vontade suprema, à transmutação de padrões cristali-
zados que transcendem para uma libertação física, sexual, mental e
emocional. Segundo VERONESI (2015), o womanismo
é comumente usado na especificação do feminismo para mu-
lheres negras. Entretanto, mais do que um movimento social,
ele é, segundo Maparyan (2012), um movimento espiritual,
comprometido com a sobrevivência e o bem-estar de todas as
pessoas, independente de raça, sexo, religião, entre outros as-
pectos. Não obstante a complexa definição, que dificulta sua
compreensão, o “womanismo” é visto por algumas escritoras
negras como meio de libertação das diversas formas de violên-
cia (VERONESI, 2015, p. 12).

A dramaturgia, que cria e celebra uma consciência negra através


de polinarrativas de mulheres negras, é carregada de movimentos arte-
sanais, como má gramática, linguagem coloquial e frases curtas, uma
escolha sábia de Walker, posto que desafia outra categoria normativa –

30 Nos referimos aqui à ideia de Despentes e Preciado (2021): “Uma cachorra sozinha é uma
cachorra morta, uma matilha é um comando político” (p. 11).

sumário 164
os nossos sentimentos de superioridade cultural – ao apontar que não te-
mos nada mais do que gramática e estilo para a defesa contra a invenção
da natureza, como pensou Segato (2018), também abre reflexões para
duas questões dominantes e contemporâneas que revelam e contestam
construções naturalizadas e concordantes de gênero e sexualidade.

Primeiramente, o racismo estrutural, no período pós-abolição da


escravidão nos Estados Unidos da América, tratando do universo das
mulheres pretas e pobres; e em segundo lugar, o sexismo – o precon-
ceito e as agressões contra as mulheres que provocam abuso sexual,
feminicídio, violência domésticas, subalternidade, um claro recado de
que “as mulheres são propriedade emocional e sexual dos homens,
e que a autonomia e a igualdade das mulheres são uma ameaça à
família, à religião e ao Estado” (RICH, 2019, p. 28).

Neste sentido, tanto a autora como as suas personagens mulhe-


res trabalham para transformar as instituições tradicionalmente patriar-
cais e opressivas da literatura, religião e família. A nível formal, Walker
cria “um registro linguístico que não é o padrão daquela sociedade
branca, dominante” (SILVA, 2008, p. 7) subverte códigos e convenções
literárias brancas e masculinas; a nível de trama e tema, reescreve os
códigos e convenções que dominam as relações sociais e sexuais.
Também é enfatizada a importância da cultura popular (blues) e a cul-
tura material (acolchoamento e costura) – formas que representam a
ligação feminina alcançada através do trabalho coletivo.

O filme “A cor púrpura” (1985) é baseado no romance de Walker,


com roteiro da própria autora e direção de Steven Spielberg. Segundo
Bôer (2008), Steven Spielberg não havia sido apresentado à autora
Alice Walker que, “at first, refused the idea of having another person
telling her story. But after watching E.T she gave in by saying in an inter-
view that “If he can do Martians, he can do us” (interview featured, as a
bonus, in the DVD)31” (BÔER, 2008, p. 16).

31 “no início, recusou a ideia de ter outra pessoa a contar a sua história. Mas depois de ver
E.T. ela cedeu ao dizer numa entrevista que ‘Se ele pode fazer marcianos, ele pode fazer-
-nos’ (entrevista apresentada, como bónus, no DVD)”.

sumário 165
O filme preservou a história e título originais, apresentou um
elenco de futuras grandes estrelas, como a protagonista e iniciante
Whoopi Goldberg, que mesmo sendo uma comediante conhecida no
teatro, teve neste filme a sua primeira oportunidade no universo cine-
matográfico, na pele de Celie Johnson, e a atriz e apresentadora Oprah
Winfrey, no papel coadjuvante de Sofia.

Acreditamos que o rompimento da “bolha” hegemônica e, con-


sequentemente, o sucesso do filme se deu, aparentemente, por dois
motivos: a parceria de Quince Jones e Steven Spielberg (um diretor
branco e classe média), que estava no auge de sua carreira, tendo
realizado anteriormente clássicos de sucesso como “E.T. o Extraterres-
tre” (1982), “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” (1977), “Tubarão”
(1975), além do ineditismo de ver nas telas do cinema uma assembleia
de atores negros. Para o estudioso afro-americano Donald Bogle:
For Black viewers there is a schizophrenic reaction. You’re torn
in two. On the one hand you see the character of Mister and
you’re disturbed by the stereotype. Yet, on the other hand, and
this is the basis of the appeal of that film for so many people,
is that the women you see in the movie, you have never seen
Black women like this put on the screen before. I’m not talking
about what happens to them in the film, I’m talking about the
visual statement itself. When you see Whoopi Goldberg in clo-
se-up, a loving close-up, you look at this woman, you know that
in American films in the past, in the 1930s, 1940s, she would
have played a maid. She would have been a comic maid. Sud-
denly, the camera is focusing on her and we say I’ve seen this
woman some place, I know her32 (apud BÔER, 2008, p. 16).

32 Para os espectadores negros, há uma reação diferente. Você é dividido em dois (ha uma
divisão). Por um lado, você vê a personagem Mister e fica incomodado com o estereótipo.
No entanto, por outro lado, e esta é a base do apelo desse filme para tantas pessoas, é
que as mulheres que você vê no filme, você nunca viu mulheres negras assim colocadas
na tela antes. Não estou falando sobre o que acontece com elas no filme, estou falando
sobre os planos futuros (desejos) em si. Quando você vê Whoopi Goldberg em close-up,
um close-up amoroso, você olha para essa mulher, você sabe que nos filmes americanos
do passado, nos anos 1930, 1940, ela interpretaria uma empregada doméstica. Ela teria
sido uma empregada clownesca (comica). De repente, a câmera está focando nela e nós
dizemos Eu já vi essa mulher em algum lugar, eu a conheço.

sumário 166
Apesar do grande sucesso e suas 11 indicações ao Oscar, o filme
é relembrado como um dos maiores perdedores da história do cinema,
pois apesar das indicações, não foi contemplado em nenhuma categoria.

Ao contrário da Academy of Motion Picture Arts and Sciences, o


crítico de cinema da revista Chicago Sun-Times, Roger Ebert, afirmou
que “A cor púrpura” seria o melhor filme do ano, por suas atuações e
principalmente por
Whoopi Golberg in one of the most amazing debut performances
in movie history. Here is this year’s winner of the Academy Award
for best actress. Goldberg has a fearsomely difficult job to do, en-
listing our sympathy for a woman who is rarely allowed to speak,
to dream, to interact with the lives around her. Spielberg breaks
down the wall of silence around her, however, by giving her nar-
rative monologues in which she talks about her life and reads the
letters she composes. The wonderful performances in this movie
are contained in a screenplay that may take some of the shocking
edges off Walker’s novel, but keeps all the depth and dimension.
The world of Celie and the others is created so forcibly in this
movie that their corner of the South becomes one of those movie
places - like Oz, like Tara, like Casablanca - that lay claim to their
own geography in our imaginations. The affirmation at the end of
the film is so joyous that this is one of the few movies in a long
time that inspires tears of happiness, and earns them. “The Color
Purple” is the year’s best film33. (EBERT, 1985, sp).

A adaptação cinematográfica sofreu severas críticas dos mem-


bros da Nation Association for the Advancement of colored People (NAA-
CP), e de ativistas negros, inclusive, solicitando estes que o público não

33 Whoopi Goldberg em uma das mais extraordinárias performances de estreia da história


do cinema. Aqui está a vencedora deste ano do Oscar de melhor atriz. Goldberg tem um
trabalho extremamente difícil a fazer, requisitando nossa simpatia por uma mulher que
raramente tem permissão para falar, sonhar, interagir com as vidas ao seu redor. Todavia,
Spielberg quebra o “muro de silêncio” ao redor dela, dando-lhe monólogos narrativos nos
quais ela fala sobre sua vida e lê as cartas que escreve. As performances maravilhosas
deste filme estão presentes num roteiro que pode tirar algumas das arestas chocantes
do romance de Walker, mas mantém toda a profundidade e dimensão. O mundo de Celie
e dos outros é criado com tamanha força neste filme que a remota área se torna um
daqueles lugares de filmes - como Oz, como Tara, como Casablanca - que reivindicam
sua própria geografia em nossa imaginação. A afirmação no final do filme é tão alegre
que este é um dos poucos filmes em muito tempo que inspira lágrimas de felicidade e as
merece. “A Cor Púrpura” é o melhor filme do ano (Tradução nossa).

sumário 167
comparecesse às salas de cinema, principalmente os espectadores
negros, alegando que o filme fortalecia os estereótipos dos homens
negros, o que confirma a afirmação de Jessica Valenti, de que “parte
do problema é que a cultura americana ainda enxerga o sexismo dos
homens em grande parte como algo inato, e não como algo desvian-
te” (apud SAUER, 2019, p. 12). Afinal, incesto, maus tratos a crianças,
violação e violência doméstica – os fundamentos do romance epistolar
de Walker – estavam todos lá, no entanto, a história de sobrevivência
de uma mulher contra as estatísticas de morte – já que “mulheres com
idades de 15 a 44 anos tem mais probabilidade de serem mortas ou
mutiladas por homens do que por casos de câncer, malária, guerra e
acidentes de trânsito somados” (SAUER, 2019, p. 12) – tem um sentido
maior de realização e torna o seu tema sombrio, curiosamente, palatável
para um mercado mainstream. Aliás, a noção popular de que o teatro
musical equivale a “light and fluffy”, ameaçou a versão musical de “A cor
púrpura”, a legitimidade da sua adaptação, que já tinha assombrado sua
versão cinematográfica, recaindo sobre os produtores, receios sobre o
quão apropriado era musicalizar a história de Celie.

O filme acabou se tornando um clássico de grande relevância


por abrir espaço para tratar questões ligadas aos efeitos do período
pós-escravocrata, ao preconceito racial, ao sexismo e o cotidiano
das mulheres negras subalternizadas, mas, embora tenha feito um
amplo recorte da precariedade social e econômica das personagens,
abordou muito sutilmente a lesbianidade, diferentemente do livro, que
aprofundava mais essa relação.

A versão musical de “A cor púrpura”, em 2006, se tornou um


sucesso da Broadway. Embora o espetáculo tenha seguido a ten-
dência recente de adaptar filmes não musicais para o palco musical,
continuou a ser uma proposta financeira e artística arriscada por mui-
tas razões, já que os musicais – qualquer musical, especialmente os
da Broadway – sempre foram incrivelmente dispendiosos de produzir,
muito mais do que as peças de teatro.

sumário 168
“A Cor Púrpura” também suscitou grandes preocupações aos
fãs do teatro musical, numa altura em que a tendência de reciclar
filmes conhecidos em produções teatrais musicais levou os críticos a
questionar uma vez mais o próprio futuro do teatro musical: a Broad-
way não tinha nada de novo e original para oferecer, como tinha nas
décadas anteriores?

Juntamente com este medo em relação à falta de ideias ori-


ginais, a natureza da equipe criativa por detrás de “A Cor Púrpura”
também suscitava dúvidas, em particular, porque dos três composi-
tores que trabalhavam em colaboração – Brenda Russell, Allee Willis,
e Stephen Bray – nenhum tinha experiência na escrita para um es-
petáculo da Broadway. Além disso, o responsável por trazer “A Cor
Púrpura” ao palco, Scott Sanders, era branco e também não tinha
qualquer experiência com teatro musical34. Essa falta combinada de
experiência, levou seus criadores a seguir uma prática de “esquentar”
a peça num espaço de produção mais afastado, no caso, o Alliance
Theater, distante da visão direta dos críticos de teatro de Nova Iorque.
Ao estrearem em Atlanta, os compositores novos na Broadway teriam
a oportunidade de testar a sua música e descobrir formas de integrar
as suas canções na narrativa do espetáculo.

A COR PÚRPURA NO BRASIL

O texto de Marsh Norman recebeu uma versão brasileira do jor-


nalista e escritor Arthur Xexéo (1951-2021), direção de Tadeu Aguiar
e produção da “Estamos Aqui Produções Artísticas”35. O Musical foi

34 Importante lembrar que o filme também recebeu críticas devido à sua controvérsia no
processo de adaptação do romance. Primeiro, muitas pessoas afirmaram que Steven
Spielberg, sendo judeu, branco, de classe média e tendo dirigido principalmente filmes
de fantasia, não seria capaz de retratar em “A cor púrpura”, os sofrimentos de uma comu-
nidade negra que vivia num ambiente racista e sexista.
35 Anteriormente a essa montagem, em 2016, o mesmo diretor, Tadeu Aguiar, e o produtor, Eduar-
do Bakr, já haviam encenado uma versão brasileira do filme “Love Story” para teatro musical,
com elenco formado somente por atores negros, e protagonizado por mulheres negras.

sumário 169
baseado no livro escrito por Alice Walker e no filme da Warner Bros e
da Amblin Entertainment.

A primeira montagem brasileira de “A cor púrpura – o Musical”,


estreou oficialmente no Brasil no dia 06 de setembro de 2019, na
Grande Sala da Cidade das Artes, no Rio de Janeiro. A produção
brasileira contou com o patrocínio da Bradesco Seguros e Ministério
da Cidadania, via Lei de Incentivo à Cultura.

Em entrevista ao jornal O Globo, sobre a montagem de brasi-


leira, a atriz Flávia Santana, que interpreta a personagem Shug Avery,
percebe o musical como uma “carta de alforria para nos libertar de
vários paradigmas do teatro musical brasileiro” (LICHOTE, 2019, p. 2).
Para o diretor, Tadeu Aguiar, a peça é um ato político porque, além de
tratar da violência contra as mulheres, outra questão se coloca, a da
representatividade em cena, afinal são 17 atores negros no palco que
criam números musicais exuberantes, em um sentido de comunidade
revigorante. Nesse caminho, Letícia Soares, que interpreta a protago-
nista Celie, confirma que “a peça toca o coração das pessoas pela
história, ao mesmo tempo em que aborda questões latentes, como
feminicídio e masculinidade tóxica” (LICHOTE, 2019, p. 2).

Entendemos que a ênfase dada à obra musical, por razões ób-


vias, envolve questões raciais especialmente, a violência contra a mu-
lher negra, onde juntas exercitam o direito democrático e a “exigência
corpórea por um conjunto mais suportável de condições econômicas,
sociais e políticas, não mais afetadas pelas formas induzidas de con-
dição precária” (BUTLER, 2019, p.17). Vislumbra-se o florescimento
de um movimento potente, colaborativo e plural, que permite a aber-
tura para novas formas para se viver o gênero e a sexualidade, espe-
cialmente pelo Blues que, “cantado pelas mulheres sugere uma in-
surgência feminista emergente, na medida em que, descaradamente,
nomeiam o problema da violência masculina e, portanto, a tiram das
sombras da vida doméstica, onde a sociedade a manteve escondida e
para além da análise pública ou política” (DAVIS, 1998, p. 29).

sumário 170
Pensando a partir de Ahmed (2014), para quem as relações
sociais são organizadas espacialmente, a queerness provocada pela
relação amorosa entre Celie e Shug Avery, ao não seguir os caminhos
da heterossexualidade, perturba os estreitos limites da normalidade
(ZIGA, 2021) e reordena as relações sociais, provocando outras políti-
cas de subjetivação, “representações torcidas” (idem, p. 46) ao alcan-
ce daqueles que, à primeira vista, podem parecer estranhas.

Se, pensando com Butler, o domínio da heterossexualidade é


criado através de ações repetitivas que condicionam os nossos corpos
em uma certa direção, que é a partir do “repetitive performativity”36 que
os mundos se materializam, e que “boundary, fixity and surface”37 são
produzidos (BUTLER,1993, p. 9) e, portanto, formada a si própria por
exclusão – através da renúncia às possibilidades da homossexualida-
de –, a heterossexualidade é capaz de produzir, ao mesmo tempo, um
campo de “objetos heterossexuais” e, por hegemonia, domínio daque-
les a quem seria impossível amar (AHMED, 2006).

É nesse sentido que quando entra em contato com o ‘objeto’


que não deveria estar lá, o outro do corpo patriarcal (GIUNTA, 2018),
o corpo estranho, a “lésbica contingente” (AHMED, 2006, p. 107), no-
vas linhas de direção são acionadas e uma política de desorientação
da “Heterolândia Park” (ZIGA, 2021, p. 68) entra em funcionamento.
Em outras palavras, a agenda de Ahmed em “The Cultural Politics of
Emotion” (2014), é colocar a questão da ‘orientação’ da ‘orientação se-
xual’ como fenomenológica, para “offer a new way of thinking about the
spatiality of sexuality, gender, and race”38 (p. 4), já que somos afetados,
tocados e influenciados, tanto pelo o que está próximo, pelo “com o
que” entramos em contato, como pelo “com o que” está longe, afinal,

36 Para Butler, performatividade é, portanto, sobre o “poder do discurso para produzir efeitos
através da reiteração” (BUTLER 1993, p. 20).
37 “limite, rigidez e superfície” – tradução nossa.
38 “oferecer uma nova forma de pensar sobre a espacialidade da sexualidade, gênero e
raça” (Tradução nossa).

sumário 171
“the emotions are directed to what we come into contact with: they
move us ‘toward’ and ‘away’ from such objects”39 (AHMED, 2006, p.98).

Desse modo, a fenomenologia queer entende que a orientação


sexual não é, então, simplesmente sobre a direção que se toma em
relação a um objeto de desejo ou à escolha de alguns objetos de amor
e a recusa de outros e, sendo assim, poderia começar por redirecionar
a nossa atenção para diferentes objetos, aqueles que estão “menos
próximos” ou mesmo aqueles desviantes da paisagem heteronormati-
va opressiva. E, ao redirecionar, evolve não apenas “the intellectual ex-
perience of disorder, but the vital experience of giddiness and nausea,
which is the awareness of our contingency, and the horror with which it
fills us”40 (MERLEAU-PONTY, 2002, p.296, apud ARMED, 2006, p. 111),
como pensou Maurice Merleau-Ponty.

Vemos que a encenação de Tadeu Aguiar, no Brasil, ao valorizar


a reorientação da heterorientação sexual de Celie, sublinhando sua rela-
ção homoerótica com Shug Avery encena novos “dispositivos de orien-
tação”, paradoxalmente, fonte de vitalidade e de vertigem, especialmen-
te, se pensarmos através de como a raça, o gênero e a sexualidade se
cruzam e se encontram em pontos diferentes da trama de Walker.

Esse “continuum lésbico”, como formulado dor Rich (2019), mo-


delo feminista radical e fluido de orientação sexual, que contrasta com
a abordagem mais essencialista da orientação sexual representada
pelas políticas de identidade, alega que todas as mulheres têm um po-
tencial lésbico e que o vínculo das mulheres – definido como lesbianis-
mo por “associações clínicas em sua definição patriarcal” (RICH, 2019,
p. 67) – é a única maneira bem-sucedida de derrubar o patriarcado:
A amizade e o companheirismo das mulheres têm sido separa-
dos do erótico, limitando desta forma o erotismo em si. Mas à
medida que nos aprofundamos e ampliamos o espectro do que

39 “as emoções são dirigidas para aquilo com que entramos em contato: elas nos movem
‘na direção’ e ‘para longe’ de tais objetos” (Tradução nossa).
40 “a experiência intelectual da desordem, mas a experiência vital da vertigem e náusea, que é a
consciência da nossa contingência, e o horror com que ela nos preenche” (Tradução nossa).

sumário 172
definimos como existência lésbica, à medida que delineamos
um continuum lésbico, começamos a descobrir o erótico em
termos de mulheres: como aquilo que não é confinado a uma
única parte do corpo ou exclusivamente a corpo; como uma
energia não apenas difusa mas, como a descreveu Audre Lor-
de, onipresente ao “compartilharmos a alegria, seja física, emo-
cional, psíquica”, e ao compartilharmos o trabalho; como a ale-
gria que nos dá força, que “nos torna menos dispostas a aceitar
a impotência, ou aqueles outros estados proporcionados de ser
que não me são inerentes, como a resignação, o desespero, o
retraimento, a depressão, a autonegação (RICH, 2019, p. 68).

Sara Ahmed argumenta que a experiência partilhada do desejo


por outras mulheres abre novas formas de representação, aquilo a que
ela chama “paisagem lésbica”, um terreno que é moldado pelos cami-
nhos que seguimos ao desviarmo-nos da linha ‘reta’ da heterossexua-
lidade (AHMED, 2014). Tal concepção rejeita definições essencialistas
de gênero e orientação sexual, que reivindicam uma ‘verdade’ estreita
sobre quem seja mulher ou lésbica, respectivamente. Em vez disso, a
ênfase aqui reside nas construções e contingências de gênero e se-
xualidade, e no reconhecimento de que um sentido de identidade in-
dividual e coletiva é sempre formado a partir de formas de intersecção
de identificações, tais como gênero, sexualidade, raça e classe, mas
também na atração efetiva de formas particulares de produção cultural,
incluindo música, literatura, filmes ou meios de comunicação social41.

Numa primeira ‘paisagem lésbica’, nos deparamos com a cena


em que Celie, lava o corpo de Shug (uma mulher libertária) e com isso
tem despertado o desejo sexual por outra mulher.
Tenho um formigamento
Minha mente a dominar
Lavo seu corpo
E me sinto rezando
Não quero olhar
Mas acabo olhando

41 Para saber mais referências, consultar: BAUER, Heike; MAHN, Churnjeet. “Introduction:
Transnational Lesbian Cultures”. Journal of Lesbian Studies, 18, 2014, p. 203–208.

sumário 173
Agora Eu sei
Porque ela provoca furor
Nem na Nettie, Nem na Sofia
Nem em ninguém eu vejo essa magia (XEXÉO, 2019, p. 51-52).

Numa segunda paisagem lésbica, a cena permite concluir que


foi o estabelecido de aliança entre mulheres, encabeçadas pela tra-
jetória das coadjuvantes Shug e Sofia, que alinhadas e solidárias em
suas precariedades, possibilitou em Celie a realização de uma au-
torreflexão acerca da necessidade da desconstrução dos modelos
tradicionais e da criação de novas estratégias de emancipação, de
um devir mulher, que resultaram no seu entendimento enquanto uma
mulher forte, bonita e lésbica.42
Eu vou erguer a cabeça e mostra
Que o mundo é meu/ meu e vou
Respirar fundo e seguir
E eu vou querer toda parte
Do que eu merecer
E eu vou gritar. Gritar
Hoje Eu sei que existe dentro de mim
Todo eu que preciso pr’uma vida normal
Com todo amor que eu tenho em mim
Sou bem capaz de uma nuvem tocar
E vou / me mostrar muito agradecida
Pelo bom e ruim dessa vida
E o principal sou grata por amar quem eu sou
É que eu sou Bonita e ‘stou aqui. (XEXÉO, 2019, p. 115-116).

Podemos identificar uma terceira paisagem lésbica, numa cena


em que traz à tona a força da diversidade sexual, onde Celie afirma
que não ter prazer com o marido, ao contrário da amante que afirma
sentir um enorme desejo pelo homem, performatizando em Celie uma
identidade lésbica; mais a frente, com o desenrolar da história, Shug
releva-se bissexual.

42 A interpretação deste número musical pode ser assistida em https://www.youtube.com/


watch?v=jPRQ25FcbjI

sumário 174
Shug – Me diz a verdade, Dona Celie. Você se importa se Albert
dormir comigo?
Celie – Você aind’ ama ele?
Shug – Eu sinto por ele o que pode se chamar de paixão. Eu sei
que ele é fraco, mas ele tem o cheiro certo. Ele me faz dar risada.
Celie – E você gosta de dormi com ele?
Shug – Eu adoro. Você não?
Celie – Não gosto nem um pôco. Na maioria das vezes, eu finjo
que nem tô ali. Ele nunca percebe a diferença mesmo. Só faz o
que tem que fazê, sai de cima e dorme.
Shug – Faz o que tem que fazê? Falando assim, parece até que
ele te usa como um banheiro.
Celie – É exatamente assim que eu me sinto
Shug – Você não aproveita? Nunca?
Celie – Não. Nunca. Ele me acha feia. Tudo bem.
Shug – Que é isso? Mas você não é feia. Você é uma dádiva de
Deus, se é que alguma vez eu vi isso. Se eu fosse um pingo do
que você é, eu não teria que sair por aí balançando os meus
peitos e sacudindo a minha bunda na frente de todo mundo.
(um tempo)
Shug – você não tá acreditando em mim... (Shug leva Celie pra
frente do espelho) Dona Celie, Dona Celie... olha só. Olha para
você (XEXÉO, 2019, p. 57-58).

No final do primeiro ato, nos deparamos com a quarta paisagem


lésbica na cena em que o beijo e uma declaração de amor, em forma
de dueto musical, carregam a descoberta e a certeza do que o amor
e desejo pulsante entre as duas mulheres é capaz de trazer e fazer.
Celie - Já não sei mais onde estou
O meu chão / tremeu ao / te beijar
Acho que eu vou voar
Shug - Quem sou eu? Também não sei mais
O amor, eu pensei conhecer
Até olhar pra você
Celie - Será que é fé?
Shug - Será que é fé
Celie - Será que é afeição?
Shug - Afeição
Celie & Shug - O que me traaaaaz esse choro
Mesmo se eeeeeeu tô feliz
A história vai ser só eu e você

sumário 175
Seremos nós duas pra sempre
Celie - O que o amor
Shug - O que o amor
Celie & Shug - Faz
Sim, pra mim, você é a paz
Que aparece em seguida ao tufão
E rouba meu coração
Celie - E me traz luz
Shug - E me traz luz
Celie - E me faz rir
Shug - E me faz rir
Celie & Shug - O que me traaaaaz esse choro
Mesmo se eeeeeeu tô feliz
A história vai ser só eu e você
Seremos nós duas pra sempre
Shug - O que o amor
Celie - O que o amor
Shug - O que o amor
Celie - O que o amor
Celie & Shug - Faz (...)
Shug & Celie -Para mim para mim
Você é o amor para mim
O que o amor o que o amor
O que o amor faz (XEXÉO, 2019, p. 71-73).

Depois disso, constatamos que, se Celie não sabia como lutar,


só sabia o que fazer para se manter viva, como confessa na peça, a
chegada de Shug Avery, parece ser o seu ponto de virada, em que
admiração e amor se tornam ferramentas de libertação. E mesmo que
Steven Spielberg tenha produzido um filme dirigido a uma audiência
conservadora e, principalmente heterossexual, que não estava prepa-
rada para experimentar a relação lésbica vivida por Shug e Celie, a
versão do musical brasileiro de Tadeu Aguiar percorre outro caminho,
mesmo que no Brasil, hoje, estejamos vivendo tempos sombrios.

Espetáculos musicais como “A Cor Púrpura – o Musical” em


nosso entendimento, tratam não só das questões relacionadas à
colonização e aos resquícios da escravidão nos Estados Unidos da
América, como criam um senso de comunidade, já que mulheres e
homens negros e queer sempre foram, potencialmente, as maiores

sumário 176
vítimas de discriminação racial e de gênero-sexual. O das mulheres,
ainda, duplamente exploradas no seio da família – vítimas da comu-
nidade negra e da comunidade branca.

O espaço marginal que as mulheres negras, Celie, Nettie, Sofia


e Shug Avery, de “A cor púrpura” ocupam na sociedade, exploradas,
oprimidas, isoladas, desamparadas e solitárias, as fizeram tomar cons-
ciência de uma necessidade de irmandade em que a complexidade
da imaginação do Blues, cantado em uníssono, funciona como uma
narrativa para resistência e libertação à opressão interseccional, que
somam às categorias de gênero e sexualidades outros entrelaçamen-
tos como os de raça e classe, como analisa Angela Davis ao enfatizar
o blues das mulheres como um importante mediador cultural
para a consciência de gênero que transformou as memórias
coletivas da escravidão ao trabalhar uma nova construção
social do que é o amor e a sexualidade. O blues forneceu
um espaço onde as mulheres podiam se expressar de novas
maneiras, um espaço no qual às vezes afirmavam a ideologia
dominante da classe média, mas podiam também se desviar
completamente dela (DAVIS, 1998, p. 47).

Os discursos políticos, sociais, raciais e de gênero das perso-


nagens femininas de “A cor púrpura” estão interligados à narrativa de
Celie. A ligação entre essas mulheres, o “continuum lésbico”, que se
baseia em laços femininos como forma de ultrapassar o domínio mas-
culino e de contestar a heterossexualidade obrigatória, atua como re-
sistência à opressão de que são vítimas, e suas experiências de mulher
evoluem para uma narrativa feminista, afinal,
a resistência deve existir para que todas as vidas sejam igualmen-
te vivíveis. Nosso corpo, reunido em forma de luta, grita que nós
não somos descartáveis, grita por uma vida vivível, grita contra a
condição de ser uma vida matável. Nosso corpo é político. Nosso
corpo, em reunião, é uma forma de luta (SOLANO, 2015, sp).

Apesar de a história ter sido concebida por Alice Walker no final


do século passado, as temáticas envolvidas, como domesticidade, ca-
samento e maternidade, são questões e desafios completamente atuais

sumário 177
e, embora a desigualdade esteja a se arrefecer, a condição da mulher
ainda é altamente deficiente, afinal, “em quase nenhum país, seu estatu-
to legal é idêntico ao do homem e muitas vezes este último a prejudica
consideravelmente”, como também pensou Beauvoir (1970, p. 14).

Nossa realidade, ainda, nos coloca frente a frente com as adver-


sidades decorrentes da ausência de igualdade entre gêneros e classes
sociais, revelando entraves causados pela misoginia e pela heterosse-
xualidade compulsória e tóxica, “defined as the accumulative effect of
the repetition of the narrative of heterosexuality as an ideal coupling”43
(AHMED, 2014, p. 145).

Se a heterossexualidade compulsória molda os corpos através


da suposição de que um corpo deve orientar-se para alguns objetos
e não para outros, objetos que são fixados como ideais através da
fantasia da diferença (idem), “A cor púrpura”, através da reorientação
das suas personagens femininas em algumas direções e não noutras,
da repetição de alguns gestos e não doutros, cria corpos contorcidos,
desobedientes que, ao ‘falharem’ em reproduzir normas como formas
de vida, cria novos fluxos políticos e éticos. Trata-se, pensando nova-
mente com Ahmed, não da conversão da vergonha em orgulho, mas
sobre o gozo da negatividade da vergonha, um gozo daquilo que foi
designado como vergonhoso pela cultura normativa, gozo de resistên-
cia às condições precárias, gozo contra o preconceito racial e contra a
não aceitação da diversidade, sob todas as óticas.

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Durham, NC: Duke University Press, 2006.
AHMED, Sarah. The Cultural Politics of Emotion. NED-New edition, 2.
Edinburgh University Press, 2014.

43 “definida como o efeito acumulativo da repetição da narrativa da heterossexualidade


como uma configuração ideal” –Tradução nossa.

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sumário 180
8
Capítulo 8

F[r]icções do humano:
dissidências em cena

Fernando Pocahy

Fernando Pocahy

F[r]icções
do humano:
dissidências em cena

DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.8
FLUXOS EM TELA

Modo de narrar-sentir a vida e as coisas que dela participam.


Plano do instante em movimento; conjunto de imagens-sons em algu-
ma sequência a compor sentidos, f(r)iccionando o (im)possível em nós.
Acontecimentalização por afectos e perceptos: os filmes apresentam
direções/rotas, sendas em enunciados-imagéticos… Território onde al-
guém ou alguma coisa se move… ou onde (se) está a pensar sobre
alguma coisa. Um filme pode incidir sobre meus medos, angústias, an-
seios, pode abrir ou encerrar os códigos do prazer. Mas ele não tem
como prever quais são essas reações. Muito embora, podemos dizer,
que de tão repetidas, de tão presentes na cultura, algumas imagens
podem efetivamente produzir algo esperado (uma fricção). Por isso, se
pode afirmar, certas obras incidem sobre um terreno pavimentado por
relações históricas e por um modo de pensar o desejo, a vida, próprios
à urgência e as convenções do seu tempo… aqui, talvez, já possamos
perceber buracos na pista, rachaduras no asfalto da norma ou da moral.

Pelas (des)razões expostas, e também outras (da ordem das


práticas de resistência), estou interessado em pensar como certos
filmes (e pensar com certos filmes) mobilizam produção direta ou
indireta sobre o envelhecimento, velhice ou longevidade e como se
articulam com outros marcadores, tais quais gênero, raça, condição
socioeconômica… lugar44. Acompanho filmes como modo de encontro
com efeitos im/possíveis, considerando-se o terreno – a cama do po-
der – onde ele se deita ou onde nos envolvemos: como afirma Guacira
Lopes Louro (2008): “Por toda parte (e também nos filmes) proliferam
possibilidades de sujeitos, de práticas, de arranjos e, como seria de se
esperar, proliferam questões” (LOURO, p. 94).

44 No quadro de ações do projeto Gênero, sexualidade e envelhecimento: Problematizações


interseccionais sobre a produção e o (auto)governo da diferença nas práticas da edu-
cação em saúde (financiamento CNPq, FAPERJ e Prociência -UERJ), venho articulando
estudos e espaços de problematização sobre produção discursiva a partir de artefatos e
textos da/na cultura - como filmes, séries, livros, entre outros.

sumário 182
Acredito que um filme pode causar alguma repercussão sobre
condutas individuais ou relações sociais, por vezes com certa inten-
cionalidade – mas isso é apenas uma vontade (algo que se coloca
em demanda) e que pode se realizar como pode nunca se concre-
tizar; pode até arranhar, arriscar alguma mudança ou impacto, mas
não temos como avaliar os sentidos que cada pessoa atribui ao filme.
Porém, algo dos filmes (sempre) escapa: “A obra fica sempre em
falta, ao fim, em relação ao absoluto da teoria: mas ela não ficará
nunca em falta com a sua própria capacidade de atuação e de inova-
ção” (AUMONT, 2008, p. 32). Filmes podem funcionar, nesse sentido,
como maquinações do desejo, agenciamento de enunciação… acio-
nam prazer pela fruição que lhe é constitutiva, mas também podem
agenciar certo aplacamento, pelo horror que igualmente lhe pode
ser próprio, pode denunciar a crueldade quanto pode dela participar,
pode agir na insurgência e em rotas de fuga… um filme, o que pode?

O que se coloca em questão aqui, e acompanho com entusias-


mo o pensamento de Paul Preciado (2020), é que toda e qualquer ma-
neira de representar ou de falar sobre algo é já um modo de produzi-lo,
está inserida em uma dinâmica de produção performativa de verdade:
A questão decisiva, portanto, não é se a imagem é uma repre-
sentação verdadeira ou falsa de determinada sexualidade (lés-
bica ou outra), mas quem tem acesso à sala de montagem cole-
tiva na qual se produzem as ficções da sexualidade. O que uma
imagem mostra não é a verdade (ou falsidade) do representado,
mas o conjunto de convenções (ou críticas) visuais e políticas
da sociedade que olha (PRECIADO, p. 104).

Ao acompanhar a conversa entre Fabiana Marcello e Ismail


Xavier (2008) percebemos que um filme é um texto (argumento) não
(única e exclusivamente) sobre a cultura, mas tecido e tessitura da e
na cultura. Ele tanto a produz, como é produzido pelas formas de dizer-
-representar algo ou alguma coisa. O texto-imagem dispõe com seus
sons, roteiro, fotografia, cor, atuação, objetos cênicos etc. (isto é, tudo

sumário 183
aquilo que compõe o próprio universo do filme (ou como diriam os ci-
neastas, a sua diegese), elementos que poderão acionar forças, fluxos,
rotas de produção de sentidos. Um filme opera, incide, disputa, mas
não determina, não fecha (mas pode aplacar): podemos “compreen-
der o cinema não só como arte, mas como linguagem mobilizadora e
desestabilizadora de nossas certezas” (MARCELLO, 2008, p16).

Diante (ou dentro) do campo das disputas de sentidos…


mais uma aproximação com Xavier (2008) sobre as possíveis rela-
ções entre cinema e educação: trata-se da recusa às simplificações
sobre as imagens (ou o uso simplificado delas) ou ao que chamarei
aqui resumidamente de pragmática moral, isto é, como afirma o
autor (op.cit), de “imitação e assimilação” – e entendo aqui, tanto
para a ideia de reificação de formas dominantes quanto a própria
ideia de irrupção e insurgência, a ideia do filme revolucionário por
si… talvez, uma rebelião de sentidos e talvez até participe mais am-
plamente de uma revolução (ou tentativa de uma).

Digamos, então, que o filme pode, entre outras dimensões,


mover-se ao campo do ato teórico, e creio que o destacamos aci-
ma, com a aposta de epistemologia, o que dá a ver-sentir-pensar o
mundo; noutra posição, o filme pode assumir a perspectiva do ma-
nifesto, o ato irruptivo de uma crítica específica, para se constituir
justamente no ponto de incompletude, no abismo, e nós podemos
nos perguntar, se isso também não seria um modo de ver-sentir-
-pensar o mundo, as coisas, ou apenas o filme? A coisa em si. Mas
a coisa em si existiria, ela não estaria no/para o mundo, desde o
mundo? Jacques Aumont (2008) afirma que
[...] o que vale – estética, cultural e politicamente – é a relação
com a imagem (e a narrativa) que não compõem de imediato a
certeza sobre este ‘do que se trata’ e lança o desafio para explo-
rar terrenos não-codificados da experiência. Tanto melhor se o
próprio filme se estrutura para impedir o conforto de reconheci-
mento do mesmo, de confirmação do que se supõe saber (p. 17).

sumário 184
Parece que esta experiência contrapõe-se ao regime de in-
teligibilidade da teoria (com seus esquemas próprios de sua ela-
boração – abstração, esquema, modelo, o que segundo o autor,
pressupõe um certo distanciamento do gesto de irresponsabilida-
de, próprio ao cinema/filme… e nos interroga: assiste-se a um filme
pela teoria? O filme possui uma organização discursiva? O filme
possui uma finalidade? Se considerarmos por Teoria, seguindo o
rastro de Aumont (2008), os núcleos da especulação, sistematicida-
de, força explicativa, temos aqui um bom desafio…

O cinema, nessa perspectiva, não é isso ou aquilo – e não é uma


língua, já adverte o autor ao recuperar disputas que o antecedem – mas
dá a pensar-sentir, tratando-se, talvez, de filme-corpo-(de)-linguagens:
se não é língua e não é linguagem, o autor separa imagem de lingua-
gem, de outra parte, incide sobre a linguagem, existe também como
elemento de disputa de linguagem, como fluxo, sem seus fluxos imagéti-
cos… como expansão, portanto, dada ao imponderável (ao imprevisto),
ao instável, a linguagem desliza nas imagens e com os sons, expande
os signos do real, mácula de vida-invenção sobre o que chamamos de
realidade… por isso, um corpo-(de)-linguagens, arrisco dizer.

A arte não pensa menos que a filosofia, mas pensa por afectos
e perceptos, nos dizem Gilles Deleuze e Felix Guattari (1997, p. 88);
pensa-sente outramente: o pensamento como afecção. Portanto, não
pensa menos, mas pensa na diferença – com sua audiovisualidade
narrativa ou pós-narrativa – situada como e desde um discurso (lem-
brem-se dos novos modos de pensar com imagens, disputando a
própria noção de arte, cinema etc.). “A obra fica sempre em falta, ao
fim, em relação ao absoluto da teoria: mas ela não ficará nunca em
falta com a sua própria capacidade de atuação e de inovação” (AU-
MONT, 2008, p. 32). Ela, a arte, pode ser, neste sentido, maquinação
do desejo... prazer, fruição e também horror.

sumário 185
(DES)CAMINHOS EM PESQUISA

Com este ensaio apresento uma experiência com filmes (em


todo caso, a minha experiência) – ali onde eles nos permitem (em
todo caso, me permitem) acompanhar algo das políticas de subjeti-
vação do/no presente. Neste escrito-(auto)experimentação, proponho
a figura da cartogenealogia como disposição ético-político-estético-
-epistemológica para a produção de entradas de problematização em
pesquisa(-in/ter/venção). Desde essa perspectiva, podemos compor
mapas-processuais-analíticos sobre regimes de verdade em torno de
gênero, raça, idade e sexualidade, em suas intersecções no cinema.

A disposição tática é a de fazer morada nos filmes. Com tal in-


surgência ético-epistemológica arrisco o (im)possível gesto de ficcionar
(fabricar) ontologias do nosso tempo e cultura – sentir-viver nos e com os
filmes maneiras de ampliar as formas de constituição de nós mesmos.

Os resultados dessa experimentação sugerem rotas pós-críti-


cas sobre modos de produção e fixação da diferença, especialmente
desde seus efeitos de norma, abjeção e resistência. As linhas de sin-
gularização da existência – ou modos de vida – encarnadas em ima-
gens-movimento (DELEUZE, 1983), em uma tela de cinema, levam-me
a pensar em filmes como cartografias: “mundos que se criam para
expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos
vigentes tornaram-se obsoletos” (ROLNIK, 2011, p. 23).

A aposta é de que as cartografias fílmicas permitem acompa-


nhar algo das políticas (de subjetivação) do presente, transbordando
subjetividades in-mundos outros. E, no instante mesmo onde se po-
dem mirar de frente certos jogos de verdade – ordem de correlação
de forças entre cultura, campos de saber, normatividade e formas de
subjetividade (FOUCAULT, 2001), alguns filmes nos colocam em modo
de pensar-sentir sobre como vimos nos constituindo enquanto sujeitos

sumário 186
de um determinado discurso (aquilo que define em nossa época, lugar
e cultura o que conta ou não para se aceder ao status de humano).

Por isso, preciso dizer: sinto-me profundamente ligado a algumas


produções cinematográficas e tenho mesmo o sentimento de que nelas
faço morada. Assisti-las (ou adentrá-las?) é, para mim, muitas vezes,
habitar seus planos; e, em certa medida, sou por eles habitado. Deleuze
(1983) afirmava: “O plano é a imagem-movimento. [...] Ao descrever a
imagem de uma manifestação, Pudovkin diz: é como se subíssemos
num telhado para vê-la, depois descemos à janela do primeiro andar
para ler as faixas, depois misturamo-nos à multidão [...]” (p. 31).

Desejo que os filmes me ocupem – ao modo das ocupações


políticas, occcupy, disputando estabelecidos – produzindo sentidos
novos, agenciamentos instituintes. Esse é o modo como assisto a um
filme e desde onde surge a aposta do cinema como experiência pela
qual e através da qual temos (alguma) chance de sairmos modifica-
dxs45; e por onde se pode de alguma forma produzir problematiza-
ções em pesquisa e docência.

Abrir problematizações – produzi-las, agenciá-las – significa, nos


termos de Foucault (1984/ 2001), realizar um movimento de análise que
possibilita compreender como um conjunto de práticas discursivas ou
não discursivas faz algo entrar no jogo do verdadeiro e do falso e, ao
mesmo tempo, constitui esse algo como objeto para o pensamento,
ao mesmo instante em que se constitui como forma de in(ter)venção.

45 Faço uso do sinal “x” como forma de colocar sob rasura noções consagradas e infle-
xões binárias de gênero. A noção de que certos conceitos, expressões, noções “não
servem mais – não são mais ´bons para pensar´ - em sua forma original, não recons-
truída” (HALL, 2000, p. 104). Portanto, mais do que fazer caber múltiplos gêneros ou
posições de sexualidade através de sinais como o próprio X ou @, *, #, _, ´e´, etc, tento
com essa rasura linguística evidenciar que a gramática marca a diferença. Não se trata
de uma forma inclusiva, embora guarde essa potencialidade, mas justamente desejo
expor que a linguagem não somente não é neutra, mas que corresponde a uma arena
de disputa sobre regimes de visibilidade que se articulam vivamente na produção e na
marcação da diferença. Ao mesmo instante, introduz-se aqui uma materialidade estéti-
ca (estilística do signo e do sinal) que corresponde a uma disposição ética, abrindo os
termos de uma agonística (política) da/na/com a língua.

sumário 187
Mas fazer morada não significa, aqui, possuir, apropriar-se…
será ocupação efêmera. Certos filmes acionam em mim possibilidades
para experimentações que me aproximam de uma ascese: o trabalho
de uma estética da existência (FOUCAULT, 1984/ 2001). E, ao habitá-
-los, eu me refaço. Eu (des)aprendo com os filmes sobre modos de
pensar a mim mesmo. Toda vez que um filme se abre em uma proje-
ção, formas de atualização do nosso tempo-(in)mundo se expandem.

Roteiro, fotografia, sons, personagens... algo disso tudo parece


me conectar mais vivamente à possibilidade de pensar sobre a produ-
ção de posições de sujeito, a imaginar que a partir de um conjunto de
práticas discursivas ou não-discursivas somos instadxs a dizer algo – a
ocupar um lugar no mundo – a tomar uma posição / a sermos tomadxs
de certa disposição. Em consequência disso, posso sentir-viver nos e
com os filmes, e em mim mesmo, maneiras de ampliar as formas de
constituição do que somos / do que sou (ou venho me tornando, o que
preciso abandonar para seguir existindo).

Eu acompanho os filmes como planos de imanência do nosso


tempo e não faz diferença se eles foram produzidos na contempo-
raneidade de nossos dias ou não. Cartografias fílmicas como lances
para uma ontologia do (meu/nosso) presente: através de um filme e
atravessado por ele, tenho a chance de aumentar as margens de li-
berdade para uma revisão ética do modo como venho agindo sobre
mim mesmo, como venho me governando (a partir das formas de go-
verno que precipitam meu agir) e como venho tentando governar xs
outrxs – especialmente na posição de docente/pesquisador. Melhor
dizer, então, trata-se de: “fazer a genealogia dos valores, da moral, do
ascetismo, do conhecimento, não será, portanto, partir em busca de
sua ‘origem’, negligenciando como inacessíveis todos os episódios
da história; será, ao contrário, se demorar nas meticulosidades e nos
acasos dos começos” (FOUCAULT, 1999, p. 19).

Assistir a filmes é, portanto, também uma prática de cuidado – o


cuidado de si, como propusera a leitura de Foucault sobre os gregos

sumário 188
da antiguidade em seus movimentos para uma ascese, balizada pelas
formas como cada um se conduz diante de um determinado código
moral (Foucault, 1984/2001). Não é uma busca hedonista. Ao contrá-
rio: é para viver melhor como cidadão/sujeito (professor, amigo, filho,
irmão, companheiro, militante et cetera) e consequentemente com xs
outrxs, que eu me permito e desejo ser “desconstruído” (desterritoriali-
zado, reterritorializado, redesterritorializado) por certos filmes. É, pois,
uma prática de liberdade, é um desejo de liberdade. É uma paixão pelo
devir: “a diferença relativo-absoluto corresponde à oposição entre a
história e o devir, a desterritorialização absoluta sendo o momento do
desejo e do pensamento” (ZOURABICHVILLI, 2004, p. 46)

O horizonte ético desta experiência: a composição de uma vida


bela – vida como obra de arte (FOUCAULT, 1984/2001), uma estética
para a existência. Não uma vida espetáculo ou uma vida “exemplar”.
Pelo contrário. Arte de si, aqui, como fluxo de criação – composição de
modos de inventar um (im)possível face às ficções contemporâneas
do humano dito viável. Artisagens de si / minhas artisagens para uma
vida criativa (inventora de seus próprios universos existenciais, seus
territórios de experimentação), experiência menor (não inferior). Desse
modo, penso que os filmes são espécies de moradas de existência,
planos de resistência – re-existências: expressões e contornos ético-
-estético-políticos. Seguimos no rastro de Sandra Corazza (2009):
A artistagem (...) expressa-se pela exploração de meios, rea-
lização de trajetos e de viagens, numa dimensão extensional.
Dimensão, para a qual, não são suficientes os traços singula-
res dos implicados no trajeto, mas, ainda, a singularidade dos
meios refletida naquele docente que o percorre: materiais, ruí-
dos, acontecimentos (p. 109).

Aqui, se firmam as noções de ética, estética e política que confor-


mam a perspectiva genealógica foucaultiana (que aciono neste traba-
lho), conformando as condições para uma ontologia do presente (FOU-
CAULT, 2001) – esse algo que permite problematizar sobre aquilo no que
estamos nos tornando –, ou as condições pelas quais uma determinada

sumário 189
forma de pensar o humano passa a ser engendrada (com alguma agên-
cia e liberdade) ou forjada (ali onde somos interpeladxs por discursivida-
des) e ocupa nossas vidas, disputa nossos des(a)tinos.

No rastro foucaultiano, a ética se refere a uma prática, à ma-


neira como cada um reflete sobre a forma como se constitui a si mes-
mo como sujeito moral inserido em um determinado código (moral
– social). Corroboram Nardi & Silva (2004): a ética pode ser entendida
como a problematização dos modos de existência, tanto nas relações
com os outros como em relação a si mesmo:
Nessa direção, Foucault distingue a moral como o conjunto de
regras e preceitos veiculados pelas instituições prescritoras –
como a família, a religião, a escola e o trabalho – e a ética como
o comportamento real dos indivíduos em relação a essas re-
gras. Assim, a determinação da “substância ética” implica na
análise dos modos de construção da relação dos sujeitos con-
sigo mesmos e com o mundo (p. 93).

A ideia de estética de existência, o rastro foucaultiano percorrido


por entre os gregos da antiguidade, remete-nos à possibilidade de
fazermos de nossa existência algo como uma obra de arte, a produ-
zirmos uma estilística para nossas vidas-corpos-subjetividades. Nova-
mente em interlocução com Nardi e Silva (2004): a estética remete para
um exercício da sensibilidade em relação ao mundo – de deixar-se afe-
tar pelo outro, como um dos elementos indispensáveis para a prática
reflexiva da liberdade.

De outra parte não existe uma definição única de política na obra


de Foucault. Toda a sua obra pode e deve ser considerada como uma
experimentação política e de onde advém o sentido de que o papel do
intelectual aparece como aquele que faz a história dos problemas de
cada tempo, apontando para os riscos do presente. Assim, a noção
de política pode ser tomada no trabalho do filósofo-cartógrafo como
campo de disputa sobre as formas de organização social ou modos
de governar xs outrxs e a si mesmx mediadas por /e estabelecedoras
de relações saber-poder.

sumário 190
DAS ARTES DE F(R)ICIONAR

Neste movimento de problematização com o/ e através de fil-


mes46 estou particularmente interessado em acompanhar a produção
de (alguns) regimes de verdade ou, em todo caso, os efeitos de uma
determinada política de verdade. Como afirma Foucault (1999), cada
sociedade possui seu regime de verdade, sua política geral de ver-
dade, assim como os discursos que ela acolhe e faz funcionar como
verdadeiro. Daí que gênero, sexualidade, idade e raça correspondem
a uma dessas políticas; e Foucault demonstrou como a sexualidade
(entremeada à noção de raça) se tornará um desses dispositivos im-
portantes na ficção (fabricação) do indivíduo moderno.

Esses compõem, para mim, o lócus privilegiado de interesse em


pesquisa. Busco compreender como o racismo e a hetero-cis-normativi-
dade47 e outros marcadores sociais da diferença, com seus consequen-
tes privilégios, entram em funcionamento e emergem como traçados de
políticas de subjetivação; como eles se articulam em um campo moral e
como, a partir daí, se definem posições de sujeito ou por onde se intenta
fixar os sujeitos (então ficcionadxs) a determinadas posições.

46 Uma versão ampliada deste texto foi publicada em Pocahy (2020), pela Athenea Digital,
Espanha.
47 A cisnorma é percebida, aqui, através da manutenção de privilégios dirigidos a pessoas
supostamente consideradas coerentes ao sistema corpo-gênero (anátomo-gendradas).
Essa posição teria como efeito regulatório e hierarquizador a interpelação abjeta e a pa-
tologização da transexualidade – e mais amplamente da transgeneridade. Como afirma
Leila Dumaresq, citando Viviane Vergueiro (2014), a crítica da cisgeneridade compulsória
“(...) pode significar uma virada descolonial no pensamento sobre identidades de gênero”
(s/p). De outra parte, e em consonância às proposições supracitadas, recorro à ideia de
hetero/cisnormatividade como forma de evidenciar os efeitos desses ideais regulatórios de
gênero, que estariam associados à suposta naturalidade do corpo (através da linha de inte-
ligibilidade corpo->gênero->sexualidade – uma matriz fundacional) e sua articulação com
os privilégios daí decorrentes. Note-se com isso que a cisnormatividade também marcaria
posições privilegiadas para aquelas pessoas que de alguma forma também poderiam ser
consideradas desviantes (agora apenas do ponto de vista da sexualidade – ou “orientação
sexual”). Isto é, a cisnormatividade compreende as posições gay e lésbica, igualmente. E
no caso de uma performance normativa, seu correspondente seria a homocisnormatividade
ou mesmo uma lgbcisnormatividade – para ampliar o jogo de significantes.

sumário 191
Interesso-me por acompanhar os efeitos de uma dada econo-
mia política da verdade que pode encontrar suas formas de proble-
matização em vários espaços-tempos de produção do pensamento
– como as teorias, por exemplo, que se podem constituir tanto em
cartografias, como sugere Suely Rolnik (2006/2011), quanto eviden-
ciar seus jogos performativos, produzindo realidades que elas mes-
mas forjam (HALL, 2000) ou engendram48... de qualquer forma, que
delas participam (LOURO, 2008). E estou convencido de que alguns
filmes nos permitem politizar a produção de sujeitos e suas histórias
em torno de normas de gênero e sexualidade (em intersecção com
outros marcadores, notadamente lugar de moradia, raça e classe).
Eles conduzem (e aqui já se pode avaliar uma tomada de posição ou
mesmo a agência de uma determinada produção cinematográfica,
a partir de uma política da imagem-movimento) a pensar as formas
de governo a partir da marcação da diferença. Ou: onde a diferença,
enquanto relação, fluxo, força, devir, passa a ser fixada.

O fio condutor dessas pulsações ético-estético-político-epistemo-


lógicas da/na produção de subjetividades nos/com filmes encontra for-
te inspiração de leitura em Louro (2008), especialmente, aqui, presente
pela sua (des)arrumação do gênero e da sexualidade a partir das leituras
queer e cinema; assim como na companhia de Denilson Lopes (2002),
outro interlocutor bastante generoso em partilhar suas experimentações
com a literatura e o cinema. Com Louro (2008), alio-me à ideia de que:
“[...] o cinema, como tantas outras instâncias, pluraliza suas representa-
ções sobre a sexualidade e os gêneros. Por toda parte (e também nos
filmes) proliferam possibilidades de sujeitos, de práticas, de arranjos e,
como seria de se esperar, proliferam questões” (p. 94).

Ao acolher a intensa produção da diferença nesse artefato cultural


(superfície produtora de afectos e perceptos), empenho-me em acompa-
nhar e sentir algo dessas questões que me tocam profundamente como

48 A ideia de engendramento, aqui, assume um viés de dissidência ou alguma marca de sin-


gularização diante dos discursos. Uma dada posição é engendrada a partir das marcas
que constituem um determinado sujeito ou relação social, implicando alguma margem de
liberdade, algum lance para uma ética reflexiva da liberdade.

sumário 192
sujeito constituído por e constituindo experiências em face de processos
de subjetivação. Esse último argumento é resíduo das leituras de Lopes
(2002, p. 250): “As narrativas, mesmo escritas em primeira pessoa, são
recriações, interpretações, incluem as fragilidades das alterações por que
passamos. Não é uma teoria, é uma prática de lidar com diferenças”.

Muitas obras cinematográficas encontram-se em firme oposi-


ção aos dispositivos e suas normas. Elas dispensam a denúncia ou
a polêmica, fazem outra rota: problematizam o presente e nos permi-
tem refletir sobre as (im)possíveis formas de reinvenção cotidiana de
nossas vidas. Há tanta vida a pedir passagem e elas encontram isso
em alguns filmes, que funcionam como planos do sensível diante dos
fluxos que nos constituem.

Essas cartografias que se encontram (as nossas e de outrxs)


subjetivam: agenciam artisagens do eu ou artisagens coletivas nas
estilizações das nossas existências e na resistência aos modos de
captura e cessação da vida. Rolnik (2011) alertava em sua Cartografia
Sentimental que o pânico das subjetividades que goram-e-grudam é
“medo de despedaçar” (p. 49). Suaves e fortes, intensos, alguns filmes
tratam de contra-condutas e são eles mesmos já contra condutores de
fluxos de subjetivação, eles dizem das formas sociais que produzem a
noção de inteireza, bloco... isso tudo o que a modernidade forjou como
identidade, ao mesmo tempo em que as implodem.

Alguns filmes operam no/sobre o sistema (ou como nos pro-


vocam ativistas-intelectuais do movimento trans: Cistema) da vida
calcificada pela norma. Eles acionam narrativas em franco litígio com
essas formas de calcificação – normalidade. Podem, no entanto,
apresentar lances que deixam espaço para outras normas. Afinal,
nós não estaríamos de uma vez por todas livres de novas capturas
normativas ou “libertos” de uma dada relação, afinal, o poder é rela-
cional e produtivo. E entre suas produções também está a margem
para novas tentativas de se fixar posições – normalizando-as: “O que
uma imagem mostra não é a verdade (ou falsidade) do representado,

sumário 193
mas o conjunto de convenções (ou críticas) visuais e políticas da
sociedade que olha” (PRECIADO, 2020, p. 104).

Em um sentido foucaultiano, já sabemos, a liberdade não está


jamais dada. É algo que se exercita continuamente. E é neste sentido
que a resistência e a subjetivação, a atitude crítica e a criação de
novos modos de vida são expressões sinônimas, pois passam a de-
signar o exercício concreto dessa liberdade. A liberdade que permite
aos indivíduos e aos grupos a possibilidade de passar da sujeição
à subjetivação (ERIBON, 1999) – margens se abrem, se restringem,
territórios cercam, outros expandem. Desterritorializa, reterritorializa,
torna a desterritorializar. Nesse fluxo a violência é uma das formas de
´brecar´ os fluxos, cessá-los.

Onde a vida pede passagem, não faltam aduanas morais cien-


tíficas, governamentais, familistas, religiosas fundamentalistas, racis-
tas, cisnormativas, especistas, capacitistas, xenófobas... Assim é que
certas obras permitem-nos compreender a produção da letalização da
diferença – ali mesmo onde a diferença como processo torna-se uma
experiência “mortificável”, apreendida sob um código, marcada, ex-
posta, tutelada, regulada e sob o risco constante de extermínio, mas
ali desde onde emergem formas de resistência.

É deste modo que percebo os filmes: modos de pensar-sen-


tir como nos constituímos como sujeitos de uma determinada expe-
riência (louco, desviante, criança, velho, trabalhador/a, brasileiro/a),
ao mesmo tempo em que acompanhamos a afecção (incluindo-se a
nossa como “expectadores”) que pode produzir condições para “lu-
tar desde o interior do campo das estratégias – e, ainda, e em certa
medida, da possibilidade de uma interrogação crítica que permita
tensionar os dispositivos da normalização e inventar espaços outros”
(POCAHY, 2017, p. 19-20). Habitar os filmes, misturar-se aos seus
personagens, aos objetos em cena, afetar-se pelo encontro com os/
as desconhecido/as e até mesmo com os fantasmas morais, com
os desejos fixados em corpos que desprezam a vida na diferença,
regimes e ambiências normativas, paralisantes.

sumário 194
Ali onde um conjunto de práticas sociais opera na estabiliza-
ção de um ideal regulatório, como a heterossexualidade compulsória
ou a heterocisnormatividade e a branquitude, algo no momento dessa
apreensão do corpo-desejo-prazer pode assumir recusa, fazendo emer-
gir um modo de vida outro – singular (o desvio ou a dissidência como
singularidade). A contribuição de François Ewald (1993) é central nessa
análise sobre a medida do viável e do possível para uma vida:
(...) a norma tem relação com o poder, mas o que a caracteriza
não é o uso da força, uma violência suplementar, uma coerção
reforçada, uma intensidade acrescida, mas uma lógica, uma
economia, uma maneira de o poder reflectir as suas estraté-
gias e definir os seus objetos. A um tempo, aquilo que faz que
a “vida” possa ser objeto de poder e o tipo de poder que toma
a seu cargo a “vida”. Numa palavra, aquilo que lhe dá a forma
de uma “biopolítica” (p. 78).

Nós nos constituímos desde uma interpelação normativa ou um


conjunto outro de ações (que podem ser denominadas morais) que nos
interpelam a uma determinada posição de sujeito (assujeitamento), ao
mesmo instante em que temos a possibilidade de recusar essa interpe-
lação, ressignificando nossas vidas no encontro com essxs outrxs mar-
cadxs igualmente na diferença e no avesso da norma – essx outrx que
constitui a resistência (outro fluxo de diferença / que é sempre relação
social), as enunciações coletivas ou os sujeitos de um determinado
movimento social. E, por mais que, logo ali, possamos nós mesmos/as
acionarmos outro conjunto de práticas normalizadoras, especialmente
aquelas que circulam em torno da produção do indivíduo e de sua
identidade. Isto é: “(...) a norma é simultaneamente o laço, o princípio
de referência que se institui a partir do momento em que o grupo é
objetivado sob a forma do indivíduo” (EWALD, 1993, p. 84).

É no corpo desde onde se produz a noção de vida a ser pre-


servada – indivíduo útil (normal) e dócil (disciplinado) – ou ao menos a
tentativa de docilizar e normalizar. No entanto, cabe perguntar, fazendo
coro aos argumentos de Judith Butler (2005), inspirada em Foucault:

sumário 195
quais vidas devem ser preservadas e o que devem dar a ver e dizer para
que se as identifique como vidas viáveis e possíveis de serem vividas.

Acrescenta-se aqui, nesse jogo de palavras, as inquietações da


filósofa-feminista ao formular a ideia dos corpos/vidas que importam e
quais seriam as vidas passíveis de luto na contemporaneidade – vidas
que ao serem passíveis de luto expressam em si mesmas o espelho
de uma inteligibilidade, um determinado enquadre de reconhecimento.

No avesso da norma ou as formas marcadas por certo jogo de


verdade (a hetero/cisnormatividade) vidas interpeladas abjetas (ininte-
ligíveis) encontram-se constantemente em risco: abjetos tornados ob-
jetos exemplares não somente ao registro do que se convém normal,
mas também insígnias exemplares do que pode acontecer a quem
desvia da norma – da intenção de corrigir a eliminar, dependendo do
contexto social, os limites são muito frágeis (o caso brasileiro é signi-
ficativo: país campeão no assassinato de pessoas trans). Para bem
da manutenção dos privilégios decorrentes de uma (cis)heteronorma,
estados e indivíduos não hesitam em continuar vigiando e punindo.
Para Butler (2000), a abjeção se constitui como um exterior constitutivo:
[...] aquele local de temida identificação contra o qual – e em
virtude do qual – o domínio do sujeito circunscreverá sua própria
reivindicação de direito à autonomia e à vida. Neste sentido,
pois, o sujeito é constituído através da força da exclusão e da
abjeção, uma força que produz um exterior constitutivo relativo
ao sujeito, um exterior abjeto que está, afinal, “dentro” do su-
jeito, como seu próprio e fundante repúdio. (2000, p. 155-156).

Destarte a urgência em se discutir a produção da norma e da


abjeção, é por outra via que ensejo acompanhar algo dessa produção
da (a)normalidade. Não diretamente pela via do ricochete do discurso
que intenta fixar a diferença, mas ali onde se expande a vida em opo-
sição e resistência à força que impõe a precarização da vida. Persigo
os modos de outramento, ali onde alguém é capaz de fazer-se outra/o
na relação com o/a outro/a. Modo de estar-viver-fazer o mundo, a partir
de uma determinada interpelação, onde sou jogada/o à experiência de

sumário 196
conduzir eticamente a minha vida ou a de assujeitar-me a um determi-
nado regramento moral, à normalidade.

(CINE)CARTOGENEALOGIAS

Através de um movimento que arrisco denominar cartogenea-


logias (que podem ser fílmicas ou de sociabilidade ou documentais
ou outra superfície da agonística da produção da/na diferença) apos-
to na possibilidade de acompanhar a produção de estilizações da
existência, ao mesmo tempo em que se percebe a produção de uma
disputa normativa qualquer. Sobre as estilizações, cabe ressaltar, de-
posito meu interesse maior. É pelo avesso da norma por onde desejo
ampliar minhas cartografias – das estilísticas da(s) existência(s) – ou
ser ampliado por cartografias de outrem. As estilizações da existên-
cia não são entendidas aqui como retóricas do indivíduo self-made
man. São, de outra forma, agenciamentos antinormativos, práticas
dissidentes face à uma interpelação dada a produzir uma posição de
sujeito dito normal, práticas de sujeição.

As cartogenealogias do presente (ou o que faz o presente em


um filme) podem ser movidas em disposição ética (a compor lances
sobre as práticas de liberdade), estética (estilização dos modos de
viver-sentir-inventar o mundo) e política (firmam posições e demar-
cam territórios e os termos de uma determinada disputa). E tentarei
deixar explícitos os termos/conceitos que compõem esta experimen-
tação (que já se iniciou), ali justamente onde ela se mistura e compõe
com o gesto genealógico – onde se faz a história da atualidade, das
condições de possibilidade para o nosso tempo e agir. Entendo que
seja necessário comentar algo sobre a aliança que estabeleço entre
a perspectiva genealógica de Michel Foucault e o trabalho cartográfi-
co presente em Deleuze & Guattari e Rolnik, principais interlocutorxs
nessa experimentação (cine)cartogenealógica.

sumário 197
De Foucault (1984/2001), faço uso aqui de elementos que com-
põem sua genealogia da ética. Ela ocupa lugar privilegiado na compo-
sição deste modo de acompanhar processos de subjetivação, lócus
de minhas análises-experimentações. O trabalho de problematização
das condições de possibilidade e de emergência dos discursos que
se opõem e/ou associam aos jogos de verdade e que dão contornos
à relação dos sujeitos consigo mesmos/as no processo de sua (auto)
constituição é central nesta aposta ético-epistemológica.

Da mesma forma, assumo como estratégia de produção de aná-


lises os princípios da cartografia, como disposição ético-político-episte-
mológica para acompanhar a produção de “campos de forças e rela-
ções” que “(...) desdobra-se no tempo, mas também no espaço, além
de incorporar os métodos históricos de Michel Foucault – o eixo meto-
dológico saber-poder-subjetividade – à medida que se apresenta como
método de análise de dispositivos” (PRADO FILHO & TETI, 2013, p. 48).

No rastro deleuziano (e em interlocução com Foucault), a carto-


grafia é tomada enquanto um mapa processual de redes e fluxos de/
diagramas de relações de forças (um modo de perceber os diagramas
de saber-poder) que se ligam entre si, oferece-nos condições para a
composição de paisagens político-culturais que permitem que proble-
matizemos (no sentido foucaultiano, pensar como algo se constitui
como objeto dado a ser pensado, conhecido, governado) “relações
de naturezas diversas, formas circulantes de subjetividade, agencia-
mentos do desejo, práticas de objetivação e sujeição, modos de sub-
jetivação e assujeitamento, práticas de resistência e de liberdade, ou
mesmo formas históricas de estetização e produção de si mesmo”
(PRADO FILHO & TETI, 2013, p. 57).

Em síntese, ao acompanharmos determinadas relações e prá-


ticas sociais estamos imbuídos de cartografar os agenciamentos que
as constituem (ROLNIK, 2011) e que igualmente nos constituem, aquilo
que oferece esta curiosidade de pesquisar não o que nos convém,
mas aquilo que arrisca dizer de nossa auto-constituição.

sumário 198
Do mesmo modo que por certas práticas somos cartografadxs,
um esquema ético-processual nos coloca em relação com o/a outro/a e
não sobre elx. É desse modo que tomo a ideia de uma “junção” daquilo
que em tese esteve desde sempre reunido: a carto-genealogia como
possibilidade de traçar as linhas que constituem o regime de materialida-
de de um enunciado, redefinindo as suas possibilidades de (re)inscrição
e legitimidade nos jogos de poder – saber (FOUCAULT, 1999) e aquilo
que nos coloca em uma posição de dobra, uma inflexão ética – o den-
tro-fora de nós mesmos na relação com o mundo – in mundo.

Importa aqui o efeito de raridade dos enunciados – o qual se


trata de se aproximar da perspectiva de “pesar o ‘valor’ dos enuncia-
dos”, valor que não é definido por sua verdade, não é avaliado pela
presença de um conteúdo secreto; mas caracteriza o lugar deles, sua
capacidade de circulação e troca, sua possibilidade de transformação
(FOUCAULT, 2004). Por isso traçar mapas (a/riscar – colocar sob rasura
certos mapas; como sugere Stuart Hall (2000), gesto a anular certos
conceitos ou práticas que já não são ou nunca foram “bons” para pen-
sar), modos de acompanhar redes e os fluxos de subjetivação – o
que nos coloca a questão de saber não porquê somos isto ou aquilo,
mas como nos tornamos este algo entre a interpelação do seja isto ou
aquilo. Em síntese: o que estamos fazendo de nós mesmos e de nós
mesmas (FOUCAULT, 2001) e como estamos fazendo isso?

O cinema parece, neste sentido, uma cartogenealogia dos de-


sejos e dos prazeres, um traçado imagético-sonoro de novos lances
de vida, afirmando novas figuras e rotas para acompanhar a produção
ética contemporânea. Preciado (2017) acrescenta importante contri-
buição nesta agonística da subjetivação:
Para Deleuze, a cartografia, relacionada simultaneamente com o
mapa e com o diagrama, desenha a forma que os mecanismos de
poder tomam quando se espacializam (como no caso do Panópti-
co de Bentham e do poder disciplinar descrito por Foucault), mas
pode operar também como uma “máquina abstrata que expõe as
relações de força que constituem o poder”, deixando-as expostas
e abrindo vias possíveis de resistência e de transgressão (p. 9).

sumário 199
A questão que movimenta o desejo de experimentar o encon-
tro cartográfico e genealógico é acompanhar fluxos de produção de
subjetividade. Isto é: como os sujeitos são constituídos, como são go-
vernadxs e como governam a si mesmxs? Especialmente a partir dos
jogos de verdade que engendram ou forjam significações para o corpo
e o gênero, a sexualidade, a raça e a idade, busco elementos para um
diagnóstico do presente (nos termos foucaultianos).

A proposta de uma cartogenealogia é ainda dependente de


um compromisso (de alargamento) ético, que se inspira ainda nas
proposições de Paul Rabinow (1999), sobretudo quando esse nos
aporta sobre uma ideia de cosmopolitismo crítico, no qual a posição
investigativa “presta atenção às – e respeita – diferenças, mas tam-
bém está alerta à tendência de essencializá-las” (p. 100). Acredito,
dessa forma, que é importante dimensionar os aspectos éticos em
sua dimensão filosófica e política no sentido em que não podemos
deixar de considerar os modos como cada um reflete sobre a forma
como se constitui a si mesmo como sujeito moral inserido em um
determinado código (FOUCAULT, 2001).

AFECÇÕES FINAIS, PLANOS ABERTOS

Pelos motivos e argumentos expostos arrisco acompanhar,


com filmes, percepturas e afecções éticas, estéticas, políticas e sen-
timentais, afinal, como afirmam Deleuze e Guattari: “A arte não pensa
menos que a filosofia” (1997, p. 88). Movimento-me a partir de uma
aposta ético-estético-epistemológica inspirada no gesto das muitas
cartografias da arte (especialmente, o cinema, mas também a litera-
tura, a dança) como um plano de imanência - como políticas-práticas
de subjetivação. Mas não no sentido de capturá-la, apreender a po-
tência, interpretá-las, classificá-las.

sumário 200
Eu participo do mundo, sou regido pelas coisas deste mundo
(o tempo presente encharcado de outras tantas coisas que me ante-
cederam), in-mundiçado de minha época. A partir das contingências
que me colocam em modos de agir, modos pelos quais tenho a chan-
ce de examinar (a partir de várias práticas sociais) o modo como me
relaciono com os outros/ as outras, ali pode estar um agenciamento
de liberdade. Minha aposta principal, portanto, é na produção de uma
ética-estética-política de como nos tornamos isso o que dizemos ser, a
partir das formas de governo de nós mesmxs e na relação com outrem.

Procurei/procuro habitar a experiência de um filme (ou de um


livro ou um quadro) naquilo que ele se coloca em operação da vida
como obra de arte. Mais precisamente: fazer morada no presente pro-
duzido pelo cinema, ex-por-me às desterritorializações e re-territoriali-
dades (práticas-modos de ocupar) que podem se instituir a partir de
uma residência (e resistência) ética, estética e política.

Filmes podem ser formas de produzir mapas processuais do


presente e também convites à morada. São também um convite à ami-
zade entre o/a espectador/a e a obra – um modo de vida. Para mim,
seguindo o rastro de Foucault, em um movimento intercessor com
Butler e Didier Eribon, a ética da amizade se constitui como possibili-
dade de ressignificação e sustentação da existência pessoal e coletiva
(BUTLER, 2005): é a produção da diferença – o processo – o que
importa (o que faz corpos-vidas importarem no sentido da liberdade e
do direito à vida na diferença): o fluxo compondo modos de reinventar
a si mesmx. Filme ocupação, filme-heterotopia – os espaços diferentes,
os lugares outros, espécie de contestação, às vezes mítica e real, do
espaço onde vivemos (FOUCAULT, 1967/2009).

Fim de uma sequência… e abrem-se outros planos-moradas


de subjetivação, convites ao sensível do habitar um filme e de praticar
a liberdade… sentir o devir-cinema e desaparecer no encontro com a
tela-vida… deixar-se (levar) e, talvez, esquecer tudo isso que foi dito até
aqui, afinal, como disse Susan Sontag: “em vez de uma hermenêutica,
precisamos de uma erótica da arte” (1987, p. 23).

sumário 201
REFERÊNCIAS
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sumário 203
9
Capítulo 9

“Eu já queria ser o que


eu sou”: experiências,
memórias e representações
travestis em Divinas
Divas, de Leandra Leal

Miguel Rodrigues de Sousa Neto

Miguel Rodrigues de Sousa Neto

“Eu já queria
ser o que eu sou”:
experiências, memórias
e representações travestis
em Divinas Divas, de Leandra Leal

DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.9
INTRODUÇÃO

Maria Célia Paoli escreveu, décadas atrás, sobre a possibi-


lidade de elaboração de um outro “horizonte historiográfico”, que
podemos extrapolar para outro horizonte de compreensão, basea-
do na “possibilidade de recriar a memória dos que perderam não
só o poder, mas também a visibilidade de suas ações, resistências
e projetos”, “que repouse no reconhecimento do direito ao passa-
do enquanto dimensão básica da cidadania” (PAOLI, 1992, p. 25).
As proposições são ainda válidas na medida em que a capacidade
de agência de grupos subalternizados, sozinhos ou em rede, tem
aumentado sua visibilidade e tornado mais difícil que suas deman-
das por direitos e reconhecimento sejam ignoradas.

Os grupos e sujeitos instalados hegemonicamente no poder


têm acesso privilegiado à produção do poder político institucionali-
zado, ao capital econômico e sua circulação, à produção do conhe-
cimento, das imagens, dos discursos, das memórias. Ao lado destas
imagens, em disputa, negociação, tensionamento, superposição,
outras imagens, discursos e memórias podem ser apresentados.
A circulação destas imagens/discursos/memórias outras e a pro-
dução de conhecimento realizado a partir desta “outridade”, po-
dem permitir o acesso de grupos historicamente subalternizados,
invisibilizados e marginalizados a narrativas que os contemplem,
que lhes permitam acessar as garantias de uma democracia mais
equânime, o conforto do pertencimento, a possibilidade da revolta,
da rebelião, da ruptura com o status quo, a criação do novo. Nos
termos de Paoli: “fazer com que experiências silenciadas, suprimi-
das ou privatizadas da população se reencontrem com a dimensão
histórica” (1992, p. 28). Deste modo, o espaço público pode ser am-
pliado, assim como os temas nele abordados, em um processo de
renovação, quiçá a partir de utopias outras, tombadas tempos atrás.

sumário 205
A produção do conhecimento no campo das ciências humanas
e sociais, assim como a produção artística, podem ser consideradas
a partir de seu aspecto público, ou seja, aquele da publicização e
ampliação do público que tem acesso às questões ali gestadas, ao
conhecimento e à arte elaborados. Podemos integrar esses esforços
àqueles de ampliação do acesso às memórias outras, de grupos e
sujeitos não hegemônicos.

Especialmente desde o final dos anos 1970 há no Brasil uma


atuação sistemática dos movimentos de pessoas lésbicas, gays, bis-
sexuais, transexuais, travestis, intersexos, assexuais e demais pes-
soas com variabilidade de gênero ou de orientação sexual (lgbtia+),
no originalmente nomeado Movimento Gay Brasileiro, apesar dos inú-
meros percalços pelos quais passaram e ainda passam os movimen-
tos sociais organizados em solo nacional, incluindo a perseguição e
o assassinato de pessoas ligadas a eles (GARCIA, 2022). A esses
movimentos sociais organizados, é preciso acrescentar o empenho
de grupos de pesquisa surgidos e atuantes na academia brasileira,
assim como uma produção artística bastante diversa e expressa em
diferentes modalidades estéticas e suportes.

Os movimentos sociais têm buscado garantir e ampliar direitos


e conter a violência que tem caracterizado a trajetória desta parcela
da população. Ao folhearmos as páginas da imprensa ou visualizar-
mos as notícias nas telas de nossos smartphones, computadores
ou tablets, somos levados a considerar os altos índices da violência
sofrida por pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis,
intersexos, assexuais e demais pessoas com variabilidade de gêne-
ro ou de orientação sexual. Corpos dissidentes são mostrados em
situação de exclusão e violentados, por vezes já sem vida lançados
em matagais, beiras de estrada, terrenos baldios, em apartamentos
e casas habitados pelas pessoas vitimadas, vivos, em camas de hos-
pitais com seus ferimentos, nas ruas onde foram atacados. A carga
de violência deveria assustar, pois, com frequência, é superior àquela

sumário 206
que bastaria para simplesmente matar o sujeito. Alguns casos ocu-
param grande espaço na mídia, entretanto, a maioria segue apresen-
tada em notas nas páginas policiais a serem esquecidas pela breve
notícia do próximo crime. Apenas cinco anos nos separam de um dos
mais violentos casos de assassinato de uma travesti no Brasil:
Cerca de três horas da tarde, uma mulher liga informando que
uma mulher loira estava sendo espancada. Na segunda ligação,
minutos depois, a mesma mulher liga e fala que a mulher está
muito machucada. Na terceira ligação, um homem fala que é
uma travesti e que os bandidos vão tocar fogo nela viva. A quar-
ta ligação, a mesma pessoa informa que estão levando a tra-
vesti em um carrinho de mão e irão matá-la. E na última ligação,
outro homem fala que mataram a travesti a tiros e que quem
teria matado seriam dois homens conhecidos pela alcunha de
‘Bin’ e ‘Chupa Cabra’ (HOLANDA, 2019, p. 119).

Quem escreve o relato é Vitória Holanda, policial atuante na


periferia de Fortaleza, no Ceará, amiga de infância de Dandara, com
quem havia estado horas antes do cruel assassinato. O caso teve uma
intensa repercussão porque a ação foi gravada e o vídeo foi compar-
tilhado pelo aplicativo WhatsApp. Assim, o assassinato assumiu um
duplo aspecto público: a tortura e a execução foram feitas nas ruas
da capital cearense, à vista de transeuntes, e, posteriormente, pela
circulação das imagens no meio virtual. A experiência de Dandara,
encerrada por integrantes de uma sociedade que tem historicamente
oferecido a violência em suas diversas formas a pessoas como ela:
O brutal e desumano assassinato da travesti Dandara dos San-
tos, ocorrido em fevereiro de 2017, nos mostra um modelo de
sociedade adoecida e envolta em um universo demarcado pelo
machismo, racismo e lgbtfobia. Nesse contexto de opressões,
quase tudo é negado às travestis e principalmente se forem ne-
gras, profissionais do sexo e da periferia. Ser travesti no Brasil
é uma luta cotidiana cheia de obstáculos para quem ousa sair
do armário, dos modelos e padrões normativos de gênero. Em
contexto geral, ao saírem do casulo da transição de gênero,
travestis se deparam com a marginalidade e com a prostituição;
essas são as primeiras e talvez únicas oportunidades recebidas
por essa população (HOLANDA, 2019, p. 134).

sumário 207
Ao nos determos nas informações trazidas por órgãos gover-
namentais ou Organizações Não Governamentais (ONGs) especiali-
zadas na observação da violência, os números relativos às pessoas
reunidas na letra T da sigla se mostram assustadores: enquanto a
expectativa de vida da população brasileira é de 76,6 anos (IBGE,
2021), a destas pessoas (T) é de 35 anos (BENEVIDES, 2022, p. 41).
Talvez por isso seja pouco comum encontrarmos travestis e transe-
xuais velhas e velhos nas ruas do país.

Esses elementos, a violência (estrutural, sistêmica, institucional


e difusa) voltada à população lgbtqia+, a vulnerabilidade acentuada
vivida por travestis e transexuais, a necessidade de acesso à memória
de grupos e sujeitos subalternizados e invisibilizados, a possibilidade
de observar integrantes da população travesti/trans que chegaram à
terceira idade, rompendo com a trajetória apresentada pelos gráficos
da violência, me levaram ao documentário Divinas Divas, dirigido por
Leandra Leal e lançado oficialmente em 2017, no qual são retratadas
oito travestis e transformistas ligadas ao Teatro Rival, pertencente à
família Leal. É sobre ele que dedico as páginas seguintes.

“NÓS TEMOS NOSSA SEMENTINHA


AQUI”: UM ENCONTRO NO RIVAL

O Teatro Rival iniciou suas atividades em 1934 e passou à famí-


lia de Américo Leal em 1970. O teatro está localizado na Cinelândia,
muito próximo ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro, na região que
é, ainda hoje, parte da zona boêmia do Rio de Janeiro. O Rival deu
lugar a revistas, ao teatro rebolado, aos shows de transformistas e per-
manece como importante casa de espetáculos musicais, recebendo
nomes reconhecidos da música e da dança brasileiras, além de outros
projetos. Teve patrocínio da Petrobrás de 2001 até 2019 e, atualmente,
da refinaria carioca Refit, conforme informações disponibilizadas na
página virtual do próprio teatro (teatrorivalrefit.com.br).

sumário 208
O teatro carioca da passagem do século XIX para o século XX
foi marcado pela revista, um gênero de origem francesa que juntava
aspectos do teatro popular das feiras e a música, organizado em es-
quetes. No Brasil, a primeira revista foi encenada em 1854, vindo a al-
cançar efetivo sucesso a partir dos textos de Arthur Azevedo, nos idos
de 1884 (MARQUES, 2001). O gênero, apesar das críticas sofridas,
permaneceria em voga até 1961, quando o sucesso da peça O diabo
que a carregue lá pra casa, de Walter Pinto e Roberto Ruiz, apresentada
no Teatro Recreio, seria o último, se tornando o marco do declínio do
gênero a partir de então (SUDARE, 2018). Após o fim do áureo teatro
de revista, Américo Leal levou para os palcos do Rival espetáculos de
transformistas. As grandes vedetes do teatro de revista davam espaço
para essas novas estrelas do teatro musicado.

O documentário dirigido por Leandra Leal tem sua origem na


comemoração dos setenta anos do Teatro Rival. Márcia Tirésias (2017)
apresenta a história que o precede: Ângela Leal teria convidado Jane
di Castro para que reunisse as travestis que passaram pelo Rival nos
anos 1960 e 1970 e montassem um novo show. Jane escolheu o elen-
co e o nome do espetáculo: Divinas Divas, que ficou em cartaz de 2004
até 2014. Leandra Leal, que a partir de 2016 passaria a administrar o
espaço, propôs filmar o encerramento desta temporada de dez anos,
contando, assim, a história do teatro, de sua família e daquelas divas
que a viram bebê pelas coxias, anos antes.

Divinas Divas é um documentário de longa-metragem (são 110


minutos) brasileiro lançado em 2017 produzido por Daza Filmes, copro-
dução do Canal Brasil e da Biônica Filmes. Seu roteiro é assinado por
Carol Benjamin, Leandra Leal, Lucas Paraizo e Natara Ney; a fotogra-
fia é de David Pacheco; trilha sonora de Plínio Profeta. Sua diretora foi
Leandra Leal. A direção do espetáculo que dá origem às gravações foi
realizada por Gustavo Gasparani. O filme passou por diversos festivais e
recebeu significativo número de prêmios: Melhor Filme – Escolha do Pú-
blico – SXSW Film Festival 2017; Melhor Documentário – Voto Popular –

sumário 209
Rio de Janeiro Film Festival 2016; Prêmio Felix de Melhor Filme – Festival
do Rio 2016; Melhor Diretora – Troféu Aruanda – Festival Aruanda 2016;
Melhor Filme – Juri Popular – Festival Aruanda 2016; Melhor Documen-
tário – 12º Prêmio FIESP/SESI-SP de Cinema e TV 2018; Melhor Roteiro
de Longa-metragem Documentário – II Prêmio ABRA de Roteiro; Melhor
Documentário e Melhor Edição – Grande Prêmio do Cinema Brasileiro
2018. As informações podem ser conferidas no sítio virtual da Daza Fil-
mes (https://www.dazafilmes.com.br/projetos/divinas-divas).

O documentário é protagonizado por oito artistas travestis que


iniciaram suas carreiras e a transição de gênero nos anos 1960/1970,
e que passaram pelo Rival. Nascidas entre 1943 e 1951, à época do
encerramento do espetáculo, eram senhoras chegando aos setenta
anos: Jane di Castro, a responsável pela reunião das artistas e pela
escolha do nome do espetáculo, Rogéria, que teve participações
na televisão brasileira, além dos palcos de boates e teatros, Brigitte
de Búzios, Marquesa, Fujika de Halliday, Divina Valéria e Eloína dos
Leopardos. Suas trajetórias pessoais e profissionais, a condição do
envelhecimento e a ligação com o Teatro Rival vão sendo alternadas
com cenas do próprio espetáculo e dos ensaios, apresentando o
cotidiano da produção, as expectativas, suas memórias. É Marquesa
que, em uma das cenas finais, ainda na coxia e falando sobre o tea-
tro, afirma: “Nós temos nossa sementinha aqui”.

Minhas escolhas ao tomar a obra repousam na construção das


personas femininas por essas artistas, realizada em um momento dra-
mático da história do Brasil, que é o período da Ditadura Militar, marca-
do pela repressão estatal, a performance disruptiva no âmbito da cena
teatral e da inserção social, as redes de solidariedade e afeto. Importa
reconhecer que o documentário dirigido por Leandra Leal oferece ao
público experiências travestis de afeto, atuação profissional e artística,
felicidade, violência, enfrentamento, resistência.

Rictor Norton, Em F*da-se Foucault – como a história homossexual


do século XVIII valida o modelo essencialista (2018) trava uma discussão

sumário 210
acerca da homossexualidade entre os teóricos do chamado construcio-
nismo social e dos historiadores essencialistas. Em que pese o valor do
debate em si, destaco apenas uma de suas constatações: os trabalhos
no âmbito do construcionismo têm privilegiado ver os homossexuais (e
os dissidentes da cisgeneridade) a partir do viés médico ou daquele
oferecido pelos juristas, por organismos do Estado; deste modo, che-
garíamos muito mais a uma história da homofobia (ou, da lgbtbifobia) do
que propriamente a uma história de pessoas lésbicas, gays, bissexuais,
transexuais, travestis, intersexos, assexuais e outras com variabilidade
de gênero ou de orientação sexual. Isso me leva a observar de forma
mais detida as experiências das divas que se mostram à lente de Lean-
dra Leal, em um momento de suas trajetórias que lhes dá condições
de fazer um balanço de suas atuações artísticas, dos enfrentamentos
necessários para chegarem àquele ponto de suas vidas.

Há, na produção, um sentido de aproximação, de encontro: da fa-


mília da diretora com a cena artística, especialmente por meio do Teatro
Rival, de Leandra Leal com a história da própria família, e com as divas,
nos anos 1960-70 e, novamente, nos anos 2000. A elaboração de uma
memória desses sujeitos é objetivo explicitado no próprio documentário.
Nos minutos finais do documentário, enquanto os bastidores da última
apresentação são mostrados, a voz em off de Leandra Leal diz:
Quando eu tinha apenas um mês, uma peça escrita pela mãe
estava em cartaz, mas a atriz teve um problema de saúde e ela
foi convocada às pressas para o papel. Eu ia bebezinho no colo
dela para o teatro toda noite, e ficava na coxia com a camareira
quando ela entrava em cena. Fizeram uma roupa de mini vedete
para mim e, no final do espetáculo, minha mãe me levava ao
palco. Foi aqui que eu estreei, nesse mesmo palco que hoje as
divas encenam suas trajetórias para serem eternizadas.

Apesar de terem as oito rompido com os números e chegado à


“terceira idade”, há alguma urgência na guarda dessas memórias, pas-
síveis que são de desaparecimento. Algo que desvaneceu, mas é ob-
jeto da abertura do filme, é a aparência masculina das protagonistas.

sumário 211
Um videografismo é apresentado na tela enquanto Nelson Gonçalves
interpreta a canção Escultura (Nelson Gonçalves e Adelino Moreira):
Cansado de tanto amar/ Eu quis um dia criar/ Na minha imagi-
nação/ Uma mulher diferente/ De olhar e voz envolvente/ Que
atingisse a perfeição// Comecei a esculturar/ No meu sonho
singular/ Essa mulher fantasia/ Dei-lhe a voz de Dulcinéia/ A
malícia de Frinéia/ E a pureza de Maria!// Em Gioconda fui bus-
car/ O sorriso e o olhar/ Em Du Barry o glamour/ E para maior
beleza/ Dei-lhe o porte de nobreza/ De madame Pompadour//
E assim, de retalho em retalho/ Terminei o meu trabalho/ O meu
sonho de escultor/ E quando cheguei ao fim/ Tinha diante de
mim/ Você, só você meu amor!

Imagens de cada uma das divas, Rogéria, Jane, Valéria, Eloína,


Camille, Fujika, Marquesa e Brigitte, ainda jovens e com a aparência
masculina, dão lugar a bocas pintadas, olhos marcados, cabelos lon-
gos, até que cada uma delas seja apresentada na exuberância que cria-
ram para si como figuras femininas. O sentido de construção de cada
uma delas como a mulher que sonhavam para si expresso pela canção e
pelas imagens. Em uma das cenas de depoimentos, Eloína diz “Eu sem-
pre fui a mais perturbada delas todas.”, colocando-se em posição dis-
tinta daquelas que tiveram ou tinham à época longos relacionamentos.
Comentando o temperamento da senhora dos Leopardos, Jane di Cas-
tro indica que esse temperamento da amiga era fruto do convívio com
as grandes vedetes do teatro brasileiro: “Ela foi pegando um pouquinho
de cada uma”. A construção da feminilidade, de sua identidade, feita a
partir da matéria-prima disponível, as imagens femininas acessíveis a
cada uma delas. A transição, a constituição de suas personas femininas
e suas vivências travestis ocupam boa parte dos relatos.

As divas aparecem alternadamente no palco e no ensaio da


canção de João Roberto Kelly feita exclusivamente para o “Les girls”,
um dos pioneiros espetáculos de travestis no Brasil que foi para os
palcos em dezembro de 1964 (MORANDO, 2021). Elas cantam e co-
reografam: “Ser mulher/ é muito fácil para quem já é,/ mas pra quem
nasce para ser João/ é um sacrifício a transformação./ Insistir,/ fazer

sumário 212
surgir aquilo que não tem,/ e o que tem ter que fazer sumir ou enrus-
tir./ Je suis comme je suis!”.

Nos ensaios elas são filmadas com pouca maquiagem, ou sem


ela, com roupas de seus cotidianos e, no caso de Marquesa, sua ves-
timenta é masculina. Para o palco elas foram preparadas com cabe-
los/perucas em destaque, figurino brilhante, acessórios, maquiagem:
estão “montadas”, prontas para a cena, para o close. (Camille – “Se
eu fosse para um jantar, usaria apenas uma das peças, o colar e mais
nada. Mas, para o palco, resolvi colocar tudo junto. Acho que funcio-
na.”) O palco é o espaço para certo transbordamento, para os efeitos
de brilho e cor. Na coreografia, “fazer surgir aquilo que não tem” “e o
que tem ter que fazer sumir”, com as mãos sobre os corpos, mostrando
as partes a serem mudadas. A ação travesti, essa construção corporal
e subjetiva, os usos da tecnologia médica, é ali encenada, contada por
todas elas juntas em um dos números iniciais do espetáculo.

Em cena seguinte, Divina Valéria dá um depoimento, fora do tea-


tro. Ela relembra sua juventude e o primeiro baile de carnaval vestida de
mulher, com um vestido e uma peruca emprestados da atriz Darlene Gló-
ria. Em casa, nos dias que seguiram ao baile, quando mãe e irmã “saíam
de compras”, Valéria colocava a peruca e se postava à janela que dava
para a rua, e, segundo seu depoimento, os transeuntes, nos ônibus, nas
calçadas, passavam e achavam que se tratava de uma mulher, “E isso
me dava maior prazer”. E conclui: “Eu queria ser mulher”.

Minutos depois, é Eloína quem sentencia para as câmeras: “Para


virar mulher, a primeira coisa: tem que tirar a barba. Hoje em dia, não dói
nada.” Ela informa a ordem das intervenções cirúrgicas: nariz, orelhas,
boca, seios. “Eu não tinha medo de nada. Eu queria ser bonita e feliz.”. E
em seguida: “Eu já pensei: como voltar a ser homem? Mais de quarenta
anos sem nem colocar uma roupa de homem! Eu nem sei como seria!”.

Rogéria, no documentário, assim como em sua biografia escrita


por Marcio Pachoal, e em inúmeras entrevistas, reitera guardar em si a

sumário 213
mulher, a travesti, e o homem. Tanto que sempre utilizou Astolfo, seu nome
masculino, ao lado de Rogéria. São as ambiguidades apresentadas sem
a necessidade de sua superação: “Voltei definitivamente transformada
em mulher!” (PASCHOAL, 2016, p. 67), mas afirmando que jamais ope-
raria, pois não deixaria de ser Astolfo. Em uma das cenas do Divinas
Divas, ela responde sobre os amores: “Eu tenho lovers... Para quê ter
apenas um? Esse lado é bem homem!”, em referência a um padrão ideal
masculino de comportamento sexual, menos monogâmico, aparece em
sua fala. A ideia da operação de transgenitalização é permanentemente
refutada por ela. E Rogéria como uma persona, uma elaboração, um ser
que divide aquele espaço físico e mental com Astolfo, é reiterada.

No curso da obra as divas se nomearão ou às outras como “bi-


cha”, “travesti”, viver/estar “de mulher”, “viado”, “gay”, me assumir “de
mulher”, “artistas do transformismo”, “isso que eu sou”. As identidades
são apresentadas de modo ambíguo, nomeadas de maneira irregular,
inclusive aparecendo “o travesti” e “a travesti”. O binarismo dos gêne-
ros aparece e se dissolve, ultrapassando a norma. Sobre isso escreveu
Letícia Lanz, psicanalista e estudiosa transgênera:
Todos os bloqueios e interdições ao pleno exercício da cida-
dania das pessoas transgêneras resultam da sua transgressão
ao dispositivo binário de gênero, da sua inobservância ao crité-
rio de classificação e hierarquização dos seres humanos com
base no órgão genital presente em cada indivíduo ao nascer
(LANZ, 2015, p. 373).

Transitar entre o gênero masculino e o gênero feminino, apro-


priar-se de um ou outro, ou de ambos, não era algo corriqueiro. A
sociedade brasileira, patriarcal e machista, interditava, causava trans-
tornos a esses sujeitos. A partir de 31 de março de 1964, com o
estabelecimento da Ditadura Militar por meio de um golpe de estado,
as questões morais – políticas que são – seriam ainda mais endu-
recidas. James Naylor Green e Renan Quinalha foram responsáveis
pelas pesquisas, investigações e redação do texto Ditadura e Ho-
mossexualidades, sob responsabilidade do conselheiro Paulo Sérgio

sumário 214
Pinheiro, que compôs o segundo volume do Relatório final da Comis-
são Nacional da Verdade; escrevem eles:
Não houve uma política de Estado formalizada e tão coerente
no sentido de exterminar os homossexuais, a exemplo de como
existia uma campanha anunciada e dirigida para a eliminação
da luta armada com repressão de outros setores da oposição
ao longo dos anos da ditadura. Porém, também é muito eviden-
te que houve uma ideologia que justificava o golpe, o regime
autoritário, a cassação de direitos democráticos e outras vio-
lências, a partir de uma razão de Estado e em nome de valores
conservadores ligados à doutrina da segurança nacional. Essa
ideologia continha claramente uma perspectiva homofóbica,
que relacionava a homossexualidade às esquerdas e à subver-
são. Acentuou-se, portanto, assumida agora como visão de Es-
tado, a representação do homossexual como nocivo, perigoso
e contrário à família, à moral prevalente e aos “bons costumes”.
Essa visão legitimava a violência direta contra as pessoas LGBT,
as violações de seu direito ao trabalho, seu modo de viver e de
socializar, a censura de ideias e das artes que ofereciam uma
percepção mais aberta sobre a homossexualidade e a proibição
de qualquer organização política desses setores (Comissão Na-
cional da Verdade, 2014, vol. II, p. 301).

Ainda sob o jugo dos militares, os editores do Lampião da Es-


quina, importante jornal homossexual que circulou na passagem dos
anos 1970 para os anos 1980, trouxe para suas capas e páginas tra-
vestis, como em seu número 32, de janeiro de 1981, que estampava
a fotografia de travestis vestidas com camisas de time de futebol, na
pose clássica de jogares juntos agachados e de pé e chamada “Brasil,
campeão mundial de travestis”, com Eloína, Jane di Castro e Rogéria
figurando em destaque nas páginas internas, e a violência estatal do
período, a exemplo do nº 26, de julho de 1980, que traz a chamada
de capa “Richetti age em S. Paulo e Padilha volta ao Rio”. O texto, in-
titulado “São Paulo: a guerra santa do Dr. Richetti”, assinado por João
Silvério Trevisan, é iniciado com as palavras a seguir:
Inicialmente havia apenas reclamações isoladas de anônimos
travestis e prostitutas vitimadas pela violência policial que,
desde o fim de maio, tomou conta de São Paulo, sob pretexto

sumário 215
de limpar a cidade de vagabundos, anormais (também conhe-
cidos por homossexuais), decaídas ou mundanas, marginais e
desocupados em geral. Como é que se limpa uma cidade de
milhões de habitantes, refúgio dos miseráveis de todo o Brasil,
com taxa de desemprego atingindo 8’o da população ativa?
Fácil: dando serviço para a polícia que, nestes tempos de se-
mi-anistia, é menos solicitada, mas precisa mostrar serviço.
E dá-lhe, desvairada Paulicéja!

A “guerra santa” de Wilson Richetti, delegado do Departamento


Estadual de Investigações Criminais, uma das figuras proeminentes do
governo Paulo Maluf, tratava-se das Rondas, que eram ações de poli-
ciamento da região central da cidade de São Paulo, na qual travestis,
prostitutas e outros sujeitos considerados inoportunos naquela região
eram presos nessas ações de caráter higienista. As rondas foram para
os jornais e foram muito bem-vistas por parte da população, especial-
mente aquela parcela que via os sujeitos em questão como marginais
a serem retirados das ruas da cidade.

Em cena do Divinas Divas de depoimentos de Jane e Camille, a


primeira lembra: “Camille era proibida de andar na rua. Só podia andar
de táxi.” E Camille reitera: “Duas vezes tive que ir no porta-malas do
carro”. Ela já havia sofrido apedrejamentos por sair vestida com roupas
consideradas impróprias para homens, além do cabelo platinado até
quase a altura dos ombros.

Eloína se recorda de terem que retirar a peruca, às vezes, a


maquiagem, para sair do Rival e se deslocarem para alguma boate,
por exemplo. E, paradas por policiais, eram inquiridas sempre sobre
“o que é que vocês são?”, “vocês são mulheres?”, “mas como?”.
“Eles tinham também a curiosidade deles”, encerra a criadora dos
Leopardos. Divina Valéria relata uma ocasião em que foi presa por
andar pela cidade de São Paulo vestida de mulher. Sílvio Santos, já
um comunicador, realizou com ela uma reportagem, perguntando nas
ruas se ele/ela poderia, ou não, viver daquele jeito. “E eu tenho vivido
assim.”, é como ela encerra a questão.

sumário 216
Rogéria e Brigitte, recordando o início de suas atividades trans-
formistas justamente no período da ditadura apontam para as difi-
culdades e a impossibilidade de tratar de temas políticos diretamen-
te. Rogéria – “Era um momento horroroso do Brasil, politicamente.”
“Eu já era confusão, meu amor! Eu tava vestida de mulher e nem o
pau tinha cortado!”. Essas artistas, ao simplesmente exercerem sua
arte, agiam contra a norma instalada. Os limites de atuação, portanto,
eram bastante mais rígidos para elas, que eram lembradas o tempo
todo para permanecerem caladas.

As famílias participaram do processo de repressão, mas tam-


bém de acolhimento. Rogéria afirmou no documentário: “Minha mãe
nunca teve vergonha de mim!”. Na biografia escrita por Paschoal ela
retoma a posição da mãe:
Se um dia optasse por uma operação de troca de sexo, minha
mãe seria a primeira a quem eu comunicaria. Quando che-
guei, ela não sabia se me chamava de ele ou ela. Até que um
dia, atravessando a baía, na barca Rio-Niterói, ela viu o jeito
como os homens olhavam para mim, com admiração por uma
mulher. A partir de então, passou a me chamar no feminino
(PASCHOAL, 2016, p. 98).

Brigitte e Marquesa foram internadas em sanatório. Marquesa


narra o fato que a levaria para lá. Ela foi convidada por Alfredo, dono
de uma casa noturna que pretendia atender o público gay, para um
casamento fictício que visava chamar a atenção da imprensa e, por
conseguinte, fazer a fama do lugar. A revista Fatos & Fotos publicou,
em dezembro de 1962, “as bodas do diabo”. Em uma miríade de jor-
nais o fato foi noticiado: “No dia seguinte eu era cabeçalho e primeira
capa em todos os jornais possíveis e imagináveis, com os dizeres mais
diversos. Por exemplo, a Luta Democrática botou: ‘Anormal deslava-
do casa em plena Copacabana nas barbas do distrito’”. O impacto
midiático levou à descoberta por parte da família de Marquesa, cuja
irmã convenceu a mãe a interná-la no Sanatório Botafogo, na região
central do Rio de Janeiro. Ela foi ludibriada, informada de que iria fazer

sumário 217
exames, “um encefalograma”. Levada para lá, ao descobrir a farsa,
chorou, mas foi amparada por um enfermeiro, que já havia recebido
no mesmo lugar Briggite de Búzios. Saída da internação, disse à mãe:
“Eu sei que minha irmã lhe convenceu a isso, mas não faça mais isso,
não. O que eu sou, eu sou, mamãe”. Marquesa abre esse trecho de
seu relato afirmando: “Minha mãe nunca aceitou isso”. Com a arte imi-
tando a vida, são mostradas cenas de um dos antigos espetáculos
protagonizados por Marquesa no qual ela aparece com uma grande
mitra brilhante na cabeça, envolta em longo manto também brilhante
que, ao ser retirado, ao som de I put a spel on you, de Jay Howkins,
interpretada por Nina Simone, a mostra em uma camisa de força.

Sobre a medicina do período, Brigitte explica: “Os médicos aqui


naquela época atestavam como louca! Eu era louca! Eu cheguei a fa-
zer... como é? Sonoterapia, insulina, tudo aquilo que o Paulo fez, todo
mundo fez... Não mudou em nada minha cabeça! Eu já queria ser o que
sou (frase que dá título a esta reflexão)”. Apesar do bom humor com
que retrata a ocasião, sem se queixar da família que a colocou naquele
lugar, Brigitte mostra um dos resultados da internação, das terapias:
“A gente falava as coisas, entende? Depois é que a gente aprendeu a
se controlar. Não pode falar tudo o que pensa, tudo o que quer. A gente
tem que ‘ser piano’, né? Com a insulina, com a sonoterapia, aprendi a
baixar o tom e concordar com a sociedade. Porque a gente não pode
ser contra a sociedade, senão a gente vira o quê? Um animal em ex-
tinção?”. Alguma concessão havia que ser feita. Se não seria possível
reverter a performance de gênero escolhida por ela, ao menos impedir
que falasse tudo o que pensava para manter-se inserida naquela – nes-
ta – sociedade. Apesar de tudo, a família de Brigitte, em outras opor-
tunidades, lhe acolhe. É um tio quem sugere a ela que vá para Nova
Iorque, onde ela trabalharia por anos. E, em uma das cenas que seriam
incorporadas no espetáculo, diz: “É a primeira vez que estou em um
espetáculo e minha mãe não me vê. Minha família sempre me assistiu,
inclusive na América.”. Mais uma vez, as ambiguidades, os paradoxos.

sumário 218
A disruptividade esteve presente na transformação de corpos,
evidenciando a imagem que tinham de si, moldando a carne à seme-
lhança da feição que imaginavam para si. No palco isso também se
mostrou, a exemplo da performance de Marquesa, mas também da
empreitada que daria um sobrenome a Eloína, “dos Leopardos”. Em
um dos depoimentos ela diz: “Eu tenho muito fascínio pelo nu.”. Isso
guiaria a produção de seus espetáculos e casas. Ela fica conhecida
nacionalmente por abrigar um show, simples, na Galeria Alaska, centro
do Rio de Janeiro. Alguns números que ela fazia, uma participação ca-
ricata, cômica... e homens nus. Se homens sem roupa já tinham sido
vistos antes, Eloína os colocava para retornarem todos ao palco, no fim
da apresentação, com seus pênis eretos, rígidos, intumescidos. Um su-
cesso absoluto. Um dos garotos ganha um carro, “documento e chave,
em cima do palco”, de um admirador. Ela ganha uma jaguatirica, em
certa oportunidade. O dinheiro entra, e vai embora; “Gastei, Leandra!”,
afirma a diva, com humor. Em outra oportunidade, em um baile de
carnaval, coloca os garotos em caixas de vidro, nus, se masturbando.
O que lhe chamou a atenção não foram os garotos, mas ela destaca
a agonia de bichas e travestis, tocando as caixas, impedidos/as de
tocarem os corpos. Uma visão cinematográfica, felliniana: “Eu sempre
delirei nisso”, afirma. Seria ela a rainha da bateria da escola de samba
Beija Flor, em 1976, na estreia de Joãozinho Trinta com o enredo Sonhar
com rei dá leão. Essas pessoas romperam com o lugar a que estavam
destinadas, sem dúvida. E, na terceira idade, mais uma vez.

ALGUMAS CORTINAS SE FECHAM

O espetáculo Divinas Divas ficou dez anos em cartaz no Teatro


Rival. Ocasionalmente, algumas das divas viajaram pelo país, apresen-
tando-se. A precária saúde de algumas, porém, assim como o acrésci-
mo dos anos, fizeram com que as atividades diminuíssem. E algumas
deixaram o palco da vida. Jane di Castro faleceu em 2020, Brigitte de

sumário 219
Búzios, em 2018, Rogéria, em 2017. A primeira a partir foi Marquesa.
Ela não pode assistir à estreia do documentário que traz parte de suas
memórias, pois morreu ainda em 2015, quando as gravações já tinham
sido encerradas. A penúltima cena do filme é dela, seu monólogo. Ar-
fante, caminhando lentamente, ela segue das coxias para o palco, tra-
jando um amplo vestido amarelo, com aplicações de flores, maquiada
com brilho. Charles Aznavour interpreta Comme il disent, enquanto
imagens são projetadas no palco e Marquesa traduz o que está sendo
cantado: “Eu moro sozinho com a minha mãe, num apartamento velho.
Rua Salazarte. E tenho para me fazer companhia uma tartaruga, dois
canários e uma gata. Para deixar minha mãe descansar eu vou sempre
fazer as compras e cozinho, também. Eu lavo, eu arrumo, eu enxugo e,
na ocasião, também, eu faço um vestido (à máquina, Augusto). O tra-
balho não me dá medo. Sou um pouco decorador, um pouco estilista,
mas, a minha verdadeira profissão é à noite que eu a exerço, como tra-
vesti. Mas, sou artista! Ninguém tem o direito na verdade de me culpar
ou de me julgar. E eu preciso, que é a natureza somente a responsável
por eu ser o homossexual como vocês agora pensam”. E, num átimo,
retira a peruca, deixando à mostra uma cabeça de parcos e curtos
fios brancos. A música, dramática, encerra aí, neste exato ponto. Em
seguida, uma tela preta nos apresenta seu nome, in memorian. Em seu
velório estavam as divas, Leandra Leal e outras travestis e transformis-
tas, chamando-a por seu nome, Marquesa, não pelo nome masculino
pronunciado pelo padre oficiante (COLAÇO, 2015). Tamsin Spargo, no
voo que a levava de volta ao Reino Unido, depois de participar de um
evento no Brasil, assiste Divinas Divas, e escreve sobre ele:
Este relato poderoso e comovente das vidas de Camille K,
Eloína dos Leopardos, Jane di Castro, Rogéria, Divina Valéria e
Brigitte de Búzios, celebra a encenação, a performance, a dife-
rença durante os piores momentos. Ver as divas falarem sobre
suas vidas – seus desafios, tristezas, triunfos e alegrias, déca-
das atrás, e vê-las subirem ao palco novamente, agora, com
setenta anos, era tão comovente. Ouvir sobre o impacto sobre
seus fãs, seus públicos, aqueles que encontraram a alteridade
por meio de suas performances, e de suas vidas, foi fascinante.

sumário 220
Isso me lembrou da relevância continuada, do poder continua-
do do “queer” entendido, como sempre achei mais útil, como
um verbo, e não um adjetivo (SPARGO, 2020, p. 31-32).

Leandra Leal, vinda de uma exitosa carreira como atriz, estreia


como diretora colocando sua voz ao lado das vozes das oito divas.
O movimento do documentário é baseado na apresentação das per-
sonagens, na contextualização de cada transformação e atuação, no
diálogo com o tempo presente por meio do espetáculo. Os números
musicais estão ligados às narrativas colhidas nos depoimentos. Fujika
de Halliday, falando sobre sua vida com o falecido companheiro e a
saudade advinda de sua morte, oferece a Leandra uma atuação priva-
da, ao apresentá-la Abandono, cantada por Eliana Pitman; o número
final de Divina Valéria é uma dramática interpretação de A mi manera/
My way, Jane canta Non, rien de rien, com seu marido Otávio na plateia
(que, ao cabo da apresentação, lhe oferece flores no palco). Os ho-
mens nus (agora, seminus) que deram tanta visibilidade a Eloína estão
com ela no palco. Camille K, em um dos depoimentos, reflete sobre a
necessidade que tinha de “chamar atenção” quando jovem: “era fal-
tado do teatro”; e a arte, para ela, é transgressora – talvez por isso um
de seus números a traz dublando a soprano peruana Yma Sumac com
gestos eróticos e cômicos, aos setenta anos. O contexto é apresenta-
do a partir de fotografias, trechos de vídeos e pelos depoimentos.

Se, do ponto de vista da linguagem cinematográfica, o docu-


mentário não apresenta inovações, a diretora o faz ao trazer para as
pessoas que o assistem essas figuras disruptivas em suas vidas coti-
dianas, experienciando esse outro gênero que não aquele designado
quando do nascimento, nos palcos – cantando, dublando, fazendo rir,
mostrando corpos, denunciando, resistindo.

Jane, Rogéria, Brigitte, Marquesa, Fujika, Divina Valéria, Eloína,


Camille, mostradas juntas e separadas, em números musicais, depoi-
mentos intimistas, conversas descontraídas e closes, nos dizem que
é possível viver de modo mais parecido com o que se sonha para si.
São narrativas de redenção? Não sei se alguma delas imaginava

sumário 221
ser redimida de algo. A ideia de sucesso não é norteadora de qual-
quer depoimento, tampouco o seu contrário. São pessoas vivendo
diante da câmera, contando sobre o que foi, mas saboreando o
que a vida lhes oferecia naquele momento: um espetáculo de êxito,
protagonizar um filme, conviver umas com as outras, se divertirem.
Não apenas sobreviver às agruras de uma sociedade lgbtbifóbica e
violenta, mas ter prazer em suas ações, em suas vidas, consideran-
do a possibilidade do fim: é Marquesa quem diz “Vou te falar uma
coisa, vai ser um canto do cisne lindo o que eu vou fazer”.

Leandra e as oito divas oferecem para quem as assiste um


conjunto de imagens e memórias outras, preenchendo o imaginário
com outros modos de vida que são também viáveis, que precisam
ser viáveis. Essas nove mulheres figuram potência, afeto, resistência e
poesia. Elas comovem e fazem rir. Elas nos lembram do passado, mas
se projetam também ao futuro nos permitindo vê-las quando algumas
delas já não estão mais aqui.

As divas nos contam que é possível ser o que se quer ser, mes-
mo que nem sempre consigamos dar um nome a isso.

REFERÊNCIAS
BENEVIDES, Bruna G. (Org.). Dossiê Assassinatos e violências contra travestis
e transexuais brasileiras em 2021. Brasília: Distrito Drag/ ANTRA, 2022.
COLAÇO, Rita. Marquesa: presente, sempre! Memórias e histórias das
homossexualidades. 27 mai 2015. Disponível em https://memoriamhb.blogspot.
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COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatórios: textos temáticos (vol. 2).
Brasília: CNV, 2014
GARCIA, Rafael. Brasil foi o país que mais matou ativistas ambientais e
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https://oglobo.globo.com/brasil/meio-ambiente/noticia/2022/09/brasil-foi-o-
pais-que-mais-matou-ativistas-ambientais-e-lideres-comunitarios-em-dez-
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sumário 222
HOLANDA, Vitória. O casulo Dandara. Fortaleza: CeNe, 2019.
IBGE. Tábuas Completas de Mortalidade para o Brasil 2020 | Tábuas
completas de mortalidade em ano de pandemia de COVID-19 1. Nota
técnica n. 01/2021. Disponível em https://static.poder360.com.br/2021/11/
nota-tecnica-tabuas-de-mortalidade.pdf. Acesso em 15 nov. 2022.
LANZ, Letícia. O corpo da roupa: a pessoa transgênera entre a transgressão
e a conformidade com as normas de gênero. Uma introdução aos estudos
transgêneros. Curitiba: Transgente, 2015.
MARQUES, Daniel. Teatro de intervenção: um resgate necessário (o teatro de
revista e a política). Trans/Form/Ação, São Paulo, 24: 41-46, 2001.
MORANDO, Luiz. Les Gils é ter charme, touché! Albuquerque: revista de
história, vol. 13, nº 26, jul.-dez. 2021, p. 119-137. Disponível em https://
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PAOLI, Maria Célia. Memória, história e cidadania: o direito ao passado. O direito
à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992, p. 25-28.
PASCHOAL, Marcio. Rogéria: uma mulher e mais um pouco. Rio de Janeiro:
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SPARGO, Tamsin. Prefácio. In: GOMES, Aguinaldo Rodrigues & LION,
Antonio Ricardo Calori de. Corpos em trânsito: existências, subjetividades e
representatividades. Salvador: Devires, 2020, p. 31-33.
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ignorado. Revista Sala Preta, vol. 18, nº 1, 2018, p. 207-224. Disponível em
https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/138353/141514. Acesso
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Leandra Leal. Universo retrô. 26 de junho de 2017. Disponível em https://
universoretro.com.br/a-historia-por-tras-da-documentario-divinas-divas-de-
leandra-leal/. Acesso em 15 nov. 2022.
TREVISAN, João Silvério. São Paulo: a guerra santa do Dr. Richetti. Lampião
da Esquina, nº 26 julho de 1980, p. 18.

sumário 223
Seção 3

Seção
da Teoria Queer3
Aspectos teórico-metodológicos

Aspectos
teórico-metodológicos
da Teoria Queer
10
Capítulo 10

Dependência,
vulnerabilidade e
reconhecimento: ontologia
e filosofia política
em Judith Butler

Alipio De Sousa Filho

Alipio De Sousa Filho

Dependência,
vulnerabilidade
e reconhecimento:
ontologia e filosofia política
em Judith Butler
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.10
DEPENDÊNCIA ONTOLÓGICA
E VULNERABILIDADE HUMANA

Na obra da filósofa estadunidense Judith Butler, destaca-se uma


reflexão sobre os temas da dependência, vulnerabilidade e reconheci-
mento na existência humana que abordarei aqui como sendo a base de
seu pensamento filosófico e político. A reflexão da autora em torno dos
assuntos 1) da dependência do ser humano a um outro, 2) de nossa per-
manente vulnerabilidade, 3) das precariedades do viver (impostas pelos
poderes, sistemas de sociedade, relações sociais etc.) que aumentam
essa vulnerabilidade e que rebaixam a nossa existência, e, por último,
4) o assunto do necessário reconhecimento do “eu” por um “outro”,
como consciência da fatal interdependência humana e como consciên-
cia comprometida a superar a vulnerabilidade e a precariedade da vida,
tornam-se os fundamentos de uma ontologia e de uma filosofia política
que faz da autora uma filósofa de conceitos de grande força teórica e
pensadora de problemas sociais absolutamente incontornáveis hoje.

Seguindo suas reflexões, em diversos trabalhos, pode-se ver


que a autora não descarta “a hipótese – tanto hegeliana como freu-
diana – segundo a qual se chega a “ser” graças à dependência em
relação ao Outro” (BUTLER, 2004, p. 52; tradução nossa), e, direi, este
é um primeiro postulado de sua filosofia, para, em seguida, ampliar a
compreensão do fenômeno (ou dado) ontoantropológico da depen-
dência, ao trazer, para sua obra, as problemáticas austiniana, althus-
seriana e foucaultiana da constituição do ser humano como sujeito
social (ou simplesmente como “sujeito”) nos “atos de fala” (AUSTIN,
1990), na “interpelação ideológica” (ALTHUSSER, 1974) e no “dis-
curso” e suas “sujeições” (FOUCAULT, 2001): isto é, na subsunção à
linguagem. E é o assunto da linguagem que ocupa em grande parte
a filósofa, sendo seu objeto de análise em vários artigos e livros, mas
não como o fazem os filósofos da filosofia analítica da linguagem.
As considerações da autora sobre a linguagem inequivocamente a

sumário 226
situam no âmbito de uma filosofia política crítica para a qual a lingua-
gem, em sua dimensão ontológica, está “dividida em si mesma”, pois
ela é tanto o que “nos concede uma certa forma de existência social
e discursiva” como é o que “fecha, de um golpe, a possibilidade de
autonomia radical” (BUTLER, 2004, p. 52; tradução nossa).

Dependência, vulnerabilidade e linguagem passam a ser, então,


factualizações ontológicas com as quais Judith Butler analisa a interde-
pendência entre humanos e suas variadas consequências. A dependên-
cia do humano a um outro humano é ontológica porque lhe é constitu-
tiva: em sua carência fatal, necessita para ser de um outro humano que
o tome pela mão e faça-o ingressar na linguagem (da ordem) humana.
É ontológica porque é o caso de todos os seres humanos, não variando
em nenhum caso particular de suas aparições ônticoantropológicas. É o
caso geral do ser-humano-“em-si-mesmo”, embora “em-si-mesmo” não
exista ser humano algum, pois não existe o ser humano in natura49: o ser
humano só é sendo em sua existência, tal como na-e-pela linguagem
humana aprende a ser e passa a existir. É caso geral porque é dado inva-
riável do ser de uma espécie cujo modo-de(-vir-a-)ser e sua sobrevivên-
cia não são previamente assegurados por sua biologia (como o cavalo,
a baleia, a ave etc., que não necessitam aprender a ser, sempre-já são
a espécie), que, por tal carência, torna-se dependente de um outro (da
espécie) que poderá (e o que não é uma garantia sempre), tomando-o
pela mão, constitui-lo como mais um indivíduo do grupo humano. Sobre
essa singularidade da espécie, escreveu o psicanalista Jacques Lacan
(de quem também Butler é leitora): ao ser humano, “falta o que deno-
mino as vias pré-formatadas. O homem parte do nada” (LACAN, 1988,
p. 146). Parte do nada porque os seres humanos não têm asseguradas,
por direção biológica, desde o seu nascimento, as características de
uma espécie cujos atributos não são dados biologicamente mas cul-
turalmente, socialmente, adquiridos por aprendizagem e interiorização

49 Tratei demoradamente do assunto no meu Tudo é construído! Tudo é revogável! A teoria


construcionista crítica nas ciências humanas (2017). Nesse trabalho, pude abordar lon-
gamente todo esse tema da falta-a-ser do humano, por ausência de especialização e di-
reção biológicas próprias, o que torna o humano inteiramente dependente da linguagem
que efetivamente constitui o seu ser sui generis entre todas as espécies. Linguagem que
é, como tal, linguagem da ordem humana, linguagem cultural, social, histórica.

sumário 227
(inconscientização) de uma linguagem que é só dessa espécie e de
nenhuma outra e tendo que ser transmitida a todos que no grupo hu-
mano chegam. Se a linguagem animal (com seus códigos, percepções
etc.) é biologicamente dada (cada espécie tem sua linguagem própria e
não requer processos de aprendizagem como os humanos), o caso hu-
mano é o de uma espécie cujo desamparo (biológico, inicialmente, por
ausência de especialização, e, posteriormente, desamparo em outras
formas) atira seus indivíduos na dependência fatal a outros indivíduos
que possam lhes legar os atributos da espécie (se não tiver quem lhes
ponha de pé, não serão bípedes permanentes; se não tiver quem lhes
fale, não falarão; entre outros exemplos) e lhes transmitir a linguagem
humana e sua ordem. Para tudo isso, cabe lembrar, como tantos auto-
res fizeram, que apontar a carência fundamental do ser humano em ser
a priori à linguagem ou à cultura que o performa nada tem a ver com
antropocentrismo ou especismo, como erradamente concluem alguns,
mas tão somente reconhecer que o ser humano é também “o animal
humano”. É Butler, após tantos outros autores, quem também dirá: “o
animal humano é como tal um animal. Isso não é uma afirmação relativa
ao tipo ou espécie de animal que é o humano, mas o reconhecimento de
que a animalidade é uma condição prévia do humano, ou seja, que não
existe humano que não seja um animal humano” (BUTLER, 2010, p. 37).

Como assinala Butler, essa dependência ontológica ao outro


é “primária”, no sentido que está desde os começos da vida do ser
humano, domina sua infância, e também porque nunca o deixa: está
sempre ali na forma de uma necessidade fundamental de laços, elos,
ligações, relações, apoios, amparos, fazendo parte da vida do vivente
humano como algo incontornável, como algo que o acompanha sem-
pre. Dirá a autora: “o fato é que a infância constitui uma dependência
necessária que nunca deixamos totalmente pra trás” (BUTLER, 2006a,
p. 44; tradução nossa). Entre outras “formas fundamentais da depen-
dência humana”, lembra “o nascimento, a educação das crianças, as
relações de dependência emocional e de apoio, os laços geracionais,
a doença, a morte e o sepultamento” (ibidem, p. 150; tradução nossa).

sumário 228
No que, então, a experiência de ser (existir) como humano nos
expõe a todos os riscos dessa dependência ao outro: dependência
que gera uma “vulnerabilidade” também “primária”. Essa “vulnerabi-
lidade primária” (ibid, 2004, p. 52 et seq.; ibid, 2006a, p. 44 et seq.) é,
em primeiro lugar, “física”: entre outras de suas formas, estão o de-
samparo, o abandono, a precarização da vida, a agressão física, os
maus-tratos físicos, diversos tipos de violência. Quando pensamos,
por exemplo, em recém-nascidos, a vulnerabilidade é física no pla-
no primeiro da alimentação. Se não há quem os alimente, morrerão
como inanidos; ou, se não há quem os abrigue e proteja, poderão
morrer por condições ambientais extremas ou ataques de peçonhas.
Essa vulnerabilidade primária guardará para sempre, como pensa a
filósofa, uma “conexão metafórica” com outras formas da vulnerabili-
dade, entre as quais, por exemplo, o que ela chamará “vulnerabilida-
de linguística” (ibid, 2004, p. 15 et seq.; tradução nossa), susceptível
que somos aos proferimentos ofensivos, injuriosos ou caluniosos dos
discursos de ódio, estigmas, preconceitos, discriminação. Butler no-
meará “dano linguístico” ao efeito desses atos discursivos e chamará
a atenção para sua “dimensão somática”: “certas palavras ou certas
formas de dirigir-se a alguém operam não apenas como ameaças
contra seu bem-estar físico mas tais expressões preservam e amea-
çam o corpo” (ibidem, p. 21; tradução nossa). Mas ser vulnerável,
em várias outras dimensões corpóreas, que ligam sempre as muitas
vulnerabilidades à vulnerabilidade primária, é algo que, para a autora,
tem a configuração de uma “opressão vital”: “compreender a opres-
são vital é precisamente entender que não há maneira de desfazer-se
dessa condição de vulnerabilidade primária, de ser entregue ao con-
tato com o outro, inclusive quando – ou precisamente quando – não
há outro e não há apoio para nossas vidas (ibid, 2006a, p. 44).

Bem antes da autora, a antropologia, a sociologia, teorias


em psicologia e psicanálise e múltiplas filosofias abordaram essa
dependência ontológica do ser humano a um outro humano como
condição para que este possa advir inteiramente para a existência

sumário 229
e, necessariamente, para a vida em sociedade. O que, por essas
áreas do conhecimento, foi sempre apontado como também sen-
do a dependência do ser humano ao espaço de cultura, ao espaço
de sociedade. Lócus único do “habitat” humano, sua morada, onde
ocorre o aprendizado das normas culturais e sociais e dos signifi-
cantes e significados institucionalizados; o que chamamos, em seu
todo, apropriação da linguagem humana – quando também, simulta-
neamente, do humano a linguagem se apossa. Em incontáveis estu-
dos, autores repetiram essa tese, e que há um modo humano de ser
(genérico e particular) que só se aprende na transmissão cultural e
na subsunção na linguagem praticadas por cada grupo humano nos
diversos povos. Transmissão e subsunção realizadas desde muito
cedo na vida de todos e sem as quais não se constituirá o humano
almejado pelas culturas e sociedades – ou o ser humano, tão sim-
plesmente. A existência no mundo requer que o ser humano seja
capaz de apreendê-lo, situar-se nele, o que ocorre sob o domínio da
linguagem, isto é, o ser humano dela sendo sujeito. Com diferenças,
e cada um a seu modo, abordaram o tema autores como Norbert
Elias (1994), Althusser (1974; 1985), Bourdieu (1998; 1999), Foucault
(2001), entre outros. Assim é que um dos assuntos mais aborda-
dos e importantes das ciências humanas é o da socialização, pois
é como chamamos todo esse processo pelo qual o ser humano é
“transformado em membro de alguma sociedade” (como se dizia nos
velhos clássicos da antropologia e sociologia), seja pela aquisição
da linguagem humano-cultural a que todo humano é confrontado e
obrigado, seja por meio dos “modos de subjetivação” que “transfor-
mam o ser humano em sujeito” (FOUCAULT, 2001, p. 1042; tradução
nossa) ou “interpelações” (ALTHUSSER,1974) que os tornam “sujei-
tos ideológicos” de alguma identidade, categoria etc. Na socialização
das crianças, a chamada “socialização primária”, e na socialização
dos adultos, chamada “secundária” (BERGER; LUCKMANN 1985, p.
173 et seq.), dependência e vulnerabilidade aparecem entrelaçadas.
O desamparo – para autores como Freud, em suas duas formas,
“desamparo biológico” e “desamparo psíquico” (FREUD, 1976, p.179

sumário 230
et seq.) – gera dependência, que gera vulnerabilidade. Toda negli-
gência, abandono, ausência do outro ou uma ação sua agressiva,
torna-se, para o vulnerável ser humano, um dano potencial ou efetivo.
A vulnerabilidade do vulnerável ser humano (dependente do outro)
reclama amparo sempre (do outro). Amparo que requer o reconhe-
cimento do ser humano por um outro, concedendo-lhe o status de
“humano”, merecedor de atenção, cuidado, estima.

Então, por tal compreensão, Judith Butler dirá que


não há forma de proteger-se contra a vulnerabilidade primária nem
contra a susceptibilidade a essa chamada de reconhecimento
que concede existência. Não há forma de proteger-se contra a
dependência primária em relação a uma linguagem da qual não
somos autores com o objetivo de adquirir um status ontológico
provisório” (BUTLER, 2004, p. 52; tradução nossa).

Claro, a filósofa adverte, “seria um erro identificar as formas con-


tingentes que a dependência assume” em certas condições particula-
res “com o sentido final e necessário de dependência” (2018, p. 216).
O “sentido final e necessário da dependência” é a dependência primá-
ria a que todo ser humano sob ela nasce, que não deve ser igualada a
outras formas da dependência que surgem ou são produzidas na vida
por situações diversas, ainda que guardem relação com aquela depen-
dência originária. Entre outras formas contingentes da dependência,
Butler chama a atenção para as formas produzidas nas condições de
“vida precária”, nascidas nos contextos de violência, desigualdades e
práticas de poder “que ameaçam ou rebaixam nossa existência”. Aliás,
formas que podem ser todas elas admitidas como violência. Com dirá:
A violência é, sem dúvida, um rasgo de nossa pior ordem, uma
maneira pela qual se expõe a vulnerabilidade humana em re-
lação a outros humanos da forma mais terrível, uma maneira
pela qual somos entregues, sem controle, à vontade do outro, a
maneira pela qual a vida mesma pode ser borrada pela vontade
do outro” (BUTLER, 2006a, p. 42; tradução nossa).

sumário 231
Essa vulnerabilidade a que estamos expostos, alerta a auto-
ra, exacerba-se a partir de certas condições sociais e políticas que
a agravam: isto é, por sobre uma vulnerabilidade primária comum,
indivíduos e seus corpos podem experimentar a redobradura dessa
vulnerabilidade pela discriminação, exclusão, repressão, opressão,
guerra, ultraje, sob diversas formas. E quando e também porque essa
vulnerabilidade “pode ser a base para reclamar soluções políticas”
que se atenham à “própria vulnerabilidade corpórea em si mesma”
(ibidem, p. 42; tradução nossa). Afinal,
Em parte, cada um de nós se constitui politicamente em virtu-
de da vulnerabilidade social de nossos corpos – como lugar
de desejo e de vulnerabilidade física, como lugar público de
afirmação e de exposição. A perda e a vulnerabilidade pare-
cem ser a consequência de nossos corpos socialmente cons-
tituídos, sujeitos a outros, ameaçados pela perda, expostos a
outros e susceptíveis de violência por causa dessa exposição
(ibid, 2006b, p. 46; tradução nossa).

Porque certas condições sociais e políticas podem agravar a


vulnerabilidade, a filósofa enfatiza também que “existem formas radi-
calmente diferentes de distribuição da vulnerabilidade” no mundo (ibid,
2006b, p.58; tradução nossa): enquanto há corpos, vidas, pessoas e
povos que “estão altamente protegidos”, por outro lado, “outras vidas
não gozam de um apoio tão imediato e furioso, e não se qualificaram
como vidas que valem a pena” (ibidem, p. 58; tradução nossa). A obra
de Butler repetidamente traz os exemplos de gays, lésbicas e tran-
sexuais, mas não apenas; entre outros, aparecem também mulheres,
negros e grupos étnico-culturais diversos, que se veem “marcados por
violência não desejada contra seus corpos em nome de noções nor-
mativas do humano, uma noção normativa do que deve ser um corpo
humano” (ibidem, p. 59). Mesmo até “caem fora do humano”, estão
fora dos “marcos culturais” que pensam o humano, das definições do
“que é o humano”, conforme categorias epistêmicas que constituem
o que a autora nomeia uma “ontologia estabelecida” (ibidem, p. 59)
ou “disponível” (ibid, 2013, p. 171) nas nossas sociedades. Ontologia

sumário 232
como o modo de conceituar a realidade, ontologia como os conceitos
que a definem e governam-na e o que nela existindo é conceituado
e governado. É o que também chamamos senso comum, imaginário
social ou ideologia em seus efeitos como normas sociais e como os
modos como são constituídos e reproduzidos os indivíduos, as institui-
ções sociais, e como são compreendidos, aceitos ou negados.

As questões o que é o humano? Quem recebe as conside-


rações como “humano” e quem não as recebe, a partir de certas
representações sociais? Quem é tratado como ameaçando a “ordem
humana” com seus modos de ser? Quais vidas são consideradas
humanas? tornam-se interrogações importantes e cortantes na filoso-
fia de Judith Butler. Pois o assunto é central. Se nossas sociedades
continuarem a avaliar que apenas certos seres humanos merecem
ser considerados humanos, merecedores de amparo, respeito, esti-
ma social e, assim, reconhecimento “como um outro igual”, e outros
seres humanos não merecendo as mesmas considerações, e, pois,
sendo tratados como menos-humanos ou não-humanos, permanece-
remos legitimando atos de violência que põem em questão o direito
à própria existência daqueles que, por marcadores diversos (classe,
etnicidade, sexualidade, gênero, cultura, religião etc. ), sejam consi-
derados ilegítimos ou mesmo “irreais” como humanos.

Para Butler, a “esfera do humanamente inteligível” arrasta consi-


go contradições, injustiças, desigualdades, opressões, pois é definida
e circunscrita mediante conceitos, categorias, normas sociais que tanto
incluem como excluem. Enquanto algumas delas protegem e incluem,
outras desamparam e excluem (os mesmos) seres humanos. Categorias
de “humano” excluem aqueles a quem deveriam ser descritos e prote-
gidos pelos seus próprios termos. Assim, chamando a atenção para a
relação entre normas sociais, ontologia e categorias epistêmicas com as
quais olhamos e conceituamos o outro e a realidade, a autora assinala:
“a produção normativa da ontologia produz o problema epistemológico
de apreender uma vida, o que, por sua vez, dá origem ao problema ético

sumário 233
de saber o que há que reconhecer, ou, melhor, o que há que assegurar
contra a lesão e a violência” (ibid, 2010, p. 16).

Em vista tudo isso, a autora assinala que “não se trata simples-


mente de fazer ingressar os excluídos dentro de uma ontologia esta-
belecida, senão de uma insurreição em nível ontológico” (ibid, 2006b,
p. 59) que torne possível uma “abertura crítica de perguntas” que pos-
sam questionar o que é a realidade, como se poderia reconstruir a
realidade, a relação entre violência e as vidas consideradas irreais ou
não-humanas, os limites das normas e dos discursos sociais que es-
tabelecem as fronteiras da inteligibilidade humana (ibidem, p. 59-60).
Insurreição no modo de conceber a realidade humana, o ser humano,
a vida humana, para que se possa subverter e ampliar marcos culturais
e normas sociais que reduzem o que é o humano, que superados pos-
sam, por seus próprios termos, assegurar que vidas humanas não se-
jam excluídas, violentadas, assegurar que “todas as vidas importam”.

INTELIGIBILIDADE, RECONHECIBILIDADE
E RECONHECIMENTO: “EXISTIRMOS,
A QUE SERÁ QUE SE DESTINA?”

“O estado de reconhecimento é a existência”, escreveu Hegel


(1984, p. 185; tradução nossa). Para o filósofo, o estado de reconheci-
mento tem início com o “ser-para-si” e estende-se como o movimento
provocado pelo desejo de “valer ante os outros”: “agora intuo, pois,
meu estado de reconhecimento como existência e minha vontade é
este valer ante os outros” (idibem, p. 186, tradução nossa). O que
são “individualidades plenas” em recíproca tensão (no “estado de
natureza” hobbesiano), encontrando-se elas mesmas como imedia-
tas reciprocidades, necessitam evitar mútuas exclusões a priori, com
negociações, normas, contratos de reconhecimento mútuo de suas
vontades. Tem cada uma que “intuir-se na outra” como vontades de

sumário 234
reconhecimento, pois não pode haver do si-mesmo, em sua vontade
de “tomar posse do que queira”, ignorar que apossar-se das coisas
“tem por significado a exclusão de um terceiro”. O reconhecimento
funciona como um “contrato” entre indivíduos com vontade (ibidem,
p. 174-192). Na filosofia moderno-contemporânea, o tema do reco-
nhecimento tem a abordagem de Hegel (aqui, simplificada) como um
ponto de partida. Para o filósofo Axel Honneth,
Com essa reinterpretação do modelo hobbesiano, Hegel in-
troduz uma versão do conceito de luta social realmente ino-
vadora, em cuja consequência o conflito prático entre sujeitos
pode ser entendido como um momento do movimento ético no
interior do contexto social da vida; desse modo, o conceito re-
criado de social inclui desde o início não somente um domínio
de tensões moral mas abrange ainda o medium social através
do qual elas são decididas de maneira conflituosa (HONNETH,
2003, p. 48; grifo do autor).

A premissa geral pensada por Hegel não escapou às aborda-


gens do tema por diversos autores. Sem o reconhecimento de si e
do outro que reúna individualização e, simultaneamente, interação so-
cial e, pois, formas coletivas de reconhecimento comum, a chamada
“experiência do reconhecimento intersubjetivo” (HONNETH, 2003), na
qual diversas etapas empíricas da formação dos indivíduos aparecem
e que ganham formas em instituições sociais, não teríamos as possibi-
lidades do viver humano coletivo em sociedades complexas.

Dessa premissa, com posteriores contribuições vindas de análi-


ses complementares da sociologia e psicologia sobre a formação social
dos indivíduos, Axel Honneth enxerga um ponto de partida para uma
teoria do reconhecimento como “teoria social de teor normativo”, que
entende que “a reprodução da vida social se efetua sob o imperativo
de um reconhecimento recíproco porque os sujeitos só podem chegar
a uma autorrelação prática quando aprendem a se conceber, da pers-
pectiva normativa de seus parceiros de interação, como seus destina-
tários sociais” (ibidem, p. 155). Mas, pela mesma premissa, observa-se
que formas de desrespeito, rebaixamento e ofensa ao outro podem se

sumário 235
tornar experiências negativas de reconhecimento, isto é, reconhecimen-
to denegado, recusado. Conceitos negativos não só podem se tornar
“estorvos à liberdade de ação dos sujeitos ou lhes infligir danos”, como
podem configurar “um comportamento lesivo pelo qual as pessoas são
feridas numa compreensão positiva de si mesmas, que elas adquiriram
de maneira intersubjetiva” (ibidem, p. 213).

De tudo isso, podemos dizer que, se o outro, em sua indivi-


dualidade e vontade, não tiver também a medida de sua ação, será
sempre, para manter os termos hegelianos, um excludente e o outro,
um excluído. O reconhecimento corresponde à própria existência do
ser humano, porque, sem o reconhecimento do outro, de quem pode
ganhar proteção, apoio, amor e cuidado indiferenciados, o ser humano
cai no vale fatal do desamparo: o que são dependência e vulnerabilida-
de ontológicas tornam-se desproteção e risco de viver. Embora Butler
lembre que “viver é sempre viver uma vida que está em perigo desde
o princípio e que pode ser posta em perigo ou eliminada de repente
desde o exterior e por razões que nem sempre estão sob o nosso con-
trole” (ibid, 2010, p. 52; tradução nossa).

Mas esse entendimento, que é ainda tão geral, ganhou observa-


ções sobre os obstáculos da oferta igualitária de reconhecimento em
sociedades divididas em classes e plenas de desigualdades sociais
devidas a sexo, gênero, origem étnico-cultural, religião etc. E em virtu-
de de representações sociais ideológicas e de produção de status que
configuram categorias de (in)inteligibilidade e reconhecibilidade dos
indivíduos distribuídos nessas desigualdades; categorias cujos efeitos
podem corresponder ao reconhecimento ou à sua negação.

Entre outras contribuições ao tema que poderia destacar, a filó-


sofa Nancy Fraser observou que, em nossas sociedades, as práticas
de reconhecimento obedecem a “padrões institucionalizados de valo-
ração cultural” (FRASER, 2007) em função de cujos efeitos os indiví-
duos são posicionados em escalas de status sociais que, para certos
casos, correspondem à quebra na oferta de reconhecimento. Estima,

sumário 236
respeito e valor decorrem de representações sociais e valorações ideo-
lógicas que incluem ou excluem, valorizam ou rebaixam a cada um na
vida social, produzindo reconhecimento ou o “não reconhecimento”.
Como observou a autora: “o não reconhecimento […] significa subor-
dinação social no sentido de ser privado de participar como um igual
na vida social” (ibidem, p. 107; grifos da autora). E como complemen-
ta: “os padrões institucionalizados de valoração cultural constituem
alguns atores como inferiores, excluídos, completamente “os outros”
ou simplesmente invisíveis, ou seja, como menos do que parceiros
integrais na interação social, então, nós podemos falar de não reco-
nhecimento e subordinação de status” (FRASER, 2007, p. 109).

Butler, por sua vez, acrescenta à reflexão sobre o assunto algo


decisivo, e condição ontológica primeira, ao lembrar que, para ser re-
conhecido, o indivíduo precisa ser antes reconhecível, isto é, inteligível
na linguagem (cultural, social, política, de uma época): o que se é? Que
ser é este? Está nomeado? Para a autora, a identidade do “ser” do indi-
víduo é uma função do circuito reconhecibilidade-reconhecimento, sua
existência mesma não é anterior a esse circuito. O que isso quer dizer?
Como escreveu: “Se não somos reconhecíveis, então, não é possível
manter nosso próprio ser e não somos seres possíveis; nos foi anulada
essa possibilidade” (ibid, 2006a, p. 55; tradução nossa).

Assim, Butler lembrará que “a reconhecibilidade precede o re-


conhecimento” (ibid, 2010, p. 19; tradução nossa). A reconhecibilidade
caracteriza as próprias condições construídas por categorias, conven-
ções e normas que produzem o reconhecimento, que fazem
que um humano se converta em um sujeito reconhecível, ainda
que não sem falibilidade ou sem resultados não antecipados.
Estas categorias, convenções e normas que preparam ou esta-
belecem a um sujeito para o reconhecimento, que induzem a um
sujeito deste gênero, precedem e fazem possível o ato do reco-
nhecimento propriamente dito (ibidem, p. 19; tradução nossa).

sumário 237
Porque são convenções, normas ou uma linguagem da socia-
bilidade e, pois, um a priori histórico-social que antecede o indivíduo,
o problema da reconhecibilidade está imediatamente conectado ao
problema da inteligibilidade. Se o indivíduo não pode ser quem é sem
recorrer à sociabilidade de normas que lhe precedem e lhe excedem,
diz Butler (2006a, p. 56), e, pois, sem que possa deixar de se haver
com as concepções do que é a vida, o que é ser humano – conforme
normas e categorias de reconhecibilidade e reconhecimento –, para
poder resultar reconhecível, terá que se constituir inteligível nessas
mesmas normas, apoiadas que são em esquemas de inteligibilidade
(que, como tais, são falhos, incompletos, cambiantes). Um circuito ao
qual o indivíduo se vê preso, ainda que, como sugere a autora, “seria
um erro entender o funcionamento das normas de maneira determi-
nista” (ibid, 2010, p. 17). Como dirá: “assim como as normas da reco-
nhecibilidade preparam o caminho ao reconhecimento, os esquemas
da inteligibilidade condicionam e produzem normas de reconhecibili-
dade” (ibidem, p. 21). Desse circuito os indivíduos parecem não poder
escapar, mas o que é apenas uma primeira impressão, pois, como
repetidamente assinala em suas reflexões, Butler aponta que “as nor-
mas mesmas podem desconsertar-se, mostrar sua instabilidade e
abrir-se à ressignificação” (ibid, 2006a, p. 48; tradução nossa); são
variáveis e históricas, independentemente do seu caráter apriorístico
como condição de aparição dos sujeitos sociais (ibid, 2010, p. 19).

Outro importante aspecto para o qual Butler chama a aten-


ção é que “a reconhecibilidade [...] não é uma qualidade ou um
potencial do indivíduo humano” (2010, p. 19; tradução nossa). Isso
posto, é importante entender que a autora não nega a existência
do reconhecimento por “individualidade” (se é que se pode fala
assim...), mas o que pretende é denunciar que “as normas já exis-
tentes atribuem reconhecimento de maneira diferencial” (ibidem,
p.20). Isto é, de maneira não igualitária e não democrática. Nossas
sociedades negam reconhecimento aos indivíduos “não inteligíveis”

sumário 238
para ou nas categorias epistêmicas, convenções sociais, normas
sociais. A existência desses indivíduos é questionada, conferida,
estranhada ou recusada em função de não receberem a tradução
da reconhecibilidade, independente que em cada um deles habite
potencial, qualidade, habite um ser humano, mas cuja existência
não se reconhece porque nos esquemas precedentes e atuantes
da inteligibilidade não se tornam cognoscíveis (Ibidem, p. 20-21).

Eis, pois, porque Butler pensará em mudança dos termos da


reconhecibilidade para que se possa conceder reconhecimento igua-
litário e democrático nas sociedades: “o que podemos fazer para
mudar os termos mesmos da reconhecibilidade, com o fim de pro-
duzir alguns resultados mais radicalmente democráticos?” (ibidem,
p. 20). O que implica necessariamente mudança nos esquemas de
inteligibilidade. Estes próprios contestados e contestáveis pelo fato
mesmo que, embora sendo produzidas sob as mesmas normas, as
vidas de todos não resultam as mesmas, existindo sempre “um resto
de vida – suspensa e espectral – que descreve e habita cada caso
de vida normativa” (ibidem, p. 22; tradução nossa). Estamos diante
do fato da pluralidade humana, pluralidade dos vivos, pluralidade da
vida dos vivos. Vidas que nascem do desejo de viver, enquanto são
simultaneamente expressão do fracasso das normas em produzidas
todas as vidas. Mas, fora das normas da inteligibilidade e da reconhe-
cibilidade, a vida (de fato, vidas) torna-se ameaçada, pois, “ainda que
possa se apreendida como “viva”, nem sempre é reconhecida como
vida” (ibidem, p. 22; tradução nossa). E como arremata:
Uma figura viva fora das normas da vida não apenas se torna o
problema a ser administrado pela normatividade, como parece
ser isso mesmo o que a normatividade está obrigada a repro-
duzir: está viva, mas não é uma vida. Cai fora do marco forneci-
do pelas normas, mas apenas como um duplo implacável, cuja
ontologia não pode ser assegurada mas cujo status de ser vivo
está aberto a apreensão (ibidem, p. 22).

sumário 239
Porém, atenta às dinâmicas das transformações sociais, Butler
lembrará também que o “marco” das normas se rompe, pois não con-
segue nem manter o que ele contém conjuntizado como seu conteú-
do, nem consegue evitar de ser ele próprio rompa com seu contexto;
“rompimento perpétuo” ou “este autorroper-se” torna-se destino do
próprio marco. O que produz “tanto a eficácia do marco como sua
vulnerabilidade à inversão, a subversão e, inclusive, a sua instrumen-
talização crítica” (ibidem, p. 26).

Todavia, ocorre-me aqui de indagar: até que ponto a inteligibi-


lidade se torna suficiente para o reconhecimento? Alguém que seja
“inteligível” e “cognoscível” para uma sociedade, isto é, que tenha à
sua disposição “esquemas” e categorias sociais de “enquadramen-
to” e que será, por isso, “reconhecível”, terá simultânea e necessa-
riamente o reconhecimento merecido? Certas categorias de inteligi-
bilidade não são elas próprias muitas vezes promotoras de negação
de reconhecimento ou reconhecimento errôneo? A cognoscibilidade
é suficiente para uma reconhecibilidade positiva que anteceda ao
reconhecimento positivo ou autêntico?

Para essas questões, penso ser importante recuperar as análi-


ses de Nancy Fraser, que apresentam os padrões institucionalizados
de valoração cultural como obstáculos ao reconhecimento, na me-
dida em que podem produzir rebaixamento de status, desrespeito e
degradação de certos sujeitos sociais, mesmo quando inteligíveis,
reconhecidos. Promovendo a injustiça social da negação de reco-
nhecimento igualitário na interação social. Em nossas sociedades,
o exemplo de gays, lésbicas e transexuais é bastante evidente a
esse propósito, pois, ainda que sejam reconhecidos em categorias
sociais de inteligibilidade – já não são mais os bichos estranhos
no jardim das espécies –, embora uma “ontologia disponível” ainda
continue a insistir na patologização de suas vidas, ainda assim, não
recebem autêntico reconhecimento social e, em muitos casos, nem
mesmo o reconhecimento jurídico.

sumário 240
VULNERABILIDADE E PRECARIEDADE
HUMANAS COMUNS: CORPOS QUE
VIVEM, CORPOS QUE IMPORTAM,
CORPOS EM ALIANÇA

No pensamento de Judith Butler, o assunto da vulnerabilidade


retorna para destacar não mais o seu sentido ontológico, como ini-
cialmente aqui já pude expor, mas para destacar “a vulnerabilidade
como uma forma de ativismo ou como aquilo que é de algum modo
mobilizado em formas de resistência” (BUTLER, 2018, p. 137). Um
tema que, na autora, não vem só, pois traz consigo igualmente o da
“precariedade” como também atrelado a formas de resistência. As lu-
tas nas insurgências populares, associações em protestos de rua etc.
são concebidas por ela como parte de reivindicações e lutas coletivas
contra a “vida precária”, como lutas por proteção de direitos e, pois, de
proteção da vulnerabilidade da vida de cada um e de todos.

A leitura de Butler sobre a prática de resistências compreende os


indivíduos em lutas como “corpos precários” em associação (assem-
bleias, protestos) e como atos de corpos que se apoderam do espaço
público para uma inscrição na cena pública que é também exercício do
“direito de aparecer” para reivindicar uma vida não precária. Como dirá:
um direito plural e performativo de aparecer, um direito que afir-
ma e instaura o corpo no meio do campo político e que, em
sua função expressiva e significativa, transmite uma exigência
corpórea por um conjunto mais suportável de condições eco-
nômicas, sociais e políticas, não mais afetadas pelas formas
induzidas de condição precária (BUTLER, 2018, p. 17).

Como se pode depreender pela leitura das análises da autora em


obras como Vida precária (2006b) e Corpos em aliança e a política das
ruas (2018), percebendo que suas vidas são “precárias” como efeitos de
poder de sistemas de sociedade que lhes negam reconhecimento e lhes
submetem a injustiças, tornando-se, pois, vidas que, permanentemente,

sumário 241
estão expostas ao dano, à degradação e à violação, em âmbitos os mais
diversos (da alimentação à moradia, da saúde aos direitos de participa-
ção política), os “corpos precários” buscam construir no espaço público
possibilidades para algum nível de agência política.

Para Butler, a “política das ruas” dos corpos que denunciam


suas exclusões e precarização na vulnerabilidade comum é também
estratégica no sentido de declarar a ilegitimidade da sociabilidade es-
tabelecida. Sociabilidade excludente. Sociabilidade que nega reconhe-
cimento a um amplo conjunto de vidas, corpos, indivíduos, pessoas.
Assim, as manifestações e ocupações de ruas, congregando corpos
e vidas vulneráveis e precarizadas, não apenas constituem uma for-
ma de reivindicar condições de vida contrárias à precariedade, elas
configuram uma ação construtora de uma “esfera do aparecimento”
(ibidem, p. 43 et seq.) de corpos e lutas políticas que, como tais, são
“ação performativa” (realizadora, criadora) de denúncia e resistência:
eis porque a autora fala de “teoria performativa da assembleia” (ibi-
dem). As próprias ações coletivas de rua seria essa teoria em ato. Com
os argumentos da autora, também é possível concluir que ela aponta
para o fato que as vidas e corpos precarizados e “desimportantes” não
estão, por isso, destituídos de toda agência nem que estão definitiva-
mente banidos do espaço público e da política. Como esclarece:
Tentei sugerir que a condição precária é a condição contra a
qual vários novos movimentos sociais lutam; esses movimen-
tos não buscam a superação da interdependência ou mesmo
da vulnerabilidade enquanto lutam contra a precariedade. Ao
contrário, o que buscam é produzir as condições nas quais a
vulnerabilidade e a interdependência se tornem vivíveis. Essa é
uma política na qual a ação performativa toma uma forma cor-
poral e plural, chamando a atenção crítica para as condições de
sobrevivência corporal, persistência e florescimento dentro do
enquadramento da democracia radical (BUTLER, 2018, p. 239).

Uma nota aqui se torna importante. Butler não deixa de ob-


servar: “não posso dizer que toda reunião de corpos nas ruas seja
uma boa coisa” (ibidem, p. 138). Os exemplos de gangues racistas,

sumário 242
os ataques violentos a gays, lésbicas e transexuais, grupos de lin-
chamento e, poderia acrescentar, as movimentações de massa da
extrema-direita demandando golpes e regimes autoritários, como vi-
mos recentemente no Brasil e em outras partes, são alguns exemplos
que corroboram com a reflexão da autora. Como assevera: “as as-
sembleias não são intrinsecamente boas nem intrinsecamente ruins,
mas assumem valores diferentes, dependendo do motivo pelo qual
se reúnem e de como essa reunião funciona. [...] Podemos no mínimo
dizer que as manifestações que têm como objetivo concretizar a justi-
ça e a igualdade são dignas de louvor” (ibidem, p. 138-139).

Por fim, cabe ressaltar, o reconhecimento de uma vulnerabilidade


humana comum a todos, assim como a precariedade como também
aspecto comum da vida humana – “a precariedade como um aspecto
do que tem vida”, como a autora nos faz lembrar –, não corresponde,
na ontologia butleriana, à tese que as normas de reconhecimento de-
vam se basear na vulnerabilidade e precariedade sem buscar, ao mes-
mo tempo, “fortes compromissos normativos de igualdade” e “uma
universalização mais enérgica dos direitos” (idib, 2010, p. 50).

Duas questões, por fim, é preciso destacar. A primeira: a com-


preensão da vulnerabilidade comum e da precariedade comum hu-
manas leva Butler a assinalar que luta por reconhecimento não é luta
individualista, narcisista, egoísta:
não somos entidades ilhadas em luta por reconhecimento, [...]
somos parte de um intercâmbio recíproco [...]. Pedir reconheci-
mento ou oferecê-lo não significa pedir que se reconheça o que já
se é. Significa invocar um devir, instigar uma transformação, exigir
um futuro sempre em relação com o outro (ibid, 2006b, p. 71-72).

A segunda: na filosofia política de Butler, o caráter ontológico


comum da vulnerabilidade e da precariedade da vida humana tor-
na-se razão para a defesa de uma ética que, constatando-as e re-
conhecendo-as, busca convidar nossas sociedades a superá-las de
maneira ampla e contínua em normas de reconhecimento universal e
radicalmente democráticas.

sumário 243
Afinal, “a vida exige apoio e umas condições capacitadoras para
poder ser uma vida vivível” (ibid, 2010, p. 40).

REFERÊNCIAS
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sociais. São Paulo: Ed.34, 2003
LACAN, Jacques. O seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

sumário 245
11
Capítulo 11

Diferença sexual e
abjeção: qual o gênero das
negras escravizadas?

Berenice Bento

Berenice Bento

Diferença
sexual e abjeção:
qual o gênero das negras
escravizadas?

DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.11
INTRODUÇÃO

Em algum momento da pesquisa, pode acontecer um tipo de


paralização. Conclui-se que os conceitos com os quais estamos tra-
balhando não funcionam. A noção de utilidade (funcionar/não funcio-
nar) pode nos levar a perguntar para que servem definições fecha-
das. Já escutei que são ferramentas, afirmação geralmente apoiada
em uma conversa de Deleuze e Foucault (Foucault, 1989). Um con-
junto de conceitos seria uma ferramenta, um dispositivo. Distancian-
do-me dessas metáforas funcionais, diria que definições de uma de-
terminada realidade compõem uma narrativa acadêmica não porque
contribuem para unir peças fragmentadas, mas por nos conduzirem a
produzir novas imagens e nos levarem a fazer outras perguntas antes
inexistentes. Mais do que nos ajudar a chegar a uma conclusão, po-
dem nos auxiliar a enxergar outros caminhos, criar novos problemas,
fazer-nos dobrar e redobrar o pensamento. É você, apenas você,
quem irá construir imagens, sons, cores a partir de uma articulação
original de depoimentos, filmes, poemas, textos acadêmicos e histó-
ricos. Ainda que a descrição esteja ali disponível para todos/as, cada
pesquisador/a irá produzir novas e inusitadas cenas.

Há momentos, no entanto, que determinado conceito distancia-


-se tão profundamente daquilo a que se está tentando responder, que o
melhor seria deixá-lo quieto e buscar novas inspirações. Quando escrevi
minha dissertação de mestrado, o conceito de gênero, nos termos pro-
postos por Joan Scott (1990), foi importante para abrir minha escuta aos
homens heterossexuais que viviam determinados conflitos à masculini-
dade hegemônica (Bento, 2013). Naquele momento, não problematizei
a dimensão binária, tampouco a heterossexualidade como a norma re-
gulatória de corpos e desejos.

A importância de um determinado aparato conceitual está na


possibilidade que ele nos oferece de habilitar dimensões da nossa
observação ou de obliterá-las. Esse era um dilema inicial nas minhas

sumário 247
pesquisas sobre gêneros dissidentes. Lembro-me de que, em uma
conversa com uma historiadora, eu apontava os limites da concepção
de gênero de Joan Scott, uma vez que a diferença sexual entrava em
suas formulações como um dado e não como um problema. Essa cris-
talização da diferença sexual me levaria para os braços das teorias que
analisam as existências trans como transtorno. O argumento de minha
colega historiadora, em defesa do conceito, foi a sua utilidade em es-
tudos históricos. Naquele momento, esse argumento parece-me coe-
rente. No meu artigo “Gênero, uma categoria útil de análise?” (BENTO,
2022), no entanto, tento refutar esse argumento e aponto como a ca-
tegoria gênero em Scott está atravessada por uma visão eurocêntrica.
Dos exemplos que ela aciona à ausência da categoria raça, todo o
conceito pode servir exclusivamente para abordagens que invisibilizam
a existência de disputas internas aos gêneros, inclusive para corpos
que, embora tenham aparência de um determinado gênero, não são
reconhecidos como seus membros. A longa luta das mulheres negras
tem sido pelo reconhecimento de suas identidades de gênero, vincu-
lando-se historicamente ao passado das mulheres negras escraviza-
das. Entre os pontos que constituem essa agenda, destaca-se o direito
à maternidade. Ou seja, não basta compartilhar o mesmo campo do
dimorfismo sexual para que haja uma correspondência com o reco-
nhecimento ontológico, conforme tentarei discutir ao longo do artigo.

As concepções de Scott foram abandonadas na pesquisa sobre


o dispositivo da transexualidade (Bento, 2017a). Nesse novo contexto,
as formulações de Judith Butler (2003) e de outros/as teóricos/as trans-
viades (Bento, 2017b) me pareceram mais apropriadas, uma vez que
o binário alicerça-se em supostas estruturas biológicas, entra na cena
da reflexão não como um dado preexistente, mas como um problema
que merecia ser pensando e desconstruído.

Em um esforço para compilar as diversas concepções sobre


gênero, propus uma sistematização dos debates teóricos internos aos
estudos de gêneros (Bento, 2017a). Sugeri três tendências explicativas

sumário 248
para os processos constitutivos das identidades de gênero, que nomeio
de universal, relacional de dois e plural. Essas perspectivas foram apre-
sentadas por meio de uma incursão histórico-teórica e o diálogo foi de-
senvolvido a partir de obras que considerei referências: as obras de Si-
mone Beauvoir (universal), Joan Scott (relacional de dois) e Judith Butler
(plural). Esse arranjo, no entanto, não obedeceu a qualquer intenção
de montar uma linha cronológica, uma história dos estudos de gênero.
Essas perspectivas seguem coabitando o mundo das teses, das dis-
sertações, dos movimentos sociais e das políticas públicas. No âmbito
das políticas de Estado, ainda se nota certa primazia da concepção uni-
versal, embora haja uma considerável problematização dessas políticas
por feministas que propõem políticas públicas com viés interseccional.

Naquela incursão teórica, o principal objetivo era apresentar o


porquê dos estudos queer terem sido eleitos como suporte teórico que
me ajudaram a interpretar o dispositivo da transexualidade. Apontava
que, tanto na primeira quando na segunda perspectivas (“universal” e
“relacional de dois”), a sexualidade, o gênero e a subjetividade não fo-
ram pensadas fora de uma relação binária. São os estudos queer que
apontarão o heterossexismo das teorias feministas e possibilitarão, por
um lado, a despatologização de experiências identitárias e sexuais até
então interpretadas como “problemas individuais” e, por outro, dedi-
carão uma atenção especial às performances que provocam fissuras
nas normas de gênero. Essa perspectiva teórico-metodológica foi (e
continua sendo) fundamental nas disputas com concepções que ne-
gam direitos e reconhecimento aos sujeitos que não estariam agindo
de acordo com os imperativos biológicos e que são submetidos ao
dispositivo da patologização e criminalização50.

A potência dos estudos queer apresenta sua fragilidade quando


interpreta o funcionamento das normas de gênero e da heteronormati-
vidade tão somente pelo gênero e/ou sexualidade. A solução seria nos

50 Para informações sobre os países em que as sexualidades e gêneros dissentes são con-
siderados crimes, cuja pena pode variar da prisão à pena de morte, acessar: https://www.
ilga-europe.org/.

sumário 249
movermos para abordagens analíticas que apostam na intersecciona-
lidade. No entanto, aqui se instaura um outro nó porque, ao se propor
a articulação de identidades para complexificar a análise, se realiza
essa operação por justaposição, como se as camadas de opressão,
ao serem combinadas por um hífen, fossem suficientes para descrever
as posições de exclusão e vulnerabilidades que se ocupa nas estrutu-
ras e estratificações sociais. Como entender que há corpos nos quais
as categorias que estamos articulando em nossas análises não os al-
cançam, ainda que se tenha a interseccionalidade como um pressu-
posto metodológico? Seria possível acionar esses marcadores como
“camadas que se sobrepõem” para interpretar níveis diferenciados de
desumanização para corpos construídos como abjetos?

A proposta metodológica interseccional, nos termos proposto


por Crenshaw (2002), tem sua validade nas lutas por reparação e jus-
tiça na esfera do Estado. No entanto, as identidades cristalizadas e
sobrepostas terminam por não elucidar a razão pela qual há padrões
diferenciados de reconhecimento de determinadas populações.
A inclusão de um marcador não deslocará um corpo da categoria de
oprimido para abjeto?

Em 2018, iniciei uma imersão nos debates que aconteceram no


Congresso Nacional em 1871 em torno da proposição que dispunha
sobre a abolição indireta da escravidão. O projeto de lei, encaminha-
do pelo Imperador Dom Pedro II, determinava (entre outros pontos)
que os filhos e as filhas das mulheres escravizadas nasceriam livres a
partir da promulgação da lei que passou a vigorar em 28 de setembro
de 1871. Inicialmente, o objetivo da pesquisa era entender as estra-
tégias discursivas acionadas pelos parlamentares para defender ou
atacar o projeto. O dilema inicial em torno do qual estive às voltas foi
entender o que aqueles deputados e senadores estavam significan-
do quando discursavam sobre o “útero da escrava”. Qual o conceito
poderia me ajudar a entender as cenas continuadas de produção
da abjeção das mulheres negras escravizadas e, por outro lado, os

sumário 250
discursos que anunciavam certa valorização desses mesmos corpos
por parlamentares defensores do projeto51?

No artigo “Gênero, uma categoria útil de análise?” (BENTO, 2022)


esboço a impossibilidade de se compreender o lugar das mulheres ne-
gras escravizadas na estrutura social naquele momento (com profun-
das reverberações e continuidades no presente), acionando exclusiva-
mente a categoria gênero. O desafio, portanto, é dar sentido conceitual
a uma perspectiva interseccional não justaposicional que se baseia no
pressuposto de que bastaria amalgamar raça, gênero, sexualidade, ge-
ração, nacionalidade, religião (para citar apenas alguns dos marcado-
res da diferença e desigualdade social), para se chegar a uma análise
teórico-política complexa. Essa justaposição tem pouca capacidade de
desestabilizar o fundamento de sustentação das políticas de exclusão
do Estado, uma vez que o tutano dessas políticas, a essencialização
das populações, não entrem como elemento dos embates políticos.
Assim, se eu digo “mulher negra escravizada” se supõe, na perspecti-
va da interseccionalidade-por-adição, que bastaria afirmar que os três
marcadores sociais da diferença e da desigualdade (mulher = gênero;
negra = raça; escravizada = condição ontológica) combinados posi-
cionam essa população no nível mais baixo das estruturas sociais. E
aqui está o impasse dessa concepção e que pretendo desenvolver: há
termos nessa operação que, quando postos um ao lado do outro, ter-
minam por mudar a “natureza” do arranjo hifenizado. Não existe mulher
negra escravizada. Seguimos usando-o pela precariedade da língua.
Mulher produz uma falsa identificação entre todas as mulheres, no en-
tanto, “negra escravizada” termina por lhe retirar esse reconhecimento

51 Ariza (2021) aponta como parlamentares defensores do projeto de lei “ventre livre” irão apre-
sentar uma nova interpretação para a maternidade entre as mulheres negras escravizadas,
passando a atribuir qualidades antes só reconhecidas às mulheres brancas, a exemplo da
bondade, abnegação em favor do bem-estar dos filhos e das filhas. No entanto, antes de
1871, no contexto do debate sobre o tráfico negreiro (na década de 1820), se pode observar
que há textos que apresentam preocupações em relação ao cuidado das mulheres escravi-
zadas grávidas e com alta taxa de mortalidade infantil entre seus/suas filhos/filhas (Taunay,
2001). Nesse momento, há uma proto-valorização da maternidade negra.

sumário 251
ontológico52. Se é alterado um dos termos desse arranjo, altera-se a
totalidade. As múltiplas formas de se definir gênero não seriam mo-
dalidades do gênero, mas seria ela mesma outra substância53. Talvez
se possa argumentar que eu esteja acionando uma experiência que
está registrada no passado para apontar os limites de se utilizar meto-
dologicamente interseccionalidade-por-adição na contemporaneidade.
No entanto, as continuidades entre passado e presente seguem mo-
tivando compreensões e agendas diferenciadas entre os feminismos.

Os objetivos gerais do artigo são: 1) problematizar a concepção


de interseccionalidade-por-adição; 2) apontar como a teoria da perfor-
matividade pode nos ajudar a compreender a relação entre os corpos
livres e escravizados. Será na articulação do conceito de performativida-
de e da metodologia interseccional não justa posicional que se encontra
a minha aposta na possibilidade de interpretar o lugar que as mulheres
negras escravizadas ocupavam na estrutura social. Esses objetivos ge-
rais serão sustentados por três discussões: 1) como a diferença sexual
produziu uma falsa interpretação de que mulheres livres e negras escra-
vizadas habitavam o mesmo mundo ontológico do gênero. Aqui, vou
apresentar a “honra” como atributo diferenciador entre o mundo das
mulheres livres e das escravizadas; 2) retomarei o texto de Casa Grande
& Senzala, de Gilberto Freyre, lendo-o como um dispositivo intelectual
que contribui para produzir a representação de que as mulheres da casa
grande e as negras da senzala, embora com certas diferenças, seguiam-
-se ocupando na ordem de gênero os lugares reservados ao feminino;
3) movendo-me da vida privada para a esfera do Estado, apresentarei
como, nesse âmbito, mulheres livres transitavam no âmbito da biopolíti-
ca e as escravizadas na esfera da necropolítica. Essa discussão estará
assentada na análise dos Anais do Congresso Nacional no ano de 1871.

52 Não tenho como objetivo discutir a ficção das ontologias nesse artigo. Quando me referir ao
caráter ontologizante do gênero, distancio-me de concepções que pensam a constituição
do ser (nesse caso, o ser generificado) como uma substância. Dessa forma, aproximo-me
das discussões sobre a produção do ser nos marcos propostos pela teoria crítica (antologia
social), com destaque às formulações de Honneth (2003; 2018) e Butler (2015).
53 Não utilizo “substância” como um dado, uma coisa ou essência, mas processos históri-
cos e políticos que fazem o trabalho de substancializar as identidades.

sumário 252
GÊNERO E ESCRAVIDÃO

Em suas reflexões sobre a relação entre sexo e gênero, Judith


Butler afirma que aquilo que se nomeia como “sexo” talvez seja um
efeito do trabalho do gênero, o que acabaria por desfazer a distinção
que tão fortemente orientou os estudos feministas e que está assenta-
da na grande divisão entre cultura (gênero) e natureza (sexo) como seu
eixo organizador. Definir gênero como a interpretação cultural do sexo
caracterizaria um tipo de construcionismo que considera a diferença
sexual como um dado mediante o qual se ergue o edifício teórico.

A “verdade do gênero” encontra-se em processos históricos


mediante os quais o masculino e o feminino apresentam-se como na-
turais, o que Butler nomeará como “uma fantasia instituída e inscrita
sobre a superfície dos corpos” (BUTLER, 2010, p. 195). Seriam as
práticas reiteradas no tempo que dariam inteligibilidade aos gêneros.
Ao habilitar a prática como uma categoria moduladora mediante as
quais os gêneros são reproduzidos, chegamos ao núcleo fundamental
da formulação de gênero em Butler: não existe essência de gênero,
um interior constitutivo e fundamental que marcaria ontologicamente
os seres em seus gêneros. Todos/as nós fazemos gêneros, atuamos
e negociamos mais ou menos tensas em relação ao preestabelecido
como norma para definir a verdade para as identidades de gênero.

A maleabilidade do gênero revela a própria complexidade do


ser inserido em estruturas sociais que o abrigam e que atuam sobre
ele. Na filosofia de Butler, a desontologização do gênero, mediante a
centralidade das reiterações, desfaz a fronteira entre verdade/imitação.
São as performances sociais que abrem uma possibilidade de prolife-
ração das configurações de gênero produtoras de fissuras nas estru-
turas de dominação prevalentes nas normas de gênero. Então, gênero
pode ser definido com “a estilização repetida do corpo, um conjunto
de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente
rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma

sumário 253
substância, de uma classe natural de ser” (BUTLER, 2010, p. 59). Es-
tamos diante da impossibilidade de se separar identidade de gênero
das práticas que fazem o gênero.

Seria possível, no entanto, pensarmos que há um conjunto de


práticas impostas a determinados corpos que tem como objetivo reti-
rá-los no âmbito da inteligibilidade de gênero? A construção dos cor-
pos das mulheres negras e homens negros como materialidades que
não os qualificavam para habitar o gênero fundamentou-se na cons-
trução de um conjunto de indicadores que davam sustentação a essa
negação, conforme discutirei. E aqui se instaura uma tensão com a
formulação de gênero da filósofa. A performatividade de gênero não
está circunscrita ao gênero e à sexualidade. Nos contextos históricos
sobre a escravidão, a raça transforma-se não exclusivamente como um
dado que precisa ser interseccionado aos outros, mas ele mesmo an-
tecede e irá produzir os enquadramentos dos corpos. Pode-se afirmar
que o gênero seria mais um dos marcadores sociais da diferença na
obra de Butler, uma vez que a interseccionalidade é assumida como
metodologia já nas primeiras páginas de Problemas de Gênero.

Para se contrapor às teses universalistas que afirmam que a mu-


lher seria o outro do homem, Butler afirmará que ser “mulher” não é a
totalidade da pessoa, uma vez que o gênero faz intersecção com outras
modalidades discursivamente, derivando daí a impossibilidade de se-
parar a noção de “gênero” dos múltiplos marcadores que posicionam
os corpos no mundo. Os corpos adquirem sua aparência de gênero
por práticas reguladas historicamente. Com isso, abre-se a possiblidade
para múltiplas expressões de gênero. A negação do primado da dife-
rença sexual abre espaços para a fluidez do gênero, articulado com os
múltiplos marcadores da diferença social. Então, as mulheres negras
escravizadas tinham gênero? E se houver corporalidades que, embora
tenham os atributos construídos para serem reconhecidos como sendo
femininos, são abjetadas para fora do gênero? Ainda assim, deve-se
fazer a operação interseccional? A afirmação de Butler de que se al-
guém é uma mulher não é tudo que se é, embora interseccionalizada

sumário 254
com “outras modalidades discursivas”, ainda parte de um dado: o gê-
nero existe, ainda que seja resultado de reiterações que performam os
gêneros. Estaria Sojourner Truth (2014) errada e tomada por delírios ao
perguntar “e eu não sou uma mulher?”, para uma plateia de homens que
silenciosamente deve ter respondido: “você é uma negra”?

As mulheres negras, durante a escravidão e nos tempos atuais,


seguem tendo que lutar para terem gêneros. Para as mulheres negras,
o gênero não é um dado da natureza, como foi atribuído às mulheres
brancas, mas uma agenda política. No entanto, ainda persiste, entre
feministas universalistas, o mantra de que a opressão de gênero é uni-
versal. Feministas negras estadunidenses, brasileiras e latinas (GON-
ZALEZ, 1983; 1988a; 1988b; 1988c; CARNEIRO, 2021(2011); DAVIS,
1981; hooks, 1995; COLLINS, 2000) seguem repetindo: as mulheres
negras não são consideradas mulheres. As feministas universalistas,
em uma surdez cúmplice com o eurocentrismo, afirmam: a opressão
de gênero é universal. Conforme apontou Sueli Carneiro (2021 [2011]),
As mulheres negras tiveram uma experiência histórica diferen-
ciada que o discurso clássico sobre a opressão da mulher não
tem reconhecido, assim como não tem dado conta da diferença
qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na
identidade feminina das mulheres negras.

(...) Mulheres que não entenderam nada quando as feministas


disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar!
Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade
de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senho-
res de engenho tarados.

Apegou-se a diferença sexual como um dado mediante o qual


se ergueram teorias sobre as opressões de gênero e incluíram, nes-
sa esfera, as mulheres negras escravizadas, esquecendo-se, contu-
do, que, no mundo da vida, elas não eram mulheres. E mesmo em
propostas que tentaram negar os fundamentos teóricos universalistas,
mediante a interseccionalidade, a mulher negra escravizada passou
a compor as identidades hifenizadas sem a problematização do lu-
gar que homens negros e mulheres negras ocupavam nas estruturas

sumário 255
sociais. Eles (homens e mulheres negros) já chegam nessa operação
com identidades de gênero, mas a inclusão da marca da diferença
anterior (a raça) os retira do gênero.

Os corpos escravizados são retirados da esfera da cultura e


são postos à imagem e semelhança da natureza. Seria essa ausência
de cultura que os transformaria em matéria que veio ao mundo com
a finalidade última de servir aos corpos construídos como imagem e
semelhança de Deus. Há vida nos corpos negros, mas não vida identi-
ficável como de seres humanos. Quais as reiterações são necessárias
para que, ao se olhar para esses corpos, se negue qualquer campo de
identificação com o ser humano, tornando-o pura matéria biológica?
Nada que provem dali pode ter interesse: religião, política, história de
vida, parentesco, música, culinária, estética. Mas quais os mecanis-
mos acionados para chegar a produzir um não ser, um escravo?54.

COMO TRANSFORMAR
PESSOAS EM COISAS

Nas instituições que trabalham para apagar as histórias e me-


mórias individuais, há ritos de desumanização que se aproximam.
Dos campos de concentração nazistas às prisões, as marcas visíveis
que singularizam os corpos devem ser apagadas. Foi na escravidão,
contudo, que as práticas reiteradas de desumanização se transforma-
ram no fundamento que fez o sistema funcionar por séculos. Hartman
(2021) nos leva para a longa viagem da produção do esquecimento

54 Pode-se argumentar que essa afirmação da falta de interesse pelo mundo das pessoas
escravizadas seja um erro, uma vez que a influência cultural de africanos/as está espa-
lhada em todos os níveis da sociedade brasileira (linguagem, comida, religião, música),
como reiteradamente apontou Gilberto Freyre. O que aparece na obra do sociólogo como
um encontro entre culturas, produzindo efeitos híbridos que caracterizam a identidade
nacional, foi resultado de resistências continuadas de africanos/as e seus/suas descentes
em solo brasileiro. A presença negra na cultura brasileira existe, apesar das políticas volta-
das para apagar o “cancro que o/a escravo representava”, como foi amplamente repetido
pelos parlamentares em 1871.

sumário 256
que a travessia do Atlântico representava. Não há escolha: “o passado
lentamente desapareceu com o passar dos anos, ou o choque de ser
escravizado o destruiu num só golpe. Quanto tempo levou para que a
língua materna fosse substituída pelo novo idioma?”. Não bastava co-
locar as pessoas em tumbeiros. A longa travessia do Atlântico obede-
cia a uma temporalidade necessária para trabalhar o esvaziamento da
alma, temporalidade que já tinha sido precedida pela captura, seguida
pelo tempo de espera em cativeiros imundos nos portos da costa afri-
cana até o embarque (HARTMAN, 2021; CONRAD, 1985).

Para que haja a produção do escravo, é necessário retirá-lo de


sua comunidade social e política. Hannah Arendt (2009) fará um deba-
te sobre a ficção dos direitos humanos que estabelecem um conjun-
to de direitos inalienáveis tendo como referente o indivíduo. A ficção
está em supor que um sujeito isolado carrega em si todos os direitos.
A emergência dos Estados-nação provou que o indivíduo sem uma
comunidade política se torna uma párea para o mundo, o “refugo da
terra”, um corpo humano que perambula sem ser escutado, respeita-
do. Está fora da lei, das obrigações e proteções. A filósofa tinha como
objetivo pensar o paradoxo dos Direitos Humanos para os sem pátria
e os refugiados55. Segundo Arendt,
desde o início, surgia o paradoxo contido na declaração dos
direitos humanos inalienáveis: ela se referia a um ser humano
“abstrato”, que não existia em parte alguma, pois até mesmo os
selvagens viviam dentro de algum tipo de ordem social. E, se
uma comunidade tribal ou outro grupo “atrasado” não gozava
de direitos humanos, é porque obviamente não havia ainda
atingido aquele estágio de civilização, o estágio da soberania

55 Interessa-me aproximar das posições de Hannah Arendt no que se refere à relação entre
cidadania (sujeito de direitos políticos) e a produção do “humano” (negação do reconhe-
cimento político) como pura matéria biológica. No entanto, distancio-me de suas teses
quando, ao comparar o apátrida ao escravo, afirmará que seria preferível à condição
escrava porque esta tinha um lugar garantido nas leis, e sua importância era assegurada
nas estruturas sociais. Exatamente por razões inversas (não eram representados na lei e
eram corpos abjetos), me pergunto se não foram o eurocentrismo e o etnocentrismo da
filósofa que a levaram a concluir que “ser um escravo significava, afinal, ter uma qualidade
diferente, mas sempre com um lugar na sociedade; portanto, algo mais que a abstrata
nudez de ser unicamente humano e nada mais.” (Arendt, 2009, p. 331).

sumário 257
popular e nacional, sendo oprimida por déspotas estrangeiros
ou nativos. Toda a questão dos direitos humanos foi associada
à questão da emancipação (ARENDT, 2009, p. 324).

Acredito que parte de suas formulações referentes à produção


do “refugo da terra” faz parte do projeto continuado de transforma-
ção de sujeitos em escravos. As pessoas escravizadas não existiam
para a lei. Na Constituição de 1824, não há uma única menção à sua
existência. As teses de Arendt nos ajudam a entender o drama das
pessoas escravizadas que eram arrancadas de uma comunidade hu-
mana, de um local de pertencimento para se tornar apenas matéria.
Mas se não havia a possibilidade de reconhecimento político para a
imensa massa que era sequestrada em suas terras, a alternativa seria
criar, inventar formas outras de pertencimento político. Os quilom-
bos, como estrutura de comunidade política, seriam esses espaços
e também nos possibilitam entender por que todas as brechas aber-
tas pela legislação foram imediatamente ocupadas pelas pessoas
escravizadas. São famosos os processos de Luiz Gama para libertar
pessoas que entraram no Brasil como escravos a partir de 1830 (Fer-
reira, 2020). As mulheres negras escravizadas (Machado et al., 2021)
usaram todas as possiblidades abertas pela Lei do Ventre de Livre
para assegurar o direito à guarda de seus/suas filhos/as.

A produção incessante de corpos escravizados fundamentava-


-se na repetição de performances impostas que lhes retiravam qual-
quer ponto de unidade com os nascidos livres. O não reconhecimento
da humanidade não se limitava à ausência ou presença da prática da
fé cristã ou por serem portadores de níveis de inteligência que nunca
os habilitaria à fase adulta (TAUNAY, 2001). Produzir um corpo abjeto
não é resultado de uma vontade singular, ou de um ato isolado na his-
tória. A desumanização deveria ser reiterada e materializada em indi-
cadores que confirmassem as verdades do sólido edifício da abjeção.
Não estava em curso a produção de padrões estéticos em que o ca-
belo, a pele, a boca, o nariz de africanos/as seriam considerados feios.
Feiura e beleza estão em linha de continuidade. Abjeção, ao contrário,

sumário 258
foge dos conceitos de representação56. Estava em curso a produção
microfísica de corpos abjetos (BENTO, 2021).

A teoria da performatividade, nos termos propostos por Butler,


pode nos ajudar a compreender como há uma política rizomática de
produção do escravo57. Embora houvesse um corpo que daria estabi-
lidade a essa produção e uma condição ontológica baseada na raça,
por sua vez assegurada pelo princípio da hereditariedade biológica
(partus sequitur ventrem58), era preciso que essa estabilidade biologi-
zada, ela mesma resultado do trabalho de produção da abjeção, fosse
adensada por outros indicadores. Estou apropriando-me da teoria da
performance em um movimento “torto”. Não se trata de apontar as
práticas que fazem o trabalho de produção de inteligibilidade das dis-
sidências sexuais e de gênero. Ao contrário, estou interessada em dar
revelo à eficácia da produção do escravo na esfera micro, baseada em
uma linguagem compartilhada socialmente que habilitou os olhares
para identificar, num piscar de olhos, uma pessoa escravizada. A dú-
vida se instaurava quando esse corpo portava indicadores (joias, cor-
pos vestidos, calçados ou com adereços nos cabelos) que poderiam
sugerir três possibilidades: se estava diante de um/uma liberto/a; de
pessoas escravizadas em estado de fuga e que tentavam usar truques
de passabilidade como liberto; ou que fosse uma pessoa escravizada
de algum senhor/senhora bondoso/a que cuidava de seu plantel.

56 A valorização das estéticas e corporalidades negras aponta para importância de politizar


dimensões da existência que, na esfera das macrodisputas, não são consideradas como
relevantes. “Black is beautiful” tornou-se um marco fundamental na problematização das
políticas de abjeção. Sobre a relação entre beleza/feiura/abjeção, ver Bento (2021b).
57 Utilizo a expressão “produção do escravo” porque o trabalho que estava em curso era, de
fato, o da essencialização pelo caminho da abjeção. Quando me refiro a “pessoas escra-
vizadas”, ao contrário, me desloco para o campo da historicidade e das contingências.
Ou seja, no âmbito do discurso oficial, ninguém se torna escravizado, se nasce. O que
estou propondo aqui é pensar as políticas do cotidiano que sustentavam esse pressupos-
to ontológico da condição escrava.
58 Partus sequitur ventrem (o que nasce segue o ventre) era uma doutrina legal que definia
o status legal das crianças nascidas. Todas as crianças herdavam o status legal de suas
mães. Como tal, os filhos de mulheres escravizadas nasceriam na escravidão. Essa nor-
ma foi baseada no direito civil romano, especificamente as partes relativas à escravidão
e à propriedade pessoal (bens móveis).

sumário 259
Robert Conrad recupera a descrição do mercado de pessoas
escravizadas em Valongo, no Rio de Janeiro, feita pelo Dr. F. J. T. Me-
yen, médico e naturalista do navio prussiano Princesa Louisa.
Visitamos os depósitos de escravos no Rio e encontramos mui-
tas centenas praticamente nus, os cabelos quase todos cor-
tados e parecendo objetos medonhos. Estavam sentados em
bancos baixos ou amontoados no chão, e sua aparência nos
fez estremecer. A maioria daqueles que vimos era de crianças,
e quase todos esses meninos e meninas tinham sido marcados
com ferro quente no peito ou em outras partes do corpo. Devido
à sujeira dos navios em que haviam sido trazidos e à má qua-
lidade de sua dieta (came salgada, toucinho e feijão), tinham
sido atacados por doenças cutâneas, que a princípio apareciam
em pequenas manchas e logo se transformavam em feridas ex-
tensas e corrosivas. Devido à fome e miséria a pele havia per-
dido sua aparência preta e lustrosa, e assim como as manchas
das erupções esbranquiçadas e cabeças raspadas, com suas
fisionomias estúpidas e pasmas, certamente pareciam criaturas
que dificilmente alguém gostaria de reconhecer próximo. Para
nosso espanto, encontramos no Rio pessoas reputadas pela
cultura e humanidade que friamente nos asseguraram que não
deveríamos supor que os negros pertenciam à raça humana.
De acordo com esses princípios extraordinários os escravos
eram (como alardeiam as pessoas no Rio) tratados muito bran-
damente. Deve-se ter vivido o bastante para estar acostumado
à sua miséria e degradação para compreender tal maneira de
falar (Dr. F. J. T. Meyen, In Conrad, 1985, p. 61).

Em outra passagem, o historiador recupera os motivos que le-


varam o Marquês de Lavradio a deslocar o mercado e depósito de
pessoas escravizadas para Valongo.
Havia... nesta cidade, o terrível costume de tão logo os negros
desembarcassem no porto vindos da costa africana, entravam
na cidade através das principais vias públicas, não apenas car-
regados de inúmeras doenças, mas nus. E porque essa espécie
de gente, se não lhe e dada maiores instruções, e como qual-
quer bruto selvagem, eles faziam tudo o que a natureza sugeria
no meio da rua, onde ficavam sentados em algumas tábuas ali
colocadas, causando não apenas a pior espécie de mau cheiro
nessas ruas e cercanias, mas também oferecendo o espetáculo

sumário 260
mais terrível que o olho humano pode testemunhar. Pessoas
decentes não se atreviam a ir às janelas; os inexperientes aí
conheciam o que não sabiam e não deveriam saber; e tudo isso
era permitido sem qualquer restringi-o, e apenas para render o
ganho absurdo que os mercadores de escravos, seus donos,
obtinham por trazê-los à noite para os andares terrenos ou des-
pensas sob as casas em que viviam. Minha decisão foi a de que
quando os escravos fossem desembarcados na alfândega, de-
veriam ser enviados em botes ao lugar chamado Valongo, que
fica em um subúrbio da cidade, separado de todo o contato; e
que aí as muitas lojas e armazéns deveriam ser utilizados para
alojá-los. (Marquês de Lavradio, In Conrad, 1985, p. 58).

O Marquês afirma que a ausência de higiene ou de pudor


(mediante a ausência de roupas) seria marca natural da brutalida-
de desses seres que desembarcavam no porto do Rio de Janeiro.
É como se, na longa travessia dentro dos tumbeiros, eles tivessem se
recusado a usar roupas, a tomar banho e a usar os espaços próprios
para fazer a higiene pessoal. Estavam tão magros que, certamente,
devem ter recusado a comida oferecida. E, ao chegar no porto do
Rio de Janeiro, mesmo com banheiros públicos espalhados pelas
ruas da cidade, teimavam em fazer tudo o que a natureza exigia no
meio da rua. Todos os indicadores de civilização faltavam àqueles
brutos selvagens. É a natureza interior dessas criaturas que as leva
a agir assim. A representação da natureza selvagem era uma lingua-
gem compartilhada socialmente. Depois de serem comercializados,
o trabalho de produção da abjeção, apresentada aqui pelo Marquês
de Lavradio, seguiria. A radical alienação do/a senhor/a escravocrata
com as condições dessa produção seria a garantia de ausência de
qualquer tipo de dilema ético. O que caracteriza a produção de cor-
pos abjetos é a reificação, a coisificação, mas o sucesso dessa em-
preitada histórica apenas efetiva-se se houver uma história contada e
recontada sobre o outro em que o narrador não seja parte da história,
que não haja nenhuma responsabilidade pelos fatos narrados.

Os diários de Maria Graham também registram cenas de expo-


sição dos corpos escravizados.

sumário 261
Vi hoje o Val Longo. É o mercado de escravos do Rio. Quase
todas as casas desta longuíssima rua são um depósito de es-
cravos. Passando pelas suas portas à noite, vi na maior parte
delas bancos colocados rente às paredes, nos quais filas de
jovens criaturas estavam sentadas, com as cabeças raspadas,
os corpos macilentos, tendo na pele sinais de sarna recente.
Em alguns lugares as pobres criaturas jazem sobre tapetes, evi-
dentemente muito fracos para sentarem-se (1956, p. 254-255).

Há uma diferença considerável das narrativas do Dr. F. J. T.


Meyen e de Maria Graham em relação à do Marquês do Lavradio.
Para este, o problema está na proximidade visual das pessoas ne-
gras, sendo necessário políticas públicas que as deslocassem para
outro espaço, o que pouparia as pessoas de bem de presenciarem
as cenas dantescas por ele descrita. Já os estrangeiros apresentam
cenas que já se passam em Valongo (a transferência proposta pelo
Marquês já tinha sido realizada) e apresentam indignação com a si-
tuação daquelas “pobres criaturas”. Certamente, a compaixão não
lhes exime de níveis de alienação e cumplicidade com a produção do
escravo, uma vez que não articulam o que viam com suas próprias
vidas nas metrópoles europeias. A existência daqueles “objetos me-
donhos” também garantia suas roupas, comida e vidas confortáveis.
As políticas de morte implementadas pelos/as senhores/as e pelo
Estado, aqui, garantia o cuidado com a vida lá.

A estatização do biológico pelo Estado e a invenção da popu-


lação, que Foucault (1999) nomeará de biopoder, foi antecedida pela
biologização de corpos, não como população, mas como raça. A ne-
cropolítica antecede e torna-se parte estruturante da biopolítica. Se nas
metrópoles europeias o poder do soberano o autorizava a decidir quem
poderia viver ou morrer, nas colônias, a soberania fragmentou-se em
senhores e senhoras escravocratas, que agiam sob a proteção do Esta-
do e da Igreja. O horror que os viajantes esboçavam ao verem aqueles
corpos animalizados e expostos à venda não os colocam em oposi-
ção ao Marquês. Eles estão em linha de continuidade. O que restou de
humano, qual a marca de humanidade reconhecível naqueles corpos?

sumário 262
Eram mulheres escravizadas e homens escravizados. A diferença se-
xual, contudo, não nos autoriza a afirmar que estamos diante de cor-
pos generificados, qualidade dos corpos inteligíveis. É como se, ao falar
“mulheres e homens escravizados”, eu os empurrasse para dentro da
humanidade, mas a condição escrava os expulsasse. A diferença sexual
é outro nome para a vida nua, vida desprovida de cultura. As pessoas
livres tinham gênero, as escravizadas, diferença sexual, uma diferença
que será valorizada exclusivamente para efeitos de mercantilização.

Pode-se argumentar que os/as senhores/as escravocratas não


despendiam recursos excessivos para cobrir os corpos das pessoas
escravizadas por economia de recursos ou que, no espírito do Mar-
quês do Lavradio, eram seres naturalmente selvagens e essa natu-
reza tornava estranha qualquer moralidade vinculada ao recato que
as roupas conferiam. Os dois argumentos não estão em contradição.
No entanto, sugiro que não eram por motivos econômicos ou mo-
rais. Manter os corpos escravizados em situação de quase nudez
não tinha como objetivo descrever um determinado estado moral,
mas produzi-los como seres abjetos59. O que estou sugerindo é uma
inversão. Não eram as pessoas escravizadas que apresentavam seus
corpos com marcas estéticas e sinais que revelam esta condição,
mas os/as senhores/as que desenvolviam com precisão uma econo-
mia da memória que fazia o trabalho reiterado de produção da con-
dição escrava. Ao contrário da teoria da performatividade vinculada
aos gêneros, aqui não se trata de sujeitos que se apresentam ao
mundo fazendo seus gêneros (seja para produzir fissuras nas normas
ou para reafirmá-las), mas de um trabalho microfísico dos/as senho-
res/as escravocratas, com apoio do Estado e da igreja, para seguir
parindo diariamente escravos. Não bastava a cor da pele e os fenóti-
pos. Cada gesto, cada centímetro da pele deveria revelar que se está
diante de um corpo que cumpre seu destino biológico: ser escravo.

59 Não estou reivindicando ou propondo que os/as senhores/as vestissem as pessoas es-
cravizadas com as mesmas vestimentas que usavam, mas apontando que um corpo
vestido ou desnudo era um indicador de moralidade fundamental (no contexto da moral
cristã) que poderia aproximá-lo ou distanciá-lo do reconhecimento de humanidade. Man-
ter-se intencionalmente os corpos das pessoas escravizadas semidesnudos pode inferir
que esse era um mecanismo fundamental para realização da reiteração da abjeção.

sumário 263
Pouca importância tem sido dada ao processo ou às políticas de
produção da abjeção no contexto escravocrata. A proibição do uso de
sapatos, o controle do corte dos cabelos, o uso de trapos miseráveis
para cobrir parcialmente o corpo, as marcas a ferro e fogo com as ini-
ciais do/a proprietário/a, entram nas narrativas históricas como descri-
ção da desumanização. Contudo, não estamos diante de cenas descri-
tivas, mas produtoras continuadas da abjeção. O controle minucioso de
todas as performances dos corpos escravizados seria a garantia de que
a fronteira do humano não seria atravessada, que os corpos negros não
ousariam migrar de um território para outro. Aqueles/as que conseguiam
a alforria passariam a viver sob a égide de uma fiscalização e descon-
fiança permanentes. Os libertos nunca se tornaram livres. Suas vidas
eram reguladas por legislações específicas (CUNHA, 2012). Poderiam
ascender aos objetos que lhes garantiam certa passibilidade como se-
res humanos, mas deveriam carregar grudados aos seus corpos alguma
prova de que eram libertos, sob pena de serem interrogados nas ruas
por policiais ou por qualquer pessoa livre. Na ausência desses compro-
vantes, poderiam ser detidos em prisões (CUNHA, 2012).

CORPOS COBERTOS,
CORPOS HONRADOS

Como um corpo reiteradamente produzido como abjeto pode


ocupar o mesmo espaço ontológico? Como é possível que negras es-
cravizadas se tornem mulheres? Volto-me, agora, para pensar a rela-
ção entre a produção da performatividade de corpos escravizados vin-
culando-a à honra, um dos atributos fundamentais para se reconhecer
feminilidade nos corpos construídos como mulheres. Se um homem
branco violentasse uma mulher branca livre, retirando-lhe o definidor
do seu valor social, a virgindade, tornava-se legalmente responsável

sumário 264
por ela, mediante o contrato do casamento60. Uma das penas para o
crime seria constituir família61. Apresento dois casos históricos, tendo
como ponto de unidade entre eles a discussão sobre a honra em mu-
lheres negras escravizadas. Elegi esses dois casos porque a honra é
um dos atributos fundamentais para as mulheres. O primeiro caso se
passa na Inglaterra, em 1791, e o segundo, em Olinda, em 1884.

Em 1791, John Kimber, capitão do navio negreiro Recovery, es-


tava transportando cerca de 300 pessoas escravizadas que seriam
vendidas em Granada. O navio deixou a África em 1° de setembro e
chegou a Granada em 28 de outubro. Durante a travessia, 27 pessoas
escravizadas morreram, entre eles uma jovem de 15 anos que não
suportou as torturas que sofrera. As denúncias das torturas e morte
chegaram a Londres e um processo na justiça foi instaurado. Por recu-
sar-se a dançar, a jovem foi pendurada por uma perna no convés do
navio e simultaneamente foi agredida ininterruptamente pelo capitão.
No parlamento, William Wilberforce pediu a condenação de Kimber.
Em seu discurso, o parlamentar enfatizou a inocência da garota que
teria se recusado a dançar pelada diante de homens. No entanto, a re-
cusa estava vinculada às doenças que provocaram a falta de energia,
agravadas pelos danos provocados pela tortura.

Por que Wilberforce valoriza, em seus argumentos, o fato da jo-


vem estar nua? Não se sabe se esta estratégia voltada para a produção
de identificação com o sofrimento da jovem foi intencional ou se, de fato,
ele reconhecia nessa negação uma suposta unidade entre as mulheres
livres e as mulheres escravizadas. O desejo de preservação da honra a
partir de um comportamento de recato seria um atributo diferenciador
dos gêneros. Mais do que explorar as intencionalidades do parlamentar,
pode-se concluir que a valorização da vida da jovem estava condicio-
nada a uma materialidade exterior ao seu corpo. Ter um corpo coberto
seria um indicador da humanidade do corpo. Ele teve que submetê-la

60 O termo “defloramento” aparece no Código Penal de 1830, e definia o crime por estupro,
no artigo 219: “Deflorar mulher virgem, menor de 17 anos.” (Sartori, 2011).
61 Sobre o caso de Honorata, ver Bento (2022a; 2022b) e Nequete (1988).

sumário 265
à matriz de inteligibilidade local para que houvesse algum tipo de co-
moção e pedido de justiça. Ele caminha na contramão da tradução
cultural. A menina não era pura bios, não era pura diferença sexual.
Outras substâncias, além de sangue, carne, vísceras, a constituíam: ti-
nha honra e vergonha. Para salvar a jovem, o parlamentar a tornou uma
mulher cristã e ocidental. Negar-se a mostrar o seu corpo em público
seria a prova de que ela fora admitida na humanidade generificada.

A vergonha da vítima foi o modo que o abolicionista encon-


trou para enfatizar como a escravidão ‘roubava’ a virtude feminina
da mulher negra. É como se ele estivesse dizendo: “ela é como as
nossas mulheres”. Precisou torná-la branca para produzir algum tipo
de empatia e a produção de uma consciência abolicionista passava
por inseri-la nos marcos universalistas europeus62. Qual o contexto
do discurso do parlamentar? Quem lhe ofereceu esses argumentos?
A Inglaterra estava presenciando o momento único de ascensão do
movimento abolicionista tendo como protagonistas mulheres livres.
Conforme aponta Sousa (2021), há uma considerável complexidade
interna ao movimento, mas é possível inferir que o parlamentar esta-
va alinhado àquelas que localizavam na mulher negra escravizada o
espelhamento das virtudes da feminilidade da mulher europeia como
eixo principal do movimento abolicionista inglês e elegeu esse eixo
retórico de convencimento e disputa no espaço público.

O reconhecimento de um corpo que carrega em si a honra


não era oferecido às mulheres negras escravizadas. São raros os
casos registrados na justiça de mulheres negras escravizadas que
conseguem entrar na justiça contra senhores que a violentaram63.
Desconheço casos em que houve, de fato, algum tipo de punição

62 O parlamentar antecipa uma estratégia amplamente acionada contemporaneamente para


se reconhecer direitos às populações que estão excluídas dos marcos da cidadania, me-
diante a assimilação e não pelo respeito às singularidades e às diferenças. O/a negro/a
tem que saber do seu lugar, gays e lésbicas não podem apresentar nenhuma demons-
tração de desejo em público. O reconhecimento pela assimilação termina por reforçar as
normas e não por questioná-las.
63 Nos termos da lei vigente, Honorata, por ser escravizada, não poderia ajuizar contra seu
senhor. Foi necessário constituir um representante.

sumário 266
contra estes senhores. Um dos raros casos em que a violência sexual
chegou aos tribunais foi o de Honorata. No mesmo dia em que fora
comprada, aos 12 anos de idade, foi estuprada por Henrique Ferreira
Fontes, seu novo senhor. Aquela criança que portava o nome da dig-
nidade e honraria não tinha honra. O juiz decide a favor do senhor,
pois a lei não previa a tipificação de estupro quando a violência fosse
cometida contra uma mulher escravizada.
O defloramento ou estupro, não compreendido no art. 222 do
Código Criminal, de uma escrava menor de dezessete anos por
seu senhor, é, sem dúvida, um ato contrário aos bons costumes,
imoral, revoltante e digno de severa punição; no entanto, porém,
da nossa legislação, escapa, infelizmente, à sanção penal. Re-
cife, 20.6.1884 (NEQUETE, 1988, p. 67).

O caso de Honorata insere-se no contexto de um mundo cin-


dido. A mulher branca tinha honra, família, direito à maternidade.
É importante destacar que, ao apontar as limitações de um conceito
que parte da diferença sexual para reconhecer os gêneros, não es-
tou negando as hierarquias internas entre homens e mulheres livres.
Os assassinatos de mulheres por seus maridos, sob o argumento da
“limpeza da honra”, não podem ser desconsiderados como um dado
fundamental para se interpretar as estruturas violentas que operavam
também no âmbito da casa grande. Há uma considerável bibliografia
que discute os chamados crimes de honra64. Mas a honra era um
qualificador das pessoas livres. Uma mulher negra escravizada não
poderia acionar o argumento da honra para se defender, conforme
vimos no caso de Honorata. Essa problematização nos leva à con-
clusão de que a diferença sexual não é o critério para que mulheres e
homens sejam reconhecidos como membros de um gênero.

A discussão do reconhecimento da presença/ausência de honra


desdobra-se em outro problema sociológico. Temos, aqui, a emergên-
cia da configuração de parentesco que ainda segue marcando o con-
texto brasileiro. Como se pode falar em patriarcado, uma categoria que

64 Sobre honra, processos na justiça contra assassinatos motivados pela “lavagem da hon-
ra”, ver Caulfield (2000), Correa (1981), Morgan (2004) e Ramos (2012).

sumário 267
se refere e está circunscrita ao âmbito da família assentada na figura
do pai como o lócus do poder, para se referir à apropriação absoluta
dos corpos das mulheres escravizadas? Nesse âmbito, nos movemos
em um tipo de “patriarcado” sem pai? Se os homens livres tinham auto-
rização social para acessarem livremente os corpos das mulheres ne-
gras escravizadas e não eram submetidos a nenhum constrangimento
legal ou social para assumirem a paternidade e outras responsabilida-
des (por exemplo, casar-se com a vítima), pode-se utilizar o mesmo
conceito (patriarcado) para se referir a relações radicalmente distintas?

MITO DA SORORIDADE:
COROLÁRIO DO MITO
DA DEMOCRACIA RACIAL

Quando se passa a discutir o conceito de gênero e sua histó-


ria, é comum encontrarmos definições em que indivíduos assignados
homens e mulheres seguiram um roteiro na socialização primária cujo
projeto seria fazê-los produzir maneiras de agir, sentir e perceber o
mundo a partir de determinados roteiros vinculados e fundamentados
na diferença sexual. Essa perspectiva universalizante para os gêne-
ros esquece que, por quase 400 anos, as sociedades escravocratas
não preparavam as pessoas escravizadas (ou as socializava) para
desempenharem papéis sociais, entre eles a maternidade e a pater-
nidade. Se o sistema sexo/gênero se estabeleceu como ferramenta
conceitual e política, também contribui para produzir uma narrativa
de negação da categoria raça como anterior ao par sexo/gênero65.

65 Há uma discussão nos estudos de gênero inaugurada por Oyěwùmí (2021) sobre o caráter
eurocêntrico da categoria gênero e da impossibilidade de se compreender o funcionamento
da sociedade Iorubá acionando uma interpretação sobre o local que os corpos ocupam nas
estruturas sociais a partir da diferença sexual. O que estou propondo não é o deslocamento
para outras sociedades para negar o valor heurístico da categoria. Não é preciso ir aos
iorubás para se argumentar que a categoria gênero não alcança todas as relações sociais.
O não pertencimento dos corpos negros à ordem de gênero seria a prova de que gênero
tem sido usado para significar relações radicalmente diferentes. Conforme tentarei apontar,
a diferença sexual nunca foi o fundamento mediante o qual se distribui atos de reconheci-
mento de pertencimento a uma determinada identidade de gênero.

sumário 268
Essa concepção teórica termina por contribuir para a narrativa do
mito da sororidade. Esse tipo de prestidigitação epistemológica, pelo
caminho do gênero, reforça a ideologia oficial do Estado brasileiro: o
mito da democracia racial. É como se o mito da sororidade fosse a
expressão, na esfera do privado (lugar das mulheres), das relações
simétricas que acontecem na vida pública (espaço dos homens).

Os textos de Gilberto Freyre ainda são fontes recorrentes para se


interpretar “gênero” no Brasil colonial e imperial. O enquadramento geral
de sua obra Casa Grande & Senzala (Freire, 2006) pode ser lido como
um texto fundamental para sofisticar o mito da democracia. Acredito que
há pilares que sustentam esse mito, entre eles as relações entre as mu-
lheres, ou seja, entre a senhora escravocrata/sinhá e as mulheres escra-
vizadas/mucamas. É fundamental não esquecermos que o sociológico
também aponta a violência cometida pelas sinhás contra as mucamas.
Sinhá-moça que mandavam arrancar os olhos de mucamas boni-
tas e trazê-los à presença do marido, à hora da sobremesa, den-
tro da compoteira de doce e boiando em sangue ainda fresco.
Baronesas já de idade por ciúmes ou despeito mandavam vender
mulatinhas de quinze anos a velhos libertinos. Outras que espati-
favam a salto de botina dentaduras de escravas, ou mandavam-
-lhes cortar os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as
orelhas. Toda uma série de judiarias (FREYRE, 2006, p. 249).

A ira das sinhás era desencadeada pela inveja que sentiam da


superioridade da mulher escravizada (transfigurada em “mulata ple-
beia”), pois elas guardam segredos na arte de seduzir estranhos à
mulher branca.
As pretas de tabuleiro parecem que, no preparo de uns tantos
quitutes, dispõem de uns quindins ignorados pelas sinhás bran-
cas. O mesmo me parece certo de certas maneiras da fêmea
não só seduzir como conservar o macho: a mulata plebeia é
superior à branca fidalga (FREYRE, 2006, p. 233).

Segundo a teoria da sedução proposta por Hartman (1996)


para explicar os sentidos que eram conferidos aos atos dos senhores

sumário 269
escravocratas estadunidenses que estupravam as mulheres negras
escravizadas, o forte (o senhor) torna-se fraco diante da tentação da
mulher negra. Ela seria a responsável, por suas artimanhas e nature-
za sedutora, por levar os senhores a perderem qualquer controle sob
suas ações. Freyre ocupa o lugar de porta-voz acadêmico da teoria
da sedução. Na aparente descrição da beleza, viço, juventude, ma-
lemolência da mucama, Freyre está nos conduzindo a concluir que a
sedução tinha origem nas escravizadas.

Mas nem só de violência são feitas as relações entre sinhá e


mucama. Há outras cenas de mucamas que estavam sempre a pos-
tos, com os ouvidos abertos para escutar as lamúrias e tristezas das
sinhás, enquanto lhes catavam os piolhos. Das cenas de violência, o
texto desliza para outras em que há cumplicidade entre as sinhás e as
mucamas, ou para a presença e protagonismo da “mãe-preta”, que
seduz o/a leitor/a para uma leitura adocicada da escravidão.
Quanto às mães pretas, referem as tradições o lugar verdadei-
ramente de honra que ficavam ocupando no seio das famílias
patriarcais. Alforriadas, arredondavam-se quase sempre em
pretalhonas enormes. Negras a quem se faziam todas as von-
tades: os meninos tomavam-lhe a bênção; os escravos trata-
vam-nas de senhora; os boleeiros andavam com elas de carro
(FREYRE, 2006, p. 435).

Há uma estrutura narrativa no texto que nos faz deslizar dos víncu-
los cúmplices aos de violência entre pessoas escravizadas e livres. Essa
é a urdidura fundamental da obra. Das confidências que as sinhazinhas
faziam às mucamas, aos olhos de negras boiando na sopa servido ao
esposo, Freyre nos faz esquecer que estamos diante de contextos de
radical assimetria de poder. A razão que levava sinhás a arrancar os
mamilos das negras escravizadas e servi-los em bandejas seria a beleza
e juventude das jovens negras. Movidas pela insegurança, as mulheres
brancas eram tomadas por uma inveja incontrolável que as fazia vender
ou deformar os rostos e corpos das “jovens negras”.

sumário 270
Estamos no centro do mundo feminino: ciúme, beleza, juven-
tude. São mulheres que estão disputando homens. Nessa economia
do desejo e sexo, as mulheres brancas freyrianas estão em desvanta-
gem porque envelhecem muito cedo, engordam e perdem qualquer
encanto que possa despertar a libido dos homens. Mas isso não pas-
sa, afinal, de assuntos femininos. Em alguns momentos, se odeiam.
Em outros, tecem segredos e cumplicidades. São esses movimentos
internos da obra que contribuem para obliterar o enquadramento no
qual aconteciam as descrições dos encontros. Não estamos diante de
mulheres com o mesmo capital de gênero ou, mesmo, com capitais de
gênero diferentes ou desiguais. As mulheres brancas tinham gênero,
as negras escravizadas, diferença sexual.

Em Gilberto Freyre, há um tipo de conto idílico em que passagens


do cotidiano são imersas em aparente comunicabilidade entre pessoas
escravizadas e senhores/as e que está em linha direta com a narrativa da
opressão universal do gênero feminino. As disputas entre as mulheres
freyrianas não chega a romper o ponto de unidade delas, afinal, são mu-
lheres. Com o feminismo universalista, seriam as opressões oriundas da
ordem patriarcal que construiriam esse campo de unidade e forjariam a
necessária solidariedade e sororidade entre mulheres, fossem elas livres
ou escravizadas. Não seria a arrogância epistêmica eurocêntrica que
transmuta a radical diferença entre os corpos em uma ficção de “nós
mulheres”? Os/as filhos/as de mulheres livres teriam um nome e iriam
compor os quadros populacionais da nação. No segundo, todo o corpo
está inserido na lógica de “commodities”: a força de trabalho, o leite, ha-
bilidades no manejo das tarefas da casa, o sexo. É na lógica econômica,
de commodities, que a diferença sexual contava.

O dimorfismo (mulheres negras escravizadas e homens negros


escravizados) participava como um item que poderia valorizar ou des-
valorizar a “peça”. Mulheres negras escravizadas parturientes eram
alugadas como amas de leite para alimentar os filhos das mulheres
livres. Homens negros escravizados jovens e com boa saúde tinham

sumário 271
os preços mais elevados. O significante compartilhado (mulher ou ho-
mem) não irá produzir expectativas comuns66. O que sobrou de uma
possível aparência de humano, a diferença sexual, seria exclusivamen-
te possíveis formas de explorar os corpos. O dimorfismo em corpos
escravizados não os retira da condição de bios, ao contrário, é a pura
diferença sexual que os mantém na condição de vida nua.

O mito da sororidade está assentado no pressuposto de que


há algo inerente à experiência feminina (a maternidade e a opressão
patriarcal) que nos leva a produzir políticas de aliança contra o patriar-
cado67. Talvez o passo inicial para se pensar em políticas de aliança
seja o reconhecimento de que as categorias acionadas para interpretar
as opressões não sejam as mesmas e que se deva reconhecer, como
uma reparação teórico-histórica, que às mulheres negras foi negado o
direito ao pertencimento ao feminino. Essa negação ecoa na contem-
poraneidade nas vozes de mães (quase todas negras) que têm seus
filhos executados pelos Estado e repetem: “nada mudou!”.

O impasse teórico de se acionar uma categoria para nomear


relações tão dispares no mercado de trabalho, no acesso à saúde, no
acesso à justiça, tem sido resolvido com o acréscimo de outras cama-
das identitárias, o que termina por nos levar de volta ao gênero como
categoria fechada, ensimesmada. Esse procedimento teórico-metodo-
lógico, conforme apontei, continua produzindo a falsa intepretação de
que, mesmo com as diferenças, ainda somos todas “mulheres”.

66 A diferença sexual seria, portanto, um dos itens que comporia o preço final da peça.
Idade, saúde, presença/ausência de dentes são alguns dos itens que aparecem com
regularidade nos anúncios dos jornais de comercialização de gente no século XIX.
A diferença sexual, nesse contexto, cumpre outras funções que não podem ser lidas
como similares à diferença sexual de homens e mulheres brancas. Esses anúncios são
uma fonte interessante de pesquisa para se alcançar as expectativas em relação aos
homens e mulheres negras escravizadas (Telles, 2018).
67 Não há qualquer possibilidade de transformações políticas e sociais sem políticas de
aliança. O que estou sugerindo aqui é a impossibilidade de produzir um campo artificial
de identidade e unidade para, a partir daí, se propor agendas políticas. O caminho talvez
seja o inverso. Reconhecer as diferenças e, por elas, se estruturar possíveis canais de
diálogo e de pontos de unidade política.

sumário 272
QUAL O GÊNERO DA NECROBIOPOLÍTICA?

Quando comecei a pesquisar os Anais do Congresso Nacional


brasileiro durante a legislatura de 1871, concentrei-me exclusivamente
nos debates sobre o “elemento servil”68. Em algum momento, passei a
ler todos os Anais. Eu estava trabalhando o conceito de necrobiopoder
em artigos e conferências (BENTO, 2018). Com esse conceito, eu pro-
ponho uma analítica do Estado que vincule as políticas de promoção
da morte e de promoção da vida como dimensões articuladas e articu-
ladoras do Estado. Se é possível fazermos pesquisas com populações
que estão submetidas às políticas continuadas de extermínio pelo Es-
tado, não se pode negar que há políticas de cuidado com as vidas que
importam, as que devem compor o Estado-nação.

Ao analisar os Anais, notei que a economia de distribuição dife-


rencial da vida e da morte estava ali, diante dos meus olhos. E, mais
uma vez, me vi diante do impasse de acionar a categoria gênero como
unificadora das vidas das mulheres. Decidi que deveria analisar esse
material, separando-o em dois blocos. O primeiro destinava-se às
discussões do que se pode identificar como políticas voltadas para
o cuidado da vida. O segundo concentrado exclusivamente no ponto
“elemento servil”, dedicado ao debate do projeto de lei que passaria
para a história como “Lei do Ventre Livre”.

Entre os meses de maio a setembro de 1871, parlamentares


disputaram concepções sobre a propriedade dos/as filhos/as das mu-
lheres escravizadas, teceram teorias sobre família, sexualidade, moral,
Estado, religião, esboçaram largamente o pânico diante da revolta es-
crava, fizeram cálculos sobre a economia do país e o impacto que teria

68 Embora o título da discussão nos Anais fosse “elemento servil”, quando os debates co-
meçam, a expressão “servil” desaparece e surge “escravidão” e “escravos”. Vale se per-
guntar por que os parlamentares não adotaram “elemento escravo”. Seria por algum tipo
de embaraço ou vergonha? “Servil” anunciaria a suposta diferença no tratamento que os
senhores davam às pessoas escravizadas que, segundo os parlamenteares, se caracte-
rizava pela bondade dos senhores?

sumário 273
para o país o fim da escravidão. Não há nomes ou histórias de vidas
das mulheres escravizadas, tampouco dos pais dos/as filhos/as. Ter-
minada a ordem do dia referente ao “elemento servil”, nos deslocamos
para a esfera do cuidado, das políticas públicas: aprovação de recur-
sos para as Santas Casas e para colégios, aprovação de pensões para
senhoras viúvas (com nome e sobrenome) de combatentes na Guerra
do Paraguai, alocação de recursos para construção de estradas69.

Seria possível afirmar que as mulheres estavam inseridas na


esfera da necropolítica? Pode-se argumentar que há diferenças nas
políticas do Estado para mulheres negras escravizadas e para as mu-
lheres livres, mas que ambas seguem sob o mandato do patriarcado
e vivem opressões diferenciadas. Ainda assim, seus gêneros as con-
denariam aos perigos oriundos do poder do homem. E as mulheres
negras escravizadas ainda teriam que lidar com a opressão dos ho-
mens negros escravizados. Produz-se, aqui, uma ficção de unidade
que encontrará na formulação “níveis diferenciados de opressão” o
argumento para fazer desaparecer, diante de nossos olhos, a radical
diferença entre as pessoas livres e as pessoas escravizadas. É como
se tentasse transformar em única substância água e azeite, diluindo
as diferenças e fazendo emergir uma nova substância.

As mulheres negras escravizadas habitavam a esfera da necro-


política (MBEMBE, 2011), e as mulheres livres a biopolítica (FOUCAULT,
1999). Não há dúvidas de que as mulheres livres estavam vulneráveis à
violência de seus maridos e pais. Habitar a esfera da biopolítica (ainda
que, em 1871, as biopolíticas fossem escassas, principalmente as com
recortes de gênero, ou seja, para as mulheres livres) não era nenhuma
garantia de que, na vida privada, não teriam suas vidas postas em risco.
Ao afirmar que elas faziam parte da biopolítica, estou valorizando o fato
de que compunham a população, da categoria cidadania, já esboçada
69 Em quase todas as sessões do Congresso Nacional se votava pensões. No dia 15 de
maio de 1871, a Câmara dos Deputados aprovou “a pensão de 600$ anuais, concedida
por decreto de 25 de fevereiro de 1871, a D. Maria Thereza dos Reis, filha do finado Fran-
cisco Sotero dos Reis, professor aposentado de língua latina do Liceu da Província do
Maranhão (Annaes. Tomo I, 16/05/1871, p. 53).

sumário 274
na Constituição de 1824 (embora sem direito ao voto): tinham nome,
sobrenome, geravam filhos/as, compunham famílias, tinham honra e
eram garantidoras da respeitabilidade da família no espaço público70.

A honra de um homem de família estava atrelada ao compor-


tamento de sua esposa. Os assassinatos de mulheres que “man-
charam” a honra de seus maridos atravessam a história do Brasil,
conforme apontei. O que caracteriza essas relações sexuais e amoro-
sas aqui é a construção e manutenção dos vínculos e compromissos
socialmente compartilhados e reconhecidos. Os assassinatos de mu-
lheres motivados pela honra acontecem nessa esfera. Então, quando
estou apontando para a impossibilidade de se utilizar a categoria
gênero para descrever e analisar a situação das mulheres negras
escravizadas, não há o desconhecimento da estrutura das relações
de gênero hierárquicas e assimétricas e que tinham na esfera legal (e
todo o aparato jurídico daí derivado) a chancela de sua existência71,
tampouco da diversidade interna entre as mulheres livres nas múlti-
plas dimensões constitutivas das relações sociais.

Há uma considerável produção acadêmica voltada para com-


preender os sentidos do humano. Vidas precárias, vidas matáveis,
corpos abjetos formam um léxico que nos conduzem para teorias que
nos ajudam a pensar as disputas em torno do humano. O que estou
propondo é seguir em diálogo com as formulações sobre a produção
da abjeção, apontando uma contradição no seu interior. Se as pessoas
escravizadas não eram pessoas, por que, quando se discute gênero,
as mulheres e homens negros escravizados são “promovidos” a um
estatuto ontológico que, de fato, não lhes incorporava? Mas as mulhe-
res negras compartilham os mesmos atributos naturais das mulheres

70 Sobre a importância que a família irá assumir no projeto de nação a partir do final do
século XIX, ver Costa (1979).
71 Durante os debates do projeto da lei do ventre livre, argumentou-se que seria inconstitu-
cional libertar os filhos das mulheres escravizadas porque “as crias” seriam propriedade
privada e tudo derivado do seu corpo também pertenceria ao senhor. O contra-argumento
foi certeiro: não havia nada de inconstitucional no projeto, uma vez que não havia qual-
quer menção às pessoas escravizadas na Constituição de 1824. De fato, a Constituição
é destinada exclusivamente às pessoas nascidas livres.

sumário 275
brancas, pode-se argumentar. Essa capacidade reprodutiva não é da
mesma ordem. A diferença sexual das mulheres brancas está inserida
no gênero. Aliás, não está inserida, é gênero. Ao contrário das mulhe-
res negras escravizadas, a diferença sexual está apartada dos atribu-
tos socialmente construídos para definir feminilidade.

A diferença sexual, aqui, é o outro nome para homo sacer (Agam-


ben, 2013); é pura biologia, energia e matéria em forma de gente. Seus
seios, leite, sexo, ancas largas, braços fortes, dentes em bom estado,
juventude, habilidades do manejo das tarefas domésticas, força para
as tarefas na agricultura, são commodities. A negra escravizada defi-
ne-se como o oposto da branca livre. Sua estrutura fisiológica a predis-
põe a suportar a dor, não ter emoções, excesso de sexualidade, des-
conhecer o amor materno e a honra. A diferença sexual sem a cultura
é pura bios, mas não existe pura bios. Olhar para os corpos escraviza-
dos e não encontrar cultura, mas fêmeas e machos, já é o trabalho da
abjeção sendo operacionalizado. A produção da abjeção irá assegurar
o lastro moral que continuará o trabalho de produzir escravos.

Não é a diferença sexual que garante a unidade entre as mu-


lheres. A construção da diferença sexual pelo gênero irá assegurar às
mulheres brancas uma identidade de gênero e o reconhecimento do
pertencimento à humanidade numa posição hierárquica inferior ao ho-
mem branco. Para as mulheres negras escravizadas, a diferença sexual
seria mais um dado que confirmaria determinadas qualidades inerentes
à peça, por exemplo, amamentar. Nas duas situações, há uma condição
anterior que irá definir quem será mulher e quem será peça: a raça.

São os corpos que habitam a esfera da necropolítica, no en-


tanto, que irão assegurar, com seu trabalho e a existência do Estado,
a formulação de políticas voltadas para o cuidado da vida, conforme
apontei na passagem em que os estrangeiros europeus se impressio-
nam com os maus-tratos a que as pessoas escravizadas eram subme-
tidas. Desta forma, não existe uma antinomia entre promoção da vida e
promoção da morte. São duas dimensões inseparáveis e constitutivas

sumário 276
do Estado. Quando saímos da esfera da biopolítica para a necropo-
lítica, é preciso estarmos atentos/as ao deslizamento das categorias.
No escopo desse artigo, estou relacionando a necrobiopolítica com
o gênero. O reconhecimento das identidades de gênero desaparece
quando nos movemos no âmbito da necropolítica. Embora eu esteja
separando as duas esferas (bio e necro) para se analisar o enquadra-
mento das políticas do Estado, não é possível fazer essa separação.

CONCLUSÕES

1. Reconhecer um corpo como homem ou mulher já é um ato de


ontologização. Quando Butler discute os processos median-
tes os quais os corpos se tornam inteligíveis, se ontologizam
a partir das categorias gênero e sexualidade, não considera
que há um momento anterior de batismo que se refere aos
processos continuados de produção do/a escravo/a e que
encontra na raça o referente de negação de reconhecimento.
Talvez se possa argumentar que, ao trazer para suas reflexões
a dimensão interseccional para se repensar e negar as iden-
tidades essencializadas, a filósofa retira do gênero a força de
determinação. No entanto, se a interseccionada for acionada
como um recurso teórico-metodológico por justaposição dos
marcadores sociais da diferença e da desigualdade, podemos
ser levados a supor que já estamos diante de uma mulher,
embora o marcador raça a retire desse lugar72.

2. Antes de se afirmar que devemos acionar a interseccionali-


dade como recurso metodológico, devemos nos perguntar
quem pode ser reconhecida como mulher. Parte considerável

72 As reflexões aqui esboçadas tiveram como eixo a relação entre negras escravizadas e
mulheres livres, mas acredito que é possível fazer aproximações com os debates sobre a
produção das existências trans.

sumário 277
dos feminismos negros tem na luta pelo reconhecimento da
identidade de gênero um ponto nodal de suas agendas73. Na
interseccionalidade-por-adição, é como se todos tivessem gê-
nero e bastaria fazer alguns entrecruzamentos e apontar: as
mulheres negras ocupam as posições mais desqualificadas no
mercado de trabalho e recebem os salários mais baixos. So-
mos levados a supor que a natureza da identidade de gênero
dessa mulher é alterada pela raça e pela classe. No entanto,
o que estou sugerindo é a necessidade de “darmos um passo
atrás” e problematizarmos essa operação. Por que não se utili-
za mulher-branca-periférica? Os corpos das mulheres brancas
continuam sem as marcas da raça. Se eu digo “mulher” e não
adiciono “negra”, sei que a referência se destina à mulher bran-
ca que segue sendo a universal do gênero feminino.

3. Não há possibilidade de problematizar a produção dos corpos


abjetos fora dos marcos da interseccionalidade. Mas teríamos
que encontrar outros caminhos para significar níveis de ex-
clusão em que conceitos como abjeção, opressão e estigma
tenham pesos diferentes e adquiram outras representações
simbólicas. O hífen não basta. A mudança das posições dos
termos seria suficiente para aproximá-la do mundo da vida (por
exemplo: negra-mulher-lésbica)?

4. Gênero seria um dos dispositivos de reconhecimento de hu-


manidade nos corpos anteriormente submetidos a uma matriz
de inteligibilidade do humano. O reconhecimento de um corpo
como humano, no entanto, não pode produzir a inferência de
que estamos diante de cenas de distribuição equânime de di-
reitos e de violências. Essa matriz de inteligibilidade é a raça.
Evocar as matrizes de inteligibilidade de gênero como estrutura

73 A luta contemporânea das mães (em sua grande maioria mulheres negras) que perdem
seus filhos contra o terrorismo do Estado é uma demanda por justiça que está em linha
de continuidade com a negação da identidade de gênero para as negras escravizadas.

sumário 278
estruturante das normas, sem inseri-la em contextos que irão
condicionar e determinar quem pode ser reconhecido como ho-
mem e mulher, reitera que a diferença sexual seria a definidora
nas posições dos corpos nas relações de gênero74.

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74 Ao me concentrar na relação entre gênero-abjeção-escravidão para refutar a primazia


da diferença sexual, não estou propondo que haja uma única matriz para reconhecer o
outro como ser humano. Há feixes de matrizes de inteligibilidade que são estruturados
historicamente. A exclusão dessa matriz, por exemplo, das pessoas trans dialoga com
outros marcadores sociais da abjeção. Cada um dos feixes exige análises recortadas e,
ao mesmo tempo, conectadas com os enquadramentos gerais.

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sumário 282
12
Capítulo 12

Engajamento, Escrita
e Gênero: a questão da
agência na escrita científica

Fernando da Silva Cardoso

Mário de Faria Carvalho

Fernando da Silva Cardoso


Mário de Faria Carvalho

Engajamento,
Escrita e Gênero:
a questão da agência
na escrita científica
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.12
INTRODUÇÃO

“Un texto escrito por un escritor minoritario sólo es efectivo


si logra convertir en universal lo punto de vista minoritario”.
El pensamiento heterosexual y otros ensayos,
Monique Wittig (1992)

Este ensaio inscreve e problematiza algumas inquietações


sob as quais temo-nos debruçado e outras interpelações feitas no
nosso cotidiano sobre os limites da escrita científica. Em suma, a
questão em torno da capacidade de ser afetado pela(o) Outra(a), de
se auto-afetar a partir da significação de experiências pela palavra,
parece ganhar, cada vez mais, importância. Este argumento pode,
por um lado, ser fundamentado com base na crítica desenvolvida75
sobre o distanciamento entre pesquisadores(as) e atores sociais, as-
sim como no que concerne à consideração utilitária das experiências
de diferentes grupos, sempre no sentido de satisfazer e/ou conferir
autoridade aos discursos acadêmicos.

Apesar de não serem os objetos centrais da reflexão neste en-


saio, referimo-nos a tais paradigmas por acreditar que levam a crer na
perspectiva meramente ‘útil’ da palavra ao(à) pesquisador(a). Pois, as
referidas posturas acenam para um saber genocida, que essencializa,
aniquila e mortifica o caráter sensível da experiência com base na es-
crita randômica. Questionamos, assim, a figura complexa do ‘eu autor’,
os seus privilégios e a funcionalidade que a palavra adquire para a
criação de uma zona cinzenta do saber pretensamente neutra.

Nesse sentido, procuraremos refletir, em um primeiro momen-


to, sobre os processos implícitos de castração que são operados no
interior e, ao mesmo tempo, com base na aspirada neutralidade e se-
gurança científica do saber. E, em seguida, argumentaremos sobre a
escrita fundada em uma linguagem gendrificada enquanto operação

75 Para melhor compreender a discussão sobre a complexa relação entre lugar social e o de
pesquisador(a), recomendo: Questões teórico-epistemológicas à pesquisa social contem-
porânea: o pesquisador, o ator social e outros aspectos (CARDOSO; CARVALHO, 2018).

sumário 284
simbólica e sensível do texto, que ressalta a desconstrução de uma
pré-consciência sobre o sujeito universal da teoria do conhecimento.

A inserção da perspectiva e da linguagem baseadas na catego-


ria gênero, na organização da escrita científica, são assumidas com
base nas heterogeneidades e contradições discursivas que operaram
e estão presentes no desenvolvimento do conhecimento científico.
Assim, a partir de um olhar desconstrutivista recuperado por Judith
Butler da obra de Jacques Derrida76, introduzimos a hipótese de que a
opção por uma escrita baseada em uma linguagem que não reifica o
caráter neutro do gênero pode apresentar uma dinâmica que perturba
o idealismo do espírito científico moderno. Buscamos ir de encontro à
certeza epistemológica da verdade que foi concebida na passagem
da metafisica original para dada ontoteologia do saber, tão-somente.

O estilo cogitado a partir da obra de Judith Butler alude a um


funcionamento alternativo do sistema metafisico da escrita científica,
o qual é acionado por uma reflexão não essencialista do ‘eu autor’ e
que insiste na possibilidade de pensamento que opera nas fissuras
entre a lógica e imaginação da palavra. Tal proposição não insiste,
dessa forma, na figura de um eu recalcado pela neutralidade ciência,
tampouco na formulação de espectro no qual a palavra é afastada da
experiência e de quem a (d)escreve.

Portanto, acreditamos e concebemos que a escrita científica


gendrificada é um dos movimentos possíveis para “questionar o tradi-
cional logos analítico e conceitual, marcado por definições fechadas”
e que cogita “a escrita científica alinhada à pluralidade, ao devir, aos
impulsos, à complexidade e à ambiguidade do(a) humano(a)” (ALMEI-
DA NETO; CARDOSO, 2020, p. 41).

76 A perspectiva derridiana da desconstrução, recuperada por Judith Butler ao longo de


sua obra, decorre, sobretudo, das leituras realizadas pela autora acerca do caráter
fluido do signo na obra de Jacques Derrida, ou seja, da estratégia de dissolução, de
decomposição de argumentos metafísicos como forma de instaurar ‘contradições cons-
trutivas’. Segundo Salih, Butler interessa-se pela característica enigmática do signo
derridiano, pela possibilidade de serem “transplantados para contextos imprevistos e
citados de modos inesperados” (2017, p. 128).

sumário 285
A ESCRITA E O SUJEITO
OU O SUJEITO COMO ESCRITA

A fluidez estilística da linguagem articulada pela filósofa Judith


Butler remete a um quadro de arte abstrata em construção. Nos movi-
mentos de sua escritura encontramos, a nosso ver, um aspecto central, a
crítica à mera inteligibilidade da realidade, como uma pintora que rejeita
os traços retos e uniformes em sua arte figurativa. Assim, a experimenta-
ção na/da escrita exercitada pela autora se torna, na verdade, um movi-
mento de construção ou de reposicionamento do sujeito que existe para
além das estruturas de poder. Como cita a Salih “o estilo de Butler é, ele
próprio, parte das intervenções teóricas e filosóficas que ela está tentan-
do fazer” (2017, p. 24, grifo da autora), e é sobre ele que refletiremos.

Toda a askesis que orienta o discurso linguístico traduzido na


escrita é decorrente de diferentes e sistemáticos posicionamentos
das experiências que se deseja traduzir, previamente influenciadas
pelas estruturas poder. Assim, independentemente do ciclo em que
tome lugar, a escritura se torna uma etapa essencial no processo
de elaboração, de recebimento e de reconhecimento dos discursos
enquanto verdadeiros, considerando-se os princípios racionais de
ação. Essa hipótese é, na verdade, o atestado de que, como mencio-
na Salih (2017), sobre a estilística butleriana, é preciso pensar como
as coisas são feitas com as palavras.

Podemos exemplificar o argumento levantado sobre a experi-


mentação presente na escrita de Judith Butler (2015a, 2015b), a partir
do desconforto que surge, após a leitura de sua obra, quanto ao uso de
pronomes e/ou adjetivos relacionados a macho e fêmea, em se assumir
posturas baseadas na ‘tradição’, na ‘biologia’, na ‘realidade’, ou mesmo
de entender o gênero como facticidade anatômica. Em suma, a estrutura
semântica que perfaz a obra da autora demonstra que existe dada expres-
sividade político-filosófica que irrompe a significação cultural das coisas
fundamentada na polaridade, no determinismo e no representacionismo.

sumário 286
Nesse sentido, a experimentação na/da estilística butleriana rele-
va que existe um universo semântico insurgente e insubmisso no fazer
filosófico e epistêmico. Trata-se da circularidade. A escrita reúne, numa
forma espiralada, a meditação que precede as próprias notas. Ou seja,
o significado (experimentado) só existe – ao mesmo que transcende
– em relação àquilo que se projeta. Tal aspecto remete à vontade ca-
racteristicamente imaterial (BUTLER, 2015a) do discurso que, por sua
vez, relança o sujeito à circularidade da meditação, da própria cons-
ciência77. A insubmissão a qual recorre a autora, metaforiza a noção de
experimentação em sua escrita como algo que, ao passo que delimita
os limites discursivos da experiência, também denuncia os termos de
dada relação de poder, cultural e hegemonicamente estabelecida.

O movimento de ‘relatar a si’, sugerido por Judith Butler, pode


contribuir com a compreensão e o dimensionamento dessa sua preo-
cupação. A autora está interessada em problematizar as condições
sociais e morais que determinam o surgimento do eu e, logo, da pró-
pria (possibilidade de) experimentação na/da narrativa. O ato de relatar
a si mesmo, nesses termos, “adquire uma forma narrativa, que não
apenas depende da capacidade de transmitir uma série de eventos
em sequência [...]”, pois
[...] a conduta moral não é uma questão de se conformar às pres-
crições estabelecidas por determinado código, tampouco de in-
teriorizar uma proibição ou interdição primárias. [...] essa relação
não é simplesmente “consciência de si”, mas constituição de si
enquanto “sujeito moral” [...] (BUTLER, 2015b, p. 29-30).

A crítica da autora está direcionada, portanto, à ‘progressão li-


near’ e à neutralidade da linguagem. De tal modo, a consideração da
experimentação na/da escrita, na obra de Judith Butler, envolve a re-
lação dialética consigo mesma(o) e com a(o) outra(o), e isso significa,

77 Quanto a esta noção, Butler (2017) observa que as descrições de Nietzsche sobre a
formação da consciência estão implicadas no discurso moral que ele descreve, já que
os termos que faz menção são efeitos da formação da consciência. Para tanto, a autora
retoma o pensamento de Michel Foucault como forma de explicar (e, ao mesmo tempo,
criticar o autor) a resistência psíquica ao poder como um efeito de poder, uma produção
discursiva que situa nos limites da normalização.

sumário 287
no ato da escrita, de revisitar, reanalisar e revisar de maneira circular as
condições a partir das quais o discurso emerge. Contra as premissas
unidimensionais, o relato de si é centralizado na estilística da autora
como um operador da transformação das verdades em êthos78.

O trabalho de pensamento, pela escrita e em realidade, é o as-


pecto que perfaz a ambivalência do modo de se transmitir ideias como
um ato constitutivo de si, ou seja, como um desafio político. Portanto, a
experimentação presente na estilística de Judith Butler remete à cons-
trução de narrativas micrológicas, isto é, o objetivo de recuperar as
subjetividades em caráter de abertura do eu em relação à(ao) outra(o)
e do próprio ser como devir.

Nesse sentido, a argumentação gira em torno, agora, do proces-


so de formulação do conhecimento e, não mais necessariamente, sobre
a sua substância. A disposição etopoética79 que, a nosso ver, acompa-
nha a estilística empregada por Judith Butler, possibilita a demarcação
de uma importante díade em seu pensamento: a relação sujeito-sujeito
e as mediações possíveis entre realidade, sujeito e linguagem. Ambas
podem ser significadas a partir da ideia de que a escritura, nos termos
por ela sugeridos, transporta axiomas que ordenam a verdade em si
mesmos. Em outras palavras, são enunciações materialmente úteis ao
sujeito que as narra, pois, como sugere Foucault “o lógos é transforma-
do em êthos no sentido de princípio de ação” (1994, p. 23).

O pressuposto foucaultiano coincide com a perspectiva butle-


riana de que a escritura agencia “uma história de mim mesma partin-
do de algum lugar, delimitando um momento, tentando construir uma

78 Em ‘Relatar a si mesmo: crítica da violência ética’, Judith Butler dedica-se a refletir sobre a
complexa relação (e tensão) entre êthos coletivo e moral. Questiona sobre a instrumentali-
zação da violência como meio de manutenção do anacronismo que cerca o êthos coletivo
e adverte sobre a posição e formação do “eu” neste universo. Para tanto, desenvolve a
partir da crítica adorniana algumas questões que, para ela, permanecem sem resposta:
“em que consiste esse “eu”? Em que termos ele pode se apropriar da moral, ou melhor,
dar um relato de si mesmo?” (BUTLER, 2015b, p. 17-18).
79 Trata-se daquilo que, segundo Foucault (2001, p. 227): “tem a qualidade de transformar
o modo de ser de um indivíduo”. Assim, a verdade, no sentido etopoético, traduz-se na
“qualificação de enunciados como verdadeiros quando atuam como matrizes de consti-
tuição do êthos do sujeito, de sua maneira de ser” (CANDIOTTO, 2008, p. 95).

sumário 288
sequência, oferecendo, talvez, ligações causais ou pelo menos uma
estrutura narrativa” (BUTLER, 2015b, p. 88). Afinal, para ela, é a ence-
nação de si-mesmo que “funciona como ponto de apoio para a narra-
tiva” e, nesse sentido, impede o
[...] o erro da posição oposta, quando o “eu” se compreen-
de separado de suas condições sociais, quando é adotado
como pura imediaticidade, arbitrária e acidental, apartado de
suas condições sociais e históricas – as quais, afinal de con-
tas, constituem as condições gerais de seu próprio surgimento
(BUTLER, 2015b, p. 17).

Portanto, contra a compulsoriedade do poder (BUTLER, 2017),


coerência alocutória da escritura movimenta, nos termos sugeridos pela
autora, elementos externos ao acontecimento, os quais conferem valor
à linguagem empregada e que permitem a construção de pontos de
convergência entre a produção do eu, a voz narrativa e o evento. Afinal, a
escrita demarca o comprometimento com aquilo que é expresso. Igual-
mente, as condições morais e éticas para o aparecimento do eu que
narra não são desvinculadas daquelas que condicionam o seu próprio
surgimento (BUTLER, 2015b). Não se pode esperar que “o ‘eu’ não seja
induzido por essas normas em termos causais” (BUTLER, 2015b, p. 18).

O questionamento ‘Qual parte desse “contar” corresponde a


uma ação sobre o outro, uma nova produção do “eu”’?, lançado por
Butler (2015b, p. 89), encaminha a criatividade da experimentação na/
da escrita para a busca por uma significação mais ampla à noção de
sujeito, para a política e a própria filosofia. Remete-nos a outras per-
guntas lançadas por ela sobre se ‘A filosofia é política?’, ‘E quais são os
usos políticos da filosofia?’ (SALIH, 2017, p. 192).

Certamente, a experimentação enunciada na escrita butleriana


tem sido responsável por construir uma importante intersecção crítica
entre a teoria e o mundo, entre a linguagem e as relações de poder, ou
mesmo entre a luta contra o perecimento (BUTLER, 2006) e a relevân-
cia das novas dinâmicas de produção das subjetividades. Nos limites

sumário 289
ontológicos e epistemológicos destacados por ela estão presentes
não apenas perguntas, mas, sobretudo, chaves de desestabilização
e de subversão de estruturas opressivas do saber. Reside a potência
política dos corpos-que-narram, dos corpos-que-enunciam e impõem
ou invocam as suas existências radicalmente.

AGÊNCIA E ESCRITA: PARA


A CONSIDERAÇÃO DOS GÊNEROS
NA/DA ESCRITA CIENTÍFICA

Em que consiste a resistência protagonizada a partir de uma


escrita que subverte a linguagem de gênero? O desejo de deslocar
o(a) leitor(a) para as margens e para outras figurações dos sujeitos,
ativa simbolicamente que críticas sobre os limites da linguagem cien-
tífica? Tais perguntas podem ser simplificadas ao passo que conside-
ramos que a escrita é, no fundo, um processo de agência. A adoção
de uma estilística que remete e suscita a presença de sujeitos invi-
sibilizados80 ressignifica, a nosso ver, ao menos a nível do encontro
entre a palavra e a pessoa, a subjetivação em torno da imagem so-
bre quem se escreve. Assim, tal ‘movimento’, como recuperado por
Butler a partir de Luce Irigaray, desvela que a linguagem, o discurso e
a fala são falocêntricos, ou seja, centrados em uma ordem simbólica
masculina ou fálica (CASALE; FEMENÍAS, 2009).

De tal modo, pensar as possibilidades de agência a partir da es-


crita científica significa inscrever a si e a(o) Outra(o) no mundo a partir da
consciência crítica em torno dos fenômenos e da sua própria constitui-
ção, pois: “A esfera pública é constituída em parte pelo que pode apare-
cer, e a regulação do campo da aparência é uma forma de estabelecer

80 Butler (2019) articula a explicação ontológica da existência de determinados sujeitos


com base na ideia de que são ‘vidas não vivíveis’, ou seja, cujo estatuto legal e político
é suspenso. Para melhor compreender esta reflexão, sugiro: ‘Vida precária: os poderes
do luto e da violência’.

sumário 290
o que contará como realidade e o que não contará” (BUTLER, 2019,
p. 08). Nesses termos, a linha que alude a como e ao que pode ser fala-
do também funciona como um instrumento implícito de censura.

A escrita científica dimensionada a partir da leitura butleriana


concebe a possibilidade de os sujeitos produzirem subjetivação dian-
te e apesar da subordinação às normas sociais (BUTLER, 2015b) e
ao espírito inventivo hegemônico. Trata-se do reposicionamento da
razão e da traição à tradição representacionista do pensamento mo-
derno via linguagem não neutra. A adoção fluida de gênero parece-
-me desvelar uma posição intelectual que opera, de alguma maneira,
não como cúmplice de uma ordem racional hermética, mas que invo-
ca e conjura as ordens do saber estabelecidas a partir do “visível e do
invisível, do filosófico e do literário, praticando a arriscada estratégia
do ‘entre’” (SANTOS, 2005, p. 260).

A adoção textual de marcadores discursivos que introduzem, a ní-


vel da consciência, a imagem de diferentes gêneros, põe em movimento
dado predicado político da escrita científica. Afinal, ao trazer à mente
signos que ‘intimam’ o(a) leitor(a), apontam também para os vínculos
que cada sujeito possui (ou não) com tal perspectiva, pois a linguagem,
nesse processo, apresenta a nós o(a) Outro(a) como reconhecíveis:
Quando reconhecemos o outro, ou quando pedimos por reco-
nhecimento, não estamos pedindo para que um Outro nos veja
como somos, como já somos, como sempre fomos, como éra-
mos constituídos antes do encontro em si. Em vez disso, ao pe-
dir, ao fazer um apelo, já nos tornamos algo novo, uma vez que
somos constituídos em virtude de ter alguém se dirigindo a nós,
uma necessidade e desejo pelo Outro que ocorre no sentido
mais amplo da linguagem, sem o qual não poderíamos existir.
Pedir por reconhecimento, ou oferecê-lo, é precisamente não
pedir reconhecimento pelo que já somos. É solicitar um devir,
instigar uma transformação, fazer um apelo ao futuro sempre
em relação ao Outro (BUTLER, 2019, p. 46).

O não-lugar ao qual é lançado(a) o(a) leitor(a) remete ao ende-


reçamento de si sugerido pela autora a partir da palavra escrita, no

sumário 291
qual a desconstrução do lugar comum do ‘eu autor’ decorre de signos
diferenciais que desarticulam o ‘dentro’ e o ‘fora’ da suplementaridade
do texto, é um efeito sem causa. E, como sugere a autora, a referida
estrutura de ‘endereçamento’ tem a ver com o modo pelo qual somos
endereçados pelo(a) Outro(a) e, assim:
Essa obrigação é diferente da reabilitação do autor-sujeito per
se. Trata-se de um modo de resposta por algo ter sido ende-
reçado a mim, um comportamento em relação ao Outro so-
mente depois que o Outro exigiu algo de mim, me acusou de
ter falhado ou me pediu para assumir uma responsabilidade.
Essa é uma troca que não pode ser equiparada ao esquema
em que o sujeito está aqui como um tópico a ser interrogado
reflexivamente, e o Outro está lá, como um tema a ser alcan-
çado (BUTLER, 2019, p. 48).

A mobilização de marcadores de gênero passa, então, a cogitar


outras extensões sensíveis da narrativa e de sua inteligibilidade. Refi-
ro-me a uma outra temporalidade a partir da qual reconhecemos que
“o que nos vincula moralmente tem a ver com a forma como somos
endereçados pelos outros de maneiras que não podemos evitar ou
prevenir” (BUTLER, 2019, p. 50). Portanto, as ressonâncias do endere-
çamento do que é escrito visibilizam dada reflexividade e pensamento
que rejeitam a neutralidade e imagem universal do sujeito do conheci-
mento, sempre assimilado a partir de uma representação masculina,
para incluir outros gêneros, corporalidades e identidades.

O GÊNERO E OS LIMITES
DA ESCRITA CIENTÍFICA

O pensamento e a estilística de Judith Butler são inclinados a


desvelar as conexões entre distintas relações de poder e a fabrica-
ção do discurso, de si-mesmo e sobre o(a) Outro(a). A autora assume
a escrita científica enquanto marcada pela política, caso tomemos a

sumário 292
acepção comum da palavra, e está inclinada a problematizar a des-
construção da razão a partir das margens.

Judith Butler alude a um estilo textual marcado por narrativas


que sejam produtivas frente ao que está estabelecido. Trata-se, por-
tanto, de uma filósofa que suspeita dos modos lineares, progressivos
e representativos de pensar a escritura e os próprios sujeitos, imersos
na linguagem. Procura, diferentemente, cogitar formas de agência a
partir deles, subvertendo-os.

Escrever, sem dúvida, é um ato político. Ou melhor, é uma proje-


ção do imaginário, das subjetividades, dos sentidos que perpassam a
o eu-que-narra, seja pensado ou sentido num tom de alteridade levina-
siana (BUTLER, 2015b; MENDONÇA; CARDOSO, 2018). De toda for-
ma, a política, a ética, a norma, o corpo, a vivência, o uno-múltiplo e o
devir estão presentes nas experimentações produzidas a partir de uma
escrita articulada a partir de marcadores de gênero. Mesmo que al-
guns(mas) tentem transmitir o poder/viver por saber, optando por uma
linguagem científica neutra, para nós, são as fragmentações provoca-
das por tal opção inventiva que produzem um todo fluído e sensível.

A nossa tarefa se encerra no apontamento e no alerta sobre os


males puritanos e repressores de uma escrita analítico-conceitual, ran-
domizada. No entanto, não somos ingênuos a ponto de nos iludirmos.
Todo movimento político, sobretudo aqueles de caráter político-linguís-
tico, enfrenta castrações e obstáculos. É patente a todos(as) que a es-
crita comentada ao longo do ensaio não se aplica ampla e facilmente.

Assim, a subversão gendrificada da escrita (LONDOÑO, Ana,


2011), elaborada por nós, pode ser interpretada como uma plastici-
dade intelectual, experimentação sem ser experimento. A plasticidade
mencionada se faz semântica e expressão do corpo-que-escreve para
alcançar o(a) Outro(a). Por isso, transpassa saberes, utiliza-se de uma
semântica plural, em suas diversas expressões, e afirma que as sub-
jetividades são os movimentos do narrar(-se) através da agência que

sumário 293
escritura provoca. Optando-se, assim, por espaços da experiência e
diálogos (a)metodológicos, insurgentes, para além da mera disciplina,
preocupados com a palavra.

REFERÊNCIAS
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experimentação e os limites da escrita científica: notas a partir de Friedrich
Nietzsche e Judith Butler. In: CARDOSO, Fernando da Silva Cardoso;
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epistêmicos e críticos dos direitos humanos. No prelo, 2020
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identidade. Tradução de Renato Aguiar. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2015a. 23 p.
BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Tradução de
Rogério Bettoni. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015b.
BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Traducción
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BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tradução
Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Tradução
Andreas Liiber. Revisão técnica Carla Rodrigues. 1. ed. Belo Horizonte:
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CANDIOTTO, Cesar. Subjetividade e verdade no último Foucault. Trans/
Form/Ação, Marília v. 31, n. 1, p. 87-103 2008.
CARDOSO, Fernando da Silva; CARVALHO, Mário de Faria. Questões teórico-
epistemológicas à pesquisa social contemporânea: o pesquisador, o ator
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CASALE, Roland; FEMENÍAS, Maria Luisa. Breve recorrido por el
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(orgs.). Máscaras del deseo: uma lectura del deseo em Judith Butler.
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sumário 294
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Defert e François Ewald, avec la collaboration de Jacques Lagrange. Paris:
Gallimard, 1994.
FOUCAULT, Michel. L’Herméneutique du sujet. Cours au Collège de
France, 1981-1982. Édition établie par François Ewald et Alessandro
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LONDOÑO, Ana María Gómez. Hacia la codificación de un centauro de los
géneros “el ensayo” como la práctica de escritura en artes. (Pensamiento),
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SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Tradução Guacira Lopes Louro.
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da letra. In: NASCIMENTO, Evandro et al. Jacques Derrida: pensar a
desconstrução. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. p. 257-270.

sumário 295
13
Capítulo 13

Traduzindo a Travessia:
Judith Butler des-re-
territorializada e o queer
como saber nômade

Marcos Mariano Viana da Silva

Marcos Mariano Viana da Silva

Traduzindo
a Travessia:
Judith Butler
des-re-territorializada
e o queer como saber nômade

DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97457.13
INTRODUÇÃO

Judith Butler afirma habitar muitos territórios: mulher, lésbica, ju-


dia, americana, cidadã, filósofa81. Em sua concepção não há somente
uma identidade, mas sim a operação de viagens entre uma identidade
e outra. Durante sua carreira, essa opinião parece ter se concretizado
em suas obras. Butler escreveu uma tese de doutorado na década de
1980 sobre a recepção do pensamento de Friedrich Hegel na filosofia
francesa, no que diz respeito à dialética do senhor e do escravo em
A Fenomenologia do Espírito. Na primeira metade da década de 1990,
a sua crítica volta-se para as teorias feministas, as questões de gênero
e a temática queer, com a publicação de Gender Trouble (1990), Bo-
dies that matter (1993) e Contingent Foundations (1995). Na segunda
metade da década, quando publicou Excitable speech (1997), The
psychic life of power (1997b) e Antigone’s claim kinship between life
and death (2000), abordou temas da filosofia política e ética através
de um ponto de vista analítico da teoria da performatividade, o que
continuou a fazer nos anos seguintes à virada do milênio com Preca-
rious life (2004b), Undoing gender (2004), Giving an account of oneself
(2005), Who sings the nation-state? (2007)82, Frames of war: When is life
grievable? (2009), isto é, apesar de ser um comentário aparentemente
reducionista, a explicitação de que a autora não se importa muito com
filiações teóricas nem com apegos temáticos, e o que parece ser uma
constante em seus escritos é o desdobramento da noção de Hegel de
que todo desejo é desejo por reconhecimento.

No primeiro e último capítulo de Gender trouble, Butler (1990)


tensiona fortemente a ideia de representação, subvertendo e introdu-
zindo novos problemas temáticos na lógica do reconhecimento, como
por exemplo, a noção de inteligibilidade de gênero. E é isso que ela

81 ZADJERMANN, Paule. Judith Butler, Filósofa en todo Género. Arte France, 2006. Duração:
52min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KkB8O7-jGoM&feature=you-
tu.be acesso em 11 out. 2022.
82 BUTLER; SPIVAK (2007).

sumário 297
continua a fazer em Bodies that matter (1993) quando aprofunda o
conceito de abjeção. Ou em Precarios life (2004b) e Undoing Gender
(2004), ao evidenciar os limites do reconhecimento de corpos e vidas
vulneráveis que demandam reconhecimento como sujeitos que preci-
sam ter a sua humanidade e cidadania garantidas, como são os casos
das pessoas intersexos e dos detentos indefinidos de Guantánamo.

Butler continua a problematizar a questão do reconhecimento


nos seus escritos mais recentes, como em Frames of war: When is
life grievable? (2009). Segundo a autora, uma vida para ser chorada e
enlutada precisa ser reconhecida enquanto vida, e parece ser a partir
disso que ela elabora a sua crítica em diferentes textos sobre os ini-
migos de guerra americanos e sobre a condição dos palestinos em
decorrência da atividade colonial do Estado de Israel, como é pos-
sível perceber em sua obra Parting ways: Jewishness and the critique
of Zionism (2012). Nos seus últimos livros, por exemplo, Notes toward
a performative theory of assembly (2015d) e The force of nonviolence
(2020), Butler alcança uma noção de representação corpórea plural e
performativa através da formação de alianças em diferentes espaços:
nas ruas, numa praça ocupada, em ambientes virtuais online, etc., que
indicam ter como foco a reclamação e transformação política demo-
crática pela via da luta por garantia e efetividade de direitos que pos-
sibilitem a viabilidade da vida dos corpos e sujeitos pertencentes às
minorias historicamente oprimidas, como a população preta, mulheres,
LGBTQI+, indígenas, refugiados/as e pobres, ou seja, sujeitos que de-
mandam habitar territórios de reconhecimento.

O TERRITÓRIO PODE
SE DESTERRITORIALIZAR

O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada


sobre si mesma. Ele é o conjunto dos projetos e das represen-
tações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma

sumário 298
série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos
espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos (GUATTARI &
ROLNIK, 1996, p. 323).

Para Deleuze & Guattari (1997), um livro pode ser entendido


como um território. Nesse caso, pode ser possível tomar como exem-
plo as obras de Butler e os estudos queer como territórios que foram
agenciados nos últimos anos no Brasil, ou seja, Problemas de gênero
(2003) e os estudos queer enquanto agenciamentos, que por definição
são territoriais de acordo com Deleuze & Guattari (1997). Esses agen-
ciamentos foram operados, transportados, transformados, ressignifi-
cados. Talvez possa ser dito que as ideias de Butler e o insulto contido
na expressão queer no contexto norte-americano chegaram até ao
Brasil através do procedimento da desterritorialização, “o movimento
pelo qual se abandona o território. É a operação da linha de fuga” (DE-
LEUZE & GUATTARI, 1997, p. 224). Segundo os autores, o território é
tensionado para se desterritorializar por distintos problemas ou fatores
que surgem na trajetória da experiência. Gender Trouble foi lido e in-
terpretado a partir da década de 1990 como uma linha de fuga entre
uma corrente feminista ainda marcada pelo essencialismo corporal de
gênero e os estudos gays e lésbicos que não abrangiam a pluralida-
de das experiências identitárias dissidentes da norma heterossexual.
Ao mesmo tempo, a obra foi lançada e introduzida em territórios es-
trangeiros, que pouco compreendiam o que significava o queer, como
o livro fundamental para entender a própria teoria queer. Esse aspecto,
inclusive, serve para reforçar o apelo colonizador do pensamento que
o queer exerceu no Brasil. Em outro momento, Guattari e Rolnik (1996,
p. 323) explicam que “o território pode se desterritorializar, isto é, abrir-
-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair de seu curso e se destruir”.
É quase certo que a teoria queer tenha sofrido uma abertura, em rela-
ção à forma como foi concebida originalmente devido aos encontros
que a viabilizaram em contextos fora dos Estados Unidos, mas depois
de trinta anos de atuação, devoração e críticas pelo mundo, será que
já não chegou a hora da teoria queer se autodestruir?

sumário 299
Pode-se encontrar diferentes exemplos da amplitude geográfica
dos estudos queer como são os casos da Queer African Reader83, Eu-
rope Queer84 e ‘Queer’ Ásia85, redes de ativistas, estudiosos/as, acadê-
micos/as, performers e/ou artistas que mobilizam de alguma maneira a
perspectiva queer em seus continentes. Parece ser comum em todas
esses arranjos o interesse em problematizar contextualmente o queer,
isto é, não o aceitar como uma espécie de teoria industrial encaixante
de dissidências sexuais e de gênero locais de cada região, mas como
uma força produtiva capaz de levantar questões, além da demanda gay
e lésbica, nas lutas feministas, na agenda pública e na reivindicação
por garantia dos direitos humanos das minorias sexuais e de gênero.
A inserção e ressignificação da teoria queer nesses territórios estran-
geiros talvez tenha permitido o encontro de maneira não-hierárquica e,
portanto, bastante efetiva do corpo abjeto reconhecido como queer, ou
seja, o corpo que está nas fronteiras ou além dos limites da inteligibi-
lidade de gênero com o corpo negro africano e o corpo asiático, por
exemplo, que são atravessados por outras marcas: de classe, religiosas,
territoriais, etc., possibilitando assim, tanto uma mudança daquilo que se
pode compreender como sendo teoria queer quanto uma transformação
nas tensões sociais locais derivadas de novas produções filosóficas ca-
pazes de dar um sentido para o queer nesses outros territórios.

Foram traduzidos e publicados no Brasil livros de Butler (2014;


2015b; 2015c; 2017; 2018) que apresentam ideias que escapam do
marcador de gênero e alcançam a política, a ética, a vida e o sujeito.
Ela continuou a ser lida e consumida vorazmente em nosso território,
possibilitando, inclusive, a dilatação temática de problemáticas em
pesquisas dos estudos queer brasileiros que se baseiam em sua obra.
Butler parece ser uma autora que se movimenta e o Brasil, por outro
lado, em algumas ocasiões aparenta estar situado distante na tarefa
de acompanhar sua obra, uma vez que parte dos livros de Butler só

83 REA; PARADIS; AMANCIO (orgs.), 2018.


84 Disponível em: https://www.queereurope.com/ acesso em 12 out. 2022.
85 Disponível em: https://queerasia.com/ acesso em 12 out. 2022.

sumário 300
foram traduzidos para o português décadas após a publicação origi-
nal, como é o caso de “A vida psíquica do poder: teorias da sujeição”,
publicado originalmente em 1997 no Estados Unidos e no Brasil so-
mente em 201786. Possivelmente, não compreendemos Butler do mes-
mo modo dos/as leitores/as estadunidenses/as porque não lemos a
mesma Butler, afinal não se pode afirmar que todos que se interessam
pelo pensamento da autora leram os seus livros no original em inglês.
Não que isso seja negativo, os movimentos e significados importados
é que são diferentes porque o referencial temporal é outro.

Com isso, retomando Deleuze & Guattari (1997), vale lembrar


que segundo os autores, a desterritorialização pode ser recoberta
com a reterritorialização, “a reterritorialização pode ser feita sobre um
ser, sobre um objeto, sobre um livro, sobre um aparelho ou sistema...”
(DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 224). Assim, as questões principais
deste ponto são: as propostas teórico-conceituais de Butler foram re-
territorializadas no Brasil? E esse mesmo movimento também ocorreu
com os estudos queer no país?

O QUEER NÔMADE

Possivelmente, o queer tenha assumido uma movimentação


nômade em sua forma de transitar pelo mundo devido a um anseio
epistemológico antropofágico dos territórios estrangeiros (fora dos Es-
tados Unidos e Europa) em encontrar sentido e dar significado teórico-
-político às variadas experiências de gênero e sexualidades em seus
contextos locais, e a consequente característica que o queer pareceu
introjetar: estar sempre de passagem. Ou seja, o queer é oriundo dos
Estados Unidos e lá ele tem um significado específico. Ao sair de seu
território, no entanto, o queer assemelha-se a um produto importado,

86 Consultar a análise de Carla Rodrigues (2019) sobre o espaço temporal das publicações
no original e as traduções em português.

sumário 301
mas não bem embalado. Ao longo dos últimos anos, ele sofreu altera-
ções no momento de sua travessia, recepção e distribuição em terri-
tório estrangeiro, e pode ainda estar envolvido em constante exercício
de interpretação, contestação e tentativas de ressignificação. Assim, o
queer parece ser nômade, no sentido ofertado por Deleuze & Guattari:
O nômade não é de modo algum o migrante, pois o migrante vai
principalmente de um ponto a outro, ainda que este outro ponto
seja incerto, imprevisto ou mal localizado. Mas o nômade só vai
de um ponto a outro por consequência e necessidade de fato;
em princípio, os pontos são para ele alternâncias num trajeto
(DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 51).

Provavelmente, com isso, surja a pergunta: “mas a teoria queer


não migrou para o Brasil e aqui se reterritorializou?”. A resposta pode
ser “sim” e “não”. A teoria queer transitou para o Brasil, mas aqui en-
controu resistências e amparos. Parece ter sido também agente moto-
ra de subversão, ao mesmo tempo que se submeteu às interpretações
e propostas de novos/as leitores/as e ativistas. Porém, a teoria queer
continuou caminhando, isto é, não se apegando a nenhum território a
tal ponto de ser possível realizar uma crítica queer latino-americana aos
estudos queer estadunidenses usando como referência os escritos
queer africanos, por exemplo. O queer não pertence mais aos Estados
Unidos porque é um saber nômade.
É nesse sentido que o nômade não tem pontos, trajetos, nem
terra, embora evidentemente ele os tenha. Se o nômade pode
ser chamado de o Desterritorializado por excelência, é justa-
mente porque a reterritorialização não se faz depois, como no
migrante, nem em outra coisa, como no sedentário (com efeito,
a relação do sedentário com a terra está mediatizada por outra
coisa, regime de propriedade, aparelho de Estado...). Para o
nômade, ao contrário, é desterritorialização que constitui sua
relação com a terra, por isso ele se reterritorializa na própria
desterritorialização (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 53)87.

87 Grifos dos autores no original.

sumário 302
Os estudos queer brasileiros compartilham os mesmos marca-
dores de significantes, de experiências de vida, de processos de sub-
jetivação com a teoria queer estadunidense? A resposta mais prudente
parece ser um não, mas as duas correntes teóricas não se entendem e
são entendidas como queer?

Devido a essas indagações é que interpreto o queer como um


saber nômade, um campo desterritorializado, não pertencente natural-
mente a parte alguma, mas fazendo rizoma88 em diferentes partes do
mundo. No Brasil parece não ser diferente. A teoria queer aqui abran-
ge, ao mesmo tempo, tanto um espaço de produção e discussão in-
telectual sobre como pensar e realizar o queer dos trópicos (PEREIRA,
2012), por exemplo, quanto um debate sobre as tensões Sul-Sul, ou
seja, não somente aquilo que é importado dos EUA e Europa, mas o
que se é elaborado e consumido nacionalmente, a exemplo das ques-
tões levantadas por autoras transfeministas, por exemplo, viviane v.
(2015)89, Jacqueline Gomes de Jesus (2012; 2014); Hailey Kaas (2015)
e Sara Wagner York (2020). O queer se permite ser mexido para todos
os lados, mas por acaso ou força de vontade prefere não ficar perma-
nentemente imóvel em lugar nenhum.

TRADUZINDO A TRAVESSIA

Quando se tem a tarefa de traduzir a obra de uma autora estran-


geira, as palavras e o sentido que elas tomam ao serem lidas em outro
idioma pode se tornar um obstáculo. Isso parece ter acontecido em
obras diferentes de Butler (2003; 2009; 2015a; 2015b; 2018) ao serem
interpretadas no Brasil. Como sinaliza Alice Gabriel (2020), pensar o
ato de “traduzir” um texto é também a reflexão sobre a possibilidade de

88 Ver Deleuze & Guattari, 1995.


89 viviane v. refere-se a Viviane Vergueiro Simakawa e será citada na grafia em minúsculo por
ser uma reivindicação da própria autora.

sumário 303
“trair” o texto, visto que é muito difícil que uma tradução seja totalmente
fiel ao original, pelo fato de algumas palavras não encontrarem signifi-
cados idênticos quando interpretados em outros idiomas.

É o que aconteceu com a palavra queer situada compreensivel-


mente no contexto estadunidense e tão estranha e de difícil entendi-
mento para os brasileiros. O queer era um insulto, que foi agenciado
como ferramenta teórico-política de contestação às normas de gênero,
que defendia a desidentificação, mas que com o passar dos anos,
paradoxalmente, algumas pessoas passaram a se identificarem como
queers. Entretanto, a crítica decolonial emergente na América Latina,
parece ter impulsionado uma mudança de atitude perante conceitos e
noções teóricas advindas do Norte global e cada vez mais propostas
de tradução ao queer surgiram no Brasil e nos países vizinhos, inclu-
sive, como forma de denunciar o espaço subalternizado que latino-
-americanos/as ocupam na construção e legitimação do saber/poder
mundial. Nesse sentido, destaco algumas questões epistemológicas:
o queer enquanto reivindicação da não-identificação fixa de gênero foi
capaz de contribuir para a nossa conscientização identitária enquanto
sujeitos colonizados pelo saber euro-estadunidense centrado devido
a sua dificuldade em ser traduzido? Podemos entender a dificuldade
em traduzir um termo estrangeiro como proposta de colonização do
pensamento? O que traduções erradas de termos podem causar para
o desenvolvimento de uma teoria em território estrangeiro?

Essa última questão assumiu um viés singular no Brasil. Alice


Gabriel (2020) executou um exercício de leitura no original do livro Gen-
der Trouble (1990) e comparou com a versão publicada em português
no Brasil em 2003 pela Civilização Brasileira e traduzida por Renato
Aguiar. A autora alertou para vários erros de tradução, dos mais sutis
aos mais grosseiros, e que serão citados como exemplos a seguir.
a) GENDERED - um dos conceitos centrais para o pensamento
expresso no livro é expresso pelo termo gendered; ele expressa o
processo de “tornar-se um gênero”, um gendered body é um cor-
po já submetido às normas de gênero, e funcionando de acordo

sumário 304
com elas, é um corpo que adquiriu (ou melhor adquire, porque
esse processo é dinâmico e constante) inteligibilidade, inserindo-
-se no esquema hegemônico de significação (e “humanizando”
o sujeito). O tradutor traduz esse termo de formas bem diferentes
como: “gênero”, “categoria de gênero”, “traços de gênero”, “to-
mada em seu gênero”, “cujo gênero”, “de gênero”, “característi-
cas de gênero”, “seu gênero”, “marcas de gênero” (essa última
representando na página 27 também a expressão “mark of their
gender”. Aliás isso pode querer dizer que ela é uma boa tradução,
ou a melhor dentre as escolhidas por Renato Aguiar), nenhuma
das quais consegue abarcar o que o termo quer dizer, me parece
que o termo pressupõe uma construção, movimento, o que o tra-
dutor não conseguiu captar (GABRIEL, 2020, s/n).

Como aponta Gabriel (2020), esse conceito é central no livro


da autora, porém foi traduzido de formas diferentes ao longo da obra
por motivos não explicados. Gabriel chega a propor em um exercício
reflexivo o termo “generadx” como alternativa para tradução, pon-
tuando que o uso do termo, caso fosse adotado numa nova edição,
deveria aparecer acompanhado de uma nota explicativa. A autora
também assinalou diversos outros erros de tradução, como o encon-
trado no livro de Butler (2003) em português, em uma citação que
ficou famosa: “Nesse sentido, o gênero é sempre um feito, ainda que
não seja obra de um sujeito preexistente a obra” (BUTLER, 2003, p.
48). De acordo com Gabriel (2020), uma tradução mais exata aos
termos usados por Butler e a sua perspectiva teórica seria algo como:
Nesse sentido, o gênero é sempre um fazer, ainda que não seja um
fazer de um sujeito preexistente à obra (ou ao feito). Em outros mo-
mentos, o tradutor chega a trocar algumas palavras aparentemente
por falta de atenção a algumas letras, por exemplo:
- Na página 68, logo após a nota 4: “A ponte, o dote” > quando
o correto seria “a noiva, o dote” [do inglês bride e não bridge].
Claramente demonstra falta de atenção.

- Na página 71 temos uma situação parecida: “o que acontece-


ria se ‘os deuses se juntassem’” > o correto seria “se as merca-
dorias se juntassem” [do inglês goods, e não gods]

sumário 305
[..] - Na página 148 temos um erro muito grosseiro: “reprodução
da matriz homossexual do desejo” deveria ser “matriz heteros-
sexual do desejo” (GABRIEL, 2020, s/n).

A troca dos termos heterossexual por homossexual no que diz


respeito à reprodução da matriz do desejo, poderia ter motivado um
erro em bola de neve da interpretação do pensamento de Butler no
Brasil. Algo semelhante também aconteceu com a tradução de “Bo-
dies that matter” para o português em 2019 pela n-1 edições. Yuri
Bataglia Espósito (2020) escreveu um artigo comentando o seu es-
panto ao ler a recente tradução do livro em português e encontrar na
página 214 o subcapítulo “Travestismo ambivalente”, e ao comparar
com a versão em inglês percebeu que se tratava de “Ambivalent drag”
(BUTLER, 1993, p. 124). De fato, o termo como está redigido não
se aplica ao contexto brasileiro, uma vez que neste subcapítulo em
seu texto original, Butler faz diversas vezes referências à expressão
drag e não ao que entendemos no Brasil como travestis. Porém, uma
pista para que isso tenha acontecido é que na edição em língua es-
panhola, o trecho está intitulado como “El travestismo ambivalente”
(BUTLER, 2002, p. 183), portanto, pode ser um indício de que os/as
tradutores/as brasileiros/as possam ter usado a versão em espanhol
como referência para traduzirem essa parte da obra.

Há ainda mais uma questão de tradução que considero rele-


vante e requer ser comentada, diz respeito às diferentes versões que o
conceito de precariedade de Butler (2015b) foi traduzido em português
e em espanhol. Pelo que parece, houve uma confusão entre os signi-
ficados dos termos precariedade e condição precária explicados no
livro da autora “Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?”
(2015b). A equipe técnica e de tradução da versão brasileira interpre-
tou um trecho da introdução da obra onde Butler (2015b) explica as
diferenças entre os conceitos da seguinte maneira:
Este trabalho procura reorientar as políticas de esquerda no
sentido de considerar a condição precária como uma condi-
ção existente e promissora para mudanças em coligações. Para

sumário 306
que as populações se tornem lamentáveis, não é necessário
conhecer a singularidade de cada pessoa que está em risco ou
que, na realidade, já foi submetida ao risco. Na verdade quer
dizer que a política precisa compreender a precariedade, como
uma condição compartilhada, e a condição precária como a
condição politicamente induzida que negaria uma igual exposi-
ção através da distribuição radicalmente desigual da riqueza e
das maneiras diferenciais de expor determinadas populações,
conceitualizadas de um ponto de vista racial e nacional, a uma
maior violência (BUTLER, 2015b, p. 50).

Na versão original em inglês, Butler usa os termos “precariou-


sness” e “precarity”, que em português podem ser traduzidos igual-
mente como precariedade, porém ela usa as duas palavras para
significar coisas diferentes: “Rather, it means that policy needs to
understand precariousness as a shared condition” (BUTLER, 2009,
p. 28). Aqui Butler (2009) está pontuando que a política necessita
entender a precariedade como uma condição compartilhada (ou co-
mum) aos seres humanos, mas na frase seguinte, a autora utiliza o
termo “precarity” para afirmar que:
[...] and precarity as the politically induced condition that would
deny equal exposure through the radically unequal distribution
of wealth and the differential ways of exposing certain popula-
tions, racially and nationally conceptualized, to greater violence
(BUTLER, 2009, p. 28).

A tradução em espanhol resolveu traduzir esses termos, res-


pectivamente, por “precariedade” e “precaridad”. Um outro termo
usado por Butler é “precarious”, mas tem um sentido de adjetivo, ou
seja, Butler utiliza-o em várias passagens do livro quando se refere
às vidas precárias90.

O sufixo “ness” em inglês geralmente aparece quando se ob-


jetiva transformar um adjetivo em substantivo abstrato, a exemplo
da palavra “happy” que quer dizer feliz, ao ser acrescentada o sufixo

90 Precarious Life: The Power of Mourning and Violence é um título de livro de Butler publica-
do originalmente em 2004 e traduzido para o português em 2019 sob o título Vida Precária:
os poderes do luto e da violência.

sumário 307
em questão forma a palavra “happyness” que significa felicidade.
Nesse sentido, pode-se entender que a melhor tradução para pre-
cariousness seja mesmo precariedade. Já, o sufixo “Y” em inglês
quando adicionado a um substantivo pode gerar um adjetivo, por
exemplo: cloud (nuvem), cloudy (nublado); rain (chuva), rainy (chu-
voso); luck (sorte), lucky (sortudo); isto é, “precarity” poderia ser
traduzido também como precário ou talvez até como precarizado,
entretanto, a tradução de “precarity” para condição precária parece
conseguir abranger a intenção original da palavra. Ainda assim, é
intrigante o fato de Butler usar poucas vezes o termo “precarity”
ao longo de Frames of War (2009), “precarity” aparece apenas na
introdução e no primeiro parágrafo do primeiro capítulo. Apesar de
que em alguns momentos do início do texto, Butler associa a pre-
cariedade à condição precária, explicitando, por exemplo, que: [...]
“A concepção mais ou menos existencial da ‘precariedade’ está,
assim, ligada à noção mais especificamente política de ‘condição
precária’” (BUTLER, 2015b, p. 16), e também quando revela que:
A condição precária designa a condição politicamente indu-
zida na qual certas populações sofrem com redes sociais e
econômicas de apoio deficientes e ficam expostas de forma
diferenciada às violações, à violência e à morte. Essas popu-
lações estão mais expostas a doenças, pobreza, fome, deslo-
camentos e violência sem nenhuma proteção. A condição pre-
cária também caracteriza a condição politicamente induzida
de maximização da precariedade para populações expostas
à violência arbitrária do Estado que com frequência não têm
opção a não ser recorrer ao próprio Estado contra o qual pre-
cisam de proteção (BUTLER, 2015b, p. 46-47).

No restante do livro, que vale lembrar são ensaios escritos en-


tre 2004 e 2008, a autora prefere o termo precariedade para se referir
ao caráter precário da existência dos sujeitos em vários contextos di-
ferentes e para denunciar o uso político-midiático que certos agentes,
governos, instituições e discursos fazem sobre as vidas que não são

sumário 308
reconhecidas como precárias e que, portanto, são tomadas como
não merecedoras de proteção91.

Porém, mesmo assim, uma questão ainda ficará entreaberta.


A revisora técnica de Quadros de Guerra (2015b), Carla Rodrigues in-
cluiu uma nota explicativa na publicação de Corpos em aliança e política
das ruas: notas para uma teoria performativa da assembleia (2018), cuja
revisão técnica também ficou sob sua responsabilidade, que declara:
Ao publicar Precarious Life, em 2003, Judith Butler se referia à
“vida precária” ou à “precariedade” com as palavras “precariou-
s”/“precariouness”. Seis anos depois, em Frames of War (Qua-
dros de guerra), a autora se dedicou a distinguir “precarious”/
“precariousness” e “precarity”; na edição brasileira, trabalhamos
com “condição precária”, para referir uma condição universal de
todo vivente, e “precariedade”, para tratar daquilo que se dá de
forma induzida, por violência a grupos vulneráveis ou ausência
de políticas protetivas. Neste livro, assim como em 2003, a distin-
ção de termos deixa de ser importante. Optamos, assim, por usar
“precariedade”, recorrendo a “condição precária” apenas quan-
do a autora se referiu a uma condição universal de todo vivente,
estar exposto à morte (RODRIGUES apud BUTLER, 2018, p. 06).

Essa nota, aparentemente, vai de encontro a tudo que eu ha-


via comentado acima sobre a noção de precariedade e condição
precária, no entanto, não posso deixar de citá-la, mesmo reconhe-
cendo a minha não compreensão dos argumentos que fizeram Car-
la Rodrigues referir-se agora à condição precária como condição
universal dos seres vivos e precariedade a uma forma de violên-
cia ou falta de políticas de proteção às populações vulneráveis, ou
seja, trocando a concepção dos conceitos originalmente usada por
Butler em Frames of War (2009) e revisados por ela mesma na ver-
são brasileira. Talvez um dos motivos dessa confusão seja o fato
que em Notes toward a performative theory of assembly (2015d),
Butler faz diferente do que em Frames of War (2009) e utiliza muito

91 Em Frames of War (2009), Butler usa o termo “precarity” quinze vezes ao longo do livro, já
o termo “precariousness” aparece setenta e uma vezes.

sumário 309
mais o termo “precarity” do que “precariousness”92. Apesar disso,
ela repete a definição formulada em Frames of War (2009):
“Precarity” designates that politically induced condition in which
certain populations suffer from failing social and economic networ-
ks of support more than others, and become differentially expo-
sed to injury, violence, and death. As I mentioned earlier, precarity
is thus the differential distribution of precariousness. Populations
that are differentially exposed suffer heightened risk of disease,
poverty, starvation, displacement, and vulnerability to violence wi-
thout adequate protection or redress” (BUTLER, 2015d, p. 33).

Mesmo assim, a tradução em português da versão brasileira


traduziu esse trecho da seguinte maneira:
A “precariedade” designa a situação politicamente induzida na
qual determinadas populações sofrem as consequências da de-
terioração de redes de apoio sociais e econômicas mais do que
outras, e ficam diferencialmente expostas ao dano, à violência e à
morte. Como mencionei antes, a precariedade é, portanto, a dis-
tribuição diferencial da condição precária (BUTLER, 2018, p. 40).

Basta comparar as duas versões e tomar por base o que a pró-


pria autora definiu conceitualmente em Frames of War (2009) / Quadros
de Guerra (2015b) para perceber que a versão brasileira trocou os con-
ceitos. O que aparenta ser mais preocupante é que pela nota de Carla
Rodrigues (apud BUTLER, 2018) parece que a equipe de tradução e
revisão técnica desses dois livros de Butler entendem que essa distin-
ção de termos não é tão importante, inclusive, em várias passagens de
Corpos em aliança e a política das ruas (2018), o termo “precarity” não
foi traduzido como condição precária, mas sim como precariedade.
Opto por entendê-los não mais como termos, mas como conceitos dis-
tintos que foram amadurecidos por Butler no decorrer de seus escritos,
e que têm significados diferentes como aqui foram assinalados. Contu-
do, a intenção não é a deslegitimação da revisão técnica, uma vez que
foi indicado o acerto da tradução no livro Quadros de Guerra (2015b).
92 Em Notes toward a performative theory of assembly (2015d), Butler faz o inverso do que
realizou em Frames of War (2009), usa o termo “precariousness” apenas quatro vezes, e
escreve o termo “precarity” em cento e quarenta e cinco ocasiões ao longo da obra.

sumário 310
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que se tentou mostrar ao longo deste artigo, além das refle-


xões sobre o nomadismo queer e os movimentos de desterritorializa-
ção e reterritorialização do pensamento de Butler no Brasil, foram os
problemas de tradução quando um livro, os conceitos de uma autora e/
ou as noções de uma corrente teórica realizam uma travessia territorial
que também demanda e causa uma série de atravessamentos, encon-
tros, desencontros e encruzilhadas de palavras, possíveis de serem
cartografadas ao dar um pouco mais de nitidez de que tanto Butler
quanto às perspectivas queer atravessam e são habitadas por mui-
tos territórios diferentes, operando nessas travessias de um contexto
estrangeiro para outro ressignificações de forma e conteúdo capazes
de desenhar contornos distintos de aparência e abrangência. Assim,
pode-se alcançar o entendimento que o queer, por mais que se possa
ser rastreado em sua originalidade, já pertence a um campo plural de
interpretações e apropriações, e que Butler escapa de ser capturada
pelo campo de estudos de gênero e sexualidades.

Os livros e artigos de Butler, assim como o arcabouço teórico-


-metodológico que ficou conhecido como teoria queer transpassam
as fronteiras da língua e do território onde foram originalmente pen-
sadas e discutidas. O termo “fronteiras”, aliás, parece fazer bastante
sentido para ser usado nesse momento. É sobre as fronteiras daquilo
que pode ser representado por um movimento político e identitário que
Butler provoca um debate teórico com exemplos práticos na vida co-
tidiana; é sobre as fronteiras daquilo que pode ser considerado como
uma expressão de gênero inteligível, como uma vida viável, uma vida
habitável, uma vida merecedora de ser enlutada ou lamentada que a
autora realiza uma manobra analítica de introduzir a perspectiva hege-
liana de reconhecimento para colocar em questão os temas da identi-
dade de gênero, corpo, violência, luto, vulnerabilidade e democracia.

sumário 311
Em suma, a minha sugestão é que o pensamento de Judith
Butler e a teoria queer se expandiram ao longo do tempo em diferen-
tes áreas da produção acadêmica das ciências humanas no Brasil, ou
seja, os conceitos e discussões provocadas por Butler e os estudos
queer fizeram rizoma com a realidade brasileira, que não entraram so-
mente por uma porta, mas que foram capturados e ajudaram a cons-
truir corredores de pesquisas e campos de atuação, primeiramente,
nas universidades brasileiras, e posteriormente, nos movimentos so-
ciais de lutas em prol da população LGBTQIAP+.

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sumário 314
Sobre os organizadores

André Luiz dos Santos Paiva


Doutor em Filosofia e Mestre em Estudos da Mídia pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte - UFRN. Graduado em Psicologia na Universidade
Potiguar - UnP e Especialista em Psicologia Social pela Faculdade Cidade
Verde - FCV. Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação
Contemporânea - PPGEduC da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE,
Centro Acadêmico do Agreste, onde integra O Imaginário - Grupo de Pesqui-
sas Transdisciplinares sobre Estética, Educação e Cultura.
E-mail: [email protected]

Mário de Faria Carvalho


Doutor em Sciences Sociales - Université René Descartes - Paris V. Diplôme
d’études Approfondies (DEA) em Ciências Sociais - Université de Caen Basse
Normandie. Professor Associado Nível III do Núcleo de Design e Comunica-
ção e Professor Permanente do Programa de Pós-graduação em Educação
Contemporânea, ambos da Universidade Federal de Pernambuco / Centro
Acadêmico do Agreste. Líder do Grupo de Pesquisas Transdisciplinares sobre
Estética, Educação e Cultura (UFPE-CAA/CNPq).
E-mail: [email protected]

sumário 315
Sobre os autores e as autoras

Alipio de Sousa Filho


Cientista social, membro do Instituto Humanitas da UFRN (e atualmente
seu Diretor), é professor de filosofia política e teorias em ciências humanas.
Doutor em ciências sociais pela Sorbonne-Paris V, foi o criador e editor até
2019 da Bagoas – revista de estudos gays, gênero e sexualidade (UFRN),
atualmente permanece como editor adjunto. Publicou, entre outros trabalhos,
Medos, mitos e castigos (Cortez, 1995), Tudo é construído! Tudo é revogável!
(Cortez, 2017; com edição em inglês pela editora Peter Lang, sob o título
Revoke Ideology (2019), Utopia para o presente: pelo fim de condições que
produzem o sofrimento humano evitável (Paco Editorial, 2022). Nos últimos
anos, tem publicado e ensinado sobre o que tem chamado uma “ontologia
construcionista crítico-radical”.
E-mail: [email protected]

André Luiz dos Santos Paiva


Doutor em Filosofia e Mestre em Estudos da Mídia pela Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Norte. Graduado em Psicologia na Universidade
Potiguar e Especialista em Psicologia Social pela Faculdade Cidade Verde.
Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação Contem-
porânea da Universidade Federal de Pernambuco, Centro Acadêmico do
Agreste, onde é integrante do Grupo de Pesquisas Transdisciplinares sobre
Estética, Educação e Cultura.
E-mail: [email protected]

Berenice Bento
Professora associada do Programa de Pós-Graduação em Sociologia/UnB,
pesquisadora ID do CNPQ, pós-doutora pela CUNY/EUA e pesquisadora
visitante no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Publi-
ca em periódicos nacionais e internacionais e é autora de diversos livros.
Sua agenda de pesquisa está na intersecção de gênero, sexualidade, raça
e colonialismo. Foi agraciada em 2011 com o Prêmio Nacional dos Direitos
Humanos, da Presidência da República, maior honraria do Estado Brasileiro
para os defensores dos Direitos Humanos.
E-mail: [email protected]

sumário 316
Carolina Real Assis Ribeiro
Mestra em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Pon-
tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Graduada em Comu-
nicação Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Letras
pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
E-mail: [email protected]

Djalma Thürler
Doutor em Literatura Comparada, Professor Associado do IHAC/UFBA e Pro-
fessor Permanente do Pós-Cultura (UFBA). Investigador do NuCuS e Diretor
Artístico da ATeliê voadOR Teatro (https://www.atelievoadorteatro.com.br/), é
autor de vários artigos e capítulos de livros sobre teatro, temáticas LGBT+ e
queer nas artes e sobre políticas de enfrentamento da cena contemporânea
com foco na diversidade sexual e de gênero.
E-mail: [email protected]

Elizabeth Sara Lewis


Professora do departamento de Letras e do Programa de Pós-graduação em
Estudos da Linguagem (PPGEL) da PUC-Rio. Doutora e mestra em Estudos da
Linguagem pelo PPGEL da PUC-Rio. Mestra em Estudos de Gênero pela Univer-
sità degli Studi Roma Tre (Roma, Itália) e mestra em Antropologia Social e Etnolo-
gia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS, Paris, França).
E-mail: [email protected]

Fernando da Silva Cardoso


Doutor em Direito - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com
período sanduíche no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coim-
bra, Portugal. Professor Adjunto Nível I do Curso de Direito (Campus Arcover-
de) e Professor Permanente do Programa de Pós-graduação em Formação
de Professores e Práticas Interdisciplinares, ambos da Universidade de Per-
nambuco, e do Programa de Pós-graduação em Educação Contemporânea,
Universidade Federal de Pernambuco/CAA. Líder do G-pense!¿ - Grupo de
Pesquisa sobre Contemporaneidade, Subjetividades e Novas Epistemologias
(UPE/CNPq). Membro e Integrante do Comitê Executivo da Red ALAS - Red
de Académicos(as) Latinoamericanos en Género, Sexualidad y Derecho, Rede
Brasileira de Educação em Direitos Humanos (Coordenador Seção Pernambu-
co), Núcleo de Estudos e Pesquisas de Educação em Direitos Humanos (NE-
PEDH-UFPE) e do Núcleo de Diversidade e Identidades Sociais (NDIS-UPE).
E-mail: [email protected]

sumário 317
Fernando Pocahy
Doutor em Educação, Professor Associado da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, docente do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Pro-
grama de Pós-Graduação em Psicologia Social. Líder do geni - estudos de
gênero e sexualidade. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, Jovem
Cientista do Nosso Estado (FAPERJ) e Procientista UERJ-FAPERJ.
E-mail: [email protected]

Luiz dos Santos Mattos Júnior


Graduado em Ciências Sociais e especialista em Coordenação Pedagógica, Ges-
tão Escolar, Ensino de História. Mestrando em Educação pelo programa de Pós-
-graduação em Educação Contemporânea pela Universidade Federal de Pernam-
buco Centro Acadêmico do Agreste – UFPE-CAA. Membro do grupo de pesquisa
do CNPq: Processos de Subjetivação, Educação, Gênero e Sexualidades.
E-mail: [email protected]

Marcelo Henrique Gonçalves de Miranda


Doutor e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco –
UFPE. Professor do curso de Licenciatura em Pedagogia e do Programa de
Pós-graduação em Educação Contemporânea da Universidade Federal de Per-
nambuco no Centro Acadêmico do Agreste (UFPE-CAA). Líder do grupo de pes-
quisa do CNPq: Processos de Subjetivação, Educação, Gênero e Sexualidades.
E-mail: [email protected]

Marcelo Nogueira
Ator, cantor, produtor e doutorando do Pós-Cultura com bolsa de estudos da
FAPESB.
E-mail: [email protected]

Marcos Mariano Viana da Silva


Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(PPGCS/UFRN).
E-mail: [email protected]

Mariana Pombo
Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Gradua-
ção em Psicologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Graduou-se em Psicologia e em Comunicação Social na UFRJ, onde também

sumário 318
cursou mestrado em Comunicação e Cultura e doutorado em Teoria Psica-
nalítica. Realizou estágio de doutorado sanduíche na Université Paris Diderot
e pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da
UFRJ. É autora do livro A diferença sexual em mutação: subversões queer e
psicanalíticas (Calligraphie, 2021).
E-mail: [email protected]

Mário de Faria Carvalho


Doutor em Sciences Sociales - Université René Descartes - Paris V. Diplôme
d’études Approfondies (DEA) em Ciências Sociais - Université de Caen Basse
Normandie. Professor Associado Nível III do Núcleo de Design e Comunica-
ção e Professor Permanente do Programa de Pós-graduação em Educação
Contemporânea, ambos da Universidade Federal de Pernambuco / Centro
Acadêmico do Agreste. Líder do Grupo de Pesquisas Transdisciplinares sobre
Estética, Educação e Cultura (UFPE-CAA/CNPq).
E-mail: [email protected]

Miguel Rodrigues de Sousa Neto


Bacharel (2002) e Licenciado em História (2004) pela Universidade Federal
de Uberlândia, mesma instituição por meio da qual obteve os títulos de Mes-
tre (2005) e Doutor (2011) em História. É docente do Curso de Graduação
em História e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais, ambos
do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
É Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais no
mandato 2019-2021. Integra o Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Huma-
nos da UFMS. Lidera o Laboratório de Estudos em Diferenças & Linguagens
- LEDLin. Integra a Rede Internacional de Pesquisa em História e Culturas no
Mundo Contemporâneo e o Núcleo de Estudos Néstor Perlongher. É editor
de albuquerque: revista de história. Tem experiência nos Estudos Culturais,
Estudos Gays, Lésbicos & Transgêneros, Estudos Queer, em Linguagens Ar-
tísticas, Mídias e Movimentos Sociais contemporâneos.
E-mail: [email protected]

Perycles Emmanoel Gomes de Macedo


Pedagogo formado Universidade Federal de Pernambuco no Centro Acadê-
mico do Agreste (UFPE-CAA). Mestrando no Programa de Pós-graduação em
Educação Contemporânea da Universidade Federal de Pernambuco no Centro
Acadêmico do Agreste (UFPE-CAA). Membro do grupo de pesquisa do CNPq:
Processos de Subjetivação, Educação, Gênero e Sexualidades.
E-mail: [email protected]

sumário 319
Renata Pimentel
Nasceu no Recife, desde 2010 é docente no Departamento de Letras da Uni-
versidade Federal Rural de Pernambuco, na sede do Recife, mas atua como
professora há mais de trinta anos, tendo atuado também no Ensino Fundamen-
tal e Médio. É graduada em Letras pela Universidade Federal de Pernambu-
co (UFPE), com bacharelado em Pesquisa e bacharelado em Tradução (Lín-
gua e Literatura Francesa). Fez mestrado e doutorado em Teoria da Literatura,
também pela UFPE. É escritora, dramaturga, curadora em artes, roteirista e
cineasta e criadora-intérprete com formação em dança e teatro.
E-mail: [email protected]

Sherry Almeida
Nascida no Recife, é professora há mais de 20 anos, tendo trabalhado no En-
sino Básico e Superior da rede privada em Pernambuco e no sertão da Bah-
ia. É docente da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) desde
2009, quando atuou no curso de Letras da Unidade Acadêmica de Serra
Talhada, no sertão do Pajeú (PE), e desde 2013 é professora do Departa-
mento de Letras na sede da UFRPE no Recife. Possui doutorado e mestrado
em Teoria da Literatura e bacharelado em Crítica Literária pela Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE).
E-mail: [email protected]

Tiago Duque
Professor no Programa de Pós-Graduação em Educação do Campus do Pan-
tanal e na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – PQ nível 2
– Comitê de Assessoramento da Área de Educação/CA-EDU.
E-mail: [email protected]

sumário 320
Índice remissivo

A direito democrático 170


abordagens analíticas 250 discursos sociais 234
academia brasileira 12, 206 discussões gênero 17
adolescentes homossexuais 108 ditadura militar 16, 127
afro-brasileira 128, 129, 130 diversidade cultural 116, 117, 131
alunas lésbicas 46 diversidade sexual 67, 76, 78, 79, 89, 96,
ambiente escolar 8, 13, 32, 43, 44, 47, 48, 112, 174, 317, 321
49, 50, 56, 61, 62, 68, 70, 99, 100, 105, divisão sexual 103
107, 111 E
ambientes virtuais 298
educação 13, 14, 15, 22, 23, 24, 25, 26,
atuação pedagógica 23
30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 38, 39, 40, 42,
atuações artísticas 211
46, 71, 73, 75, 76, 79, 81, 82, 90, 92, 94,
B 95, 96, 97, 100, 113, 117, 119, 121, 123,
binarismos reducionistas 14, 100 126, 133, 134, 157, 182, 184, 228, 314
biopolítica 17, 114, 158, 179, 195, 252, educação confessional católica 14, 73, 94
262, 274, 277 Educação cristã 8, 14, 72
escolas confessionais 73, 81, 82, 89, 93
C escolhas linguísticas 53
campo social 27 escrita científica 10, 17, 283, 284, 285,
categorias epistêmicas 232, 233, 239 290, 291, 292, 294, 321
ciências humanas 16, 18, 50, 96, 203, 206, escritoras brasileiras 14
227, 230, 312, 316, 321 espaço público 205, 241, 242, 266, 275
cisheteronormatividade 14, 116, 119 espírito científico 18, 285
comunicação social 173 espírito científico moderno 18, 285
comunidade escolar 44, 45, 47 estratégia política 110
condições econômicas 170, 241 estrutura colonial 132
contemporaneidade 108, 113, 137, 188, estruturas coloniais 120
196, 252, 272 estrutura social 15, 23, 24, 162, 251, 252
contextos educativos 12, 113 étnico-cultural 236
convenções sociais 140, 153, 239 experiência escolar 44
cultura popular 120, 165 experiências identitárias 15, 136, 249, 299
experimentação política 190
D
democracia radical 242 F
desejo sexual 44, 49, 69, 103, 173 fenômenos sociais 50
desorientação heteronormativa 9, 15, 160 formação religiosa 55
diálogo fecundo 8, 14, 72, 94

sumário 321
G negras escravizadas 10, 17, 246, 248, 250,
gestores escolares 44 251, 252, 254, 255, 258, 264, 265, 266,
grupos sociais 93, 101 268, 270, 271, 272, 274, 275, 276, 277,
278
H normalização sexual 14, 100, 108, 109
hegemônico transfigurado 35 normas sociais 233, 234, 239, 291
heteronormativa 9, 15, 23, 26, 31, 40, 69,
O
101, 116, 160, 162, 172
heteronormatividade 40, 47, 48, 68, 69, 82, orientação ideológica 44
101, 123, 249 orientação sexual 146, 171, 172, 173, 191,
heteronormativo 44, 48 206, 211
heterossexuais 45, 46, 53, 67, 101, 104, P
106, 139, 161, 171, 247
padrões sociais 93
heterossexualidade compulsória 82, 103,
paisagem lésbica 173, 174, 175
161, 178, 195
paradigma científico 50, 51
historiadores essencialistas 211
parâmetros heteronormativos 23
homossexualidade 50, 59, 60, 63, 67, 69,
pedagogia confessional 14, 89
104, 107, 134, 171, 211, 215
pensamento pedagógico 90, 97
I perseguição militar 128
iconografia católica 14, 86 personagens femininas 15, 126, 164, 177,
identidade lésbica 60, 174 178, 322
identidade sexual 110, 111, 179 pessoas lésbicas 206, 211
identificações sexuais 55 plenitude espiritual 88, 129
igualdade natural 35 políticas queer 8, 12, 38
imperativos biológicos 249 políticos feministas 37
instituições educacionais 48 preconceito racial 168, 178
instituições educativas 94 predisposição sexual 103
instrumento transfóbico 107 processo educativo 44, 91
inteligibilidade humana 234 produção artística 128, 206
produções cinematográficas 187
L propriedade emocional 165
lógica heteronormativa 26, 31, 40
Q
M questões raciais 170
meninos gays 48, 50, 56, 69, 71
R
mitologia cristã 129
mulheres escritoras 14 racismo estrutural 165
múltiplas filosofias 229 realidade brasileira 18, 312
reconhecimento social 240
N redes sociais 55, 84, 137, 141, 151, 308
narrativa acadêmica 247 regime normativo 109, 110
narrativa documental 16 regime político 103
narrativa feminista 177 regulações sociais 104

sumário 322
relações sociais 52, 128, 165, 171, 183, T
226, 268, 275 teologia contemporânea 90
representações sociais ideológicas 236 teorias educacionais 46
S teóricas feministas 102
território escolar 9, 14, 98, 106, 111
sexo 14, 15, 44, 49, 70, 77, 79, 81, 83, 86,
território estrangeiro 18, 302, 304
100, 102, 103, 104, 106, 108, 109, 110,
tradicional associação 48
113, 114, 136, 142, 143, 144, 149, 153,
transformação social 23, 26, 35, 120, 281
154, 156, 158, 161, 164, 179, 202, 207,
transgressão social 14, 118
217, 236, 253, 268, 271, 276, 313
sexo biológico 49 V
sexualidade humana 44, 79 valoração cultural 236, 237, 240
sexualidades 8, 12, 13, 14, 23, 28, 43, 45, vida social 70, 235, 237
46, 73, 74, 75, 78, 81, 89, 90, 93, 102, 127, violência despendida 35
156, 177, 249, 301, 311 violência legítima 164
sexualidades lésbicas 8, 13, 43 violência masculina 170
sociedades complexas 235
submissão feminina 108
superioridade cultural 165

sumário 323

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