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Água funda ,
de Ruth Guimarães:
Mário, Valdomiro,
o medo
e “aquela filosofia
que só se encontra
na linguagem
do povo”
Água funda by Ruth Guimarães: Mário, Valdomiro, the Fear and “That Philosophy
One Finds Only in the Common People’s Language”
1
Doutoranda a partir de 2019 e mestra em 2013 pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura
Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH - USP, sob a orientação de
Ivan Francisco Marques. E-mail: [email protected]. ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-
4818-908X
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Resumo
O artigo pretende destacar a contribuição que Ruth Guimarães (1920-2014) trouxe
à comunidade literária com seu romance Água funda, de 1946. A carreira da autora
deu-se a partir do encontro com Mário de Andrade, aqui analisado, que inseriu sua
escrita dentro de anseios significativos da estética modernista. O texto demonstra
também como o romance banhou-se no pioneirismo que seu conterrâneo,
Valdomiro Silveira, teria feito a partir do material folclórico e linguístico da região
do Vale do Paraíba, conseguindo Ruth, por sua vez, superar problemas que o
escritor pré-modernista teria enfrentado ao tentar dar vitalidade e naturalidade
àquele dialeto caipira. Água funda recria de modo ímpar o que a autora chamou de
“aquela filosofia que só se encontra na linguagem do povo”, agregando
contribuições da cultura oral ameríndia, nagô e europeia, também retratadas no seu
estudo folclórico sobre o medo, de 1950. Dessa forma, traz a perspectiva feminina
de quem cresceu dentro daquele sistema simbólico, invocando assim o conceito de
“escrevivência”, de Conceição Evaristo, e o chamado “lugar de fala”, formado a
partir da contribuição de Gayatri Spivak e Linda Alcoff, nos anos 1980, e, hoje, uma
das maiores bandeiras da crítica cultural feminista.
Palavras-chave
Ruth Guimarães. Autoria feminina. Mário de Andrade. Valdomiro Silveira. Prosa
modernista regionalista.
Abstract
The article gives light to the contribution Ruth Guimarães (1920-2014) gave to the
literary community through her novel Água funda (1946). The author’s career had
a starting point in an encounter with Mário de Andrade, developed here, which puts
her writing into significative approaches of the modernist aesthetics. The text also
shows how it was influenced by the pioneerism of her townsman Valdomiro
Silveira, when dealing with the folk culture and linguistics from Vale do Paraíba
area. Ruth, however, could overcome some of the difficulties he had faced when
shaping this caipira dialect into something vivid and natural. Água funda recreates
uniquely what her author called “that philosophy one finds only in the common
people’s language”, bringing together contributions from oral cultures, such as the
Brazilian native American, the Nagô and the European ones, which are also part of
her folk study about the fear, from 1950. This way she brings the perspective of a
woman who was brought up into that symbolic system, related to the concept of
escrevivência by Conceição Evaristo and to the “place of speech” one, formed in the
1980’s with the Gayatri Spivak and Linda Alcoff’s contribution to one of the major
issues of the cultural feminist criticism today.
Keywords
Ruth Guimarães. Women’s novels. Mário de Andrade. Valdomiro Silveira.
Modernist regionalist prose.
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Alinhar, conduzir, entrosar. Eis o que Ruth faz nesse trabalho, que só viria
ser publicado em 1950, e que se chamou Os filhos do medo. E, como veremos a
seguir, modificou a linguagem, de modo a torná-la mais próxima do universo oral
que se propõe reconstituir: ela reagiu à altura.
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O fato de ela ser essa “caipirinha sem nenhum polimento” fez toda a
diferença. Num prefácio que escreveu em 1974 para uma coletânea de contos do
pré-modernista Valdomiro Silveira, ela mesma, sem falar de si, dá as pistas para esse
elemento importante que os distingue. Valdomiro (1873-1941) é conhecido como
o precursor do regionalismo, e sendo também da mesma cidadezinha de Ruth, usou
antes dela a linguagem dos caipiras e mestiços valeparaibanos em sua literatura.
Segundo a autora:
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Esse mover-se de uma variante culta no narrador para outra popular nas
falas dos personagens foi comentado por Mário em “O Movimento Modernista”:
Isso, Valdomiro viria quebrar na obra Leréias – histórias contadas por eles
mesmos, publicada postumamente em 1945, onde o narrador é também um caipira.
Segundo Élis Bernardo:
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Ruth usou o conto “Os curiangos”, desse escritor, como uma das inspirações
para aspectos centrais de Água funda, tornando sua obra um fruto desse
pioneirismo de Valdomiro, assim como aconteceu com Guimarães Rosa – estudos
apontam que esse “precursor regionalista de Cachoeira Paulista” também iria
influenciar parte da obra do famoso escritor mineiro (SPERBER, 1996).
Uma feliz composição da linguagem do caipira foi conquistada por Ruth em
seu primeiro romance, superando alguns dos impasses criados em torno dessa
empreitada. Antonio Candido, no prefácio à segunda edição, comenta:
Que frio! Sentiu? É a morte. Passe, morte, que estou bem forte.
Ou então é a alma de Maria Carolina, que Deus guarde, que veio
tomar conta do que foi dela. Quem havia de dizer que a dona
deste fazendão ia acabar como acabou, pobre e sozinha, numa
casa que a Companhia lhe cedeu, por esmola? (GUIMARÃES,
2003, p. 17).
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Transcrição para o vídeo Escritora Conceição Evaristo é convidada do Estação Plural, da TV Brasil.
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“João Ribeiro, também concordando com seu parentesco, afirmou que os Puris eram sobreviventes
do grupo dos Goitacás. Mais cauteloso, Estevão Pinto escreveu: ‘acredita-se que os coroados, puris e
coropós sejam seus descendentes’.” (REIS, 1979, p. 64).
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Pois o mar que é o mar, tem maré, por causa da lua! [...]
Curiango é também como o tempo, quando está para chover, e é
como a lua. (idem, p. 79)
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A partir desse ponto, todas as citações de GUIMARÃES, 2003 serão indicadas apenas com o
número da página.
5
“Todos os contos que fizeram parte d’Os Caboclos, Valdomiro os escreveu entre 1897 e 1906” in
SILVEIRA, Agenor, 1962, p. ix.
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São conhecidas como engole-ventos pelo seu hábito de alimentarem-se de insetos, voando baixo
com o bico aberto para pegá-los.
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perturbadora, tem aquele que seria o seu primeiro ataque ou crise, assim que se vê
por ela apaixonado. Como Pedro Mariano, também perde o sentido e termina numa:
tranqueira de pau seco, no fundo de uma perambeira medonha.
Não se lembrava como tinha caído. Só se lembrava que tinha
corrido, cego, no meio da escuridão, e que Curiango vinha
correndo atrás com aqueles olhos de jaguatirica esfomeada. Foi
milagre não ter morrido com o pescoço quebrado. (idem, p. 87)
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povo acreditava que “tinha oração de fechar o corpo”, ao que a narradora discorda:
“o que ele tinha era sangue forte, e fumo do bom para botar na ferida” (idem, p. 33).
Ofereceu um amor ilimitado à Gertrudes, filha de Sinhá. Amor à princípio
ambíguo, mas que acaba se revelando mais paternal do que outra coisa. Presenteava
a menina com toda espécie de mimo, e ela os recebia feliz, parecendo estar mais à
vontade convivendo com essa cultura originária do que com a riqueza europeizada
da mãe. Além de passeios de canoa, entre os mimos havia joás vermelhos em uru de
palha trançada, balaio de jabuticabas, galos da serra dentro de gaiolas de taquara e
arame fino, latinhas com lambaris de rabo prateado, cesta de pêssego maduro,
espiga de milho verde, melancia. Sinhá comenta: “qualquer dia pede a lua e mecê
traz. / - É, dona. Se não estivesse tão alto...” (idem, p. 30). Tal apresentação mostra
Inácio como o elemento indígena que permanece presente, paralelo à vida colonial,
interagindo com ela mais como observador, sem assimilar sua cultura e sem se
dobrar aos desmandos da Sinhá. O fato de morar nas vertentes que dão escoamento
às águas da fazenda simboliza a sua instância originária na geografia e na
composição da população. Na medida em que essas águas são comparadas às
“lágrimas que a mãe-d’água tem chorado”, relembram a triste desapropriação que
os indígenas têm sofrido ao longo do tempo. Quando Sinhá impede a felicidade
amorosa da filha com o filho do capataz, o indígena contraria suas ordens, tomando
a proteção da menina e de seu novo marido para si. Se afasta dessas terras para só
voltar quando Carolina abandona a fazenda: “- Ele tinha que voltar. O Bugre é
nativo destas paragens. É cria daqui mesmo...”. (idem, p. 66). Retorna no segundo
núcleo de tempo, com algumas aparições mínimas de passagem no ambiente, vistas
pelo Joca, e discretamente comentadas. É de fato novamente focado pela narração
quando sua morte chega, de picada de urutu preto, o segundo a compor a trama de
tragédias que acomete a todos no desfecho do romance, dentro do conjunto ligado
pelo narrador à “praga”. Porém, no seu caso, a voz que narra o isenta de culpa: “Esse
desconfio que não foi por causa de praga, pois não devia nada” (idem, p. 237), a que
Seu Pedro Gomes discorda. Naquele dia o Bugre tinha saído sem o seu fumo, e,
surpreendido pelo animal peçonhento, não pôde aplicar aquela planta de cura,
conhecimento acumulado pela sua sabedoria ancestral. Termina dando sinais de
que havia expirado tentando uma simpatia de luta de vida e morte contra a cobra:
Os da cidade não sabem, mas o povo aqui todo acredita: diz que
não há, para mordida de cobra, como arrancar e comer na hora
o coração dela. Não digo que é certo, nem que não é. Abusar não
presta. É ver que o Bugre fez a simpatia e, pra ele, não adiantou,
ou não deu tempo. (idem, p. 203)
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Também cabe aqui vislumbrar a marca que o elemento nagô deixou nessa
comunidade do Sul de Minas. O filósofo Muniz Sodré, em seu livro Pensar nagô7,
ao expor o saber ético e cosmológico dos africanos, contrastando-o com o
pensamento hegemônico eurocêntrico, aponta para sua validade enquanto modo
de pensar filosófico complexo, questionando o seu entendimento como algo
circunscrito ao campo religioso. Sua especificidade se dá, segundo ele, por
comportar uma liturgia que “passa mais pela dimensão de um ativo pensamento de
Arkhé8, do que pelo plano religioso stricto sensu” (SODRÉ, 2017, p. 20) com “fortes
pontos de contato dialógico entre as diferentes filosofias, isto é, um mútuo
atravessamento dos conceitos e das imagens trabalhadas pela razão, tanto a
instrumental como a sensível” (SODRÉ, 2017, p. 29). Esse recurso metodológico,
denominado por ele “modulação”, de estabelecer analogias entre os procedimentos
afros e outras filosofias, traz “correspondências analógicas que não são
necessariamente conciliatórias ou harmônicas, mas que abrem caminho para novos
termos nas disputas de sentido” (SODRÉ, 2017, p. 32). O pensamento nagô
enquanto filosofia da diáspora tem outro modo de pensar “a experiência vertiginosa
do pensador europeu (que inclui o sonho e processos “patológicos”) confrontada
com a ambiguidade do transe e as metamorfoses de gênero” (SODRÉ, 2017, p. 80).
É uma cultura (assim como a dos hindus e dos chineses) que não separa o real
cósmico do humano, tendo uma diátese filosófica “média” (melopeica e fanopeica),
em contraste com a diátese “ativa” logopeica da filosofia platônica e aristotélica. A
Arkhé africana seria um princípio coletivo, uma experiência da alacridade (ou
alegria) que transparece nos mitos, nos ritos, nos aforismos9, nas invocações,
narrativas e cânticos. Se dá na fala – escrita ou oral – entre um locutor e um ouvinte
abrangendo os vivos e os mortos. Sodré sustenta que, enquanto o sujeito da diátese
ativa é o filósofo, o sujeito da diátese média é o sábio, que “não individualiza a
autoria de seus pensamentos expressos em máximas, aforismos, ou nos enunciados
da memória mitológica, por sua vez constituída como sujeito coletivo de
pensamento” (SODRÉ, 2017, p. 141).
7
“Nagô tornou-se um nome genérico para a diversidade do complexo cultural, na verdade
equivalente à palavra ioruba, designativa dos falantes dessa língua, que em determinados momentos
teve trânsito mais amplo na África. A insistência na denominação “nagô” – mas também “jejê nagô”
– conota, para nós, a pouca familiaridade brasileira com a diversidade étnica dos escravos, mas ao
mesmo tempo a preponderância do comércio intenso entre a Bahia e a costa da África Ocidental,
portanto, a manutenção do contato permanente entre os nagôs da diáspora escrava e as suas regiões
de origem”. (SODRÉ, 2017, p. 132).
8
“é termo grego a ser por nós acentuado tanto no sentido de “origem”, como no sentido (aristotélico)
de “princípio material” das coisas. [...] Esse princípio é propriamente filosófico (pois não se trata
apenas de crença religiosa, mas principalmente de pensamento cosmológico e de ética, cuja
terminologia é variável) com roupagem religiosa, ou seja, pertencente a uma filosofia trágica, que
afirma o divino como uma faceta da vida, mas sem teologia. Nessa composição complexa, uma
metade é claramente humana, a outra pertence à ordem do “suprarracional” ou do “divino”.”
(SODRÉ, 2017, pp. 132-133).
9
Aqui entendidos como “elaborações de valor local que não pretendem coincidir com uma verdade
única, mas abertas a conexões associativas. Fazer o pensamento refletir e guardar tanto o visível
quanto o invisível do tecido simbólico constitutivo do comum fundamental e inerente ao grupo”.
(SODRÉ, 2017, p. 141).
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mistura o medo de ser levado pela lenda e o de ser traído pela esposa, como fazia a
prima dela com o marido. É significativo que essa lendária figura feminina tenha
sido, a princípio, confundida com a figura da própria Curiango. Em descrição
recorrente feita por Joca, ambas teriam olhos atordoantes e ameaçadores, olhos de
jaguatirica esfomeada: “ela tem algum poder do diabo naqueles olhos” (p. 88). Sobre
a Mãe de Ouro, Joca diz: “alta, com jeito de santa, vestida de amarelo e com os olhos
fuzilando” (idem, p. 168). Joca transfere a esses olhos a perda da razão, do equilíbrio,
do sentido social, num movimento que vai do ciúme, da possibilidade, sem indícios,
de ser pela mulher traído e desonrado, para um medo existencial, que o faz
desapegar de tudo o que o rodeia, o medo da morte. Ele parece se identificar com o
Pai Antonio da lenda, um negro escravo, que é pobre como ele, desprotegido como
ele. Esse escravo seria o único salvo pela Mãe de Ouro. Seus filhos são as pepitas, o
ouro, as jazidas, e ela procura punir todos aqueles que tentam se apossar dessa
riqueza. Pune tanto os senhores como os escravos que vêm a serviço dos senhores.
Somente o Pai Antonio foi salvo, somente ele teria sido tomado para sua proteção,
desde que obedecesse às suas ordens de desapego. E Joca também vai obedecer,
seguindo-a pelas estradas, levado sem vontade própria. O mito é uma figura
feminina ambígua, que não opera na dualidade bem/mal, e sua complexidade reflete
a herança nagô, da sabedoria coletiva dos mitos, que se propaga oralmente e que
tem origem numa experiência da diáspora por excelência, já que é uma lenda que
vem da região da mineração, no Sudeste, a partir do Ciclo do Ouro, no século XVIII,
quando se intensificou a exploração da mão de obra africana.
O capítulo quatorze fecha o destino de quase todos os personagens
envolvidos nas duas “falhas trágicas” enfatizadas no enredo: a do primeiro núcleo
feita por Sinhá, transformada na pedinte Choquinha, e a do grupo de homens (e um
cachorro) envolvidos na humilhação e tortura do aliciador de trabalhadores semi-
escravos. Porém, o fechamento da sina de Joca será adiado para o capítulo quinze,
o derradeiro, quando o círculo narrativo se fecha, concluindo ao seu interlocutor
tudo o que havia sido antecipado. Nesse ponto, a atenção se desloca da dor de Joca
para a dor de sua mulher Curiango. É ela que vem a ser o depositório da
identificação da narradora, que afirma que nela a praga “pegou de ricochete”, na
medida em que sofre a desgraça de Joca por ela, pela filha de ambos, e por ele, que
nesse ponto já está praticamente fora, não mais sente, não mais se importa.
Curiango, que vinha sendo trabalhada pela narração em uma chave idealizada, com
grande concentração de imagens poéticas, parecia a princípio ser a personagem que
sucederia o protagonismo de Sinhá no segundo núcleo, inclusive por ser ela a sua
herdeira familiar. Porém, sua força de caracterização transfere ao Joca, seu
admirador, o protagonismo, que ele divide com o grupo que o rodeia, mas sempre
mantendo uma posição de foco maior de interesse. Então, a força simbólica
feminina de Curiango retoma o centro das atenções, finalizando a sina do marido
pelo seu olhar de esposa. A tragédia de Curiango foi a de carregar a dele, por amor
e pela condição feminina de dependência considerável como mulher e mãe,
abandonadas, solitárias e à mercê da sorte de serem marginalizadas num país
patriarcal. Um caso de inocência que sofre. Numa posição radicalmente inferior à
de Sinhá, sua tia avó. Econômica e socialmente, Curiango, como personagem, não
teria tido nem uma fazenda, nem uma hybris para chamar de sua. A fraqueza que
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herda é a fraqueza do marido, que pagaria mais do que os outros a praga rogada. E
o que o tornaria mais vítima dessa praga, segundo uma das conclusões, já
mencionadas, feita por essa narradora ziguezagueante, seria o fato da praga ter se
somado à descrença, tomada como desrespeito, à Mãe de Ouro. A dimensão dessa
não crença (que o caipira chama de “abusar”) pode ser entendida a partir de um
provérbio nagô: “só aprende quem respeita” (SODRÉ, 2017, p. 314). O
desdobramento desse provérbio é relacionado por Muniz Sodré ao entendimento
dado por Wittgenstein ao ethos grupal na formação e fortalecimento das crenças, e
complementado pelo filósofo baiano:
Na base de toda aprendizagem prática está o ethos grupal, ou seja,
a vinculação comunitária, que responde pela formação das
crenças. Por isso, diz Wittgenstein que, para começarmos a crer
em alguma coisa, é preciso que funcione aquele “meio vital” dos
argumentos, que não consiste de uma proposição isolada, mas de
um “inteiro sistema de proposições”, mutuamente apoiadas, de
tal maneira que a luz se expanda gradualmente sobre o todo”. O
que o filósofo deixa de dizer, porém, mais tarde acentuado por
antropólogos, é que esse “meio vital” é intrinsecamente religioso,
daí sua força contínua de convencimento e expansão, o que faz
da religião, não um sistema cultural à parte, mas um campo
simbólico subjacente ao processo de geração e transmissão de
significados. (SODRÉ, 2017, p. 312)
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