Adalgisa Leão Ferreira - GT Heidegger ANPOF2018
Adalgisa Leão Ferreira - GT Heidegger ANPOF2018
Adalgisa Leão Ferreira - GT Heidegger ANPOF2018
”:
Heidegger, Sloterdijk e o Antropoceno
Advento
1
Aqui gostaria de fazer uma pequena digressão: no momento em que finalizo o presente texto, o mundo
parece estar chocado com a divulgação da primeira manipulação genética em bebês. O que eram apenas
“rumores” – um processo de manipulação dos genes humanos em curso na China – se confirmou quando
o cientista He Jiankui anunciou o nascimento de duas irmãs gêmeas com um gene desativado para torná-
las imunes à infecção pelo vírus da AIDS. Seus pares, como o pesquisador espanhol Lluis Montoliu,
atesta que foi aberta uma caixa de Pandora, um gesto de irresponsabilidade colossal, porque não se trata
de uma edição que busca a cura, mas uma melhoria genética. O passo seguinte? Uma eugenia total. O
resultado atual? O mais provável, afirmam os especialistas, é que sejam meninas mosaico: com diferentes
códigos genéticos em suas células. Essas mudanças genéticas por sua vez, serão transmitidas aos seus
filhos e assim por diante. Com a modificação genética de bebês a China criou uma nova estirpe de
humanos. O que em 1999 chocou a Europa em termos de hipótese através da conferência de Peter
Sloterdijk, se tornou realidade mais cedo do que se imaginava.
Cícero se contrapondo à selvageria e brutalidade existentes nos espetáculos oriundos
dos anfiteatros romanos.
Anfiteatro e livro coexistiam enquanto mídias, a tarefa do humanismo foi se
tornar o grande responsável pelo desembrutecimento do ser humano, possibilitando a
sua saída da animalidade. Isso porque o hábito da leitura era capaz de pacificar,
domesticar e desenvolver a paciência, em oposição aos convulsivos divertimentos
advindos dos estádios. Há no humanismo um esforço para reprimir e retrair a
animalidade/selvageria inerentes e latentes ao ser humano.
Acompanhar a história desse humanismo permite a Sloterdijk anunciar a crise
final que o assola nos dias de hoje. Sobretudo porque o humanismo nacionalista –
modelo que se impôs desde o século XIX – não foi capaz de retirar a humanidade de sua
barbárie. Pelo contrário, deflagrou duas grandes guerras que dizimaram a Europa e que
as repercussões para além do velho continente ressoaram nos processos imperialistas
mundo afora, através da tomada de poder sobre todos os seres.
Se, em Regras para o parque humano (2000b), Martin Heidegger é um
interlocutor privilegiado porque permite à Sloterdijk questionar o estatuto/qualidade
ontológica hierárquica da humanidade frente ao animal, posto que para o filósofo da
floresta negra não há nenhuma comunidade possível entre o animal e a essência do ser
humano, é em Weltfremdheit2, texto publicado em 1993, que o questionamento acerca
da relação entre os humanos e as pedras entra em cena. Ao pôr a questão que intitula o
presente trabalho: “por que falar de pedras se o assunto é o homem?” Sloterdijk
problematiza o modo de ser das rochas, esse que também parece não estar unido por
nenhum vínculo com o homem, tal como preconizado por Heidegger desde a década de
1930.
É justamente na preleção que se realizou em quatro partes na Universidade de
Freiburg, no período de inverno 1929/30 e que ficou conhecida como Conceitos
Fundamentais da Metafísica: mundo, finitude, solidão que, no parágrafo 42, Heidegger
elabora sua célebre tese acerca das formas de acesso ao mundo “Nós a fixamos através
de três teses: 1. a pedra (o material) é sem-mundo; 2. o animal é pobre de mundo; 3. o
homem é formador de mundo.” (HEIDEGGER, 2011, p. 230).
É precisamente esse o ponto de clivagem: tanto da teoria heideggeriana quanto
da problematização que aqui se pretende. A tríade animal-homem-mundo foi
2
Utilizo a versão em espanhol dessa obra: Extranãmiento del Mundo (Espanha: Pre-Textos, 2008).
reiteradamente trabalhada e discutida dentro da filosofia (MUÑOZ PEREZ, 2013;
RODRIGUES, 2009; CALARCO, 2008, dentre outros), ora através da diferença entre
animais e homens (que depende da adequada compreensão de sua interpretação do
fundamento do existir humano), ora na afirmação de que o animal é cativo de seu
entorno (em relação ao qual suas ações são mediadas por puro instinto e outras vezes).
A tríade pedra-homem-mundo, no entanto, parece receber menos atenção da
filosofia. Talvez porque desde a publicação de A origem das espécies por Darwin em
1859, o debate em torno da humanidade gire em torno de uma qualidade ontológica da
qual animais e homens podem ou não partilhar em relação ao mundo, mas que mantém
sempre o humano como eixo central. A pedra, claro, não tem lugar nesse debate.
Sloterdijk (2000a) então aposta que existe uma incompreensão ontológica acerca
das funções e origens dos objetos técnicos, posto que são eles que permitem a saída da
prisão fechada pela relação biologicamente determinada com o ambiente. A pedra será
protagonista, no sentido estrito do termo.
Se há uma cena originária da clareira, na perspectiva de uma evolução, ela será
construída por uma sequência de ações em que o pré-homem se utiliza de uma pedra.
Faz em seguida, do objeto em sua mão, um uso que força os fenômenos do ambiente a
ceder: tanto pelo lançar ao longe quanto pelos golpes em proximidade (JACQUES,
2007).
Mas a pedra é mais do que um instrumento, como pode parecer à primeira vista.
O que Sloterdijk está enfatizando é que a pedra é uma técnica de ação à distância,
porque emancipa o vivente do contato corporal com as presenças físicas do ambiente.
Esta tese pode ser descrita como uma forma liminar de teoria, mas sobretudo a
primeira produção com um escopo ontológico no sentido da produção de um efeito no
espaço aberto. Abertura, sobretudo, à consciência de possibilidade de uma mudança,
uma transformação do ambiente. Uma vez que a pedra foi lançada com uma intenção,
uma vez que a pedra foi talhada com vistas a uma tarefa, o mundo não é mais o mesmo
(MUSSI, 2007).
Aqui se exprime pela primeira vez o princípio da técnica: o fato de
emancipar o ser vivente de contato corporal com as presenças físicas
do ambiente. Ela permite ao homem em formação trocar o contato
físico direto pelo contato com a pedra. [...] a técnica da pedra provoca
uma evitação positiva, que se transforma em saber-fazer
(SLOTERDIJK, 2000a, p. 50).
O Antropoceno
Ainda que num primeiro momento a existência humana não esteja ligada por
nenhum vínculo com as pedras como a filosofia ocidental quer acreditar, sabemos que
os Egípcios se esforçaram pela incorporação dos homens às pedras através das
pirâmides; que o destino de Sísifo foi atrelado a uma pedra ao ser condenado a repetir
eternamente a tarefa de empurra-la até o topo de uma montanha; que a Igreja Católica
foi edificada sob uma pedra humana – São Pedro.
Especula-se que a Terra possui cerca de 4.5 bilhões de anos. Esse amplo
intervalo temporal denominado tempo geológico é um campo em disputa dentro da
academia, mas o fato de que as evidências da idade da Terra estão relacionadas com as
rochas que formam a crosta terrestre parece ser ponto pacífico. As rochas têm papel
central porque é através de sua idade (posto que não são todas dos mesmos períodos
nem têm a mesma constituição) que, como páginas de uma longa e complexa história,
temos o registro dos eventos que moldaram a Terra e a vida no passado. A determinação
do cálculo desse tempo geológico é feita através da presença do isótopo de carbono
(C14)3.
O Holoceno é a época do período Quaternário, da era Cenozoica que se iniciou
há cerca de 11,5 mil anos e se estendia até o presente. Nesse período, todas as formas de
vida que conhecemos já estão presentes, com especial destaque para os seres humanos e
a grande interferência que esses já conseguem ter sobre o ambiente.
O antropoceno, por sua vez, é a designação proposta pelo Nobel de química
(1995) Paul Crutzen em um artigo com Eugene Stoermer (2000; 2002) para o que
entendem ser uma nova era geológica do planeta, iniciada com a Revolução Industrial e
intensificada com a 2ª Guerra Mundial. Ou seja, o antropoceno seria a época geológica
atual, dominada pelo homem e que tem lugar após o Holoceno. Nesse sentido, o aberto
do tempo presente é uma encruzilhada entre dois tempos geológicos, mas apenas no que
concerne à determinação oficial por parte da academia, uma vez que as circunstâncias e
a intensidade das ações humanas não são reversíveis.
O quadro é bastante complexo, pois à emergência de uma consciência
“biosférica”, assistimos a dois processos distintos e complementares: de um lado, o
discurso negacionista que se ampara no conceito de “guerra cultural”, que basicamente
diz respeito à disputa narrativa entre os progressistas e conservadores principalmente
sobre questões como evolucionismo, criacionismo e aquecimento global. O
negacionismo do aquecimento global se tornou um item obrigatório no check list dos
discursos conservadores dos Estados Unidos na esteira do mandato do presidente
3
A datação através do isótopo de carbono (C¹4) também é um tema em acirrada disputa no contexto
acadêmico.
Donald Trump e, para 2019 e anos subsequentes já tem a sua versão tropical com a
eleição de Jair Bolsonaro4.
Do outro lado, é justamente da floresta que vem o recado e o pensamento pleno
de lucidez onírica, através da narrativa yanomani de Davi Kopenawa, tal como afirma
Kelly Luciani.
4
Na semana em que finalizo esse texto, os jornais têm como destaque a desistência do Brasil em sediar a
COP-25 – como é chamada a Conferência do Clima da ONU – em novembro de 2019. Um mês após o
pleito, o presidente eleito comunicou que o país desistiria de sediar o evento, citando como justificativas
as “necessidades financeiras associadas à realização do evento” e o “processo de transição para a recém-
eleita administração”. Na verdade, a decisão está afinada a política externa para o clima adotada pelo
presidente norte americano, que Bolsonaro deseja mimetizar. O presidente eleito já manifestou a intenção,
por exemplo, de que o Brasil também deixe o Acordo de Paris, um pacto assinado por 195 países para
conter a emissão de gases agravantes do aquecimento global.
5
Em léxico bastante limitado, pode ser traduzido como “os espíritos da floresta”.
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O antepassado originário: a criatura intermediária entre a natureza divina e humana, também
responsável pela criação das regras sociais e culturais yanomami.
culturas humanas a respeito do tema, essas imagens ganharam vida a partir dos anos
1990 quando nos deparamos com o curso do regime termodinâmico do planeta.
7
Quando da comunicação do presente texto na sessão Heidegger e a Questão da Técnica, o professor
Edgar Lyra Netto (PUC-RJ) fez questões muito pertinentes sobre o tema, em consonância com as críticas
majoritárias a respeito da “virada ontológica” e sua recepção no campo filosófico. Gostaria aqui de incluir
Será mesmo possível e preferível continuar a falar e apostar em “ações
humanas” no sentido empregado pelo humanismo vigente no século XIX e início do
século XX, esse de caráter edificante? Se para com a própria humanidade ele já havia
demonstrado a sua falência (exemplo a 2ª Guerra Mundial e do Holocausto), agora seu
ocaso é reiterado pela matriz geopolítica de cunho climático e ambiental. Sem dúvida,
uma sequência de efeitos perversos de retroalimentação que empurram a espécie para
uma “violência lenta” – que ao que parece será cada vez menos lenta em seu curso,
como também nos provocam Danowski e Viveiros de Castro – para uma experiência
existencial politicamente sórdida, ao sabor do capitalismo mundial integrado.
Antropoceno e Memória
O antropoceno pode então ser descrito como uma época, no sentido geológico do
termo, mas ele aponta para o fim de uma “epocalidade” enquanto tal no que concerne à
espécie. Embora tenha começado conosco, muito provavelmente terminará sem nós: o
antropoceno deverá dar lugar a uma outra época geológica muito depois de termos
desaparecido da face da terra (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014). Um
presente sem por vir, como assinalou Gunter Anders, no qual a ausência de futuro já
começou.
Sabendo que a Terra se desenvolveu em suas transições no tempo geológico
através de quebra de simetria e interligada a subsistemas (rochas, água, ar, vida, etc.),
podemos acrescentar que cada um desses subsistemas contam com formas múltiplas e
muito particulares de memória e que tem, sobretudo, memória a longo prazo8.
Como o conjunto de desenvolvimentos que chamamos de antropoceno se
relaciona com isso? Essa foi a pergunta feita por Bronislaw Szerszynski na sua
uma breve apreciação. Existe uma disputa interna ao campo no qual correlacionismo é o conceito molar.
No entanto, é a partir dele que vislumbramos que o objetivo das “viradas” acaba sendo o mesmo, mas por
estratégias diferentes: num primeiro caso, retirar a humanidade do centro do palco cosmológico por meio
da demonstração de sua insignificância em relação a um absoluto inumano. Num segundo, colocar a
humanidade em suspensão através da correlação hipostasiada: se absolutamente tudo é correlativo; se os
animais, as plantas, os minerais e os fenômenos celestes também pensam e sentem; que centralidade teria
o humano num universo assim considerado? Dois absolutos, dois esvaziamentos do antropocentrismo.
Um por irrelevância da correlação, outro por inflacionamento da mesma.
8
Especialmente nos subsistemas que evoluíram maciçamente em maior complexidade ao longo da idade
da terra, tal como os eucariontes e procariontes, que são a origem na nossa vida biológica.
conferência no Colóquio Internacional Os Mil Nomes de Gaia - do Antropoceno à Idade
da Terra, realizado no Rio de Janeiro em setembro de 2014.
O antropoceno é potencialmente um embaralhamento dos sistemas de memória
da Terra, não apenas para os observadores, mas para a própria Terra, para que ela
esqueça o que sabe! Esquecimento e memória também são temas caros a Heidegger
(como ainda sabemos): em sua metafísica do dasein o filósofo alemão afirma que o
homem vive a época do esquecimento da diferença entre ser e ente, diferença a partir da
qual pode-se compreender o ser que ele mesmo é. A memória se configura então como
uma chave, uma abertura ontológica que proporciona a recordação do ente9. Se a
memória é o modo do dasein se relacionar com o ente, por extensão, podemos afirmar
que esquecer é relacionar-se, porque associado às diferentes formas de recordar, existem
diferentes formas de esquecer.
Será que o antropoceno apenas se insere na memória da Terra? Ou mudará a
forma como a própria Terra se lembra? É importante ressaltar que o antropoceno tem a
ver sobretudo com formas de esquecimento. Quando tratamos de sistemas ecológicos,
limpar uma memória para que o sistema possa construir novas memórias é algo de suma
importância. Espécies invasoras também podem trazer novas memórias para sistemas
ecológicos. A destruição de modos particulares de auto-organização também vem para
questionar a centralidade do estatuto ontológico hierárquico: se não houver mais
humanos para ler um arquivo ou se a própria vida morrer (SZERSZYNSKI, 2014).
O aspecto mais intrigante acerca da experiência entre antropoceno, memória e
formas de esquecimento está na perda da memória cultural – quando sistemas
semióticos através dos quais os seres humanos e não-humanos lembram como interagir
com cada uma das outras espécies são degradados.
Szerszynski (2014) se questiona se a Terra está esquecendo seu modo de lembrar
para desenvolver novas formas de memórias. A minha hipótese é a de que talvez o
antropoceno, mais do que um processo de esquecimento da memória semiótica da Terra
seja, na verdade, um resgate de algo que o pensamento ocidental perdeu, a saber: que o
estatuto de humano não é algo restrito a nós. Daí a falência do esquema explicativo
heideggeriano de que “a pedra é sem mundo”, posto que já está em curso uma
indeterminação entre mundo-ambiente, sujeito-objeto, natureza-cultura, humano-não
humano.
9
Em português, a cacofonia presente nesta frase – recordação do ente/recordação doente – é
extremamente adequada para a definição da experiência que aqui se desenvolveu.
Referências Bibliográficas