Heloisa Carpena & Renata Ortenblad
Heloisa Carpena & Renata Ortenblad
Heloisa Carpena & Renata Ortenblad
Heloisa Carpena*
Renata Ortenblad**
Sumário
1. A questão da sucumbência nas ações coletivas. 2. A inexplicável guinada
na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. 3. Simetria (rectius) igualdade e
supremacia do interesse público. 4. Fundamentos da condenação do réu
sucumbente: simetria ou isonomia? 5. Para a urgente revisão do tema.
Resumo
O Ministério Público faz jus ao recebimento de honorários de sucumbência
quando vencedor nas ações civis públicas. A tese contrária, rechaçada em
precedentes do STJ, fundamenta-se em simetria em relação ao réu, porém não é
aplicada aos demais autores ideológicos, inclusive à Defensoria Pública. A
condenação nas verbas sucumbenciais deve ser vista como instrumento de
desestímulo à judicialização dos conflitos. As autoras propõem a revisão do
entendimento jurisprudencial pela divergência de decisões mais recentes das
Cortes estaduais.
Abstract
The Attorney General´s Office is entitled to receive the defeated party’s fees
whenever the prosecutor brings a successful collective lawsuit. The Superior Court of
Justice (STJ) precedents against the argument should not be grounded on the
principle of equality of the parties but, on the contrary, preference should be given to
the respect of isonomy among the ideological plaintiffs. Attorneys’ fees and litigation
expenses should be imposed by the judge as a punitive measure on those that caused the
dispute. The article proposes a revision of the case-law through appeals based on
most recent local courts decisions.
* Procuradora de Justiça aposentada do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Professora da PUC-
Rio.
** Advogada.
10/06/2020 12:19:06
Heloisa Carpena
Renata Ortenblad
1
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 183.
2
A tutela dos interesses difusos. In: Revista da Ajuris. nº 33, p. 174, 1985.
80 | Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro nº 74, out./dez. 2019
Ganha mas não leva. Porque o vencido nas ações civis públicas não paga
honorários sucumbenciais ao Ministério Público?
suporte técnico até então inéditos.3 A atuação na tutela coletiva depende não
apenas do aporte de conhecimentos em assuntos tão variados como orçamento
público (na proteção dos direitos do cidadão) e biodiversidade (proteção do meio
ambiente), como o trabalho de apoio especializado de peritos e de um corpo de
funcionários para realização de diligências e para a própria tramitação dos
inquéritos civis, que, em algumas promotorias, podem chegar aos milhares. Não
resta dúvida de que a atuação como parte representa custos financeiros,
indispensáveis à efetivação dos interesses coletivos que incumbe ao MP defender.
Curiosamente, consolidou-se no Superior Tribunal de Justiça a tese de que o
MP, quando vencedor nas demandas coletivas nas quais figura como autor, não
tem direito ao recebimento de honorários sucumbenciais. Esta orientação
jurisprudencial é observada nacionalmente, como se constata em inúmeras decisões
que, de forma acrítica e sem o necessário enfrentamento do tema, se limitam a
reproduzir os fundamentos adotados pelo STJ.
Trata-se de questão da maior relevância, não apenas para o Parquet, mas
para todos os autores coletivos. Relevante, não apenas do ponto de vista
econômico, mas para o próprio gerenciamento dos conflitos de massa, tendo em
vista o caráter dissuasório da condenação nas verbas sucumbenciais.
Este artigo pretende trazer para o debate a questão da sucumbência nas
ações coletivas, respondendo aos principais argumentos que apoiam o
entendimento hoje dominante, com dados pesquisados que mostram a evolução da
jurisprudência do STJ sobre o tema e, finalmente, informar sobre o panorama atual
nos Tribunais estaduais, com recentes decisões que impulsionam a revisão da
questão.
3
Para um retrospecto da evolução interna dos órgãos especializados, permita-se remeter ao nosso: “Tutela
coletiva em 2º. Grau. A experiência da criação das procuradorias especializadas no Ministério Público do
Rio de Janeiro.” In: Revista de Processo. Ano 38. nº 225. São Paulo: Revista dos Tribunais, novembro 2013,
p. 295-326. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, n 51, jan./mar. 2014, p. 93-118.
Art. 18. Nas ações de que trata esta lei, não haverá adiantamento
de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer
outras despesas, nem condenação da associação autora, salvo
comprovada má-fé, em honorários de advogado, custas e
despesas processuais. (Grifou-se.)
Primeira Turma; REsp 895.530 PR; Rel. Ministro Luiz Fux; Julg.
14/04/2009; DJe 05/05/2009)
possui Fundo Especial4 , pois a referida destinação orçamentária foi criada com a
finalidade de receber tais recursos, entre outros. Na esteira da jurisprudência do
STJ, a maior parte das cortes estaduais tem se posicionado contrariamente ao
recebimento de verbas honorárias pelo Ministério Público em decorrência de sua
atuação em ações coletivas.
Os tribunais locais, reproduzindo os fundamentos do STJ, rechaçam a
possibilidade de o Parquet receber honorários invocando apenas dois
argumentos, quais sejam, (i) a vedação constitucional contida no artigo 128, §5º, II,
“a” da Constituição Federal; e (ii) o princípio da simetria.
Mas as justificativas adotadas não se sustentam, senão vejamos.
4
Relação de Estados cujos MPs possuem Fundo Especial e as referidas leis que os instituíram: Rio de Janeiro
(Lei n° 2.819/1997); São Paulo (Lei n° 10.332/1999); Minas Gerais (Lei Complementar n° 67/2003); Paraná
(Lei nº 12.241/1998); Rio Grande do Sul (Lei n° 10.572/1995); Santa Catarina (Lei Complementar n°
8.067/1990); Espírito Santo (Lei Complementar n° 366/2006); Alagoas (Lei n° 6.639/2005); Piauí (Lei n°
5.398/2004); Maranhão (Lei Complementar n° 086/2005); Goiás (Lei n° 14.909/ 2004); Roraima (Lei n°
254/2000).
Embora o STJ adote posição contrária à condenação dos réus de ação civil
pública ao pagamento de honorários sucumbenciais em favor do Ministério
Público, a jurisprudência da Corte é uníssona quanto ao cabimento de honorários
em favor da Defensoria Pública, estando tal entendimento, inclusive, sumulado.5
Com fundamento no instituto da confusão, a instituição somente deixará de receber
honorários quando litigar contra a pessoa jurídica de direito público à qual pertença,
nos demais casos, não há qualquer dúvida quanto ao cabimento da condenação.
A distinção traçada pelo STJ entre o MP e a DP em relação à questão, causa
espécie, sobretudo porque os entes encontram-se em situações absolutamente
idênticas, não havendo fundamento legal ou constitucional que justifique lhes
conferir tratamento desigual6.
Em relação à vedação constitucional ao recebimento de honorários, a questão
é simples, pois o artigo 128, §5º, II, “a”, da CF proíbe o recebimento a qualquer
título e sob qualquer pretexto, de honorários, percentagens ou custas
processuais pelos membros do Ministério Público, e somente a estes, não se
referindo à instituição. Ou seja, o que a Constituição veda é o favorecimento
pessoal dos representantes do Parquet, não havendo qualquer óbice ao
recolhimento de honorários pelo órgão público, ainda mais quando houver
Fundos Especiais destinados a receber tais recursos.
Tanto o Ministério Público quanto a Defensoria Pública são legitimados
pela Lei de Ação Civil Pública como autores ideológicos (Lei n° 7.347, art. 5º, I e II).
Em ambos os casos os honorários possuem destinação orçamentária específica,
haja vista que as duas instituições contam com Fundos Especiais próprios, os
quais têm como receita as verbas sucumbenciais decorrentes de sua atuação em
procedimentos judiciais. Não fosse o cotejo suficiente, vale lembrar que é idêntica a
vedação, a qual se destina aos integrantes das duas instituições, cujos membros
são proibidos de receber honorários a qualquer título.
Nada obstante, ao firmar posição favorável ao pagamento de honorários
sucumbenciais à Defensoria Pública em ações civis públicas, o STJ vem destacando
que tal possibilidade emana exatamente da distinção entre os membros da
instituição e os fundos geridos pela mesma. Veja-se:
5
“Os honorários advocatícios não são devidos à Defensoria Pública quando ela atua contra a pessoa
jurídica de direito público à qual pertença.” (Súmula 421, Corte Especial, julgado em 03/03/2010, DJe
11/03/2010)
6
O mesmo ocorre em relação às associações, quando vencedoras em ações coletivas para tutela de
interesses metaindividuais. Cf. STJ, Quarta Turma, REsp 1349188/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão,
julg. 10/05/2016, DJe 22/06/2016.
7
http://www.transparencia.mppr.mp.br/arquivos/File/dfi/FundosSaldosReceitas_Dez2016.pdf
Fica então a pergunta: por que o Ministério Público, e somente ele, não
teria direito ao recebimento dos honorários? Ou, por outra perspectiva, por que
o réu perdedor que litigou com o MP se beneficia do anacrônico entendimento
jurisprudencial e não paga a totalidade das verbas sucumbenciais?
A conclusão é intuitiva, porém fundamentada em dados estatísticos: porque
a maior parte das ações civis públicas ainda é titularizada pelo Parquet. No Rio
de Janeiro, dados do banco das ações civis públicas, disponíveis no site do
Tribunal de Justiça, revelam que em mais de 70% das demandas em curso na
Corte o MP figura como autor. 8
A informação foi recentemente confirmada por estudo pioneiro, patrocinado
pelo CNJ, intitulado “Ações Coletivas no Brasil: temas, autores e desafios da tutela
coletiva”. 9 Entre os principais “achados” relatados em seu sumário executivo,
vale transcrição o seguinte:
8
Segundo informações fornecidas pelo Banco de Dados de Ações Civis Públicas, criado pelo Ato
Executivo TJ nº. 1.172, de 02/04/2008, de 733 ações civis públicas constantes de sua base, o Ministério
Público figura como autor em 562.
9
A pesquisa alcançou mais de 52 mil ações coletivas e ações que utilizam ações coletivas como precedente,
coletadas nos sites dos quatorze tribunais selecionados (os três Tribunais Superiores – STF, STJ e TST
–; os cinco Tribunais Regionais Federais (TRFs) e seis Tribunais de Justiça (TJs) de portes e regiões
diferentes, incluindo Alagoas, Ceará, Goiás, Pará, São Paulo, Rio Grande do Sul). Disponível em:
<www.cnj.jus.br>
10
Sobre os ataques contra o sistema das ações coletivas na primeira década de vigência do CDC, vale
conferir em: GRINOVER, Ada Pellegrini. Ação civil pública refém do autoritarismo. Revista de Processo.
Ano 24. Nº 96 São Paulo: Revista dos Tribunais, outubro-dezembro 1999, p. 28-36. Mais recentemente
retomamos o tema em CARPENA, Heloisa. SOS Ações civis públicas. In: MIRAGEM, Bruno; MARQUES,
Claudia Lima; OLIVEIRA, Amanda Flávio de (Coords.). 25 anos de CDC – trajetória e perspectivas. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2016, p. 305-325.
11
No mesmo sentido: Terceira Câmara Cível; Apelação 0018183-53.2002.8.19.0031; Rel. Des. Fernando Foch
de Lemos Arigony da Silva; Julg. 22/11/2017; Terceira Câmara Cível; Apelação 0001896-51.2012.8.19.0035;
Des. Fernando Foch de Lemos Arigony da Silva; Julg. 29/11/2017; Primeira Câmara Cível; Apelação
0004356- 76.2005.8.19.0028; Rel. Des. Camilo Ribeiro Ruliere; Julg. 11/04/2017; Sétima Câmara Cível;
Apelação 008053- 68.2015.8.19.0024; Rel. Des. Ricardo Couto de Castro; Julg. 02/08/2017; Sétima Câmara
Cível; Embargos de Declaração na Apelação Cível Nº 0407815- 24.2013.8.19.0001; Rel. Des. Caetano Ernesto
da Fonseca Costa; Julg. 4/10/2017; Vigésima Quinta Câmara Cível Consumidor; Apelação 0096382-
59.2014.8.19.0002; Rel. Des. Werson Franco Pereira Rêgo; Julg. 04/10/2017.