Territorios Negros em Jaguarão
Territorios Negros em Jaguarão
Territorios Negros em Jaguarão
em Jaguarão
Organizadores/as:
Organizadores/as:
2022
T327 Territórios negros em Jaguarão [recurso eletrônico] / Caiuá Cardoso Al-
Alam [et al.] organizadores. – Jaguarão, RS: Unipampa, 2022.
65 p. : il..
ISBN 9786500468885
Inclui referências.
Disponível em: http://repositorio.unipampa.edu.br/
Caiuá Cardoso
CDU 94(816.5)
Introdução.......................................................................................................................... 5
Roteiro.................................................................................................................................... 8
Mapa........................................................................................................................................... 8
Jaguarão: uma cidade negra.................................................................................. 9
Cais do Porto de Jaguarão..................................................................................... 12
Praça do Desembarque ou Praça das Figueiras..................................... 15
Mercado Público Municipal.................................................................................. 18
Casarão Barão Tavares Leite................................................................................ 21
Cadeia Municipal, atual Presídio...................................................................... 24
Praça Alcides Marques, antiga Praça 13 de Maio................................. 27
Igreja Matriz do Divino Espírito Santo...................................................... 30
Círculo Operário Jaguarense, antiga Sociedade
Operária Jaguarense................................................................................................... 34
Clube 24 de Agosto....................................................................................................... 37
Clube Recreativo Gaúcho...................................................................................... 40
Clube Suburbanos.......................................................................................................... 44
Outros Territórios Negros em Jaguarão.................................................. 46
Casas de Religiões de Matriz Africana......................................................... 47
Rua do Cordão................................................................................................................. 50
Charqueadas...................................................................................................................... 53
Rastilho................................................................................................................................. 56
Cerro da Pólvora e Bairro Kennedy.............................................................. 59
Quilombo Madeira......................................................................................................... 62
Proposta de atividade pedagógica.................................................................. 65
Introdução
Sejam muito bem-vindos e bem-vindas. Este ebook compõe material didático que faz
parte dos diálogos que formam a condução do projeto de extensão Oficina Territórios Negros
em Jaguarão. Está estruturado por alguns verbetes, que apresentam no fim três indicações
bibliográficas para aprofundamento dos temas abordados. Esta atividade, parte da organização
do Grupo de Estudos Sobre Escravidão e Pós-Abolição, o GEESPA, que tem executado
trabalho de pesquisa desde sua fundação em 2019, debatendo bibliografia e executando
diferentes projetos. Ainda, este coletivo é uma continuidade de práticas de pesquisa do
Laboratório de História Social e Política (LAHISP), do curso de História-Licenciatura da
Unipampa campus Jaguarão, que desde 2011 vem pesquisando os temas da História Social da
Escravidão e do Pós-Abolição.
É importante enfatizar que Jaguarão era e é uma cidade negra: sua experiência histórica
teve intensa presença africana e estava vinculada ao Mundo Atlântico como outras cidades
brasileiras (FARIAS; GOMES; SOARES; MOREIRA, 2006). Se destaca, na história da
Região Platina, como um espaço onde houve intenso protagonismo negro no associativismo
5
operário e na luta contra o racismo. Propor e realizar tal atividade no interior do Rio Grande
do Sul se constitui como um importante ato educativo por questionar a hegemonia de uma
perspectiva de História no Estado que se colocava branca e europeia. A presença da
comunidade negra na região sul tem sido evidenciada em diversos estudos, e Jaguarão se
destaca, para além da densa relevância, por estar vinculada às experiências com as famílias
negras uruguaias (CARATTI, 2013; SILVA, 2017). Nos atentamos na perspectiva de uma
abordagem a partir da História Social da escravidão que busca compreender as agências, as
resistências, fortalecendo narrativas que vislumbrem os amplos protagonismos da população
negra no período. Ainda, compreendemos ser importante focar o campo do Pós-Abolição, nas
lutas do povo negro em busca por cidadania, sendo entendido por Fernanda Oliveira da Silva
como “[...] campo de estudos que oferece um repertório de análises, cujo problema histórico
está centrado nas experiências de liberdade, e especialmente de cidadania, de pessoas
escravizadas e seus descendentes após a abolição da escravidão, identificados e hierarquizados
nas relações sociais por termos que evocam uma ideia de raça” (SILVA, 2017, p. 26).
6
Nesta perspectiva, buscamos contribuir com a atuação de educadores e educadoras da
região, fomentando reflexões juntos aos/as estudantes das escolas, instigando uma educação
inclusiva, antirracista e que fomente o importante debate das políticas de reparações e das
ações afirmativas na educação.
AL-ALAM, Caiuá Cardoso; LIMA, Andréa da Gama. Territórios Negros em Jaguarão. In:
AL-ALAM, Caiuá Cardoso; ESCOBAR, Giane Vargas; MUNARETTO, Sara (Orgs.). Clube
24 de Agosto (1918-2018): 100 anos de resistência de um clube social negro na fronteira
Brasil-Uruguai. Porto Alegre: ILU, 2018b. P. 37-54
FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio dos Santos; SOARES, Carlos Eugênio Líbano;
MOREIRA, Carlos Eduardo de Araújo. Cidades Negras: Africanos, crioulos e espaços
urbanos no Brasil escravista do século XIX. São Paulo: Alameda, 2006.
MATTOS, Hebe; RIOS, Ana Maria. O pós-abolição como problema histórico: balanços e
perspectivas. Topoi, Rio de Janeiro, v. 5, n. 8, jan.-jun.2004. p. 170-198.
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Justiçando o cativeiro: a cultura de resistência escrava. In:
PICCOLO, Helga Iracema Landgraf; PADOIN, Maria Medianeira (Orgs). Império. Passo
Fundo: Méritos, 2006.
SILVA, Fernanda Oliveira da. As lutas políticas nos clubes negros: culturas negras,
racialização e cidadania na fronteira Brasil-Uruguai no Pós-abolição (1870-1960). Porto
Alegre: UFRGS, 2017. (Tese de Doutorado).
1 - Cais do Porto
2 - Praça do Desembarque ou Praça das Figueiras
3 - Mercado Público Municipal
4 - Casarão Barão Tavares Leite
5 - Cadeia Municipal, atual Presídio
6 - Praça Dr. Alcides Marques, antiga Praça 13 de maio
7 - Igreja Matriz do Divino Espírito Santo
8 - Círculo Operário de Jaguarão, antiga Sociedade Operária Jaguarense
9 - Clube 24 de Agosto
8
Jaguarão: uma cidade negra
A cidade de Jaguarão, foi uma cidade negra e africana durante o século XIX. A antiga
Guarda do Serrito surge da demanda de ocupação do projeto lusitano nas Américas. A partir
de 1790, com as doações de sesmarias, a região passa a ser ocupada para criação de rebanhos.
O acampamento militar que originou o território, se deu em 1802. A demarcação da fronteira,
e a lógica de ocupação colonial, foi fundamentalmente realizada com base no sistema da
escravidão. A usurpação da mão-de-obra compulsória está intimamente ligada à política
fronteiriça colonial e também à estratégia de ocupação do lugar. Desde este princípio,
africanos/as escravizados/as, foram trazidos/as para Jaguarão. Com a expansão da produção
agrícola e criação de gado vacum, o número de pessoas escravizadas na localidade foi
aumentando. Posteriormente, Jaguarão foi espaço intenso da produção saladeiril, com a
constituição de charqueadas, que abasteciam o mercado local e regional. Ainda, foi espaço
atrativo para práticas de comércio e contrabando, todas também assentadas no trabalho
escravizado.
FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio dos Santos; SOARES, Carlos Eugênio Líbano;
MOREIRA, Carlos Eduardo de Araújo. Cidades Negras: Africanos, crioulos e espaços
urbanos no Brasil escravista do século XIX. São Paulo: Alameda, 2006.
MATTOS, Hebe; ABREU, Martha; GURAN, Milton (Orgs.). Inventário dos lugares de
memória do tráfico atlântico de escravos e da história dos africanos escravizados no
Brasil. Niterói: PPGH-UFF, 2014. p.18-19.
10
Fotografia s/d. Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Jaguarão.
11
Cais do Porto de Jaguarão
O rio está na gênese da fronteira, marco físico e central entre conflitos militares,
ocupação do território e escravização. Também marco de travessias, comunidades solidárias,
vivências, trocas e experiências de liberdade. É na beira do rio que forma-se o povoado que
dará origem à cidade, a partir de um acampamento militar português instalado nas
proximidades da antiga Guarda espanhola do Cerrito, no ano de 1802. Região de intensidade
na passagem da população que realizava comércio, contrabando e também acessava o
Uruguai. Não por acaso nossa atividade da Oficina dos “Territórios Negros” inicia-se aqui,
tomando em consideração o papel central do rio como uma veia que transporta e conecta
produtos e gentes, na região platina, no Brasil e no mundo atlântico.
Por fim, destacamos a importância crucial da orla e das águas na perspectiva da cons-
trução das experiências de liberdade, pois foi território de rotas de fugas para o Uruguai, que
aboliu oficialmente a escravidão em 1842. Nos jornais da província, inúmeros anúncios de
fuga indicavam como possível paradeiro as Bandas Orientais.
Um conhecido Itan[1] Yorubano, fala sobre como dos seios e ventre de Yemanjá bro-
tam os rios onde vão reinar as demais Yabás, como Osun, Oyá e Obá, que juntamente com
Yemanjá e Nanã, as orixás femininas orientam os caminhos e fluxos, os ciclos das águas
trazendo força vital.
BERUTE, Gabriel Santos. Dos escravos que partem para o porto do sul: características do
tráfico negreiro de São Pedro do Rio Grande do Sul, c. 1790- c. 1825. Porto Alegre:
PPGH/UFRGS, 2006. (Dissertação de Mestrado)
SILVA, Tiago Rosa. Uma fronteira negra: resistência escrava através das fugas anunciadas
nos jornais jaguarenses (1855-1873). Jaguarão: UNIPAMPA, 2015. (Trabalho de Conclusão
de Curso).
[1] 1Itans: mitos e canções com ensinamentos da ancestralidade africana, legados que chegam pelas águas. 13
Fotografia datada de 1928. Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de
Jaguarão.
Jaguarão.
14
Praça do Desembarque ou
Praça das Figueiras
No dia 6 de julho de 1832, Jaguarão foi fundada como Vila, a partir de uma proposta
do Conselho Geral da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Anterior a isso, a
localidade era uma Freguesia (fundada em 1812), onde havia uma ocupação militar estratégica
para a colônia e posteriormente para o Império Brasileiro, vinculado a um projeto de expansão
do território português, local que esteve em constante disputa com o Império Espanhol.
15
Hoje, a Praça do Desembarque é também conhecida como Praça das Figueiras, que
re-mete às árvores da praça, e este nome nos mostra dois aspectos deste território: a relação da
cidade com a memória da escravidão e a influência do mundo mágico religioso da população
negra de Jaguarão. Com isso, o conjunto de figueiras na praça remete às ressignificações da
cultura e memória dos/as africanos/as que forçadamente desembarcaram ali. No imaginário
popular jaguarense, os ganchos de ferro que se encontram cravados nas figueiras do lugar,
remete aos suplícios sobre a população negra escravizada, que ali ficariam amarrados para
serem vendidos.
Mas para além desta memória, há a ressignificação por parte da comunidade negra
jaguarense, tornando-a uma forma simbólica de árvores sagradas, assim como os baobás em
território africano, mostrando a importância das religiões de matriz africana na formação da
cultura do Pampa Gaúcho. Hoje aos pés desta árvore, na Praça, se encontram muitas oferendas
aos orixás, das religiões de matriz africana, mostrando que nesta praça existe um importante
significado dentro da tradição afro religiosa da cidade, e uma forma da comunidade negra
ressignificar uma memória que remete a um período de sofrimento, para um lugar para
catalisar as forças dos orixás.
16
Fotografia retirada do site: https://www.jaguarao.rs.gov.br/pontos-turisticos/
17
Mercado Público Municipal
Fica evidente, para além das charqueadas, a presença de escravizados/as na vida urba-
na da cidade. A exemplo, entre os escravizados temos os “cangueiros”, que deslocavam
produtos e pessoas, circulando principalmente na área portuária. Em relação às mulheres
negras, estas eram mais presentes no meio urbano, principalmente pelo trabalho de domésticas
nas grandes casas centrais dos renomados charqueadores, além disso, essas libertas ou
escravizadas, exerciam um protagonismo no comércio, circulavam por essa área vendendo
quitandas e produtos em geral. Esses/as trabalhadores/as são exemplos do que se chamava de
escravizados/as de ganho, fazendo serviços a terceiros, ou seja, que não eram prestados
diretamente ao seu proprietário. Conseguiam uma relativa autonomia e algum lucro,
hegemonicamente de posse do senhor, mas a parte que conseguiam poderia ser juntada para
conseguir a alforria, por exemplo. Foi assim, que muitas cartas de liberdade foram compradas.
O Mercado Público, surge em um momento de transformações do meio urbano, como
aconteceu em muitas cidades do Brasil, sendo uma iniciativa ligada ao controle da população
negra (escravizada, livre e liberta), tirando-as de circulação das outras ruas da cidade.
Contexto esse de projetos de embelezamento e limpeza das regiões centrais das localidades,
onde os/as negros/as não faziam parte deste projeto, pelo contrário, a exclusão destas
populações era foco principal, limitando o acesso a espaços, e a autonomia de ocupação das
ruas. Com isso, o Mercado Público foi uma tentativa de centralizar e regular de forma mais
18
objetiva o comércio informal que ocupava os principais espaços centrais da cidade, e limitar o
acesso destes espaços. Apesar disso, este projeto de higienização não se efetivou de fato, pois
estas/os trabalhadoras/es continuavam ocupando os espaços tradicionais, além também de
hegemonicamente comporem o cotidiano do trabalho no Mercado Municipal, fazendo deste
espaço, um importante território negro na cidade.
MOREIRA, Paulo Roberto Staud. Uma Parda Infância: Nascimento, primeira letras e outras
vivências de uma criança negra numa vila fronteiriça (Aurélio Veríssimo de
Bittencourt/Jaguarão Século XIX). In: 4º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil
Meridional, 2009, Curitiba/Paraná. 4º Encontro e Liberdade no Brasil Meridional, 2009.
POPINIGIS, Fabiane. “Aos pés dos pretos e pretas quitandeiras”: experiências de trabalho
e estratégias de vida em torno do primeiro mercado público de Desterro – 1840-1890. Afro-
Ásia, 46, 193-226. Centro de Estudos Afro-Orientais-Universidade Federal da Bahia. 2012.
19
Fotografia retirada da publicação: Apontamentos para uma Monographia de
20
Casarão Barão Tavares Leite
Pesquisas nos mostram que os cativos que circulavam pela área urbana possuíam uma
relativa autonomia e mobilidade, talvez em decorrência da característica da posse de
escravizados, onde uma grande quantidade de proprietários detinha a posse de em média de 1
a 9 cativos, o que resultaria em uma mobilidade e o desempenho de diferentes trabalhos.
Ressalta-se que o contexto do trabalho urbano favorecia a execução de diferentes serviços
remunerados que ao fim do dia rendiam uma cota aos seus senhores e cujo excedente ficava
com esses/as trabalhadores/as. Era relativamente comum nesse tipo de trabalho que os
chamados escravizados/as de ganho acabassem acumulando pecúlio com diferentes serviços,
ocasionando inclusive recursos para alforria. Em Jaguarão houve alto índice de acumulação de
pecúlio por parte dos/as escravizados/as, mesmo antes da Lei do Ventre Livre. Entre 1830 e
1860, 39% das cartas de alforrias foram compradas pelos/as próprias escravizados/as e entre
1870-1887 o índice baixa um pouco para 27,6%, mas ainda extremamente representativo.
Historiadores/as tem evidenciado em pesquisas sobre a cidade, que o número de alforrias na
década de 1880 foi ainda maior, pois muitas cartas se perderam, ou as liberdades foram
realizadas por outros tipos de contratos. Chama atenção as cartas de alforrias nestes períodos
21
terem abarcado de forma mais geral as mulheres, e aqueles/as que estavam em idade
produtiva, o que evidencia um intenso trabalho de mediação das conquistas de
trabalhadores/as escravizados/as para almejarem a sua liberdade jurídica. Fato inclusive
perceptível quando observamos entre os mesmo dois períodos citados acima, as alforrias tidas
como incondicionais somarem 30% e depois 56%, respectivamente.
22
Fotografia s/d. Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Jaguarão.
Fundação Carlos Barbosa. Retirado de: FERRER, Francisca Carla Santos. Entre a
dos escravos na cidade de Jaguarão entre 1865 a 1888. São Paulo: USP, 2011. (Tese
de Doutorado). p. 278.
23
Cadeia Municipal, atual Presídio
Defronte a antiga Praça da Constituição, que fazia alusão a primeira carta magna do
estado brasileiro promulgada em 1824, reside até hoje o prédio da cadeia, conhecido também
como presídio estadual. É um dos exemplares raros de prédio de cadeia construído no século
XIX e que continua sendo utilizado para o mesmo fim. Tombado pelo IPHAE, e com muitas
dificuldades de manutenção devido o prédio ser antigo e pouco adaptável para acolher de
forma adequada quem cumpre pena de prisão na localidade, a edificação constitui-se um
patrimônio do Estado.
Próximo ao rio Jaguarão, foi colocado naquela posição geográfica não por acaso. No
final da década de 1850, os vereadores procuravam constituir um espaço que pudesse ser
edificado um prédio de prisão, pois até então as casas de cadeia eram realizadas em prédios
alugados. O prédio da cadeia municipal foi inaugurado em 1862. E na beira do rio Jaguarão,
ficaria próximo a água, mais fácil para despejos de fezes, longe dos olhares e convivência da
urbe, evitando que miasmas, pestes, que pudessem se encontrar dentro do espaço, não
atingissem a população.
Mas interessante que, mesmo com uma estrutura policial complexa no século XIX,
que demandava guardas permanentes municipais, corpo policial provincial, Guarda Nacional,
Marinha, Exército, Capitães-do-mato, inspetores de quarteirão, a comunidade negra
escravizada e liberta realizava suas sociabilidades e resistências. Em Jaguarão não existem
mais os livros de registros de prisões, mas em Pelotas, o livro que sobrou é específico para
prisões de escravizados, e um dos crimes mais evidentes nos registros é o de andar fora de
hora nas ruas da cidade. Ou seja, mesmo com toda repressão, escravizados/as e libertos/as
continuavam construindo suas vidas, seus sonhos, suas famílias, relações, mundo afro
religioso, suas vivências. construindo suas vidas, seus sonhos, suas famílias, relações, mundo
afro religioso, suas vivências. Flavio dos Santos Gomes chamou esta rede de sociabilidades e
reciprocidades entre a comunidade negra, escravizada e liberta, que passava ao largo dos
olhares senhoriais, de “campo negro”. Portanto, este espaço deve ser refletido como um lugar
que representa a estrutura racista do sistema prisional e policial brasileiro, mas também como
24
espaço onde fica evidente que nunca as comunidades negras, mesmo com estado policial
extremamente repressivo, deixaram de viver suas lutas diárias, suas resistências.
AL-ALAM, Caiuá Cardoso. A negra forca da princesa: polícia, pena de morte e correção em
Pelotas (1830-1857). Pelotas: Sebo Icária, Do Autor, 2008.
BOM, Matheus Batalha. Entre o ideal e o real: a cadeia civil de Jaguarão (1845-1870).
Jaguarão: Unipampa, 2015 (Trabalho de Conclusão de Curso).
25
Presídio de Jaguarão. Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Jaguarão. s/d.
26
Praça Alcides Marques,
antiga Praça 13 de Maio
Essa manifestação, e apropriação dos discursos abolicionistas, por parte das elites da
cidade se mostrou de extrema importância para a manutenção de seu status quo neste contexto
de mudança na sociedade. A elite de Jaguarão usufruiu até o fim da mão-de-obra escravizada,
através dos dados sobre a lista de matrículas dos escravizados elaborada pela Diretoria Geral
de Estatísticas em 1872-73, ainda existiam 4.592 escravizados matriculados. Em 1885,
segundo Relatório do Presidente da Província, ainda havia 1.232 escravizados/as. A narrativa
republicana e abolicionista, buscou suprimir a resistência do povo negro e sua luta por
liberdade. Porém a comunidade negra não estava passiva a este processo, e acionou a própria
narrativa republicana para reivindicar melhores condições de cidadania, e mesmo com a
agenda política da abolição sendo capitaneada pelas elites, a população negra celebrou e
memorizou o 13 de maio como uma conquista. É significativa a troca de nome da Praça 13 de
maio para Praça Dr. Alcides Marques, mostrando um apagamento dessa memória da
escravidão. Porém a Praça, foi e ainda é um local de concentração de luta antirracista, e
principalmente de subversão da ordem nos períodos de festa do carnaval, onde prevalece
como espaço de circulação e poder do povo negro jaguarense.
28
Fotografia s/d. Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Jaguarão.
29
Igreja Matriz do Divino Espírito Santo
Anderson Machado
A morte era um momento que exigia uma grande necessidade de uma ritualização pa-
ra a população, e a criação de sociedades onde o pano de fundo era zelar para que a população
negra pudesse ter os seus direitos de ter um funeral digno, seguindo esta premissa passava
então a demonstrar aos seus senhores que eles também faziam parte da sociedade e que
poderiam ser organizados socialmente.
GRIGIO, Ênio. “No alvoroço da festa, não havia corrente de ferro que os prendesse, nem
chibata que os intimidasse” : a comunidade negra e sua Irmandade do Rosário (Santa Maria,
1873-1942). São Leopoldo/RS: UNISINOS, 2016 (Tese de Doutorado).
MOREIRA, Paulo Roberto Staud. Uma Parda Infância: Nascimento, primeira letras e outras
vivências de uma criança negra numa vila fronteiriça (Aurélio Veríssimo de
Bittencourt/Jaguarão Século XIX). In: 4º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil
Meridional, 2009, Curitiba/Paraná. 4º Encontro e Liberdade no Brasil Meridional, 2009.
MULLER, Liane. As contas do meu rosário são balas de artilharia. Porto Alegre:
Pragmatha, 2013.
31
Fotografia retirada da publicação: Apontamentos para uma Monographia
32
Inauguração da Estátua da Liberdade, 1891. Acervo do Instituto Histórico e
Geográfico de Jaguarão.
33
Círculo Operário de Jaguarão,
antiga Sociedade Operária Jaguarense
A Sociedade Operária Jaguarense foi fundada em 1911. A partir de 1948 passou a ser
chamada de Círculo Operário de Jaguarão, e sua sede fica na atual Marechal Deodoro nº 377.
Eram instituições que buscavam a partir da moral cristã, realizar práticas de assistência à
classe trabalhadora, pautando uma perspectiva de inclusão social a partir de uma pauta
conservadora dos costumes. A Sociedade Operária Jaguarense, celebrava o rito católico, o
zelo pelo valor da família, pautando junto a classe trabalhadora tudo aquilo visto como imoral,
como o consumo de álcool e outras práticas tidas como desvios sociais. Mas
fundamentalmente, a Igreja no trabalho de base na Sociedade, buscava distanciar a classe
trabalhadora dos movimentos socialistas, comunistas, aqueles que previam a emancipação da
classe trabalhadora. A Sociedade realizava este trabalho, a partir das diferentes atividades,
como palestras, ritualizações das práticas cristãs, por meio das oficinas de trabalho, cursos de
primeiras letras, mas também continha um jornal, o chamado O Amigo do Operário. Em 1913,
era enfática na condenação ao socialismo: “No socialismo, o operário não passa de um
instrumento, de um escravo. Operários que amais a verdadeira liberdade e prezais a vossa
dignidade humana – alerta! Tudo por Deus, pela Pátria, pela Família; tudo pelo bem e
progresso de nossa classe! ”. A partir dos valores da Igreja Católica, como a valorização da
família, buscavam também a vinculação de uma ideia de pátria atrelada a concepção de uma
comunidade tida como ordeira, em harmonia, coisa que a sociedade da época, e a de hoje, não
o são. Escondendo assim as contradições das condições de vida da classe trabalhadora na
época, em uma conjuntura política em que as elites buscavam de todas as maneiras disciplinar
operários, que mantinham uma organização em sindicatos e outros movimentos que
alvoreciam naqueles anos, culminando com as grandes greves em 1917.
VERGARA, Patricia Lima. Um por todos, todos por um: a Sociedade Operária Jaguarense
(1911-1948). Jaguarão: Unipampa, 2019. (Trabalho de Conclusão de Curso)
35
Fotografia retirada do site: https://mapio.net/images-p/88962905.jpg
36
Clube 24 de Agosto
O Clube 24 de agosto foi fundado em 1918 por um grupo de famílias negras, com o
intuito de ser um espaço de mobilização e ajuda mútua da classe trabalhadora negra que
buscava um local para socializar e articular ações, promovendo letramento, aprendizado de
ofícios, profissões e espaço para conferências. Seus membros tinham relação com a Igreja
Católica, através da Irmandade Nossa Senhora do Rosário e também com a Sociedade
Operária Jaguarense, que tinha a participação direta dos padres. Proibidos de frequentarem os
espaços de sociabilidade da cidade das famílias brancas, constituíram o seu espaço, mas o
sentido da construção do Clube foi para além disto, sendo um território importante de
demarcação da cidadania do povo negro na cidade.
Nas décadas de 1930 e 1940, com o objetivo de arrecadar fundos para a instituição, o
Clube 24 de Agosto realizou Festivais de Cultura no Teatro Esperança, chegando a organizar
um Centro Dramático que contava com um grupo de atores e atrizes negros e negras da cidade
para a execução de peças de teatro.
O Clube, continua até os dias de hoje, como um espaço muito importante para a cul-
tura e a resistência da comunidade negra de Jaguarão, além de se constituir um espaço de
afirmação da identidade negra, sendo hoje uma referência na cidade.
O Clube 24 de Agosto é o primeiro clube do Estado a ser tombado como Patrimônio
Histórico do Rio Grande do Sul. Hoje, com sede própria, localiza-se na rua Augusto Leivas, nº
217. Sua primeira sede foi na beira do Rio Jaguarão, dividindo espaço com a Sociedade
Operária Jaguarense, na Rua 20 de Setembro, nº 332. Posteriormente, teve sua sede na Rua
General Marques, nº 363, atrás da Igreja Matriz em um prédio emprestado pelas famílias
Marques e Gonçalves, na figura de Odilo Marques Gonçalves.
37
Nas duas últimas décadas, o Clube contraiu dívidas com o Escritório Central de
Arrecadação e Distribuição (ECAD), que foram ganhando proporções questionáveis, tendo
sua sede leiloada por um processo judicial, que foi tido como arbitrário. Neste processo, a
comunidade negra da cidade, mobilizada em torno do Clube, reagiu de forma contundente,
articulando atividades e protestos que traziam como referência a luta por cidadania e contra o
racismo. O Clube 24 de Agosto tornou-se uma referência ao Estado do RGS, e continua ativo
e atuante, construindo além de bailes e festas, atos e eventos onde a cultura e tradição da
comunidade negra é celebrada e valorizada.
38
Fotografia s/d. Acervo do Clube 24 de Agosto.
39
Clube Recreativo Gaúcho
O Clube Recreativo Gaúcho foi o segundo clube negro a ter atividades na cida-de de
Jaguarão, existindo entre os anos de 1930 e provavelmente até a década de 1950.
Fundado no dia 6 de outubro de 1932, mantendo sua sede própria, o Clube coexistiu
com o Clube 24 de Agosto, o que impressiona por, neste período de tempo, Jaguarão ser uma
cidade tão pequena com dois clubes e mais algumas instituições que destacavam o
associativismo negro. Os dois clubes tinham uma boa relação com convites e saudações em
seus discursos e nos jornais da cidade.
Um ano após a fundação do Clube Recreativo Gaúcho foi fundado um time chamado
Gaúcho Footbal Club, provavelmente vinculado ao Clube, que disputou o campeonato
municipal de Jaguarão na década de 1930 e realizou em 1933 um amistoso na cidade de
Arroio Grande com um time local chamado José do Patrocínio, indicando conexões entre as
comunidades negras das duas cidades, e preocupação em manter a representatividade e a pauta
política da celebração da luta pela abolição.
Além da ligação com o futebol e com o carnaval, o Clube Recreativo Gaúcho realizou
também destacada atuação nos festivais culturais na década de 1940, notícia do Jornal A
Folha, em 1941, dá indícios de que os festivais do Gaúcho eram muito esperados e contavam
com um grande número de público para assistir. Os festivais de cultura que buscavam
arrecadar fundos para a instituição, ocorriam no Teatro Esperança, principal teatro da cidade e
palco de muitos eventos realizados pelas elites, o que demonstra a importância e muita
organização política do Clube, que manejava os apoios políticos para realizar sua afirmação
cidadã enquanto um clube das famílias negras na cidade.
40
AL-ALAM, Caiuá Cardoso. O Clube Recreativo Gaúcho: um clube social negro em Jaguarão
(1930-40). Encontro Ecsravidão e Liberdade no Brasil Meridional., v. 9, p. 1-15, 2019.
41
Fotografia s/d, provavelmente da década de 1930. Acervo do Clube 24 de Agosto.
42
Clube Suburbanos
Além de sua diretoria masculina, a partir do ano de 1963, o Clube passou a contar
também com uma diretoria feminina. Porém, as mulheres só participavam do Clube por serem
esposas ou parentes dos sócios, só depois de algum tempo que também puderam ser sócias de
fato.
O Clube mantinha relações com outros clubes negros da cidade de Jaguarão, de cida-
des vizinhas, como Arroio Grande e Rio Grande e também do Uruguai, excursionando para a
cidade de Mello (UY).
Entre os anos de 2001 e 2002 o Suburbanos teve sua primeira presidente mulher. O
Clube mantinha as mesmas atividades de sua fundação, com diversas festas e bailes. Porém
em 2008, com um acúmulo de dívidas adquiridas por gestões anteriores, o clube acabou indo à
falência, fechando suas portas e sua sede indo a leilão.
43
SILVEIRA, Darlize Martinez. “Suburbanos surgiu porque nós era tudo dessa zona, assim,
do subúrbio...”: O Clube Suburbanos enquanto resistência negra. Universidade Federal do
Pampa. Jaguarão: Unipampa, 2015 (Trabalho de conclusão de curso).
AL-ALAM, Caiuá Cardoso; LIMA, Andreia da Gama. Territórios negros em Jaguarão. In:
AL-ALAM, Caiuá Cardoso; ESCOBAR, Giane Vargas; MUNARETTO, Sara Teixeira
(Orgs.). Clube 24 de Agosto: 100 anos de resistência de um clube social negro na fronteira
Brasil-Uruguai. Porto Alegre: Ilu Editora, 2018.
44
Fotografia s/d, provavelmente década de 1980. Acervo do Clube 24 de Agosto.
45
Outros Territórios Negros
em Jaguarão
Muitos outros territórios negros também importantes, marcados pela presença das
famílias, moradias, por instituições ou por terem se realizado como espaços de convivência,
existiram e ainda existem na cidade. Buscamos na Oficina dar conta de espaços em torno do
centro histórico, que possam ser visitados a pé, que façam sentido em uma mediação
pedagógica e que tenham relação com o que chamamos de História Social da escravidão e do
Pós-Abolição. Durante o século XIX e XX, podemos destacar dentre alguns destes territórios,
os que seguem. Antes, importante frisar que outros muitos existiram e existem, mas nesta
publicação não puderam ser trabalhados pois a intenção não é esgotar o assunto, assim como
outros estão sendo ainda pesquisados. Seguem algumas possibilidades:
46
Casas de Religiões de Matriz Africana
Anderson Machado
Em Jaguarão, município localizado no extremo sul do Rio Grande do Sul que faz
fronteira com Uruguai, fortes características estão sendo preservadas com a passagem do
tempo, bem como a presença efetiva do povo negro neste território. Essas características são
visíveis pelo seu traço cultural que permeia nos centros de cultos Afro-religiosos, onde
encontra-se sua ancestralidade dentro de seus ritos, comidas, vestes e oralidade.
A religião é tida como uma cultura, onde seus saberes e ensinamentos são essencial-
mente transmitidos através da oralidade e essa troca se dá entre os mais velhos para com os
mais novos, logo dos que são mais velhos dentro deste campo para aqueles mais novos dentro
da casa de santo. Assim podendo então reafirmar que a oralidade é a maior base para a
construção destes espaços culturais, os terreiros.
Um ponto de grande referência na cidade é o Ylê Axé de Mãe Nice de Xangô, onde
além de praticar o segmento do Candomblé pratica a Umbanda. Situada na rua Claudino
Echevenguá nº 320, um pouco afastada do centro da cidade. Este espaço além de ser um local
de resistência e sociabilidade do povo negro, também se remete a ancestralidade de negras e
negros que vieram habitar essa região e deixaram o seu legado religioso que perpassa por
gerações. Existem diferentes casas de religião espalhadas pelos diversos bairros da cidade, e
chama a atenção a cidade de Jaguarão contar com uma grande representatividade de números
de espaços de culto afro-religioso, destacando-se nisto em âmbito do Estado.
O encontro de Mãe Nice com o Seu Pai de Santo se deu através das relações de
sociabilidade e de família no terreiro. O Pai Nilo de Xangô foi o responsável por cuidar da
parte espiritual de Mãe Nice, e atender a necessidade dela em alimentar o seu Ori.[2]
[2] Ori é o nome dado a cabeça, espaço onde na crença africana fica a sua ligação direta ao Orixá que te guia. 47
Outros territórios, vinculados ao sagrado, também são importantes e reconhecidos
adeptos das religiões de Matriz Africana, como por exemplo a beira do Rio Jaguarão e o culto
às divindades vinculadas às águas, e também o Cerro da Pólvora, mais especificamente a
pedreira que está localizado neste bairro, que é utilizada nas entregas de oferendas ao Orixá
Xangô. Orixá que representa a Justiça, sendo a sua maior virtude.
OLIVEIRA, Vinicius Pereira de; GOMES, Denis Pereira; SCHERER, Jovani de Souza.
Histórias de batuques e batuqueiros: Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre . Pelotas: Ed. dos
Autores, 2021.
48
Imagem da parte interna do terreiro dirigido por Mãe Nice em uma festividade
49
Rua do Cordão
A região da atual rua Barbosa Neto no bairro Vencato, no local que faz a curva entre
as ruas Fernandes Vieira e Mena Barreto, na cidade de Jaguarão, já foi conhecida como Rua
do Cordão, nome que fazia referência a tradicionais ritos e festejos de matriz africana. Hoje
há, próximo ao local, uma rua com o mesmo nome, batizada pela Câmara Municipal no ano de
1996. Tradicionalmente conhecida como uma rua que abrigava diversas famílias negras,
aparece como referência de espaço de sociabilidade destes núcleos desde o século passado. O
nome faz referência aos populares cordões carnavalescos, que marcaram presença no espaço,
mas não só a estes vislumbram-se o território em questão. Aqueles que passaram pela
escravização, após conquistarem a liberdade e fixarem-se ao espaço referenciado, praticavam
ainda antigos ritos funerários africano. Os cordões fúnebres parecem ter servido então como
referência aos futuros cordões carnavalescos e como forma de ressignificação de aspectos
culturais de sua origem que mais tarde se fizeram presentes nos festejos da cidade.
Chamar o espaço de Rua do Cordão, pode ser lido também como um ato de resistên-
cia e formação de uma identidade. Tendo em vista que além das origens citadas anteriormente
a rua pode ter adquirido este nome em homenagem a um grupo de mulheres negras que
residiam na localidade. O coletivo, identificado como Cordão das Minas, é lembrado por sua
vinculação aos festejos de carnaval, e tinham como marca seus vestidos brancos e as canções
que entoavam, os cantos em questão faziam referência a África, celebrando suas origens.
Mestre Vado não ficou detido ao nosso lado da fronteira, como é tradição na zona
fronteiriça, a troca é a lei. Participou de folias nos clubes da cidade uruguaia vizinha de Rio
Branco e de seus cordões carnavalescos. Vado viveu para a música, fazendo dela parte central
da sua vida. Ensinou desde muito cedo o que aprendeu e deixou registrado a importância que
dava ao estudo, nas palavras do próprio Mestre: o estudo é o progresso da juventude. Como
nunca se negou a compartilhar seus conhecimentos, também foi generoso ao dividir suas me-
50
mórias do local onde nasceu, a Rua do Cordão.
ARENCE, Maria Túlia Duarte Mendes. Práticas de ensino da história e cultura afro-
brasileira. Jaguarão: Universidade Federal do Pampa, 2015. (Dissertação de Mestrado).
51
Fotografia s/d. Acervo do Clube 24 de Agosto.
Mestre Vado.
52
Charqueadas
Em meados do século XIX Jaguarão passou a ser um dos polos charqueadores da re-
gião sul do estado, tendo características propícias para o estabelecimento de indústria
saladeiril, como a proximidade com rotas fluviais utilizáveis para importação e exportação do
produto. Passou a atender então a demanda de produção de carne salgada da região, mas
também produziu para grandes centros urbanos do país e fora dele, visando suprir a
alimentação de população pobre e escravizada.
53
Para entender os espaços charqueadores como espaços de sociabilidade é preciso vol-
tar a atenção para os homens que compunham a base da indústria, trabalhadores que lidavam
com o abate e o preparo da carne. Para esses trabalhadores, a charqueada também é um espaço
para manejar estratégias de sobrevivência e trocas. Em alguns relatos é possível entender
como pequenos desvios de mantas de carne precisavam ser pensados por grupos, para que não
houvessem prejudicados; como aqueles homens que estavam em posições mais confortáveis
para fazer isso eram procurados pelos outros trabalhadores e de que forma essa mesma carne
fora da charqueada é utilizada como moeda de troca e de aproximação.
Assim como era comum em outros territórios, a charqueada não é um mundo à parte
isolado de outros locais de associatividade e sociabilidade, alguns dos trabalhadores das
charqueadas, que trabalharam posteriormente no frigorífico, ocuparam cargos frente ao Clube
24 de Agosto ou eram simplesmente associados ao clube. A exemplo disso, temos a figura de
Malaquia de Oliveira, um dos fundadores do Clube 24 de Agosto, e encontramos os relatos do
Sr. Natálio Cardoso Chagas, que traz na memória lembranças das formas de "negociação" de
peças de carne e de histórias que ouviu a respeito de estratégias de sobrevivência nesses
espaços, isso já nos anos de 1950 e 1960 do século passado. Um reflexo da longa duração da
cultura da carne na cidade e da representação desses locais como territórios propícios à
sociabilidade.
CEREDA, Allan Mateus. “Não tinha o que comer, botava no bolso”: Situações de classe na
charqueada/frigorífico São Domingos (1950-1975). Jaguarão: Universidade Federal do
Pampa, 2017. (Trabalho de Conclusão de Curso).
54
Fotografia s/d. Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Jaguarão.
55
Rastilho
Ramão Machado, conhecido como Negro Rastilho, epíteto lhe dado pela fama relacionada a
prática do roubo, foi morto pela polícia no dia 8 de março de 1943, na beira do Arroio Juncal,
no 2º Subdistrito, em Santana. Perseguido, foi encontrado numa cova seca na beira do arroio,
nos campos do Dr. Constantino Lila da Silveira. Resistiu à prisão, abrindo tiros contra os que
o perseguiam, sendo executado dentro da cova.
Alfredo Crispim, capataz da granja Belóca, de propriedade do Sr. Dr. Mirabeau Baltar,
onde Rastilho está enterrado, relata sua história e canonização popular em matéria de jornal A
Folha do dia 15 de janeiro de 1955. O espaço até hoje é frequentado por muitos populares que
vão lá fazer pedidos e agradecimentos ao Negro Rastilho, realizando orações e oferendas,
como velas e cachaça.
Em 1959, um poema intitulado Negro Rastilho, assinado por Luiz Felippe Amaro da
Silveira, em homenagem ao Dr. Mirabeau Pacheco Baltar, o dono da propriedade onde foi
enterrado Rastilho, faz referência a este como “negro guapo e andarilho, mui peleador e
campeiro”. Comparava a contação de sua história com a do Negrinho do Pastoreio, de tão
famosa na época, andando de boca em boca. Faz referência a Rastilho como “criado em beira
de rancho, tinha baldas de carancho e manhas de sorro esperto”. A referência a prática de rou-
56
bo parece estar naturalizada na figura de Rastilho, inclusive no seu apelido isto fica evidente,
mas no poema a justificativa era a fome, certamente a situação de penúria da peonanada pobre
que trabalhava esporadicamente nas estâncias, em sua maioria homens negros. No fim do
poema, a referência à santificação de Rastilho vem à tona, “Santo campeiro num ritual
campeiro: um túmulo solito...canha e velas...e seus milagres hoje se esparramam. Se pedem
chuva o Negro manda chuva. Se querem sol o Negro para a chuva”. Dizem os relatos que o
proprietário do campo onde está enterrado o Negro Rastilho, Dr. Mirabeau, certo dia injuriado
e já desesperançoso com a falta de chuvas para a lavoura, pediu a ele que enviasse chuva, que
logo veio. A partir de então, populares realizam oferendas em seu túmulo, construído com um
funil para ser colocado cachaça ao santo. Fica evidente a relação com a figura de Exú,
importante entidade das religiões de matriz africana na região, evidenciando que alguns
elementos são objetivamente relacionados a experiência do povo negro no local. É um
território com vínculos ao imaginário popular religioso africano, na resistência de um homem
negro que até hoje recebe leituras racistas sobre a sua experiência, o desmerecendo retratando
como um ladrão. Negro Rastilho ficou encantado, histórias são vinculadas a ele, como a gaita
que tocava (a música novamente vinculada a perspectiva mágica da encruzilhada-Exú, como
no blues de Robert Johnson), a realização de práticas quase mágicas que faziam desaparecer
utensílios e objetos, e até mesmo sua alma bondosa e ingênua.
NUNES, Geice Peres. Os caminhos de Rastilho: expressões da literatura oral na fronteira sul-
riograndense. BOITATÁ, Londrina, n. 23, jan-jul 2017, p. 164-178.
57
Túmulo do Negro Rastilho. Foto de Alessandra Buriol Farinha e
58
Cerro da Pólvora e Bairro Kennedy
O nome Cerro da Pólvora remete aos tempos em que havia no local a Pedreira Muni-
cipal, espaço que usufruía dos diques de basalto que caracterizam a natureza do lugar. Além
da Pedreira administrada pelo município, havia a mineração por particulares que tinham as
autorizações para extração distribuídas pela prefeitura. Alguns moradores das redondezas,
inclusive crianças e mulheres, quebravam basalto a mão com marretas e martelos, a fim de
venderem para empresas que utilizavam nas obras e construções na cidade, gerando mínima
renda para estas famílias que labutavam duramente neste tipo de trabalho. Ainda hoje restam
algumas pessoas que realizam a extração manualmente e que podem ser vistas no local. O
trabalho era árduo e perigoso, já que muitas explosões ocorriam no local, inclusive ameaçando
moradores/as das redondezas. Em torno da Pedreira, haviam muitas moradias, algumas como
resultado das ocupações e outras incentivadas pelo poder público. Segundo relatos em
pesquisas, a população do lugar era composta por moradores/as advindos da zona rural e
cidades vizinhas, caracterizando-se principalmente a ocupação daquele território por famílias
negras. Muitas destas famílias viviam uma realidade muito dura, com a permanente falta de
estrutura, como acesso a água, luz, esgoto, que teriam chegado no local apenas no início da
década de 1980. Houveram muitas ações assistenciais das comunidades e lideranças das
Igrejas Católica e Anglicana, que realizavam campanhas de alimentação, de doação de roupas
e outros auxílios. As religiões de matriz africana também tiveram importante influência no
local, tanto com ações assistenciais quanto também com terreiros naquele espaço. A
localidade da Pedreira, no mundo afro religioso, é remetida a forte presença de Xangô,
vinculado ao poder, a força, a justiça. A Igreja Católica também marcou território no campo
simbólico, com a construção do monumento ao Cristo, inaugurado em 1961.
ROSA, Alzemiro Gonçalves da. A voz popular: o Cerro da Pólvora nas décadas de 1960-
1970 em Jaguarão-RS. Jaguarão: Universidade Federal do Pampa, 2015. (Trabalho de
Conclusão de Curso)
60
Fotos da Família Gonçalves Rosa. Fotografia e informações extraídas do trabalho:
ROSA, Alzemiro Gonçalves da. A voz popular: o Cerro da Pólvora nas décadas
ROSA, Alzemiro Gonçalves da. A voz popular: o Cerro da Pólvora nas décadas de
61
Quilombo Madeira
62
A comunidade foi certificada como terra quilombola pela Fundação Cultural Palma-
res a partir da portaria nº 51 de 22 de março de 2010, tendo seu processo no Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) correspondendo ao número 54220.002583/2009-
94. Mas é importante enfatizar que, segundo informações do site da Palmares, a comunidade
do Madeira ainda não foi titulada. Das 3.400 terras quilombolas certificadas no país, esta é
uma realidade de cerca de 90% das terras de remanescentes de quilombos, que até hoje não
conseguiram ter seu registro de posse da terra efetivado. O que é um direito garantido pela
Constituição de 1988, assim como reconhecimento destes territórios negros enquanto
patrimônio cultural brasileiro. O que evidencia a perversidade do lento processo de reparação
ao povo negro no Brasil.
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt; AL-ALAM, Caiuá Cardoso; PINTO, Natália Garcia. Os
Calhambolas do General Manoel Padeiro: práticas quilombolas na Serra dos Tapes (,
Pelotas, 1835). São Leopoldo: OIKOS, 2020.
63
Fotografia de Isac Morais, retirada do texto: SANTOS, Damaris de Lima;
64
Proposta de Atividade Pedagógica
Durante todo este livro, procuramos relacionar diferentes territórios negros na cidade
de Jaguarão. Neste sentido, é importante enfatizar que podemos entender os territórios negros
de algumas formas: como na perspectiva ocupacional, em que estes espaços são definidos pela
fixação das famílias negras nos locais; como também pela perspectiva interacional, ou seja,
espaços de trocas de experiências sociais coletivas, e que foram demarcados pelo
pertencimento relacionado a estas localidades a partir do ponto de vista do pertencimento em
torno de uma identidade étnico-racial negra. Nos dois exemplos, tornam-se os territórios
negros espaços de referência para o processo de identificação coletiva, para a demarcação de
uma identidade negra positiva, valorizando a cultura e história afro-brasileira.
Assim, em acordo com a lei 10.639, que busca fortalecer a produção de conhecimento
e abordagem da história de África e da cultura afro-brasileira, propomos uma atividade
pedagógica. Muitos territórios ficaram de fora deste roteiro e deste livro. São vários os
espaços de pertencimento na região de Jaguarão, que podem ser evidenciados.
AL-ALAM, Caiuá Cardoso; LIMA, Andréa da Gama. Territórios Negros em Jaguarão. In:
AL-ALAM, Caiuá Cardoso; ESCOBAR, Giane Vargas; MUNARETTO, Sara (Orgs.). Clube
24 de Agosto (1918-2018): 100 anos de resistência de um clube social negro na fronteira
Brasil-Uruguai. Porto Alegre: ILU, 2018b. P. 37-54.
LEITE, Ilka Boaventura. Território negro em área rural e urbana: algumas questões. Textos e
debates. Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas - UFSC. Ano I, n° 2,
1990. p. 39-46.
65