Entrevista Com Prof Wilmar Da Rocha DAngelis

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Entrevista com o Professor Wilmar Da Rocha D’Angelis,

Especialista em Línguas Indígenas


08/03/2021

Cidades Democratização do Sistema de Justiça

Na última entrevista da série realizada pelo Fórum Justiça-RS sobre a questão indígena e a
Ditadura Civil-Militar, o professor Wilmar da Rocha D’Angelis aborda a questão das línguas
indígenas e a identidade cultural.

Fórum Justiça– A língua é um fator de identidade cultural. O que nos pode dizer sobre a língua e
as narrativas dos povos indígenas do Sul e a importância da pluralidade daí advinda para a
sociedade brasileira?

Cada língua falada por um povo carrega, em si, uma parte importante da experiência histórica
da sociedade em que aquela língua foi moldada e diuturnamente atualizada ao longo dos
séculos de sua existência. Não apenas o léxico de uma língua revela os interesses e os
conhecimentos desenvolvidos, criados e acumulados ao longo da história da comunidade de
fala à qual pertence aquele idioma, mas também sua semântica (que não se resume ao que
comumente as pessoas entendem por “léxico”), presente e expressa em categorias gramaticais
e nas possibilidades (como também nas restrições) sintáticas, revelam uma percepção do
mundo construída em um território definido, em uma relação dialética entre sociedade humana
e meio ambiente.

No Sul do Brasil encontramos, vivas, as seguintes línguas indígenas:

– Kaingang, a 3ª língua com maior número de falantes em nosso país, falada por mais de 20 mil
pessoas nos três Estados meridionais.

– Xokleng, língua irmã do Kaingang (ambas formam o ramo Meridional da família Jê, do tronco
Macro-Jê). O Xokleng atualmente só é falado na Terra Indígena Laklãnõ, no Vale do Itajaí do
Norte, em Santa Catarina.
– Guarani, em três variedades: (i) o Mbyá Guarani, falado em um grande número de aldeias, do
Rio Grande do Sul ao Sudoeste, Oeste e Litoral do Paraná, mas também no Oeste e no litoral de
Santa Catarina (é o mesmo dialeto falado em diversas aldeias no Paraguai, em Misiones na
Argentina, e nos litorais de São Paulo e Rio de Janeiro); (ii) o Nhandeva-Guarani, falado no
extremo Oeste do Paraná, bastante próximo do Nhandeva/Avá Guarani falado em muitas aldeias
indígenas no Paraguai e, em parte, também no Mato Grosso do Sul; (iii) o Nhandewa-Guarani (a
distinção, com “w”, busca destacar a diferença em relação ao Nhandeva com “v”), falado nas
aldeias Pinhalzinho e Laranjinha, no Norte do Estado, e igualmente em diversas comunidades
Nhandewa no interior e no litoral paulista; tem particularidades que o situam distinto tanto do
Nhandeva como do Mbyá, mas igualmente tem pontos de contato com ambos.

O Kaingang e o Xokleng são línguas cuja base ou matriz vem de migrações do centro-norte do
país, onde se gerou a família Jê. No entanto, sua presença multisecular no Sul do país, e a união
dos migrantes Jê com as mais antigas populações caçadoras-coletoras presentes na região Sul
há cerca de 10 mil anos, não só afetaram e garantiram peculiaridades das línguas Jê
Meridionais com respeito aos outros ramos Jê (Central e Setentrional), como fazem da língua e
cultura kaingang herdeiras de importantes de distintas formas de adaptação cultural a três
diferentes biomas: o cerrado, os campos naturais do Sul, e a floresta de araucárias ou floresta
ambrófila mista. Quando o Rei Salomão governou os judeus, por volta de 950 A.C., os Kaingang-
Xokleng provavelmente já falavam sua língua no Sul do Brasil.

Os Guarani integram também uma enorme comunidade de fala, com suas variantes dialetais
dispersas em todo o Sul do Brasil, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul,
além de Paraguai, Argentina e Bolívia. Sua língua pertence à família Tupi-Guarani, que integra o
tronco Tupi, cuja origem é a região amazônica (entre Rondônia e Bolívia provavelmente), cuja
protolíngua é estimada em 5 mil anos.

Vale lembrar que a língua portuguesa, derivada do Latim pela ocupação da península ibérica por
romanos, sequer completou mil anos de existência (os primeiros escritos que denotam a
existência já de uma língua distinta do Latim, o chamado galego-português, datam
aproximadamente do ano 1.200 d.C.).

Até meados do século XX o Paraná abrigava, ainda, a população falante da língua Xetá. Desde a
década de 60 restam sobreviventes, mas a língua foi descontinuada com a morte do último
falante, Tucanambá, em 2008 (de fato, como língua viva já desaparecera antes, porque
Tucanambá não tinha com quem comunicar-se em Xetá).

Com o enfraquecimento e, se vier a acontecer, o desaparecimento dessas línguas, perdemos a


percepção construída ao longo de milênios a respeito dos ecossistemas, ecossistemas esses
cuja extinção, ao lado do extermínio dos povos indígenas, nossa sociedade também vem
promovendo de modo acelerado.

Fórum Justiça– O que pode nos dizer sobre a relação do Estado e sociedade brasileiros em face
da cultura dos povos indígenas do Sul do país?
A partir, sobretudo, dos anos 1950, a política indigenista do Estado Brasileiro ocupou-se de
envolver as comunidades kaingang na economia regional, ao mesmo tempo em que iniciava, de
forma intensa, a destruição do patrimônio natural das terras daquelas comunidades. O principal
meio eram as licitações de venda de madeiras das terras indígenas, que se já eram nocivas,
tornavam-se letais ao patrimônio indígena pela associação das práticas “legais” das vendas
pelo Estado, com a corrupção generalizada de funcionários e das indústrias madeireiras, sem
exceção.[1] Áreas indígenas como Guarapuava, Palmas, Mangueirinha, Apucaraninha, Xapecó,
Nonoai, Ligeiro, Cacique Doble, entre outras, sofreram violenta perda de recursos naturais.

A política indigenista dos governos militares – inaugurada com a criação da FUNAI, em 1967 –
só divergia daquela anterior do SPI pelo fato de que a FUNAI sequer se preocupou com
desenvolver alternativas de produção econômica para os indígenas, ainda que nos marcos da
produção capitalista. A FUNAI ocupou-se, pura e simplesmente, entre o início dos anos 70 e o
final dos anos 80, com desenvolver a máxima exploração dos recursos das terras indígenas
(ricos solos agricultáveis, em grande parte mecanizáveis, e madeiras).

Além de seguir com a prática de “editais” de licitação para venda de madeiras (sobretudo
pinheiros e imbuia, seja em Cacique Doble, seja em Palmas[2]), a FUNAI deu seguimento à
prática de exploração direta das florestas, chegando a requintes inimagináveis. Herdando
serrarias montadas pelo SPI ainda nos anos 50, na década de 1970 a FUNAI criou um órgão
exclusivamente dedicado à exploração das riquezas das terras das comunidades que ela
deveria, em tese, amparar, proteger e assistir: o DGPI – Departamento Geral do Patrimônio
Indígena. Somente na cidade de Chapecó o DGPI possuía um escritório que faria inveja a
grandes empreendimentos comerciais da época. O que ele geria? O Projeto Pinho (criado em
1970 pela 4ª Delegacia Regional da FUNAI, sediada em Curitiba), instalou modernas serra-fitas
nas terras indígenas Xapecó e Mangueirinha, e deslocou para áreas de Guarita e Nonoai as
serrarias mais antigas, porém ainda em funcionamento. A fachada do projeto era o
“aproveitamento de pinheiros mortos e desvitalizados”. A farsa se desfaz no próprio documento,
que estima em 30 mil pinheiros ainda existentes na T.I. Xapecó, o que garantiria “matéria prima
necessária para operação das serrarias durante 20 anos” apenas naquela área. Haveria, ainda,
“disponíveis” para exploração, outros 10 mil pinheiros em Nonoai, e igual número em Palmas,
em Guarapuava e em Ivaí, e outros 5 mil em Mangueirinha. É estranho, aliás, que as duas
principais serra-fitas moderníssimas instaladas pela FUNAI em 1975, tenham sido em Xapecó e
em Mangueirinha. A verdade é que a FUNAI contava com a vitória, algum dia, da questão movida
contra a firma Slaviero, para reaver metade das terras de Mangueirinha tomadas em 1949, no
governo Moysés Lupion.[3] Obtida tal vitória, Mangueirinha tornaria a indústria madeireira da
FUNAI o maior empreendimento madeireiro do Paraná, que provavelmente corresponderia à
soma da capacidade e patrimônio de todas as “concorrentes” juntas.

Mas a FUNAI e seus agentes não fizeram tudo isso sozinhos. Jamais se teve notícia de qualquer
fiscalização do então IBDF sobre a exploração madeireira da FUNAI (embora alguns indígenas
testemunharam que houve épocas em que o chefe de posto do Xapecó teria promovido a morte
de pinheiros com “injeção” de óleo queimado, aparentemente para justificar corte de “madeiras
desvitalizadas”.
As serrarias instaladas em Xapecó e Mangueirinha tinham a capacidade de serrar 3 mil dúzias
de madeira por mês (e o fizeram, por vários anos), o que corresponde, no mínimo, a 150
pinheiros por mês, ou 1.500 pinheiros por ano, ou seja, mais de 12.500 m3 de madeira!

Talvez a FUNAI viesse a alegar, um dia, que “construiu casas para os indígenas”. Em primeiro
lugar, nunca, em nenhuma área indígena que conheci e visitei (e visitei todas do Sul do Brasil !) a
FUNAI chegou, um dia, a construir casas para todas as famílias indígenas.[4] Em segundo lugar,
onde construiu (e o Xapecó é o melhor exemplo, dada a quantidade de pinheiros derrubados ali),
é fato público e notório – atestado por qualquer indígena mas também por qualquer morador
regional vizinho da terra indígena – que a FUNAI destinava, para casas de famílias indígenas, as
chamadas “costaneiras”, que é a primeira madeira tirada após a casa da árvore, madeira que
nem se qualifica como de 3ª, tão ruim e cheia de nós que é.

O Projeto Pinho foi um dos empreendimentos gestados e implementados pela FUNAI nos anos
1970 e 1980. Outros foram os Projetos Soja e Projeto Trigo, de grandes lavouras de monocultura
mecanizada nas terras de Nonoai, Guarita e Xapecó principalmente.

Ironicamente, a área de plantio “do DGPI-FUNAI” em Nonoai chamava-se “Granja Ressurreição”.


No seu ano inaugural plantou 500 sacos de soja e 300 de trigo em Nonoai, com rendimento,
naquela safra, de mais de 400 mil cruzeiros, em moeda e valores da época (segundo o jornal
“Folha da Manhã”, de Porto Alegre, em 12.mai.1976).[5]

Resumindo o anterior: o Estado brasileiro tirou, das comunidades kaingang, os recursos naturais
que lhes permitiram ainda uma vida autônoma (ao lado de suas roças familiares, ainda podiam
caçar, pescar, melar e aproveitar dos pinhões, antes dessa destruição).[6]

Semelhante situação viveram os Xokleng, na então conhecida como Terra Indígena Ibirama,
onde a exploração do sassafrás pelas madeireiras locais (particularmente as madeireiras
Marchetti e Jost) tinha o envolvimento da FUNAI e seus funcionários, ora “legalmente”, ora na
mais deslavada corrupção.

Outras comunidades kaingang sofriam outros tipos de violência, como a do Toldo Chimbangue,
que nos anos 70 e 80 era pressionada pelos agentes da FUNAI para abandonar suas terras e
transferir-se para as terras do Xapecó. Na primeira metade da década de 1980, quando apoiada
pelo CIMI Sul, a comunidade passou a lutar pela recuperação de suas terras, seu primeiro e
maior inimigo foi a própria FUNAI, história que está largamente documentada.[7]

As comunidades guaranis, muitas das quais vivendo em terras demarcadas ou reservadas aos
Kaingang, raramente sofriam pressões pelas terras, à exceção do caso de Rio das Cobras, onde
funcionário corrupto da FUNAI, associado a grileiros locais, favoreceu a invasão da terra
indígena, do que resultou, depois de anos de sofrimento, na revolta iniciada pelos Mbyá-Guarani
do cacique Valdomiro, em janeiro de 1978.[8]

No entanto, as comunidades guarani que viviam em terras controladas por Posto da FUNAI,
sofriam outros tipos de pressão: a imposição de casas de madeira (dos aproveitamentos das
serrarias, em Xapecó e Mangueirinha) e, principalmente, a imposição de escola, com
obrigatoriedade de frequência das crianças, da 1ª à 4ª série, o que constituía, então, uma
violência à postura dos Mbyá-Guarani de resistência à educação de “brancos” para seus filhos.

E o caso mais famoso, protagonizado pela Ditadura, foi com respeito aos Guarani atingidos pela
barragem de Itaipu, no início da década de 1980. Contrariando os direitos legalmente garantidos
aos indígenas (pela própria Ditadura, na Lei 6001/73 – o Estatuto do Índio), associada ao INCRA
e à própria Itaipu a FUNAI tratou de pressionar as comunidades Avá-Guarani das margens do Rio
Paraná a transladarem-se para terras de outros Guarani: os Mbyá de Rio das Cobras. Uma das
comunidades (de Porto Irene) aceitou e foi transferida. Outra, porém, do Ocoí-Jacutinga, decidiu
lutar pelo que lhes garantia a lei: uma outra terra, de iguais dimensões e mesmas condições
ecológicas. Sofreram todo tipo de pressão da Itaipu e da própria FUNAI para cederem e,
finalmente, para aceitarem uma terra que lhes foi mostrada antes do alagamento pela represa,
mas que ao final revelou-se mínima (253 hectares) e insalubre (tornou-se apenas uma tripa de
terra margeando o lago que se formou).[9] A triste história contou com episódio de racismo
explícito, patrocinado por notório agente da FUNAI, enteado do General Geisel.[10]

Fórum Justiça- Atuaste em comunidades indígenas no Rio Grande do Sul e Santa Catarina no
período da Ditadura Civil-Militar, como avalias o impacto daquele período no modo de ser, viver,
nas culturas e organização social das comunidades; como sentiu, naquele período, a influência
da ditadura militar nas comunidades?

Começo por acrescentar um dado que não referi, ainda, acima: a repressão dentro das terras
indígenas e a constituição de “comandos” repressivos, verdadeiras milícias, sob comando dos
chefes de posto em cada área.

É fato bastante conhecido que, durante a Ditadura, uma grande quantidade de militares da
reserva (os de maior patente eram capitães) foram empregados como Chefes de Posto, em
função de confiança. A admissão nos quadros da FUNAI também não exigia qualquer rito
especial, muito menos preparo especializado.

Estabelecidos na terra indígena, além de conhecidos casos de abuso sexual contra mulheres
indígenas, esses prepostos da ditadura trataram de criar um grupo local de indígenas
apoiadores, executores, juntamente com o próprio Chefe de Posto, de política repressiva sobre a
comunidade. A propósito, à época o Chefe de Posto é quem escolhia e impunha o cacique para
a comunidade, e por alguns anos a FUNAI remunerou os cacique nomeados por seus
funcionários.

Nenhum indígena podia sair de sua terra para uma viagem a outra terra indígena, por mais
próxima que fosse (como entre Xapecó e Palmas, que distam menos de 80 km), e qualquer que
fosse o seu parentesco lá (onde poderia morar sua mãe, seu pai ou seus irmãos), sem ter uma
autorização escrita do Chefe de Posto, a chamada “Portaria”, papel esse que era obrigado a
apresentar ao Chefe de Posto da área indígena aonde fosse visitar, imediatamente no dia de sua
chegada lá. A “portaria” informava o motivo da viagem e em quantos dias aquele indígena
deveria retornar à área de origem. No dia marcado para o término do prazo, ele deveria
comparecer novamente ao chefe de posto da terra visitada, e receber dele um carimbo e ordem
de retorno, que ele deveria então apresentar ao seu Chefe de Posto, na sua área, quando
chegasse de volta. Era efetivamente um campo de concentração. Indígenas que ousassem sair
sem essa autorização (e alguns, corajosos, o fizeram algumas vezes), para participar de
reuniões com outras lideranças indígenas (como eram, por exemplo, as chamadas “Assembléias
de Chefes e Lideranças Indígenas” apoiadas pelo CIMI), eram considerados rebeldes, e sofriam
a punição de cadeia ao retornarem para sua área. Por vários dias, às vezes até mais de uma
semana, passavam trancafiados em uma “cadeia” fria, às vezes sem comida, outras vezes
obrigados a trabalhos forçados.

Trabalhos forçados eram, aliás, previstos para todos. No Xapecó a FUNAI mantinha uma
“fazenda” de gado (nunca se soube o destino do que se criava ali), e uma vez por ano todos os
homens de cada aldeia deviam dar um dia de serviço roçando a invernada “da FUNAI”.

Era tal a compreensão da FUNAI e seus servidores sobre seu papel e seus direitos sobre as
terras indígenas que certa feita, por 1979 ou 1980, tendo eu ido visitar a Terra Indígena de
Nonoai, estando em conversa na casa do cacique José Lopes (que era visível da sede do Posto
da FUNAI, que distava uns 250 ou 300 metros), a certa altura fomos abruptamente
interrompidos pelo então chefe de Posto (Alan, se minha memória não falha), que, dirigindo-se a
mim, as primeiras palavras que disse foi: “O senhor não sabe que quando a gente entra em uma
propriedade, a primeira pessoa que a gente tem que procurar é o gerente? Essa é uma fazenda
da FUNAI, portanto o senhor tem que se dirigir ao Chefe de Posto!”.

O saldo dessas posturas e práticas da FUNAI foi a criação de uma cultura de repressão e uma
cultura de corrupção dentro das comunidades indígenas. Todos os caciques kaingang corruptos
(e são vários) foram “cria” desse período, ou auxiliares e seguidores dos caciques corruptos e
repressores criados pela FUNAI: gente como o Cacique José Domingos, no Xapecó; Sebastião
Alfaiate, em Guarita; Antonio Mĩg, na Serrinha; e vários outros, e seus sucessores. No Xapecó o
chefe de Posto, João Maeder, cercou-se da família Belino, entre outros. Seu cacique, José
Domingos, anos depois da saída de João Maeder, foi substituído por um dos Belino e, na
sequência, nos anos seguintes, dois outros Belino se seguiram. Além da exploração das terras
agricultáveis, em forma de uma “cooperativa” restrita a uma elite dominante na comunidade, tais
caciques seguiram promovendo venda ilegal de madeiras e implementaram uma grande
extração ilegal de pedras semipreciosas. Envolveram-se com a política local, elegendo
vereadores, Presidente da Câmara e Vice-Prefeito, envolvendo nisso uma negociata com
ocupantes de terras da comunidade indígena reivindicadas pelos mais velhos e reconhecidas
pela FUNAI, mas nunca devolvidas aos índios (e em troca disso, tais corruptos recebiam propina
e espaço político).[11] Envolvidos na política local, caciques como Valdo e Orides Belino
permitiram a entrada, para morar, na terra indígena, de muitos não-índios, fato denunciado à
FUNAI, que nunca tomou providências, como também jamais tomou providências diretas contra
os arrendamentos ilegais promovidos pelos mesmos caciques corruptos (em Xapecó, Nonoai,
Serrinha e Guarita, entre outras).

Penso que esse triste legado é claramente um produto da Ditadura e sua atuação dentro das
comunidades indígenas, ao lado da destruição dos recursos naturais, que resultou na
miserabilidade das famílias e que hoje obriga os jovens pais indígenas a enfrentar jornadas de
viagem de até 6 horas (3 de ida, e 3 de volta) para trabalhar como empregados nos piores
postos em frigoríficos na região Oeste de Santa Catarina, Sudoeste do Paraná e Norte-Noroeste
do Rio Grande do Sul. Ou a passar meses fora de casa, na colheita da maçã em cidades do
meio-oeste catarinense o do nordeste gaúcho, ou ainda na colheita de uvas na serra gaúcha nos
primeiros meses do ano.

Do ponto de vista linguístico, no início dos anos 70 a FUNAI firmou convênio com o Summer
Institute of Linguistics (SIL), que sob a fachada de instituto de pesquisa linguística de fato tenta
esconder um empreendimento evangélico missionário totalmente desrespeitoso com as
culturas indígenas, cujos principais traços próprios são taxados de demoníacos por tais
missionários.[12]

Com o apoio institucional da FUNAI, o SIL implantou, entre os Kaingang, um ensino escolar
fundado no que os linguistas chamam de “bilinguismo de transição” ou “bilinguismo de
substituição”, tendo formado em um centro de capacitação conveniado com a FUNAI, os
“monitores” indígenas que atuariam nisso. Trata-se de um tipo de programa que emprega a
língua indígena apenas para alfabetização, e promove sua substituição paulatina, mas célere,
pela língua portuguesa em 4 anos de escola. Como denunciam frequentemente os linguistas,
esse tipo de ensino bilíngue não favorece ou fortalece a língua indígena, mas o contrário:
contribui muito para seu enfraquecimento.[13] De fato, a primeira geração dos jovens kaingang
que frequentou esse tipo de escola, nos anos 70, foi a primeira a abandonar o uso da língua
materna. A perda linguística entre os Kaingang, hoje, estima-se em torno de 50% (metade da
população total kaingang, de mais de 45 mil pessoas, não fala a língua ancestral). Desse
percentual, estimo que metade ou mais é resultado desse tipo de programa de ensino.

Fórum Justiça- No seu entender, que medidas poderiam ser tomadas visando a reparação
destas violações?

Entendo que o Estado Brasileiro tem dívidas econômicas e dívidas morais com os povos
Kaingang, Xokleng e Guarani no Sul do Brasil.

Anos atrás encaminhei denúncias ao Ministério Público Federal (tanto em Florianópolis, como
em Chapecó), sobre esses e outros fatos aqui relatados, e nunca houve seguimento pelos
respectivos procuradores. Nunca entendi como o MP pode acomodar-se e tergiversar diante de
fatos tão graves e facilmente documentados ou documentáveis.

Entendo que a restauração ambiental (da floresta e das águas, incluindo a reintrodução de fauna
silvestre onde viável) nas terras de Xapecó, Nonoai, Guarita, Mangueirinha, Palmas, Cacique
Doble, Guarapuava, entre outras, é obrigação do governo brasileiro.

Entendo que o estabelecimento de uma extensa área de terra, com matas, para os Guarani do
Ocoí (eles já foram senhores de 1.500 hectares aproximadamente) é uma dívida da Itaipu
Binacional e do governo brasileiro conjuntamente.
Entendo que um programa educacional ambicioso, com participação de qualificados
pesquisadores e educadores indígenas kaingang (diversos com titulação de Licenciado,
Mestrado e Doutorado; outros com notório saber) e com a consultoria de ONGs e agentes
externos conhecedores da cultura e da língua kaingang, com experiência no trabalho com esse
povo, deveria ser constituído (assumindo-se a existência legal dos Distritos Educacionais),
voltado a uma formação renovadora da juventude kaingang, fortalecedora de sua língua e de
alternativas econômicas baseadas na sua cultura, em sustentabilidade e em recuperação
ambiental.

O maior cuidado, hoje, é com qualquer indenização em dinheiro que viesse a passar pelas mãos
de caciques e outras autoridades indígenas. Uma experiência de indenização co-administrada
envolvendo a comunidade como um todo, é da empresa Copel com a comunidade Kaingang de
Apucaraninha (norte do Paraná). Poderia ser útil conhecê-la melhor para se ter parâmetros para
estabelecer, eventualmente, práticas semelhantes.

[1] Apenas um exemplo: na Terra Indígena Xapecó (oeste de SC), já nos anos 60, o SPI abriu
concorrência para venda de 10 (dez) mil pinheiros. A firma vencedora, J.B. Tonial & Filhos, de
Xanxerê, acabou sub-contratando  seus direitos, o que resultou na retirada de cerca de 60 mil
pinheiros daquela área por várias empresas madeireiras.

[2] Ver “Luta Indígena”, n. 11 (Xanxerê: CIMI Regional Sul, nov. 1979, p. 19s.): “Imbuia continua
saindo. Delegado Regional envolvido. Revolta entre os Kaingang”.

[3] Ver “Luta Indígena”, n. 8 (Xanxerê: CIMI Regional Sul, abril 1979, p. 1ss): “Lupion e as terras
dos índios”. Também “Luta Indígena”, n. 11 (Xanxerê: CIMI Regional Sul, novembro 1979, p. 14-
18): “Slaviero, fora de Mangueirinha!”. E “Luta Indígena” n. 18 (Xanxerê: CIMI Regional Sul,
dezembro 1982, p. 14-21): “Mangueirinha”. O caso específico de Mangueirinha foi objeto de
denúncia minha (Coordenador Regional do CIMI Sul) ao Tribunal Russel (cf. “Luta Indígena”, n.
14. Xanxerê: CIMI Regional Sul, abril 1981, p. 12-15): “Tribunal Russel: ‘Tragédias e crimes que
parecem inimagináveis’”. O Tribunal, reunido em Roterdã, em sua 4ª Sessão, em novembro de
1980, condenou o Brasil também por esse caso.

[4] Merece registro uma situação acontecida na Terra Indígena Ivaí, já na década de 80: a FUNAI
vendeu pinheiros centenários da terra indígena, e em troca, construiu casas de “alvenaria” para
as famílias indígenas. A alvenaria eram placas de cimento pré-moldado para construção de
muros, resultando em casas frias e insalubres, sobretudo para o inverno rigoroso e úmido
daquela região.

[5] Cf. “Luta Indígena”, n. 6 (Xanxerê: CIMI Regional Sul, agosto 1978, p. 41; p. 74): “Nonoai –
1978. Em busca de seus caminhos livres”.

[6] Não fosse tudo o mais, a vida saudável e o estilo de vida ainda tradicional que podiam
usufruir, se tivessem ainda seus pinheirais os Kaingang poderiam viver, nos dias de hoje, apenas
da renda de venda de pinhões e nós-de-pinho.
[7] Ver: “Luta Indígena”, n. 11 (Xanxerê: CIMI Regional Sul, novembro 1979, p. 1-13): “A dramática
história do Toldo Chimbangue”. “Luta Indígena”, n. 14 (Xanxerê: CIMI Regional Sul, abril 1981, p.
25-28): “Adendo e correções à história do Toldo Chimbangue”. “Luta Indígena” n. 18 (Xanxerê:
CIMI Regional Sul, dezembro 1982, p. 23-27): “Chimbangue. Kaingang lutam. FUNAI assiste”.
Também: W. D’Angelis, “Toldo Chimbangue: história e luta kaingang em Santa Catarina” (Xanxerê,
SC:CIMI Regional Sul, 1984). E “Informe Chimbangue” (11 edições entre fev.1985 e jan.1987). Os
dois últimos citados estão disponíveis no Portal Kaingang para download
(www.portalkaingang.org).

[8] “Luta Indígena”, n. 4 (Xanxerê: CIMI Regional Sul, novembro 1977, p. 18-19): “O que acontece
com um chefe de posto da FUNAI corrupto?”. “Luta Indígena”, n. 6 (Xanxerê: CIMI Regional Sul,
agosto 1978, p. 85-86): “Nonoai – 1978. Em busca de seus caminhos livres”. “O Estado do
Paraná”, Curitiba, 16 dezembro 1977: “Índios reclamaram e estão sendo ameaçados”.

[9] “Luta Indígena”, n. 17 (Xanxerê: CIMI Regional Sul, agosto 1982, p. 18-24): “Ocoí: solução que
envergonha o país, ameaça os Guarani e favorece transnacionais”. Também: “Luta Indígena”, n.
16 (Xanxerê: CIMI Regional Sul, março 1982, p. 1-19): “Itaipu & FUNAI contra os Guarani”
(incluindo o laudo do antropólogo Edgard de Assis Carvalho, da ABA: “Avá Guarani do Ocoí-
Jacutinga”).

[10] “Luta Indígena”, n. 17 (Xanxerê: CIMI Regional Sul, agosto 1982, p. 28-36): “Os Avá-Guarani
atingidos pelos indicadores de indianidade”. “Luta Indígena”, n. 18 (Xanxerê: CIMI Regional Sul,
dezembro 1982, p. 1-7): “Itaipu: genocídio à brasileira”.

[11] Em 2003, o cacique Orides Belino, do Xapecó, que acumulava a função de Vice-Prefeito de
Ipuaçu (SC), foi assassinado em uma emboscada organizada por um complô dirigido por seu
irmão, Valdo Belino, que fora cacique do Xapecó por 11 anos. Valdo pretendia voltar ao cargo.
Orides foi morto aos 47 anos, e era funcionário da FUNAI desde os 21 anos.

[12] Depois de muitos anos, na década de 1990 esses agentes missionários evangélicos
deixaram de representar o SIL, mas seguiram suas ações de invasão cultural, sobretudo nas
comunidades do Paraná, mas em parte também do Rio Grande do Sul, sob denominações como
“Cristianismo Decidido”.

[13] Ver. D’ANGELIS, Wilmar R.  Aprisionando sonhos: a educação escolar indígena no Brasil.
Campinas: Ed. Curt Nimuendajú, 2012.

Comunidades Tradicionais Povos Indígenas Rio Grande do Sul

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