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“Questão social” no Brasil: relações

sociais e desigualdades1
“Social question” in Brazil: social relations and inequalities

"Cuestión social" en Brasil: relaciones sociales y desigualdades

Marilda Villela Iamamoto


Fecha de presentación: 19/05/18
Fecha de aceptación: 06/06/18

Resumo Abstract Resumen


Este artigo apresenta o This article presents Este artículo presenta el
terreno histórico das historical ground of terreno histórico de las
desigualdades constitutivas constitutive inequalities of desigualdades constitutivas
das relações sociais na social relations in Brazilian de las relaciones sociales en la
sociedade brasileira, society, widely (re) produced sociedad brasileña,
(re)produzidas de forma with the contribution of the (re)producidas de manera
ampliada com o suporte do State with resources and ampliada con el soporte del
Estado por meio de recursos public policies. It aimed to Estado por medio de recursos
e políticas públicas. Busca characterized “social y políticas públicas. Busca
caracterizar a “questão question” in the era of caracterizar la “cuestión
social” na era das finanças finances within the social” en la era de las
no quadro da crise contemporary crisis, finanzas, en el marco de la
contemporânea, indicando indicating its repercussion in crisis contemporánea,
as repercussões no universo the universe of work in Brazil. señalando las repercusiones
do trabalho no país. Ao final At the end are recorded some en el universo del trabajo en
são registradas algumas guidance of liberal roots, el país. Finalmente, se
orientações, de raiz liberal, transversals to social policies registran algunas
transversais às políticas proposed by Brazilian State orientaciones de raíz liberal,
sócias propostas pelo in accordance with the que son transversales a las
Estado brasileiro em guidelines of multilateral políticas sociales propuestas
consonância com as

1
Este texto tem como base versão amplamente revista e atualizada da conferência pronunciada no V Seminário
Internacional de Política Social. Desafios da Política Social na Contemporaneidade, na Universidade de Brasília, no dia
04 de outubro de 2012. A versão integral da citada conferência, sob o título: Brasil das desigualdades: questão social,
trabalho e relações sociais, foi publicada na Revista Ser Social. Brasília, v. 15, n º 33, p. 261-384, jul./dez/ 2013.
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orientações dos organismos organizations, which pressure por el Estado brasileño, en
multilaterais, que tencionam the project of social work in consonancia con las
o projeto de Serviço Social Brazil. orientaciones de los
no Brasil. organismos multilaterales,
que tensionan el proyecto de
Servicio Social en Brasil.

Palavras–chave Keywords Palabras clave


Questão social, relações Social question, social Cuestión social, relaciones
sociais, trabalho, relations, work, social sociales, trabajo,
desigualdades sociais. inequalities. desigualdades sociales.

Introdução

Estas notas pretendem traçar o terreno histórico das desigualdades constitutivas das relações
sociais na sociedade brasileira, (re)produzidas de forma ampliada com o suporte do Estado por
meio de recursos e políticas públicas. Busca-se caracterizar a “questão social” na era das finanças
no quadro da crise contemporânea, indicando suas repercussões no universo trabalho no País.
Finalmente são registradas algumas orientações, de raiz liberal, transversais às políticas sociais
propostas pelo Estado brasileiro em consonância com as diretrizes dos organismos multilaterais,
que tensionam o projeto do Serviço Social no País.

O Brasil das desigualdades

Desde a década de noventa, com a criação dos mercados globais em condições de extrema
instabilidade econômica, evidencia-se, ao nível mundial, um crescimento sistemático das
desigualdades. Afirma Hobsbawm (2007, p.11):

“A globalização, acompanhada de mercados livres, atualmente tão em voga, trouxe consigo


uma dramática acentuação das desigualdades econômicas e sociais, no interior das nações e
entre elas. Não há indícios de que essa polarização não esteja prosseguindo dentro dos países,
apesar de uma diminuição geral da pobreza extrema”.

No Brasil, os governos Lula da Silva e Dilma Rousseff desencadearam estratégias anticrise no


marco das políticas neoliberais, preservando a sua essência enquanto proposta hegemonizada
pelas frações rentistas do capital financeiro. O otimista documento, A década inclusiva (2001-
2011). Desigualdade, pobreza e políticas de renda (IPEA, 2012) reconhece que a desigualdade
brasileira está entre as 12 mais altas do mundo, mas em queda. Segundo o IPEA, a desigualdade
de renda no Brasil caiu continuamente entre 2001 e 2011: a renda per capita dos 10% mais ricos
teve um aumento acumulado de 16,6%, enquanto a dos mais pobres cresceu 91,2% no período.
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Ou seja, a renda dos mais pobres cresceu 550% mais rápido que a dos 10% mais ricos (p. 40). A
inédita redução da desigualdade de renda – e não da concentração da propriedade e de capital -
teve como fontes: o trabalho (58%), a previdência (19%), o Programa Bolsa Família (13%), o
2
Benefício de Prestação Continuada (4%) e outras rendas – como aluguéis e juros (6%) .
Os governos petistas anunciaram um “novo ciclo de desenvolvimento do país” (Castelo, 2010),
apoiado na expansão do mercado interno e do consumo de massas, que, articulasse: (a)
crescimento econômico, (b) reafirmação da soberania nacional expressa na diversificação de
parceiros no comércio externo e na condição do Brasil como credor mundial, perante as reservas
externas acumuladas; (c) reforço da presença do Estado nos bancos públicos, na ampliação do
funcionalismo público e no planejamento governamental. Alia-se a tais medidas o chamado
“choque distributivo”, com aumento do salário mínimo e dos gastos sociais na previdência, na
assistência social, no seguro-desemprego e abono salarial, aliada à expansão do crédito às
pessoas físicas. (Castelo, 2012). Os rendimentos do trabalho se elevaram fruto da política de
reajuste do salário mínimo, do aumento do emprego (criação de empregos e formalização do
trabalho para 50% da PEA), acordos coletivos entre patrões e empregados.
No Brasil de hoje, esse cenário sofreu uma reversão. A crise econômica convive com a prolongada
crise política no país, consubstanciada no recente golpe político institucional à democracia instituída,
cujo desfecho redundou no impedimento da presidente da República eleita, Dilma Rouseff. As
elites econômicas e políticas impõem um golpe à democracia, capturando as estruturas do poder
da República Federativa, com forte apoio midiático. O bloco dominante vem succionando o
orçamento público em favor das finanças, de interesses particularistas das várias frações do
capital e dos proprietários fundiários, surdo aos clamores das maiorias. O fundo público,
majoritariamente direcionado aos interesses do capital que rende juros, tem parcela significativa
capturada pela corrupção que grassa os centros do poder em aliança com segmentos do grande
empresariado, em detrimentos das políticas e serviços públicos universais e de qualidade. Este
quadro apoia-se no braço repressivo e judicial do Estado e na radicalização da violência oficial.
Radicaliza-se a investida contra o legado de direitos dos trabalhadores e avança a privatização da
coisa pública durante a interinidade de Michel Temer na Presidência da República. São exemplos:
a reforma trabalhista já aprovada e a proposta da reforma da previdência com substanciais
perdas de direitos conquistados e com fortes incidências na organização sindical; o desmonte das
políticas sociais públicas como a saúde, a assistência social, a educação; as investidas contra a
universidade pública, a ciência e a tecnologia com financiamento estatal.
Em uma conjuntura internacional de forte reação conservadora (veja-se a presença de Donald
Trump nos EUA, a polarização das eleições francesas e a reorganização de forças na América

2
O Plano Brasil sem Miséria foi lançado em 2011 com o objetivo de elevar a renda e as condições de bem-estar da
população, especificamente os brasileiros cuja renda familiar é de até R$ 70 por pessoa. O Plano agrega diversas áreas e
iniciativas, como: transferência de renda, acesso a serviços públicos nas áreas de educação, saúde, assistência social,
saneamento, energia elétrica e inclusão produtiva.

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Latina em detrimento dos governos populares), afigura-se um cenário de radical reacionarismo,
cujo reverso tem sido a barbárie.
3
O desemprego atinge, em 2017, no Brasil, a assustadora cifra de 13,2 milhões de trabalhadores .
Desde 2014, quando a taxa de desocupação atingiu o menor patamar (6,8%), para 2017, são
quase 6,5 milhões de desempregados a mais, um aumento de 96,2%. A taxa média de
desemprego anual no Brasil subiu de 11,5% em 2016 para 12,7% em 2017, a maior da série
histórica da pesquisa, iniciada em 2012, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE). Ela é acompanhada de agressões e assassinatos da juventude das
periferias urbanas, de negros e pobres, de segmentos LGBT e de trabalhadores do campo. Soma-
se a “caça” aos representantes de nações indígenas nas disputas por terras, presidida pela mais
cruel das violências. Em 2017, o número de trabalhadores sem carteira assinada cresceu 5,5% na
comparação com o ano anterior. São 560 mil trabalhadores a mais. Já o número de trabalhadores
por conta própria cresceu 0,7% no último ano, segundo a mesma fonte.
Dados da Pesquisa de Amostra de Domicílios (PNAD, 2017) do Instituto Brasileiro de Geografía
e Estatistica (IBGE) mostram que, entre 2016 e 2017, houve um aumento de 11,2% do número
de pessoas em situação de extrema pobreza no país, que saltou de 13,34 milhões em 2016 para
14,83 milhões em 2017, representando 7,2% da população brasileira em 2017, acima dos 6,5 no
ano anterior (Valor Economico, 12/04//2018). Para tais dados foi adotada a linha de corte do
Banco Mundial para países classificados como de médio/alto desenvolvimento – como os da
América Latina -, que estabelece a renda de US$1,90 de renda domiciliar per capita dia como
critério de corte, o que equivale, em 2016, a R$133,72 mensais. Este valor foi atualizado pelo
Indice Nacional de Precos ao Consumidor Amplo (IPCA) para R$ 136, em 2017. (Idem).
Segunda a mesma fonte, os índices de pobreza extrema crescem em todas as regiões do país.
Analistas indicam ter contribuído para este aumento a crescente precarização do trabalho
consubstanciada no fechamento de postos de trabalho com carteira assinada, - como garantias
trabalhistas e pisos salariais – e, em contrapartida, a geração de ocupações informais,
temporárias e de baixa remuneração.
A desigualdade no campo é indissociável do processo de “modernização produtiva” e da inserção
do País no competitivo mercado mundial de commodities agrícolas, atualizando sua condição
histórica de economia agroexportadora. Verifica-se, ao mesmo tempo uma intensa
internacionalização do território brasileiro mediante a compra de terras por parte dos grandes
conglomerados financeiros mundiais, sem controle público, tendo em vista a produção de
produtos agropecuários para exportação, a disputa pela água, por recursos minerais e pela
biodiversidade, Esses processos têm derivações na demarcação das terras indígenas e das
populações tradicionais e na expropriação de recursos minerais, do que é exemplo a privatização
do PRE-SAL na exploração petrolífera.

3
Ver https://economia.uol.com.br/empregos-e-carreiras/noticias/redacao/2018/01/31/desemprego-quarto-trimestre-
ibge. Acesso em 05 de maio de 2018.
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As forças de esquerda sofrem importantes metamorfoses em decorrência dos efeitos da crise
econômica e institucional que afeta o trabalho e emprego. A ampla investida governamental, na
última década, na cooptação e institucionalização dos movimentos sociais, que passam a
depender do fundo público, afetam suas formas de organização e ação política em detrimento de
sua autonomia de classe. Ecoam clamores de diversos segmentos de trabalhadores nas ruas e
nas redes sociais.
O Brasil viveu, no ano de 2017, a segunda e a terceira greve geral desde a ditadura de 1964 - a
primeira foi em 1989 –. Elas foram convocadas pelas centrais sindicais e movimentos sociais e
pararam o país, expandindo-se às cidades médias, além das metrópoles urbanas. Contaram com o
apoio e presença de organizações da sociedade civil: a Igreja -com o firme protagonismo da
Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) -, órgãos de representações de trabalhadores,
funcionários públicos, Universidades com seus docentes e estudantes, dentre outras. Foram
também alvo dessas manifestações a denúncia das contrarreformas trabalhista e previdenciária,
que desmontam conquistas consolidadas na Carta Constitucional de 1988.
Não há como silenciar a contestável prisão política do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no
corrente ano, com base em um processo judicial sem provas, na tentativa de excluí-lo do
panorama político das eleições presidenciais, desencadeando contundentes manifestações
públicas.

“Questão social” e hegemonia das finanças 4.

A questão social é indissociável da sociabilidade da sociedade de classes e seus antagonismos


constituintes, envolvendo uma arena de lutas políticas e culturais contra as desigualdades
socialmente produzidas, com o selo das particularidades nacionais, presidida pelo desenvolvimento
desigual e combinado, onde convivem coexistindo temporalidades históricas diversas.
A gênese da “questão social” encontra-se no caráter coletivo da produção e da apropriação privada do
trabalho, de seus frutos e das condições necessárias à sua realização. É, portanto, indissociável da
emergência do trabalhador livre, que depende da venda de sua força de trabalho para a satisfação de
suas necessidades vitais. Trabalho e acumulação são duas dimensões do mesmo processo, fruto
do trabalho pago e não pago da mesma população trabalhadora, como já alertou Marx (1985).
Sabemos que o capital é uma relação social por excelência que, na sua busca incessante de lucro,
tende a expandir-se indefinidamente por meio da apropriação de trabalho não pago dos
trabalhadores. Seu ciclo expansionista realiza-se por meio da ampliação da parcela do capital
investida em meios de produção – capital constante – aumentando a produtividade do trabalho e
reduzindo relativamente aquela porção de capital investida em força de trabalho – capital
variável. Assim, outra condição e resultado contraditório desse mesmo processo é a ampliação da

4
Resgato neste item, de forma condensada, elementos da análise sobre o tema constante em IAMAMOTO (2007) e
agregando várias outras contribuições.
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superpopulação relativa - ou população “sobrante” para as necessidades médias de valorização do
capital -, fazendo crescer o desemprego e a precarização das relações de trabalho. Assim, o
pauperismo como resultado do trabalho – do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho
social -, é uma especificidade da produção fundada no capital (Marx,1985; Netto 2001). Em outros
termos, o processo de acumulação ao realizar-se faz crescer o fosso das desigualdades entre as
classes sociais - a acumulação da riqueza e da pobreza -, o que, por sua vez, restringe a
capacidade de consumo das mercadorias produzidas.
Como afirma Chesnais (2012, p.2), a “superacumulação de capacidades de produção e a relativa
superprodução de mercadorias ante a taxa mínima de lucro com a qual os capitalistas continuam
investindo e produzindo - é o substrato fundamental da crise”. O capital tem que encontrar
mercados para compra e venda da produção, dispor de poder de compra de parte do consumidor
e de lócus para investimento do chamado “excesso de liquidez”: da massa crescente de capital
dinheiro a procura de um nicho rentável para reproduzir-se. A maior barreira que o capital
encontra novamente frente a si mesmo é fruto de sua insaciável sede de mais-valia.
Mas como já indicou Marx (1985):

“A razão última de todas as crises reais é sempre a pobreza e a restrição do consumo das
massas em face do impulso da produção capitalista a desenvolver as forças produtivas, como
se apenas a capacidade absoluta de consumo da sociedade constituísse seu limite” (Livro III,
p. 30)

A “questão social” condensa múltiplas desigualdades mediadas por disparidades nas relações de
gênero, características étnico-raciais, relações com o meio ambiente e formações regionais, colocando
em causa amplos segmentos da sociedade civil no acesso aos bens da civilização. Dispondo de
uma dimensão estrutural – enraizada na produção social contraposta à apropriação privada dos
frutos do trabalho, a “questão social” atinge visceralmente a vida dos sujeitos numa luta aberta e
surda pela cidadania. (Ianni, 1992), no embate pelo respeito aos direitos civis, políticos e sociais. Esse
processo é denso de conformismos e rebeldias, expressando a consciência e luta que acumule
forças para o reconhecimento das necessidades de cada um e de todos os indivíduos sociais.
Foram as lutas sociais que romperam o domínio privado nas relações entre capital e trabalho,
extrapolando a questão social para a esfera pública. Ela passa a exigir a interferência do Estado no
reconhecimento e a legalização de direitos e deveres dos sujeitos sociais envolvidos,
consubstanciados nas políticas e nos serviços sociais, mediações fundamentais para o trabalho
do assistente social.
Segundo Fernandes (1975), no Brasil, a expansão monopolista manteve a dominação imperialista
e a desigualdade interna do desenvolvimento da sociedade nacional. Ela aprofundou as
disparidades econômicas, sociais e regionais, na medida em que vem favorecendo a concentração
de renda, prestígio e poder ao nível social, étnico e regional. Aquela expansão redundou numa forma
típica de dominação política, de cunho contra-revolucionário, em que o Estado capturado

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historicamente pelo bloco do poder assume um papel decisivo na unificação dos interesses das
frações e classes burguesas; e na imposição e irradiação de seus interesses, valores e ideologias
para o conjunto da sociedade, antecipando-se às pressões populares e realizando mudanças para
preservar a ordem. Os traços elitistas e antipopulares da transformação política e da
modernização econômica se expressam na conciliação entre as frações das classes dominantes
com a exclusão das forças populares e no recurso frequente aos aparelhos repressivos e à
intervenção econômica do Estado. (Coutinho, 1989, p. 122). Esta estratégia se atualiza hoje tanto
na criminalização da questão social, quanto na decisiva interferência do Estado na estruturação de
políticas anticíclicas para o capital na contramão das necessidades da maioria.
Assim a concepção de “questão social”, presidida pelas relações de classe que orienta a presente
análise, distingue-se da perspectiva sociológica que a apreende como disfunção ou ameaça à
coesão e à ordem social, inspirada na tradição de E. Durkheim, típica da escola francesa.
Distingue-se ainda daqueles que consideram a existência de uma “nova questão social”
resultante da “inadaptação de antigos métodos de gestão do social”, produto datado da “crise do
Estado Providência” (Rosanvallon, 1995 e 1997; Fitoussi e Rosanvallon, 1997).
Mas qual o sentido da “questão social” hoje? O que se encontra na base de sua radicalização?
Como lembra Husson (1999, p. 99), o processo de financeirização indica um “modo de
estruturação da economia mundial”. A esfera estrita das finanças, por si mesma, nada cria. Nutre-
se da riqueza criada pelo investimento capitalista produtivo e pela mobilização da força de
trabalho no seu âmbito. Nessa esfera, o capital aparece como se o capital-dinheiro tivesse o
poder de gerar dinheiro no circuito fechado das finanças, independente da retenção que faz dos
lucros e dos salários criados na produção. O fetichismo das finanças só é operante se existe
produção de riquezas, ainda que as finanças minem seus alicerces ao absorverem parte
substancial do valor produzido.
O capital dinheiro aparece como coisa autocriadora de juro, dinheiro que gera dinheiro (D – D’),
obscurecendo as cicatrizes de sua origem. O dinheiro tem agora “amor no corpo”, como cita o
Fausto, de Goethe (MARX, 1985, p. 295, t. III, v. IV). A essa forma mais coisificada do capital,
Marx denomina de capital fetiche. O juro aparece como se brotasse da mera propriedade do
capital, independente das atividades produtivas sob o comando do capitalista, isto é, da
produção e da apropriação do trabalho não pago ou mais-valia. A forma de empréstimo é peculiar
à circulação do capital como mercadoria e marca a diferença específica do capital portador de
juro. Sendo o juro parte da mais–valia, a mera divisão desta em lucro e juro não pode alterar sua
natureza, sua origem e suas condições de existência.
Os principais agentes do processo de financeirização são os grupos industriais transnacionais e os
investidores institucionais – bancos, companhias de seguros, sociedades financeiras de
investimentos coletivos, fundos de pensão e fundos mútuos -, que se tornam proprietários
acionários das empresas e passam a atuar independente delas. Através de operações realizadas
no mercado financeiro, interferem no ritmo de investimentos dessas empresas, na repartição de
suas receitas, na definição das formas de emprego assalariado e gestão da força de trabalho e no

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perfil do mercado de trabalho.
É preciso ressaltar o seguinte: os dois braços em que se apoiam as finanças - as dívidas públicas e
o mercado acionário das empresas -, só sobrevivem com decisão política dos Estados e o suporte
das políticas fiscais e monetárias. Eles encontram-se na raiz de uma dupla via de redução do
padrão de vida do conjunto dos trabalhadores, com o impulso dos Estados nacionais: por um
lado, a privatização do Estado, o desmonte das políticas públicas e a mercantilização dos
serviços, a chamada “flexibilização” da legislação protetora do trabalho. E por outro lado, a
imposição da redução dos custos empresariais para salvaguardar as taxas de lucratividade e, com
elas, a reestruturação produtiva centrada menos no avanço tecnológico e predominantemente na
redução dos custos do chamado “fator trabalho” com elevação das taxas de exploração.
Daí a desindustrialização expressa no fechamento de empresas que não conseguem manter-se na
concorrência com a abertura comercial, o que redunda na redução dos postos de trabalho; no
desemprego, na intensificação do trabalho daqueles que permanecem no mercado; na ampliação
das jornadas de trabalho; da clandestinidade e da invisibilidade do trabalho não formalizado,
entre outros aspectos.
A hipótese é que, na raiz da “questão social” na atualidade, encontram-se políticas
governamentais favorecedoras da esfera financeira e do grande capital produtivo – das
instituições, mercados financeiros e empresas multinacionais, enquanto um conjunto de forças
que captura o Estado, as empresas nacionais e o conjunto das classes e grupos sociais, as quais
passam a assumir os ônus das chamadas “exigências dos mercados”. Existe uma estreita relação
entre a responsabilidade dos governos nos campos monetário e financeiro e a liberdade dada aos
movimentos do capital transnacional para atuar, no país, sem regulamentações e controles,
transferindo lucros e salários oriundos da produção para se valorizarem na esfera financeira. Esse
processo redimensiona a “questão social” na cena contemporânea, radicalizando as suas
múltiplas manifestações.
O capital financeiro impõe sua lógica de incessante crescimento, aprofunda desigualdades de
toda a natureza e torna paradoxalmente invisível o trabalho vivo que cria a riqueza e os sujeitos
que o realizam. Nesse contexto, a “questão social”, indissociável da exploração, desigualdade e
pobreza, expressa a banalização da vida humana, resultante de indiferença frente à esfera das
necessidades das grandes maiorias de trabalhadores e dos direitos a elas atinentes. Indiferença
ante os destinos de enormes contingentes de homens e mulheres, trabalhadores excedentes
para as necessidades médias do capital.
A crescente elevação da taxa de juros favorece o sistema bancário e instituições financeiras,
assim como a ampliação do superávit primário afeta as políticas públicas com a compressão dos
gastos sociais, além do desmonte dos serviços da administração pública. Ela combina-se com a
desigual distribuição de renda e a menor tributação de rendas altas, fazendo com que a carga de
impostos recaia sobre a maioria dos trabalhadores.
A mundialização do capital tem, portanto, profundas repercussões na órbita das políticas
públicas, em suas conhecidas diretrizes de focalização, privatização, descentralização,

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desfinanciamento e regressão do legado dos direitos do trabalho. O propósito é liberar recursos
financeiros para a obtenção de superávits fiscais e para o pagamento da dívida pública, sendo a
previdência um grande exemplo no âmbito da seguridade social. A busca de equacionar a relação
entre dívida pública e gasto público, sob a hegemonia das finanças, redunda em um
redimensionamento da intervenção do Estado:

“A hegemonia-financeira redefine a estrutura, forma de funcionamento e conteúdo da


intervenção do Estado – e da política social –, em função da necessidade da dívida pública
funcionar como elo crucial de valorização financeira (e fictícia) do capital e, como
consequência à política de ajuste fiscal permanente, enquanto fiador e viabilizador dessa
valorização” (Filgueira e Gonçalves, 2009, p.2)

Os investimentos especulativos em ações de empresas realizados no mercado financeiro


apostam na extração da mais-valia no presente e no futuro dos trabalhadores para alimentar
expectativas de lucratividade futuras das empresas. Eles interferem silenciosamente nas políticas
de gestão e de enxugamento da mão de obra; na intensificação do trabalho e no aumento da
jornada; no estímulo à competição entre os trabalhadores num contexto recessivo, dificultando a
organização sindical; na elevação da produtividade do trabalho com tecnologias poupadoras de
mão de obra; nos chamamentos à participação e consentimento dos trabalhadores às metas
empresariais, além de uma ampla regressão dos direitos, o que se encontra na raiz das
metamorfoses do mercado de trabalho (Harvey, 1993; Alves, 2000).
No País, a mundialização financeira expandiu a generalização das relações mercantis às mais
recônditas esferas e dimensões da vida social e a bancarização dos meios de vida, inclusive de
parcela do fundo público direcionada à extrema pobreza. A redistribuição desta parte do recurso
público também envolve taxas bancárias alimentando as finanças, estimuladas com a criação do
crédito direto aos consumidores pobres e miseráveis, via bancos ou cartões de crédito,
estimulando o endividamento dessa população junto às instituições financeiras, que afeta a
satisfação de suas necessidades básicas mais prementes. Este universo afeta a sociabilidade e a
cultura, reconfigura o Estado e a sociedade civil, faz erodir formas de convívio coletivas e
dificulta as lutas e movimentos sociais em uma conjuntura adversa aos trabalhadores.
As conjunturas de crises são as que mais dificultam a organização dos trabalhadores – especialmente
a organização operária - devido à maior precariedade das condições de vida, de trabalho, ao
aumento da concorrência por vagas de emprego, ao rebaixamento salarial e ao crescimento do
desemprego e desregulamentação das relações de trabalho. Ela é acompanhada de ampla investida
ideológica por parte do capital e do Estado voltada a cooptação dos trabalhadores, agora travestidos
em “parceiros”, solidários aos projetos do grande capital e do Estado. Contraditoriamente, é
também nos contextos de crise que a organização dos trabalhadores em defesa de seus
interesses e necessidades é ainda mais indispensável, o que requer um intenso trabalho político
por parte das entidades representativas dos trabalhadores – partidos, sindicatos, associações -

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que se mantiveram fiéis às suas bases de representação.
As crises propiciam o questionamento a respeito do futuro de nossas sociedades. São momentos
de paradoxos e possibilidades tanto para capital quanto para o trabalho, das quais todos os tipos
de alternativas - conservadoras, socialistas e anticapitalistas – podem surgir. Elas eclodem no
momento em que o Capital – incluindo os governos dos países capitalistas mais importantes -
fica emperrado por suas próprias contradições, enfrentando as barreiras por ele criadas.
Na atualidade, o substrato da crise reside na superacumulação da capacidades de produção
especialmente elevadas, com uma acumulação de capital fictício sem precedentes, às quais se aliam a
difícil situação dos trabalhadores em qualquer parte do mundo, resultante da posição de força obtida
pelo capital, graças à internacionalização do exército industrial de reserva, impulsionado pela abertura
de países do Leste Europeu e da China ao mercado capitalista.(Chesnais, 2012, p.2)
A força de trabalho potencial dispõe de dimensões de gênero, raça, etnia e tribo e se diferencia
por meio da língua, da política, de orientação sexual e crença religiosa. Tais diferenças incidem no
funcionamento do mercado de trabalho, seja no controle do capital sobre o trabalho seja na
concorrência entre os trabalhadores.
No tocante ao trabalho no país, os dados sintetizados por Silva (2012) a partir da PNAD/IBGE
de 2009, mantem-se vigentes e agravados em 2017, como o demonstram dados de PNAD/IBGE
de 2017, já referidos: desemprego maciço e prolongado; informalidade em grande proporção
(terceirização, trabalho temporário, subemprego); grande rotatividade no emprego e
predominância de contratos até dois salários mínimos; desregulamentação dos direitos
conquistados pelos trabalhadores, sobretudo no âmbito da seguridade social; queda do nível de
renda média do trabalhador; redução da participação da renda trabalho no conjunto da renda
nacional; concentração da renda e do poder político.
As múltiplas manifestações da questão social, sob a órbita do capital, tornam-se objeto de ações
filantrópicas e de benemerência e de “programas focalizados de combate à pobreza”, que
acompanham a mais ampla privatização da política social pública. A efetivação destas políticas tem
sido transferida aos organismos privados da sociedade civil, o chamado “terceiro setor”.
Expande-se, ao mesmo tempo, a compra e venda de bens e serviços, alvo de investimentos
empresariais que avançam no campo das políticas públicas.
As conquistas sociais acumuladas têm sido transformadas em causa de “gastos sociais
excedentes”, que se encontrariam na raiz da crise fiscal dos Estados, segundo a interpretação
neoliberal. A contrapartida tem sido a difusão da ideia liberal de que o “bem-estar social”
pertence ao foro privado dos indivíduos, famílias e comunidades. A intervenção do Estado no
atendimento às necessidades sociais é pouco recomendada, transferida ao mercado e à
filantropia, como alternativas aos direitos sociais que só têm existem na comunidade política. O
pensamento neoliberal opera uma profunda despolitização da “questão social”, ao desqualificá-la
como questão pública, questão política e questão nacional (Yazbek, 2001).
No clima cultural dominante sob a inspiração ultraliberal, a sociedade civil tem sido definida por
exclusão e em antítese ao Estado e à política, como um “espaço não político”, livre de coerções,

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aparecendo idealizada como um reino autônomo da associação e espontaneidade, materializado
nas Organizações Não Governamentais (ONGs). É, também, tida com a guardiã do Estado,
controlando-o para evitar intervenções espúrias nas relações interpessoais. Como sugere Acanda
(2006), o boom dessa noção é indissociável da crise de identidade política democrática e da
esquerda revolucionária e sua difusão vem redundando no fortalecimento da ideologia
dominante: tudo o que não depende do Estado é tido como a um passo da emancipação social.
Ao mesmo tempo, aquela noção tende a encobrir as diferenças reais na vida social,
desaparecendo, com ela, a percepção de fenômenos como: classes sociais, grupos de poder
econômico, monopólios do capital, dentre outros. A sociedade civil tem sido usada como
instrumento de canalizar o projeto político de enfraquecimento do Estado Social e para disfarçar
o caráter de classe de muitos conflitos sociais, alerta o autor citado.

Política social e Serviço Social ante a questão social

Ao longo dos três últimos decênios, o Serviço Social na América Latina foi polarizado por um
duplo e contraditório movimento: o processo de ruptura teórica e política com o lastro
conservador de suas origens; em sinal contrário, verificou-se o revigoramento de uma reação
(neo) conservadora aberta e/ou disfarçada em aparências que a dissimulam, como já indicou
Netto (1996), apoiada nos lastro da produção pós-moderna e sua negação da sociedade de
classes.
Nas três últimas décadas, o Serviço Social brasileiro construiu coletivamente um patrimônio
sóciopolítico e profissional que lhe atribui uma face peculiar no cenário latino-americano e
mundial. Ele tem, no seu núcleo central, a compreensão da história a partir das classes sociais e
suas lutas, o reconhecimento da centralidade do trabalho e dos trabalhadores, e foi inspirado
teoricamente na tradição marxista - no diálogo com outras matrizes analíticas- e politicamente
pela aproximação às forças vivas que movem a história: as lutas e os movimentos sociais. Dessa
herança progressista fazem parte entidades fortes politicamente, representativas e articuladas
entre si, com legitimidade política e capilaridade organizativa inédita nesses tempos de combate à
luta social e exaltação do individualismo e da indiferença ante os dramas coletivos.
Foram muitas as conquistas derivadas dessa orientação político-profissional. Na contramão do
mar de individualismo os assistentes sociais preservaram sua capacidade de indignação ante as
desigualdades e injustiças sociais, mantendo viva a esperança em tempos mais humanos. No campo
do exercício profissional, verifica-se a busca permanente de aperfeiçoamento, a inquietação criadora
e o compromisso com a qualidade dos serviços prestados, dotados de clara direção política e
profundamente sintonizados com as necessidades dos sujeitos coletivo. Tem sido construída uma
nova imagem social de profissão relacionada aos direitos, voltada à participação qualificada dos
sujeitos sociais em defesa de suas necessidades e direitos nos espaços ocupacionais, nas
instâncias de representação coletiva e nas formas diretas de mobilização e organização social.
Avança-se no autorreconhecimento, por parte do assistente social, de sua condição de trabalhador
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assalariado, integrado ao trabalho coletivo, com atitude crítica e ofensiva na defesa das
condições de trabalho e da qualidade dos atendimentos. Esforços foram empreendidos na
qualificação das competências e atribuições do assistente social nos segmentos mais
representativos do mercado de trabalho: na assistência social, na saúde, na área sóciojurídica,
dentre outras. Entretanto ainda falta atribuir maior visibilidade às experiências inovadoras de
trabalho na perspectiva do projeto profissional coletivamente construído.
No âmbito da pesquisa, a presença de uma inquietante pauta temática indica fecunda interlocução
do Serviço Social com o movimento da sociedade, avançando no seu reconhecimento científico.
Hoje, no Brasil, o Serviço Social é reconhecido como área de conhecimento junto às agências
públicas oficiais de fomento à pesquisa e inovação tecnológica.
Na contramão dessas conquistas, atualmente jogam águas no moinho do neoconservadorismo no
Serviço Social: a) a massificação e a perda de qualidade da formação universitária que facilitam a
submissão dos profissionais às “normas do mercado”, tendente a um processo de despolitização da
categoria. Disseminam-se preocupações como “empregabilidade”, “formação por competências”
requeridas pelo mercado, “flexiblização dos currículos plenos” para contemplar novas demandas
mercantis; a “tecnificação” como referência de qualidade da atuação profissional sob a
prevalência da razão instrumental com tendência ao aligeiramento da formação acadêmica e do
seu padrão científico e cultura perante o crescimento desmesurado do contingente profissional
nas últimas décadas, com a expansão acelerada do ensino superior privado – particularmente dos
cursos superiores à distância .
Ao nível das requisições profissionais, três tendências prevalecentes na cultura contemporânea de
raiz liberal vêm interferindo decisivamente nas respostas institucionais à “questão social” no
campo da política social: A primeira tendência é o reforço do individualismo e a responsabilização da
família trabalhadora pela ultrapassagem dos níveis de pobreza. A tendência é transferir aos
indivíduos e suas famílias - apesar da precariedade as condições de sua sobrevivência - a
responsabilidade de criar condições para o enfrentamento das desigualdades, o que se expressa
nas condicionalidades para o acesso às políticas públicas. E os assistentes sociais são chamados a
exercer a fiscalização das famílias, a priori infantilizadas e criminalizadas no cumprimento dessas
exigências. Ou seja, esses profissionais são chamados a exercer a “vigilância social” ou o
“policiamento social” dos pobres, evitando artimanhas no uso indevido de recursos públicos,
demanda persistente desde os primórdios da profissão. É interessante observar que ao grande
capital não é requerida qualquer “vigilância social”, em decorrência dos créditos públicos obtidos
para mover seus negócios. ]
A segunda tendência é a moralização da questão social, ou seja, a subjetivação das necessidades,
escamoteando as condições miseráveis de sobrevivência de amplos contingentes de trabalhadores
sobrantes. Ela também se expressa na tendência de encarar a vivência da pobreza como questão
psicológica, cuja aceitação passaria pela via terapêutica, Individual ou familiar, sublimando as
desigualdades: a ironia de viver bem emocionalmente em condições barbárie, confundindo
competências e atribuições do assistente social com atividades terapêuticas. A moralização da

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questão social também se mostra no chamamento ao voluntariado, com uma dupla implicação. A
primeira é a desqualificação das necessidades da população sujeitas a um atendimento de segunda
classe, não especializado, como se boa vontade substituísse o conhecimento teórico e técnico-político
no respeito ao modo de vida e à cultura das classes subalternas. A segunda é o esvaziamento do
tônus político da militância, agora neutralizada à direita e à esquerda como “trabalho voluntário”; isto
é, trabalho não remunerado, independente da direção social e política impressa ao trabalho,
silenciada e equalizada em favor da ausência de um contrato trabalhista. Por isso o trabalho
voluntário situa-se acima do bem e do mal, metafisicamente superior.
A terceira tendência das requisições profissionais ao nível das políticas sociais é a assistencialização da
barbárie do capital e a criminalização de suas manifestações: esta junção atualiza o Estado Penal
(WACQUANT, 2001) e permite reiterar uma antiga e persistente aliança entre repressão e
assistência no trato da “questão social” em detrimento dos direitos civis, sociais e políticos do
cidadão. Nesse quadro, os assistentes sociais são chamados a verificar in loco as condições de
vida da população trabalhadora, ingressando no seu espaço doméstico e familiar, o que pode
redundar em antiéticas invasões da privacidade em nome da burocracia, do controle estatal e do
cumprimento dos parâmetros de produtividade do trabalho.
No âmbito das políticas sociais, os sujeitos que são seu alvo prioritário têm sido abordados de
forma supraclassista e fragmentada segundo características de geração – jovens, idosos, crianças
e adolescentes –, de gênero, étnico-culturais (especialmente negros e índios) e em sua
distribuição territorial, mas silenciando o seu pertencimento de classe. Essas dimensões
multiculturais e multiétnicas fundam efetivamente assimetrias nas relações sociais que
potenciam as desigualdades sociais, necessitando ser consideradas como componentes da
política da transformação das classes trabalhadoras em sujeitos coletivos. Mas quando
descoladas de sua base social comum – sua extração de classes - tem-se a responsabilização do
indivíduo e da família trabalhadora por ações para o enfrentamento da pobreza.
As referências ao risco social, vulnerabilidade e à exclusão social são transversais à formulação e
operacionalização das políticas sociais, em particular no seu Sistema Único de Assistência Social
(SUAS). Tais referências têm sido largamente incorporadas pelos assistentes sociais em seu
trabalho cotidiano, em nome de um projeto profissional centrado na defesa da universalização
das políticas públicas, da luta por direitos e da radicalização da democracia no horizonte histórico
da emancipação humana.
Merece destaque a concepção de raiz liberal que vem impregnando as políticas públicas voltadas à
“administração ou gestão do risco social” perante segmentos populacionais em “situação de
vulnerabilidade”. Esta foi uma inflexão operada nas políticas de proteção social do Banco Mundial,
a partir de 2000, com suporte acadêmico em teóricos de amplo reconhecimento na sociologia
europeia, como Ulrich Beck (, 1997a, 1997b, 1998, 2008) e Anthony Giddens (Giddens 1991,
2005; Giddens e Pierson, 2000, Giddens, Beck e Lash, 2007), municiadores intelectuais da
“terceira via” ante a “morte do socialismo” e da “luta de classes”.
Nessa concepção, os riscos não são decorrentes do fracasso do capitalismo ou de sua crise, mas

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sim do êxito dessa civilização. A sociedade de risco é produto da radicalização do princípio do livre
mercado e dos fluxos financeiros globalizados, que rompem com as cadeias do controle nacional e
supranacional. Assim a teoria do risco é uma visão laudatória, sob a ótica do capital, dos impasses
que acompanham o “sucesso” da expansão capitalista na era da globalização, silenciando a crise
de larga duração que atinge a acumulação em escala mundial. Dialogando com Marx, ao afirmar
que o capitalismo é seu próprio coveiro, Beck (1997 b) assim se pronuncia:

“Primeiro não é a crise, mas as vitórias do capitalismo que produzem a nova forma social.
Segundo, isto significa que não é a luta de classe, mas a modernização normal e a
modernização adicional que está dissolvendo os contornos da sociedade industrial. A
constelação que está surgindo disso também nada tem em comum com as utopias até agora
fracassadas da sociedade socialista” (p. 12-13)

A hipótese é, pois, que a chamada teoria do risco é o anverso da teoria da crise do capital. Em outros
termos: não há crise do capital, mas existem contradições e impasses decorrentes do êxito da
radicalização da modernidade na era da globalização (visto ser o desenvolvimento capitalista um
processo natural e perene). Assim, a crise do capital é fetichizada e apresentada ao reverso:
meros riscos inerentes ao sucesso do capital, passíveis de serem administrados. Daí a proteção
social passa a ser tratada como “gestão do risco”. Como a dinâmica da sociedade de risco ocorre
mais além de posições e classes, a análise prescinde de diferenças de classe e iguala artificialmente
a todos diante do risco.
Para o Banco Mundial (2006), a globalização oferece aos países em desenvolvimento “enormes
oportunidades de prosperar no marco da economia mundial, mas também os expõem a riscos maiores”
o que justificaria a agenda de reformas neoliberais. As mudanças tecnológicas aceleram o ritmo
do crescimento, mas também aumentam a “decalagem entre os que possuem e os que nada
têm”. Os pobres, os mais vulneráveis, reclamariam apoio para manejar os riscos com que se
defrontam. Assim, emerge uma nova maneira de encarar a política de proteção social como:
estratégia de manejo ou administração de risco. Ela transforma a proteção social “em mais um
trampolim que permita às pessoas dar o salto para vidas mais seguras”. A proteção envolve
estratégias voltadas à “redução de riscos”, à “atenuação de riscos”, ao “enfrentamento dos
riscos”; o “manejo dos riscos” incorpora as questões de vulnerabilidade no debate sobre a
pobreza.
Uma dupla dimensão no alívio da pobreza extrema afirma-se na “sociedade de risco”: a) a criação
de redes de segurança social para a proteção da subsistência básica: e b) a promoção de
aceitação do risco.
Em decorrência surge a necessidade de “empoderar” as pessoas que vivem a pobreza crônica,
nelas desenvolvendo potências e capacidades para aliviar os riscos previsíveis do mercado, com
base no acesso crescente a uma gama de ativos. Em outros termos, a superação da pobreza está
na inserção ativa dos pobres na lógica do mercado, seja por meio da produção ou do consumo.

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Esse conjunto de categorizações de clara inspiração liberal - riscos, ativos, vulnerabilidades,
igualdade de oportunidades - implica a prevalência do mercado na oferta de oportunidades como
o “trampolim para a vida segura”. Atribui-se aos indivíduos atomizados e suas famílias a
responsabilidade de se protegerem contra os riscos (naturais e artificiais) a partir de instrumentos
de manejo de riscos ofertados pelo Estado e pela iniciativa privada. Ao mesmo tempo, tem-se a
focalização das políticas e programas sociais de caráter massivo e de baixo custo nos segmentos
pobres mais vulneráveis: indivíduos, famílias e comunidades. O propósito esperado dessas
iniciativas é a diminuição do risco, tendo por meta prioritária a incorporação dos segmentos
pobres ao mercado (pela via do consumo ou da venda de produtos) e menos atender as reais
necessidades sociais de que são portadores.
Nesse universo analítico, a pobreza passa a ser vista como fracasso individual no ingresso aos
mecanismos de mercado. Caberia ao Estado compensar as “falhas do mercado” e fornecer redes
de proteção social aos pobres vulneráveis para lidar com o risco. Ante a necessidade de reduzir
gastos sociais, recomenda-se uma estratégia política que amplie o empoderamento de indivíduos e
reduza a sua dependência perante as instituições estatais tendo em vista a sua integração na
sociedade.

Conclusões

As análises inspiradas nessa leitura da proteção social se chocam claramente com as conquistas
acumuladas pelo Serviço Social brasileiro. A dimensão de classe das relações sociais não tem
lugar nesse universo, assim como a luta por direitos sociais universais como estratégia de
acumulação de forças na perspectiva de construção histórica de uma sociedade radicalmente
democrática para todos. Dissemina-se, assim, o novo ecletismo no âmbito das políticas sociais: entre
o risco social e a luta por direitos, ao qual se requer atenção.
Tais tendências exigem um esforço redobrado de estreitar laços com as lutas e movimentos
sociais das classes subalternas e as necessidades sociais por eles veiculadas; de realizar o
acompanhamento rigoroso e permanente das formas históricas assumidas desigualdades de
classe nos países latino-americanos, considerando as diferenças de gênero, etnia, geração e
regionais presentes nas expressões da “questão social” em nossas sociedades; e de decifrar as
políticas públicas e o Serviço Social no marco das relações entre Serviço Social e a sociedade nas
sociedades latino-americanas.

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Cita recomendada

Marilda Villela Iamamoto (2018): «Questão social no Brasil: relações sociais e desigualdades»
[artículo en línea]. Conciencia Social. Revista digital de Trabajo Social. Vol. 2, Nro. 3. Carrera de
Licenciatura en Trabajo Social. Facultad de Ciencias Sociales. UNC. pp. 27-44 [Fecha de consulta:
dd/mm/aa].
https://revistas.unc.edu.ar/index.php/ConCienciaSocial/article/view/21586
ISSN 2591-5339

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Sobre la autora

Marilda Villela Iamamoto


Brasileña. Profesora Titular jubilada de la Universidad del Estado de Río de Janeiro y de la
Universidad Federal de Río de Janeiro. Correo electrónico: [email protected]

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