Casos Práticos Órgãos de Soberania e Princípios
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I – Relatório
4. A sentença recorrida concluiu que o ―Decreto-Lei n.º 274/2007, de 30 de Julho‖, que cria
a ASAE, é ―organicamente inconstitucional‖, por violação do artigo 164.º, alíneas d) e u), da
Constituição, embora, nos respectivos considerandos, se refira apenas às normas do artigo 3.º,
n.º 2, alíneas z), aa) e ab), e do artigo 15.º, do referido diploma legal.
Nas respectivas alegações, veio o representante do Ministério Público junto deste Tribunal
Constitucional delimitar o objecto do recurso às normas dos artigos 3.º, n.º 2, alíneas aa) e ab),
do citado Decreto-Lei n.º 274/2007 enquanto nelas se definem as atribuições da ASAE; e à
norma do artigo 15.º do mesmo diploma, que estabelece que a ASAE é um órgão de polícia
criminal.
Considerando que subjacente aos presentes autos está um processo de inquérito pela prática
de crime(s) de ―Jogo Ilegal de Fortuna e Azar‖, cumpre delimitar o objecto do presente recurso
às normas efectivamente desaplicadas pela decisão recorrida, ou seja, à apreciação da
constitucionalidade orgânica das normas dos artigos 3.º, n.º 2, alíneas aa) e ab), e do artigo 15.º,
todos do Decreto-Lei n.º 274/2007.
5. As alíneas aa) e ab) do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 274/2007, definem as
seguintes atribuições a prosseguir pela ASAE:
Alínea aa): «Desenvolver acções de natureza preventiva e repressiva em matéria de jogo
ilícito, promovidas em articulação com o Serviço de Inspecção de Jogos do Turismo de
Portugal, I. P.»;
Alínea ab): «Colaborar com as autoridades judiciarias nos termos do disposto no Código de
Processo Penal, procedendo à investigação dos crimes cuja competência lhe esteja
especificamente atribuída por lei.»
E o artigo 15.º do mesmo diploma, sob a epígrafe ―Órgão de polícia criminal‖ estabelece o
seguinte:
«1 — A ASAE detém poderes de autoridade e é órgão de polícia criminal.
2 — São autoridades de polícia criminal, nos termos e para os efeitos no Código
do Processo Penal:
a) O inspector -geral;
b) Os subinspectores -gerais;
c) Os directores -regionais, designados por inspectores - directores;
d) O director de serviço de planeamento e controlo operacional e os inspectores -
chefes;
e) Os chefes de equipas multidisciplinares.»
6. Refira-se, desde já, que a alínea d) do artigo 164.º da Constituição, cuja convocação a
sentença recorrida não fundamenta minimamente, é uma norma constitucional alheia à questão
em apreço, uma vez que a matéria nela abrangida respeita à organização da ―defesa nacional‖ e
à organização, funcionamento e disciplina das ―Forças Armadas‖.
Por outro lado, a sentença recorrida assenta no entendimento de que a ASAE é uma ―força
de segurança‖ e que as normas impugnadas integram necessariamente o âmbito da reserva
absoluta de competência legislativa da Assembleia da República prevista na alínea u) do artigo
164.º da Constituição. Para o efeito, a sentença apoia-se num conceito amplo de ―forças de
segurança‖ que afirma extrair-se do Acórdão n.º 304/2008 do Tribunal Constitucional.
A questão da inclusão da ASAE no conceito constitucional de ―forças de segurança‖ foi
objecto do Acórdão n.º 84/2010, secundado pelo Acórdão n.º 232/2010, respectivamente da 1.ª e
da 3.ª Secções deste Tribunal Constitucional (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt),
tendo-se concluído no sentido de o conceito constitucional de ―forças de segurança‖ não incluir
a ASAE.
No citado Acórdão n.º 84/2010 lê-se o seguinte a este respeito:
«3.1. Esta visão ampla do conceito constitucional de ―forças de segurança‖ não
suporta, no entanto, que nele seja incluída a ASAE, diferentemente do sustentado pela
decisão recorrida. Diferentemente da Polícia Judiciária, a ASAE não tem por missão
secundária garantir a segurança interna, prevenindo crimes que ponham em causa o
direito à segurança dos cidadãos.
As atribuições constantes das alíneas z), aa) e ab) do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-
Lei n.º 274/2007 – atribuições secundárias por referência à missão que está legalmente
cometida à ASAE no n.º 1 do mesmo artigo e de que as outras alíneas do n.º 2 são
expressão – são absolutamente estranhas à prevenção de crimes que ponham em causa o
direito à segurança dos cidadãos, constitucionalmente consagrado no artigo 27.º Até
mesmo a atribuição de desenvolver acções de natureza preventiva em matéria de jogo
ilícito, promovidas em articulação com o Serviço de Inspecção de Jogos do Turismo de
Portugal, já que tal não se traduz numa qualquer acção de protecção contra agressões ou
ameaças de outrem, face ao disposto nos artigos 95.º a 101.º do Decreto-Lei n.º 10/95,
de 19 de Janeiro (sobre a ―dimensão positiva‖ do direito à segurança aqui pressuposta,
cf. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa
Anotada, volume I, Coimbra Editora, 2007, anotação ao artigo 27.º, ponto II.).
Mais genericamente, é de concluir que a ASAE, ao prosseguir aquelas atribuições,
não participa na função de garantir a segurança interna, que o artigo 272.º, n.º 1, da CRP
comete à polícia (à polícia de segurança, por contraposição à polícia administrativa e à
polícia judiciária). ―Não podendo afirmar-se que conceito de segurança interna seja um
«conceito constitucionalmente vazio», tem de reconhecer-se que a sua caracterização
não se alcança por forma directa e definitória no texto constitucional‖ (Acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 479/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt. Sobre
as dificuldades do conceito, cf. CATARINA SARMENTO E CASTRO, A questão das
Polícias Municipais, Coimbra Editora, 2003, p. 294 e ss.). Mas já é alcançável de forma
indirecta, ainda que não definitória, a partir do conceito constitucional de ―forças de
segurança‖, uma vez que a função de garantir a segurança interna cabe, no âmbito da
polícia, às forças de segurança (assim, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 479/94.
Na doutrina, cf. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 1993, anotação ao artigo 272.º, ponto IV. e
JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, tomo III,
Coimbra Editora, 2007, anotação ao artigo 272.º, pontos VIII e XVIII).
3.2. A introdução da alínea u) no artigo 164.º da CRP, ocorrida por via da Lei
Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, revela-se decisiva para delimitar o conceito
de ―forças de segurança‖ que encontramos em várias normas da Constituição e de que
aquela mesma alínea é exemplo. Se ―quanto à matéria ínsita na alínea u) daquele artigo,
inequivocamente nela se (…) [contém] a definição dos serviços organizações ou forças
que devem compor as forças de segurança‖, é de concluir, então, que aquele conceito
abrange apenas os serviços, organizações ou forças a que lei parlamentar sobre o regime
das forças de segurança atribua esta natureza (relativamente àquela alínea, cf. Acórdão
do Tribunal Constitucional n.º 23/2002, disponível em www.tribunalconstitucional.pt. E
no mesmo sentido, cf. o Acórdão n.º 304/2008, infra ponto 4.). Em bom rigor, a
delimitação do conceito constitucional de ―forças de segurança‖, à margem do elenco
constante de lei parlamentar sobre o regime das forças de segurança, justifica-se apenas
quando seja de apreciar do ponto de vista jurídico-constitucional a atribuição de tal
natureza a certos serviços, organizações ou forças.
No momento da emissão do Decreto-Lei n.º 274/2007 a lei parlamentar em matéria
de regime das forças de segurança não incluía a ASAE no elenco das forças e serviços
de segurança (cf. artigo 14.º da Lei de Segurança Interna, Lei n.º 20/87, de 12 de Junho,
cujo elenco está agora no artigo 25.º da Lei n.º 53/2008, de 29 de Agosto, nele não se
incluindo a ASAE). Sendo certo que o princípio da reserva de lei contido no artigo
272.º, n.º 4, da CRP obriga a uma enumeração taxativa das forças de segurança (assim,
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 557/89), há que concluir que o Governo não
invadiu a reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República ao
emitir aquele Decreto-Lei.
3.3. Diga-se, por último, que é de todo irrelevante para a inclusão da ASAE no
conceito constitucional de ―forças de segurança‖ o que se dispõe nos artigos 15.º (Órgão
de polícia criminal) e 16.º (Uso e porte de arma) do Decreto-Lei n.º 274/2007.
De acordo com o artigo 1.º, alínea c), do Código de Processo Penal «órgãos de
polícia criminal» são todas as entidade ou agentes policiais a quem caiba levar a cabo
quaisquer actos ordenados por uma autoridade judiciária ou determinados por este
Código. O que significa que se parte ―da ideia de que o que define a actividade de um
órgão, enquanto órgão de polícia criminal, é, não a sua qualificação orgânica ou
institucional, mas sim a qualidade dos actos que pratica‖ (DAMIÃO DA CUNHA, O
Ministério Público e os Órgãos de Polícia Criminal no Novo Código de Processo Penal,
Porto, Universidade Católica, 1993, p. 14). Assim se justificando, por exemplo, que
alguns funcionários de justiça desempenhem, no âmbito do inquérito, as funções que
competem aos órgãos de polícia criminal (cf. artigo 6.º do Estatuto dos Funcionários de
Justiça e alínea i) do Mapa I anexo ao Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto).
O uso e porte de arma, independentemente da respectiva licença, não é
propriamente algo que seja exclusivo das forças de segurança. Por exemplo, também os
magistrados judiciais e do Ministério Público e os oficiais de justiça têm este direito
especial (artigos 17.º, n.º 1, alínea b), do Estatuto dos Magistrados Judiciais, 107.º, n.º 1,
alínea b), do Estatuto dos Magistrados do Ministério Público e 63.º, alínea b), do
Estatuto dos Funcionários Judiciais).»
Reiteramos aqui esta fundamentação, inteiramente aplicável ao caso em apreço, por dela
não haver razão para divergir.
III − Decisão