Etica Moral e Direito No Transumanismo e

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IV CONGRESSO INTERNACIONAL

DE DIREITOS HUMANOS
DE COIMBRA: UMA VISÃO
TRANSDISCIPLINAR
IV CONGRESSO INTERNACIONAL
DE DIREITOS HUMANOS
DE COIMBRA: UMA VISÃO
TRANSDISCIPLINAR

ORGANIZAÇÃO:

http://www.inppdh.com.br http://igc.fd.uc.pt/
VITAL MOREIRA
JÓNATAS MACHADO
CARLA DE MARCELINO GOMES
CATARINA GOMES
CÉSAR AUGUSTO RIBEIRO NUNES
LEOPOLDO ROCHA SOARES
(Organizadores)

ANAIS DE ARTIGOS COMPLETOS DO IV


CIDHCoimbra 2019
VOLUME 1

www.cidhcoimbra.com

1ª edição

Jundiaí/SP - Brasil
Edições Brasil / Editora Fibra / Editora Brasílica
2020
© Edições Brasil / Editora Fibra / Editora Brasílica - 2020
Supervisão: César Augusto Ribeiro Nunes
Capa: João J. F. Aguiar
Editoração eletrônica: João J. F. Aguiar, César A. R. Nunes, José R. Polli
Revisão ortográfica: os autores, respectivamente ao capítulo
Revisão Geral: Comissão Organizadora do IV CIDHCoimbra 2019
Conselho Editorial Edições Brasil: João Carlos dos Santos, Dimas Ozanam Calheiros,
José Fernando Petrini, Teresa Helena Buscato Martins.
Conselho Editorial Editora Fibra: Maria Cristiani Gonçalves da Silva, Francisco
Evangelista, Jean Camoleze, Jorge Alves de Oliveira, Sidnei Ferreira de Vares,
Thiago Rodrigues, Guilherme de Almeida Prazeres, Cristiano Reis.
Conselho Editorial Editora Brasílica: César Ap. Nunes, Leopoldo Rocha Soares, Daniel
Pacheco Pontes, Paulo Henrique Miotto Donadeli, Elizabete David Novaes,
Eduardo António da Silva Figueiredo, Egberto Pereira dos Reis
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9610 de 19/02/1998. Todas as in-
formações contidas nesta obra são de exclusiva responsabilidade dos autores.
As figuras deste livro foram produzidas pelos autores, sendo exclusivamente responsá-
veis por elas. A imagem da capa foi obtida na Adobe Stock por João J. F. Aguiar.
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer meio,
sem previa autorização por escrito das editoras. O mesmo se aplica às características
gráficas e à editoração eletrônica desta obra. Não é permitido utilizar esta obra para fins
comerciais. Quando referenciada, deve o responsável por isto fazer a devida indicação
bibliográfica que reconheça, adequadamente, a autoria do texto.
Cumpridas essas regras de autoria e editoração, é possível copiar e distribuir essa obra
em qualquer meio ou formato
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para fins didáticos, não havendo qualquer vínculo das mesmas com a obra.
A editora, os organizadores e os autores acreditam que todas as informações apresen-
tadas nesta obra estão corretas. Contudo, não há qualquer tipo de garantia de que o uso
das mesmas resultará no esperado pelo leitor. Caso seja(m) necessária(s), as editoras
disponibilizarão errata(s) em seus sites.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
N9221a Nunes, César Augusto R.
Anais de Artigos Completos do IV CIDHCoimbra 2019 - Volume
1 / César Augusto R. Nunes et. al. (orgs) [et al.] – Jundiaí: Edições
Brasil / Editora Fibra / Editora Brasílica, 2020.
293 p. Série Simpósios do IV CIDHCoimbra 2019
Inclui Bibliografia
ISBN: 978-65-86051-03-2
1. Direitos Humanos I. Título
CDD: 341

Publicado no Brasil / Edição eletrônica


[email protected] / [email protected]
[email protected]
ANAIS DE ARTIGOS COMPLETOS
IV CONGRESSO INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS DE COIMBRA: UMA VISÃO
TRANSDISCIPLINAR
www.cidhcoimbra.com
VOLUME 1 - Composição dos Simpósios:
Simpósio nº. 01
DIREITOS FUNDAMENTAIS ENTRE GLOBALIZAÇÕES E CONTRA-
GLOBALIZAÇÕES
Coordenadores: Mário Reis Marques e Luís Meneses do Vale
Simpósio nº. 02
TEORIAS DOS DIREITOS HUMANOS E A RESPOSTA À PERGUNTA: O
QUE É TER UM DIREITO?
Coordenadores: Márcio Secco e Rodolfo de Freitas Jacarandá
Simpósio nº. 03
MÍDIA, POLÍTICA, TECNOLOGIAS E DIREITOS HUMANOS
Coordenadoras: Aparecida Luzia Alzira Zuin e Larissa Zuim Matarésio
Simpósio nº. 04
EFETIVA APLICAÇÃO DAS REGRAS DE MANDELA NA EXECUÇÃO
PENAL
Coordenadores: Daniel Pacheco Pontes e Alexandre Sanches Cunha
Simpósio nº. 06
JUSTIÇA RESTAURATIVA E DEMOCRACIA: INSTRUMENTOS PARA
EFETIVAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS EM TEMPOS DE CRISE
Coordenadores: Luciano de Oliveira Souza Tourinho e Samene Batista Pereira
Santana
ISBN: 978-65-86051-03-2
VOLUME 2 – ISBN: 978-65-86051-04-9 VOLUME 3 – ISBN: 978-65-86051-05-6
VOLUME 4 – ISBN: 978-65-86051-06-3 VOLUME 5 – ISBN: 978-65-86051-08-7
VOLUME 6 – ISBN: 978-65-86051-07-0 VOLUME 7 – ISBN: 978-65-86051-09-4
VOLUME 8 – ISBN: 978-65-86051-11-7 VOLUME 9 – ISBN: 978-65-86051-10-0

COMISSÃO CIENTÍFICA DO IV CIDHCOIMBRA 2019:


Membros Titulares:
Prof. Doutor Vital Moreira; Prof. Doutor Jónatas Machado; Mestre Carla de
Marcelino Gomes; Mestre Catarina Gomes; Mestre César Augusto Ribeiro Nunes;
e Mestre Leopoldo Rocha Soares.

Membros Convidados:
Prof. Doutor Rafael Mario Iorio Filho; Profa. Doutora Fernanda Duarte Lopes
Lucas da Silva; Profa. Dra. Alessandra Benedito; Mestre Alexandre Sanches Cunha.
SUMÁRIO

Apresentação .................................................................................................................... 08
A Diversidade Cultural na Europa Cosmopolita e o Tribunal Europeu dos Direitos
do Homem ........................................................................................................................ 10
Belisa Carvalho Nader
A Perspectiva da Migração sob a Luz da Nova Ordem Internacional .................... 22
Bruna Nubiato Oliveira, Maucir Pauletti
As Transformações do Século XXI e os Desafios ao Estado Democrático de Direi-
to: a crise do atual modelo democrático e a possível transição para uma pós-demo-
cracia .................................................................................................................................. 33
Rhuan Rommell Bezerra de Alcantara
Ética, Moral e Direito no Transumanismo e Pós-Humanismo ................................ 40
João Jerónimo Machadinha Maia
Derechos Ambientales Como Nueva Teoría Integral de Los Derechos ................. 53
Gregorio Mesa Cuadros
Efetividade dos Mecanismos de Proteção à Mulher Brasileira ................................. 65
Maria Eduarda Lievore Barros
O Discurso da Lei e da Jurisprudência: entre o significado
e a Descrição ..................................................................................................................... 77
Cláudia Ernst P. Rohden
A Operacionalização do Programa de Proteção à Crianças e Adolescentes Ameaça-
dos de Morte no Estado do Ceará sob a Ótica da Organização Gestora: o desafio
de salvaguarda da vida na perspectiva da proteção Integral ...................................... 91
Mônica Sillan de Oliveira, André Henriques Bueno
Sujeitos, Objeto e Violência do Discurso na Mídia Digital ..................................... 100
Márcia Fernandes Bezerra
A Internet e a Dominação a Partir do Silêncio do Outro ....................................... 113
Rodrigo Bandeira Marra
Liberdade de Expressão e Informação na Ótica da Proteção de Dados Pessoais:
União Europeia e Brasil ................................................................................................ 126
Juliana Falci Sousa Rocha Cunha
O Impacto da Inteligência Artificial na Democracia ............................................... 135
Sofia Caseiro
A Culpabilização da Vítima: como as manchetes retratam a mulher agredida em
crimes de gênero ............................................................................................................ 143
Andrelize Schabo Ferreira de Assis, Lucélia Miranda de Souza Quintiliano
Punições Implícitas: Realidade da Execução Penal .................................................. 155
Gabriel de Faria Cussolim
Execução Penal: a violação das regras de Mandela no processo de execução penal
no Brasil ........................................................................................................................... 163
Maria Carolina Ramos, Luciene de Jesus Lima
O Suicídio nas Penitenciárias Brasileiras e a aplicação das regras de Mandela .... 172
Rafaela Alves da Fonseca Cassali
Presos que Dão à Luz: a relevância de políticas públicas em face das particularida-
des do gênero feminino ................................................................................................ 185
Lara Esteves Martins
A APAC Feminina de Frutal-Mg, Brasil, Como Opção à Efetiva Aplicação das Re-
gras de Mandela .............................................................................................................. 198
Keila Martins Mota
As Regras de Mandela no Sistema Penitenciário Federal Brasileiro: o isolamento do
preso e os direitos humanos ......................................................................................... 211
Olinda Vicente Moreira
A Dignidade da Pessoa Humana Face ao Sistema Carcerário Brasileiro: Regras de
Mandela ........................................................................................................................... 220
Isabela Joana Mateus Amorim
Justiça Restaurativa: as aplicações dos círculos de paz para adolescentes em conflito
com a lei .......................................................................................................................... 228
Ranna Santos Morais
Justiça Restaurativa como Guardiã da Democracia - uso de princípios restaurativos
no âmbito sociopolítico brasileiro ............................................................................... 234
Amanda Castro Machado
Democracia em Tempos de Crise: a justiça restaurativa como fortalecimento dos
direitos humanos ............................................................................................................ 247
Ana Paula da Silva Sotero
A Mediação Penal Pós-Sentencial Como Técnica de Justiça Restaurativa em Portu-
gal ..................................................................................................................................... 258
Marianna Salvão Felipetto
Justiça Restaurativa e o Filme “Abril Despedaçado”: um novo olhar sobre o crime
para a preservação da paz ............................................................................................. 274
Thaíse Ribeiro Santos Lima
A Insurgência da Justiça Restaurativa Contra o Paliativo - “Populismo Penal” -
Aplicado a Violência de Gênero ...................................................................................287
Jéssica Melo Martins, Nieda Machado da Silva
ÉTICA, MORAL E DIREITO NO TRANSUMANISMO
E PÓS-HUMANISMO

João Jerónimo Machadinha Maia


Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra
Doutor em Estudos Contemporâneos
Investigador Integrado

Resumo:
Este artigo mostra uma panorâmica sobre o debate ético-moral, com implica-
ções jurídicas, que tem vindo a ser desenvolvido sobre a aplicação das novas
biotecnologias no organismo humano, quando passíveis de alterar a condi-
ção humana. Trata-se de um debate com posições de ordem religiosa, técni-
co-científica e filosófica que demonstram, consoante o caso, maior ou menor
abertura a este tipo práticas. Neste sentido, também se aborda a documen-
tação que tanto a nível internacional como a nível nacional tem sido produ-
zida em matéria de direito biomédico bem como as práticas desenvolvidas
em diferentes contextos. Os dados apresentados e a discussão desenvolvida
demonstram a necessidade de democratizar o conhecimento e prática cientí-
fica e médica uma vez que este tipo de intervenções comporta uma dimensão
estética, para além do facto do progresso científico e tecnológico tender a
caminhar à frente da legislação produzida.

Palavras-chave: Transumanismo; Pós-humanismo; Direito; Estética; Demo-


cratização.

Introdução
Os desenvolvimentos recentes em áreas do conhecimento científico-tec-
nológico como a engenharia genética, a nanotecnologia, a inteligência artificial
ou a criogenia vieram alertar para a possibilidade de o ser humano desenvol-
ver uma capacidade tecnológica que lhe permita ultrapassar os limites físicos,
mentais e intelectuais ditados pela sua própria biologia. Tratam-se de tecnolo-
gias cujo o desenvolvimento é pressionado por diferentes tipos de interesses
no âmbito social, tanto a nível terapêutico como económico. Estes dados têm
colocado cada vez mais a relevância académica e científica do debate ético-
moral, com implicações jurídicas, sobre os conceitos de transumanismo e de
pós-humanismo. Os conceitos de transumanismo e de pós-humanismo são

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alvo de grande controvérsia e ambiguidade até porque o seu estudo ainda
é relativamente recente do ponto de vista académico e científico. No entanto,
do ponto de vista evolucionista, podemos ligar o conceito de transumanis-
mo ao conceito de transumano que significará um humano melhorado ou um
estádio intermédio entre o humano e o pós-humano. Já o pós-humano será,
então, um estádio evolutivo da espécie ontologicamente diferente do huma-
no (Bostrom, 2003). Do ponto de vista filosófico, podemos identificar o mo-
vimento académico e intelectual do pós-humanismo crítico que desenvolve
uma crítica em relação ao conceito de humanismo europeísta. Este conceito,
apesar de ter uma pretensão universal no seu alcance, terá sido, no entan-
to, conivente com as maiores atrocidades cometidas precisamente em nome
do bem-estar da humanidade no quadro da hegemonia ocidental no mundo
(Braidotti, 2015).
Neste sentido, em termos de objetivos, este artigo procura desde logo
confrontar diferentes posições teóricas sobre a legitimidade e/ou a mais-valia
da aplicação das novas biotecnologias, principalmente quando estas são apli-
cadas no organismo humano sendo passíveis de alterar a condição humana.
Serão abordadas posições centrais de ordem religiosa, técnico-científica e filo-
sófica que mostram, consoante o caso, maior ou menor abertura a este tipo de
práticas. Como segundo objetivo pretende-se mostrar as linhas gerais seguidas
em matéria de direito biomédico, a nível internacional e a nível nacional, em
paralelo com os dados de relatórios oficiais e com as opiniões de especialistas
na área de modo a confrontar a legislação com as práticas desenvolvidas. Da
discussão desenvolvida sobressai a ideia de que a noção dominante de digni-
dade humana comporta uma dimensão estética, para além da dimensão moral.
Logo defende-se a necessidade de democratizar o conhecimento e a prática
científica e médica como fator de maior justiça social, ambiental e cognitiva.

As posições religiosas
No plano do debate público, as grandes religiões mundiais de tradição
abraâmica, como é o caso do judaísmo, do cristianismo e do islão, apresentam
maioritariamente posições de rejeição em relação à aplicação das novas bio-
tecnologias ao organismo humano, nomeadamente quando tais práticas impli-
cam determinações mais significativas. Com base nestas posições estão aquilo
que estas confissões advertem como sendo os interditos fundadores e a alte-
ridade absoluta. Ou seja, questões como a criação humana ou até mesmo a
inteligência, consciência e linguagem humanas terão sido criações de Deus e
como tal não cabe ao homem manipulá-las ou instrumentaliza-las de alguma
forma. Em concreto, estas posições têm sido muito dirigidas à possibilidade
da prática da clonagem humana reprodutiva ser constituída como uma técni-
ca de procriação medicamente assistida. No entanto, sobre este assunto, po-
demos encontrar algumas posições minoritárias nestas religiões que mostram
abertura ao desenvolvimento da clonagem humana reprodutiva. Por exemplo,

Anais de Artigos Completos - VOLUME 1 | 41


alguns pastores protestantes veem na clonagem uma expansão da liberdade
humana e do controlo exercido sobre a procriação considerando isso positivo.
Também alguns rabinos judeus veem a clonagem humana reprodutiva como
uma solução possível para salvar linhagens familiares ameaçadas em situações
de genocídio. É uma posição que não estará desligada da experiência do povo
judeu durante o holocausto (Kahn & Papillon, 2000).
Noutro plano cultural, segundo o intelectual norte-americano Francis
Fukuyama (2002), encontra-se nas filosofias orientais uma visão de continui-
dade entre a natureza humana e a natureza não-humana. Para o autor, esta vi-
são do mundo implica uma menor consideração pelo carácter sagrado da vida
humana o que pode levar nesta parte do mundo a uma maior abertura sobre
práticas que no Ocidente são consideradas menos dignas sobre o ser humano.
No entanto, pode-se contrapor a esta observação de Fukuyama que a conti-
nuidade entre a natureza humana e a natureza não-humana pode ser relacio-
nada, antes, como um respeito por toda a vida, humana e não-humana. Outra
perspetiva possível relaciona-se com o facto de em vários países do Extremo
Oriente e do Sudeste Asiático vigorarem regimes políticos que colocam mais
a ênfase nos aspetos educacionais e culturais do que nos aspetos biológicos e
hereditários. Tais posições podem estar ligadas ao exercício das práticas bio-
políticas que são consideradas condenáveis pela cultura ocidental.

As posições técnico-científicas
Sobre o debate acerca da exequibilidade da técnica da clonagem humana
reprodutiva, é possível encontrar posições, em ambos os campos, com um
nível de fundamentação assinalável. Da parte de quem se opõe ao desenvol-
vimento da técnica, podemos encontrar as posições do geneticista francês
Axel Kahn. Segundo ele, tendo por base a experiência da clonagem da ove-
lha Dolly, a produção de um clone viável implica a reconstituição de muitos
embriões o que, desde logo, coloca muitas questões do foro ético-moral, se
for transposto para a clonagem de seres humanos. É muito recorrente, neste
campo, o argumento de que a destruição de um embrião humano implica a
destruição de uma vida humana. Para além disso, sendo necessária uma gran-
de quantidade de embriões humanos para desenvolver a técnica, o facto da
produção de ovócitos, nas mulheres, ocorrer a conta-gotas, até por compara-
ção com outras espécies de animais, também pode ser uma grande limitação
ao desenvolvimento da técnica (Kahn & Papillon, 2000). Sobre a hipótese da
clonagem de órgãos humanos para fins terapêuticos, Kahn assume que não
há nenhuma garantia que seja possível a produção ex vivo de órgãos de ma-
míferos, apesar de algumas experiências promissoras já realizadas para a pro-
dução de órgãos menos complexos. “No entanto, órgãos mais complexos, como o
coração, os rins ou o pâncreas, são constituídos por uma rede de numerosos tecidos celulares,
cuja reunião resulta no próprio órgão e na sua função específica. Parece, pois, claramente
mais difícil conseguir gerar outros tantos tecidos, paralela e simultaneamente, para assegurar

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o crescimento de um coração ou de um pulmão fora da fábrica orgânica que é o nosso corpo”
(idem, p.165).
Estando a técnica da clonagem dependente da manipulação das células
embrionárias, há igualmente quem lembre as dificuldades técnicas como os
problemas no uso destas células: difíceis de crescer, de controlar e facilmente
rejeitáveis. Também não constitui, ainda, um processo de fácil desenvolvimen-
to a conversão de células de um órgão humano em células de outro órgão. No
entanto, como refere o relatório que se debruça sobre o tema da inevitabilida-
de da clonagem humana reprodutiva, do Instituto de Estudos Avançados da
Universidade das Nações Unidas (UNU-IAS), há quem contraponha a estes
argumentos o facto da clonagem estar mais relacionada com a técnica da fer-
tilização in vitro do que com a genética. A clonagem humana reprodutiva pode
acontecer muito mais depressa do que aquilo que se pensa, pois esta pode ser
realizada sem conhecimento da estrutura do ADN. Apesar deste argumen-
to, podemos identificar uma tendência para ligar as questões da clonagem às
questões genéticas na legislação nacional e internacional (UNU-IAS, 2007).
No entanto, como é óbvio, o debate sobre a exequibilidade das técnicas
desenvolvidas a partir das novas biotecnologias não se esgota no assunto da
procriação medicamente assistida e da clonagem humana. Também na área
da engenharia genética tem gerado acesa controvérsia o desenvolvimento das
terapias genéticas em seres humanos. No plano técnico-científico, as terapias
genéticas visam a alteração direta do material genético humano. Estas terapias
ainda estão, na maior parte dos casos, numa fase experimental. Ainda assim,
o seu potencial campo de ação é enorme pois podem não só almejar o tra-
tamento de muitas doenças como também podem introduzir diferenças nas
caraterísticas humanas em termos de inteligência, consciência, extroversão
e aparência física. De qualquer forma, o diagnóstico genético com pré-em-
briões, antes de serem transferidos para a cavidade uterina, já é possível para
detetar os genes portadores de deficiência e garantir gravidezes com bebés
normais selecionando desta forma as gerações futuras (Maia, 2017).
Também a nanotecnologia molecular é uma área de ponta na investiga-
ção científica que está em desenvolvimento e que visa permitir a observação, a
medição e a manipulação da matéria à escala do nanómetro. É uma tecnologia
que poderá permitir a inserção no organismo humano de nanodispositivos e
de nanomateriais com o intuito de melhorar as performances e a saúde huma-
nas. A nanotecnologia molecular avança igualmente no campo experimental e
laboratorial pois existem desafios ligados à inserção destes componentes no
corpo humano, por exemplo para evitar efeitos tóxicos dos mesmos. Há que
frisar que ainda existe um longo caminho a percorrer para o estabelecimento,
em vários casos, de procedimentos fiáveis a aplicar de forma generalizada nas
pessoas. Existe uma desproporção entre o investimento realizado, a obtenção
de resultados em contexto laboratorial restrito e a capacidade de desenvolver
biotecnologias com resultados fiáveis e sem efeitos indesejados tanto no caso
da nanotecnologia molecular como no caso das próprias terapias genéticas.

Anais de Artigos Completos - VOLUME 1 | 43


Ainda assim, a nanotecnologia molecular poderá ser um caminho viável para
hibridização do humano com a máquina levando à criação daquilo que no
âmbito do debate transumanista e pós-humanista se designa como o “cibor-
gue” (idem).
A criogenia, uma última técnica aqui referenciada, pretende, através de
baixas temperaturas, congelar o corpo de um paciente humano cuja doença
não tem cura no presente para que esse corpo seja preservado e reanimado
num futuro onde a ciência e a tecnologia, para a cura que necessita, já existam.
É algo para o qual já se começam a vislumbrar algumas possibilidades nomea-
damente com o uso da técnica do nitrogénio líquido. Apesar de já existirem
pessoas congeladas através deste processo até agora não foi possível reani-
mar qualquer uma delas. Ainda se colocam questões sérias e complexas a
nível da preservação da integridade física e psicológica do paciente nos vários
momentos do processo. A sua reanimação implica não só reverter os danos
causados pelo processo em si como também os danos causados pela própria
morte. As pessoas apenas são submetidas ao processo da criogenia após a sua
morte legal ser decretada uma vez que o congelamento antes de morrerem se-
ria sempre passível de acusações de suicídio assistido ou de eutanásia. Tratam-
se de procedimentos que não são permitidos legalmente em países em que a
criogenia é praticada, como por exemplo os Estados Unidos da América. As
pessoas que se sujeitam a este tipo de tratamento fazem-no porque estando
num estado terminal da doença de que sofrem não têm nada a perder. No en-
tanto, não têm qualquer garantia de que um dia voltarão à vida nem estão ain-
da previstas perante a lei todas as condições jurídicas em que um dia poderão
assumir, por exemplo, o seu património. Recorde-se que a espera pela cura de
uma doença pode demorar dezenas ou até centenas de anos (idem).

As posições filosóficas
Do ponto de vista filosófico encontramos neste debate vários tipos de
posições que se fundamentam em elementos de diferentes ordens, incluin-
do elementos científicos, para defenderem, consoante o caso, oposição ou
abertura à aplicação das novas biotecnologias no ser humano. A área neo-
conservadora, nos Estados Unidos da América, por influência de grupos re-
ligiosos tem relevado posições contrárias em relação à aplicação dos recentes
desenvolvimentos da biotecnologia. Francis Fukuyama (2002) sendo oriundo
desta área política não coloca de parte estas posições. Na sua perspetiva de
evolução humana não descarta a possibilidade de ter havido a emergência, a
certa altura, de uma alma no ser humano. No entanto, este autor socorre-se
de outro tipo de posições para defender a proibição deste tipo de biotecno-
logias. Adotando uma influência aristotélica assume a distinção entre o que
é natural e o que é convencional. Para ele, está em causa o perigo de alterar
a natureza humana e o fator x. Segundo Fukuyama, todos os seres humanos
têm determinadas caraterísticas, os chamados universais, que os identificam

44 | IV Congresso Internacional de Direitos Humanos de Coimbra


como membros da mesma espécie permitindo o estabelecimento entre si de
relações de convivialidade e de moralidade. Uma vez que esses universais se-
jam alterados, por exemplo através da tecnologia, estará em causa a imputa-
bilidade do sujeito perante a lei. Neste sentido, Fukuyama defende uma forte
regulamentação internacional para impedir a aplicação das novas técnicas da
biotecnologia em humanos identificando outros possíveis riscos no seu uso
como as disfunções nas relações sociais e intergeracionais e a possibilidade de
se provocar graves desequilíbrios demográficos e geopolíticos.
Por sua vez, a matriz de pensamento dominante, nesta área, na Europa
funda-se em premissas significativamente diferentes oriundas da filosofia kan-
tiana. Para Jurgen Habermas (2006), a interferência, por exemplo, no genoma
humano pode colocar em causa a apropriação autocrítica do indivíduo em
relação à sua autobiografia passada. Somos indivíduos únicos e inconfundí-
veis na medida em que somos sujeitos de linguagem e ação que nos desenvol-
vemos em relações interpessoais e intersubjetivas. O ser-próprio é mais um
poder transsubjetivo do que um poder absoluto. O perigo na intervenção à
priori no genoma humano relaciona-se com o perigo da redução na simetria
de responsabilidade que existe em princípio entre seres livres e iguais. Está em
causa a autocompreensão ética da humanidade no seu todo perante os efeitos
da auto-instrumentalização e auto-otimização humana que podem ser opera-
dos nos mercados da informação genética. Habermas aceita, no entanto, as
intervenções genéticas que ele designa como eugenia negativa uma vez que
estas terão objetivos meramente terapêuticos ao contrário da eugenia positiva
que ultrapassa esse âmbito ao ter como objetivo o melhoramento humano.
Axel Kahn, por seu lado, assume uma linha de pensamento próxima de
Habermas em termos de oposição aos atentados à dignidade humana e à ins-
trumentalização humana que poderão ser realizados na aplicação da técnica
da clonagem. A aplicação do imperativo categórico implica a assunção do su-
jeito moral e não-egoísta, na tradição fundadora da Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Nesta perspetiva, um clone correria o risco, do ponto de
vista social, de ter um estatuto de segunda categoria na medida em que po-
deria ser visto como um usurpador de identidade (Jacquard & Kahn, 2004;
Kahn & Papillon, 2000). Estas visões sobre a aplicação das biotecnologias,
nomeadamente no plano mais íntimo do ser humano, têm fundamento na
filosofia de Immanuel Kant e refletem-se nas legislações de países como a
Alemanha e a França. No entanto, as posições francesas e alemãs sobre esta
matéria não são, de todo, comungadas por outros países. A Grã-Bretanha está
próxima da tradição liberal de John Locke. Esta tradição deposita grande fé
na ciência e na tecnologia e é uma corrente responsável por uma maior aber-
tura que existe nos países anglo-saxónicos em relação às práticas da biotecno-
logia que possam ter, de forma precoce, uma maior interferência na determi-
nação genética dos indivíduos (Habermas, 2006). Esta abertura em relação às
biotecnologias nos países anglo-saxónicos acontece apesar de também haver
nestes países grupos internos de pressão contrários a tais práticas.

Anais de Artigos Completos - VOLUME 1 | 45


Com efeito, do ponto de vista filosófico, há autores que se fundamen-
tam no âmbito da ciência para rebater os argumentos dos opositores das no-
vas biotecnologias. Deste modo, há quem destaque que nem tudo o que nós
somos é ditado pela genética. A própria epigenética e os fatores ambientais
desempenham um papel decisivo no desenvolvimento físico, mental e psico-
lógico do indivíduo (Ferry, 1997, in Kahn & Papillon, 2000). Nesta linha de
pensamento, Albert Jacquard destaca mesmo que a própria atividade dos ge-
nes humanos é complexa. Inclusivamente, a atividade genética não deixa de
estar relacionada com os fatores ambientais decorrentes da vida do indivíduo
(Jacquard, 1988). Por esta ordem de razões podemos perceber que determina-
das características físicas podem-se manifestar numa geração e não se mani-
festar na geração seguinte. Mesmo o facto da própria identidade humana se
formar ao longo da vida em relações de intersubjetividade no âmbito social e
cultural é um elemento que pode legitimar a aplicação das biotecnologias no
ser humano (Descamps, 2007). Por exemplo, neste sentido, quando se fala
em clones humanos, não quer dizer que estes sejam cópias idênticas aos seus
progenitores, nos planos mental e psicológico para além do plano físico. Estes
dados também dificultam a hipótese de se desencadear uma atitude delibe-
rada e voluntarista de seleção artificial. Nesta medida, pode ser defensável a
ideia da clonagem humana reprodutiva como uma solução viável para indiví-
duos que sofrem de esterilidade poderem ter um filho. Onde Albert Jacquard
(1988), por sua vez, adota uma posição de cautela, em relação às alterações
genéticas artificialmente desenhadas, é no que diz respeito às implicações do
ponto de vista dos equilíbrios ecológicos e geopolíticos. De modo geral, po-
demos interferir com a constituição biológica das diferentes espécies sem per-
cebermos muito bem o impacte que isso irá ter nos sistemas ecológicos e
por arrasto nos sistemas socioeconómicos. Há elementos de imprevisibilidade
nestas questões que não se controlam. Como efeitos possíveis, coloca-se o
dilema entre o desencadeamento da subversão das preponderâncias culturais
ou o recurso cada vez maior aos meios de pressão independentes do efetivo,
ou seja, a utilização de meios não-democráticos para manter a ordem geopolí-
tica atual. Em linha contrária, poder-se-á argumentar que a preservação da di-
versidade genética será um elemento a salvaguardar na espécie humana assim
como noutras espécies uma vez que possibilitará às populações uma maior
gama de instrumentos para fazer face aos diferentes tipos de desafios.
Por outro lado, será útil introduzir nesta discussão a visão sobre o con-
ceito de dignidade humana presente no movimento transumanista. Este mo-
vimento tem vindo a constituir-se no âmbito internacional envolvendo acadé-
micos, filósofos e ativistas que defendem a possibilidade de aplicar as novas
biotecnologias ao ser humano em seu benefício. Destacam, assim, que o con-
ceito de dignidade humana presente na Declaração dos Direitos Humanos
das Nações Unidas assume um legado histórico revelando elementos suces-
sivos da teologia cristã, da filosofia kantiana e do legado do pós-II Guerra
Mundial. Nesta medida, é um conceito de ordem moral e de ordem estéti-

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ca (Bostrom, 2007). Pode-se defender que é um conceito que não representa
nada em absoluto. Neste sentido, o plano programático dos transumanistas
vai para além da ideia do melhoramento humano através de alterações pura-
mente biológicas. Já prevê na sistematização das suas ideias a possibilidade
de consumar, num plano muito avançado, a hibridização entre o humano e
a máquina. Aliás, como defende autora D.J. Haraway (1995), na linha do pós
-humanismo crítico, o ciborgue poderá ter uma dimensão emancipatória no
contexto de um modelo diferente de sociedade. O ciborgue não será um pro-
duto de um sistema desigual e de reprodução mas poderá ser ele próprio uma
forma de relação mais justa, mais livre e enquadrada numa visão ecológica
da sociedade mediante a redefinição das relações de poder no âmbito social
e político. Temos aqui uma visão ético-filosófica onde o ser humano está em
permanente construção desde os primórdios da espécie nomeadamente atra-
vés do uso da tecnologia. Nesta linha de pensamento, torna-se muito difícil
distinguir entre a eugenia positiva e a eugenia negativa. Na verdade, o uso da
tecnologia sendo politizado pode ser dirigido para favorecer a preservação ou
a promoção dos equilíbrios sociais e ecológicos.

A documentação e a realidade internacionais


Nas últimas décadas tem vindo a tentar-se regular no plano internacio-
nal o desenvolvimento das práticas relacionadas com a aplicação das biotec-
nologias em seres humanos. Como pedra basilar nesta matéria, foi adotada,
pelo Conselho da Europa, em 1997, a Convenção sobre os Direitos do Ho-
mem e a Biomedicina, também conhecida como a Convenção de Oviedo.
Esta convenção teve nos anos subsequentes vários protocolos adicionais que
visaram regulamentar as questões mais prementes que se iam colocando em
matérias de direito biomédico. A saber: 1º protocolo adicional sobre a proibi-
ção da clonagem humana, em 1998; 2º protocolo adicional sobre o transplan-
te de órgãos e tecidos humanos, em 2002; 3º protocolo adicional sobre prá-
ticas de investigação biomédica, em 2005; 4º protocolo adicional sobre testes
genéticos para fins de saúde, em 2008 (Maia, 2017). De referir que todos os
protocolos adicionais, no âmbito da Convenção de Oviedo, já entraram em
vigor dado que foram ratificados pelo número mínimo de partes exigido.
No seio das Nações Unidas, em particular na UNESCO, houve pela
mesma altura um esforço semelhante ao esforço do Conselho da Europa para
regular este tipo de matérias. Da parte da UNESCO podemos citar a Decla-
ração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos de 1997,
a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos de 2004 e a
Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos de 2005. Em con-
creto, da parte da Assembleia-geral das Nações Unidas houve uma declaração
sobre a proibição da clonagem humana aprovada em 2005 à semelhança da-
quilo que foi feito pelo Conselho da Europa na documentação relativa à Con-
venção de Oviedo (idem).

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Podemos referir que a nível internacional, a tradição jurídica europeia
continental baseada na filosofia kantiana reflete-se com maior predominância
na documentação produzida para regulamentar as práticas da biotecnologia.
A Declaração da Organização das Nações Unidas sobre Clonagem Humana
não tem efeito legal vinculativo e esteve longe de ser consensual a sua apro-
vação. Mas foi precisamente por iniciativa da França e da Alemanha que se
pretendeu banir, a nível global, o processo da clonagem humana reprodutiva
embora na prática este efeito esteja dependente da iniciativa legislativa indivi-
dual dos estados (UNU-IAS, 2007). De forma geral, tanto nos documentos
do Conselho da Europa como nos documentos da UNESCO, aprovados no
campo da bioética, está presente uma matriz humanista do legado civiliza-
cional europeu. Em praticamente todos os documentos citados estão consa-
gradas questões como a confidencialidade da informação genética pessoal, o
princípio da não-discriminação, o consentimento livre e esclarecido do indiví-
duo participante na intervenção, a prevalência do bem-estar da pessoa sobre o
estrito interesse da sociedade e o desenvolvimento para fins terapêuticos das
práticas de biotecnologia em seres humanos, salvo exceções. Há, nesta medi-
da, nos diferentes documentos, a coincidência do mesmo processo histórico
em termos de assunção dos fundamentos filosóficos e normativos em matéria
jurídica.
No entanto, pode-se apontar a crítica de estarmos, em muitos casos,
face a documentos que exprimem princípios vagos que não preveem toda a
complexidade dos casos resultantes do desenvolvimento da engenharia gené-
tica e das biotecnologias, em geral. Sabemos, nesta altura, que este tipo de
técnicas avança para uma convergência da engenharia genética com a nano-
tecnologia e a inteligência artificial. A documentação internacional produzi-
da está muito centrada nas técnicas de engenharia genética mais divulgadas
publicamente como é o caso da clonagem humana e das terapias genéticas.
Para além disso, não há limites bem demarcados em relação à investigação
sobre a clonagem humana. Embora alguns estados tenham adotado legislação
para banir a clonagem reprodutiva, há ainda muitos outros estados que não
têm qualquer legislação sobre a matéria. Lidamos, muitas vezes, com defini-
ções científicas puramente arbitrárias na transposição para o campo jurídico
ao mesmo tempo que há interesses científicos e económicos que pressionam
a investigação na área. Por outro lado, a fraqueza das estruturas sociais nos
países do Sul torna-os sujeitos a aproveitamentos de situações de pobreza.
Hoje tentam-se delinear novos caminhos sobre a opção a tomar em termos
de investigação sobre a clonagem humana sem que haja, de alguma forma,
consenso internacional sobre o assunto (UNU-IAS, 2007). É verdade que na
documentação da UNESCO encontramos uma maior ênfase ao incitamento
na cooperação científica entre os países industrializados e os países em de-
senvolvimento, no intercâmbio de conhecimento e informação científica em
áreas como a biologia, a genética e a medicina. Assim, o progresso social e
económico poderá ser usado em benefício de todos. A estrutura da UNES-

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CO, sendo mais representativa do que por exemplo a estrutura do Conselho
da Europa, pode justificar este tipo de opções. No entanto, assinala-se que o
relatório da própria UNESCO, de 2014, sobre “O princípio da não-discrimi-
nação e da não-estigmatização” continua a apontar aos países em desenvolvi-
mento um quadro de pobreza, de instituições fracas, de falta de capacidade de
investigação científica, falta de comunicações e de infraestruturas, inabilidade
de transferência do conhecimento para as políticas e de fracos sistemas de re-
gulação da medicamentação.

A legislação nacional e os desafios em Portugal


Em Portugal também tem sido desenvolvido um esforço para acompa-
nhar as tendências internacionais no que diz respeito ao direito biomédico e
à bioética. A legislação nacional, nesta área, tem como princípios fundamen-
tais as disposições expressas nos documentos internacionais de instituições
como as Nações Unidas e o Conselho da Europa. Embora alguma da legisla-
ção portuguesa seja anterior às convenções e declarações internacionais cita-
das, ela não deixa de se basear em documentos internacionais anteriores e de
maior alcance como a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Na-
ções Unidas ou a Convenção Europeia dos Direitos do Homem que datam
de 1948 e 1950, respetivamente. Em alguns casos a legislação nacional tem
vindo a ser alterada para obedecer às ordens jurídicas e às diretivas europeias
entretanto criadas ou devido às novas maiorias parlamentares que se vão es-
tabelecendo no quadro da Assembleia da República Portuguesa. Neste senti-
do, podemos citar em matéria do direito biomédico português mais relevante
para este artigo: o Decreto-lei nº319/86 de 25 de setembro referente ao Ban-
co de Esperma; a Lei nº12/93 de 22 de abril sobre Colheita e Transplante de
Órgãos, Tecidos e Células de Origem Humana com subsequentes alterações
entre 2007 e 2015; o Despacho da Ministra da Saúde nº5411/97 de 8 de julho
sobre Diagnóstico Pré-Natal; a Resolução nº47/2001 da Assembleia da Repú-
blica sobre Proteção da Dignidade Pessoal e da Identidade Genética do Ser
Humano; a Resolução nº48/2001 da Assembleia da República sobre Defesa
e Salvaguarda da Informação Genética Pessoal e subsequente Lei nº12/2005
de 26 de janeiro sobre Informação Genética Pessoal e Informação de Saúde,
alterada em 2016; a Lei nº32/2006 de 26 de julho sobre a Procriação Medi-
camente Assistida, com alterações entre 2007 e 2016 e com deliberações e
decretos aprovados nos últimos anos da parte de órgãos competentes como o
Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida; a Lei n.º5/2008 de
12 de fevereiro sobre Base de Dados de Perfis de ADN para Fins de Identifi-
cação Civil e Criminal, com alteração em 2013 (Maia, 2017).
Apesar dos avanços conseguidos no campo da produção legislativa, o
caso português revela ainda um longo caminho a percorrer em matéria de
bioética. Como já foi referido, a legislação portuguesa na área do direito bio-
médico tem como princípios fundamentais as disposições expressas nos do-

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cumentos internacionais de instituições como as Nações Unidas e o Conse-
lho da Europa. Por outro lado, determinados documentos têm estado muito
sujeitos às circunstâncias das maiorias parlamentares em matérias específicas.
Ultimamente têm vindo a ser alargados os beneficiários das técnicas de pro-
criação medicamente assistidas e foi introduzida a permissão das técnicas da
fertilização recíproca e da gestação de substituição (idem) embora com ba-
talhas legislativas e judiciais que ainda estão em curso. Para além disso, há
especialistas portugueses que apontam limitações no debate e no pensamento
ético na área da bioética entre os cientistas e os médicos portugueses (Antu-
nes, 2011; Faustino, 2009). Inclusivamente apontam-se desafios para superar
em termos do ensino superior. Há toda uma nova gama de aplicações de na-
notecnologia a entrar no mercado e na prática médica e os profissionais de
saúde portugueses têm que ser preparados para esta nova realidade. Urge, por
isso, desenvolver nas universidades portuguesas, por exemplo, os cursos de
nanomedicina (Santos N.C., 2011). Ainda assim, certamente que o tratamento
deste tipo de questões transcende o plano meramente académico e político. A
forma como se liga o conhecimento e a prática científica e médica à realidade
das populações deve ser alvo de uma abordagem com outra intensidade.

Considerações finais
Ao debatermos os conceitos de transumanismo e de pós-humanismo,
por um lado na área ético-moral, por outro lado na área jurídica, encontramos
um campo óbvio de ligação entre as duas áreas. A ideia atual de dignidade hu-
mana, que se encontra transposta na Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos das Nações Unidas, está fundada numa herança histórica de elemen-
tos sucessivos da teologia, da filosofia kantiana e do legado do pós-II Guerra
Mundial (Bostrom, 2007). Este conceito de dignidade humana poderá sempre
ser alvo da crítica de que encerra uma visão ligada a um processo histórico es-
pecífico. Na mesma medida, também se pode apontar à documentação e à le-
gislação internacional e nacional, em matéria de direito biomédico, o facto de
estar muito centrada em processos como a procriação medicamente assistida,
a clonagem e mesmo as terapias genéticas excluindo todas as outras técnicas
futuras que ainda não são possíveis de conceber mas que se tornam plausíveis
dadas as promessas que os desenvolvimentos da ciência e da tecnologia vão
trazendo. As aplicações de áreas como a nanotecnologia e a criogenia colo-
cam questões de uma complexidade tal que ultrapassam as implicações estri-
tas para a pessoa intervencionada. Provavelmente em muitos casos colocar-
se-ão implicações para os familiares da pessoa intervencionada e, uma vez que
as técnicas sejam aplicadas em larga escala, haverá com certeza implicações de
ordem sociodemográfica, socioeconómica, sociocultural e ambiental.
Neste sentido, defende-se a ponderação da dimensão estética em cada
intervenção no domínio das biotecnologias em humanos. Valores mais altos
como o alívio do sofrimento, a justiça, a igualdade, a liberdade, a equidade, a

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saúde e o respeito pela dignidade humana devem ser salvaguardados (idem).
No entanto, varia a forma como essa salvaguarda é operacionalizada em cada
contexto pois cada caso tem a sua própria especificidade para além do facto
da evolução da ciência e da tecnologia tender a caminhar à frente do direito.
Logo, há a necessidade de democratizar o conhecimento e a prática científi-
ca e médica. Se é verdade que a aplicação das novas biotecnologias aos se-
res humanos comporta riscos individuais e coletivos, por outro lado, também
comporta a oportunidade dos indivíduos expandirem as suas opções de vida
e de, num plano mais abrangente, se poder contribuir para uma sociedade
mais justa e mais ecológica nomeadamente onde as carências hoje são maio-
res. Certamente que a nível global torna-se importante a promoção da coo-
peração internacional nos domínicos da ciência e da tecnologia respeitando
as especificidades socioculturais e ambientais. Mas no contexto de cada co-
munidade há que implementar órgãos de debate e de decisão que assegurem
uma verdadeira participação democrática de todos os agentes sociais, e não
só dos especialistas, sobre a aplicação dos dispositivos científico-tecnológicos
e de saúde. Há que apostar no empoderamento dos cidadãos no quadro de
uma biopolítica democrática que leve à participação destes no processo de
debate e de deliberação sobre a aplicação das tecnologias emergentes. Sem a
democratização do conhecimento e da prática científica e médica dificilmente
se poderá implementar um modelo de sociedade sustentável que obedeça às
necessidades de todos (Nunes, 2003).

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as Ciências da Vida (Ed.), Nanotecnologias e O.G.M.: Ciência, Ética, Sociedade
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