Estatuto Processual Do Arguido

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1.

Estatuto processual do arguido

A partir do momento da sua constituição como arguido, este adquire uma posição e um
estatuto processual especial, com regulação nos artigos 57.º e ss.. Pode dizer-se que a
especialidade do estatuto do arguido decorre do facto de ele não ser hoje considerado apenas
como objeto do processo e da prova, mas como um verdadeiro sujeito processual autónomo.
Em função deste especial estatuto, assiste ao arguido um conjunto de direitos e deveres, dos
quais o artigo 61.º contém um elenco (não exaustivo).

Aquele que é mais vezes invocado a propósito da temática das “conversas informais” é o
direito ao silêncio do arguido. Aliás, a maioria da jurisprudência sobre esta matéria trata
casos em que o arguido se remete ao silêncio na audiência, exercendo assim o direito
legalmente consagrado no artigo 61.º, n.º 1, alínea d) e amplamente reafirmado para a
audiência de julgamento nos artigos 343.º, n.º 1, e 345.º, n.º 1. Com efeito, quando é chamado
para prestar declarações (em interrogatório, perante OPC ou autoridades judiciárias, ou em
audiência de julgamento, perante o juiz), o arguido pode sempre optar por “não responder a
perguntas (…) sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações
que acerca deles prestar” (artigo 61.º, n.º 1, alínea d)).

Afirma SANTOS CABRAL que este direito não gera “o efeito negativo de obstaculizar
qualquer depoimento sobre o que o mesmo referiu anteriormente”, pois tal “não tem
fundamento legal e colide com o princípio da legalidade da prova a que alude o artigo 125º
do Código de Processo Penal”1.

O silêncio não pode ser objeto de qualquer valoração, não podendo o arguido ser prejudicado
por ter exercido um seu direito. Como se diz no Acórdão do STJ, de 11.07.2001, “o silêncio
não pode ter (…) significado, pois em direito, como princípio, o silêncio não tem o valor de
sim (quem cala consente), de não ou talvez, é mesmo a ausência de declaração” 2. Noutras
palavras, “o silêncio não pode, segundo a lei, implicar consequências desfavoráveis para
quem o invoca, ou seja, o silêncio não é valorável e, como tal, não pode ser sujeito ao
princípio da livre apreciação da prova”3.

1
GASPAR, ANTÓNIO DA SILVA HENRIQUES, JOSÉ ANTÓNIO HENRIQUES DOS SANTOS
CABRAL, EDUARDO MAIA COSTA, ANTÓNIO JORGE DE OLIVEIRA MENDES, ANTÓNIO PEREIRA
MADEIRA, ANTÓNIO PIRES HENRIQUES DA GRAÇA, Código de Processo Penal Comentado, Almedina,
Coimbra, 2014, p. 489; Acórdão do STJ, de 27.06.2012.
2
Acórdão do STJ, de 11.07.2001, in CJ (STJ), Ano IX, Tomo III, p. 169.
3
SOFIA SARAIVA DE MENEZES, “O direito ao silêncio: a verdade por detrás do mito”, in Prova
Criminal e Direito de defesa – Estudos sobre Teoria da Prova e Garantias de Defesa em Processo Penal ,
Almedina, Coimbra, 2010, p. 129.
Um princípio que decorre do direito ao silêncio é o nemo tenetur se ipsum accusare4 ou
privilégio contra a autoincriminação: para impossibilitar que sejam utilizados contra um
indivíduo elementos com que ele próprio tenha contribuído, existe o princípio de que
ninguém pode ser obrigado a produzir uma declaração autoincriminatória. Porém, aceita-se
hoje pacificamente que tal não implica que ele tenha um direito a mentir ou à mentira. Com
efeito, como afirma CASTANHEIRA NEVES, “o que (…) ninguém hoje exige (…),
superadas (…) as atitudes degradantes do processo inquisitório (a recusar ao réu a qualidade
de sujeito do processo e a vêlo apenas como meio e objecto de investigação), é o heroísmo de
dizer a verdade auto-incriminadora”5. Apesar de o princípio nemo tenetur se ipsum accusare
não ter expressa previsão na CRP nem no CPP, aceita-se a sua vigência no direito processual
penal português enquanto princípio não escrito.

Diz COSTA ANDRADE quanto à extensão do direito ao silêncio e do princípio nemo tenetur
se ipsum accusare, que “não é tanto o reconhecimento do princípio nemo tenetur quanto e
sobretudo a definição da sua compreensão e alcance, sc., a precisa demarcação da respectiva
área de tutela que suscita dificuldades”6. Com efeito, existem situações de fronteira em que
pode haver uma colisão entre a realização de diligências probatórias e o direito ao silêncio,
casos que têm sido abordados pela doutrina. “Cabe então questionarmo-nos se o direito ao
silêncio e à não auto-incriminação têm como objecto apenas as declarações do arguido ou se
têm um âmbito tão amplo que permita a recusa à sujeição às diligências de obtenção da
prova”7.

A este propósito, é relevante referir os artigos 61.º, n.º 3, al. d), e 172.º, n.º 1. Impõe o
primeiro ao arguido um dever de sujeição “a diligências de prova e a medidas de coacção e
garantia patrimonial especificadas na lei e ordenadas e efectuadas por entidade competente”.
O segundo dispõe o seguinte: “se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame
devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, pode ser compelido por decisão da
autoridade judiciária competente”.

A favor da extensão do âmbito do direito ao silêncio e do princípio nemo tenetur se ipsum


accusare para além das declarações orais do arguido, pode argumentar-se com a letra do

4
“Ninguém é obrigado a acusar-se a si próprio”.
5
ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES, Sumários de processo criminal, Coimbra Editora, Coimbra,
1968, pp. 175-176.
6
MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, p. 127.
7
SOFIA SARAIVA DE MENEZES, “O direito ao silêncio: a verdade por detrás do mito”, pp. 133-
134.
artigo 61.º, n.º 3, al. d), no sentido de que apenas será exigível a sujeição do arguido a
diligências de prova, mas não a sua colaboração ativa.

Em favor da posição contrária, ressalta desde logo a falta de base legal para tal extensão. Por
outro lado, note-se ainda que o artigo 60.º impõe expressamente que os direitos e deveres do
arguido não prejudiquem as diligências probatórias. Assim, existe uma obrigação de sujeição
a diligências, nos termos dos artigos 61.º, n.º 3, al. d), e 172.º, n.º 1.

AUGUSTO SILVA DIAS E VÂNIA COSTA RAMOS chamam a atenção, a propósito do


âmbito não plenamente definido do princípio nemo tenetur se ipsum accusare, para o
importante princípio da concordância prática, sendo necessário, em cada um destes casos de
fronteira, procurar “uma compatibilização (…) que visa aplicar todos os princípios
colidentes, harmonizando-os entre si numa situação concreta” 8. Por exemplo, em relação à
participação do arguido numa reconstituição do facto, deverá ponderar-se se a diligência em
si terá conteúdo incriminatório, se a participação do arguido implicará uma certa versão
incriminatória dos factos, se afetará a sua (o seu grau de) culpabilidade. Em caso afirmativo,
deverá reconhecerse ao arguido o direito ao silêncio9.

Central no nosso Processo Penal é o princípio da presunção de inocência, expressamente


consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP. Implica este princípio que o arguido deva ser
tratado como inocente até ao trânsito em julgado de uma decisão condenatória, recaindo o
ónus da prova da sua culpabilidade sobre o Estado.

Só podendo haver uma condenação com prova de culpa, surge, como corolário dos princípios
da presunção de inocência e da culpa, o princípio in dubio pro reo10. Como o arguido se
presume inocente até ao trânsito em julgado de uma decisão condenatória, qualquer dúvida
sobre os factos que alegadamente provem a responsabilidade criminal do arguido só pode
servir para reforçar esse seu estatuto de inocente, e não uma eventual condenação. Isto é, se
existirem dúvidas, estas não poderão prejudicar o arguido, apenas beneficiá-lo. Assim, não se
trata de um princípio de obtenção, produção, apreciação ou valoração da prova, mas sim de
um princípio que intervém somente no caso de persistirem dúvidas sobre a prova depois de
terminada a sua produção. A prova não tem, portanto, de ser valorada de forma favorável ao

8
AUGUSTO SILVA DIAS E VÂNIA COSTA RAMOS, O Direito à Não Auto-Inculpação (…), p. 23.
9
FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, Aulas de Direito Processual Penal Especial,
Lisboa, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 23.04.2012.
10
“Na dúvida, a favor do réu”.
arguido, devendo ser produzida independentemente deste princípio, de acordo com o
princípio da investigação ou da busca da verdade material11.

2. Regime da leitura de declarações em audiência de julgamento

Discute-se neste contexto a questão da admissibilidade de prestação de depoimento acerca do


conteúdo das chamadas “conversas informais” entre arguido ou suspeito e OPC, pois está em
causa prova que não é conhecida em primeira mão pelo julgador.

Relativamente às declarações do arguido, existem exceções ao disposto no artigo 355.º.


Assim, caso aquele opte por prestar declarações, a reprodução ou leitura destas em audiência
estará sujeita ao regime limitativo dos artigos 356.º e 357.º. A este propósito, diz DAMIÃO
DA CUNHA que “deve ser exigida a máxima clareza e precisão na determinação do âmbito
das leituras permitidas em audiência de julgamento. Estamos (…) perante uma questão que
assume um relevo marcante na determinação da estrutura acusatória”12.

Como se salienta no Acórdão do TC n.º 1052/96, de 11.07.199613, “a leitura dos autos e


declarações autorizada pelo artigo 356.º representa uma emanação da oralidade e publicidade
da audiência, traduzindo-se (…), em excepção ao princípio da imediação da prova, (…)
justificada pela impossibilidade ou grande dificuldade da sua produção directa ou por outras
razões pertinentes”14.

É nos artigos 356.º e 357.º que surge a única restrição imposta aos OPC quanto ao conteúdo
dos seus depoimentos: “Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja
leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem
participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo
daquelas” (artigo 356.º, n.º 7, aplicável às declarações do arguido, por remissão do artigo
357.º, n.º 3).

Afirma CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA que esta norma determina como exigências de
“eficácia probatória (mesmo que relativa)”15 das declarações do arguido a oralidade e o
respeito pelos requisitos legalmente impostos.

11
FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, Aulas de Direito Processual Penal, Lisboa,
Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 11.11.2010.
12
JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, “O regime processual de leitura de declarações (…)”, p. 404.
13
Ac. do TC n.º 1052/96, de 11.07.1996, Processo n.º 321/96, DR, II Série, n.º 297, de 24.12.1996, pp.
17720 e ss..
14
Ac. do TC n.º 1052/96, de 11.07.1996, p. 17723.
15
CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA, “Depoimento indirecto e arguido”, p. 177.
A propósito da ratio desta mesma disposição, defendem DAMIÃO DA CUNHA16 e os
MAGISTRADOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO JUDICIAL DO PORTO 17
tratar-se de prevenir a fraude à lei que sucederia se o tribunal, impedido de se debruçar sobre
declarações de leitura proibida, fizesse valer em audiência declarações cuja leitura não era
permitida. Sobre a mesma norma, diz VINÍCIO RIBEIRO que se esta não estivesse
consagrada se poderia “deixar entrar pela janela o que se quis evitar que entrasse pela
porta”18, expressão coloquial que também surge recorrentemente na jurisprudência19.

Analisando a letra da lei, verifica-se, em primeira linha, que a disposição se aplicará a casos
em que tenham sido prestadas declarações em sentido formal (declarações do arguido
enquanto meio de prova, prestadas segundo o disposto nos artigos 140.º e ss. e 343.º e ss., e
portanto reduzidas a escrito), pois só declarações que estejam reduzidas a escrito poderão
estar sujeitas a uma proibição de leitura. Assim, à partida, não se encontram incluídas no
âmbito desta proibição as ditas “conversas informais” que não sejam reduzidas a escrito.

Neste sentido, afirma FREDERICO COSTA PINTO: “as proibições (…) têm duas limitações
(…): apenas se aplicam literalmente à prestação de declarações que ficam registadas em auto
cuja leitura não é depois permitida em audiência (…) e, em si mesma, não abrange o
conhecimento obtido em conversas ocasionais entre intervenientes processuais fora do âmbito
de uma inquirição formal”20.

Porém, é discutida esta matéria da aplicação às “conversas informais” da proibição prevista


no artigo 356.º, n.º 7, aplicável às declarações do arguido, por remissão do artigo 357.º, n.º 3.

Entendem, nomeadamente, os MAGISTRADOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO


DISTRITO JUDICIAL DO PORTO21 que esta proibição abrange também as “conversas
informais”. No mesmo sentido, defende PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE que “se as
declarações dos suspeitos tivessem sido registadas por escrito elas não poderiam ser lidas na

16
JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, “O regime processual de leitura de declarações (…)”, p. 423.
17
MAGISTRADOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO JUDICIAL DO PORTO, Código de
Processo Penal,
Comentários e notas práticas, p. 894.
18
VINÍCIO A. P. RIBEIRO, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, p. 981.
19
Refiram-se, nomeadamente, os Acórdãos do STJ, de 20.05.1992, in BMJ, n.º 417, p. 611; do TRC, de
30.11.2005; de 07.04.2010; de 29.05.2013; do TRG, de 04.06.2007; de 29.03.2011, in CJ, Ano XXXVI, Tomo
II, pp. 304 e ss.; de 11.04.2011; do TRP, de 09.11.2011.
20
FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, “Depoimento indirecto, legalidade da prova e
direito de defesa”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Volume III, Coimbra
Editora, Coimbra, 2010, p. 1048.
21
MAGISTRADOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO JUDICIAL DO PORTO, Código de
Processo Penal,
Comentários e notas práticas, p. 899.
audiência em face do art. 357º, nº 1, salvo solicitação do arguido, e, portanto, não tendo
sequer sido reduzidas a escrito, não passam de uma “conversa informal” (…) cujo conteúdo
não pode ser reproduzido em audiência”22.

Também alguma jurisprudência se debruça sobre a letra deste artigo. Veja-se o que se diz no
Acórdão do STJ, de 27.05.1998: “o art.º 356, do CPP, não proíbe que um agente de PJ preste
depoimento em audiência de julgamento só porque interveio na investigação. A mesma
norma proíbe, sim, esse depoimento quando tal agente haja recebido declarações cuja leitura
não for permitida e, ainda nesse caso, só não pode ser inquirido sobre o conteúdo dessas
declarações”23.

Ainda em relação ao limitado âmbito de aplicação desta norma, concorda-se com MAIA
GONÇALVES quando rejeita a interpretação daquela no sentido de que os OPC não podem
ser testemunhas, defendendo que este preceito “proíbe apenas a reprodução daquelas
declarações cuja leitura não é permitida, como aí claramente se expressa e resulta do
pensamento legislativo”24. Ou seja, excluído o disposto no artigo 356.º, n.º 7, e não existindo
qualquer imposição de segredo profissional, os OPC poderão sempre, em abstrato, depor em
audiência de julgamento. Com efeito,

como salienta GERMANO MARQUES DA SILVA, “não sofrem de qualquer incapacidade


nem impedimento”25.

DAMIÃO DA CUNHA entende que os OPC se aproximam mais da figura do sujeito


processual do que da figura da testemunha, apoiando-se neste ponto para justificar a
proibição prevista no artigo 356.º, n.º 7. Defende este autor que “no fundo, o CPP quis criar
um tema proibido de prova (exactamente o conteúdo de declarações prestadas em fase
processual anterior e não susceptíveis de leitura). Fora este tema proibido de prova, os órgãos
de polícia criminal podem prestar testemunho”26.

Em suma, diz JOSÉ ANTÓNIO BARREIROS, “o artigo 356.º, n.º 7, do CPP (…) o que
proíbe é a leitura indirecta em audiência, ou seja, que o OPC (…) ao prestar depoimento se
não pode reportar (…) ao que consta de autos documentando prova testemunhal que o

22
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, p. 363.
23
Acórdão do STJ, de 27.05.1998, www.stj.pt/jurisprudencia/sumarios, Criminal – Ano de 1998, p.
165.
24
MANUEL LOPES MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, p. 808.
25
GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, volume II, p. 231.
26
JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, “O regime processual de leitura de declarações (…)”, p. 423.
próprio recolheu ou em cuja recolha participou, ou seja, não pode fazer-se eco, pela sua voz,
em depoimento, daquilo que (…) escreveu como tendo sido dito por outrem”27.

Para finalizar, chame-se a atenção para o facto de a Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, ter
vindo alterar o artigo 357.º, pois, ainda que estas alterações relativas à possibilidade de usar
declarações anteriores do arguido como fonte autónoma de prova (quando respeitados os
requisitos impostos pelos artigos indicados) não se refiram a declarações prestadas perante
OPC, mas sim autoridades judiciárias, têm relevância enquanto argumento sistemático no
sentido do combate à informalidade das declarações do arguido.

Desde logo, passou a incluir-se no seu âmbito de aplicação a reprodução de declarações do


arguido, alteração que se refletiu na epígrafe do artigo e no proémio do n.º 1. Procedeu-se
também à alteração da letra da alínea b) do n.º 1, relativo às situações em que é permitida a
reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo. Lê-se
agora na al. b): “quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de
defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea
b) do n.º 4 do artigo 141.º”, que, por sua vez, dispõe que o juiz de instrução que conduza o
primeiro interrogatório judicial de arguido detido terá de informar devidamente este “de que
não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no
processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de
julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova”. Aditou-se ainda o n.º 2, onde se lê
o seguinte: “As declarações anteriormente prestadas pelo arguido reproduzidas ou lidas em
audiência não valem como confissão nos termos e para os efeitos do artigo 344.º”. Como
consequência, o anterior n.º 2 passou a ocupar o lugar de n.º 3.

Como nota FREDERICO COSTA PINTO, as referidas alterações acarretam alguns riscos,
pois não se respeitam integralmente alguns princípios centrais do nosso Processo Penal de
estrutura acusatória, tais como a imediação, a oralidade e o contraditório. O facto de o uso de
declarações anteriores do arguido em audiência de julgamento ter perdido o seu carácter
excecional pode ter o efeito de constranger o arguido, que poderá limitar a sua colaboração na
fase de inquérito28.

27
JOSÉ ANTÓNIO BARREIROS, “Depoimento policial em audiência penal. Âmbito e limites”, in
Polícia e Justiça, n.º 4, 2004, p. 22.
28
FREDERICO COSTA PINTO, “Razão e finalidade na revisão de 2013 do Código de processo
penal), in Themis, Ano 13, nº 24/25, 2013, pp. 194-199.
3. Regime do depoimento indireto

Discute-se a extensão do âmbito da proibição prevista no artigo 356.º, n.º 7 (aplicável às


declarações do arguido, por remissão do artigo 357.º, n.º 3), às “conversas informais”, pois o
nosso CPP não regula diretamente a questão do tratamento a dar aos depoimentos que
recaiam sobre o conteúdo destas. Os relatos feitos por OPC acerca do que se ouviu dizer ao
arguido ou suspeito, aproximam-se do conceito de depoimento indireto, em que uma
testemunha depõe sobre algo com que não contactou diretamente, algo que ouviu dizer a uma
outra pessoa, a chamada fonte. Assim, deve ter-se em conta o regime do artigo 129.º, que dá
diferentes tratamentos às várias situações de depoimentos indiretos possíveis.

Note-se, porém, que pode dar-se o caso de uma situação cair no âmbito de aplicação dos
artigos 356.º e 357.º e 129.º em simultâneo. Neste caso, a este regime, geral, sobrepõe-se
aquele, especial, e que, portanto, “acaba por delimitar negativamente o âmbito do art. 129º do
CPP”29.

Desde logo, os casos sobre que dispõe o n.º 3 do artigo 129.º são alvo de uma proibição
absoluta de valoração30: o depoimento é prestado, mas, em função de a testemunha recusar ou
não estar em condições de indicar a fonte, o seu conteúdo não poderá ser valorado pelo
Tribunal.

Diferentemente, nas situações de impossibilidade fáctica previstas na parte final do n.º 1 (“se
a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica
superveniente ou impossibilidade de serem encontradas”), existe admissibilidade automática
do depoimento31. Estas últimas configuram exceções ao previsto na primeira parte do n.º 1, a
que se pode chamar regra de permissão condicionada ou de proibição relativa de valoração 32:
“se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar
estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como
meio de prova”. Ou seja, em princípio, os depoimentos indiretos não podem ser tidos como
meio de prova, mas sê-lo-ão caso se chame a fonte a depor.

29
FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, “Depoimento indirecto, legalidade da prova e
direito de defesa”, p. 1048.
30
FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, Aulas de Direito Processual Penal Especial,
Lisboa, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 16.04.2012.
31
FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, Aulas de Direito Processual Penal Especial,
Lisboa, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 16.04.2012.
32
FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, Aulas de Direito Processual Penal Especial,
Lisboa, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 16.04.2012.
Não é unânime a doutrina em relação à condição que é necessário verificar-se para
desbloquear a referida proibição de valoração do depoimento indireto, havendo uma
separação entre uma interpretação permissiva (quem considera que aquela condição se
resume à convocação da fonte) e uma interpretação restritiva (quem exige que a fonte
compareça em audiência, que preste depoimento ou até que o conteúdo deste coincida com o
do depoimento indireto da testemunha).

A interpretação que se prefere é a permissiva, com apoio na letra da lei, que por si só parece
impor apenas que a pessoa seja chamada a depor. Com efeito, como salienta FREDERICO
COSTA PINTO, “a letra da lei não exige nem a efectividade do depoimento da fonte, nem a
confirmação da conversa mantida com a testemunhade-ouvir-dizer, nem tão pouco a
coincidência de conteúdo na descrição do facto probando” 33. Assim, apenas será necessário
chamar a fonte e esta comparecer e mostrar-se disponível para depor acerca dos factos em
causa. Desta forma, o depoimento indireto cairá na margem de livre apreciação do julgador e
ficará assegurado o respeito pelos princípios da imediação e do contraditório.

Entende FREDERICO COSTA PINTO que com a defesa de uma interpretação mais restritiva
“acaba por se reconhecer à fonte um poder de controlar, com o seu depoimento ou com a sua
recusa, a valoração da prova disponível”34.

Resumindo, o legislador parece ter querido deixar a matéria sujeita à apreciação do Tribunal
no caso concreto, e não “eleger uma solução rígida e abstracta que poderia aumentar
segurança jurídica mas estaria a afastar-se da verdade material”35.

A defesa de uma ou de outra tese tem consequências práticas. Pode acontecer, por exemplo,
que a pessoa chamada a depor invoque um regime de segredo, uma causa de recusa a depor
ou o direito ao silêncio (caso se aceite a aplicação do regime do depoimento indireto às
situações em que a fonte é um arguido). Para quem apenas exige o chamamento a juízo da
fonte, tal não afetará a valoração do depoimento indireto. Porém, para quem exige a
confirmação do conteúdo deste, como é o caso de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE,
estes casos constituirão um entrave à valoração do depoimento em causa, “sob pena de este se

33
FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, “Depoimento indirecto, legalidade da prova e
direito de defesa”, p. 1059.
34
FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, “Depoimento indirecto, legalidade da prova e
direito de defesa”, p. 1061.
35
FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, “Depoimento indirecto, legalidade da prova e
direito de defesa”, p. 1059.
transformar num instrumento de fraude à lei, in casu, dos regimes de segredo ou recusa de
depoimento testemunhal” 36.

Outro problema que se coloca e que divide a nossa doutrina é o do alargamento das chamadas
condições de admissibilidade automática de valoração do depoimento indireto que
desbloqueiam a proibição relativa além dos casos de impossibilidade fáctica de inquirição da
fonte previstas na parte final do n.º 1 do artigo 129.º.

Concorda-se com PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE e FREDERICO COSTA PINTO


quando consideram que se deve rejeitar a hipótese de aplicação analógica desta norma, pois
ela contém uma proibição de valoração da prova que não deve ser alargada além do “círculo
normativo de casos acolhidos pelo legislador”37.

Em relação à hipótese de interpretação extensiva, as posições destes autores diferem. Por um


lado, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, invocando a excecionalidade das
circunstâncias de impossibilidade de inquirição da testemunha enunciadas pela norma em
análise relativamente ao princípio da imediação, apenas aceita a interpretação extensiva em
termos muito limitados (“como o estado de coma” 38). Entende-se, diferentemente, que existe
um leque mais alargado de casos que podem ser considerados semelhantes aos legalmente
elencados e que, portanto, podem igualmente justificar o desbloqueio da proibição contida no
n.º 1 do artigo 129.º. Refiram-se os casos em que FREDERICO COSTA PINTO abre a
hipótese de interpretação extensiva atualista: situações em que o arguido se encontre “com
amnésia total, com um problema físico absolutamente incapacitante ou numa situação
traumática que clinicamente desaconselhe a prestação de depoimento (v. g. casos de vítimas
menores de crimes sexuais em que não tenha sido recolhido depoimento para memória futura
ou que não possam aplicar as medidas especiais de protecção de vítima especialmente
vulnerável)”39.

Diz o n.º 1 do artigo 129.º que “se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas
determinadas, o juiz pode chamar estas a depor”. Pode acontecer que estas pessoas sejam
arguidas, colocando-se nesses casos a questão da aplicação do regime do depoimento indireto
a situações em que a fonte é o arguido, estando em causa se a valoração desses depoimentos
não contrariará o seu direito ao silêncio. Assim, como salienta o STJ, “falta demonstrar que o
36
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, p. 360.
37
FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, “Depoimento indirecto, legalidade da prova e
direito de defesa”, p. 1068.
38
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, p. 360.
39
FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, “Depoimento indirecto, legalidade da prova e
direito de defesa”, p. 1086.
artigo 129.º do Código de Processo Penal proíbe depoimento por ouvir dizer quando quem
diz é o arguido”40, sendo esta problemática discutida pela nossa jurisprudência. Porém, a
corrente doutrinária vai, na sua maioria, no sentido de apenas aceitar a aplicação deste regime
no âmbito da prova testemunhal.

A inaplicabilidade do regime do depoimento indireto às situações em que a fonte é o arguido


é defendida por grande parte da doutrina, nomeadamente CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA 41
e VINÍCIO RIBEIRO42.

É inequívoco que os estatutos de arguido e testemunha são distintos. Saliente-se,


nomeadamente, que aquele tem direito ao silêncio, não presta juramento (artigo 140.º, n.º 3) e
não tem uma postura imparcial, e também que no artigo 140.º, n.º 2, é feita uma remissão
para disposições do regime da prova testemunhal, mas não para o artigo 129.º. Note-se ainda
que os arguidos estão proibidos de depor como testemunhas, salvo em casos especiais, nos
termos do artigo 133.º, n.º 1, al. a).

DAMIÃO DA CUNHA apoia-se no direito ao silêncio e no princípio nemo tenetur se ipsum


accusare e afirma que “não pode verificar-se, na mesma pessoa, uma confusão de papéis
processuais (arguido e testemunha)”43, pois tal conduz “à solução, muito próxima de uma
visão inquisitória, de o arguido testemunhar (indirectamente) contra si próprio” 44. Explica
ainda este autor que a caracterização como um determinado sujeito processual “tem duas
funções: por um lado, distingue esse sujeito processual dos outros sujeitos processuais; mas,
por outro lado, distingue a sua participação processual da dos restantes participantes
processuais (em especial, das testemunhas)”45.

Assim, DAMIÃO DA CUNHA considera que os sujeitos processuais não podem prestar
depoimentos indiretos e que não podem ser prestados depoimentos indiretos sobre o que se
oiça dizer a sujeitos processuais. Ou seja, “a testemunha-de-ouvir-dizer é, no fundo e em
princípio, uma testemunha que ouviu dizer a outra testemunha”46.

Conclui este autor a exposição da sua posição radical defendendo que “irrazoável e ilógico é
(…) alargar as margens de permissão de o Tribunal aceder ao conteúdo de declarações

40
Acórdão do STJ, de 29.03.1995, in BMJ, n.º 445, p. 297.
41
CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA, “Depoimento indirecto e arguido”, p. 176.
42
VINÍCIO A. P. RIBEIRO, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, p. 982.
43
JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, “O regime processual de leitura de declarações (…)”, p. 430.
44
JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, “O regime processual de leitura de declarações (…)”, p. 430.
45
JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, “O regime processual de leitura de declarações (…)”, p. 435.
46
JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, “O regime processual de leitura de declarações (…)”, p. 438.
prestadas fora da audiência de julgamento e alargar, com isso, as situações em que são postos
em questão princípios fundamentais da estrutura da audiência de julgamento”47.

No mesmo sentido, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE: “sendo o artigo 129.º uma norma
excepcional, ela não pode, em prejuízo do princípio constitucional da imediação, ser aplicada
analogicamente ao depoimento de uma testemunha sobre o que ouviu dizer ao arguido, ao
assistente e às partes civis (…). (…) acrescem, no caso de depoimento de ouvir dizer a
arguido, as limitações decorrentes do direito constitucional do arguido ao silêncio,
consagrado entre as garantias de defesa do artigo 32.º, n.º 1, da CRP”48.

Oferece apoio a esta linha de pensamento FREDERICO COSTA PINTO, defendendo que
“um conhecimento directo de um facto probando de uma parte interessada no processo (…) é
um meio legal de prova, autónomo em relação à prova testemunhal, e não pode ser
convertido numa modalidade atípica desta por via do depoimento indirecto de uma
testemunha que o refere”49.

Seguindo o mesmo entendimento, diz DÁ MESQUITA que “o estatuto do arguido no


processo e a estrutura acusatória excluem a possibilidade de se aplicar o regime do
depoimento indirecto aos casos em que o arguido constitui a fonte do ouvir dizer, já que não
se admite que o tribunal chame a depor o arguido único titular do poder de decisão sobre essa
matéria, afigurando-se abusiva qualquer sugestão ou interpelação judicial”50.

Como bem resume SANTOS CABRAL, “por conseguinte, (…) revela-se inaplicável, quer
sob o ponto de vista jurídico quer sob o ponto de vista operativo, a admissibilidade de o
arguido funcionar como “testemunha-fonte” (…). É, assim, evidente a convergência de
conclusão sobre a inaplicabilidade do artigo 129º (…) quer se arranque do pressuposto do
direito ao silêncio, quer se apele ao estatuto do arguido e à interpretação literal do preceito”51.

Por fim, destaquem-se dois relevantes acórdãos do TC que se debruçaram sobre a


(in)constitucionalidade do regime do depoimento indireto.

Em primeiro lugar, o Acórdão do TC n.º 213/94, de 02.03.1994 52, na sequência do recurso


para o TC do Acórdão do STJ, de 07.10.1992, por parte de um dos arguidos. Foi objeto do
47
JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, “O regime processual de leitura de declarações (…)”, p. 440.
48
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, p. 361.
49
FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, “Depoimento indirecto, legalidade da prova e
direito de defesa”, p. 1082.
50
PAULO DÁ MESQUITA, A prova do crime e o que se disse antes do julgamento, p. 586.
51
ANTÓNIO DA SILVA HENRIQUES GASPAR et al, Código de Processo Penal Comentado, p.
490; Acórdão do STJ, de 27.06.2012.
52
Acórdão do TC n.º 213/94, de 02.03.1994, Processo n.º 719/92, DR, II Série, n.º 194, de 23.08.1994,
pp. 8641 e ss..
Acórdão do TC n.º 213/94, de 02.03.1994, a inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 129.º
do CPP, questão levantada pela alegação de que a segunda parte desta norma violaria o artigo
32.º, n.ºs 1, 3 e 5, da CRP, por ofender os princípios da imediação e do contraditório, e as
garantias de defesa em geral do arguido, e ser incompatível com um processo de estrutura
acusatória. Sob análise estava a interpretação da norma no sentido de que “admite que possa
servir como meio de prova o depoimento que resultar do que se ouviu dizer a pessoa
determinada quando a inquirição desta pessoa não for possível por impossibilidade de ser
encontrada, mesmo que esta pessoa seja um co-arguido e o depoente seja um agente de
polícia judiciária que com ela contactou quando, na situação de detida, aguardava o primeiro
interrogatório judicial”53.

O TC pronunciou-se a favor do recurso, chegando à conclusão de que o n.º 1 do artigo 129.º,


no sentido em que foi interpretado e aplicado, estando em causa uma detenção que veio a ser
julgada ilegal e o uso de meios violentos no primeiro interrogatório judicial, viola as
garantias de defesa consagradas no n.º 1 do artigo

32.º da CRP54.

Desde logo, o TC afasta a violação do n.º 3 do artigo 32.º da CRP, pois considera que a
exceção consagrada na parte final do n.º 1 do artigo 129.º “não retira ao arguido o direito de
escolher o seu defensor oficioso e a ser por ele assistido em todos os actos do processo”55.

Acerca da estrutura acusatória e dos princípios da imediação e do contraditório, entende o TC


que não existe violação pela norma em abstrato. Explica o Tribunal que “a admissão e
valoração do depoimento indirecto, no caso de impossibilidade de localização da pessoa
determinada a quem imputa a afirmação reproduzida” se trata de “uma solução excepcional,
de evidente base racional, que só por si, e nos contados casos em que ocorre, não pode afectar
intolerável ou desproporcionadamente os direitos do arguido”56.

A propósito do n.º 1 do artigo 32.º da CRP, entende o TC que existe proporcionalidade e


“uma adequada ponderação dos interesses do arguido em poder confrontar os depoimentos
das testemunhas de acusação, os da repressão penal, prosseguidos pelo acusador público, e,
por último, os do tribunal, preocupado com a descoberta da verdade através de um processo
regular e justo”57.

53
Acórdão do TC n.º 213/94, de 02.03.1994, p. 8643.
54
Acórdão do TC n.º 213/94, de 02.03.1994, p. 8642.
55
Acórdão do TC n.º 213/94, de 02.03.1994, p. 8646.
56
Acórdão do TC n.º 213/94, de 02.03.1994, p. 8646.
57
Acórdão do TC n.º 213/94, de 02.03.1994, p. 8646.
O TC considerou a interpretação do STJ, no Acórdão do STJ, de 07.10.1992, contrária ao
disposto no n.º 1 do artigo 32.º da CRP, pois a arguida “só podia ser interrogada pela primeira
vez pelo juiz de instrução, não podendo os órgãos de polícia criminal tomar declarações dela,
visto que tal só poderia suceder nos interrogatórios subsequentes e mediante delegação do
Ministério Público ou daquele juiz (artigo 144.º, n.º 2, do CPP), sendo proibidos quaisquer
outros interrogatórios, ainda que designados como «conversas»”58. O TC apoiou-se no
argumento de que “não faria sentido que, pela via do artigo 129.º, n.º 1, se tolerasse o que
pelo artigo 356.º, n.º 7, explicitamente se proibiu”59.

Assim, o TC concluiu dando provimento ao recurso e “julgando inconstitucional a norma


(…) enquanto interpretada pelo acórdão recorrido no sentido de admitir que possa servir
como meio de prova o depoimento que resultar do que se ouviu dizer a pessoa determinada
quando a inquirição desta pessoa não for possível por impossibilidade de ser encontrada,
mesmo que esta pessoa seja um co-arguido e o depoente seja um agente de polícia judiciária
que com ela contactou quando, na situação de detida, aguardava o primeiro interrogatório
judicial”60.

Em segundo lugar, o Acórdão do TC n.º 440/99, de 08.07.199961, que apreciou a


(in)constitucionalidade do artigo 129.º, n.º 1, conjugado com o artigo 128.º, n.º 1, interpretado
no sentido de o tribunal poder livremente valorar como meio de prova e apreciar “o
depoimento de uma testemunha que disse ter ouvido do próprio arguido os factos que relata,
quando este, chamado a prestar declarações, o não quis fazer, no exercício do seu direito ao
silêncio”62.

No processo principal, testemunhas da acusação, que tinham participado na atividade


delituosa, indicaram arguidos como fonte dos seus depoimentos indiretos. Um dos arguidos,
chamado a depor, recusou-se a fazê-lo, exercendo legitimamente o seu direito ao silêncio. O
TC considerou que, atendendo às circunstâncias deste caso em concreto (tais testemunhas da
acusação puderam ser contraditadas, nenhum facto foi dado como provado apenas com base
nestes depoimentos indiretos, que foram “apreciados pelo tribunal com a prudência que a
impossibilidade de ouvir a fonte impõe e de acordo com as regras da lógica e da

58
Acórdão do TC n.º 213/94, de 02.03.1994, pp. 8646-8647.
59
Acórdão do TC n.º 213/94, de 02.03.1994, p. 8647.
60
Acórdão do TC n.º 213/94, de 02.03.1994, p. 8647.
61
Acórdão do TC n.º 440/99, de 08.07.1999, Processo n.º 268/99, DR, II Série, n.º 261, de 09.11.1999,
pp. 16874 e ss..
62
Acórdão do TC n.º 440/99, de 08.07.1999, p. 16877.
experiência”63), os devem depoimentos indiretos em causa ser valorados como meios de
prova.

Assim, o TC concluiu pela não inconstitucionalidade da norma em apreço, na dimensão em


que foi concretamente aplicada neste caso, por não haver “um encurtamento inadmissível do
direito de defesa do arguido”, isto é, por este não ser atingido “de forma intolerável,
desproporcionada ou manifestamente opressiva”64.

Um dos argumentos do TC foi o de que não existe qualquer possibilidade de interrogar um


arguido que se recusa a depor, não se descortinando uma “diferença substancial entre a
situação do arguido que não pode ser encontrado e a daquele que, chamado à audiência,
invoca o seu direito ao silêncio para não depor”65.

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE critica aqui o TC, considerando que é feita uma
analogia “inadmissível, em face do carácter excepcional do artigo 129.º, n.os 1 e 2”66. Explica
este autor que à aplicação analógica que o TC faz está subjacente uma equiparação entre
inquirição de testemunhas e interrogatório do arguido67.

Outros dos argumentos do TC foi o de que a não valoração de depoimentos de testemunhas


que “tiveram participação importante na actividade delituosa do grupo” 68 poderia ser
equivalente a descurar em parte a descoberta da verdade69. A este propósito, diz PINTO DE
ALBUQUERQUE que o conteúdo dos depoimentos indiretos ter de ser limitado, no sentido
de as fontes apenas poderem relatar o que “ouviram dizer ao arguido durante a prática dos
factos criminosos a que assistiram (…), mas elas não podem depor sobre conversas tidas
com o arguido depois da prática dos factos criminosos” 70. Este autor considera, portanto,
“inconstitucional o artigo 129.º, n.º 1, do CPP, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, se
interpretado no sentido de permitir o depoimento indirecto de testemunha sobre o que ouviu
dizer ao arguido depois da ocorrência do crime, quer ele tenha estado presente no julgamento
e tenha feito uso do direito ao silêncio, quer ele não tenha estado presente no julgamento” 71.

63
Acórdão do TC n.º 440/99, de 08.07.1999, p. 16878.
64
Acórdão do TC n.º 440/99, de 08.07.1999, p. 16878.
65
Acórdão do TC n.º 440/99, de 08.07.1999, p. 16878.
66
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, p. 361.
67
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, p. 361.
68
Acórdão do TC n.º 440/99, de 08.07.1999, p. 16878.
69
Acórdão do TC n.º 440/99, de 08.07.1999, p. 16878.
70
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, p. 362.
71
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, p. 362.
Poder-se-á, assim, concluir, com SANTOS CABRAL, que “na disciplina legal do artigo 129º
é suficiente a tentativa de realização do contraditório e não é de exigir a efectiva consumação
para que o depoimento indirecto tenha potencialidade para ser valorado”72.

Alvo de grande atenção foi o mediático “caso Joana”, sobre uma menina de oito anos que
desapareceu no concelho de Portimão no dia 12 de Setembro de 2004. No

Acórdão do STJ, de 20.04.2006, aprovado com três votos a favor e dois contra, reduziram-
se as penas aplicadas à mãe e ao tio da criança, que foram condenados em co-autoria pelos
crimes de homicídio qualificado e ocultação de cadáver.

Foram prestados depoimentos indiretos cuja fonte eram os arguidos e o STJ considerou,
apoiando-se no Acórdão do TC n.º 440/99, de 08.07.1999, que a valoração dos depoimentos
feita pelo Tribunal “a quo” respeitou o princípio da livre apreciação da prova e não excedeu a
prudência, pois não terá dado como provados factos apenas com base no conteúdo destes
depoimentos, antes se tendo apoiado neles em matéria já comprovadas por outros meios de
prova. Concluiu, assim, o STJ que a referida valoração não ofendeu o disposto no art. 129.º,
nem os direitos dos arguidos, nomeadamente o direito de defesa consagrado no art. 32.º, n.ºs
1 e 5 da CRP.

II. Admissibilidade ou inadmissibilidade de depoimento de OPC

1. Depoimento sobre factos de que tenham conhecimento direto

O Acórdão do STJ, de 13.05.199273, revelou-se importante, ao estabelecer que quanto a


factos que tenham conhecido no decurso do processo por meios diferentes das declarações do
arguido, ainda que através de “conversas informais”, os OPC poderão depor sobre aquilo de
que tenham conhecimento direto.

Neste caso, o arguido exerceu o direito que lhe é conferido e optou por não prestar
declarações na audiência de julgamento, tendo a testemunha OPC sido informada de que não
poderia depor sobre as declarações daquele, de acordo com o disposto no artigo 356.º, n.º 7.

Vem o Tribunal entender que não existe, porém, qualquer impedimento a que OPC
deponham sobre factos de que possuam conhecimento direto obtido por meios diferentes das
declarações que recebam do arguido no decurso do processo.

72
ANTÓNIO DA SILVA HENRIQUES GASPAR et al, Código de Processo Penal Comentado, p.
487; Acórdão do STJ, de 27.06.2012.
73
Acórdão do STJ, de 13.05.1992, in BMJ, n.º 417, pp. 592 e ss..
Argumenta o STJ que, desde que o depoimento dos OPC não verse sobre o conteúdo de
declarações cuja leitura não é permitida, o simples facto de haver no processo tais
declarações não pode implicar por si só que os OPC não possam depor acerca de factos de
que tenham obtido conhecimento direto na prossecução da atividade investigatória de que são
incumbidos, pois tal seria contraditório com o princípio da investigação ou da verdade
material que rege o nosso Processo Penal.

Assim, considerou Tribunal que “as respostas a perguntas como a semelhança de processos
de actuação criminosa no caso dos autos e noutros processos em que o arguido já se encontra
identificado (…) como autor de idênticas infracções, a adequação dos instrumentos
apreendidos para a prática do crime, o motivo da infracção colhido no modo de vida do
agente, podem manifestamente resultar do conhecimento directo obtido através da actividade
de investigação, sem qualquer relação com as declarações do arguido”74.

Passada uma semana, o mesmo Tribunal proferiu nova sentença adotando a mesma posição
(Acórdão do STJ, de 20.05.199275).

Neste aresto, salienta-se que nada impossibilita, à partida, que a testemunha em questão,
agente da PJ, preste depoimento, pois não se pode concluir se irá ou não versar sobre
declarações de leitura proibida antes de ter sido efetivamente prestado; assim, deve tão-só
atender-se à restrição a nível do conteúdo imposta pelo artigo 356.º, n.º 7.

Relativamente a este n.º 7 do artigo 356.º, o Tribunal sublinha a importância da interpretação


“dentro dos seus próprios limites, o primeiro dos quais é o de as declarações (…) serem as
escritas e não quaisquer outras, com conteúdo diverso, que ele arguido haja prestado durante
a investigação. A lei fala em leitura de declarações e com isso, iniludivelmente, só se referiu
às que foram reduzidas a escrito”76.

O STJ defende ainda que, no contexto do nosso Processo Penal, em que é necessário
encontrar um equilíbrio entre os interesses “do arguido em não ser meio de prova e os da
justiça em que se alcance uma verdade material e não meramente formal” 77, o facto de o
arguido se recusar a prestar declarações não pode inutilizar todo o conhecimento dos factos a
que a investigação chegou. Assim, “os testemunhos proibidos serão aqueles – e só aqueles –

74
Acórdão do STJ, de 13.05.1992, p. 597.
75
Acórdão do STJ, de 20.05.1992, pp. 606 e ss..
76
Acórdão do STJ, de 20.05.1992, p. 611.
77
Acórdão do STJ, de 20.05.1992, p. 611.
de que o agente policial tomou conhecimento através das declarações que recebeu do arguido
e não os factos de que já tinha conhecimento anterior, durante a investigação”78.

Também nesta mesma linha segue o Acórdão do STJ, de 07.10.1992. Estava em causa o
depoimento de agentes da PJ acerca de conversas mantidas na esquadra, enquanto se
aguardava o primeiro interrogatório judicial, com uma das arguida, que se veio a encontrar
em paradeiro desconhecido e que foi declarada contumaz. Esta terá dito a um agente da PJ ter
conhecimento do transporte de uma mala que conteria heroína para uma determinada
residência, tendo-se aquele então dirigido ao local e procedido ao exame do conteúdo da
referida mala, e, na sequência desta busca, tendo procedido à detenção de outros arguidos.

O Tribunal afasta a proibição de prestar depoimento ao abrigo do artigo 356.º, n.º 7, em


primeiro lugar, por o agente da PJ não ter tomado declarações no sentido em que elas estão
abrangidas neste artigo, enquanto meio de prova sujeito às formalidades.

Certo é que a investigação criminal terá estado em dependência da “conversa informal” de


que terão resultado informações que se revelaram determinantes. Mas vem o STJ argumentar,
em segundo lugar, que, tendo o depoimento do agente da PJ incidido sobre a localização da
mala e respetivo conteúdo, recai sobre factos de que a testemunha obteve conhecimento
direto no âmbito da atividade investigatória de que foi incumbido. Assim, não aceitar tal
depoimento iria contra o princípio da investigação ou da verdade material.

Resumindo a linha argumentativa destes três últimos acórdãos e respetivas conclusões, os


OPC poderão depor sobre factos de que possuam conhecimento direto obtido por meios
diferentes das declarações que recebam do arguido no decurso do processo, ainda que
também as tenham recebido, e o n.º 7 do artigo 356.º apenas proibirá que aqueles deponham
acerca de declarações cuja leitura seja proibida, para tal sendo necessário que estejam
exaradas em auto, não se aplicando às chamadas “conversas informais”.

O Acórdão do STJ, de 29.03.199579, veio acrescentar um novo ponto à discussão,


defendendo que, ainda que a proibição imposta pelo artigo 356.º, n.º 7, não se aplique por
regra às “conversas informais”, tal poderá acontecer quando se prove que o OPC escolheu
deliberadamente esse meio de comunicação para evitar a proibição de leitura das declarações
do arguido em audiência de julgamento. Caso contrário, não sendo feita essa prova, “o
arguido, no caso do seu legítimo direito de recusar prestar declarações, em termos formais,
isto é, exaradas em auto com observância das prescrições impostas pela lei de processo, pode
78
Acórdão do STJ, de 20.05.1992, p. 611.
79
Acórdão do STJ, de 29.03.1995, pp. 279 e ss..
fornecer às autoridades investigadoras alguns elementos úteis para a descoberta da verdade,
dando causa a actos ou diligências com valor probatório”80.

DAMIÃO DA CUNHA critica este acórdão, considerando que “conduzirá, no resultado final,
a uma subversão de toda a estrutura processual de produção de prova” 81, pois “ficaria,
naturalmente, em aberto saber quem é que deve provar: o arguido ou o próprio agente
investigador?”82.

Um argumento apresentado pelo STJ foi o de que, estando os arguidos presentes na


audiência, tiveram oportunidade para tomar posição perante os depoimentos prestados pelos
OPC e de criar dúvidas quanto à sua credibilidade 83. Ou seja, o facto de o arguido estar
presente na audiência de julgamento aquando da prestação dos depoimentos por OPC seria
suficiente para se considerarem asseguradas as garantias de defesa e contraditório daquele.

Este argumento foi apresentado por mais alguma jurisprudência 84, nomeadamente pelo
Acórdão do TRC, de 18.06.200385, que tratou de conversas entre OPC e arguido, antes da
sua constituição como tal, tidas no hospital para onde este havia sido conduzido na sequência
de um acidente de viação objeto de um processo. Em causa estão os depoimentos de OPC e
de um enfermeiro que presenciou as conversas. O Tribunal concluiu pela admissibilidade dos
depoimentos acerca das ditas “conversas informais”.

A argumentação do TRC assentou na consideração de que o facto de os depoimentos serem


prestados em audiência seria suficiente para estarem asseguradas as garantias de defesa do
arguido, que, estando presente, tem a possibilidade de contraditar aqueles depoimentos, cujo
conteúdo se reporta ao que se lhe ouviu dizer. Em conclusão, entendeu este Tribunal que
“nada obsta à valoração e utilização dos depoimentos prestados em audiência por dois
agentes da GNR na parte em que transmitiram ao tribunal aquilo que ouviram dizer ao
arguido no Hospital onde ele havia sido conduzido após o acidente de viação objecto do
processo”86. Não se concorda com a teoria de que a mera presença do arguido na audiência de
julgamento pode ser considerada suficiente para que estejam criadas as condições necessária

80
Acórdão do STJ, de 29.03.1995, p. 296.
81
JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, “O regime processual de leitura de declarações (…)”, p. 426.
82
JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, “O regime processual de leitura de declarações (…)”, p. 425.
83
Acórdão do STJ, de 29.03.1995, p. 297.
84
Refiram-se, nomeadamente, os Acórdãos do STJ, de 15.11.2000, in CJ (STJ), Ano VIII, Tomo III,
pp. 216 e ss.; de 20.04.2006; de 14.06.2006; do TRC, de 18.06.2003, pp. 51 e ss.; de 12.11.2003; de 09.05.2012;
de 26.06.2013; do TRP, de 27.02.2008; de 05.05.2010; de 17.04.2013.
85
Acórdão do TRC, de 18.06.2003, pp. 51 e ss..
86
Acórdão do TRC, de 18.06.2003, Sumário, p. 51.
à garantia dos seus direitos de defesa e para assegurar o respeito pelo princípio do
contraditório.

DAMIÃO DA CUNHA critica fortemente o raciocínio do Acórdão do STJ, de 29.03.1995,


argumentando com base em três pontos: “por um lado, a única possibilidade de contraditório,
por parte dos arguidos, corresponderia, necessariamente, a uma coacção a prestar declarações
ou ao reconhecimento de que, de facto, tinham prestado declarações; por outro lado, estando
em causa, no depoimento dos órgãos de polícia criminal, o conteúdo de declarações prestadas
pelo arguido, deverá atender-se a que estas declarações (…) estão sujeitas a regras específicas
de produção de prova; por fim, não faz (…) sentido que o arguido possa contraditar
declarações por si prestadas (não faz sentido que o sujeito da prova – o titular do direito de
contraditório – coincida com o objecto da prova, isto é, seja o objecto do contraditório)”87.

O autor conclui a sua crítica a este propósito chamando a atenção para os riscos que surgem
associados a uma “admissão, pouco criteriosa e pouco cautelosa, da reprodução, em
audiência de julgamento, de declarações prestadas em fases anteriores à de julgamento”88.

No caso do Acórdão do STJ, de 25.09.199789, a situação de facto era distinta das


anteriormente referidas, pois as informações relevantes para a investigação foram fornecidas
a um agente da PJ através de denúncia anónima. No entanto, mantém-se a posição de admitir
a valoração de depoimento de OPC, afastando-se a aplicação do artigo 356.º, n.º 7, por aquele
não ter tomado declarações em sentido formal e por o seu depoimento ter incidido sobre
factos de que tomou conhecimento direto (“testemunho firmado em percepções pessoais que
confirmaram informação anterior ((…) chegada de indivíduo cuja identidade não foi
revelada) e sobre factos de que o agente policial teve conhecimento directo”, “mercê da
vigilância a que procedeu ao local do crime ou da investigação que fez a partir da denúncia
(…), ou ainda do que observou aquando da busca efectuada à residência do recorrente”)90.

É, portanto, possível afirmar que não existe qualquer dúvida neste ponto, mas sim um amplo
consenso e jurisprudência consolidada neste sentido: quanto a factos que tenham conhecido
no decurso do processo por meios diferentes das declarações do arguido, ainda que através de
“conversas informais”, os OPC poderão depor sobre aquilo de que tenham conhecimento

87
JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, “O regime processual de leitura de declarações (…)”, p. 430.
88
JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, “O regime processual de leitura de declarações (…)”, p. 431.
89
Acórdão do STJ, de 25.09.1997, in BMJ, n.º 469, pp. 351 e ss..
90
Acórdão do STJ, de 25.09.1997, pp. 355-356.
direto919293. Assim, uma eventual proibição de valoração de “conversas informais” não afeta
diretamente as provas consequenciais cuja obtenção tenha sido possível graças àquelas, não
sendo, à partida, proibido o uso e valoração destes conhecimentos em audiência de
julgamento enquanto meios de prova autónomos94.

Acerca de diligências de investigação realizadas por OPC na sequência de “conversas


informais”, para comprovar a sua autenticidade, salientam os MAGISTRADOS DO
MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO JUDICIAL DO PORTO que, ao invés do que
acontece com a mera reprodução das declarações do arguido, os OPC fazem um relato
daquilo que percecionaram diretamente, sendo a conversa com o arguido apenas uma
indicação do caminho a seguir para chegar à comprovação dos factos”95.

2. Depoimento sobre “conversas informais”

Utilizando a divisão preconizada por CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA, pode afirmar-se que
as “conversas informais” mantidas com o arguido se reconduzem a três grupos distintos. Em
primeiro lugar, “aqueles casos que dizem respeito às afirmações percepcionadas pelo OPC,
enquanto cidadão comum, em momentos da vida quotidiana (porventura, sem saber do crime
cometido ou em preparação e sem suspeita prévia do seu “interlocutor”) 96. Estas situações,
que se podem remeter para o conceito de “conversa informais” extraprocessuais tout court,
configuram indubitavelmente depoimentos indiretos. Contudo, não se aceitando a aplicação
do regime do artigo 129.º aos casos em que a fonte seja o arguido, não poderão ser valorados

91
Refiram-se, nomeadamente, os Acórdãos do STJ, de 25.06.1992; de 24.02.1993, in CJ (STJ), Ano I,
Tomo I, pp. 202 e ss.; de 22.04.1993; de 30.06.1994; de 16.05.1996, www.stj.pt/jurisprudencia/sumarios,
Criminal – Ano de 1996, p. 37; de 09.10.1996, www.stj.pt/jurisprudencia/sumarios, Criminal – Ano de 1996, p.
112; de
92
.10.1996, www.stj.pt/jurisprudencia/sumarios, Criminal – Ano de 1996, p. 132-133; de 30.10.1996,
in BMJ, n.º 460, pp. 425 e ss.; de 11.12.1996, in BMJ, n.º 462, pp. 299 e ss.; de 22.01.1997; de 22.05.1997; de
93
.09.1998, in BMJ, n.º 479, pp. 414 e ss.; de 21.01.1999, www.stj.pt/jurisprudencia/sumarios, Criminal – Ano
de 1999, pp. 17-18; de 13.05.1999; de 15.11.2000, pp. 216 e ss.; de 30.05.2001,
www.stj.pt/jurisprudencia/sumarios, Criminal – Ano de 2001, pp. 136-137; de 11.07.2001, in CJ (STJ), Ano IX,
Tomo III, pp. 166 e ss.; de 20.11.2002, in CJ (STJ), Ano X, Tomo III, pp. 232 e ss.; de 17.11.2004,
www.stj.pt/jurisprudencia/sumarios, Criminal – Ano de 2004, p. 66; de 23.02.2005, in CJ (STJ), Ano XIII,
Tomo I, pp. 210 e ss.; de 30.03.2005, www.stj.pt/jurisprudencia/sumarios, Criminal – Ano de 2005, pp. 126127;
de 20.04.2006; de 14.06.2006; de 15.02.2007; de 28.09.2011; de 08.01.2014; do TRC, de 12.11.2003; de
10.12.2003; de 18.02.2004; de 16.01.2008, in CJ, Ano XXXIII, Tomo I, pp. 43 e ss.; de 02.04.2008; de
09.07.2008; de 01.04.2009; de 07.04.2010; de 05.01.2011; de 12.01.2011; de 21.03.2012; de 29.05.2013; de
18.06.2014; do TRE, de 02.12.2003; de 02.03.2004; do TRG, de 29.03.2011, p. 304 e ss.; de 11.04.2011; do
TRL, de 30.03.2009; de 24.01.2012; do TRP, de 07.03.2007, Processo n.º 0642960; de 27.02.2008; de
09.09.2009; de 09.11.2011; de 27.06.2012; de 17.04.2013.
94
SANDRA OLIVEIRA E SILVA, “Legalidade da prova e provas proibidas”, p. 567, nota de rodapé 42.
95
MAGISTRADOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO JUDICIAL DO PORTO, Código de
Processo Penal, Comentários e notas práticas, p. 899.
96
CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA, “Depoimento indirecto e arguido”, p. 176; Acórdão do STJ, de
27.06.2012.
ao abrigo deste regime. Em segundo lugar, “aqueles casos que, no extremo oposto,
correspondem às afirmações proferidas por ocasião ou por causa de actos processuais de
recolha de declarações (maxime, à saída, no decurso ou antes do interrogatório)”97.

Em terceiro lugar, “aqueles casos, de índole intermédia, relativos a conversas (indicações de


localização de produto do crime ou de outros suspeitos, explicações do facto, etc.) tidas com
os membros de um OPC no decurso de certos actos processuais de ordem material ou de
investigação “no terreno” (buscas, vigilâncias, resgate de sequestrados, socorro às vítimas,
etc.), bem como em acções de prevenção e manutenção da ordem pública e são aqueles
confrontados com a ocorrência de um crime, em flagrante ou não” 98. Em relação às situações
destes dois últimos grupos, uma análise cuidada da extensa jurisprudência sobre a matéria
permite agrupar os arestos, bem como as opiniões doutrinárias, em duas grandes correntes.

a) Proibição de valoração de “conversas informais” anteriores e posteriores à


constituição de arguido

Quanto à primeira corrente, veja-se desde logo o Acórdão do STJ, de 29.01.199299, que foi
um dos primeiros a pronunciar-se sobre esta temática. A questão diretamente submetida aos
poderes de cognição deste Tribunal era a da admissibilidade de depoimento de OPC acerca de
conversa tida com o arguido antes da sua constituição como tal.

O STJ refere-se à obrigação de constituição de arguido quando “correndo inquérito contra


pessoa determinada, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão
de polícia criminal” (artigo 58.º, n.º 1, al. a); hoje com uma letra ligeiramente diferente), sob
pena de tais meios de prova não poderem ser valorados (artigo 58.º, n.º 3; atualmente, esta
disposição encontra-se consagrada no n.º 5 e com uma pequena alteração). Considerando este
Supremo Tribunal que tal disposição se reporta a quaisquer declarações, sejam elas escritas
ou não, apoia-se em tal para concluir que não podem ser ouvidos depoimentos de OPC que
conduzam ou tenham intervenção material no inquérito (no caso, OPC que participaram nas
conversas ou que assistiram a estas enquanto dactilógrafos do ato de interrogatório) acerca do
conteúdo de declarações informais prestadas pelo arguido antes da sua constituição como tal
mas depois de iniciado processo contra ele.

97
CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA, “Depoimento indirecto e arguido”, p. 176; Acórdão do STJ, de
27.06.2012.
98
CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA, “Depoimento indirecto e arguido”, p. 176; Acórdão do STJ, de
27.06.2012.
99
Acórdão do STJ, de 29.01.1992, pp. 20 e ss..
Também GERMANO MARQUES DA SILVA se pronuncia neste sentido: “as declarações de
uma pessoa prestadas a um órgão de polícia criminal antes da sua constituição formal como
arguido, mas quando já o deveria ter sido, não podem ser utilizadas no processo e por isso
também que o órgão de polícia criminal não possa ser admitido a depor sobre o conteúdo
dessas declarações”100. A lei não deixa aqui margem para dúvidas, sendo claro que, quando já
recaia uma suspeita sobre uma determinada pessoa e esta não seja imediatamente constituída
arguida, quaisquer declarações que ela venha a prestar não poderão ser apreciadas pelo
Tribunal.

Outro acórdão que se revelou marcante para a temática das “conversas informais”, e em que
se retomou de certo modo a linha de pensamento do Acórdão do STJ, de 29.01.1992101, foi o
Acórdão do STJ, de 11.07.2001102. No caso deste aresto, o arguido confessou os factos no
inquérito, negou-os na instrução e remeteu-se ao silêncio na audiência de julgamento. O que
está em causa é o depoimento de um inspetor que procedeu ao inquérito e uma diligência
externa realizada com base em declarações do arguido (identificação dos locais onde ateou os
fogos e o modo como os ateou).

O tribunal não teve em conta as declarações prestadas pelo arguido nas fases anteriores do
processo, por aplicação do disposto no artigo 356.º, n.º 7 (aplicável às declarações do
arguido, por remissão do artigo 357.º, n.º 3; hoje, n.º 3), não tendo sido valorado o
depoimento do OPC nem o relatório da diligência externa, por ter sido considerada como
uma extensão das palavras do arguido.

A propósito da possibilidade de leitura de declarações do arguido ao abrigo do artigo 357.º,


n.º 1, al. b) (“quando, tendo sido feitas perante o juiz, houver contradições ou discrepâncias
sensíveis entre elas e as feitas em audiência que não possam ser esclarecidas de outro modo”;
disposição hoje com letra diferente, como referido anteriormente), salienta o STJ que, nos
casos em que o arguido se remete ao silêncio na audiência de julgamento, “não se poderá
falar em contradição ou discrepância com as anteriores declarações: o silêncio não pode ter
esse significado, pois em direito, como princípio, o silêncio não tem o valor de sim (quem
cala consente), de não ou talvez, é mesmo a ausência de declaração, o que não pode ser

100
GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, volume II, p. 232.
101
Acórdão do STJ, de 29.01.1992, pp. 20 e ss..
102
Acórdão do STJ, de 11.07.2001, pp. 166 e ss.
considerado contraditório ou discrepante da prestação anterior de declarações, num ou noutro
sentido. O oposto do silêncio consiste em falar ou expressar-se de modo inteligível”103 104.

O arguido foi absolvido, concluindo o Tribunal nos seguintes termos: “em resumo: porque a
confissão do arguido durante o inquérito, mesmo perante magistrado judicial, não pode ser
atendida dada a proibição da sua leitura uma vez que o arguido se remeteu ao silêncio em
audiência de julgamento; porque a diligência externa realizada assenta nas declarações do
mesmo arguido, sendo um seu complemento, ainda assim apenas realizada pelo OPC; porque
o Colectivo considerou insuficientes para a condenação os restantes elementos, em sua livre
convicção”105.

Debruça-se o STJ sobre a questão das “conversas informais”, invocando o princípio da


legalidade (consagrado, nomeadamente, nos artigos 2.º do CPP, 29.º da CRP e 262.º e 267.º
do CPP) para rejeitar terminantemente a valoração de quaisquer conversas que não sejam
formalmente reduzidas a escrito, que considerando como fraude à lei. Ou seja, para o
Tribunal, apenas as declarações que sejam reduzidas a auto e respeitem as regras legais de
produção e recolha de prova podem ser alvo de valoração (“não há conversas informais, com
validade probatória, à margem do processo, sejam quais forem as formas que assumam desde
que não tenham assumido os procedimentos de recolha admitidos por lei e por ela
sancionados”106.

A posição adotada pelo STJ neste aresto foi, portanto, a de que o princípio da legalidade,
assim como, nomeadamente, o disposto no artigo 275.º, n.º 1, impõem que quaisquer
conversas da natureza das que estão em discussão devam ser reduzidas a escrito. Caso
contrário, nunca poderão ser valoradas em audiência de julgamento. E mesmo constando de
auto, estarão abrangidas pela proibição de leitura.

Esta rejeição da admissibilidade de depoimento de OPC é largamente defendida pela


jurisprudência107108, e também grande parte da doutrina demonstra o seu apoio a esta posição.

103
Acórdão do STJ, de 11.07.2001, p. 169.
104
Este argumento é utilizado por alguma jurisprudência. Refiram-se, nomeadamente, os Acórdãos do
TRC, de 15.12.2004, pp. 53 e ss.; do TRE, de 02.12.2003; de 13.01.2004; do TRP, de 10.09.2008.
105
Acórdão do STJ, de 11.07.2001, p. 172.
106
Acórdão do STJ, de 11.07.2001, p. 170.
107
Refiram-se, nomeadamente, os Acórdãos do STJ, de 29.06.1995; de 10.01.2001; de 07.02.2001,
www.stj.pt/jurisprudencia/sumarios, Criminal – Ano de 2001, p. 37; de 30.10.2001; de 03.10.2002; de
108
.01.2003; de 09.07.2003; de 22.04.2004; de 30.03.2005, pp. 126-127; de 20.04.2006; de 14.06.2006;
de
S109OFIA MENEZES afirma concordar com o “entendimento da jurisprudência, ao proteger o
silêncio do arguido mediante a proibição da valoração das denominadas «conversas
informais», entre o arguido e os agentes policiais, realizadas na fase do inquérito e à imagem
das garantias e formalidades que a lei impõe, e que poderiam frustrar ilegitimamente o seu
direito ao silêncio, através da «confissão por ouvir dizer», relatada pela testemunha”110.

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE demonstra a sua adesão expressa às conclusões a que


chega o Acórdão do STJ, de 11.07.2001, assim como o Acórdão do STJ, de 29.01.1992.
Remetendo para estes dois arestos, e invocando o direito ao silêncio e o princípio da
imediação, conclui aquele autor que as “conversas informais” que não ficaram registadas em
auto não podem ser consideradas meio de prova, pois tal constituiria uma “fraude à lei”111.

Seguindo esta mesma linha de pensamento, diz-se, p. e., no Acórdão do TRP, de


11.10.2000: “a razão de ser da proibição é a mesma para as declarações que foram feitas
constar de auto e para as que não foram. (…) A circunstância de a lei não falar nas
declarações não reduzidas a auto só significa que tudo se passa como se elas não
existissem”112.

O Acórdão do STJ, de 09.07.2003, que se debruçou sobre um caso de tráfico de


estupefacientes, seguiu o mesmo raciocínio, apoiando-se igualmente no princípio da
legalidade. Diz-se neste aresto que “a inquirição das testemunhas sobre o conteúdo de
eventuais declarações do arguido, (…) caso tivessem sido reduzidas a auto, não poderiam ser
lidas na audiência de julgamento”, pois tal “constituiria manifesta ofensa do fim prosseguido
pela lei (…), designadamente a salvaguarda dos princípios da oralidade, da imediação, da
publicidade, do contraditório, da concentração”. Assim, o Tribunal considerou inválido o
meio de prova constituído pelo relato feito por OPC acerca da busca a que procederam em
casa do arguido e em que este terá dito “se houver droga fora de casa, não é nossa”.

No Acórdão do STJ, de 11.07.2001, tece o Coletivo a final interessantes considerações


acerca da conclusão a que chegou, classificando-a como “de algum modo em contrapé com o
interesse público na perseguição dos criminosos, da segurança dos cidadãos e das garantias
que devem provir de um Estado de direito, bem como da confiança nas instituições”. O
109
.02.2007; do TRC, de 18.06.2003, pp. 51 e ss.; de 10.12.2003; de 18.02.2004; de 15.12.2004, pp. 53
e ss.; de 16.01.2008, pp. 43 e ss.; de 29.05.2013; de 19.06.2013; do TRE, de 02.12.2003; de 13.01.2004; de
03.12.2014; do TRG, de 31.05.2010; de 29.03.2011, p. 304 e ss.; de 29.04.2010; de 03.05.2011; do TRP, de
11.10.2000, in CJ, Ano XXV, Tomo IV, pp. 231 e ss.; de 07.03.2007, Processo n.º 0646472; de 07.03.2007,
Processo n.º 0642960; de 27.02.2008; de 10.09.2008; de 09.09.2009; de 23.05.2012; de 27.06.2012.
110
SOFIA SARAIVA DE MENEZES, “O direito ao silêncio: a verdade por detrás do mito”, p. 126.
111
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, p. 924.
112
Acórdão do TRP, de 11.10.2000, p. 232.
regime atual assegura a independência do arguido em matéria de defesa, procurando evitar
que interações anteriores influenciem o julgamento, momento para o qual se reserva uma
“completa autonomia e liberdade na atitude pessoal a tomar perante a imputação”. Termina o
STJ dizendo que “se o sistema é excessivo na protecção e garantia do arguido, ficando ao
alcance de uma “boa estratégia de defesa”, não cabe aqui avaliar”, pois o que cabe aos
tribunais é interpretar a lei no caso concreto de forma imparcial e independente e descobrir a
verdade dentro e dos limites do Processo, e não “suprir falhas de investigação ou de
oportunas diligências que plasmem a prova em ordem a poder ser apreciada na audiência de
julgamento”113.

Criticando a linha de pensamento desenvolvida no Acórdão do STJ, de 11.07.2001, diz-se


no Acórdão do TRE, de 02.03.2004 que não existe fundamento legal para, quando o arguido
se remete ao silêncio, não se valorar depoimentos de OPC acerca de diligências que tenham
conduzido e em que o arguido tenha participado ativamente e que o entendimento
preconizado naquele acórdão do STJ “poderia levar, no extremo, a uma (…) perversão do
sistema, (…) perniciosa e indesejável (…): um arguido, eventualmente bem aconselhado,
confessando perante o OPC a autoria dos factos de cuja prática era suspeito e colaborando, de
forma activa e interessada, em todas as diligências de prova subsequentes, remetendo-se ao
silêncio em julgamento, inutilizaria - desta forma habilidosa - todo o trabalho de investigação
realizado”.

b) Permissão de valoração de “conversas informais” anteriores à constituição de


arguido e proibição de valoração de “conversas informais” posteriores à constituição de
arguido

Relativamente à segunda e mais recente corrente de opinião, um acórdão que se revelou de


grande importância foi o Acórdão do STJ, de 15.02.2007. Estava em causa a valoração de
depoimentos de OPC cujo conteúdo foi o de que, no decorrer de uma busca, encontraram
sacos de heroína e uma balança que o arguido afirmou serem seus. Decidiu o Tribunal pela
valoração dos depoimentos, pelo facto de a afirmação do arguido ter ocorrido antes mesmo
da instauração do inquérito e, portanto, antes da sua constituição como tal, e nessa fase de
aquisição da notícia do crime os OPC têm o dever de recolher todas as informações possíveis
para assegurar os meios de prova (artigo 249.º). Assim, o STJ entendeu que, nestes casos, não
se analisam “conversas informais”, mas apenas recolhas de informação.

113
Acórdão do STJ, de 11.07.2001, p. 172.
Neste contexto, faz sentido separar as situações anteriores e as posteriores ao momento da
constituição de arguido. Defendeu neste acórdão o nosso Supremo Tribunal uma diferença no
tratamento a dar aos depoimentos de OPC em função de se referirem a declarações anteriores
ou posteriores à constituição de arguido. Esta posição, apresentada e defendida em termos
muito claros, veio a receber adesão jurisprudencial114.

O Tribunal argumenta que a recolha de informações aquando da aquisição da notícia do


crime, não existindo ainda inquérito, constitui “uma fase de pura recolha informal de indícios,
que não é dirigida contra ninguém em concreto”, ou seja, “essas informações não são
declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo”.

Diferente é o caso das “conversas informais” que tenham lugar depois da instauração do
inquérito e da constituição de arguido. Na base da argumentação do Tribunal está o
pressuposto de que o direito ao silêncio apenas “ganha vida” com a constituição de arguido,
momento a partir do qual a recolha e valoração das suas declarações tem de ser feita no
estrito respeito da lei, não podendo ter-se em conta quaisquer provas recolhidas de forma
informal.

Pode, assim, entender-se o momento da constituição de arguido, nas palavras de SANTOS


CABRAL, como “um momento, uma linha de fronteira na admissibilidade das denominadas
“conversas informais”, pois que é a partir daí que as suas declarações só podem ser
recolhidas, e valoradas, nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as
conversas, ou quaisquer outras provas, recolhidas informalmente”115.

Conclui este autor que não são abrangidos pelas proibições plasmadas nos artigos 129.º e
357.º os depoimentos de OPC acerca de “afirmações e contribuições infamatórias do arguido
– tal como de factos, gestos, silêncios, reacções, etc – de que tomaram conhecimento fora do
âmbito de diligências de prova produzidas sob a égide da oralidade (interrogatórios,
acareações etc.) e que não o devessem ser sobre tal formalismo, bem como no âmbito das
demais diligências, actos de investigação e meios de obtenção de prova (actos de investigação
proactiva, buscas e revistas, exames ao lugar do crime, reconstituição do crime,
reconhecimentos presenciais, entregas controladas, etc) que tenham autonomia técnico-

114
Refiram-se, nomeadamente, os Acórdãos do STJ, de 03.03.2010; de 27.06.2012; do TRC, de 09.07.2008; de
05.01.2011; de 12.01.2011; de 09.05.2012; de 11.09.2013; de 12.12.2013; de 18.06.2014; do TRE, de
04.06.2013; de 02.07.2013; de 21.10.2014; do TRL, de 30.03.2009; de 29.05.2012; do TRP, de 21.03.2013; de
17.04.2013; de 23.10.2013.
115
ANTÓNIO DA SILVA HENRIQUES GASPAR et al, Código de Processo Penal Comentado, p.
492; Acórdão do STJ, de 27.06.2012.
jurídica”116. Saliente-se que a solução possível ao abrigo do regime do CPP recebe algumas
críticas por parte da doutrina, em especial relativamente à sua adaptação aos dias de hoje.

À luz do disposto nos artigos 356.º e 357.º, pode dar-se o caso de um arguido confessar a
prática de um crime nas fases anteriores ao julgamento e posteriormente vir a ser absolvido
por essa confissão não ser poder ser valorada e não existirem outros meios de prova
suficientes para o efeito. Este regime, “gizado para prevenir as confissões prestadas à força
em tempos de ditadura, perante um inquérito meramente policial e não judicial” 117, talvez não
se adapte inteiramente à atualidade.

No mesmo sentido, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, em declarações ao jornal Sol,


afirma considerar que o regime é profundamente injusto e cria a situação de um juiz
“manietado”, pelo facto de no nosso sistema o arguido só poder ser condenado com base na
prova que é feita em julgamento, o que significa, na prática, que se o arguido tiver confessado
tudo durante o inquérito e se remeter ao silêncio no julgamento, isso não poderá ser tido em
conta pelo juiz118.

A relevância destes comentários é indiscutível, mas também é importante não esquecer que o
Processo Penal tem uma multiplicidade de finalidades (entre as quais a realização da justiça,
a descoberta da verdade e a proteção dos direitos fundamentais das pessoas, nomeadamente o
arguido, face ao Estado) e que, sendo impossível alcançar a sua harmonização integral, deve
procurar-se sempre a sua compatibilização da forma mais equilibrada possível119.

3. O caso específico do depoimento sobre a reconstituição do facto

Relativamente a esta matéria, uma argumentação que se revelou importante e foi amplamente
seguida120 foi a desenvolvida no Acórdão do STJ, de 05.01.2005. No caso em apreço, dois
inspetores da PJ, que efetuaram diligências de investigação em relação ao assalto de que o
arguido vinha acusado, referiram em depoimento que um arguido teria indicado as casas
assaltadas no decurso de um auto de reconstituição dos factos. Na audiência de julgamento os
arguidos não prestaram declarações. Este Supremo Tribunal afasta a recondução da
problemática ao disposto nos artigos 356.º, n.º 7, e 357.º, n.º 2 (atual n.º 3), que têm um
116
ANTÓNIO DA SILVA HENRIQUES GASPAR et al, Código de Processo Penal Comentado, p.
495; Acórdão do STJ, de 27.06.2012.
117
VINÍCIO A. P. RIBEIRO, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, p. 991.
118
“O silêncio do arguido”, in Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 68, 2010, p. 12.
119
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “Os princípios estruturantes do processo e a revisão de 1998 do
Código de Processo Penal”, p. 202.
120
Refiram-se, nomeadamente, os Acórdãos do STJ, de 20.04.2006; de 27.06.2012; do TRC, de
01.04.2009; do TRE, de 30.09.2008; do TRP, de 07.03.2007, Processo n.º 0642960; de 12.12.2007; de
09.09.2009; de 23.05.2012; de 27.06.2012; de 08.10.2014.
âmbito de aplicação limitado às declarações do arguido enquanto meio de prova, prestadas
segundo o disposto nos artigos 140.º e ss. e 343.º e ss..

A argumentação apoia-se no direito ao silêncio e à não autoincriminação, mas também no


facto de a escolha de participar ou não na investigação ser da inteira liberdade do arguido,
“que pode livremente colaborar na investigação e contribuir para aquisições probatórias
substanciais autónomas das simples declarações que as proporcionam, e que, nessa medida,
não podem ser eliminadas posteriormente pela invocação da garantia contra a auto-
incriminação”.

O STJ conclui pela possibilidade de valoração e pela não inclusão no âmbito de aplicação do
artigo 356.º, n.º 7, de depoimentos de OPC acerca da forma como decorreu uma
reconstituição, mesmo que o arguido nela tenha participado. Isto porque as contribuições do
arguido se confundem com a própria diligência, não correspondendo a declarações do
arguido enquanto meio de prova, mas já a um outro meio de prova autónomo, a
reconstituição.

JOSÉ VAZ SANTOS CARVALHO, que votou vencido no Acórdão do STJ, de 20.04.2006,
conhecido como “caso Joana”, tomou posição acerca da valoração da reconstituição com
participação do arguido. A este propósito, afirma só considerar diluídas na reconstituição “as
contribuições verbais do arguido (…) que se mostrarem indispensáveis à compreensão dos
actos que o arguido pretende reconstituir”, tudo o resto devendo receber o mesmo tratamento
que as “conversas informais”.

Também no Acórdão do TRC, de 10.07.2013 se defende que apenas as declarações do


arguido indispensáveis aos termos da reconstituição podem ser tidas em conta, pois a
reconstituição “não pode servir para contornar os casos de proibição de prova previstos nos
artigos 356.º e 357.º”.

EURICO BALBINO DUARTE121 sintetiza de forma clara as divergências jurisprudenciais


observadas. Saliente-se, desde logo, que se verifica uma primeira grande divisão. Por um
lado, existe uma orientação que entende “as declarações que o arguido produza durante a
reconstituição como parte integrante e incindível daquela, não se autonomizando e não

121
EURICO BALBINO DUARTE, “Making of – A reconstituição do facto no processo penal
português”, in Prova Criminal e Direito de defesa – Estudos sobre Teoria da Prova e Garantias de Defesa em
Processo Penal, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 53-58.
valendo portanto enquanto tal, pelo que não obstaculizam a válida reprodução em audiência
do meio de prova prevista no art. 150.º”122 123.

Por sua vez, a orientação contrária defende a separação entre a reconstituição do facto e as
declarações do arguido, advogando que “apenas os actos materiais praticados na
reconstituição realizada no inquérito ou na instrução e os correspondentes resultados factuais
são atendíveis em sede probatória no julgamento, e não já as declarações que o arguido tenha
proferido no decurso da mesma”124 125.

Face a esta distinção, bem como às diversas posições acerca daquilo que se deve entender por
“declarações de leitura proibida” para efeitos dos artigos 356.º e 357.º, o autor apresenta três
correntes que representam as consequências em matéria de depoimento de OPC sobre
declarações prestadas no contexto de uma reconstituição.

A primeira corrente, de natureza permissiva, considera que estes depoimentos não são
abrangidos pela proibição do artigo 356.º, n.º 7 (aplicável às declarações do arguido, por
remissão do artigo 357.º, n.º 3), pois se reportam a elementos distintos das declarações do
arguido, podendo os OPC depor sobre o ocorrido numa reconstituição126127.

No vetor oposto, outra corrente, de carácter restritivo, proíbe “não apenas o depoimento sobre
as declarações ouvidas ao arguido durante a diligência, mas também aquele que verse sobre
os próprios factos percepcionados na sequência (…) das informações prestadas – situação que
será a mais frequente na reconstituição do facto”128 129.

Por sua vez, uma corrente mais moderada concede o depoimento de OPC acerca do curso de
uma reconstituição, somente permitindo a valoração daquilo que tenha sido observado
diretamente, e não do que tenha sido revelado pelo arguido na diligência130.

122
EURICO BALBINO DUARTE, “Making of – A reconstituição do facto no processo penal
português”, p. 53.
123
Refiram-se, nomeadamente, os Acórdãos do STJ, de 05.01.2005; de 20.04.2006; do TRE, de
30.09.2008; do TRP, de 10.09.2008; de 12.12.2007.
124
EURICO BALBINO DUARTE, “Making of – A reconstituição do facto no processo penal
português”, p. 54.
125
Refiram-se, nomeadamente, os Acórdãos do STJ, de 03.10.2002; de 14.06.2006; do TRC, de
22.10.2003.
126
Refiram-se, nomeadamente, os Acórdãos do STJ, de 11.12.1996, pp. 299 e ss.; de 05.01.2005; de
20.04.2006; de 27.06.2012; do TRC, de 02.04.2008; do TRP, de 12.12.2007; de 10.09.2008; de 23.05.2012; de
127
.06.2012; de 08.10.2014.
128
EURICO BALBINO DUARTE, “Making of – A reconstituição do facto no processo penal
português”, p. 58.
129
Refiram-se, nomeadamente, os Acórdãos do STJ, de 11.07.2001, pp. 166 e ss.; de 03.10.2002; do
TRC, de 18.02.2004.
130
Refiram-se, nomeadamente, os Acórdãos do STJ, de 22.04.2004; de 14.06.2006; do TRC, de
01.04.2009; de 22.10.2003; do TRP, de 27.02.2008; de 13.06.2012.
Aqui se situa a posição de EURICO BALBINO DUARTE, que defende que “as declarações
prestadas durante a reconstituição do facto (…) não são de todo informais, porque ainda que
não tenham sido gravadas ou reduzidas a auto, (…) encontram-se compreendidas no âmbito
de um meio de prova legalmente previsto, o qual lhes dá, por assim dizer, forma
processual”131 e recorre à proibição do artigo 356.º, n.º 7 (aplicável às declarações do arguido,
por remissão do artigo 357.º, n.º 3) para afirmar que “enquanto declarações sobre
declarações, não são válidos os depoimentos de testemunhas da reconstituição sobre o que
quer que o arguido tenha nela verbalizado, a menos que ele nisso consinta”132.

Quanto aos factos percecionadas diretamente pelas testemunhas, não existe dúvidas de que
são admissíveis enquanto conteúdo de um depoimento indireto.

Porém, dado o elevado grau de dificuldade em separar as contribuições do arguido que


podem ser consideradas indispensáveis e outras que podem ser de uma utilidade mais
reduzida, mas ainda assim relevantes, oferece-se apoio à classificação das contribuições do
arguido como incindíveis da reconstituição. Assim, não se tratando de declarações do arguido
enquanto meio de prova para os efeitos dos artigos 140.º e ss. e 343.º e ss., não há sujeição à
proibição decorrente dos artigos 356.º e 357.º e a reconstituição pode ser reproduzida e
valorada sem restrições na audiência de julgamento.

131
EURICO BALBINO DUARTE, “Making of – A reconstituição do facto no processo penal
português”, 58.
132
EURICO BALBINO DUARTE, “Making of – A reconstituição do facto no processo penal
português”, 59.

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