Por Que o Tempo Voa - Alan Burdick PDF
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As horas
Os dias
O presente
Por que o tempo voa
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Avante [1]
Comece com uma palavra, como Deus fez, Agostinho exorta o leitor: “Vós
falastes e coisas foram criadas. Com vossa palavra vós as criastes”.
O ano é 397. Agostinho tem 43 anos, no meio do caminho de sua vida
como um sobrecarregado bispo em Hippo, cidade portuária no norte da
África, do decaído Império Romano. Ele escreveu dezenas de livros —
coleções de sermões, reprimendas eruditas a seus inimigos teológicos — e
agora está escrevendo as Confissões, um livro estranho e cativante que
levará quatro anos para ser concluído. Nos nove primeiros de seus treze
capítulos, Agostinho relata detalhes de sua vida, desde a infância (o melhor
que ele pode inferir) até sua adesão formal ao cristianismo, em 386, e a
morte de sua mãe, no ano seguinte. Nesse percurso, fala de seus pecados,
entre eles o do roubo (ele havia furtado peras da árvore de um vizinho),
sexo fora do casamento, astrologia, previsão do futuro, superstições,
interesse no teatro e mais sexo. (Na verdade, Agostinho foi monógamo
durante quase toda a vida: primeiro teve uma companheira por muito
tempo, mais tarde uma esposa num casamento arranjado, depois do qual ele
adotou a castidade.)
Os quatro capítulos restantes são algo totalmente diverso: uma longa
meditação sobre — em ordem ascendente — memória, tempo, eternidade e
Criação. Agostinho é sincero quanto a sua ignorância do divino e da ordem
natural, e obstinado em sua busca de esclarecimento. Suas conclusões e seu
método introspectivo informariam filósofos subsequentes durante séculos,
desde Descartes (cujo cogito ergo sum — “penso, portanto existo” — é um
eco direto de dubito ergo sum, “duvido, portanto existo”, de Agostinho) até
Heidegger e Wittgenstein. Ele se agarra ao Início: “Vou começar a
responder ao inquisidor que pergunta: ‘O que fazia Deus antes de criar o
céu e a terra?’. Porém não vou responder com aquela piada que, segundo
consta, alguém fez: ‘Ele está preparando o inferno para pessoas que
perscrutam inquisitivamente questões profundas’”.
As Confissões de Agostinho são às vezes descritas como a primeira
autêntica autobiografia — uma história de si mesmo que conta como um eu
cresceu e mudou com o tempo. Cheguei a pensar nela como sendo a
memória de uma evasão. Nos primeiros capítulos, a divindade bate à porta
mas Agostinho não responde. Ele é pai de um filho ilegítimo; quando está
estudando retórica em Roma se alia a um grupo de amigos agitadores que
chama de “os demolidores”; sua mãe devota se preocupa com seu estilo de
vida rebelde. Mais tarde, Agostinho descreve esse período de sua vida
como “não mais que uma ansiosa distração”. Suas Confissões manifestam
algo que viemos a abraçar como uma ideia totalmente moderna, conhecida
por todos que estiverem familiarizados com a psicoterapia: que o disperso
passado de alguém pode ser reformatado num significante presente. Suas
memórias são suas, e por meio delas você pode moldar para si uma nova
narrativa que esclarece e define quem você é. “A partir dos dias de uma
dispersão anterior posso me recolher numa identidade”, escreve Agostinho.
É uma autobiografia de autoajuda. Confissões é um livro sobre muitas
coisas, e as principais são as palavras e sua capacidade de, com o correr do
tempo, redimir.
Durante muito tempo, o tempo foi algo que tentei ao máximo evitar. Por
exemplo, durante grande parte do início de minha vida de adulto me recusei
a usar um relógio. Não estou bem seguro de como cheguei a tal decisão;
lembro-me vagamente de ter lido que Yoko Ono nunca usava um porque
detestava a ideia de ter o tempo amarrado em seu pulso. Isso fazia sentido.
O tempo, assim me parecia, era um fenômeno externo, compulsório e
opressivo — e portanto algo que eu podia decidir ativamente retirar de
minha pessoa e deixar para trás.
Essa ideia me proporcionou, de início, uma profunda sensação de prazer
e alívio, como em geral fazem as rebeliões. Isso também significava
comumente que, quando eu ia para algum lugar ou ao encontro de alguém,
não era fora do tempo que eu estava, estava apenas atrás dele. Estava
atrasado. E estava evitando o tempo tão efetivamente que muito tempo se
passou até eu compreender o que estava fazendo. E com essa constatação,
no mesmo instante seguiu-se outra: eu estava evitando o tempo porque no
íntimo tinha medo dele. Eu adquiria uma sensação de controle ao perceber
o tempo como externo, como se fosse algo no qual poderia entrar e do qual
sair, como uma correnteza, ou passar ao largo, como se fosse um poste de
iluminação de rua. Mas bem no fundo eu percebia a verdade: o tempo
estava — está — em mim, em nós. Está lá desde o momento em que acordo
até o momento em que adormeço, ele impregna o ar, permeia a mente e o
corpo, rasteja entre as células de alguém, em cada instante da vida, e
continuará a avançar muito depois do momento em que deixa todas as
células para trás. Sinto-me infectado. E ainda não saberia dizer de onde ele
veio, menos ainda para onde foi — e continua indo, sempre escorrendo.
Como acontece com tantas outras coisas das quais se tem medo, não
imagino o que o tempo efetivamente é, e minha habilidade em evitá-lo só
me afasta ainda mais de uma resposta real.
E assim um dia, há mais tempo do que eu gostaria que fosse verdade,
parti numa jornada pelo mundo do tempo para poder compreendê-lo —
para perguntar, como fez Agostinho: “De onde ele vem, por onde está
passando e para onde está indo?”. Os aspectos puramente físicos e
matemáticos do tempo continuam a ser debatidos pelas grandes mentes da
cosmologia. O que interessa a mim, e o que a ciência apenas começou a
revelar, é como o tempo se manifesta na biologia da vida: como é
interpretado e relatado pelas células e pelos mecanismos subcelulares, e
como esse relato ascende e se infiltra na neurobiologia, na psicologia e na
consciência de nossa espécie. Enquanto eu viajava pelo mundo da pesquisa
do tempo, e visitava seus muitos “ólogos”, busquei respostas a perguntas
que fazia muito me atormentavam, e talvez a você também, como: por que
o tempo parecia durar mais quando éramos crianças? Será que o tempo
realmente parece passar mais devagar quando você está envolvido num
desastre de automóvel? Como é possível que eu seja mais produtivo quando
tenho tanta coisa para fazer, e quando tenho todo o tempo do mundo não
consigo terminar nada? Será que existe em nós um relógio que conta
segundos, horas e dias, como o clock num computador? E, se temos em nós
esse relógio, quão maleável ele é? Será que posso fazer o tempo acelerar,
desacelerar, parar, reverter? Como e por que o tempo voa?
Não sou capaz de dizer exatamente o que estava buscando — paz de
espírito, talvez, ou algum insight daquilo que Susan, minha esposa, se
referiu uma vez como minha “intencional negação da passagem do tempo”.
Para Agostinho, o tempo era uma janela para a alma. A ciência moderna
está mais preocupada em demonstrar a estrutura e a textura da consciência,
conceito que é só pouco menos elusivo. (William James menosprezou a
consciência como “o nome de uma não entidade […] um mero eco, o débil
rumor deixado para trás pela ‘alma’ que desaparece no ar da filosofia”.)
Mas qualquer que seja o nome que alguém lhe dê, compartilhamos uma
vaga ideia do que significa: um sentido remanescente de um self que se
movimenta num mar de selves, dependente porém sozinho; uma sensação,
ou talvez um profundo e comum desejo, de que eu de algum modo pertença
a um nós, e que esse nós pertença a algo ainda maior e menos
compreensível; e o pensamento recorrente — tão fácil de se pôr de lado no
esforço diário de atravessar a rua com segurança e percorrer a lista das
tarefas por fazer, muito menos quando se enfrenta a verdadeira crise do
mundo — de que meu tempo, nosso tempo, tem importância exatamente
porque termina.
Então idealizei uma reflexão, e talvez um acerto de contas. Devo
mencionar aqui que demorei muito mais tempo para escrever meu livro
anterior do que eu pretendia ou imaginava ser possível. Assim, fiz um
juramento a mim mesmo: só levaria a cabo um novo livro com a condição
de que o terminaria absolutamente em tempo — e num tempo razoável. De
fato, Por que o tempo voa deveria ser um livro sobre o tempo, escrito no
tempo programado. É claro que não foi. O que começou como uma jornada
evoluiu para algo entre passatempo e obsessão, e me acompanhou de um
emprego para outro, no nascimento de meus filhos, na pré-escola, no ensino
básico, nas férias na praia, e cancelou prazos assumidos e jantares
marcados; sob seu domínio eu olhei para o relógio mais preciso do mundo,
experimentei as noites brancas do Ártico e caí de uma grande altura nos
braços da gravidade. Meu tema se instalou para um longo prazo, um
hóspede faminto, fascinante e instrutivo, tanto como o próprio tempo.
Eu mal tinha começado quando descobri um fato fundamental sobre o
tempo: não existe apenas uma verdade quanto a ele. Em vez disso, achei
uma multidão de cientistas ao longo do espectro da pesquisa do tempo;
cada um é capaz de falar com segurança sobre seu estreito comprimento de
onda, mas nenhum deles poderia dizer como tudo isso se soma numa luz
branca ou com o que isso se parece. “Exatamente quando você pensa que
entendeu o que está acontecendo”, disse-me um deles, “outro experimento
muda um pequeno aspecto, e de repente você de novo não sabe o que está
acontecendo.” Se há algo em que os cientistas concordam é que ninguém
sabe o bastante sobre o tempo, e que essa falta de conhecimento é
surpreendente, dado quão penetrante e integral é o tempo em nossa vida.
Outro pesquisador confidenciou: “Posso imaginar alienígenas chegando um
dia do espaço exterior e dizendo: ‘Oh, na verdade, o tempo é isso e isso’, e
todos nós assentimos como se tivesse sido uma coisa óbvia o tempo todo”.
Se fosse alguma coisa, o tempo me pareceria muito semelhante com o
clima: algo do qual todo mundo fala mas nunca faz nada a respeito. Eu
pretendi fazer as duas coisas.
As horas
Pode-se esperar um acordo entre filósofos mais cedo do que um acordo
entre relógios.
Era uma vez um homem que entrou numa caverna e ficou lá sozinho
durante muitos dias e muitas noites. Ele não via luz natural, nenhum nascer
ou pôr do sol vinha anunciar quando o dia começava ou terminava
oficialmente; não havia relógio de parede ou de pulso para marcar a
passagem de seus momentos e de suas horas. Ele escrevia; ele lia Platão;
ele pensava muito sobre seu futuro. Ficou sozinho com o tempo durante
muito tempo, embora não tanto tempo quanto esperava.
Este foi o primeiro experimento de Michel Siffre com o tempo, em 1962.
Siffre, um geólogo francês de 23 anos, tinha descoberto havia pouco uma
geleira subterrânea, a Scarasson, numa caverna no sul da França. A Guerra
Fria e a corrida espacial estavam em plena vigência; abrigos contra
precipitação radioativa e cápsulas espaciais estavam na ordem do dia.
Como muitos cientistas, Siffre se perguntava como um humano se daria em
lugares assim, isolado de outras pessoas e do sol. Sua ideia inicial foi
passar duas semanas estudando a caverna. Mas logo decidiu ficar mais
tempo, dois meses, para explorar o que mais tarde chamou de “a ideia de
minha vida”. Ele viveria “como um animal”, disse à revista Cabinet em
2008, “no escuro, sem tomar conhecimento do tempo”.
Armou uma tenda, com um saco de dormir sobre um catre. Dormia,
levantava-se e comia quando queria e mantinha um registro por escrito de
suas atividades; um pequeno gerador alimentava uma lâmpada, à luz da
qual ele lia, estudava a geleira e se movimentava. Seu único contato com a
superfície era por telefone, e ele ligava regularmente para seus colegas lá
em cima — que tinham recebido instruções estritas de não deixar escapar
nenhuma informação sobre o dia ou o tempo — para lhes relatar a
frequência de seu pulso e seus procedimentos.
Siffre entrou na caverna em 16 de julho e planejara ir embora em 14 de
setembro. Mas em 20 de agosto, em seu calendário, seus colegas ligaram
para dizer que sua estada tinha terminado; seu tempo acabara. No cômputo
dele só tinham se passado 35 dias — 35 dias de acordar, dormir e enrolar
—, mas pelo relógio exterior haviam decorrido sessenta dias. O tempo
tinha voado.
Acidentalmente, Siffre fizera uma descoberta importante sobre a
biologia humana. Os cientistas já sabiam que plantas e animais têm uma
habilidade inata de perceber a passagem de um período de mais ou menos
24 horas — um ciclo, ou ritmo, circadiano. (A palavra vem da expressão
latina circa diem, “cerca de um dia”.) Em 1729, o astrônomo francês Jean-
Jacques d’Ortous de Mairan observou que uma planta heliotrópica, que
abre suas folhas no amanhecer e fecha quando escurece, continuava a ter
esse comportamento mesmo quando mantida num armário escuro; parecia
que essa percepção da ocorrência do dia e da noite era inata. Para se
camuflarem, caranguejos chama-marés mudam suas cores em horários
fixos no decorrer do dia, de cinzento a preto e a cinzento de novo, mesmo
na ausência da luz diurna. Moscas-das-frutas que não estão vendo a luz
saem de suas pupas religiosamente ao amanhecer, hora em que o ar está em
sua umidade máxima, numa adaptação que impede que as asas dessas
noviças sequem. Esse ritmo interno, circadiano, não coincide exatamente
com o ritmo externo da luz diurna e da escuridão; o ciclo diário do relógio
circadiano pode ser mais longo que 24 horas em alguns organismos, um
pouco mais curto em outros. Um heliotrópio mantido na escuridão por
demasiado tempo pode ficar depois dessincronizado com o ciclo natural do
dia; não é muito diferente de meu relógio de pulso, o qual, desconectado
dos sinais de rádio e satélite que disseminam o tempo mundial perfeito,
exige que eu o acerte diariamente.
Na década de 1950 já estava claro que os humanos também tinham um
relógio circadiano endógeno. Em 1963, Jürgen Aschoff, chefe do
departamento de Ritmos e Comportamentos Biológicos do que era então o
Instituto Max Planck para Fisiologia Comportamental, na Alemanha
Ocidental, converteu uma casamata à prova de som numa estação
experimental na qual os pacientes permaneciam durante semanas, sem
relógios mecânicos, enquanto sua fisiologia era monitorada. O experimento
de Siffre na Scarasson foi um dos primeiros a demonstrar que nosso ciclo
circadiano não tem a duração exata de 24 horas. O período em que Siffre
ficava acordado todo dia variava muito em sua duração, desde seis até
quarenta horas, mas na média ele se ajeitou num ciclo de sono-vigília que
tinha a duração de 24 horas e trinta minutos. Isso logo o fez ficar em
descompasso com o dia na superfície, e a experiência — a de um animal
preso, sozinho com uma ideia de sua vida — o perturbou. Ele tinha descido
com o objetivo de estudar o efeito de um extremo isolamento da psique
humana; emergiu como um involuntário pioneiro da cronobiologia humana
e, lembrou mais tarde, como “uma marionete meio amalucada e
desconjuntada”.
Um relógio é uma coisa que tiquetaqueia. O tique-taque pode ser quase tão
longo quanto é persistente e contínuo: as vibrações de átomos, um peso que
oscila, um planeta que gira em torno de seu eixo ou orbitando o Sol. Um
simples pedaço de carvão tiquetaqueia. O carvão é feito de átomos de
carbono, que normalmente têm seis prótons e seis nêutrons (no carbono-
12), embora um em 1 trilhão ou algo assim contenha seis prótons e oito
nêutrons (carbono-14). A proporção entre carbono-14 e carbono-12 é
razoavelmente constante em coisas vivas, mas se reduz quanto mais tempo
a coisa está morta, porque os átomos do carbono-14 gradualmente decaem
para nitrogênio-14. Isso acontece, em média, a cada 5700 anos. Tendo
conhecimento dessa taxa de decadência e da proporção entre carbono-14 e
carbono-12 em seu pedaço de carvão, você pode calcular a idade do carvão,
em dezenas de milhares de anos. O carvão, ou qualquer fóssil com carbono,
é um relógio que marca éons.
A questão de se um relógio — um planeta, um pêndulo, um átomo, uma
rocha — também conta os tique-taques é tema de um longo debate
filosófico. Um relógio de sol rastreia uma sombra que se move em torno de
seu mostrador; as horas são marcadas por números impressos. É o relógio
que conta os números, ou é você? O tempo existe independentemente de
quem o conta? “Se o tempo, caso a alma não existisse, existiria ou não, é
uma pergunta que pode ser razoavelmente feita”, meditava Aristóteles,
“porque se não houvesse alguém para contar, não poderia haver nada para
ser contado.” É como o koan sobre a árvore caída na floresta: o carvão será
um relógio se não houver um cientista para medir sua proporção entre C-14
e C-12? Agostinho foi peremptório: o tempo reside em sua medição, o que
o torna propriedade exclusiva da mente humana. Ouve-se um eco de
Agostinho no físico Richard Feynman, que salientou que a definição de
tempo no dicionário é circular: tempo é um período, e este é definido como
uma duração de tempo. Feynman acrescentou: “O que realmente interessa
de qualquer maneira não é como definimos o tempo, mas como o
medimos”.
No relógio circadiano, o que tiquetaqueia são conteúdos de células —
genes, proteínas — e o diálogo entre eles. Cada célula viva contém DNA, um
cordão de material genético estreitamente enrolado. Nos eucariotos, vasto
grupo de organismos que inclui todos os animais e plantas, o DNA é mantido
dentro da membrana de um núcleo de célula. Cada cordão de DNA é
constituído na verdade de dois cordões unidos no meio como se fosse por
um zíper, formando uma dupla-hélice. Os cordões, por sua vez, são feitos
de nucleotídeos, que formam genes de vários comprimentos. O DNA é
intensamente dinâmico. De maneira regular, ele abre o fecho para expor um
gene (ou alguns), faz uma cópia ativa e a envia para fora do núcleo, no
citoplasma da célula, onde diferentes tipos de proteína se constroem com
base no modelo recebido. Imagine uma arquiteta em atividade numa ilha
enviando uma planta para um fabricante no continente, que a usará para
construir diversos robôs.
A maioria dos genes envia códigos para proteínas que realizam
atividades em outro lugar da célula: elas se combinam para formar
moléculas, catalisam reações metabólicas, reparam danos internos. Mas os
genes do relógio circadiano — existem dois principais — são diferentes.
Estes codificam para um par de proteínas que se acumulam no citoplasma e
depois se infiltram de novo no núcleo, onde aderem aos ativadores dos
genes originais e os desativam. Resumindo, o “relógio” é pouco mais que
um par de genes que, posteriormente e mediante vários intermediários, se
desligam. Nossa arquiteta não está apenas enviando uma planta; ela está
enviando mensagens em garrafas, endereçadas a seu futuro eu.
Ulteriormente, quando garrafas suficientes se acumularam no mar, chegará
até ela a seguinte mensagem: “Tire uma soneca”.
Quando a arquiteta adormece e os genes do relógio estão em repouso,
cessa a produção de proteína. As proteínas existentes se degradam no
citoplasma e param de pressionar o núcleo e de desligar os genes,
liberando-os para dar ordens de novo. Se esse processo soa como circular,
parece ser o que a seleção natural estava propiciando. O notável não é o que
é produzido (que, em suma, não é nada físico) e sim o período de produção:
o ciclo, a partir do momento em que os genes do relógio são primeiramente
ativados, depois desligados, depois ligados de novo, leva, em média, 24
horas. Algo é produzido, afinal: não uma molécula, mas um intervalo. No
fundo, o relógio circadiano é uma conversa — entre o DNA de uma célula e
suas proteínas construtoras —, e isso leva cerca de um dia para se
desenrolar. Esse relógio endógeno vai tiquetaquear ao longo de seu ciclo
mesmo se seu portador — uma pessoa, um rato, uma mosca-da-fruta, uma
flor — for mantido no escuro durante dias sem fim. Mas como sua duração
não é exatamente igual à duração da luz do dia, ele vai cada vez mais sair
de sincronia com o dia solar; uma exposição regular à luz do sol acerta o
relógio circadiano e o mantém sincronizado. A luz do sol é o moderador da
conversa, intervindo diariamente para mantê-la sincronizada, mas sem
intervir a cada momento.
O mais notável é que o período desse relógio seja de cerca de 24 horas,
dado que a maioria das reações bioquímicas numa célula ocorre em apenas
frações de segundo. Na prática, o diálogo entre os genes do relógio no
núcleo e o das proteínas no citoplasma é mediado por uma rede de
moléculas adicionais, codificadas por seus próprios genes. É menos uma
conversa, talvez, do que um jogo maluco pelo telefone. Nossa arquiteta
envia uma mensagem para ela mesma, mas há intermediários no caminho
— empreiteiros, garotos de entrega, porteiros. Por fim, ela percebe que a
mensagem chegou: 24 horas!
Muito do que os cientistas sabem sobre o relógio circadiano é colhido
em estudos de animais. Na década de 1960, uma clássica série de
experimentos realizados por Seymour Benzer e Ronald Konopka revelou
que moscas-das-frutas ficam cada vez menos ativas segundo um ciclo
regular de 24 horas. Além disso, certas cepas de moscas demonstraram ter
um ritmo que era ligeiramente, às vezes drasticamente, mais longo ou mais
curto que o de 24 horas. Fazendo cruzamento de moscas e dando uma
mexida no DNA, os biólogos identificaram os genes envolvidos e revelaram
um modelo básico de como o relógio funciona. Um par de genes,
apelidados de per e tim (referindo-se a period [período] e timeless
[atemporal]), se codifica para a produção de um par de proteínas chamadas
PER e TIM. As duas proteínas se juntam para formar uma única molécula;
Era uma vez uma célula que entrou numa caverna e ficou lá durante muitos
dias e muitas noites. Era eu; era você. Ela foi, nos meses que antecederam
seu nascimento, Leo e Joshua, nossos fraternos filhos gêmeos.
Nós nascemos dentro do tempo ou é o tempo que nasce dentro de nós? A
resposta depende do que se entende por tempo, é claro, mas também de
qual é o significado de “nós” e quando esse nós tem início. Comece por
uma única célula: uma fábrica viva, semisselada, de reações e inter-reações
bioquímicas, cascatas de energia, trocas de íons, loops de retroalimentação
e as expressões rítmicas de genes. A soma total dessa atividade pode ser
medida como uma sutil elevação e queda, com o tempo, do potencial
elétrico das células. Uma célula se torna duas, 10 mil, depois um embrião
identificável. Em algum momento entre quarenta e sessenta dias depois da
concepção aparecem as células que se tornarão o núcleo supraquiasmático.
Elas surgem numa parte do cérebro que está nascendo, derivam dele e em
dezesseis semanas, na metade da gravidez, se instalaram no hipotálamo.
Nos babuínos, cujo desenvolvimento fetal é semelhante ao dos humanos, as
células do núcleo supraquiasmático começam a oscilar por si mesmas no
fim da gestação; a atividade metabólica das células fica mudando, entre
alta e baixa intensidade, durante um período de mais ou menos 24 horas.
Na ausência da luz do dia, apareceu algo com um ritmo próximo ao do dia.
As células ficaram circadianas.
Um feto humano apresenta sinais claros de atividade circadiana
organizada ainda no início da gestação — com cerca de vinte semanas, um
mês depois de o núcleo supraquiasmático se instalar em seu lugar. A
frequência cardíaca, o ritmo da respiração e a produção de certos esteroides
neurais variam todos, regularmente, num período de 24 horas. Mas o feto
não está à deriva num tempo endógeno, “correndo solto” como aquele
espeleólogo francês. Sua atividade circadiana ocorre em sincronia com o
ciclo luz-escuridão fora do útero, apesar de o feto estar no escuro e do fato
de que seu trato retino-hipotalâmico, o caminho através do qual a notícia da
luz do dia chega ao núcleo do relógio principal, ainda não se formou. Como
é que o dia entrou lá?
Por meio de sua mãe. Entre os nutrientes e substâncias que fluem através
da placenta há dois neuroquímicos — o neurotransmissor dopamina e o
hormônio melatonina — que desempenham um papel crítico na
sincronização do relógio principal do feto com a hora do dia exterior.
Receptores para esses neuroquímicos surgem no núcleo supraquiasmático
no início da formação da estrutura no útero. Com frequência, quando estou
deitado e acordado na noite escura, gosto de imaginar que a vida no útero
deve ser como aquilo, só que melhor — nenhum relógio tiquetaqueia lá,
nenhum pensamento sobre tique-taques sequer cintila, infiltrando-se; o feto
flutua num espaço que fica além do tempo, sem pressa e inocente. Mas
isso, claro, é uma ficção; um embrião está continuamente banhado e
infundido da hora correta do dia. Ele vive e cresce num tempo emprestado.
O que um feto ganha por ter um conhecimento em segunda mão do dia?
Uma possível vantagem, pensam os cientistas, vem nos primeiros dias fora
do útero. Mamíferos que vivem em tocas — toupeiras, camundongos,
esquilos terrestres — muitas vezes não ficam expostos diretamente à luz
diurna nos primeiros dias ou semanas depois de nascerem. Se as crias
recém-nascidas, quando por fim emergem na superfície, tivessem de passar
vários dias mais se adaptando aos ritmos da luz diurna, estariam
especialmente vulneráveis a predadores. Talvez para eles, e para os
humanos também, a experiência circadiana no útero propicie uma espécie
de salto inicial, um curso preparatório para a clara realidade.
Mas um relógio circadiano também é essencial para a organização do
meio ambiente interno. Um animal, mesmo em estado de embrião, é uma
montagem de relógios circadianos em miniatura — bilhões e bilhões deles,
em células, genes e órgãos em desenvolvimento, funcionando mais ou
menos 24 horas por dia nas tarefas que lhes são atribuídas. Sem um relógio
central — fornecido no útero pela mãe e posteriormente pelo núcleo
supraquiasmático da pessoa —, esses vários sistemas nem se
desenvolveriam adequadamente nem funcionariam coordenados entre si. Se
o estômago decidisse comer a determinada hora, mas as enzimas gástricas
só aparecessem uma hora depois, a digestão seria ineficiente. O relógio
materno provê o feto de uma organização essencial — “um estado de
ordem temporal interior”, como sustenta um artigo científico — até que o
relógio do indivíduo em questão assuma a tarefa. Ele também integra a
psicologia do embrião com a da mãe, facultando a que os dois comam,
digiram e metabolizem na mesma cadência. Afinal, até o momento do
nascimento, o feto é literalmente parte da mãe, mais um relógio periférico
a ser governado e ajustado.
O ritmo circadiano da mãe também pode funcionar como um despertador
para o feto. Pesquisadores descobriram que, para muitos mamíferos, o
início do trabalho de parto tem um componente circadiano. Por exemplo,
ratos parem tipicamente durante as horas diurnas — que para eles
equivalem ao tempo noturno — e no laboratório o início do trabalho de
parto pode ser mudado encurtando ou alongando a exposição da mãe à luz.
Entre as mulheres nos Estados Unidos, a maioria dos partos em casa ocorre
à noite, entre uma e cinco horas da manhã. (Em hospitais, no entanto, os
bebês nascem com mais frequência em dias úteis entre oito e nove da
manhã, possivelmente devido ao aumento no número de partos induzidos e
cesarianas, que são marcados em horas que permitam um cuidado
otimizado por parte da equipe.) Vários estudos com animais sugerem que o
feto também desempenha papel ativo na programação do parto. No último
dia de gestação, o relógio principal no cérebro do feto, que já está
sincronizado com o dia solar, desencadeia a cascata de sinais
neuroquímicos que culminam no nascimento. O jovem relógio, que estivera
no escuro e era periférico, anuncia sua independência e suscita sua própria
liberação no mundo.
Leo e Joshua nasceram seis semanas e meia mais cedo e com uma
diferença de quatro minutos, nas primeiras horas do dia 4 de julho. Recém-
nascidos são criaturas estranhas — chocados, chorosos e revestidos de
vérnix branco. Olhando em retrospecto, posso dizer com sinceridade que,
quando nossos meninos emergiram na sala de parto, o que vi eram duas
marionetes meio enlouquecidas, desconjuntadas. Não é de admirar. Durante
vários meses, até esse momento, eles tinham conhecido o tempo
intimamente; era um banho neuroquímico canalizado pela placenta. Agora
aqui estavam dois humanos novinhos procurando desesperadamente o
relógio de cabeceira — Que horas são? — sem esperança de encontrá-lo
logo.
É claro que seu novo relógio, o relógio universal, brilhava para eles em
forma de luz. (Obviamente, era luz de hospital às duas da manhã, mas em
poucas horas estariam expostos à luz de verdade.) Quando Michel Siffre
emergiu pela primeira vez do tempo endógeno na caverna para a luz do dia,
ele se beneficiou do fato de possuir um sistema circadiano maduro. Em
poucos dias depois de seu retorno à civilização, seu ciclo sono-vigília tinha
voltado a algo próximo ao normal e ele estava de novo sincronizado com
seus amigos, sua família e o mundo mais amplo. O recém-nascido, em
contraste, emerge com um relógio circadiano que ainda não é totalmente
operacional. Ele nasce sincronizado com sua mãe e depois, por algumas
semanas e em plena luz do dia, entra num caos temporal, arrastando sua
nova família com ele.
Isso explicaria muito do que aconteceu naquelas primeiras semanas, a
julgar pelo que me lembro delas. Todos nós dormíamos tão pouco e de
modo tão irregular que minha memória ativa se diluiu. Lembro-me de
assistir ao filme Operação França várias vezes, depois da meia-noite,
enquanto dava mamadeira para os dois infantes, mas nem mesmo agora eu
seria capaz de reconstituir o enredo; havia um homem barbado, uma caçada
no metrô, Gene Hackman num chapéu porkpie. À maneira de Siffre, eu mal
conseguia me lembrar o que tinha feito no dia anterior, ou há quanto tempo
o dia anterior acontecera, ou se o dia anterior já havia acabado. Todo esse
período estava confuso numa longa esticada de vigília e insônia. Quando,
depois de muitos meses, Susan e eu enfim readquirimos a capacidade de
refletir, vimo-nos dizendo “O tempo parou” e “O tempo voou”, e as duas
declarações eram igualmente verdadeiras.
Nos primeiros três meses de vida, ou algo assim, um bebê dorme dezesseis
ou dezessete horas por dia, mas não de modo regular e consolidado. Seus
períodos de repouso são distribuídos de modo bem equilibrado num
período de 24 horas: mais durante o dia que durante a noite, no início, e
depois da 12ª semana mais à noite que durante o dia. Esse padrão
desordenado é resultado de uma comunicação interna ruim. Embora um
bebê nasça com um relógio circadiano funcionando no hipotálamo, as vias
neurais e bioquímicas que transmitem o ritmo pelo cérebro e pelo corpo
ainda não estão conectadas. “O relógio está tiquetaqueando”, disse-me
Scott Rivkees, catedrático de pediatria na Faculdade de Medicina da
Universidade da Flórida. “Mas pode haver um desencontro entre o que
acontece no relógio e no resto do organismo.” É como se o Observatório
Naval dos Estados Unidos não fosse capaz de enviar seus sinais de tempo
para a rede de satélites GPS, ou como se o NIST, o Instituto Nacional de Padrões
e Tecnologia, deixasse de ligar seu canal de rádio que transmite
exclusivamente a hora; um cérebro de bebê percebe qual é a hora correta do
dia, mas não consegue disseminá-la de maneira adequada.
Algum tempo atrás, não muito, esse desacerto era tema de grande
interesse clínico. No fim da década de 1990, Rivkees ajudou a identificar o
trato retino-hipotalâmico, a via neural que conecta os olhos ao núcleo
supraquiasmático, em bebês prematuros e recém-nascidos. Descobriu
também que o canal é funcional na gestação avançada: ele reage à luz
mesmo em bebês que nasceram várias semanas antes do tempo.
A descoberta e suas implicações pegaram Rivkees de surpresa, ele me
disse. Bebês prematuros são mantidos em unidades de tratamento intensivo
neonatais até estarem fortes o bastante para ir para casa. Já em plena
década de 1990, a prática comum nessas unidades era sempre manter as
luzes apagadas; o útero é escuro, e assim deveria ser também o ambiente
para um bebê prematuro, dizia a lógica. Rivkees se perguntou se esse
raciocínio era sensato. Um bebê que nasce prematuramente perde no
mesmo instante o input circadiano de sua mãe — informação que é vital
para que os órgãos e sistemas fisiológicos recém-nascidos se desenvolvam
em sincronia uns com os outros. Mas o prematuro tem um trato retino-
hipotalâmico funcionando, assim, potencialmente ele poderia absorver por
si mesmo informação circadiana. Rivkees suspeitou que os hospitais, ao
tentar fazer a coisa certa, estavam privando os bebês de dados temporais
essenciais.
Ele e seus colegas conduziram um experimento. Um grupo de controle
de neonatos foi mantido num ambiente típico de Unidade de Tratamento
Intensivo Neonatal, constantemente pouco iluminado, durante duas
semanas antes de receberem alta do hospital. Um segundo grupo foi
exposto a um regime em ciclos: as luzes ficavam acesas das sete da manhã
às sete da noite e apagadas no restante do tempo. Os bebês dos dois grupos
foram para casa com monitores ativos em seus tornozelos, que gravavam
continuamente as menores mudanças na frequência cardíaca e na
respiração. Os dados revelaram que, depois da primeira semana em casa,
bebês de ambos os grupos tinham essencialmente os mesmos padrões de
sono. Mas os que tinham sido expostos aos ciclos de luz no hospital
estavam 20% a 30% mais ativos durante o dia do que à noite, e suas mães
ficavam mais envolvidas com eles; o grupo de controle não exibiu padrões
comparáveis durante mais seis ou oito semanas. A exposição à luz mais
cedo e uma noção de tempo adquirida mais cedo resultaram em mais do
que uma melhora na saúde; foram essenciais para a química que ajuda a
criar uma nova ligação familiar.
Graças em parte a essa pesquisa, as unidades neonatais agora
normalmente usam a iluminação cíclica. E os pediatras costumam
recomendar que se usem cortinas de blecaute apenas entre o escurecer e o
amanhecer, não durante o sono da tarde do bebê. Mas o mito do útero
desligado do tempo persiste entre muitos pais, disse Rivkees. Quando
enfermeiras pediátricas fazem visitas domiciliares, elas comumente
encontram recém-nascidos dormindo em quartos que são mantidos sempre
no escuro ou na penumbra. “Você pensava que as crianças estavam indo
para quartos claros e arejados em casa, mas muitas vezes o caso não era
este”, disse ele. Mesmo depois do parto a mãe continua a imprimir seu
ritmo circadiano ao bebê. O leite materno contém triptofano, uma molécula
que quando ingerida é sintetizada em melatonina, um neuroquímico que
induz ao sono. Naturalmente, o triptofano é produzido segundo o programa
do relógio circadiano da mãe; ele fica disponível no seio em certas horas do
dia mais que em outras. Amamentações em tempos regulares ajudam a
consolidar o ciclo de sono do bebê em sincronismo com o da mãe e
também com o dia natural, e vários estudos recentes sugerem que bebês
que são amamentados no seio adotam um regime sadio de sono mais cedo
do que bebês alimentados de modo artificial. Para os recém-nascidos, o dia
é algo a ser consumido tanto quanto a ser absorvido.
Sou acordado no escuro por um grito. É Leo, com fome. Que horas são? Eu
tateio procurando o relógio e o trago para perto dos olhos: 4h20. Hoje é 21
de junho, primeiro dia do verão, o dia com mais minutos de luz.
Evidentemente eu estarei acordado durante todos eles.
Com a ajuda de cerca de 20 mil células-relógios e alguns neurônios
especializados em suas retinas, Leo e Joshua metabolizaram a luz do dia de
quase todos os seus primeiros 365 dias. Agora, já faz algumas semanas,
eles dormem durante a noite, mas acordam penosamente cedo, ao primeiro
sussurro da madrugada, antes ainda dos pássaros. Nossos amigos alegam
que se os puséssemos para dormir um pouco mais tarde do que de costume,
eles acordariam um pouco mais tarde pela manhã. Mas temos lido sobre o
arrastamento circadiano e estamos confiando nossa sanidade à ciência.
A luz reajusta o relógio circadiano, mas não qualquer luz; não fosse
assim, o relógio circadiano se reajustaria a cada momento de luz diurna que
passasse. Na prática, os organismos são mais sensíveis à luz — mais
exatamente a mudanças na intensidade da luz — a cada início de seu dia.
Os relógios circadianos de animais noturnos, como morcegos, estão mais
sintonizados a mudanças na intensidade da luz à noite do que pela manhã,
enquanto os animais diurnos (inclusive crianças, depois de elas adquirirem
algo como um regime diurno) são mais sensíveis à lua ao amanhecer do
que ao entardecer. Assim, era de esperar que nossos filhos acordassem à
mesma hora, quer fossem para cama às seis ou às oito na noite anterior.
Nem bem eu discutira tudo isso de novo, mentalmente, com Susan (ela
agora também está acordada), os pássaros lá fora irromperam a cantar:
primeiro um único, gorjeador pintarroxo, depois um coro inteiro. A hora é
4h23. Susan se arrasta para alimentar Leo; em vinte minutos ele está
dormindo de novo, e Susan volta para a cama. Menos de um minuto depois,
Joshua acorda com um grasnido. Uma luz pálida se infiltra pelas persianas
da janela. O canto dos pássaros se tornou uma cacofonia, e achamos que
isso está fazendo Joshua ficar acordado. Cientistas que estudam ritmos
circadianos empregam o termo zeitgeber — do alemão Zeit (tempo) e
Geber (aquele que dá) — para caracterizar um evento que reajusta o relógio
biológico. O mais forte e mais comum zeitgeber é a luz diurna. Privados
desse input por bastante tempo, os humanos vão encontrar outras deixas
para inconscientemente ajustar a elas seus ritmos circadianos: um
despertador, o toque de um sino, até mesmo contatos sociais simples, mas
regulares. A luz diurna é um zeitgeber para o pintarroxo, o pintarroxo é um
zeitgeber para a criança, a criança é um zeitgeber para o homem.
“Quieto, pássaro”, sussurra Susan.
Está ficando claro para nós dois que a paternidade será uma gradual
porém implacável série de concessões. Primeiro, dissemos a nós mesmos
que não éramos na verdade pais novatos, e sim gerentes de uma startup.
Segundo essa narrativa, nossa vida era exatamente a mesma de antes,
exceto quanto ao acréscimo de dois encantadores, conquanto ineficientes,
empregados. Nossa tarefa era impor a eles um horário — comer a tal ou tal
hora, dormir da hora X até a hora Y — que se adequasse com perfeição ao
horário de nossos antigos “eus” adultos sem filhos. Mas nossa startup, cada
vez mais, parecia ser de propriedade de seus supostos empregados, e
operada por eles.
Fiquei militantemente agregado à soneca diurna dos garotos, um período
de duas ou três horas em que meu antigo eu poderia se reafirmar e fazer as
coisas do antigo eu, como escrever ou dormir, como se esse ainda fosse
meu eu atual. Mas isso era uma ficção também. Eu acomodava os dois
garotos em seus berços e me esgueirava de lá; eles tinham se acalmado,
mas logo um deles começaria a tagarelar e a me chamar. Quando eu me
recusava a ir vê-lo, ele começava a balbuciar e a dar pulinhos, mesmo com
seu irmão dormindo profundamente a apenas alguns metros. Isso me
deixava numa agitação além do comum. Era uma afronta à minha nova
paternal ditadura e corroía meu senso de independência. “Esta é a minha
hora”, tentei dizer a ele.
Eu falei macio com ele, adulei, repreendi. Isso só fez excitá-lo, o que
aprofundou meu ressentimento. Sem se assustar com minha repreensão, ele
parecia estar se divertindo ao me alfinetar com suas travessuras; de repente
me dei conta de que eu me tornara o Sistema e agora o menino estava me
afrontando. Depois eu entendi: ele não queria afrontar o Sistema, ele só
queria que o Sistema brincasse com ele. Eu me rendi. Desisti da ilusão de
que era um dia útil, e nós dois passamos o período da soneca dele
acordados, brincando juntos de afrontar o Sistema. Certa tarde ele apontou
para o relógio na parede do quarto; seu tique-taque o estava mantendo
acordado, e ele queria olhar mais de perto. Tirei o relógio da parede e o
trouxe até ele, mostrei-lhe a caixa de plástico atrás do objeto, onde ficavam
a bateria e o mecanismo. Depois o desvirei, e juntos, perplexos, olhamos o
ponteiro dos segundos dar a volta no mostrador.
Quando olho para o meu relógio vejo números, mas a cada dia que passava
em Toolik os números tinham cada vez menos significado. Mesmo a
expressão “cada dia que passa” perdeu seu sentido. Eu simplesmente habito
um longo dia no qual às vezes tiro uma soneca e, ao acordar, fico surpreso
ao constatar que, segundo os números de meu relógio, eu dormi várias
horas. O sono deixou de ser aquilo que separa um dia do dia seguinte, e
começou a parecer algo opcional. Descobri que passo mais tempo na cabine
telefônica da estação, amarrado à minha casa por uma linha T1.
Sonho cada vez mais com o tempo. Sonho que meus filhos quebraram
meu relógio e espalharam seus fragmentos pelo chão. Sonho que estou
andando e atravessando dunas de areia quando subitamente caio no fundo
de um desfiladeiro e não consigo escalar e sair; meus amigos não sabem
onde fui parar e não conseguem me ouvir gritar por eles. Assim, vou me
aprofundando no desfiladeiro sob o peso monumental das dunas, a luz
diurna retrocedendo atrás de mim, sabendo que a qualquer momento o teto
vai desabar silenciosamente e me soterrar na areia.
O sonho quase com certeza deriva de minha vida quando em vigília, de
um livro que li na biblioteca lá em casa, sobre um montanhista que cai
numa fenda e quebra a perna. Incapaz de sair, ele se arrasta mais além, na
escuridão e no coração da montanha. Ele se sustenta lambendo a umidade
do musgo até, milagrosamente, encontrar uma saída que leva a uma saída, e
à encosta banhada de sol. Mas o acampamento está a quilômetros de
distância. Assim, continua a rastejar; atravessa um impossível labirinto de
pontes de gelo naturais, descendo por uma vala coberta de pedregulhos,
contornando a margem rochosa de um lago. O que o impulsiona, ele
escreve, é seu relógio. Ele ergue a cabeça da neve, marca um ponto de
referência cem ou duzentos metros à frente, olha para o relógio e diz a si
mesmo: “Você tem vinte minutos para chegar lá”, e continua a rastejar. Só
que a voz que ouve não é a sua — é uma voz incorpórea, alguma autoritária
Voz de Todo o Tempo que ecoa em sua cabeça e o empurra adiante. Perto do
fim, pouco antes de seus companheiros montanhistas o acharem estendido,
semiconsciente, perto do acampamento, ele fica acordado à noite sob um
campo de estrelas, desidratado, totalmente desorientado, certo de ter estado
lá durante séculos.
Num lugar como Toolik é fácil confundir a quietude e a imobilidade com
a ausência do tempo. Mas o tempo tem sempre estado lá, no deslizar das
nuvens, nos pequenos movimentos do zooplâncton, no congelamento e
descongelamento, ao longo de éons, da tundra. A mudança está vindo mais
rápida agora, e isso é preocupante. As temperaturas médias têm subido
constantemente em Toolik e em todo o Ártico. Tempestades com trovões e
relâmpagos, coisa rara na Encosta Norte trinta anos atrás, são comuns. Os
cientistas suspeitam que o recuo do gelo no mar, no oceano Ártico, está
causando uma mudança nos padrões climáticos que faz a região ficar mais
seca e mais suscetível a relâmpagos. Em 2007 — até agora o ano mais
quente registrado na estação, e o mais seco de que se tem lembrança —
relâmpagos atingiram a tundra ao longo do rio Anaktuvuk, a pouco mais de
trinta quilômetros de Toolik; isso desencadeou um incêndio que ardeu
durante dez semanas e carbonizou quase mil quilômetros quadrados, área
com mais ou menos o tamanho de Cape Cod. Foi o maior incêndio de
tundra na história do Alasca, e possivelmente do globo. No verão em que
estive lá, os pesquisadores estavam atarefados tentando mapear o impacto.
Tendo-se perdido com isso a camada isolante de turfa, mais calor estava
penetrando no solo; em vários lugares, o permafrost tinha derretido
parcialmente, fazendo encostas deslizarem e escorrendo solo e nutrientes
para dentro dos riachos.
Certa manhã eu acompanhei Linda Deegan, uma bióloga marinha de
Woods Hole, enquanto ela vadeava o rio Kuparuk, que corre ao longo da
Encosta Norte, de Brooks Range a Prudohe Bay. Ela vinha a Toolik desde a
década de 1980 para estudar a truta do Ártico, que migra rio abaixo na
primavera e volta no fim do verão; é o único peixe nesse rio e é
fundamental na dieta de algumas aves e de trutas maiores do lago, ao longo
do caminho. Ao rastreá-las durante a estação e ao longo dos anos, Deegan
tinha tentado estabelecer uma medida de como a mudança no clima pode
alterar seu número e a natureza de sua migração — quando é, quão rápida
é, que distância atinge — e o impacto mais amplo dessas mudanças.
Assim como muitos animais migratórios, a truta é geneticamente
sintonizada com o sol. Nas regiões árticas na primavera, cada novo dia tem
oito ou dez minutos adicionais de luz diurna. O sistema circadiano do
animal registra o alongamento do período de luz, o qual desencadeia uma
cadeia de mudanças fisiológicas que preparam o peixe para sua jornada
corrente abaixo, para se reproduzir. Deegan se interessa pelos insetos com
que a truta conta para abastecer sua jornada; seu ciclo de vida não está
condicionado a mudanças na luz solar, mas à temperatura da água. Quando
a temperatura anual se eleva, os insetos podem desovar um pouco mais
cedo na estação, talvez antes que a truta, presa ao inexorável horário da luz,
possa chegar para se beneficiar totalmente de sua presença. Dois ciclos de
vida, um conduzido pela temperatura e o outro pela luz, correm o risco de
se desconectar. Deegan não quantificou isso, e o fenômeno não foi estudado
em detalhes no Ártico. “É só uma percepção que eu tenho”, disse ela.
Os cientistas estão, por toda parte, documentando uma lacuna crescente
entre o mundo da temperatura e o mundo do tempo. Em resposta ao
aquecimento da primavera, algumas aves migratórias estão chegando ao
Ártico e começando sua temporada de reprodução até duas semanas mais
cedo do que em anos anteriores, deixando os que chegam mais tarde numa
nova desvantagem; e a distância coberta por outras aves está se estendendo
para o norte e chegando ao Ártico, onde competem por recursos com as
aves locais. Algumas espécies são adaptáveis; muitas das plantas em torno
de Walden Pond florescem agora mais cedo e em mais abundância do que
floresciam no tempo de Henry David Thoreau. Mas organismos cujo
comportamento sazonal é mais rigorosamente orientado por ciclos
circadianos são mais vulneráveis. O papa-moscas-preto passa seu inverno
na África Ocidental e voa na primavera rumo às florestas da Europa para se
reproduzir; a programação temporal de sua viagem, condicionada à
periodicidade da luz, varia pouco. Mas os filhotes se alimentam de larvas
que estão saindo do ovo na primavera mais cedo do que saíam vinte anos
atrás; quando o papa-moscas chega a algumas áreas, pouco sobrou para
seus filhotes comerem, e suas populações diminuíram 90%. É como se o
planeta, como um todo, estivesse começando a experimentar uma espécie
de jet lag. Algumas espécies farão a transição para um clima mais quente e
talvez até prosperem nele; vão migrar mais cedo, ou mais tarde, ou achar
outras coisas para comer. Outras espécies não, e isso será seu fim.
A ausência de tempo, ou algo parecido com isso, pode ser encontrada numa
caverna profunda ou no extremo norte, no meio da noite ou numa
infindável luz diurna. Mas é ainda mais fácil de acessar do que isso:
simplesmente viaje de avião; quanto mais longe, melhor.
Comece com a física: você está ao longo de muitos quilômetros no ar,
movendo-se com rapidez, e preso à gravidade, literalmente caindo. Uma
das consequências peculiares da teoria da relatividade especial de Einstein
é que o tempo avança mais devagar a bordo de um objeto que se move
muito rápido comparado com o tempo de um observador que está imóvel.
Experimentos comprovaram isso: descobriu-se que relógios atômicos a
bordo de aviões a jato tiquetaqueiam mais lentamente — uma questão de
nanossegundos em várias horas — do que relógios estacionários no solo.
(Dentro do avião, um segundo ainda tem exatamente a duração de um
segundo, com duração idêntica ao segundo anterior; apenas para
observadores num contexto que não se movimenta ele será mais lento.) O
efeito é pequeno, mas real. Em março de 2016, o astronauta Mike Kelly
retornou à Terra depois de passar 520 dias em órbita em torno do planeta a
uma velocidade de quase 29 mil quilômetros por hora. Nesse tempo, seu
irmão gêmeo em terra, Mark, que nascera primeiro, seis minutos antes
dele, tinha envelhecido cinco milissegundos adicionais.
Depois, temos os fusos horários: 24 no total, cada um com uma hora de
largura e espaçados mais ou menos regularmente ao longo das linhas de
longitude da Terra, a cada quinze graus. O tempo zero convencionado é
Greenwich, Inglaterra, onde fica o Observatório Real. Como a Terra é uma
esfera em rotação, o Sol não pode iluminá-la toda ao mesmo tempo, assim
as horas de luz diurna não podem ocorrer simultaneamente em toda parte;
são os fusos horários que permitem que “doze horas“ ou “meio-dia”
signifiquem a mesma coisa — a metade do dia, quando o sol está em seu
zênite — em quase toda parte do mundo, mesmo que ocorra em um só fuso
horário num determinado momento. Fusos horários começaram a ser
usados, aos poucos, no século XIX, como um meio de permitir que as
ferrovias coordenassem os horários em suas redes ferroviárias em
expansão. Em 1929, a maior parte do mundo tinha aderido ao esquema dos
fusos horários, embora alguns países hoje tenham suas zonas horárias
estabelecidas a cada meia hora, e até mesmo, no Nepal, em divisões de 45
minutos. Em 1949 a China, em sua grande extensão geográfica, adotou a
estratégia oposta e reduziu suas cinco zonas de tempo a uma única e grande
zona.
Na atualidade, com o tráfego aéreo, atravessamos zonas de tempo
regularmente. Nas sete horas que leva para viajar de Paris a Nova York,
pode-se apagar as seis horas de diferença entre os horários das duas
cidades. Os relógios são definitivamente locais; que horas são, depende de
onde você está. Se está num avião, movendo-se a alta velocidade, olhando
lá embaixo para uma interminável tela que é o oceano — seu “onde e
quando você está” mudam a cada momento. Meu relógio pode estar ainda
marcando a hora de Paris, cidade que está algumas horas atrás de mim, mas
cuja hora está agora a minha frente, enquanto o mapa informativo na
traseira da poltrona diante de mim me dá a hora em Nova York, cidade que
está a algumas horas de distância mas cuja hora local é anterior à minha.
Estou no meio disso, num indefinido — aparentemente eterno — período
de tempo.
Existe um tempo central em nosso voo, na cabine do supraquiasmático
comandante. O tempo universalmente coordenado dos muitos relógios
atômicos no mundo, peneirado e pesado de acordo com os algoritmos de
controle do Escritório Internacional de Pesos e Medidas em Paris, é
continuamente transmitido via satélite para os sistemas de orientação de
navios cargueiros em movimento, carros de aluguel e aviões. No entanto,
quanto aos relógios na cabine de passageiros, é cada um por si. Alguns
passageiros cochilam, outros comem. Alguns se dirigem à reunião que os
espera no final da tarde; outros se recuperam de seu esforço de manhã cedo
para pegar aquele voo. E outros ainda estão perdidos no tempo do filme que
está passando a bordo, num lugar distante e com final feliz. Viajando para
oeste, a uma constante luz diurna, desprovidos de referências de tempo
significantes, seguimos nossas próprias e descentralizadas horas.
Ainda não se compreende bem como o núcleo supraquiasmático do
cérebro dissemina seu tempo pelo corpo humano. Mas o processo leva
tempo — entre horas e dias. Se você é submetido a uma súbita mudança em
seu regime de luz e é obrigado a se ajustar a um novo horário — tipo de
coisa que acontece quando atravessa alguns fusos horários, ou mesmo
durante um ou dois dias se adaptando à mudança para um horário de verão
—, seus relógios periféricos não se ajustam imediatamente e todos ao
mesmo tempo. Seu corpo para de ser uma confederação de relógios
sincronizados e em vez disso se torna, temporariamente, uma conflagração
de estados temporais autônomos. Essa é a essência do jet lag. Quando meu
núcleo supraquiasmático pousa em Nova York, meu fígado pode ainda estar
no tempo de Nova Scotia, e meu pâncreas pode estar em algum lugar
sobrevoando a Islândia. Por alguns dias, meu sistema digestório pode não
estar funcionando, enquanto meu cérebro me orienta a ingerir alimento em
horas nas quais meus órgãos não estão completamente alinhados para
metabolizá-lo. (O corpo se recupera ao ritmo de cerca de um fuso horário
por dia.) O resultado disso é a gastrenterite, reclamação comum de quem
viaja longas distâncias e de pilotos de linhas aéreas. O jet lag não está em
sua cabeça; é um transtorno de todo o seu corpo dessincronizado.
A literatura científica se refere às vezes aos relógios periféricos de seu
corpo como relógios “escravos” submetidos a seu núcleo supraquiasmático.
Mas podem se comportar com autonomia, e nas circunstâncias certas são
capazes de sincronizar seus ritmos circadianos não com o relógio central do
ciclo natural da luz diurna, mas com ordens recebidas de outro lugar.
Constata-se que o alimento envia uma mensagem especialmente forte a
certos componentes do relógio corporal. Vários estudos na década passada
demonstraram que fazer as refeições em horas regulares pode mudar a fase
do relógio circadiano no fígado, fazendo com que ignore o horário baseado
na luz que é transmitido do cérebro e talvez até mesmo envie uma
mensagem própria de volta, lá para cima. A hora da refeição, não o tempo
solar, vai definir o dia do fígado. “Se você alimentar um rato de laboratório
no meio de seu ciclo de sono, ele logo vai aprender a acordar pouco antes”,
disse-me Chris Colwell, importante pesquisador circadiano da UCLA. “Eu digo
a meus alunos que, se o entregador de pizza começar a entregar em sua casa
todo dia às quatro da manhã, garanto que vocês vão começar a acordar às
três e meia.”
Então, um modo de minimizar o jet lag, sobretudo depois de um voo
longo, é evitar comer a bordo as refeições quando são entregues pelos
comissários. Seu protocolo exige que eles o alimentem a cada determinado
número de horas, tipicamente num horário definido pela hora no país do
qual você partiu. Em trânsito, sem as referências de luz normais, o fígado
vai dirigir o relógio circadiano, prendendo-o ainda mais ao fuso horário que
você está tentando deixar para trás. É melhor ajustar seu relógio
imediatamente à hora no fuso horário de seu destino e programar suas
refeições como se já tivesse chegado lá. “O conselho-padrão que damos a
pessoas que viajam”, diz Colwell, “é que se exponham o mais rapidamente
possível à luz natural, ao horário das refeições e às interações sociais.” Ele
também recomenda que se tome o café da manhã. “Se os humanos
funcionam de algum modo como os camundongos de laboratório”, diz ele,
“o desjejum é importante para manter esses sinais, e assim você não fica
confuso quando esses sinais de luz não estão presentes.”
A pesquisa de Colwell sugere que se exercitar regularmente pode ajudar
também a ativar o sistema circadiano. Em seu laboratório, descobri que o
núcleo supraquiasmático gera sinais mais fortes em camundongos aos quais
se permite que se exercitem numa roda giratória do que em camundongos
menos ativos; o maior efeito foi em camundongos que puderam se exercitar
somente no início de seu dia de vigília. Os maiores beneficiários foram
camundongos nos quais faltava uma determinada proteína-relógio; quando
se exercitavam no final de seu dia, o núcleo supraquiasmático demonstrava
uma reforçada capacidade de enviar seus sinais organizadores ao coração,
fígado e outros órgãos. Correr mais fazia seus relógios funcionarem
melhor. Ainda é cedo para saber se um exercício programado pode ajudar
os humanos na mesma medida. Mas a ideia é tentadora, diz Colwell, porque
a qualidade de nosso relógio central diminui com a idade. “Mal cheguei aos
cinquenta e estou com dificuldades para dormir a noite inteira”, diz ele. “E
estou ficando mais cansado ao longo do dia.” Mesmo os guardiães do
tempo envelhecem.
Age [Uma era de cristal], o viajante desperta mil anos depois (ele tem
quase certeza) caindo de um penhasco. Em The British Barbarians [Os
bárbaros britânicos], um antropólogo do século XXV chega de algum modo a
Surrey usando um “bem talhado terno de tweed cinzento”. A máquina do
tempo é incomum porque seu personagem mais atraente é o modo com que
se faz a viagem e, em certo sentido, o próprio tempo. O viajante não é um
agente passivo; ele escolhe seu destino no momento da partida. Nem
simplesmente chega lá: ele acelera a cada momento entre o agora e o
depois. Em suas mãos, o tempo tem uma escala e é fungível; o presente
especioso pode ser dilatado para abranger estações, vidas humanas, éons.
O presente percebido não é mais que isso — percebido. Ao alterar a
percepção, o viajante altera o tempo.
Wells estava firmemente fundamentado na teoria científica
contemporânea. Na universidade ele estudou biologia com T. H. Huxley, e
está claro que leu Princípios de psicologia, como quase todo mundo em seu
círculo. Em 1894, no Saturday Review, ele publicou uma crítica à
psicologia contemporânea que expunha uma sólida compreensão da
literatura na memória, da consciência, da percepção visual, da sugestão e
da ilusão. (Um erudito moderno, depois de dissecar a cronologia em A
máquina do tempo, cria uma atraente teoria de que a história no jantar do
viajante do tempo é na verdade um embuste que ele arma para seus
convidados — e que tinha sonhado com a história durante uma soneca
depois de uma excursão que fizera naquela tarde em sua bicicleta de três
rodas.) O capítulo de abertura de A máquina do tempo é na verdade um
breve curso sobre as noções então vigentes a respeito da percepção do
tempo. “Não existe diferença entre o tempo e qualquer uma das três
dimensões do espaço, exceto pelo fato de que é nossa consciência que se
movimenta ao longo dela”, diz o viajante do tempo a seus convidados, e
depois lança sua teoria do tempo como uma geometria quadridimensional,
teoria que se supõe que Wells tenha tirado de uma palestra feita em 1893,
na Sociedade Matemática de Nova York. “Você não pode escapar do
momento presente”, objeta um convidado a certa altura, ao que o viajante
no tempo responde: “Estamos sempre escapando do momento presente”.
Quando chega o momento de enviar um modelo da máquina do tempo em
sua viagem inaugural, é o psicólogo quem aciona o interruptor.
William James anotava assiduamente tudo o que lia, mas não há menção
de A máquina do tempo. Ele leu quase tudo o mais, desde Agostinho até
Tristram Shandy e O médico e o monstro. (“O homem é um mágico” ele
escreveu sobre Robert Louis Stevenson.) Em sua correspondência com
Wells, James elogiou seus livros Utopia e First and Last Things [Primeiras
e últimas coisas] e o comparou a Kipling e Tolstói; Wells assimilou a
filosofia pragmática de James e se referiu a ele como “meu amigo e meu
mestre”. Em 1899, segundo um relato, eles se cruzaram numa festa na casa
de Stephen Crane, onde houve também um jogo de pôquer tarde da noite. A
biografia de Richardson descreve uma ocasião, vários anos depois, em que
Wells foi buscar James na casa de seu irmão Henry, na Inglaterra. Henry
estava agitado; tinha surpreendido William em cima de uma escada
olhando por cima do muro do jardim, tentando ter um vislumbre do
romancista G. K. Chesterton, que estava hospedado numa pousada vizinha.
“Isso era, enfaticamente, o tipo de coisa que não se faz”, relembrou Wells.
Mas era o tipo de coisa que William fazia com frequência. Ele era
impulsivo, e deve ter ido para a escada sem um segundo de reflexão, como
se não tivesse tempo a perder. Ele subia uma escada dois ou três degraus de
cada vez. “Era um homem que estava o tempo todo com pressa”, disse-me
Richardson. Ele mencionou o livro autobiográfico de Henry James A Small
Boy and Others [Um pequeno menino e outros], que foi publicado em 1913,
três anos depois da morte de William, relativamente jovem, com 68 anos.
Henry escreveu que William “estava sempre num canto e fora de vista”, o
que para Henry tinha um sentido figurado (William era um ano mais
velho), mas que talvez também se aplicasse literalmente. “Ele era muito
vivaz o tempo todo, bem no limite disso — e bem no limite de um colapso
nervoso”, escreveu Richardson sobre William. “Não creio que ele achasse
que tinha muito tempo. E não tinha.”
Estou caindo, até aí eu sei. O céu, quando o vi da última vez, era uma
expansão incomparavelmente azul. Agora ele está crescendo e ficando um
pouco maior e mais distante à medida que caio e me afasto dele, para trás,
em direção à terra.
Sei também, pois fiz os cálculos antecipadamente, que uma queda de
trinta metros de altura — no meu caso, da atração Zero Gravity Thrill
Amusement Park’s Nothin’ but Net 100-foot Free Fall [Nada a não ser uma
rede e uma queda livre de trinta metros no Parque de Diversões e Aventura
Gravidade Zero], que é pouco mais do que uma estrutura de andaimes em
forma de torre e um par de redes num terreno poeirento em Dallas — dura
menos de três segundos. Não sei onde estou nesse intervalo, só sei que
minha queda começou e ainda não se completou.
Sempre se diz que o tempo passa mais devagar durante momentos de
trauma e estresse extremos. Um amigo se choca com a bicicleta e cai, e
anos depois relembra vividamente aqueles momentos dilatados: sua mão se
estende à frente para aparar a queda, um caminhão freia a alguns
centímetros de sua cabeça. O carro de um homem enguiça na linha de um
trem que se aproxima e, com uma clareza de raciocínio e de ação que o
deixa espantado, dá-se conta de que só tem tempo suficiente antes da
colisão para puxar sua filha para o banco da frente e protegê-la com seu
corpo. Pesquisadores voluntários que assistem a um estressante vídeo de
um assalto a banco relatam o acontecimento como se tivesse levado mais
tempo do que realmente levou. Paraquedistas novatos sobrestimam a
duração de seus primeiros saltos, mais ou menos proporcionalmente ao
nível de seu medo.
Aqui estou agora, caindo pelo presente, para ver se o tempo vai passar
mais devagar para mim também. Posso fazer mais coisas durante esse
presente dilatado — reagir mais rápido, perceber meu entorno com mais
detalhes? Como é que alguém mesmo começa a estudar uma coisa dessas?
Cientistas que tentam se atracar com essas questões sempre deparam com
um enigma: quando deveria ser estudado esse agora supostamente
expandido? Bem agora, no breve momento, talvez inacessível, de sua
ocorrência? Ou depois, quando fica difícil distinguir o que efetivamente
ocorreu, a partir de uma inconfiável memória do fato? Não se pode ir muito
longe no pensamento sobre o tempo sem tropeçar numa das questões mais
profundas da literatura: quanto dura o presente, e onde fica a mente humana
em relação a isso? Como diz o historiador da psicologia Edward G. Boring
(cujo texto é de fato bem atraente): “Em que momento num tempo alguém
percebe o tempo?”. Agostinho, é claro, tinha uma resposta: “Só podemos
esperar medi-lo quando ele está passando, porque uma vez tendo passado…
não existirá para ser medido”.
O que me traz ao agora, ou quando quer que estejamos. Alguns estudos
psicológicos concluíram que o que chamamos de “presente” está
enquadrado no piscar dos olhos, o que lhe daria uma duração de cerca de
três segundos. Duvido que meus próprios olhos sejam uma métrica
confiável. Eles podem estar piscando rapidamente; podem não estar
piscando de todo — quem é que nota esse tipo de coisa na maior parte do
tempo? O vento deve estar uivando em minhas orelhas enquanto estou
caindo, mas, se está, não consigo ouvi-lo. Em três segundos quase não dá
tempo de pensar em nada, e aquilo de que vou me lembrar depois pode ser
bem diferente do que estou percebendo agora. Por enquanto, tudo o que
tenho certeza de sentir é que estou caindo numa velocidade cada vez maior.
Quando David Eagleman tinha oito anos de idade, ele caiu de um telhado.
“Tenho uma clara lembrança disso”, ele me disse. “Tinha aquela manta
asfáltica pendurada na beira — eu não conhecia o termo ‘manta asfáltica’
na época — e eu pensei que era a beira, e pisei nela. Logo depois eu estava
caindo.”
Eaglement lembra claramente a sensação de que o tempo passava mais
devagar durante sua queda. “Eu tinha uma série de pensamentos que eram
imóveis e claros, como: ‘Será que eu tenho tempo para agarrar essa manta
asfáltica?’”, disse ele. “Mas eu de certo modo sabia que ela provavelmente
rasgaria. E então me dei conta de que talvez não tivesse tempo para
alcançá-la, de qualquer forma. Eu estava então indo em direção ao chão de
tijolos e vendo-o vir em minha direção.”
Eagleman teve sorte; ele ficou inconsciente por alguns momentos e saiu
de lá com um nariz quebrado. Mas ficou fascinado com a experiência do
tempo passando mais lentamente. “Durante toda a minha adolescência, e
como adulto jovem, li um bocado de física popular sobre tempo e
contração. O universo e o dr. Einstein, esse tipo de coisa. Achei isso
interessante, a ideia de que o tempo não é algo constante.”
Eagleman é um neurocientista em Stanford, onde estuda, entre outras
coisas, a percepção do tempo; foi indicado para o cargo recentemente, e
antes disso, durante muitos anos, trabalhou na Faculdade de Medicina
Baylor, em Houston. Pesquisadores que estudam o tempo assumem
diferentes especialidades. Alguns focam em relógios circadianos, os ritmos
biológicos em 24 horas que governam nossos dias. Outros estudam
“medição de tempo de intervalo”, a capacidade do cérebro de planejar,
estimar e tomar decisões quanto a intervalos de tempo que duram de mais
ou menos um segundo a vários minutos. Um grupo muito menor de
cientistas, inclusive Eagleman, estuda a base neural do tempo, em
milissegundos, ou milésimos de segundo. Aparentemente uma janela muito
tênue do tempo, os milissegundos na verdade governam muitas das
atividades humanas básicas, inclusive nossa capacidade de produzir e
compreender a fala, e sustentam nosso senso intuitivo de causalidade.
Entender o que são os instantes — e como o cérebro humano os percebe e
processa — é entender as unidades fundamentais da experiência humana.
Porém, enquanto o funcionamento do relógio circadiano foi acuradamente
descrito nas últimas duas décadas, os pesquisadores apenas começaram a se
perguntar como funciona o “medidor do tempo de intervalo” do cérebro,
qual é sua localização no cérebro, até mesmo se um modelo com um único
relógio se aplica ao caso. O relógio que mede milissegundos, se é que tal
coisa existe, é um enigma ainda maior, em parte porque as ferramentas da
neurociência só recentemente alcançaram precisão suficiente para
investigar a atividade de variação temporal nessa escala tão pequena.
Eagleman transborda de energia e de ideias que vão além das fronteiras
acadêmicas. Quando o encontrei pela primeira vez, ele tinha acabado de
publicar A soma de tudo e começado a fazer uma série de experimentos
aparentemente sem importância mas profundamente instigantes, inclusive
o que foi realizado no Zero Gravity Thrill Amusement Park’s Nothin’ but
Net 100-foot Free Fall, para explorar como o tempo parece passar mais
lentamente, e por quê. Desde então ele escreveu cinco livros e apresentou
uma série na televisão sobre o cérebro, foi tema de reportagens em revistas,
inclusive uma na The New Yorker, e fez uma palestra no TED que foi muito
popular. Mudou-se para a Bay Area de San Francisco, em parte para
desenvolver duas ideias empresariais: um colete para surdos que traduz
vibrações sonoras em sensações táteis, possibilitando a quem o usa
perceber sons, mais ou menos como o alfabeto Braille permite que uma
pessoa cega leia; e um aplicativo para smartphone e para tablet que,
mediante uma série de jogos cognitivos, ajuda a revelar se o usuário sofreu
uma concussão.
É o tipo de atividade e de atenção que pode suscitar ceticismo e ciúme
profissional, em especial de neurobiologistas, cuja pesquisa lida mais
diretamente com o wetware[2] do cérebro e nem sempre proporciona a
mesma arrebatadora clareza, ou excitação, que os cientistas cognitivos
podem criar. “Estou impressionado e entretido com o trabalho de David”,
disse-me um dos principais pesquisadores do tempo. Mas os colegas de
Eagleman também observam que seus estudos deixaram uma marca
autêntica nesse campo. Uma vez, quando o visitei em Baylor, ele tinha
convidado Warren Meck, um neurobiologista da Universidade Duke e a
autoridade na medição de tempo de intervalo, para dar uma palestra em seu
departamento. Meck, uma figura tranquila e intimidante com um sorriso
sarcástico, apresentou seu tema dizendo: “Eu sou a onda do passado; sou o
pai tempo. David é a onda do futuro”.
Eagleman cresceu em Albuquerque, Novo México, como David
Egelman, segundo filho de um psiquiatra e uma professora de biologia.
(Egelman se pronuncia “Iglman”, a mesma pronúncia de “Eagleman”, mas
tanta gente pronunciava errado — ou escrevia errado depois de ouvir sua
pronúncia correta — que ele depois mudou oficialmente a escrita.) Em
casa, conversas sobre o cérebro eram “parte da radiação de fundo”, ele
disse. Começou a faculdade na Universidade Rice com duas matérias,
literatura e física espacial. Deu-se bem, mas saiu depois do segundo ano,
entediado e desanimado. Estudou em Oxford durante um semestre, depois
viveu em Los Angeles por um ano, onde trabalhou para produtoras lendo
roteiros e planejando pródigas festas, as quais ele não tinha idade legal para
frequentar. Voltou para Rice para terminar sua graduação em literatura, mas
logo começou a passar seu tempo livre na biblioteca lendo tudo que
conseguia encontrar sobre cérebro.
No último ano ele se candidatou para a escola de cinema na UCLA. Um
amigo sugeriu que considerasse se tornar um neurocientista, apesar do fato
de ele nunca mais ter estudado biologia desde o ensino médio, e assim ele
se inscreveu para o programa de graduação em neurociência em Baylor.
Enfatizou que fizera o curso de graduação em matemática e física, e
apresentou um extenso trabalho que havia escrito com base em suas
leituras extracurriculares, e que resumia suas teorias pessoais sobre o
cérebro. (“Em retrospecto, é totalmente embaraçoso”, disse ele.) Como
plano B, ele pensou que poderia se tornar comissário de bordo, com a
premissa de que “voaria para diferentes países e escreveria romances”.
Foi semifinalista na UCLA, mas foi para a Baylor. Durante seu primeiro ano
na pós-graduação teve sonhos cheios de ansiedade, inclusive um no qual
seu orientador lhe dizia que a carta em que era aceito havia sido um erro, e
era dirigida na verdade a alguém chamado David Engleman. Mas se saiu
bem na pós-graduação e foi para o Instituto Salk, em San Diego, fazer sua
pesquisa de pós-doutorado. Não demorou muito para ser recrutado pela
Baylor, com um financiamento para tocar um pequeno laboratório, o
Laboratório de Percepção e Ação. Foi um dos vários laboratórios que se
alinhavam num longo corredor, dentro de um labirinto de corredores, com
espaço para diversos cubículos destinados a seus estudantes de pós-
graduação, uma mesa de reuniões, uma pequena cozinha e seu próprio
escritório interno. Quando perguntei, ele descreveu seu relacionamento
com o tempo como “misto”. Muitas vezes não cumpre prazos, ele diz,
escreve de pé e não gosta de cochilar. “Se eu acidentalmente adormeço por
35 minutos”, disse, “acordo e penso: ‘Nunca terei de volta esses 35
minutos’.”
Nós falamos sobre “tempo real”, porém mal sabemos o que é isso.
Programas de televisão que são alegadamente ao vivo inserem delays.
Conversas telefônicas mascaram a breve defasagem no tempo que se
manifesta quando os sinais das comunicações percorrem longas distâncias
até mesmo na velocidade da luz. Os relógios mais precisos do mundo só
conseguem concordar quanto a quando é o “agora” situando-o em alguma
data acordada no mês que vem.
O mesmo ocorre com o cérebro humano. Em qualquer dado
milissegundo, toda forma de informação — visual, sonora, tátil — chega
em velocidades diferentes e pede para ser processada na ordem temporal
correta. Bata com um dedo na mesa. Tecnicamente, como a luz é mais
rápida que o som, a visão da batida deveria se registrar alguns
milissegundos antes do som. Mas seu cérebro sincroniza os dois para que
pareçam ser simultâneos. A experiência [da defasagem] seria ainda mais
acentuada quando você vê alguém lhe falando da outra extremidade do
quarto; felizmente ela não é, pois então nossos dias se desenrolariam como
um filme que foi mal dublado. Mas se você vir quicando uma bola de
basquete, digamos, ou cortando lenha, a mais do que cerca de trinta metros
de distância, e se prestar atenção com cuidado, o som e a ação estarão
ligeiramente fora de sincronia. A essa distância, a defasagem entre visão e
som é ampla o bastante — cerca de oitenta milissegundos — para que o
cérebro não mais trate os dois inputs como simultâneos.
Esse fenômeno, conhecido como problema da ligação temporal, é um
enigma de longa data na ciência cognitiva. Como o cérebro rastreia os
tempos de chegada de diferentes segmentos de dados, e como os reintegra
para nos prover uma experiência unificada? Como ele sabe quais
propriedades e eventos estão juntos no tempo? Descartes alegou que a
informação sensorial converge na glândula pineal, que ele imaginou como
uma espécie de palco ou teatro para a consciência; quando estímulos
alcançam a glândula pineal, você toma consciência deles e direciona seu
corpo para responder. Pouca gente ainda leva a sério a ideia de um palco
central, mas seus fantasmas perduram, para o aborrecimento de filósofos
como Dennett. “O próprio cérebro é a sede, o lugar onde está o observador
definitivo”, escreveu Dennett. “Mas é um erro acreditar que o cérebro tem
alguma matriz mais profunda, algum santuário interior de chegada no qual
está a condição necessária ou suficiente para a experiência consciente.”
Eagleman observa que nosso cérebro é composto de muitas subregiões,
cada uma com sua própria arquitetura e às vezes sua própria história; é uma
colcha de retalhos, produto da evolução ao longo do tempo. A informação
de um único estímulo — as listras claras e escuras vislumbradas num tigre,
digamos — segue caminhos diferentes no cérebro e sofre diferentes
defasagens de tempo ao longo desses caminhos. A latência neural — o
tempo entre o momento em que ocorre o estímulo e aquele no qual um
neurônio responde a ele — varia muito, dependendo da região do cérebro e
de condições ambientais. O tipo de dados também importa: neurônios
acima do córtex visual, a principal unidade do cérebro para processar dados
visuais, respondem com mais rapidez e força a um lampejo brilhante do
que a um lampejo mais turvo. Imagine uma onda de cavaleiros saindo de
uma cidade e se espalhando, em busca de outros cavaleiros em outras
cidades para entregar uma mensagem. Alguns dos cavaleiros são mais
rápidos, outros mais lentos. O que começa com um único estímulo
rapidamente fica espalhado no tempo através do cérebro.
“Seu cérebro está tentando montar uma história do que acabou de
acontecer ali”, disse Eagleman. “O problema é que estamos sob o jugo
dessa máquina que faz a informação chegar em tempos diferentes.”
Pode-se supor facilmente que o que quer que atinja o córtex visual
primeiro será percebido primeiro. A latência neural serve às vezes de
explicação para o efeito flash-lag: talvez o cérebro processe um flash e um
objeto em movimento com velocidades diferentes, e no tempo em que o
flash viaja do olho para o tálamo e para o córtex visual, o anel já se moveu
para uma nova posição, assim você acaba vendo os dois em posições
diferentes. Segundo essa teoria, a decorrência de tempo no cérebro reflete
diretamente a decorrência de tempo no mundo. Mas, se fosse assim,
imagine as estranhas visões que você veria, diz Eagleman. Eis aí uma pilha
de caixas que só diferem em seu grau de claridade — escuro abaixo, claro
acima.
Agora a pilha começa a se mover rapidamente para cá e para lá através
da página. Se seu cérebro estivesse “online” — se percebesse a pilha
rigorosamente na ordem em que ele processa cada caixa —, as caixas claras
seriam registradas em sua consciência um pouco antes do momento em que
as escuras são registradas (porque um estímulo claro chega ao córtex visual
antes de um estímulo escuro), e assim ele parece estar um pouco à frente no
espaço físico. Como resultado, você veria uma pilha de caixas encurvada,
como se os objetos escuros estivessem defasados, para trás, assim:
Levei séculos para conseguir que a posvisão entrasse em minha cabeça. Por
vezes e mais vezes pensei que a explicara a mim mesmo para depois parar,
perplexo, por motivos que eu não conseguia identificar. Procurava
Eagleman, e ele me fazia percorrer tudo de novo desde o início, lenta e
animadamente. Por fim percebi a essência da coisa: se o cérebro está
esperando que chegue a informação mais lenta — se a posvisão é a maneira
de o cérebro obter a ordem correta dos eventos —, por que ainda a obtém
erroneamente no efeito do flash-lag? Se o cérebro está esperando para
determinar o que aconteceu agora mesmo, no momento do flash, por que
não está vendo o flash perfeitamente dentro do anel? Por que ouve ali uma
ilusão, afinal?
É onde as coisas ficam realmente estranhas, disse Eagleman. O
experimento do flash-lag apresenta ao cérebro do observador uma pergunta
que raramente se faz no decorrer da vida cotidiana: onde está o objeto que
se move agora mesmo? Onde está o anel no momento do flash? Acontece
que o cérebro opera sistemas separados para avaliar a posição de coisas
estacionárias e de objetos em movimento. Quando você se esgueira através
de uma multidão no aeroporto ou contempla gotas de chuva caindo, o
cérebro computa com vetores de movimento — basicamente, setas
matemáticas de movimento — e nunca para de perguntar onde uma
determinada pessoa ou gota de chuva está num determinado momento.
Quando um outfielder corre atrás de uma pop fly,[4] ele faz isso usando o
mesmo vetor de movimento que um morcego utiliza para capturar insetos,
ou um cão para agarrar um frisbee. Um sapo que tivesse de perguntar “onde
está a mosca agora mesmo, e agora, e agora?” ficaria faminto, e, pouco
tempo depois, seria extinto. Muitos animais, inclusive répteis, nem sequer
têm um sistema para localizar posições; eles veem apenas movimento. Se
você parar de se mover, eles não serão capazes de vê-lo.
“Você está sempre vivendo no passado”, disse Eagleman. “A questão
mais profunda é que, a maior parte daquilo que você vê, sua percepção
consciente, é computada com base numa necessidade de saber. Você não vê
tudo, só o que lhe é mais benéfico. É como quando você está dirigindo na
estrada: seu cérebro não está perguntando continuamente ‘onde está o carro
vermelho agora; onde está o carro azul agora?’. Em vez disso, ele está
perguntando: ‘Será que posso mudar de faixa agora? Faço isso no
cruzamento, antes que outro carro atravesse?’. É raro que você se importe
com a posição num determinado instante de um objeto em movimento — e
até que pergunte, você efetivamente não sabe. E, quando pergunta, sempre
entende errado.”
O efeito flash-lag expõe a lacuna que existe na dupla abordagem do
cérebro. Nos momentos que precedem o flash, você acompanha o vetor de
movimento do anel, e não pergunta em momento algum onde ele está agora
mesmo. O flash instiga a pergunta. Ele reconfigura os vetores de
movimento; o cérebro agora supõe que o movimento do anel começou com
o flash, tempo zero. Antes de responder à questão apresentada pelo flash —
onde está o anel agora mesmo, no tempo zero? —, o cérebro espera oitenta
milissegundos para reunir todos os dados visuais possíveis daquele
momento. Enquanto isso, o anel continua se movendo, e esse gotejo
adicional de informação mascara a interpretação do cérebro de onde o
movimento começou. Como resultado, a resposta a “onde está o anel agora
mesmo?” é distorcida — deslocada — ligeiramente na direção do
movimento do anel.
Eagleman concebeu um experimento para prová-lo. No cenário-padrão
do flash-lag, o observador vê um único anel, ou ponto, em movimento que
passa sobre um flash estacionário. Na variação de Eagleman, depois do
flash, o ponto vira dois pontos que se afastam do flash em ângulos de 45
graus. Se as latências neurais fossem as responsáveis pela ilusão do flash-
lag, você perceberia o ponto numa posição que ele efetivamente ocupava
quando seu sinal atingiu o córtex visual — ao longo de uma ou outra, ou
talvez nas duas trajetórias anguladas, ou talvez em ambas as hipóteses. Mas
não é isso que você percebe. Invariavelmente os observadores de Eagleman
percebiam o ponto a meio caminho entre as duas trajetórias, numa posição
que ele nunca ocupou de verdade. É como se os dois vetores de movimento
tivessem sido somados e daí se obtivesse uma média — e é isso, acha
Eagleman, que em essência acontece.
O fenômeno é chamado de viés de movimento, e é a chave para a
posvisão. Admite-se como um dado que a mente consciente percebe em
retrospecto: o agora mesmo já aconteceu. Por um breve período depois
daquele instante, o cérebro continua a processar dados (por exemplo, o
movimento do ponto depois do flash) quando começa a avaliar o que
aconteceu naquele instante. Onde estava o ponto no momento do flash? A
informação do movimento adicional distorce a análise final, resultando
numa ilusão: um ponto que se percebe, no momento do flash, numa posição
que nunca ocupou. De modo muito estranho, o modelo de Eagleman
apresenta um resultado quase idêntico ao que é oferecido pela hipótese da
previsão; em ambos os modelos, o ponto ilusório representa o melhor
palpite que o cérebro pode ter da posição em que o ponto provavelmente vai
aparecer. Exceto que na verdade essa avaliação é feita em retrospecto, não
antecipadamente — não é uma previsão, mas uma posvisão.
Considere novamente o presente. Pergunte a si mesmo: “O que está
acontecendo agora mesmo? Quanto mais restritamente você definir o
instante presente, mais certamente sua resposta será (a) depois do fato, e
(b) errada. Tão importante quanto, a resposta é incognoscível — inexistente
— até o momento em que você pergunta. Na posvisão, o cérebro,
retrospectivamente, estende uma janela de oitenta milissegundos em torno
de um evento para coletar toda a informação sobre o que ocorreu naquele
instante. Mas essa janela não fica permanentemente aberta, como um
obturador de uma câmera de filmagem. O tempo na mente não é um fluir
contínuo de quadros de oitenta milissegundos esperando para ser revisados.
De preferência, a janela de oitenta milissegundos é desencadeada pela
pergunta, que só raramente é feita em nossas atividades cotidianas. “Você
não tem um quadro desses enquanto não precisar de um”, disse Eagleman.
“Aí você vai e recolhe um.”
Durante milhares de anos, os filósofos debateram a natureza do tempo. É
um rio de fluxo contínuo ou uma fieira de momentos, como se fossem
pérolas? O presente é um quadro aberto que plana, estacionário, acima do
fluxo, ou é apenas um numa incessante série de agoras, um único
fotograma num rolo cheio deles? Qual é a hipótese correta? A do momento
em movimento ou a do momento discreto? A resposta de Eagleman é:
nenhum deles. Um evento ou instante não se apresenta ao cérebro a priori;
não está lá esperando ser percebido. Ao contrário, ele só passa a existir
depois que passou, já que o cérebro fez uma pausa para avaliá-lo e montá-
lo. O “agora” só existe depois — e só porque você parou para anunciá-lo.
Uma vez fui convidado para dar uma palestra na Itália, como parte de um
painel de debates. Fui escalado para falar por último, e assim passei a tarde
ouvindo meus colegas palestrantes, todos italianos falando italiano, língua
que não falo. Suas palavras redemoinhavam em volta de mim; de tempos
em tempos, quando parecia que algo engraçado ou perspicaz tinha sido
dito, eu assentia com a cabeça de modo apreciativo, como se tivesse
compreendido. Senti-me como Plutão, na extremidade escura do sistema
solar, observando o brilho de um Sol distante e pensando como seria muito
mais prazeroso viver entre os planetas interiores.
Depois do quarto ou quinto orador, notei um conjunto de fones de ouvido
na mesa à minha frente. Os eventos estavam sendo traduzidos
simultaneamente do italiano para o inglês, e vice-versa, cortesia de alguém
numa cabine de vidro que, de súbito, percebi num canto na parte de trás da
sala. A tradução ajudou um pouco; usando os fones eu podia entender que o
orador atual, um filósofo acadêmico, estava de algum modo ligando
Charles Darwin à física newtoniana. Ele estava divagando, ou eu não
conseguia entender, ou as duas coisas, e a tradução começou a falhar. Havia
longas pausas nas quais eu não ouvia a tradutora, uma jovem, esforçando-se
para dar sentido àquilo. Olhei em direção à cabine e vi dois vultos lá
dentro. Não demorou muito e a voz de mulher em meu fone deu lugar à de
um jovem, que traduziu do italiano para o inglês com mais rapidez e
articulação.
Quando finalmente chegou minha vez, duas ou três pessoas na plateia
puseram seus fones de ouvido, o que me deixou com uma sensação ruim
em relação a todos os outros. Desculpei-me por não falar italiano e depois
comecei minha fala, mas falava devagar, com a vaga noção de que isso
ajudaria o tradutor. Logo percebi meu erro: ao falar com a metade de minha
velocidade normal, eu estava efetivamente me dando metade do tempo para
cobrir minha fala de quarenta minutos. Tentei editar enquanto falava —
pulei exemplos, ignorei textos de transição, decepei seções inteiras de
pensamento. O resultado foi uma fala que para mim fazia cada vez menos
sentido enquanto eu me ouvia enunciá-la. O rosto das pessoas com fones de
ouvido estava tão inexpressivo quanto o das pessoas sem eles.
Em 1963, o psicólogo francês Paul Fraisse publicou Psychologie du
temps [Psicologia do tempo], uma revisão do século anterior de pesquisa do
tempo, e o primeiro livro a analisar o campo como um todo. Examinava
cada faceta da percepção do tempo, da ordem temporal à aparente duração
do presente subjetivo, o qual, depois de considerar os numerosos estudos,
Fraisse definiu como “o tempo necessário para pronunciar uma sentença de
vinte a 25 sílabas” — talvez cinco segundos no máximo. Meu próprio
presente não poderia ser mais breve ou parecer mais longo. Fraisse alegava,
além disso, que muitos de nossos sentimentos quanto a nossas percepções
do tempo “têm sua origem na consciência da frustração causada pelo
tempo. O tempo ou impõe um delay na satisfação de nossos desejos atuais
ou nos obriga a prever o fim de nossa felicidade atual. O sentimento de
duração surge assim de uma comparação do que é com o que será”. O tédio,
em particular, é “o sentimento que resulta da não coincidência de duas
durações” — a duração na qual você está entalado e a duração que você
preferia habitar. É outra versão da “tensão do consciente” de Agostinho, e,
enquanto eu falava, estava bem consciente da tensão em meus entediados
ouvintes. Eu deveria estar me sentindo como o Sol, irradiando
conhecimento para a plateia. Mas eu ainda era Plutão, com os telescópios
dos planetas interiores apontados para mim e me perguntando o que fazer
com esse distante, estrangeiro, congelado objeto.
Naquela noite, num jantar para os palestrantes, conheci meu tradutor, que
se chamava Alphonse. Era um estudante graduado em linguística, fluente
em francês e português, assim como em inglês; alto e magro, cabelo escuro
e óculos redondos, fez-me pensar num Harry Potter italiano.
Concordamos em que o termo “tradução simultânea” é claramente um
oximoro. As regras da sintaxe e a ordem das palavras são diferentes nas
várias línguas, assim não se pode traduzir rigorosamente palavra por
palavra de uma língua para outra. O tradutor está sempre segurando uma
coisinha que ainda não passou ao ouvinte: ele ouve o que soa como uma
palavra-chave, ou uma expressão, e tem de manter isso em mente até que
pouco depois a sentença do orador dá a isso um sentido e lhe permite
começar a traduzir em voz alta, mesmo que o orador continue forjando
novas palavras e ideias. Se o tradutor esperar demais, no entanto, ele está se
arriscando a esquecer a expressão original ou perder o sentido do fluxo
verbal, que continua. “Simultâneo” implica uma atividade que ocorre
apenas no presente; na verdade é uma expressão contínua da memória,
apresentada de forma a parecer transparente.
O desafio é mais crítico quando a tradução é entre línguas que pertencem
a famílias diferentes, diz Alphonse; do alemão para o francês, digamos, é
mais difícil do que do italiano para o francês, ou do alemão para o latim.
Em alemão e em latim, o verbo tipicamente vai para o fim da sentença,
assim o tradutor muitas vezes tem de esperar para ouvir a conclusão da
sentença para que o início faça sentido o bastante para traduzir. Se está
traduzindo para o francês, caso em que o ouvinte está esperando um verbo
no início da sentença, o tradutor pode ou esperar esse tempo extra, ou
adivinhar aonde a sentença quer chegar.
Eu disse a Alphonse que frequentemente enfrento um problema
semelhante lidando apenas com o inglês. Durante muito tempo usei um
gravador de fita quando fazia entrevistas, para captar cada palavra. Mas o
que ganhei em exatidão, perdi em tempo: a transcrição de uma entrevista
de uma hora podia levar quatro horas, que poderiam resultar em uns poucos
insights ou citações. Tomar notas à mão dificilmente seria mais prático:
minha letra é terrível, pior quando estou com pressa. Às vezes, quando
estou ao telefone, consigo digitar no computador enquanto meu interlocutor
está falando; isso pelo menos deixa as coisas mais claras. Mas digito mais
lentamente do que a maioria das pessoas fala. É bem frequente eu repassar
minhas anotações e deparar com um fragmento sem sentido, como este:
Considere uma sentença que começa aqui, continua com mais algumas
palavras, vagueia em umas duas orações, e depois termina aqui. Levei
alguns segundos para compor essa sentença, e pode ter me levado vários
anos para eu me convencer a pô-la no papel. Mas você a lê em talvez dois
segundos — tão rápido que você quase não registra que a leu, ou que foi
preciso um tempo, qualquer tempo, para ler. Em certa medida, isso é o
presente.
Mas é claro que não é, em termos técnicos. Nessa extensão de tempo se
desenrola uma grande quantidade de atividade cognitiva, embora o cérebro
— ou a mente, nem sempre está claro qual deles — vai a grandes distâncias
para disfarçá-la do eu consciente de alguém. Enquanto você lê, e sem que
realmente perceba, seus olhos adejam pela página para antever as próximas
palavras ou para rever as que passaram. Estudos mostram que cerca de 30%
do tempo de sua leitura é usado para voltar a palavras que você já leu. Se
eliminar essas “regressões”, talvez usando um cartão para ir cobrindo as
linhas precedentes do texto, você pode aumentar substancialmente a
velocidade de sua leitura, se é que alguém acredita nas alegações feitas por
certos cursos de leitura dinâmica.
Em seu livro Mindworks: Time and Conscious Experience [Trabalhos da
mente: tempo e experiência consciente], o psicólogo alemão Ernst Pöppel
descreve um experimento que fez consigo mesmo para revelar como, na
verdade, a experiência da leitura é descontínua. Ele escolheu uma breve
passagem de um ensaio de Sigmund Freud sobre a mente inconsciente:
Münsterberg no cinema
Um dos “ideógrafos” do professor de Harvard, ou testes visuais de psicologia que apareceram na Paramount Pictographs, uma revista em forma de filme apresentada no Stanley. As letras
na mistura da esquerda são projetadas primeiro na tela. Vários segundos se passam. Se você for capaz de soletrá-la de novo formando a palavra Washington, você é dotado de aptidão
criativa.
Uma tarde entrei na picape de Eagleman e fomos para Dallas, para o Zero
Gravity Thrill Amusement Park [Parque de Diversões e Aventura
Gravidade Zero], uma viagem de quatro horas. Não passou muito tempo e
deixávamos para trás os subúrbios de Houston e entrávamos nas planícies
do Texas; áridas, marrons, vazias de tudo, a não ser paradas de ônibus e
restaurantes de fast-food. Em certo momento passamos por uma grande
placa de madeira onde se lia: “Perdido: o mapa é o meu livro”. Ou seria “o
livro é o meu mapa”? Passamos por ela a mais de 120 por hora.
O experimento de queda livre se tornou uma espécie de marca registrada
de Eagleman. A ideia é simples e direta: o voluntário é colocado numa
situação — nesse caso, uma queda livre controlada — assustadora o
bastante para fazer o tempo parecer passar mais devagar, e Eagleman tenta
medir o que “passar mais devagar” realmente significa. É uma
recapitulação de seu acidente na infância, mas também tem a ver com a
metáfora do filme: quando o tempo passa mais lentamente, quão ampla é
essa percepção? A essa altura eu tinha lido e ouvido muitos relatos pessoais
em que o tempo parava. Até mesmo minha mãe me contou uma história:
estava um dia dirigindo na estrada quando uma geladeira caiu de um
caminhão bem na frente dela e ela desviou, aparentemente em câmera
lenta, contornando-a. Mas nada disso jamais acontecera comigo. Por 32,99
dólares mais impostos, a queda livre no Zero Gravity parecia ser uma
maneira segura e fácil de ter acesso a essa experiência alegadamente
profunda e psicodélica, então me dispus a fazê-la.
A chave desse experimento era um dispositivo parecido com um relógio
de pulso que Eagleman havia projetado; ele o chamou de um “cronômetro
perceptual”. Tinha um grande mostrador digital, mas, em vez de mostrar o
tempo, ele mostrava um número e sua imagem em negativo, numa sucessão
rápida, assim:
Não me senti bem na viagem de volta para Houston. Meu pescoço doía do
pouso na rede, que não foi tão suave quanto eu tinha imaginado, e eu estava
com dor de cabeça. Estava com sede. Para ser franco, eu me sentia
esvaziado. Uma vez, anos atrás, fui fazer um salto de paraquedas. Lembro
vividamente o sentimento de puro terror quando nosso avião, muito
pequeno, foi subindo até 4 mil metros, um barco a motor no céu; a fé
necessária para se deixar rolar pela porta no ar vazio; e depois a inação da
queda, pois na velocidade terminal você não sente que está caindo. Achei a
experiência de Dallas semelhante: uma oportunidade pouco mais do que
efêmera para internalizar meu entorno, para ver o céu recuar. Agora já
passou, e restou tão pouco para lembrar.
Eagleman tinha me instruído a manter o olhar no cronômetro enquanto
caía e tentar distinguir o número em seu mostrador. Agora ele me
perguntou sobre isso.
“Ei, então, você viu o número?”
Eu não tinha visto. O clarão do sol ofuscara minha visão do mostrador,
ou talvez eu estivesse com o braço num ângulo errado. Eagleman já havia
feito o experimento com 23 voluntários — uma amostragem muito
pequena, ele admitiu prontamente. Em média, eles relataram que suas
quedas tiveram uma duração 36% maior do que a das quedas que tinham
presenciado. Mas nenhum deles fora capaz de ler o número no dispositivo
em seu pulso.
“As pessoas não são capazes de ver em câmera lenta o que você seria
capaz de fazer se a percepção visual fosse como a de uma câmera de
vídeo”, disse ele. “Se você retardasse o tempo em 36% — se estivesse
reduzindo em 36 a velocidade de filmagem de uma câmera —, facilmente
seria capaz de ler esse número do mostrador na velocidade em que o
apresentamos. Você pode distorcer a duração, mas não é o ‘tempo’ que fica
mais lento.”
Por que, então, minha própria queda pareceu durar mais do que aquela à
qual eu tinha assistido? Supus que a adrenalina estivesse envolvida, mas a
adrenalina funciona com relativa lentidão, observou Eagleman: primeiro o
sistema endócrino é notificado, o que o faz liberar hormônios que excitam
as glândulas suprarrenais para que liberem seus hormônios. Neurônios dos
olhos e dos ouvidos se conectam diretamente com a amígdala do cerebelo,
que pode então enviar mensagens para o resto de seu cérebro e de seu
corpo. A amígdala é um megafone, amplificando e retransmitindo os sinais
que chegam, para despertar atenção imediata; ela pode responder em um
décimo de segundo, mais rápida do que regiões superiores do cérebro,
como o córtex visual. Se você vir uma cobra ou mesmo uma forma que se
parece com uma, a amígdala faz soar o alarme, possibilitando que você
pule antes de se dar conta do que viu. E como a amígdala está conectada a
todas as partes do cérebro, isso pode atuar também como um sistema de
memória secundário, transmitindo memórias de uma forma
particularmente rica.
Um corpo em queda livre “está num modo de pânico total, indo contra
todo instinto darwiniano que você possui”, disse Eagleman. “Sua amígdala
está gritando.” Suas sensações desse evento, conquanto fugazes, passam
pela amígdala, onde ganham textura adicional ao ser pressionadas para
dentro da memória; é um pouco como gravar um vídeo em alta resolução
em vez da resolução-padrão. Em retrospecto, quando você está no solo
refletindo sobre a queda, essa riqueza adicional que é a memória cria a
impressão de que a queda durou mais do que realmente durou. Se essa
distorção de duração é útil — se de fato você pode reagir mais rápido ou
mais sensatamente —, é muito difícil dizer. “Há muitas coisas que o
experimento não pode afirmar ou descartar”, disse Eagleman. “Mas o que
pode descartar, pelo menos, é que o mundo inteiro fica mais lento, como
numa câmera de cinema. Até agora não temos evidência de que isso possa
acontecer.”
No começo
Adam tem dez meses de idade, um bebê robusto com grandes olhos
castanhos. Está sentado confortavelmente numa cadeira alta, num quarto
pequeno, escurecido, quase à prova de som, num laboratório de psicologia,
e está olhando alternadamente para dois monitores de computador
dispostos lado a lado sobre uma mesa diante dele. Em cada tela está
passando um vídeo. As duas mostram o rosto de uma mulher que olha
diretamente para Adam e fala devagar. É a mesma mulher nos dois vídeos,
com a mesma expressão sorridente, os olhos brilhantes, mas não há áudio,
só o movimento dos lábios.
De vez em quando, por segurança, Adam olha para sua mãe, sentada
tranquilamente ali perto. Entre os dois monitores há uma pequena câmera,
apontada para Adam, que transmite ao vivo um vídeo de seu rosto para um
monitor no lado de fora do quarto, onde dois assistentes e eu observamos os
olhos de Adam circulando e sua expressão mudar, ora envolvido, ora
desconfiado, ora entediado, e de novo curioso num intervalo de poucos
segundos. Atrás de nosso monitor há uma janela que permite ver numa só
direção, com visão direta de Adam em sua cadeira. O cenário é bem como o
de uma dessas casas malucas em parque de diversões: estamos observando
Adam pela janela enquanto ele observa os dois rostos em seus monitores, e
ao mesmo tempo vemos seu rosto aparecer em nosso monitor. De vez em
quando Adam olha diretamente para a câmera, e eu tenho uma breve,
estranha impressão de que ele está nos observando, ou sabe que o estamos
observando. Seu olhar logo se volta de novo para os dois rostos à sua
frente; ele espia, aponta, ergue as sobrancelhas. Na escassa luz, em seu
arnês com cinco pontos, Adam se parece um pouco com um piloto ou
astronauta olhando para o espaço à sua frente.
O laboratório é de David Lewkowicz, um psicólogo desenvolvimental da
Northeastern University. Nos últimos trinta anos, Lewkowicz tem
procurado entender como a mente incipiente se ordena e dá um sentido à
informação sensorial que flui desde o momento do nascimento e até mesmo
antes. Como o cérebro rastreia os tempos de chegada de diferentes pedaços
de dados, e como os integra para nos oferecer uma experiência unificada?
Como ele sabe quais propriedades e eventos estão juntos no tempo? O
poder e a sutileza dessa aptidão são evidentes nos dois vídeos diante de
Adam. Para um observador adulto, é óbvio que a mulher está dizendo
coisas diferentes em cada vídeo, mesmo não havendo áudio; o movimento
dos lábios nas duas telas não é o mesmo. Depois de alguns momentos
aparece o som, e a voz da mulher se torna audível. “Levante-se”, ela está
dizendo numa voz cantarolada. “Levante-se agora mesmo. Hoje teremos
aveia no desjejum! Depois teremos tempo para ficar de bobeira pela
casa…” O monólogo se encaixa com o rosto à esquerda; eu parei o áudio e
o vídeo de modo tão intuitivo — o som e o movimento dos lábios entram
em instantânea sincronia — que minha atenção se volta imediatamente
para o rosto que fala; a outra face poderia nem estar lá. Às vezes, em vez
desse, outro monólogo fica audível — “Você vai me ajudar a arrumar a
casa hoje?” — e eu imediatamente o conecto com a tela à direita. Algumas
experiências utilizam o rosto alegre e sorridente de uma mulher diferente, e
sua voz fala em espanhol. A aptidão de um adulto para detectar sincronia é
tão poderosa que, mesmo sem compreender a língua, sei a qual dos dois
pares de lábios em movimento pertencem as palavras.
Será que um bebê possui a mesma aptidão? Parecia improvável. Um
recém-nascido não escuta bem, não é capaz de se focar visualmente em
nada que esteja muito além de uns trinta centímetros, e sua experiência no
mundo é limitada. “O bebê, acossado por olhos, ouvidos, nariz, pele e
entranhas, ao mesmo tempo sente tudo isso como uma grande, crescente e
zumbidora confusão”, propôs William James em 1890. Pode ser. Mas
Lewkowicz descobriu que os bebês começam a perceber uma ordem
naquele remoinho surpreendentemente cedo. Ele realizou o experimento do
rosto que fala em centenas de bebês e infantes. Eles observam os dois
rostos lado a lado, os lábios se movendo em silêncio, durante um minuto.
Depois vem o áudio, e os pesquisadores olham a tela para ver se os olhos
dos bebês se demoram numa das faces que falam mais do que na outra.
Com notável consistência, crianças de até quatro meses demonstram
preferência pelo rosto que efetivamente coincide com a voz — apesar do
fato de que a criança nunca tinha visto o rosto antes, não compreendia as
palavras e pode nem estar familiarizada com a cadência da língua.
Em vez disso, argumenta Lewkowicz, o bebê faz corretamente a
correspondência pelos meios mais simples, associando os começos e as
paradas do fluxo de áudio com os começos e paradas do fluxo visual. Os
infantes percebem a sincronização, reconhecem quando as coisas
acontecem juntas no tempo. A ideia de cedo virá logo; a de posteriormente,
mais tarde. Mas primeiro, e desde uma tenra idade, os humanos distinguem
o agora do não agora, e essa distinção é suficientemente poderosa para dar
partida em nosso desenvolvimento sensorial. “Você legalmente é cego”, diz
Lewkowicz. “Sua audição quase não funciona. Ou tudo é uma grande,
crescente e zumbidora confusão, ou você dispõe de algum mecanismo
básico, primitivo, que faz você se erguer e funcionar. E esse mecanismo é a
sincronia.”
Às vezes, quando Matthew Matell dá uma palestra sobre sua pesquisa, ele
começa exibindo à audiência um slide com uma sentença impressa, que ele
lê em voz alta:
No entanto, a meio caminho, depois de dizer “pode ser difícil”, ele para
abruptamente e deixa passar vários segundos, o que fica cada vez mais
estranho. A plateia se remexe, incomodada — O que está acontecendo? Ele
tem medo de palco? —, até ele finalmente retomar a leitura. “Fiz isso
quando estava pleiteando minha posição aqui, em Villanova”, disse-me
Matell. “Depois disso, meu patrono veio me dizer que pensou que eu
tivesse ficado completamente paralisado, e isso o deixara muito ansioso.”
Mas a reação da plateia provou o que estava afirmando: estamos tão
firmemente sintonizados com a passagem do tempo de um momento para
outro que quase não pensamos nisso até que nossas expectativas sejam
frustradas. “Vocês não estavam avaliando meu intervalo de tempo”, ele
disse. “Mas, quando ele é interrompido, vocês subitamente tomam
consciência de que estavam avaliando o tempo todo.” Antes disso,
orientadores acadêmicos tentaram afastá-lo do estudo do tempo: por que
dar atenção a um tema tão esotérico? “Mas isso não é enxergar as árvores
em vez da floresta”, ele me disse. “A avaliação do tempo está tão embutida
em tudo o que fazemos que é impossível imaginar uma experiência sem
ela.”
Matell é um neurocientista comportamental da Universidade Villanova,
nos arredores de Filadélfia. Frequentemente, quando ele conta a alguém,
pela primeira vez, que sua pesquisa explora como percebemos o tempo, a
pessoa lhe faz as perguntas costumeiras: por que eu acordo todo dia à
mesma hora mesmo sem usar o despertador? Por que estou sempre tão
cansado no meio da tarde? Essas perguntas cabem a um biólogo circadiano.
Matell estuda a avaliação do tempo de intervalo, o mecanismo que governa
a aptidão do cérebro de planejar, avaliar e tomar decisões quanto a períodos
que duram entre mais ou menos um segundo e vários minutos.
Mas qual é a natureza desse mecanismo? Será que o cérebro tem um
medidor de tempo de intervalo central, análogo ao relógio-mestre
circadiano no núcleo supraquiasmático? Haverá uma rede distribuída de
relógios que atua segundo a tarefa que se apresenta? Durante trinta anos o
modelo marca-passo acumulador serviu como uma plataforma confiável
para experimentos em percepção do tempo; está claro que nossas
avaliações da duração de algo podem ser manipuladas tão fácil e
previsivelmente quanto nossas avaliações de luminosidade ou sonoridade.
Mas o modelo é e sempre foi um dispositivo heurístico, o tipo de relógio
que se desenha num guardanapo; onde, em nossa coleção de 1,3 quilograma
de neurônios, ele efetivamente se encontra? “Ele existe conceitualmente”,
disse-me Wearden a certa altura. “Existe matematicamente, como um
contexto para pesquisas de estimulação e pesquisas de explicação. Mas, se
existe ou não um mecanismo físico que realiza esse tipo de coisa, ainda
está por ser constatado.”
Para alguns psicólogos a resposta não interessa muito. No prefácio de
The Psychology of Time Perception, Wearden escreve que “nenhum dos
tópicos tratados neste livro estaria significativamente esclarecido de
alguma forma pela neurociência da avaliação do tempo em seu estado
atual, ao menos em minha opinião”. Neurocientistas pedem licença para
discordar. É sabido que pessoas que sofrem de certos distúrbios do mundo
real, inclusive doença de Parkinson, de Huntington, esquizofrenia e mesmo
autismo, têm dificuldade em tarefas que exigem avaliação do tempo. A
avaliação do tempo de intervalo tem claramente uma base biológica, e uma
melhor compreensão dela poderia lançar uma luz sobre essas deficiências,
ou pelo menos lançar mais luz sobre o funcionamento do cérebro humano.
Algo nos faz tiquetaquear — o que é? É isso que Matell, entre outros, quer
descobrir.
Em 1995, depois de sua graduação na Ohio State, Matell foi para Duke
trabalhar em seu doutorado. Estudou com o neurocientista cognitivo
Warren Meck, que tinha vindo da Columbia no ano anterior para tentar
entender a base neural da avaliação de um intervalo de tempo. Àquela
altura, Meck tinha compilado dois esclarecedores conjuntos de dados. Um,
derivado de estudos feitos com ratos e pessoas, revelava que a percepção
que se tem de duração pode ser acelerada ou retardada com a administração
de drogas que alteram o nível de dopamina no cérebro. O segundo era
focado em circuitos. Pesquisas com ratos mostravam que se uma parte do
cérebro chamada estriado dorsal era destruída ou removida, o animal perdia
a capacidade de realizar tarefas-padrão de avaliação de tempo. E havia
crescente evidência — com Chara Malapani, na Columbia, mas desde então
reforçada pelo trabalho de vários pesquisadores, inclusive Marjan
Jahanshai, neurocientista da University College, de Londres, e Deborah
Harrington, na U. C. San Diego — de que pacientes com a doença de
Parkinson, que apresentavam danos no estriado, também erravam
consistentemente na avaliação de intervalos de tempo. Pouco depois da
chegada de Matell, Meck lhe passou os dois conjuntos de dados.
“Ele me deu esses trabalhos e disse: ‘Sua tarefa é imaginar como tudo
isso funciona no cérebro’”, contou-me Matell. “Não creio que estava
pensando algo do tipo ‘Venha com a resposta’. Mas comecei a ler uma
porção de trabalhos de neurobiologia, e não de psicologia.”
Enquanto falava, Matell me mostrava o laboratório e a instalação para
seus ratos. Cada roedor ocupava uma câmara de plástico com mais ou
menos um pé cúbico. Cada câmara tinha um pequeno alto-falante que
tocava ocasionalmente um tom de áudio, uma passagem para introduzir
bolotas de comida e três orifícios nos quais o rato podia enfiar seu focinho.
“Orifícios funcionam melhor que alavancas, porque ratos gostam de meter
o nariz em alguma coisa”, disse Matell. Com essa configuração, ele era
capaz de treinar os ratos a aprender os intervalos de tempo que escolhia.
Por exemplo, se o rato metesse o nariz num orifício (ação que era detectada
por um feixe de luz infravermelha que passava por cada buraco), era
recompensado trinta segundos depois com uma bolota de comida. Se fosse
impaciente e tornasse a meter o nariz antes de se passarem os trinta
segundos, nada acontecia; assim, para o rato ter sucesso ele precisava fazer
as duas coisas, meter o nariz e esperar — e aprender quanto tempo esperar
antes de meter o nariz de novo. Em 2007, pesquisadores da Georgia State
University descobriram que chimpanzés eram melhores nessa espera de
trinta segundos para ganhar uma guloseima se conseguissem se distrair
nesse meio-tempo — com brinquedos ou folheando exemplares da National
Geographic e Enterainment Weekly que os pesquisadores lhes tinham dado.
Os ratos de Matell passavam o tempo se limpando e farejando em volta.
“Se fossem humanos, provavelmente pegariam seus celulares e surfariam
na internet”, disse Matell.
Quando os animais aprendem a avaliar um determinado intervalo, Matell
pode tentar perturbar esse conhecimento. Em alguns experimentos, ele
pode dar ao rato uma droga — talvez uma dose específica de anfetamina,
injetada com precisão micrométrica numa determinada parte do cérebro —
para ver como isso acelera ou retarda o timing do animal, e começar a
decifrar quais estruturas neurais estão envolvidas. Ou pode, seletivamente,
danificar ou destruir um determinado órgão dentro de seu cérebro, para
medir como o timing do animal se altera. O procedimento é delicado e
pode ser impreciso; geralmente o alvo é uma minúscula região no tronco
cerebral chamada substantia nigra pars compacta, cujo tamanho no rato é
de poucos milímetros. “Assim como nos humanos, cérebros de ratos não
são idênticos”, disse Matell. “Basicamente, você está atirando um pouco no
escuro.” Ele me mostrou um livro enorme chamado Atlas of Brain Maps
[Atlas de mapas do cérebro]. Cada página mostrava, sucessivamente, uma
fatia de um cérebro de rato na escala de milímetros. Parecia uma obra de
anatomia de uma couve-flor. Quando termina um experimento, disse
Matell, o animal passa por eutanásia e seu cérebro é removido e cortado em
fatias finas, e das fatias se fazem slides que são examinados e comparados
com as imagens no livro. “Assim, podemos dizer: ‘Estávamos visando a
essa estrutura — aonde chegamos?’.”
Outra maneira de estudar como um rato aprende a avaliar o tempo de
intervalos é implantar eletrodos em seu cérebro e registrar a atividade
neural quando o animal está realizando sua tarefa de avaliar o tempo. Esse
também é um trabalho delicado. Matell me mostrou o que parecia ser uma
espada fibrosa com 2,5 centímetros de comprimento: uma pequena
plataforma de metal, como um punho de espada, do qual saíam oito fios
curtos, cada um com um eletrodo na extremidade. Usando o atlas do
cérebro como guia, Matell, ou um estudante de pós-graduação, inseria
cuidadosamente os eletrodos no cérebro do rato; os fios eram conectados a
um cabo que saía pelo topo da câmara do experimento e para um
dispositivo de gravação, de modo que o rato é capaz de se mover em seu
compartimento relativamente sem empecilhos. Todo pico neural que ocorre
recebe um código para o tempo em que ocorreu e pode depois ser
comparado com as atividades do rato.
“É como pegar um microfone e pô-lo num recinto cheio de pessoas”,
disse Matell. “Essas pessoas são os neurônios. Você é capaz de ouvir coisas
diferentes. Neurônios têm vozes diferentes, dependendo do tamanho da
célula ou de sua distância até o eletrodo.”
Meck está disposto a avançar nesse campo. Entrou nele numa época em que
a simples noção de um relógio interno era um anátema para biólogos
comportamentais. O passo seguinte foi decifrar a fisiologia, num esforço
ainda em curso, porém a premissa subjacente — a de que existe algum tipo
de mecanismo, ou mecanismos, de timing a ser explorado — não está mais
em questão. “Estudamos o timing até a exclusão de tudo o mais”, disse-me
Meck, ao descrever a primeira geração de pesquisadores do tempo.
“Tentamos desmontar as tarefas de forma a que tudo que se olhasse fosse
timing.” A geração atual, acrescentou, “está olhando muito mais para o
mundo real. Ela não diria que o timing é tão especial — é apenas uma parte
do que o cérebro faz quando está aprendendo, ou participando de, ou
experimentando emoções”.
Catherine Jones, uma neuropsicóloga cognitiva da Universidade Cardiff,
concorda. “Meu entendimento do timing evoluiu muito”, disse ela.
“Quando entrei nisso, no fim da década de 1990, o problema já estava
configurado, a questão desse relógio interno localizado em algum lugar do
cérebro. Uma espécie de silo. A ideia se ampliou um pouco. Agora, quando
outras pessoas mencionam algo, eu penso: Oh, isso está relacionado com
timing — por exemplo, como coordenamos fala e gestos para sermos
melhores comunicadores.”
O primeiro posto de pesquisa de Jones foi no laboratório de Marjan
Jahanshai, na University College de Londres, estudando deficiências
motoras e de timing em pacientes com doença de Parkinson. Agora ela
estuda o autismo, e se pergunta se alguns dos comportamentos comuns a
esse distúrbio — movimentos repetitivos, dificuldade com interações
sociais, dificuldade para integrar inputs dos diversos sentidos — podem ser
considerados também como distúrbios no timing. Melissa Allman, jovem
neurocientista comportamental e cognitiva da Michigan State University
que colaborou com Meck e com John Wearden, está seguindo uma linha de
pesquisa semelhante. “Fiquei interessada em saber se esses
comportamentos seriam explicáveis se você pensar em alguém com
autismo como uma espécie de pessoa perdida no tempo”, disse-me ela.
Allman e Jones enfatizaram que essa linha de investigação é ainda nova e
especulativa; não existe uma teoria específica, nem mesmo um conjunto de
dificuldades temporais que se concordou estar associado ao autismo. Mas
um dia, elas disseram, talvez seja possível identificar alguma deficiência
no timing que se manifesta ainda na infância, e ela poderia servir como
teste de triagem para crianças que correm esse risco.
Annett Schirmer, psicóloga da Universidade Nacional de Singapura,
começou a estudar emoções e comunicação não verbal, mas foi atraída para
a pesquisa do timing depois de se casar com Trevor Penney, um dos ex-
alunos de pós-graduação de Meck. “Agora sou parte da máfia do timing”,
disse-me ela. Schirmer observou que a maior parte dos estudos sobre
ativação emocional e timing envolvia estímulos visuais; por exemplo, está
bem estabelecido que imagens de rostos com raiva parecem durar mais na
tela do que estímulos neutros de duração equivalente. Mas em seu próprio
trabalho ela descobriu que estímulos auditivos têm efeito oposto: a palavra
“ah”, como expressão de surpresa, parece, a quem a ouve, ter duração
menor do que um “ah” neutro. A razão disso não está clara, disse Schirmer,
embora sons e vozes introduzam variáveis adicionais, dinâmicas, inclusive
tempo, duração intrínseca, que estão ausentes em imagens estáticas. Seja
como for, a ideia de que a ativação distorce o timing acelerando o relógio
interno pode não ser muito clara.
“É um mecanismo viável”, disse Schirmer. “Mas provavelmente há
outros mecanismos que influenciam nossa percepção.” Um deles é a
atenção. Na literatura do timing, a atenção em geral é descrita como tendo
o efeito oposto do da ativação emocional. Rostos zangados parecem durar
mais do que neutros porque são ativadores, o que faz o relógio interno
acelerar, enquanto palavras tabu, quando vistas numa tela, parecem durar
menos do que as neutras porque elas chamam sua atenção; o cérebro se
distrai da contagem dos tiques, perde a pista de alguns e acaba
subavaliando intervalos. Mas pode ser difícil distinguir as duas categorias;
pelo visto, palavras como fuck [foda] e asshole [babaca] pareceriam, na
mesma medida, tanto ativar quanto chamar sua atenção.
“Aí está a complicação”, disse Schirmer. “Grande parte do modelo da
ativação pode ser interpretada como atenção. Talvez o arousal, ou a
ativação, seja atenção — é uma possibilidade. De um ponto de vista
funcional, os dois estão estreitamente ligados. De um ponto de vista
evolucionário, tudo o que é crucial para a sobrevivência geralmente captura
nossa atenção e é ativador de comportamento. Para que ele prevaleça,
precisa ocorrer no tempo certo, para que ajamos de acordo com isso e nos
lembremos disso.”
Aliás, a pesquisa do timing corre o risco de se espalhar e ficar rala
demais. “Penso que o tempo é uma paisagem grande demais para que
qualquer pesquisador seja capaz de cobri-la — não creio que seja possível”,
disse-me Jones. “Onde está a taxonomia do tempo?” A “taxonomia do
tempo” é o grito por socorro de um pesquisador do tempo — o desejo de
haver algum tipo de esquema todo abrangente que traga ordem e
consistência a um campo de estudo que está se esparramando. A expressão
tem aparecido na literatura com mais frequência, mais recentemente em
2016, num trabalho do qual Meck é coautor com Richard Ivry, psicólogo e
neurocientista da Universidade da Califórnia, em Berkeley. “Uma moderna
‘taxonomia do tempo’ é necessária”, eles escreveram. “Pesquisadores
oriundos de diversas disciplinas tendem a usar terminologias diferentes,
abordagens experimentais diferentes, e às vezes se concentram em questões
distintas dentro de um contexto específico. À medida que esse campo
amadurece, pode ser vantajoso achar uma linguagem comum para melhor
articular as questões que estão sendo colocadas.”
Uma linguagem comum. Vejo-me pensando novamente em meu encontro
com Felicitas Arias, diretora do Departamento do Tempo no Escritório
Internacional de Pesos e Medidas, nos arredores de Paris, quando ela me
mostrou o relógio mais preciso do mundo: uma penca de papéis
grampeados num canto — agora uma torrente de e-mails — que são
universalmente compartilhados. É assim que todos nós concordamos em
estar na mesma hora. Os pesquisadores do timing precisam de alguma coisa
semelhante, talvez um novo jornal, ou dois: Timing & Percepção do Tempo,
ou Timing & Notícias sobre Percepção do Tempo, ou um dos vários outros
que começaram a ser publicados. O que eles precisam é de uma versão
linguística de um relógio.
Quando falei de novo com John Wearden, tinham se passado alguns anos.
Ele estava, basicamente, aposentado, assim disse — porém um momento
depois acrescentou que havia achado a aposentadoria “bem maçante” e
começara a ensinar de novo. Tinha alguns estudos em andamento, mas,
sobretudo, estava ajudando colegas mais jovens nas pesquisas deles. Sua
mãe havia morrido, com 91 anos. Wearden viajara para o Egito e a Coreia
do Sul e comprara um “carro de aposentadoria”, um Porsche que fazia soar
um alarme se ele ultrapassasse os 130 quilômetros por hora.
Contudo, certos aspectos da percepção do tempo ainda o deixavam
exasperado, entre eles a antiga questão de por que o tempo parece passar
mais depressa quando se fica mais velho. De todos os enigmas relativos ao
tempo, esse pode ser o mais comum, mais íntimo e mais desorientador. Em
estudos — e têm havido vários —, 80% dos participantes disseram que o
tempo parecia passar mais rápido quando ficaram mais idosos. “O mesmo
lapso de tempo parece ser mais curto quando ficamos mais velhos — isto é,
os dias, os meses e os anos fazem isso”, escreveu William James, em
Princípios de psicologia. “É duvidoso que as horas façam isso, e os
minutos e segundos, de acordo com todas as aparências, continuam os
mesmos.” Mas o tempo realmente voa quando ficamos mais velhos? Como
sempre, a resposta depende muito de o que você entende por “tempo”.
“É uma questão muito complicada”, disse-me Wearden. “A que diabo
uma pessoa está se referindo quando diz que o tempo passa mais rápido?
Qual é a coisa certa a medir? Só porque alguém diz que acha que o tempo
está passando rápido, ou responde que sim quando você pergunta: o tempo
passa mais rápido quando você fica mais velho? — ‘Oh, sim,
definitivamente’ —, não quer dizer que tenha razão. Pessoas costumam
anuir a todo tipo de coisas. Essa é realmente uma questão não explorada. E
não começamos a usar os instrumentos corretos experimentalmente, ou em
termos de registrar o que acontece na vida real, para podermos lidar com o
assunto.”
Há pelo menos duas maneiras de expressar o enigma do tempo-e-idade.
O que se expressa com mais frequência é algo assim: um determinado
período de tempo parece passar mais rapidamente agora do que quando
você era mais jovem. Um ano, digamos, parece passar mais rápido quando
você tem quarenta anos do que quando tinha dez ou vinte. James citou Paul
Janet, um filósofo na Sorbonne: “Quem quer que conte muitos lustros em
sua memória só precisa perguntar a si mesmo para descobrir que o último
deles, os cinco anos recentes, passaram muito mais rápido do que os
períodos precedentes de mesma duração. Deixe alguém se lembrar dos
últimos oito ou dez anos de escola: parece que duraram um século.
Compare com eles os oito ou dez anos de vida mais recentes: parece que
duraram uma hora”.
Para explicar essa impressão, Janet propôs uma fórmula: a aparente
duração de um determinado período de tempo tem uma variação
inversamente proporcional à da idade. Um ano parece ser cinco vezes mais
curto para um homem de cinquenta anos do que para um menino de dez,
porque um ano corresponde a 1/50 da vida do homem e apenas um décimo
da vida do menino. A proposta de Janet suscitou uma série de explicações
semelhantes do motivo pelo qual o tempo parece acelerar com a idade;
poderiam ser chamadas de teorias da razão, ou proporção. Em 1975, Robert
Lemlich, professor aposentado de engenharia química da Universidade de
Cincinnati, acrescentou um detalhe à fórmula de Janet. (Lemlich talvez
fosse mais conhecido como um dos inventores de um processo industrial
chamado fracionamento de espuma, que usa um fluxo de espuma para
remover contaminantes de um líquido.) Lemlich sugeriu que a duração
subjetiva de um período de tempo é inversamente proporcional à raiz
quadrada de sua idade. Ele efetivamente escreveu a equação,
um cavaleiro a galope
um ladrão em fuga
um meio de transporte se movendo rapidamente
um trem em alta velocidade
um cata-vento
um monstro devorador
um pássaro em voo
uma nave espacial em voo
uma exuberante cachoeira
um carretel se enrolando
pés em marcha
uma grande roda girando
uma canção maçante
areia levada pelo vento
uma mulher idosa fiando
uma vela ardendo
uma fieira de contas
folhas brotando
um velho com um cajado
nuvens à deriva
uma escadaria em direção ao topo
uma vasta extensão de céu
uma estrada subindo uma colina
um tranquilo, imóvel oceano
a Rocha de Gibraltar
Existe outra explicação, mais simples, para o mistério de por que o tempo
parece passar mais rápido quando ficamos mais velhos: ele não parece. É
certo que o tempo não passa efetivamente mais rápido com a idade, é
apenas uma impressão. Mas alguns pesquisadores chegaram à ideia de que
a própria impressão é ilusória. O tempo só parece parecer passar mais
rápido quando envelhecemos.
À primeira vista, os muitos estudos anteriores parecem ser consistentes
em seus resultados: mais de dois terços dos participantes — entre 67% e
82% — relatam que o tempo pareceu passar mais lentamente quando eram
mais jovens. Mas, se é para aceitar essa impressão ao pé da letra, seria de
esperar que ela surgisse progressivamente com a idade. Se, em média, um
ano parece passar mais rápido quando se tem quarenta anos do que quando
se tem vinte, então as pesquisas deveriam descobrir que há mais pessoas de
quarenta anos do que de trinta dizendo que o tempo está passando mais
rápido que antes. Ou, pedindo aos dois grupos que caracterizem quão
rapidamente passou o ano anterior, os de quarenta anos diriam que passou
mais rápido do que diriam os do grupo de vinte anos. Seria visível algum
tipo de gradiente, com a impressão de que o tempo voa ficando mais
pronunciada entre os mais idosos.
Porém os números não demonstram isso. Consistentemente, essa
impressão também é compartilhada entre os grupos etários: dois terços das
pessoas mais idosas dizem que o tempo passa mais rápido agora do que
quando eram mais jovens — e o mesmo dizem dois terços dos mais jovens.
Em proporções iguais ao longo de todas as idades, as pessoas dizem que o
tempo acelerou com a idade. O resultado é um paradoxo: a maioria das
pessoas de qualquer idade tem a impressão de que o tempo passa mais
rapidamente com a idade, o que sugere que a impressão, se for mesmo isso,
pouco tem a ver com a idade.
Então, o que está acontecendo? Claramente, muitas pessoas estão
experimentando algo — mas o que é? Parte da confusão provém da
maneira pela qual esses estudos pedem aos participantes que pensem sobre
o tempo. De um jeito ou de outro, em todos os estudos faz-se uma pergunta
que não pode ser respondida de forma confiável: como você experimentou
a passagem do tempo dez, ou vinte, ou trinta anos atrás? Em vez disso, se
há algo a ser avaliado, é como a pessoa sente a passagem do tempo
exatamente agora. Aqui o terreno é um pouco mais firme. Em geral, a
impressão de que o tempo está passando mais rápido tem relação mais forte
com o estado psicológico da pessoa, em especial com quão atarefada ela
afirma que está, e não com sua idade. Como disse Simone de Beauvoir, “o
modo como experimentamos o fluir do tempo a cada dia depende do que
esse tempo contém”.
Em 1991, Steve Baum, um psicólogo do Centro Médico Sunnybrook, em
Toronto, e dois colegas examinaram mais de perto a questão de estar
atarefado em relação à percepção do tempo num grupo de idosos. Eles
entrevistaram trezentas pessoas de idade avançada, a maioria mulheres
judias aposentadas, entre 62 e 94 anos de idade; metade ainda era ativa, a
outra menos, e muitas pessoas deste último grupo viviam em instituições
ou instalações para idosos. Primeiro, fizeram-se aos participantes várias
perguntas que visavam a avaliar sua saúde emocional e sensação de
felicidade. Depois se perguntou: “Quão rapidamente o tempo parece passar
agora para você?”, com a instrução de responder com um 1 (“mais
rapidamente”), 2 (“mais ou menos a mesma coisa”) ou 3 (“mais
lentamente”). Não foi especificado que intervalo de tempo serviria para a
comparação — uma semana, um ano —, deixando vagos os termos
“rapidamente” e “lentamente”. (Mais rápido ou mais lento do quê, e
quando?) Mais uma vez os resultados foram compatíveis com os de outros
estudos: 60% dos participantes disseram que o tempo passava mais rápido
agora do que antes. Porém, além de tudo, os indivíduos que disseram isso
tendiam a ser mais ativos que seus colegas, levando o que eles descreveram
como uma vida cheia de propósito, e disseram que se sentiam mais jovens
do que sua idade cronológica. Treze por cento dos participantes
responderam que o tempo agora passava mais lentamente — e esses
indivíduos eram mais propensos que os outros a exibir sinais de depressão.
“O tempo não passa mais depressa quando envelhecemos”, concluíram os
pesquisadores. E, sim, escreveram, ele se acelera com o bem-estar
psicológico da pessoa.
A evidência mais forte contrária à noção de que com a idade o tempo
parece passar mais rápido vem de um trio de estudos realizados, a maior
parte, durante as duas últimas décadas. Em 2005, Marc Wittman e Sandra
Lehnhoff, da Universidade Ludwig Maximilian, de Munique, fizeram a
cerca de quinhentos participantes alemães e austríacos, entre catorze e 94
anos de idade, e divididos entre oito grupos etários, uma série de perguntas
do tipo:
Ultimamente a preocupação mais séria dos meninos tem a ver com meus
pais. Minha mãe tem oitenta e muitos anos e meu pai já passou dos
noventa, e eles vivem a várias horas de distância na casa em que eu cresci.
Eles são maravilhas da biologia humana, e mais a cada dia que passa.
Cuidam do jardim, cantam no coro de sua igreja, exercitam-se juntos toda
semana com um treinador no ginásio. Têm atividades: grupo de leitura,
clube de fotografia, palavras cruzadas, filmes. Ainda dirigem, o que me
preocupa. Tentamos visitá-los frequentemente com os meninos, mas não
com tanta frequência quanto gostaríamos.
Alguns verões atrás fui com meus pais e os meninos à feira estadual. É
uma excursão que eu fazia com meus pais quase todo ano quando era
pequeno. A feira dura vários dias, do fim de agosto até setembro, num
vasto terreno com pavilhões e estandes. Há competições de canto de galo, e
de tamanhos de úberes, exposições de flores, demonstrações de edredons,
uma exibição de borboletas, fileiras e mais fileiras de coelhos e pombos de
estimação, um sujeito barbado vendendo coisas de madeira, vendedores de
liquidificador e algodão-doce com gosto de bordo. E há a área de diversões
com brinquedos que deixam você enjoado e jogos de habilidade suspeitos.
E sempre tem a escultura de manteiga.
Pegamos um ônibus no Shoppingtown Mall para evitar o problema do
estacionamento. Meu pai começou a falar sobre a guerra. Ele foi convocado
em 1944 mas não tinha boa visão, assim não participava de combates, fato
ao qual meus irmãos e eu podemos dever tudo. Em vez disso, durante
vários meses depois do fim da guerra ele ficou alocado nos arredores de
Paris, num hospital militar, do qual era funcionário. Aos fins de semana,
ele e seus camaradas iam para a cidade, onde vendiam suas rações de
cigarro e compravam perfumes e meias para vender aos rapazes na base.
Enquanto isso, ele disse, estava estudando francês, que repassava
mentalmente. Às vezes estava entrando num ônibus ou ia a pé para algum
lugar, e uma expressão francesa pipocava subitamente em sua cabeça,
como se ele estivesse ensaiando para uma peça.
Nos últimos tempos, ele disse, tinha um novo monólogo interior, sobre
quão velho ele era e sobre os amigos que estavam indo embora. Morrendo,
ele queria dizer; meus pais perderam vários amigos próximos nos últimos
poucos anos. Ele mencionou a receita de colírio que está usando. Às vezes,
disse, ele pega o frasco e pensa no milagre que é um olho e no de que os
dois dele ainda conseguem funcionar. Às vezes ele tem esses pensamentos
quando está no banheiro, disse, e isso é interessante também — como tudo
entra e sai, atravessando e acrescentando à maquinaria viva que somos nós,
até que acaba.
Ele tem um sonho recorrente no qual é um menino no banco dianteiro de
um carro que seu pai está dirigindo. Numa versão, eles estão descendo das
montanhas para uma planície, e ele é capaz de ver que lá adiante na estrada
ela se ramifica em várias, espraiando-se em todas as direções, e ele começa
a se preocupar com qual é a correta, e para onde ele pode estar indo.
Não é verão, ou o fim do verão, até que eu tenha ido à praia. Não me refiro
a uma praia de lago, onde as ondas se espreguiçam, pisa-se em sujeira e
podemos ver os juncos que crescem no fundo. Eu preciso de uma praia
honesta de oceano, com dunas de areia branca e uma brisa marinha que
agita a bandeira do salva-vidas, onde seu cabelo fica salgado só de estar ali
sentado quando a onda estoura espirrando espuma e o faz lembrar que não
existe nada a não ser mar entre você e a Normandia.
Durante muito tempo nossos garotos ficavam fascinados e assustados
com esse tipo de praia, como é natural, mas eu sabia que o verão tinha
chegado num sentido eterno no ano em que eles começaram a gostar
daquilo. Tinham cinco anos. Era o fim de semana do Labor Day, essa
radiante diapausa entre langor e arregimentação, quando os dias se alongam
e sugerem algo eterno. Um furacão tinha vindo e ido embora, deixando sol
e espuma. Os meninos passaram o início da tarde aprendendo como furar a
onda daquele jeito que deixa água do mar escorrendo de seu nariz. Depois a
maré começou a recuar, e chegou o momento de construir castelos de areia.
Aí está o prazer humano em sua essência: encher a mão de areia, revirá-
la para baixo e chamar isso de arquitetura. Achamos um lugar no ponto
mais recuado da linha da maré que fosse sustentável. Era uma propriedade
imobiliária de primeira, uma planície de inundação, plana, com areia
perfeitamente úmida, mas também exposta; nossa obra seria a primeira a
desabar quando a maré voltasse. Em apenas alguns minutos um dos garotos
tinha criado um povoado feito de montinhos de areia protegidos por uma
muralha baixa e curva. Eu cavei um fosso na frente, para retardar as
primeiras ondas, quando quer que chegassem, e construí um quebra-mar à
sua frente. Ele olhou com alegre espanto. “Nunca tivemos tanto tempo
assim!”, exclamou. Queria dizer, acho, que ele nunca tinha estado tão perto
das grandes ondas — a maré ainda recuava — e ainda assim não se sentia
ameaçado ou afobado. Notei que havia pais mais jovens na praia, mais para
cima. “Olhe nossa cidadezinha”, disse ele, cheio de orgulho. E disse de
novo: “Nunca tivemos tanto tempo assim!”.
Nietzsche afirmou — na verdade, o psicanalista Stephen Mitchell
afirmou que Nietzsche afirmou — que se pode avaliar o relacionamento de
um homem com o tempo pelo modo com que constrói um castelo de areia.
O primeiro homem vai proceder com hesitação, absorto na arte, mas
enquanto isso preocupado com o inevitável retorno das ondas e chocado
com sua perda quando ela finalmente chegar. Um segundo homem nem
começará a construir: por que se dar ao trabalho se a maré vai destruí-lo? O
terceiro — o paradigma da masculinidade, na opinião de Nietzsche —
abraça o inevitável e se joga no trabalho sem levar isso em conta, alegre
mas não desatento.
Gostaria de pensar que pertenço à terceira categoria, mas com sorte
estarei na primeira. Notei que meu outro filho, contrariando meu gentil
conselho, tinha começado seu projeto de construção — um monte pequeno
e esculpido — em frente ao quebra-mar e à muralha de proteção da cidade.
A primeira onda que veio reduziu-o a um calombo molhado, e ele, às
lágrimas. Começou uma segunda ermida, que logo desabou, despois mais
uma. Nietzsche deveria ter uma quarta categoria para ele, pensei — o
homem que está um pouco isolado mas ferrenhamente ligado. Àquela
altura a maré tinha retornado com vigor e as primeiras ondas rasas subiram
pela praia. Ele foi a primeira vítima: depois as ondas varreram meu quebra-
mar e meu fosso e fustigaram a muralha da cidade; depois se encresparam
atrás da muralha e inundaram as ruas. Meu outro filho estava atrás da
muralha, de frente para a maré, os braços estendidos, o sorriso de muitas
eras em seu rosto.
“O fim está aqui! O fim está aqui!”
Ele era um gigante. Nunca parecera estar tão feliz, e eu o invejei.
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Fábio Prata e Flávia Nalon
tratamento de imagens
Carlos Mesquita
preparação
Silvia Massimini Felix
índice onomástico (edição impressa)
João Gabriel Domingos de Oliveira
revisão
Valquíria Della Pozza
Huendel Viana
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
——
Burdick, Alan (1965-)
Por que o tempo voa: Uma investigação sobretudo científica: Alan Burdick
Título original: Why Time Flies: A Mostly Scientific Investigation
Tradução: Paulo Geiger
São Paulo: Todavia, 1ª ed., 2020
400 páginas
ISBN 978-65-80309-90-0
529
CDD
——
Índices para catálogo sistemático:
1. Ciências naturais: Cronologia 529
todavia
Rua Luís Anhaia, 44
05433.020 São Paulo SP
T. 55 11. 3094 0500
www.todavialivros.com.br
1. Aqui há um jogo de palavras: em vez do usual foreword, “prefácio”, o
autor usou forward, “avante, adiante, para a frente”. [N. T.]
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5. Nos Estados Unidos, o ano letivo começa em agosto ou setembro. [N. E.]
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