Livro de Jó

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Versão medieval inédita do Livro de Job

Poderíamos ter escrito do Livro das Estórias da Blivia do Testa-


mento Velho, de cuja identificação já demos notícia nesta revista 1 ,
se grande parte dele não se encontrasse já publicada por Fr. Fortunato
de S. Boaventura na Colecção de Inéditos Portugueses dos sécs. XIV
e XV2 e reeditada por Serafim da Silva Neto no vol. I da Bíblia
Medieval Portuguesa. Efectivamente o manuscrito, de que vamos
transcrever uma peça notável, coincide na quase totalidade com o
manuscrito alcobacense, que o historiador da Real Abadia de Alcobaça
extraiu da biblioteca de seu mosteiro e levou para Coimbra, aí deu
à luz da publicidade e, finalmente, expatriou consigo para Roma,
onde com a vida do homem se perdeu a traça do cimélio 3 , não sem
ter dado antes também como perdido o manuscrito que sabia existir
na biblioteca dos Bispos de Lamego.
Esta informação, revestida de pormenores cómico-dramáticos 4 ,
está na origem duma história lendária, feita de suposições, que veio
adensar o mistério sobre o documento mais interessante da bem escassa
bibliografia portuguesa em temas bíblicos, e que designamos com o
nome de Bíblia de Lamego 5.

Tudo começou por umas referências discretas de Fr. Manuel do


Cenáculo a «uma tradução historiada do Antigo Testamento», a «runa
tradução da Bíblia em nossa língua» e às «Estórias da Biblia, que

1 Cf. «Didaskalia», I (1971), 251-253, texto e notas.


2 Coimbra, 1829, vol. II e III.
3 Na página 158 d o Index Codicum Bibliothecae Alcobatiae... Olisipone... anno
MDCCLXXV, o bilbiotecário deixou exarado em nota marginal o começo de tão deplorável
acontecimento: «O códice 349 achase no convento de S. Bernardo de Coimbra, que levou
o Mestre Dr. Fr. Fortunato de S. Boaventura cõ licença do Revmo. P. Gal .Manuel de Queiroz.
Vicente de Jezuz Cogominho Bibliothecario».
4 Cf. «Didaskalia», 1. c.
5 Dizemos, Bíblia de Lamego, como dizemos Biblia de Alcobaça, sem outra pretensão
que não seja facilitar-lhe a referência. Esperamos, no entanto, que o nome fique...

III (1973) didaskalia 83-132


84 DIDASKALIA

consistem no resumo do Velho Testamento pelas mesmas palavras


da Escritura sagrada» 6 .
Acrescentando a sua achega, A. Ribeiro dos Santos diz que lhe
constara «por outras notícias que possuía este código D. Manuel de
Vasconcelos Pereira, Inquisidor que foi de Lisboa, e depois bispo
de Miranda e Lamego, e que fora o mesmo que tivera o nosso ilustre
poeta e filósofo Francisco de Sá de Miranda»7.
Como se vê, o curioso investigador da literatura dos judeus portu-
gueses não tem dúvidas em identificar o objecto da tríplice referência
do bispo de Beja. Mais cauteloso se revela Frei Fortunato, segundo
o qual o códice «de que Fr. Manuel do Cenáculo transcreve os primei-
ros versículos» e as «Estórias da Biblia» que possuía o bispo de Lamego
eram diferentes, devendo ser o primeiro «talvez obra de algum judeu
convertido, quando não fosse a própria versão de que usavam os
judeus, antes de serem expulsos deste reino pelo Senhor D. Manuel»,
enquanto as «Estórias da Bíblia» seriam cópia do códice de Alcobaça.
Começando os dois diversamente — ao menos ele assim o cria —
não podiam identificar-se8.
A posição de Fr. Fortunato virá a ser adoptada por Carolina
Michaêlis que sugere a hipótese de que a tradução que Cenáculo
tinha como «feita no séc. xv em português do tempo por teólogo
sábio e inteligente da língua hebraica, donde era trazida a interpre-
tação» poderia ser uma nova versão a partir do códice escorialense I-j-3,
o que explicaria o intrigante «por que fosse boa» de Gn. 1,2, transcrito
pelo Prelado de Beja 9 .
Todo este esforço de imaginação ao serviço da exegese de cinco
versículos dum livro desaparecido, embora transcritos «com sua orto-
grafia» 10 , dá-nos a medida das possibilidades e dos limites da inteli-
gência crítica no campo da investigação literária.
Ora, enquanto os eruditos se esforçavam por ver claro no
aliciante problema das primeiras versões portuguesas da Bíblia,
o requestado códice pontificava nas estantes da biblioteca opulenta
dos bispos de Lamego, muito ufano da sua vestimenta de carneira
com aplicações de ouro, de que o dotara a magnanimidade dum

6 Cuidados Literários do Prelado de Beja, Lisboa 1971, pp. 64, 218 e 423.
7 Sobre algumas Traduções e Edições bíblicas menos vulgares, em «Memórias da Litera-
tura Portugueza», VII, Lisboa 1806, 20-21.
8 Inéditos... II, pp. X I e XII.
' Notes sur les Bibles portugaises, em «Romania» (1899), 545-546.
10 Cuidados Literários..., 218
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dos antístetes mais empreendedores que conheceu a vetusta diocese.


Por mérito artístico de algumas letras filigranadas, quando a biblio-
teca teve de abandonar o seu belo salão oitocentista, logrou ficar
no recheio do Museu instalado no que foi paço episcopal, onde hoje
se guarda religiosamente 1 1 . Foram os estudos que há algum tempo
a esta parte dedicamos às antigas versões portuguesas da Bíblia que
nos levaram à identificação do precioso códice e, simultâneamente,
nos colocaram em situação de completar as notícias que outros deram
e corrigir as hipóteses que então formularam.

A primeira observação que se nos oferece é que a Bíblia de


Lamego não é completamente igual à de Alcobaça. Fr. Fortunato
de S. Boaventura que pôde dispor de alguns «apontamentos» do códice
de Lamego, mercê dos bons ofícios de António Pinheiro de Azevedo
e Silva, vice-reitor da Universidade de Coimbra, não teve dificuldade
em reconhecer que «este, talvez copiado do Alcobacense, apenas
difere dele em algumas palavras» 12 . Mas os apontamentos de Fr. For-
tunato começavam pelo fim — o livro dos Macabeus — e não, como
deviam, pelo «princípio» quando «criou Deus o ceeo e a terra»
Se tal acontecera, teria verificado que os primeiros dez capítulos
estão traduzidos rigorosamente à letra da Vulgata, sem a carga fasti-
diosa de glosas e comentários que o tradutor alcobacense não
conseguiu banir do texto da Historia Scholastica, de Petrus Comestor 13 .

11 Em 1957, o bibliotecário elaborou uma ficha técnica para a Inspecção Superior das
Bibiliotecas e Arquivos, donde recortamos: /Bíblia Sacra/, (ant. a 1558). Vol. de ff. 4 br. +
1 (Alia manu) + 1 br. (c/des. no v.) + 12 inum. (c/ o Índice dos caps.) + 2 br. + clxxxvllj +
+ 5 br. For. 240 x 340 mm. Mancha cal. contínua 162 x 243 mm. Papel de linho. Marca
de água...».
O desenho da marca de água é formado por um círculo encimado por uma cruz latina,
cuja haste vertical se apoia no diâmetro recurvado nas extremidades. No campo inferior
traz duas iniciais maiúsculas, E M, segundo a «ficha técnica», M T, segundo a interpretação
de J o ã o Amaral em Marcas de água (filigranas) de papéis do século XI7, descobertas e desenhadas
por (...), publicadas na «Beira Alta» — Arquivo provincial, — VIII (1949) p. 19 e sgs. onde
aparece com o número 1567, que pretende ser a data do códice, no que há engano. No seu
conjunto desconheço outra filigrana perfeitamente igual; mas C. M. BBIQUET regista uma
muito semelhante na sua obra Les Filigranes, Dictionnaire historique des Marques dupapier...
Leipzig 19232, III, 504, n. 9597, e que pertence a um livro genovês de 1520-25. Há, porém,
um exemplo mais antigo no Livro das Receitas que se guarda no arquivo do Hospital de S. José
e tem a data de 1511 e vem descrito por A. F. de Ataíde e MEIO na sua obra O Papel como
elemento de identificação, Lisboa 1926, p. 40, n. 49. Mas tanto uma filigrana como outra têm
o diâmetro em linha recta.
12 Inéditos... 1. c. Fr. Fortunato reduz a comparação a alguns versículos dos livros dos
Macabeus.
13 É sabido que as chamadas bíblias historiais reproduzem a texto que Petrus Comestor
compôs de perícopas da Bíblia, de transcrições de Flávio José e de comentários dos Padres
86 DIDASKALIA

A mesma independência reaparece no cap. 20 do Êxodo, Das leis que o


Senhor Deos deu aos Judeus no monte Sinay por Moyses e que começa
deste modo:
«Fallou também o Senhor estas palauras amte todo o povo:
Eu sam o Senhor Deos, eu que te saquey da terra do Egipto; nam
averás deoses alheos amte mym; nam farás a ti cousa esculpida, nê
toda a semelhança que he em o ceo de cima nem em a terra debaixo,
nem em aquelles que sam em as agoas...» 14 .
Tão pouco acertou D. Carolina Michaêlis, ao propor uma retra-
dução do códice I-j-3 do Escoriai, que certamente não conhecia.
Veja-se como principiam um e outro:

I-j-3 Códice de Lamego

En lo comienço crio Dios Em ho principio criou Deos


los cielos e la tierra e la tierra era o ceeo e a terra mas a terra era
vana e vazia e la escuridad sobre vãa y vazia e escuridades eram
la fas dei abismo e espiritu de sobre a face do abismo e o espi-
Dios sobre fases de las aguas e ritu do Senhor era trazido sobre
dixo Dios sea la luz e fue luz as agoas. E disse Deos façase
e bido Dios la luz que era buena luz e fezse luz e vio Deos a luz
e aparto Dios entre la luz e la por que fosse bõoa e dividio a
tyniebla e llamo Dios a la luz luz das escuridades e chamou a
dia e a la escuridad llamo noche luz dia e as escuridades noyte e
e fue tarde e fue manana dia fezse tarde manhãa dia primeiro
uno.

Se há pontos de contacto entre as duas versões, estes resultam


do fundo comum e não excedem o que é normal em casos deste
género 1 5 .

e teólogos. A sua compilação, que obteve êxito enorme, pode ler-se, sob o titulo de Erudi-
tissimi viri magistri Petri Comestoris Historia Scholastica na P. L. 198, 1053-1722. O tradutor
alcobacense reduziu bastante a selva «que o Senhor não plantou», mas foi ultrapassado pelo
«tradutor» da Bíblia de Lamego, o qual lê como feita a si também a homenagem de M. MARTINS
«ao tradutor anónimo que há mais de meio milénio escreveu, em português, esta pequena
bíblia historia], limitada ao V. Testamento, prática, fácil de ler e expurgada de muita farragem
erudita do famoso Pedro Comestor» («Brotéria» 69 (1959) 440).
14 Bíblia de Lamego, f. 18.
15 S. BERGER, discreteando sobre a opinião de D. Carolina Michaêlis, aventa a hipótese
de se tratar duma tradução latina revista pelo texto hebraico. Mas, neste caso, devia preferir-se
o cód. I-j-4 que foi traduzido por judeu para uso de cristãos, em vez de seu «próximo», obra
de judeu para judeus (cf. J. LLAMAS, Bíblia Medieval Romanceada, Madrid 1955, I, xix-xx).
Mas também em relação a este mostra o nosso códice independência inequívoca.
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 87

E, no entanto, também nós acreditamos que pela Bíblia de


Lamego andou mão de judeu, provavelmente convertido. Dispen-
samo-noi por agora de recorrer à análise do texto, porque julgamos
ter a prova num bom lote de sentenças do célebre tratado da Mishná,
o Pirqué Abot, recolhidas em apêndice mas no mesmo papel e com
o mesmo tipo de letra, e de que até hoje ninguém falou 1 6 .
Depois deste rápido bosquejo, onde pisámos terreno mais ou
menos firme, chegou a vez de nos arriscarmos a hipóteses quanto
à origem e história da Bíblia de Lamego, naturalmente sob reserva
de investigação mais demorada que, Deo volente hominibusque adjuvan-
tibus, conduzirá a uma edição crítica do manuscrito. Com a reserva,
pois, que se impõe, reconstituímos assim a história da nossa Bíblia:
Esta é uma cópia do códice de Alcobaça, o códice 349 hoje
perdido, a expensas de nobre personagem dado à leitura das Sagradas
Letras, um Francisco de Sá 17 . O encarregado da transcrição foi
porventura um judeu, como parece indicá-lo o cuidado em eliminar
a farulagem introduzida no texto sagrado, em dois lugares precisos:
os primeiros capítulos do Génesis e o capítulo 20 do Êxodo. Condiz
o seu deficiente conhecimento da história eclesiástica, de estranhar
em tão bom linguista, e que o leva a confundir o Mestre das Histórias
com o Mestre das Sentenças18. Que se trate dum judeu convertido
pode revelá-lo, por exemplo, a fidelidade com que reproduz a inter-

16 O Pirqué Abot tinha particular interesse litúrgico, pois era lido aos sábados nas sina-
gogas e era, com certeza, sabido de cor pelos judeus. A colecção de sentenças começa de
maneira abrupta por estas palavras: «O mundo se sostem por três cousas: pella justiça e pella
verdade e pella paz, e assy se sostem pella ley e pellas obras delia e pellas obras de misericórdia».
17 Francisco de Sá... de Miranda, somos logo tentados a concluir. E assim o fizeram
quantos se debruçaram sobre o mesmo assunto que agora nos ocupa. E temos realmente
muita pena de destruir ou, pelo menos, esbater uma certa auréola de prestígio que o era simul-
taneamente para o grande escritor quinhentista e para o nosso códice. Mas o jogo das datas
mal comporta tal suposição. Para que a nossa Bíblia tivesse pertencido a Sá de Miranda, este
devia viver ainda no fim do ano de 1558. Ora, um dos seus mais recentes e mais bem infor-
mados estudiosos dá-o como morto nesse mesmo ano, concedendo apenas que o óbito «foi
em data incerta», embora «posteriormente a 16 de Maio» (cf. J. V. PINA MASTINS, Si de Miranda,
Poesias escolhidas... ed. Verbo, 1969, p. 15). Se este «posteriormente a 16 de Maio» puder
estender-se até depois de 9 de Novembro, talvez possa valer a argumentação de C. Michaêlis:
que «a leitura das suas obras provaria que Miranda conhecia muito bem tanto o Antigo como
o Novo Testamento» (cf. Poesias de Si de Miranda, Halle, 1885, p. 784, nn. 71-80). Doutro
modo, Francisco de Sá terá de ser identificado com F. de S. de Menezes, «Conde de Matozinhos,
Camareiro-mor do príncipe D. João e dos Reis D. Sebastião, D. Henrique e D. Filipe II, do
Conselho de Estado, etc, etc.... (cf. D . A . CAETANO DB SOUSA, História Genealógica, XII,
1.* parte, 38). E não haja dúvida que tanta nobreza e a proximidade da corte militam a favor
desta personagem.
18 Efectivamente o verdadeiro título da Bíblia de Lamego, como vem na 5." folha
(primeira numerada), reza assim: Livro das estórias da blivia do testamento velho segundo o mestre
das semtenças.
88 DIDASKALIA

pretação cristológica da bênção em que «Jacob profetizou de Jhesu


Christo e bemzeo seu filho Judá» 19 .
Estava Fr. de Sá na posse pacífica de sua «Bíblia», quando se viu
na iminência de lhe ser confiscado o seu precioso códice, por ser em
vernáculo e sem notas. Por isso solicitou da Inquisição licença para
continuar a possuí-la e usá-la, faculdade que lhe foi concedida pelo
Cardeal D. Henrique e exarada por Fr. Francisco Foreiro que a
escreveu e assinou na 5." folha do códice: «Ho Cardeal Iffante apor
bem que tenha esta Biblia e lea por ella ho senhor Francisco de Saa, com
condição que ha nom empreste. Emfee do qual assinei aqui a 9 de Novem-
bro de 1588. Fr. Francisco Foreyro»20.
Depois da morte de Francisco de Sá ...de Miranda (?), ocorrida
pouco depois, a sua Bíblia foi sequestrada pelo tribunal da Inqui-
sição e por isso não estranha vê-la na mão dos inquisidores D. Fran-
cisco de Castro que lhe traçou o nome no alto da l. 1 folha 21 , e de
D. Manuel de Vasconcelos Pereira que a levou consigo para Lamego,
a encadernou ricamente e lhe deu lugar de honra na esplêndida
biblioteca de seu sumptuoso palácio 22 .
O manuscrito de Alcobaça fechava com uma tradução literal
de parte assinalável do livro de Job, que o tradutor não encontrara
na Historia Scholastica de Petrus Comestor, mas verteu directamente
da Vulgata. Segundo Frei Fortunato, o códice era obra dum só
tradutor, o qual teve escrúpulos de interromper a «compilação de
Pedro Trecense, na série de capítulos como de livros sagrados de
que o Trecense fazia os extractos», e, por isso, «omitindo o livro

« Bíblia de Lamego, f. 78.


20 A primeira vez que se manda denunciar ao Santo Ofício os detentores de bíblias
e m vernáculo é a 18-11-1536 (cf. J . S. DA SILVA DIAS, Portugal e a Cultura Europeia (séc. X V I -
-XVIII) em «Biblos» 28 (1952) 202-461, p. 230). O primeiro índice de Livros proibidos foi
publicado em 1551, por ordem do Cardeal D. Henrique (cf. F. de ALMEIDA, Hist. da Igreja em
Portugal, 1968 2 , II, 420). A notícia é recolhida de I. DA SILVA Diccionãrio bibliográfico, X , Lisboa,
1883, 387-388, onde se faz referência ao índice de 1564 (Rol dos livros...), da autoria de Fran-
cisco Foreiro, o frade dominicano que, na sua função de qualificador do Santo Ofício, exarou
a autorização mencionada. Como já há bastante tempo era proibido ter a bíblia em português,
sem as anotações, este pedido ao Cardeal inquisidor haverá nascido do desejo de F. de Sá...
de Miranda de morrer em paz com a sua consciência de católico ?
21 D. Francisco de Castro, neto do «grande Dom João de Castro», nasceu em 1574, e foi
reitor da Un. de Coimbra, bispo da Guarda e inquisidor geral, vindo a falecer em 1630 (cf. D.-
A . C . DE SOUSA, Historia Genealógica, X I , 547-548.
22 Sobre a actividade de D . M . de V. Pereira, cf. D . J . DE AZEVEDO, Historia Eccle-
siastica da cidade e bispado de Lamego, Porto 1878, 101-103. A reconstituição que delineámos
para a Bíblia de Lamego pode escudar-se na história parecida que têm as bíblias do Escoriai,
e nomeadamente a Bíblia de Alba, que a Inquisição recolheu e mais tarde restituiu à família
lesada na pessoa do D u q u e de Olivares (cf. G. ANDRES, Historia de las procedências de los Códices
Hebreos de la Real Biblioteca de el Escoriai, e m «Sefarad», 30 (1970) 1, 9-37).
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 89

de Job para não cortar o fio da história, o lançou no fim de todo o


extracto que fizera de tão precioso livro» 23 .
Também Frei Fortunato teve escrúpulos, mas de índole doutri-
nal, já que entendia não poder publicar um escrito tão profundo
sem conveniente anotação exegética 24 . Felizmente que já havia
transcrito alguns versículos soltos nos Commentariorum e excerptos
mais desenvolvidos na Historia Cronologica25.
Pelo que se pode concluir do confronto destes excerptos e do
manuscrito lamecense, admitindo o rigor da transcrição feita pelo
historiador de Alcobaça, temos que descontar, no que respeita ao
livro de Job, muito da afirmação de que «o amanuense do séc. xvi
acomodou quanto lhe foi possível a linguagem do séc. xvi à que se
usava no seu tempo» 26 . E certo que o «amanuense» se propunha
fazer acomodação, como se pode ver deste passo:

B. de Alcobaça B. de Lamego

Em hua terra que ha nome Em hüa cidade da terra que


Hus auia huu home bõo que se chama Hus avia hüu homem
auia nome Job, este era simplez que se chamaua Job. Este era
e dereyto e temia Deos e quite simprez e direyto e temente a
de mal... Deos e apartado de todo o mal...

As diferenças são ligeiras, mas existem, embora o texto alcoba-


cense haja sofrido retoques. Mas estas diferenças desaparecem comple-

23 Inéditos, III, xiii. Esta afirmação exclui a que S. Berger atribui a C. Michaelis
que o livro de Job passara da «bíblia» de Cenáculo para a de Alcobaça (Notes... 548). Aliás
mal se concebia tal sentença num autor que demonstra a antiguidade do «seu» manuscrito
por «um pedaço da última lição do Of. de Defuntos que se lê em huma tradução portugueza
dos Diálogos de S. Gregorio Magno, que foi do uso de Fernam Affonso... e depois comprado
por D. Fr. Estevão de Aguiar, que foi abade de Alcobaça desde 1431 até 1446...» (Historia
Chronologica, 66). Esse trecho coincidia com a tradução de Alcobaça, donde, portanto, foi
extraído. Mas como serviria de argumento à antiguidade do códice um trecho que se lhe
acrescentasse posteriormente ?
24 Inéditos, III, 209, nota.
25 Commentariorum de Alcobacensi Mstorwn Bibliotheca libri tres, Conimbricae, 1827,
pp. 577-580 e Historia chronologica e critica da Real Abadia de Alcobaça... Lisboa, 1827, pp. 56-60.
26 O segundo XVI é lapso do impressor, evidentemente. Frei Fortunato teria escrito
XIV. A referência a um «amanuense» talvez se deva admitir, considerando-o um copista que
sabia desenhar letras, mas era menos versado em línguas e paleografia. A ele, e não ao «tradutor»
hebreu são de atribuir certos deslises na interpretação do manuscrito original, como se verão
oportunamente em notas ao livro de Job. Mas o «amanuense» que tem em mente Frei For-
tunato foi mais que mero copiador.
90 DIDASKALIA

tamente, mesmo e sobretudo em trechos de nítido sabor arcaico.


Naquilo em que se pode estabelecer paralelo, os arcaísmos inçam
os dois textos 27 . E, em todo o livro, a Bíblia de Lamego conserva
traços tão indeléveis do seu medievalismo que quase nos atrevemos
a reivindicar para ele, ou para a sua futura publicação, o mérito
que o ilustre filólogo brasileiro Serafim Neto atribui à reedição do
códice que Fr. Fortunato de S. Boaventura publicou, irremediavel-
mente truncado,em princípios do século transacto28.
Sobre a competência do primeiro tradutor, que o é de quase
toda a obra, apraz-nos registar ainda a opinião de Frei Fortunato:
«A versão é muito exacta e mostra que foi trabalhada por quem
dispunha a seu sabor das riquezas da linguagem» 29 . Efectivamente,
a obra dá testemunho de si. Mas dirá também alguma coisa quanto
aos conhecimentos do hebraico que, segundo Cenáculo, possuía o
autor ?
Analisando uma breve transcrição que Carolina Michaélis faz
da História Cronológica, S. Berger sentencia que «o hebraico não entra
aqui para nada» 3 0 . Mas a base de texto aduzida nas suas Notas pela
professora coimbrã é demasiado estreita para negativa tão rotunda.
A leitura do texto integral vai mais pela opinião de Cenáculo.
Atente-se na facilidade com que o tradutor se liberta dos gerúndios
da Vulgata e na elegância de certos binarismos e, talvez, na maneira
como interpreta o verbo " p S (barac) a que sabe atribuir o sentido,
raro, de amaldiçoar31.
Outro passo cheio de curiosidade é a versão da conhecida perí-
copa 31,1-12 (final do cap. X I X do nosso códice), onde, em meio
duma versão literal da Vulgata, surgem dois vocábulos que se lêem

27 Alguns, a m o d o de exemplo: a cabo de, aguisado, ajudoyro, amgeos, antre, apremar,


azinha, bento, comesto, companha, conto, coyta, cuidações, envurilhar, escodrinhar, esguardo, ex,festi-
nosamente, gafem, gafo, hy, leixar, lidar, moymento, ntysquindade, postimeiro, pudrimento, revolvi-
mento, sages, sandia, sanha, semideyros, tanger, trevoso.
28 «Pensamos que trazer à luz o Velho Testamento, esquecido há mais de cem anos e
hoje inencontrável, virá prestar grande serviço às nossas letras medievais... O seu valor para
o conhecimento da língua arcaica é dos mais significativos, como desde logo poderá verificar
o leitor». (S. S. NETO, Bíblia Medieval Portuguesa, I; Hist. de Abreviado Test. Velho, segundo
o Meestre das Historias Scholasticas, texto apurado por (...), R i o de Janeiro, 1958 p. 18). Até
porque agora será menos sentida «a perda irreparável do códice 349».
29 Inéditos... II, p. VII da introdução às Histórias...
30 Notes... 548.
31 A raiz brc abrange um conjunto semântico ligado à ideia de bênção: abençar, beni-
ficiar, agradecer, louvar, saudar... Às vezes, porém, o dizer adeus (saudar) cai no sentido pejo-
rativo de virar as costas, desprezar, amaldiçoar, como no Sim 10 (9) 3: «Com ares arrogantes,
o ímpio despreza o Senhor» (cf. tb. 3Re. 21, 10-13).
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 91

igualmente nos códices I-j-3 e I-j-4 do Escoriai: preitisia e asechey 32.


As três versões são, no resto, perfeitamente independentes, como se
vê até da breve transcrição que fizemos em nota.
A coincidência destes vocábulos, nada comuns, será puro acaso ?
Será que o tradutor alcobacense teve acesso à cultura bíblica
dos judeus portugueses de seu tempo, que, tal como os espanhóis,
deviam dispor de traduções em vernáculo dos seus livros sagrados ? 3 3 .
Estas interrogações abrem perspectivas muito amplas sobre o
maior tesouro da nossa literatura medieval, o espólio do Mosteiro
de Alcobaça.
Por agora limitamo-nos a perguntar. Talvez um dia possamos
responder. Entretanto cumpre-nos dar a conhecer uma peça impor-
tante da futura (ou futurível...) construção.
Mantivemos as características do manuscrito, mas desdobrámos
sistematicamente as abreviaturas, embora só aquelas que o próprio
texto nos autorizou e sempre segundo as indicações implícitas do
copista. Colocámos entre <> as palavras ou letras que faltam no
manuscrito. Para mais fácil distinção de termos homógrafos, intro-
duzimos alguns sinais de acentuação, totalmente ausentes do códice,
se exceptuarmos pequenos traços oblíquos, distribuídos a esmo.
Embora na Vita Christi (Lisboa, 1495) apareça por extenso a palavra
Deus, em português, com u e não com o, desdobrámos a sua abre-
viatura para Deos, por motivos apontados na segunda nota da edição
do texto. Separámos as palavras indevidamente reunidas pelo copista
e juntámos as que foram indevidamente separadas. Adoptámos o
uso do hífen, quando necessário, mantivemos unido à palavra seguinte
o d da proposição de, nos casos de elisão consagrados pela ortografia
actual, mas separámo-lo com um apóstrofo, nos outros casos: d'arame.
Nos casos de consoante nasal, empregámos, no desdobramento, as

32 «E pleitisia talé com mis ojos... E... se... fize engano en mi coraçon por muger o
a puerta de mi amigo açeché, corbese otro com ella e sobre ella rodillen otros...» (I-j-3).
«Pleitisia confirmé en mi presençia... Si se engano mi coraçon por muger, a la puerta de mi
companero açeché, yaga con otro mi muger e sobre ella se echen otros...» (I-j-4).
Estas citações mostram a presença dos mesmos termos em traduções por outro lado
manifestamente independentes. O segundo vocábulo, asechar, persistirá na Bíblia de Ferrara,
preparada, como se sabe, por judeus portugueses: «Si fue sombaído mi coraçon sobre muger,
y sobre puerta de mi companero acechè, muela para otro mi muger...».
33 Supomos que esta versão é primitiva, embora não possamos confirmá-lo mediante
o códice alcobacense, perdido, e do qual Fr. Fortunato não nos deixou para o caso qualquer
transcrição; mas a tradução de barac, que existia no códice 349, suporta a hipótese. Não seria
de todo inverosímil que se devesse à mão do «tradutor» ou «revisor» hebreu, que dirigiu a
transcrição do códice de Lamego.
92 DIDASKALIA

normas seguidas pelo copista, que sempre escreve Senhor, embora


empregue o m nasalado, com enorme frequência, e não apenas antes
de b ou p: espamtos, atormemtes, etc. Em casos duvidosos, deixámos o
til e não desdobrámos. Substituímos o u por v e i por j (e vice-versa),
quando têm o mesmo valor fonético. Reduzimos a um só os rr e ss
iniciais. Mantivemos, porém, os ss duplicados no meio da palavra,
mesmo quando tinham o valor do 5 intervocálico: pessada (pesada),
messes (meses), cassa (casa), etc.. E o mesmo fizemos, quando o s
tem, no códice, o valor fonético de ss: oso (osso), diser (disser), etc.
Também não reduzimos rr a r, em circunstâncias idênticas às do s:
trres (tres), obrras (obras), etc. Aliás, são raros estes últimos casos,
ao contrário dos ss. Mantivemos as cedilhas, mesmo antes de e ou i:
çeo, paçiençia, etc. Uma vez ou outra, tivemos de a colocar na trans-
crição do códice, por exemplo, em Catam (isto é, Satã), por razões
fonéticas e para distinguir esta palavra do antropónimo Catam ou
Catão. Pusemos iniciais maiúsculas nos nomes próprios, conser-
vámos a distribuição dos capítulos como vem no manuscrito e pusemos
à margem o número da folha do códice, em algarismos romanos,
como nele podemos ver. Finalmente, acrescentámos algumas notas
esclarecedoras, nomeadamente as variantes dos fragmentos conser-
vados na História Crítica de Alcobaça (H C A). E quando emendamos
algum erro manifesto, pomos em nota a palavra ou frase tal qual
vem no manuscrito34.
Entendemos ser ainda obrigação nossa deixar aqui uma palavra
de reconhecimento à Direcção Geral dos Assuntos Culturais do
Ministério da Educação Nacional e ao Senhor Director do Museu
Regional de Lamego, pelas facilidades de acesso ao precioso manus-
crito; ao Padre Mário Martins, S. J., da Academia das Ciências, pelas
sugestões que teve a fineza de nos dar; e ao Senhor Vice-Reitor do
Seminário de Lamego pelo bom serviço que nos prestou.

J . MENDES DE CASTRO

34 Cremos que a nossa intervenção é mais sóbria que a do editor brasileiro da obra de
Fr. Fortunato de S. Boaventura (cf. Bíblia Medieval Portuguesa, 16-17). Mas pensamos que em
trabalho manuscrito de autor anónimo, não há minudências paleográficas que não tenham o
seu valor.
Foi. CLXXVI

Estória de Job

Capitullo primeiro

<E)m hüua cidade da terra que se chama Hus, avia huü homem 1 1
que se chamava Job. Este era symprez e direyto, tememte a Deos
e apartado de todo o mall, o qual avia sete filhos e tres filhas e 2
sete mil ovelhas e tres mil camellos e quinhemtos jugos de bois
e quinhemtas asnas e muyta companha, e era grande homem em 3
todo oriemte. E cada huü de seus filhos fazia comvites aos outros 4
em suas cassas e mandavam chamar suas irmãas pera comerem e
beberem com elles.
Despois que acabavam cada vez seus comvites, bemzia-os seu 5
padre Job e samtificava-os e alevamtava-se pella manhã e ofereçia
sacrifícios a Deos por cada huü delles, dizemdo: per ventura pecaram
meus filhos dizemdo mal a Deos em seus corações. E asy fazia
Job sacrifícios em todollos dias.

1 1 HCA: «Era hüa terra que ha nome Hus avia huü home boõ que avia nome Job».
2 HCA: «e temia Deos e quite de mal». No ms. de Lamego o nome divino traz a abreviatura
constante ds, sobrepujada dum til. Ao desdobrá-la, escolhemos a vogal o porque o ms. usa o
mesmo símbolo no plural deoses, por exemplo no cap. 38 do Êxodo (40 na Bíblia de Alcobaça),
Das Leys que o Snnr Ds deu aos judeus no monte Sinay por Moises: «nam averas deoses alheos
amte mym».
3 HCA: «muy grande... antre todos os do oriente».
5 HCA: «perventura... e diserõ mal». A versão medieval portuguesa afasta-se, portanto,
da letra da Vg que, fiel ao TM, traz benedixerint; mas onde já a VA lera pensar mal, levando
porventura à conta de eufemismo o que pode ser a evolução no sentido pejorativo duma acepção
de barac: dizer adeus; donde «esquecer».
94 DIDASKALIA

Capitullo II

Como Job perdeo quantas ryquezas avia

6 <H)uG dia acomteceo que vieram amte Deos os amgeos e estava


amtre elles o diabo.
7 E disse Deos ao Imigo: Domde vêes? O qual respomdeo e
disse: Eu çerquey toda a terra e amdei-ha toda.
8 E disse-lhe Deos: Per vemtura comsiraste o meu servo Job,
como nam ha semelhável a elle em toda a terra, ca he homem
simprez, tememte Deos e apartado de todo o mal;
9 E respomdeo o diabo a Deos e disse: Per vemtura teme em
vãao Job a Deos, ca tu çercaste e guardas a elle e toda sua
10 casa e todo o seu aver, e bemzeste as obras das suas mãaos, e a sua
posissam creçeo sobre a terra. Mas estende tu huü pouco a tua
11 mãao e tamge-o em todas suas coussas e verás como te maldirá em
tua face.
12 E disse Deos ao Imigo: Todallas coussas que elle tem sejam em
teu poder pera lhe fazeres o que quiseres; mas em elle tam soomente
nam estemdas a tua mãao. E foy-se o Imigo damte a façe de Deos.

13 E estamdo huü dia hos filhos de Job e as filhas comemdo


14 ajumtados em cassa do filho maior, veo huü mesageiro a Job que
lhe disse: Os teus boys amdavam lavramdo e [ Foi. CLXXVI v / as
asnas amdavam paçemdo a cabo delles, e vieram os da terra de
15 Sabba e levaram todo roubado e mataram todos os homês que
hy acharam, e eu soo escapey pera trazer a nova a ty.
16 E estamdo aimda este comtamdo a nova a Job, veo outro
messageiro e disse: Cayo fogo do ceo e queimou todas as ovelhas e os
moços que as guardavam, e fugy eu pera to dizer.
17 Estamdo aquelle falamdo, veo outro a Job e disse: Os Caldeus
fizeram de sy trres partes e roubaram todos os teus camellos e mataram
todos os que os guardavam. E fugy eu soo pera to viir dizer.

6 diabo, HCA: «Satan».


8 HCA: «...simplez e temedor de Deos e partido de mal».
9 HCA: diabo, HCA: «Satan», como habitualmente.
11 tua, no ms. «sua».
12 imigo, HCA: «Satan» (como no texto latino); tem, HCA: «ha»; soomente: «solamente».
15 pera trazer a nova a ty, H C A : «pera o dezer a ti». Sabba, no ms. «Sabva».
16 moços, no ms. «mocos».
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 95

E falamdo aimda aquelle, veo outro e disse a Job: Digo-te 18


que os teus filhos e as tuas filhas estavam comemdo em cassa
de seu irmaão maior e veo huu vemto muy forte da parte do 19
deserto e deribou a cassa sobre teus filhos e sobre tuas filhas e sam
todos mortos. E eu soo escapey pera to vyr dizer.
Quamdo Job esto ouvio, levamtou-se e rompeo as vistiduras, 20
e trosquio-se os seus cabelos da sua cabeça e cayo em terra e
adorou a Deos e disse: Eu sahy nuu do vemtre de minha may e 21
nuu me hey de tornar à terra que he outrosy minha may. E o
Senhor Deos me deu os filhos e quamto avia e o Senhor me tirou.
Asy como prouve a elle, asy foy feyto; o nome do Senhor seja bemto.
Em todas estas coussas nam pecou Job pella sua boca, nem falou 22
comtra Deos cousa samdia.

Capitullo III

Como Job foy gafo e esteve na esterqueira,


omde vieram a elle seus amiguos

<H)uü dia vieram os amgeos de Deos amte o Senhor Deos, e o 2 1


Çatam estava ahy com elles.
E disse Deos ao Çatam: Domde vêes? E respomdeo o Çatam 2
dizemdo: Eu çerquey toda a terra e amdey-a toda. 3
E disse o Senhor Deos ao Çatan: Nam comsiraste o meu
servo Job, que nam ha na terra outro tall como elle, ca elle he homem
simprez e direyto, temente a Deos e apartado de todo mal; e aimda
com quamto mal lhe veo aimda está sem pecado? E tu me
fizeste mover comtra elle que o atormemtasse eu em vaão.
E respomdeo o Çatan a Deos e disse: O homem dará pelle 4
por pelle e todallas coussas que há pella sua alma; mas tu emvia
a tua maão e tamge o oso e a carne delle. Emtam verás como te 5
maldirá em tua façe.

18 HCA: «...ex que outro vem e entrou e dysse».


20 Trosquiou-se, HCA: «tros...» (sic).
21 HCA: «Asy como prougue ao Senhor Deos...».
2 1 amgeos de Deos, Vg: «filii Dei».
3 homem simprez, etc.. H C A como em 1, 8.
5 oso: isto é, osso.
96 DIDASKALIA

6 E disse Deos a Çatan: Job seja em tua maão e faz-lhe o que


quisseres em seu corpo, mas guarda a sua alma sem dano nenhuü.
7 Emtam sayo Çatam diamte da façe do Senhor Deos e firio Job
com ulçera e com gafem até çima da cabeça. E estava Job em
8 huüa estriqueira e arrapava o venyno e a ulçera com os testos.
9 E disse-lhe emtam sua molher: Aimda tu estás firme em tua
simplizidade ? Maldize Deos e morre.
10 E disse Job a sua molher: Asy falaste como huüa das molheres
samdias. Se nós reçebemos muytos bêes da maão do Senhor Deos,
por que nam sofremos os males > Em todo isto nam pecou Job
pella sua boca.
11 E Job jFol. CLXXVII/ avia tres amigos: huü avia nome Elifas
Tamenites, e o outro Baldac Suites e o outro Sofar Namatites.
E quamdo ouviram dizer o mal que acomteçera a Job, vieram
jumtamemte pera o verem e pera o comfortarem. E vimdo pera
12 elle, alevamtaram seus olhos de lomge e nam o podiam conheçer.
E começaram de chorar e bradar, e romperam suas vestiduras,
13 espargimdo çimza sobre suas cabeças. E asemtaram-sejumtocomele
sete dias em terra e sete noytes; e nam lhes falava nenhuü delles
soo huüa palavra porque viam que a sua door era muy forte.

Capitullo IIII

Palavras damtre Job e seus amigos com decraraçã

1 3 <(D)espois desto abrio Job sua boca e maldixe o dia em que


2 naçera, e disse:
3 Pesse ao dia em que eu nacy e à noyte em que foy dito que
eu fora comçebido, o qual dia seja tornado em trevas e nam aja
4 craridade de lume.
5 Escuremtado seja com trevas e com sombra de morte e
emvolto com amargura.
6 Aquella noyte seja posuyda de vemto forte e trevosso,

6 Çatan, no ms. «Catan».


7 HCA: «e percudio Job... e com gafee muy maa em seu corpo»; Vg: «percussit Job
ulcere péssimo, a planta pedis usque ad verticem capitis». Çatam, no ms. «Catam».
10 HCA: «nom havemos de sofrer os maaes».
11 ouviram, no ms. «ouvira».
13 delles, no ms. «delle».
3 3 pese ao dia, HCA: «pereça o dia»; Vg. «pereat dies»; comcebido, HCA: «concebudo».
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 97

e as estrellas delia sejam escurentadas com escuridam delia 9


e nam veja luz nem a manhaã quamdo naçer,
porque nam tapou a porta do ventre em que me trouxe. 10
Por que nam fuy eu morto no vemtre, 11
ou, tamto que sahy delle, nam morry?
Por que foy dada luz ao mizquinho 20
e pera que he vida aaquelles que sam em amargura de alma,
que esperam a morte e nam lhe vem? 21
Amte que eu como, sospiro, 24
e o meu rugido asy como do ryo que emche;
ca o temor que eu temia veo a mym. 25
Aconteçeo-me aquillo que eu reçeava
e veo sobre mym a sanha de Deos. 26
E respondeo emtam a Job huü daquelles seus amigos, 4 1
aquelle que avia nome Elifaz, e disse-lhe:
Se te começarmos a fallar, per vemtura te anojarás; 2
pero comvein que te digamos aquillo que emtemdemos.
Tu emsinaste muytos e afortelezaste as maãos que eram fraquas, 3
e as tuas palavras confortaram aquelles que nam sabiam que fizessem 4
e confortaste os gyolhos que trimiam.
E agora veo sobre ti esta praga e logo desfaleçeste; 5
tamgeo-te e logo foste comtorvado.
Omde he o teu temor e a tua fortaleza 6
e omde he a tua paçiemçia e a perfeiçam dos teus caminhos?
Rogo-te que te lembres se pereçeo ou foy pereçido alguü ino- 7
çemte, ou quamdo foram destruidos os que sam direytos.
Mas amtes eu vy aquelles que obram maldade, 8
que pereçeram e foram comsumidos pello espritu da ira de Deos. 9
Por ventura pode o homem ser justificado em comparaçam 17
de Deos, ou pode ser mais puro que o seu Criador?
Certo nam; ca elle achou maldade nos seus amgeos. 18

9 HCA: «e nom veia a luz».


10 trouxe, HCA: «trouve».
10 HCA: «eno ventre... say do ventre».
21 esperam, HCA: «atendem».
24 como, HCA: «coyma».
4 7 pereçeo ou foy pereçido, tautologia com intenção de traduzir o conjunto «unquam... periit»?
9-17 Primeiro corte do texto original, sem grande prejuízo nem da estrutura nem do sentido:
os vv. 10-11 divagam sobre o poder de Deus que consome os «que obram maldade»; em 12-16,
Elifaz alude a uma visão nocturna, que lhe teria sugerido as sentenças que a seguir expõe.
18 Certo nam, resposta que no texto original só estí implícita.
7
98 DIDASKALIA

19 Quamto mais os homes, que moram nos corpos que sam de terra
e que ham o fumdamento delia,
seram comsumidos e comestos como de traça,
20 / Fol. CLXXVII v / e da manhaã atee bespora seram talhados;
e, porque nam hay hy quem emtemda, perecerám pera sempre.

1 5 Pois tu torna-te a alguum samto,


2 ca a sanha mata o homem samdeo.
6 Nam se faz na terra nenhuüa coussa sem razam:
7 o homem naçe pera trabalho.
17 Bem avemturado he o homem que he castigado per Deos:
pois tu nam castiges nem maldigas o castigo de Deos;
18 ca elle te chagou e te poerá mezinha,
elle te ferio e as suas mãaos te daram saúde.
19 E livrar-te-a nas tuas tribulações,
que te nam tamgerá o mal;
20 e na fame te livrará da morte.
Na batalha te livrará da maão da espada,
21 e seras guardado do açoute da maa limgoa
e nam avéras medo da destruiçam quamdo vier.
22 Na fome e no destruimemto rirás
e nam avéras medo da besta da terra.
24 E a tua morada avera paaz,
25 e saberas que a tua geraçam sera muyta,
asy como a herva da terra.
26 E emtrarás em avomdança no moymemto,
asy como o trigo ajuntado no seu tempo.
27 Sabe por çerto que tudo isto he asy como o nós emtemdemos,
e tu cuidaa-o muy bem em teu coraçam.

19 comsumidos e comestos: binómio a jeito de explicação (Vg só consumentur).


5 2-6 Nos vv. omissos, Elifaz apresenta a solução tradicional do problema da prosperidade do
ímpio: esta seria sempre fugaz.
7 A nossa versão omite o 2." estíquio: «e a ave para voar». E logo a seguir, mais os vv. 8-16,
aproximando desta maneira o trabalho do castigo paternal.
17 nam castiges nem, que não tem correspondente no original latino, deve ser um lapso de
leitura do copista que leu castiges em vez de maldigas e se esqueceu de inutilizar a primeira
interpretação.
19 A nossa versão simplificou a sentença numeral do modismo hebreu: «De seis tribulações
te livrará; e na sétima te nam tamgerá o mal».
21 açoute, no ms. «acoute».
22 «besta da terra» em sentido colectivo, como no TM.
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 99

Capitullo V

Palavras de Job a Deos e a seus amiguos

<R)espomdeo emtam Job e disse: 6 1


Muyto me prazeria que os meus pecados, per que eu mereçy a 2
sanha de Deos, fossem postos em peso
e a coyta que eu padeço fosse pessada em balamça,
e pareçeria a minha coyta mais pessada que a area do maar; 3
e porém as minhas palavras sam compridas de door,
porque as setas do Senhor Deos sam em mym
e o meu espritu bebeo a sanha delias
e os espamtos do Senhor lidam comtra mym.
Aquellas coussas que amte nam quiria tamger a minha alma 7
agora com coyta sam a mym manjar.
Quem me dera a mym que venha a minha pitiçam 8
e que me dee Deos aquillo que eu espero;
e elle que me atormemtou elle me quebramte 9
e solte a sua mãao e talhe-me.
E isto me seja comforto: 10
que elle me atormemte com door e nam me perdoe
nem comtradiga as palavras do samto.
Que fortaleza he a minha pera eu aver paçiençia? 11
Nam he a minha fortaleza como a das pedras 12
e a minha carne nam he d'arame.
Ex que nam ha em mym ajudoyro nenhuü 13
e aquelles que de neçessydade avyam d'estar comigo
partiram-se de mym;
e os meus irmãaos pasaram por mym asy como o regato
que passa festivosamente aos valles.

E a vyda do homem lide he sobre a terra 7 1


e os seus dias asy como os dos jornaleiros.

6 10 Tradução literal dum texto difícil. Seria mais clara se desdobrasse o nem em «e eu naõ...»
15 festivosamemte, lapso resultante da confusão do n com o v. Mas devidamente em 10,8 (cap. VII):
festinosamente. HCA: «festinhosamente». A versão omite o resto do cap. (16-30) em que Job
exprime a sua decepção quanto à atitude dos amigos, que censuram em vez de confortar.
100 DIDASKALIA

3 Eu ouve os messes / Foi CLXXVIII / de minha vida vazios


e as noytes trabalhosas.
4 Quamdo durmirey? Quamdo me allevamtarei
e com de cabo atemderey a noyte
e serey comprido de dores atee as trevas?
5 A minha carne vistida he de pudrimento e de lixo de poos;
o meu coyro secou-se e arrugou-se.
6 Os meus dias mais toste trespasaram que a tea
quamdo a talha o teçelam;
comsumidos sam os meus dias sem esperamça.
7 Lembra-te, Senhor Deos, que a minha vida he vemto.
9 Asy como se sume e trespassa a nuvem,
asy aquelle que deçemder aos imfernos nam se sayrá delles
10 nem se tornará mais a sua cassa
nem o seu lugar o conhecerá jamais.
11 E porém eu nam perdoarey a minha boca:
falarey com tribulaçam de meu espritu
e em amargura de mynha alma.
12 Per vemtura sam eu maar ou balea,
que me çercaste de carçel?
13 Se eu diser: folgarey e tomarei comforto em meu leyto,
14 emtam me espamtarás com sonhos e em vissoões.
15 E portamto a minha alma escolheo morte.
16 Senhor Deos, perdoa-me, que os meus dias nam sam nada.
17 Que coussa he o homem, que tu fazes delle gramde comta?
Ou por que pões o teu coraçam comtra elle?
20 Pequey, Senhor. Que te farey, ó tu, guardador dos homès?
Por que me puseste por comtrairo a ty
e sam feyto muy grave a mym mesmo?
21 Por que nam tiras de mym o meu pecado e a minha maldade?
Ex agora dormirey em poo;
e, se me de manhãa catares,
ja nam estarey em mym.

7 4 com de cabo, Vg: «rursum» (de novo, depois disto, segunda vez)
6 que a tea... tecelam, procura de efeito literário na versão do latim: «quam a texente tela succiditur».
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 101

Capitullo VI

Das palavras de huum amiguo de Job

<E >mtam disse o outro amiguo que se chamava Baldac a Job: 8 1


Por que dizes taaes coussas como estas? 2
Por vemtura Deos todo poderosso fez torto? 3
Se os teus filhos pecaram, 4
leixo-hos elle na maão de sua maldade.
Mas tu se te allevamtares pella manhaã bem cedo ao Senhor Deos 5
e o rogares;
se tu fores limpo e justo; 6
logo elle visitará a ty
e amanssará a sua justiça,
em tamto que os bèes que tu ouveste foram pequenos 7
e os que averás seram muy acreçemtados.
E pregumta a geraç?ni amtiga 8
c pára mentes com diligençia na renembrança dos padres
ca nós de ontem scmos e nam sabemos 9
que os nossos dias sam asy como somb a sobre a terra.
E as carreiras de todos aquelles que esqueçem Deos 12
muyto toste se secarám
e a esperamça do iproquita pereçerá; 13
ca a sua samdice nam aprazei á a Deos 14
e a sua fiúza he asy como a tea das aranhas.
Nosso Senhor nam lançará de sy o sin. prez 20
nem estemderá a sua maão aos maaos,
até que a tua boca seja chea de risso 21
e os teus beiços de lidice e de camtar.
Aquelles que te ouveram odio serui vistidos d> comfussam, 22
e a morada daquelles que sam sem piedade nam pode á estar.

8 8 pira mentes traduz o latim «investiga». O verbo intransitivo justifica a preposição antes de
renembrança (memoriam: c.d.)
12-22 Texto muito cortado, omitindo em geral as comparações de carácter literário.
22 poderá, no ms. «poderam».
102 DIDASKALIA

/Foi CLXXVIII v / Capitullo VII

Das palavras de Job a Deos e a seus amiguos

1 9 <R)espomdeo Job e disse:


2 Eu sey verdadeiramemte que <he> asy como tu dizes
e que nam pode ser justificado o homem em comparaçam de Deos;
3 e se quisser comtemder com elle,
lhe nam poderey respomder huüa palavra a mil;
4 ca elle he sabedor de coraçam e forte de gram fortaleza.
Quall foy aquelle que lhe comtrariou e ouve paaz?
6 Elle move a terra de seu lugar;
8 elle soo estemde os çeos
e amda sobre as omdas do maar;
10 elle faz gramdes cousas que se nam podem esquadrinhar,
e tamtas maravilhas que nam ham comto.
11 Se vier a mim, nam o poderey ver;
12 se pregumtar de sobre venta, quem lhe respomderá
ou lhe poderá dizer: Por que fazes isto?
13 Deos, cuja sanha nam pode nenhuü comtrariar,
14 camanho sam eu pera lhe respomder
e pera falar com elle por minhas palavras?
15 Ca, aimda que aja em mim alguüa justiça, nam lhe respomderey.
17 E elle me quebramtará, se quisser,
e acreçentará as minhas chagas aimda, se lhe prouver, sem rezam.
18 Nam leixará folgar o meu espritu
e cumprir-me-á de amarguras.
19 Se demamdar fortaleza, elle he muy forte;
se demamdar alguüa igualdade de juizo,
nam ousará nenhuü testemunhar por mym;
20 se me quisser fazer justo, a minha boca me comdanará.
25 Os meus dias mais festivossos foram que o cavalo corredor:
fugiram e nam viram o bem,

9 12 de sobre venta corresponde a «repente» (de repente) no texto latino


14 camanho, de «quam magnus», traduz o latim «quantus».
17 se quiser... se lhe prouver, glosas ao texto latino, além de introduzir a rima, compensam a omissão
de «in turbine».
25 festivossos, por «festinosos», lat. «velociores» (cfr. nota a 6,15).
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 103

e trespasaram-se asy como as naves 26


e asy como aguya que avooa pera comer.
Eu avia temor e reçeava todas mynhas obras, 28
porque sey que tu, Senhor Deos, nam perdoas aquelle que peca,
Poys tire Deos de mim a sua vara, 34
e o seu pavor nam me espamte:
emtam falarey e nam averey temor delle, 35
que agora nam posso fallar com temor.

A minha alma se anoja da minha vida; 10 1


falarey em amargura de minha alma.
Direy a Deos: nam me queiras comdanar; 2
amostra-me como me julgas.
Por ventura pareçe-te que he bem que me apremies, 3
a mym que sam obra das tuas mãaos,
e que ajudes o comsselho dos maaos ?
Per vemtura têes olhos de carne 4
e vees como homem?
E os teus dias sam taaes como os do homem, 5
pera tu catares a minha maldade, 6
escodrinharás o meu pecado,
ca nam ha nenhuü que posa escapar da tua maão? 7
As tuas maãos me fizeram 8
e me formaram todo em de redor,
ó Senhor, asy me derribas ora tam festinosamemte ?
Rogo-te que te lenbre que me fizeste asy como lodo 9
e tornar-me-ás em poo.
Tu me mumgiste asy como leyte 10
e coalhaste-me asy como queijo,
e vististi-me de pelle e de carnes 11
e ajumtaste-me com ossos e com nervos,
e deste-me vida e misiricordia 12
e a tua visitaçam guardou sempre o meu espritu.
E eu sey que tu te / Foi. CLXXIX / alembras de todallas coussas 13

26 A nossa versão omite, depois de naves, a expressão «poma portantes», que no TM se deveria
traduzir por «de papiro». Mas não é de suspeitar um escrúpulo de fidelidade ao texto hebraico
onde, por outros motivos, se mutila tantas vezes a integridade do original: vv. 5.7.9.16.21-
24.17. 29-33.
10 3 apremies, HCA: «apremas».
8 festinosamemte, HCA: «festinhosamente».
9 lenbre, HCA: «nembres».
104 D1DASKALIA

18 Senhor Deos, por que me sacaste do ventre de minha madre?


Amte quissera ser comsumido, que me nam visse olho nenhuü.
19 E fora asy como se nam fora,
treladado do vemtre ao moymento.

20 Bem sey que a poquidade dos meus dias


asynha se ham de acabar:
pois, Senhor, leixa-me que eu faça pramto huü pouco pella minha
21 alma, amte que me vaa e nam me torne
aa terra trevossa e de escuridam de morte,
22 de mizquindade e de trrevas
em que he sombra de morte e omde nam ha ordenamça nenhufia,
mas mora em ella espamto perdurável.

Capitulo VIII

Das palavras de huü amiguo de Job

1 11 <D)espois que Job disse estas palavras, respomdeo o outro seu


amigo que avia nome Sofar e disse a Job:
2 Por vemtura o homem palavrosso sera justificado?
4 Ca tu diseste: a minha palavra he pura,
eu limpo sam amte ti.
5 Ora prouvesse a Deos de fallar elle contigo,
6 pera nos mostrar os segredos da sua sabedoria
e que a sua ley he em muytas maneiras,
e emtemderias que mais pequenas coussas sam aquellas
que te elle faz padeçer
que aquillo que merece a tua maldade.
7 Por vemtura podes tu compremder os caminhos de Deos?
8 Elle he mais alto que o çeo; e pois que farás tu?
Elle he mais profundo que o imferno: e domde o conhecerás?
9 A midida delle he mais lomga que a terra
e mais amcha que o maar;

19 como se nam fora, H C A : ...«fosse».


20 poquidade, azinha, de acabar, H C A : «pouquidade, aginha, dacabar». faça pramto... peita minha
alma, Vg: «plangam... dolorem meum». HCA reproduz a mesma versão, mas conhece outra
mais rigorosa, metida nos Diálogos de S. Gregório: «Senhor Deos
dame espaço que eu chore huü pouco minha dor...» (o. c. p. 60).
21 e de escuridam, HCA: «e cuberta descuridom».
22 omde, HCA: «hu».
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 105

e se elle soverter as coussas e as apartar em huu, 10


quem lho comtradirá
ou quem lhe poderá dizer: por que fazes asy?
Ca elle vee a vaydade dos homês, 11
e, vemdo elle a maldade, por vemtura nam comsira»
O baram vaão levamta-se em soberba 12
e cuyda que he livre asy como o burro pequeno, filho do zebro;
mas tu firmaste teu coraçam 13
e estemdeste as tuas maãos a Deos.
Se tu tirares de ty a maldade que he em tua maão 14
e nam ficar em tua morada o torto,
emtam poderás alevamtar a tua façe sem magoa 15
e serás estável e nam temerás
e esqueçerás as mizquimdades; 16
e quamdo cuidares que es comsumido, 17
emtam naçerás como a estrella da manhãa
e averas fiúza com esperamça 18
e durmirás seguro e defesso.
Mas os olhos do maao desfaleçerám 20
e nam averam acorrimemto
e a esperamça delles he aborrecimemto d'alma.

Capitullo IX

Palavras de Job a Deos e a seus amiguos

/ Foi. CLXXIX v / <R)espomdeo emtam Job e disse aos seus 12 1


amiguos:
Ergo vós outros soys homeès 2
e a sabedoria mora com vosco;
Eu hey coraçam asy como vós 3
e nam sam mais baixo que vós!
quem he aquelle que nam sabe estas coussas que vós sabedes ?

11 10 ou quem... fazes assy? segue o texto grego da VA.


14 torto traduz aqui o vocábulo «injustitia».
18 defeso parece ser tradução (errónea) de «defossus». Mas é curioso notar que se aproxima dai
modernas traduções directas do hebraico, e dá um sentido muito aceitável.
12 2 Ergo, transcrição da pai. latina, parece estar pelo conjunto «ergo... soli»: «na verdade
só vóis sois homens...», com ironia. Nem o hebraico nem o grego têm o adv. de exclusão.
106 DIDASKALIA

4 Aquelle que he escarnydo do seu amiguo assy como eu


chamará Deos e ouvi-lo-ha,
ca a simpreza do justo he escarnyda.
9 E quem he aquelle que nam sabe
que a maão do Senhor fez todallas coussas
10 e na sua mãao he a alma de toda coussa que vive,
e o esprito de toda carne do homem,
12 e em os amtiguos he a sabedoria
e em o muyto tempo he a sabença?
13 Açerca delle he a sabedoria e a fortaleza
e ha o comselho e o emtemdimento.
14 Se elle destruir, nam ha nenhuü que edifique;
se elle emçarrar o homem, nam ha nenhuü que lhe abra.
15 E se elle retiver as agoas, todallas coussas secarám;
e se as emviar, soverterá a terra.
16 Açerca do Senhor he a fortaleza e a sabedoria:
elle conheçe aquelle que engana ou que he emganado
17 e traze os comsselheiros a acabamemto sandeu
e os juizes traz a espamto,
18 desçimge as cymtas dos reis
e çymge as riis delles com cordas.
19 E traze os saçerdotes delles sem homrra
e destrue os caudees.
21 Lamça sobre os primçipes desprezamemto
e alyvia aaquelles que forem apressados.
23 Acreçemta as gemtes e destruy-as;
e, despois que sam sovertidas, torna-has a seu estado.
24 Elle muda o coraçam dos primçipes do povo da terra.

1 13 E todallas cousas vyo o meu olho e ouvio a minha orelha,


2 e emtemdy cada huüa coussa segumdo a vossa çiemçia,
nem sam mais baixo que vós.
3 Empero falarey ao todo poderosso
e cobiço disputar com Deos.

4 chamará Deos: o manuscrito traz «chamaredes», que é manifestamente lietura defeituosa de


«chamará ds», porventura insinuada pela desinência arcaica de sabedes. O latim é claro:
«invocabit Deum».
10 esprito: habitualmente «espritu».
21 apressados, no ms. coin s alto e «oppressi» no latim.
13 2 A omissão de sinónimos deu nova distribuição aos estíquios.
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 107

Mostrarey primeyro vós outros por fabricadores de mintira. 4


E prazer-me-hya que vos calaseys 5
por cuidarem que soys sabedores.
Pois ouvy os meus castigos. 6
Per vemtura ha Deos mister a vossa mentira, 7
pera fallardes por ella emganos?
Per vemtura tomais vós a sua façe 8
e quereis julgar per Deos ?
Ou prazerá a elle, a quem se nam pode escomder nenhuü? 9
Ou será emganado asy como homem pellos vossos emganos?
Elle vos repremderá 10
porque tomais a sua semelhamça em escomdido.
E loguo que se comover trovar-vos-ha 11
e seu espamto virá fortememte sobre vós;
e as vossas çervizes seram tornadas em jugo. 12
Calade-vos huü pouco e falarey quaaesquer coussas 13
que a minha mente me emsynar:
Por que desfaço eu as minhas carnes com os meus demtcs 14
e trago a minha alma nas minhas mãaos?
E aimda que me Deos mate, esperarey em elle; 15
pero eu repremderey as minhas carreiras amte elle,
e elle será meu salvador, 16
ca nam virá diamte delle todo iproquita.
Senhor Deos, duas coussas me faz tam soomemte, 20
e emtam me escomderey da tua façe:
faz a tua maão lomge de mym 21
c o teu temor nam me espamte.
Chama-me e respomderey eu 22
ou falarey eu e respomde-me tu;
e mostra-me quantas maldades e pecados hey. 23
Senhor Deos, por que escomdes a tua façe 24
/ Foi. C L X X X / e têes-me por teu imigo,
mostramdo o teu poderio comtra a folha que leva o vemto 25
e persegues a palha sequa?
Ca tu escreves comtra mym amarguras 26

6 ouvi, no ms. «eu vi»; latim: «audite».


9 a quem, no ms. «o quem«.
16 A omissão dos três vers, seguintes deixa por explicar a afirmação de Job, que não era
iproquita, pois se abeirava de Deus consciente da verdade da sua causa.
25 sequa, HCA: «seca.
108 DIDASKALIA

e queres-me consumir com os pecados da minha mamçebia.


27 Puseste no nervo o meu pee
e guardaste todos os meus symideyros
e comsiraste as pegadas dos meus pees;
28 que hey de ser comsumydo asy como pudrimemto
e asy como vestidura que he comesta da traça.

1 14 Homem naçydo de molher vive pequeno tempo,


comprido de muitas mizquindades;
2 que sae asy como frol e he trilhado,
e foge asy como a sombra,
e numca está em huü estado firmememte.
3 E, Senhor, por aguissado ás tu de abrires os teus olhos
sobre tal coussa como esta
e trazello comtigo em juizo.
4 Quem pode fazer limpo aquelle que he comçebido de samge çujo,
senam tu somemte?
5 Pequenos e breves sam os dias do homem,
e o comto dos messes delle he açerqua de ty,
6 e os seus dias asy como de jornaleiro.
13 Quem me fara tamto bem que tu me defemdas no inferno
e me escomdas até que de todo trespasse a tua sanha
e ponhas çerto tempo em que te lembres de mym ?
14 Cuidas que o homem morto viva outra vez?
Em todos os dias desta vida em que vivo atemdo e esguardo
até que venha a minha mudamça.
15 Chamar-me-ás e eu te respomderey;
e tu estemderás a tua destra a obra de tuas maãos.
16 Certamemte tu contaste os meus amdamemtos,
mas perdoa os meus pecados.

27 symideyros, HCA: «semedeyros».


14 1 naçydo, HCA: «nado».
3 trazello, HCA: «tragerclo».
4 comcebido, HCA: «concebudo».
6 A «ponte» que vai de 5c a 6b, com a omissão das sentenças intermédias para aproximar
os dias dos meses, vem sublinhada na HCA com reticências.
14 mudamça, HCA: «mudaçom».
15 estenderás no ms. «esconderás», leitura defeituosa; no latim: «porriges».
16 O cap. tem ainda mais seis versículos que a nossa versão ignora, talvez poi causa de seu
pessimismo.
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 109

Capitullo X

Das palavras de huüm amiguo de Job

<D)espois que Job disse estas palavras, respomdeo-lhe outro 15 1


seu amiguo que se chamava Elifaz e disse:
Tu repremdes com tuas palavras aaquelle que nam he igual a ty 3
e falias aquyllo que nam compre;
ca a tua maldade emsinou a tua boca
e queres semelhar a tua limga aos brasfemadores:
a tua boca te comdanará e nam eu. 6
Per vemtura tu es o primeiro homem que naçeo? 7
Por vemtura ouviste que o comselho de Deos 8
ou a sua sabedoria he mais baixa ca ty?
Que sabes tu que nós nam saibamos, 9
ca velhos antiguos ha amtre nós 10
mais velhos que os teus padres?
Per vemtura gramde coussa he de te comssolar Deos? 11
Mas as tuas palavras maas embargam isto.
Por que te levamta o teu coraçam? 12
Qual he o homem que he sem magoa 14
e pareça justo nado de molher ?
E que amtre os samtos de Deos nam ha nenhuu mundavel, 15
e os çeos nam sam limpos amte elle;
quamto mais o mizquynho do homem sem proveyto, 16
que bebe a maldade asy como agoa.
Ouve-me e mostrar-te-hey 17
e comtar-te-hey aquillo que vy:
em todollos dias de sua vida emsoberbeçe o maao 20
e o comto dos dias da sua tiranya / Foi. C L X X X v / nam he çerto.
Sõo de espamto he sempre nas suas orelhas, 21
aymda que seja paaz, sempre elle sospeita aseytamemtos.
Nam cree que possa ser tornado de trevas em luz, 22
e está espreitamdo de cada parte espada.

15 mundavel, Vg: «immutabilis». Leitura defeituosa? Influência do termo limpos (latim: mundi)
do 2." estíquio? Ou ainda a projecção da expressão sem magoa (immaculatus) do vers. anterior?
21 asseytamemtos t aduz «insidias». Embora a sua etimologia se relacione antes com «assectare»,
o sentido de c lada, armadilha, consta bem do seu uso em documentos medievais.
22 Nam, no ms. «Na». Não pensamos que se trate, aqui, da forma popular Nâ.
110 DIDASKALIA

23 Quamdo se moverá pera catar <pam>,


sabe que está prestes na sua maão o dia das trevas.
24 Espamtá-lo-ha a tribulaçam
e a pressa e amgustura o çercará,
25 porque estemdeo comtra Dèos a sua mãao
e fizeste forte comtra o todo poderosso.
26 Correo comtra Deos com o collo estemdido,
e armou-se com o pescoço gordo.
29 Nam será riquo nem durará a sua riqueza
nem meterá a sua raiz na terra
30 nem se partirá das trevas.
32 Amte que seus dias sejam compridos pereçerá,
a sua mãao secará.
33 O seu bago será danado assy como a vinha na primeira frol
e asy como a oliveira que lamça de sy a frol;
34 porque o ajumtamemto do iproquita he sem proveyto,
e o fogo destruirá as moradas daquelles
que tomam de boõamemte os dõoes.

Capitullo XI

Das palavras de Job a seus amigos

1 16 <R)espomdeo Job aquelles seus amigos que lhe diziam estas


coussas e disse:
2 Muytas vezes eu ouvy estas palavras
e todos vós soys comssoladores muy pessados.
3 Por vemtura averam fim as palavras vemtossas?
4 Bem podia eu falar taaes palavras como vós.
Ora fosse a vossa alma pola minha e em lugar da minha,

23 pam ou «paani»: falta no ms. certamente por lapso. Latim: «ad quarendum panem».
24 pressa e amgustia, binómio enfático; latim: angustia».
25 fizeste em lugar de «fez-se». Latim: «roboratus est».
32 Amte, sem nasalação no ms.
16 4 e em lugar da minha, tautologia inexistente no latim.
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 111

ca eu vos comfortaria com palavras 5


e moveria sobre vós a minha cabeça.
Eu vos esforçaria com a minha boca 6
e moveria os meus beiços asy como por vós todos.
Mas que farey? Se falar, nam folgará a minha door; 7
e se callar, nam se partirá;
mas agora me apressou a minha door, 8
e todollos meus membros sam tornados em nada
e as minhas emgelhaduras dizem testemunho contra mym 9
e aquelle que falia falsidade arrisca-se comtra a minha façe
e comtradiz a mim.
Colheo a sua sanha comtra mym 10
e, ameaçamdo-me, emsamdilhou-se comtra mym com os seus demtes:
o meu imigo espantoso me olhou com olhos espamtossos.
Os que me doestaram abriram sobre mym suas bocas 11
e fartaram-se das minhas penas
e firiram a minha façe.
Emçarrou-me Deos a par do cruel e sem direyto 12
e deo-me nas maãos dos cruees.
Eu aquelle que fuy em outro tempo muyto riquo eabomdosso, 13
quebramtado muy arrebatadamemte.
E çircundou-me com as suas lamças 14
e chagou os meus lombos e nam me perdoou
e espargio sobre a terra as minhas tripas;
e firio-me com chagas sobre chaga 15
e lamçou-se a mym como gigamte.
E eu cosy o saquo sobre o meu coyro 16
e cobrii a minha carne com çimza.
A minha façe imchou / Foi. CLXXXI / com choro 17
e os meus olhos escureçeram.
Estas coussas padeçy eu sem maldade da minha rnaão, 18
avemdo prezes limpas a Deos,
e no çeo he a minha testemunha 20
e aquelle que sabe a minha comçiemcya.
E os anos pequenos e breves trespassaram, 23
e eu amdo por carreira por que nam tornarey.

6 por vós todos, Vg: «parcens vobis», «perdoando-vos», que julgamos ser a lição do códice alcoba-
cense, mal interpretado pelo nosso copista.
12 cruel e sem direyto, binómio em vez do simples «iniquum».
112 DIDASKALIA

1 17 O meu espritu sera apartado e adelgazado,


e os meus dias seram apoquemtados e abreviados
e tam somente me ficará o sepulcro.
2 Nam pequey,
e o meu olho he deteudo em amarguras.
3 Senhor Deos, livra-me e poem-me açerqua de ty:
e emtam lide a mãao contra mym de qualquer.
11 Os meus dias trespassaram,
as minhas cuidações sam ja desfeytas,
que atormentava o meu coraçam;
12 e tornaram a noyte em dia,
e com de cabo espero a luz despois das trevas.
13 Se me sofrer, o imferno he a minha cassa;
e nas trevas estarey em meu leyto.
14 E disse aa pudridam: tu es meu padre e minha madre;
e disse aos vermêes: vós sois minha irmãa.
15 Pois omde he aquillo que eu demamdo,
e a minha paçiemçia quem a comsira?
16 N o mais baixo inferno deçemderám todas as minhas coussas:
cuydas por vemtura que he hy a minha folgamça?

Capitullo XII

Das palavras doutro amigo de Job

1 18 <R>espomdeo amtam outro amigo de Job que avia nome Baldac,


e disse:
4 Por que perdes a tua alma na tua sanha?
5 Per vemtura a luz do maao será apagada
e a chama do fogo delle nam respramdecerá ?

17 1 apartado, H C A : «apremado»; apartado e adelgazado, apoquemtados e abreviados, binarismos carac-


terísticos da versão.
2 deteudo, HCA acrescenta: «e mora».
3 e lide... qualquer, HCA: «e lide contra my a maão de qualquer».
11 O ms. retoma neste versículo a tradução da perícopa, esquecendo os vv. 4-10, imitando
as lições do Oficio de Defuntos; cuidações, no ms. «cuidacões».
12 com de cabo traduz o lat. «rursum». HCA acrescenta: entom.
13 estarey, HCA: «estrei», que se apresenta como forma derivada imediatamente do latim da Vg
«stravi». O nosso copista, não entendeu a leitura do códice, imaginou estarey em meu leyto,
em vez de «estiey meu leyto».
14 sois, HCA: «sodts».
18 4 Por que perdes: «por porque perdeo», no ms.
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 113

A luz sera trevossa na sua morada, 6


e a luçerna que he sobre elle sera apagada;
e o amdamemto da sua vertude sera apartado 7
e o seu comselho o derribará.
Porque meteo na rede os seus pees, 8
e a pramta do seu pee sera reteuda em laço 9
e a sede ardeçerá comtra elle.
De toda parte o espamtarám tremores 11
e emvolverám os seus pees.
A sua fortaleza seja mingoada com fame 12
e a morte comsuma os seus braços.
A sua memoria pereçerá da terra 17
e empuxá-lo-ha da luz em as trevas, 18
e trespasse-o do mundo.
Seja tirada a fiúza do seu tabernacollo, 14
e amde callcamdo sobre elle a morte asy como rey.
As suas raizes sejam secas de fumdo 16
e a sua messe seja talhada de çima.
Nem seja sememte delle nem jeraçam no seu povo. 19
E no dia delle se espamtarám os postimeiros, 20
e os primeiros averám gramde espamto.
Pois estas sam as moradas do maao e do cruel; 21
este he o lugar daquelle que nam sabe Deos.

/ Foi. C L X X X I v / Capitullo XIII

Das palavras de Job a seus amigos

<R)espomdeo emtam Job e disse aaquelles seus amigos: 19 1


Até quamdo sufriredes que nam afligaes a minha alma, 2
nem a quebramtedes com palavras?
Ca dez vezes me comfumdides 3
e nam avedes vergonha de me apremear.

7 apartado, Vg: «arctabuntur».


12-19 A curiosa inversão dos versículos pode ter origem no propósito de aproximar
«consumir» (12) e «perecer» (17), por um lado; messe (16) e sememte (19), por outro.
14 calcamdo: o ms. escreve «callçamdo». O texto original traz: «calcet super eum...»
19 1 seus, no ms. «seu».
7
114 DIDASKALIA

4 Çertamemte se eu sam neyçio,


a minha neiçidade sera comigo;
5 mas alevamtai-vos comtra mim
e repremdeis-me com os meus doestos.
14 Os meus chegados me desempararam
13 e aquelles que me esquiçiam escomderam-se de mym,
15 e os de minha cassa me ouveram por estranho.
16 Chamey o meu servo e nam me respomdeo;
17 e a minha molher aborreçeo o meu baffo;
19 e os que eram em outro tempo meus comselheiros
me ouveram grande aborreçimemto,
e aquelle que eu muyto amava foy meu comtrairo.
7 E bradarey padeçemdo força e nam me ouvirá nenhuü.
9 Esbulhou-me Deos de minha gloria
e tirou a coroa de minha cabeça;
10 e destruyo-me de toda parte e pereçeo.
11 E assanhou-se comtra mym a sua ira
e ouve-me asy como seu imigo,
13 e os meus irmãaos alomgou-hos de mym.
20 E os meus ossos se apegaram com o meu couro
e as minhas carnes sam comsumydas
e nam me ficou senam os beiços a par dos demtes.
21 Amerçeade-vos de mym ao menos vós outros os meus amigos,
ca a mãao do Senhor me tamgeo.
22 Por que me perseguides asy como Deos
e fartades-vos de minhas carnes;
23 Quem dera a mym que as minhas palavras sejam escritas
24 com estillo de ferro ou com pedaço de chumbo
ou esculpidas em pedra!
25 Ca eu sey çertamemte que o meu redemtor vive
e no postimeiro dia me alevamtarey e resurgirey,
26 e serey outra vez circumdado da minha pelle
e verey o meu salvador Deos na minha carne.
27 E esta esperamça tenho eu guardada no meu seo.

14-13 Outra perturbação na ordem dos versículos, que desdobrou o v. 13 e incluiu a perícopa 7-19
entre os seus estíquios lidos na sequência 2-1. Esquiçiam traduz erradamente os «noti» ou mesmo
os «qui noverant».
20 e nam me ficou... HCA acrescenta: «outra cousa»; beiços, no ms. «beiços».
25 redemtor, HCA: «remydor»; postimeiro, HCA: «prestumeiro».
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 115

Pois que dizes agora: persigamollo ? 28


Pois fuge damte a façe da espada, 29
<que he) vimgadora das maldades,
e sabede que ha hy juizo.

Capitullo XIIII

Das palavras de huü amigo de Job

<E)mtam respomdeo outro amigo de Job, que avia nome Sofar, 20 1


e disse:
Eu sey des o começo 4
que eu sam posto sobre a terra
que o louvor dos maaos he breve 5
e o gozo do iproquita he semelhável ao pomto.
E a sua soberba subir atee o çeo 6
e a sua cabeça tamger as nuvees,
emfim sera destruydo assy como esterqueira; 7
e aquelles que o viram diram: ou he?
Asy como o sonho que voa e nam sera visto 8
e trespassará asy como a vissam de noyte.
Os seus ossos seram cheos de pecados da sua mançebia. 11
O seu paam sera / Foi. CLXXXII / tornado em fell no seu vemtre 14
e poçonha forte demtro,
e as riquezas que gastou e comeo bolsá-las-ha 15
e Deos as tirará do seu vemtre.
Segumdo a multidam das maas coussas que achou 18
asy padeçerá,
porque despio a cassa do pobre 19
e roubou-ha e nam a edificou;
nem foy farto o seu vemtre 20
e quamdo ouver aquilo que cubiçava nam o poderá posuir;

29 que he (vimgadora), no ms.: e; Vg «quoniam ultor... est».


20 7 ou he, neste caso ou é um arcaismo que significa onde. Mas o copista parece não o ter entendido
assim, mas antes como a disjuntiva que introduzia a oração seguinte, onde acrescentou, coerente
mas erradamente o que.
14 fell e poçonha, binarismo com valor enfático: «fel aspidum» (Vg).
20 farto; «feyto» no ms.
116 DIDASKALIA

21 e nam ficará nenhuüa cousa dos bèes delle,


22 ca toda door virá sobre elle,
26 e destruy-lo-ha o fogo que nam será açemdido.
29 Esta he a parte que averá o maao homem
e esta he a herdade que averá do Senhor, das suas palavras.

Capitullo XV

Das palavras de Job aos seus amiguos

1 21 <R>espomdeo emtam Job e disse aaquelles seus amigos:


2 Rogo-vos que ouçais as minhas palavras
3 e sofrede-me per maneyra que eu falle
e despois ride se quisserdes.
5 E ouvide-me e espavorecede,
poemdo voso dedo sobre vosa boca.
6 E eu quamdo me lembro hey gramde temor,
e o temor quebramta a minha carne.
7 Pois, por que vivem os maaos e os cruees
sam emxalçados e comfortados com riquezas?
8 A sua sememte dura amtre elles
e a companha dos propimquos e dos seus netos estam amte elles;
9 as suas cassas sam paz e seguras
e a vara de Deos nam vem sobre elles;
12 tem çitola e o atambor,
e tomam prazer com o sõo do orgãao.
13 Tamgem os seus dias em muytos bêes
e em hüu pomto deçemdem ao imferno
14 aquelles que diseram a Deos: Parte-te de nós;
nam queremos a çiemçia das tuas carreiras.
15 Quem he o todo poderosso pera o servirmos
e que nos aproveyta se orarmos a elle?
16 Mas, porque verdadeiramente os bêes destes taaes maaos
nam sam na mãao delles,
portamto o seu comselho ser a alomgado de mym.

21 9 paz e seguras, Vg: «securae et pacatae».


13 tamgem, Vg: «ducunt».
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 117

Quamtas vezes se apaga a camdea dos maaos 17


e vem sobre elles a tormemta das omdas e as dores!
E elles seram asy como as palhas damte a façe do vemto 18
e asy como a faysca da çimza que esparge o vemto.
E os olhos dos maaos veram a sua morte maa 20
e beberam da sanha do todo poderosso.
Este morre sãao, rico e forte e de booa vemtura 23
e as suas tripas sam cheas de grosura 24
e os seus ossos regados de myollo;
e outro morre em amargura de sua alma 25
e sem riquezas nenhuüas.
E ambos asuadamente dormem sono de morte em poo da terra 26
e os vermêes os cubrirám.
Çertamente eu sey as vossas cuidações 27
e as vossas semtenças comtra direyto
que dades comtra mym.
Pois como me comfortades vós a mym em vãao, 34
pois que as vosas repostas se mostram comtra verdade?

Capitullo XVI

Das palavras de huum amiguo de Job

/ Foi. CLXXXII v / <R>espomdeo o outro amiguo de Job que se 22 1


chamava Elifaz e disse:
Per vemtura pode ser comparado a Deos o homem, 2
aimda que seja de perfeita çiemcia?
Que aproveita a Deos se tu fores justo 3
ou que lhe dás tu se a tua vida foy sem magoa?
Por vemtura com temor te repremderá 4
e nam pella tua maliçia muyta 5
e pellas tuas imfimdas maldades?
Ca tu tolheste o penhor a teus irmãaos sem rezam 6
e esbulhaste-os nuus de sua vistidura;
nam deste agoa ao fraquo 7
e tiraste o pam ao famimto;

20 A omissão do v. 19 subtraiu ao texto o antecedente de sua, os filhos do pai ímpio.


27 comtra direyto, V g : «iníquas».
118 DIDASKALIA

8 e na fortaleza do teu braço posuyas a terra


que tu muy poderosso tinhas em teu poder;
9 e as viuvas leixaste vazias
e britaste os braços dos orfãaos.
10 E porém es çercado de laços
em o temor de sobre vemta te confortava.
21 Pois obedeçe a Deos e ave paz,
ca por esto averas muy bõos fruitos;
22 reçebe a ley da sua boca,
poemdo as suas palavras no teu coraçam.
23 E se tu tornares a Deos todo poderosso,
tu serás edificado
24 e averas muytas riquezas.
27 Rogá-lo-ás e elle te ouvirá,
29 ca aquelle que se humilda sera em gloria
e aquelle que abaixar os seus < olhos) sera salvo.
30 O innoçemte sera salvo na limpeza de suas maãos.

Capitullo XVII
Das palavras de Job aos amiguos.

1 23 <R)espomdeo Job e disse:


3 Quem me dera a mym que eu conheça e ache Deos
e venhamos ate sua cadeira.
4 Poerey amte elle o juizo.
6 Nam quero eu que elle comtemda comiguo com muyta fortaleza
nem me apreme com a multidam de seu peso.
7 Proponha igualdade comtra mym
e o meu juizo venha a vitoria.
10 Ca elle sabe a minha carreira
e provar-me-á asy como o ouro que passa pello fogo.
14 Quamdo elle cumprir em mim a sua vomtade
e outras muytas coussas, se me vir, eu sam prestes a elle.

22 8 posuyas, no ms. «posuyras».


9 viuvas, no ms. «vimias».
10 de sobre vemta traduz «súbita»; confortava deve ser lapso. Vg: «conturbat».
29 olhos falta no manuscrito.
23 14 se me vir, Vg: «similia», que daria «semelhavees», que supomos ser a lição verdadeira do códice
de Alcobaça.
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 119

E porém sam torvado da sua face 15


e, comsiramdo-o, sam posto em grande temor.
Deos britou o meu coraçam 16
e o todo poderosso me comtorvou.

Os tempos nam sam escomdidos a Deos todo poderoso. 24 1


Pella manhãa se alevanta o omycyda 14
e mata o pobre e o mimgoado;
e de noyte he asy como ladrã.
O olho daquelle que faz adultério aguarda a escuridade 15
e diz: Nam me verá o olho. 17
E quamdo pareçer a manhaã, semelha-lhe sombra de morte
e a luz lhe pareçe trevas. 18
Maldita sera a sua parte e o seu quinhaão na terra, 19
e os seus pecados chegam atee os imfernos.
A misiricordia se esqueça delle e a sua duçura seja vermeem: 20
c seja britado asy como lenho sem fruyto.
Deo-lhe Deos lugar de pemdemça e elle usou mal com soberba. 23

Capitullo XVIII

Das palavras de huu amiguo de Job

j Foi. CLXXXIII/ <R>espomdeo emtam o outro amigo de Job 25 1


que se chamava Baldac e disse:
Per vemtura pode ser o homem justificado em comparaçam de 4
Deos ou o naçido da molher pode pareçer limpo?
Ves que a luua nam respramdeçe 5
nem as estrelas nam sam limpas amte elle;
quamto mais o homem que he pudridam 6
e o filho do homem que he vermeem.

24 14 O omycyda e aquele que faz adultério, representantes duma lista de criminosos que a nossa
versão deixou por nomear nos vers. que saltou (2-13).
25 5 Vês, lat. «ecce», que costuma vir simplesmente transcrito: «ex».
120 DIDASKALIA

Capitullo XIX

Das palavras de Job

1 26 (R)espomdeo Job e disse:


2 27 Vive o Senhor que tirou o meu juizo
e o todo poderosso que aduxe a minha alma em amargura.
3 Ca, emquamto for o espritu de Deos nos meus narizes,
4 nam falaram as minhas palavras maldade
nem a minha limgoa cuydará memtira,
5 nem me partirey da minha inoçemçia,
6 nem leixarey a minha justificaçam que começey de ter.
13 Esta he a parte e ha herdade
que reçebe o maao e roubador, de Deos.
16 Se comprir asy como terra ou prata
e aparelhar vestimentas asy como lodo,
17 aparelhá-las-ha elle, mas o justo sera vestido delias
e o inoçemte partirá a sua prata.
19 O rico quamdo morrer nam levará comsiguo nenhuüa coussa:
abrirá os seus olhos e nam vera nenhuüa coussa.
20 E compremde-lo-ha a lazeira asy como agoa de noyte
e apremá-lo-ha e quebramtá-lo-ha;
21 e a tempestade tomá-lo-á o vemto queymamte,
e roubá-lo-ha e tirá-lo-ha de seu lugar.

2 28 A sabedorya omde pode ser achada


e qual he o lugar do emtemdimemto ?
13 Nem sabe o homem o preço delia,
nem pode ser achada na terra daquelles que vivem delicadamemte.
14 E o avisso diz: Nam he em mym;
e o maar fala: Nam he comigo.

26 1 Introdução a uma antologia dos discursos de Job, que se estendem pelos caps. 27-31.
O discurso do Cap. 26, uma resposta irónica de Job à pequena intervenção de Baldad, é total-
mente omisso.
27 13 parte e herdade, maao e roubador: curiosa maneira de interpretar o paralelismo hebraico,
juntando os termos que se correspondem nos estíquios e obtendo assim dois binómios, cujos
termos se explicam.
16 ou prata, talvez «a prata».
20-21 A inclusão de e ... e antes de aprema-lo-ha e de tempestade perturbou a distribuição das
sentenças. O sentido esclarece-se, marcando um ponto depois de agoa e omitindo os dois
e ... e, e colocando outro ponto depois de tempestade.
28 14 o maar fala, no ms.: «o mal falar», por lapso de interpretação do códice.
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 121

Nem sera dado ouro por ella 15


nem sera pesada por a darem por ella.
Nem sera a sabiduria e imtiligemçia apodada 16
às coroas fermossas ajuntadas de terra da Imdia
nem à pedra sedonya nem à çafira preçiossa,
nem sera iguoal a ella o ouro ou o vidro, 17
nem seram trocados por ella os vassos do ouro fremossos.
A sabedoria he tirada das coussas escomdidas 18
e nam sera igual a ella a estopaça de Ethiopia. 19
Pois domde virá a sabeduria 20
e qual he o lugar da imtiligemçia?
Escomdida he dos olhos de todos os homês que vivem. 21
Deos emtemde a carreira delia 23
e elle sabe o lugar delia.
E disse ao homem: Ex o temor de Deos, esta he a sabeduria; 28
partir-se do mal, esta he a imtiligemçia.

E acreçemtou mais Job e disse: 29 1


Quem me dera a mym que eu seja asy como nos messes primeiros 2
e segumdo os dias em que me Deos guardava!
Quamdo esplamdeçya a sua camdea sobre a minha cabeça; 3
asy como foy nos dias da minha mançebia, 4
quamdo Deos em segredo era na minha morada;
quamdo o todo poderoso era comiguo 5
e meus moços eram d'aredor de mym,
e quamdo eu saya a porta da çidade 7
e aparelhavam-me cadeira na praça.
Viam-me os mamçebos e escomdiam-se 8
/ Foi. CLXXXIII v / e os velhos levamtavam-se e estavam;
e os primçipes quedavam de falar 9
e punham o dedo sobre a sua boca.
A bemçam vinha sobre mym, 13
e vistido era de justiça. 14
Eu fuy olho ao çego e pee ao çopo 15

15 nem sera pesada, isto e, a prata, que falta no texto.


16 çafira, no ms. «cafira».
19 estopaça, Vg: «topazius».
29 4 Foy, Vg: «fui».
13 bemçam. A Vg acrescenta «perituri».
15 çopo: isto é, coxo. Em castelhano zopo.
122 DIDASKALIA

16 e era padre dos pobres;


17 e britava os demtes do maao
e dos demtes delle tirava a prea.
21 Aquelles que me ouvyam esguardavam a minha semtemça,
25 e quando quiria ir a elles, eu saya primeiro
e estava asy como rey e sua companha em de redor;
e com todo esto era comfortador dos que choravam.

1 30 Mas agora escarneçem de mym os que sam mais matr çebos que
eu; aquelles cujos padres eu desdenhava poer com os meus caães
2 e a fortaleza das maãos delles era avida por nada,
e eram comtados por nam dignos da vida
3 e manynhos com fome e com mimgoa;
8 filhos dos samdeus e dos viis
que nam pareçiam na terra.
9 E agora sam eu tornado em escarneo delles
e sam feyto em seu provérbio;
e ham-me aborreçido e fogem lomge de mym
e nam ham vergonha de cuspir na minha façe.
15 E sam tornado em nada
16 e seca-se a minha alma em mym mesmo
e os dias da afliçam me posuem.
17 De noyte os meus ossos sam furados com dores
e os que me comem nam dormem.
18 E cimgiram-me asy como a traça
19 e sam semelhável ao lodo e à faysca e à cimza.
20 Bradarey a ty, Senhor Deos, e nam me ouves;
e estou e nam me oulhas.
21 Mudado têes a mym tu em cruel,
e com dureza da tua mãao es comtra mym.
23 Eu sey que tu me daras a morte
em que lie estabeleçida a casa a todo o vivemte.
25 Eu orava em outro tempo sobre aquelle que era aflito
e a minha alma avia compaixam ao pobre.

17 dos demtes, no ms. «dos demte».


25 saya, Vg: «sedebam».
30 1 O contraste da situação actual de Job com o que fora antes lucra dramaticamente com
os cortes feitos ao texto original.
20 Bradarey, Vg: «clamo».
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 123

Esguardava boõas coussas e vieram-me maas; 26


demamdava luz e vieram-me trevas.
As mynhas emtranhas ferveram sem nenhuüa folgamça; 27
o meu coiro he feyto negro sobre mym 30
e os meus ossos secaram-se-me com a calma,
tornada em luyto a minha citolla 31
c o meu orgaão tornado em voz de choramtes.
Fiz preitisia com os meus olhos 31 1
que nam cuidasem nenhuüa coussa da virgem.
Que parte ha em mym Deos de çima? 2
Por vemtura comsira elle as mynhas carreiras 4
e conheçe todos os meus amdamemtos?
Se eu amdey em vaidade 5
e o meu pee foy trigoso per emgano,
pese-me Deos em balança justa 6
e saiba a minha simplizidade.
Se eu desvyey os meus amdamentos da carreira 7
e se o meu olho siguyo o meu coraçam
e se se apremdeo magoa às minhas mãaos,
semee eu e outrem colha o que eu semear 8
e a mynha geraçam seja arramcada.
Se o meu coraçam foy emganado sobre molher 9
e se assechey aa porta do meu amigo,
seja a minha molher putarya de outrem 10
e sobre ella se deytem outros;
ca isto he gramde maldade 11
e gramde aleive;

27 ferveram: uni pequeno r escrito sobre o 2.° da palavra, emendada, mostra o cuidado do copista
em garantir a leitura autêntica do códice que transcrevia.
31 1 preitisia é a maneira comum de traduzir «foedus» na Bíblia de Alcobaça, onde o termo vem
escrito «preitasia». O vocábulo supõe o primitivo «preito», de que «pleito» e uma variante.
O códice escorialense I-j-3 lê «pleitisia».
2 Saltando or cima do v. 3, traduzindo «haberet» pelo presente e subordinando o v. 2 ao 4,
a nossa versão altera um pouco o sentido.
5 vaidade, no ms. «veidade».
9 assechey, com sabor a castelhanismo, causa estranheza depois da tradução de «insidias» do
cap. 15,21 por «asseytamentos». Devíamos esperar qualquer coisas como «asseitey». As
versões medievais castelhanas, essas trazem todas uma forma do verbo «asechar». Acrescentamos
ao que ficou escrito a versão da General Historia: «Si el myo coraçon... si assecho a la puerta
de mio vesino, la my mugier...» (Códice 125 da B.P. de Évora, f. 193 v. 1." col.). A coinci-
dência é tanto mais curiosa, quanto é certo que as versões seguem cada uma o seu caminho.
Por exemplo, nenhuma delas traz a glosa do v. 8 que eu semear. Reproduzimos ainda o v. 11
na versão da Gen. Hist.: «Ca es esta cosa vedada e grant tuerto».
124 DIDASKALIA

12 e he fogo que destrue ate o acabamemto de todo


e que arramca todallas gerações.
13 Se eu desprezey estar em juizo com o meu servo e com a
minha serva, e lhe nam quis fazer de mym direyto quall me
14 demamdava, que farey quando se alevamtar Deos pera julgar?
E quamdo me demandar, que lhe respomderey?
21 Se me levantey sobre o orfão,
22 a minha mãao caya e o meu honbro da sua juntura,
e o meu braço seja quebrantado com os seus ossos.
23 Ca eu sempre temy Deos asy como omdas bravas sobre mym,
e nam pude sofrer o pesadume delle.

/ Foi. CLXXXIIII / Capitullo XX

Das palavras de Elihu a Job e a outros seus amigos

1 32 <L>eixaram-se de respomder a Job os tres amigos porque lhes


2 pareçeo justo. E asanhou-se o outro que chamavam Elihu, filho de
3 Barrachel comtra Job porque se dizia justo amte Deos. E asanhou-se
outrossy Elihu comtra os tres amigos porque nam acharam resposta
razoada, senam tam soomemte comdanaram-no a Job.
4 E esperou que falasem porque os outros eram mais velhos que elle.
5 E quamdo vio que elles tres nam podiam respomder, asanhou-se
fortememte e respomdeo Elihu e disse:
6 Eu sam mais mancebo de dias e vos sodes mais velhos,
e porém com a cabeça abaixada reçehey de vos amostrar minha
7 sentemça, porque eu esperava que a multidam dos meus annos
emsinasem a sabedoria;
8 mas, segumdo eu vejo, o espritu he nos homêes
e a imspiraçam do todo poderosso daa emtemdimemto.
9 Nam sam os velhos sabedores
nem emtemdem o juizo;
12 e, segumdo vejo, nam he nenhuu delles que possa respomder a Job
e repremder as suas palavras.
20 Eu abrirey a minha boca e respomderey.

21-22 me, introduzido, indevidamente, antes do verbo, deslocou a minha mãao, que devia ser o compl.
objectivo de levantey.
32 6 sodes, desta vez, como se devia ler no códice alcobacense.
12 as suas, no ms. «asuas».
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 127

Pois ouve tu, Job, as minhas palavras e escuyta:


O espritu de Deos me faz a mym,
o espiracolo do todo poderoso me avivemtou;
e asy fez Deos a mym como fez Deos a ti,
e dese mesmo lodo sam eu formado
E tu disseste:
Limpo sam eu e sem magoa de pecado,
e nam hay em mym maldade;
e porque achou em mym querelas,
teve-me por seu imigo;
pos em o nervo os meus pees
e guardou todos os meus caminhos.
Pois isto he aquillo em que tu nam es justificado.
Eu te respomderey qu^ Deos he maior que o homem;
e tu comtemdes comtra elle
porque te nam respomde a todas palavras.
Huüa vez falará Deos
e a segumda vez nam repite aaquello.
Per sonho em vissam da noyte,
quamdo os homês dormem em seu leyto,
emtam abre Deos as orelhas dos varões
e emsinaa-os a diciplinar
pera tirar aos homês daquellas cousas que faz
e pera o livrar da soberba
e tirar a alma delle de corruçam
e livrar a vida delle, pera nam pasar a espada.

Nem ha em Deos crueldade


nem desigualdade no todo poderoso;
que elle dara ao homem a sua obra
e segumdo as carreiras de cada huu asy lhas emtregará.
Verdadeiramemte Deos nam comdanará em vaão
nem o todo poderosso nam soverterá o juizo.
Per vemtura aquelle que nam ha juizo pode ser sãao ?
E como comdanas tu aaquelle que he justo,
que nam recebe as pessoas dos primçipes
nem conhece o tirano quamdo comtende como pobre?
Ca todos sam obras das mãaos delle.
4 faz, V g : «fecit».
12 comtemdes, no ms. «comtemde».
126 DIDASKALIA

20 Muy asynha morreram os pobres,


21 ca os olhos de Deos sam sobre as carreiras dos homès
e consira todos os seus andamemtos.
25 Ca elle sabe as obras delles
e porém aduzirá a noyte e serám quebramtados;
26 e ferio com suas mãaos aaquelles
27 que de seu grado se partiram delle
e nam / Foi. CLXXXIIII v / quisseram emtemder as suas carreiras.
29 Ca se elle outorgar a paaz, quem he aquelle que comdanará ?
E despois que elle escomder o seu rosto,
quem he aquelle que o comtenprará?
E sobre as gemtes e sobre os homêes
30 faz que homem ypocrita regne pello pecado do povo.

23 37 Gramde he Deos em fortaleza e em juizo e em justiça,


que nam se pode comtar.
24 E portamto o temerám os varões;
e todos aquelles que cuidam que sam sabedores
nam oussarám de comtemplar.

Capitullo XXI

Das palavras do Senhor

1 38 <R)espomdeo o Senhor Deos de demtro do revolvimemto


do vento e disse-lhe:
2 Quem he este que revolve as sentemças
com palavras nam sages?
3 Cimge asy como baram os teus lombos
e pregumtar-te-ey e respomder-me-ás:
4 Onde eras tu quamdo eu punha os fumdamentos da terra ?
Dize-me, se has emtemdimemto,
5 se sabes quem pôs as mididas da terra
ou quem estemdeo sobre ella a linha;

34 20 os pobres não vem no texto latino e perturba o sentido.


29-30 O último estíquio de 29 pertence ainda, na Vg, à 2 o interrogação. A divisão das sen-
tenças na nossa versão aproxima-se do TM, mas o sentido (afirmativo) é o da Vg.
27 23 Os versículos finais do cap. 37 foi o que escapou dos dois últimos discursos de Eliu. Eles
fazem de introdução às «palavras do Senhor» dos capítulos seguintes.
38 3 Cimge, HCA: «Acinge».
4 Onde, HCA: «Hu»; dize-me, HCA: «dymo».
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 127

e sobre que sam fumdados os pees das colunas delia; 6


ou que leixou a pedra amgular do camto delia,
quamdo me louvaram asuadamemte as estrellas da manhaã 7
e quando camtavam todos os filhos de Deos?
Quem çarrou com portas o maar 8
quamdo elle saya rijamemte assy como de vemtre,
quamdo eu punha nuve por vestimemta delle 9
e o emburilhava em escuridam asy como em panos de minino ?
Eu circumdey o maar com seus termos 10
e pus-lhe portas e fechos, dizemdo:
Até qui virás e narn sayrás mais 11
e aqui abitarás as tuas temdas bravas.
Per vemtura a manhaã se mamda per ty 12
ou lhe mostraste tu o seu lugar ?
Per vemtura tu abalaste os cabos da terra e tiveste-ha 13
e deytaste os maaos fora delia?
Per vemtura emtraste tu no fumdo do maar 16
e amdaste nas baixuras do abismo ?
Per vemtura sam a ty abertas as portas da morte 17
e viste tu as portas trevossas?
Per vemtura comsiraste tu a amchura da terra? 18
Demostra-me tu, se sabes todas as coussas,
em qual carreira mora a luz 19
e qual he o lugar das trevas.
Por vemtura emtraste tu nos tisouros da neve 22
ou viste tu os tisouros do pidrisco
que eu aparelhey no tempo do imigo 23
e no dia da guerra e da batalha?
Por vemtura poderás tu ajumtar as estrellas resplamdeçemtes 31
ou poderás desfazer o çeo?
Por vemtura tu fazes a estrella da manhaã em seu tempo 32
e fazes alevamtar a tarde e a noyte sobre os filhos do homem?
Por vemtura sabes tu a ordem do çeo 33
e poerás a rezam delle na terra?

7 que (leixou), HCA: «quem».


9 punha, HCA: «poinha»; emburilhava, HCA: «envorilhava»; nuve, «ouve» no ms.
10 dizemdo, HCA: «e dixe».
11 HCA: «e aqui britarás as tuas ondas bravas», que deve ser a lição autêntica. A semelhança
grafica explica a confusão.
13 os maaos, HCA: «as maaos». Aqui o deslise foi do autor da História de Alcobaça.
128 DIDASKALIA

35 Por vemtura emviarás tu coriscos e irám por teu mamdado


e, quamdo se tornarem, dirám: ex aquy somos?
36 Quem pos em o coraçam do homem a sabedoria?

31 39 E emadeo o Senhor Deos mais a Job e dise-lhe:


32 Per vemtura aquelle que contemde com / Foi. C L X X X V / Deos
tam ligeiramemte folga?
Çertamemte aquelle que repremde Deos deve-lhe respomder.
33 E respomdeo Job dizemdo ao Senhor Deos:
34 Eu que faley levememte, que poso responder?
Poerey a minha mãao sobre mynha boca.

Capitullo XXII

Das palavras do Senhor Deos

1 40 <R)espomdeo o Senhor Deos do revolvimemto do vemto e dise


a Job:
2 Çimge asy como baram os teus lombos
e preguntar-te-ey e mostra-me
3 se per vemtura faras tu vaão o meu juizo,
comdanarás por fazeres de ty justo;
4 se tu has braço asy como Deos
e se tu soas com tal voz asy como elle.
5 Circumda-te de fermusura e alevamta-te em alto
e see glorioso e veste-te de vistiduras fermossas.
6 E destrue os soberbossos em a tua sanha.
7 Pára memtes em todos os soberbos e destrue-os e cunfunde-os
e quebramta os maaos em huü seu lugar.
8 Escomde-os em o poo,
amerge as façes delles em a cova.

9 E se tu isto fizeres, comfessarey eu


que a tua maão direyta poderá salvar.
27 Lembra-te da batalha e nam emnhadas mais a fallar.

39 34 faley, no ms.: «farey»; na Vg: «locutus sum».


40 5 see, HCA: «sei (glorioso)».
7 soberbos, HCA: «sobervosos».
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 129

Quem lie aquelle que poderá resistir ao meu rosto, 41 1


e quem deu a mym amte pera eu dar depois a elle? 2
Todallas coussas que sam debaixo dos çeos todas sam minhas.
Nam perdoarey eu ao liviatan que he o diabo 3
com palavras poderossas e compostas pera rogar.
O corpo delle é assy como os escudos fusys 6
e ajumtado com escumas huüas sobre as outras.
O seu espirro he respramdor de fogo, 9
e da sua boca sahem lampadas de fogo açessas; 10
e dos seus narizes sae fumo 11
asy como de panella açessa e fervemte.
O seu bafo faz arder as brassas, 12
e chamas saem da sua boca.
O seu coraçam sera emdureçido asy como pedra 15
e apagar-se-á asy como folies de ferreiro.
Quamdo elle for tirado, temerám os amgeos 16
e com espamto seram apagados.
Quando o apremder a espada, nam poderá durar. 17
Comtra elle nam ha aste nem loriga,
ca elle nam fara comta do ferro senam como de palhas; 18
e em tam pouco trazerám o arame como o linho podre.
Nam o afugentará o beesteiro, 19
e as pedras da fumda, que lhe lamçarem, tornar-se-am em restolho;
e fara comta do machado asy como de cana de restolho 20
e escarneçerá daquelle que esgrime a aste;
E sob elle os rayos do soll, 21
e estiará so sy o ouro asy como lodo;
e fara ferver asy como panella o mar profumdo. 22
Nam ha poderyo sobre a terra que seja comprido a elle, 24
o que he feyto pera nam temer nenhuü.
Elle vio toda cousa alta; 25
elle he rey sobre todos os filhos da soberba.

41 11 panella, HCA: «ola».


15 folies de ferreiro, HCA: «incus de ferreiro».
18 trazerám, HCA: «terá»; linho, HCA: «lenho» (cfr. 24,20, onde tb. o nosso ms. traz deste modo).
21 estiará, HCA: «estrará» (cfr. 17,33); como lodo, no ms. «como ouro».
24 comprido, HCA: «comparado».
9
130 DIDASKALIA

Capitulo XXIII

Das palavras de Job ao Senhor Deos

1 42 / Foi. C L X X X V v / <R)espomdeo Job ao Senhor Deos e disse:


2 Sey que tu es o todo poderosso
e nam se escomde a ti toda criatura.
3 Quem he aquelle que escomde o comselho
sem ciemcia?
E portamto falley eu neyçiamemte e taaes coussas disse
que sem maneira sobrepujam aa minha çiemçia.
5 Eu te louvey com o ouvydo da orelha,
mas agora o meo olho te vee.
6 E porém eu mesmo me repremdo
e faço pemdemça em faisca e cimza.

Capitullo XXIIII

Como foy restituído Job por Deos a todas as suas riquezas e grande estado

7 42 <(D)espois que o Senhor Deos fallou estas palavras a Job, disse


Deos a huü daquelles amigos que se chamava Elifaz: A minha sanha
he irada comtra ty e comtra os outros teus dous amigos, porque nam
8 falastes direyto comtra mym asy como o meu servo Job. Pois tomade
vós outros sete touros e sete carneiros e hyde ao meu servo Job e
ofereçede sacrifxçio por vós. E o meu servo Job orará por vós
e eu reçeberey a sua façe, por vos nam ser acoymada a samdice, ca
vós nam falastes amte mym direito asy como o meu servo Job.
9 Emtam se foram aquelles tres, a saber, Elifaz, Baldac e Sofar, e fize-
ram asy como lhe disera o Senhor Deos; e reçebeo o Senhor a façe
de Job.
10 E tornou-se Deos a pemdemça de Job quamdo elle orou pellos
11 seus amigos. E acreçemtou Deos todallas cousas que foram de Job,
em dobro. E vieram a elle todollos seus irmãos e todas suas irmaãs
e todos aquelles que o conheçiam primeiro, e comyam com elle pam

42 1 Deus, no ms «disse» repetido.


2 toda criatura, no ms. «todo criatura».
5 louvey, na Vg: «audivi».
VERSÃO MEDIEVAL INÉDITA DO LIVRO DE JOB 131

em sua cassa delle. E moveram a cabeça sobre elle e comfortaram-no


sobre todo o mal que Deos lamçara sobre elle; e deo-lhe cada huü huua
ovelha e huü dinheiro de ouro.
E o Senhor Deos bemzeo as coussas postimeiras de Job mais 12
que ha ho seu começo e foram-lhe feitas quimze mill ovelhas e sete
mill camellos e mill jugos de boys e mill asnas.
E ouve sete filhos e tres filhas. E pôs nome a huua delias 13
Dya, e a segumda Caxiam e a terçeira Cara de Tromba. E nam 14
<sam> achadas em toda a terra molheres tam fermossas como as filhas 15
de Job, aas quaaes deu o padre herdades amtre os irmãaos delias.
E viveo Job depois destas coussas çemto e cimquoemta annos 16
e vyo os seus filhos e netos atee quarta geraçam, o qual morreo velho
e comprido de dias.

Fim

Laus sit Domino Deo in eternum

Amem

42 11 dinheiro, no ms. em abreviatura dn.°.


15 Cara de Tromba, Vg: «Cornustibii», nome dum objecto de toucador. Em geral as versões
trascrevem apenas o termo latino. E o mesmo teria feito o tradutor alcobacense. A tradução
inesperada do ms. será devida a leitura defeituosa.

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