Pontifícia Universidade Católica de Campinas Centro de Ciências Humanas E Sociais Aplicadas

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS


APLICADAS

EDILZA RODRIGUES CAMPELO DA SILVA

O TRANSCENDENTE NO IMANENTE: O FENÔMENO


RELIGIOSO NA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA
ANALÍTICA DE CARL GUSTAV JUNG

Campinas
2020
EDILZA RODRIGUES CAMPELO DA SILVA

O TRANSCENDENTE NO IMANENTE: O FENÔMENO


RELIGIOSO NA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA
ANALÍTICA DE CARL GUSTAV JUNG

Dissertação de mestrado apresentada ao


programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em
Ciências da Religião, do Centro de Ciências
Humanas e Sociais Aplicadas, da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas, para
obtenção do grau de Mestre em Ciências da
Religião.

Orientador: Prof. Dr. Renato Kirchner.

PUC-CAMPINAS
2020
Agradecimentos

Agradeço afetuosamente ao meu esposo Carlos Campelo pelo incentivo,


apoio, dedicação e compreensão a mim dispensados. Aos meus irmãos, irmãs,
sobrinhos e sobrinhas que estão sempre ao meu lado. À amiga e companheira
Professora Josiane Gonçalves, que bondosamente atendeu minhas solicitações.
Meus sinceros agradecimentos ao coordenador do Programa de Pós-
Graduação Strictu Sensu em Ciências da Religião da PUC-Campinas, Prof. Dr.
Renato Kirchner, por todo esforço dispensado na orientação desta pesquisa.
Agradeço pela generosidade em acolher a ideia e conduzir cada fase do
desenvolvimento, desde o anteprojeto até a conclusão da dissertação.
Agradeço a todos os professores, pelo conhecimento compartilhado. Enfatizo
aqui o Prof. Dr. Douglas Barros por todas as suas relevantes contribuições. Agradeço
também à secretária deste Programa, Marlei Costa, sempre dedicada e prestativa.
Acima de tudo, sou grata ao “Soberano do Universo”, que em sua magnífica
plenitude manifesta-se através de nós, tornando-nos sua imagem e semelhança.
Sei que sem mim Deus não pode viver um instante,
Se eu perecer, deverá necessariamente entregar o espírito.

Sem mim Deus não pode criar um verme sequer:


Se com ele eu não o compartilhar, destruição será seu fim.

Sou grande como Deus, pequeno ele é como eu:


Não pode estar acima de mim e nem eu abaixo dele!

Deus é fogo em mim e eu sou dele a claridade:


Não estamos nós totalmente unidos no âmago?

Deus me ama acima dele e eu acima de mim o amo,


Tanto lhe dou eu quanto ele de si me dá!

Deus é Deus e homem para mim, eu lhe sou homem e Deus.


Sacio-lhe a sede e ele me ajuda nas precisões.

Deus se adapta a nós, é para nós o que dele queremos;


Mas, ai de nós, se não tornarmos para ele o que devemos.

Deus é o que é, eu sou o que sou:


Conhecendo bem um, conhecerás a ele e a mim.

Não existo fora de Deus, nem Deus fora de mim,


Sou dele brilho e luz e ele é meu ornamento.

Sou o ramo no filho que Deus planta e nutre,


O fruto que de mim brota é Deus, o Espírito Santo.

Sou criatura e filho de Deus e ele é meu filho por sua vez:
Como pode acontecer, porém, que ambos sejamos as duas
coisas?

Sol devo ser e devo com meus raios


Pintar o mar sem cor de toda a divindade.

Ângelo Silésio
RESUMO
SILVA, Edilza Rodrigues Campelo da. O transcendente no imanente: o fenômeno religioso na
perspectiva da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung. 2019. Dissertação (Mestrado em Ciências da
Religião) – Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Ciências da Religião da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas.

O objetivo do presente trabalho é, a partir do pensamento de Carl Gustav Jung (1875-


1961), fundador da Psicologia Analítica, compreender a relação entre fenômeno
religioso e fenômeno psíquico. Para tanto, valemo-nos do arcabouço teórico do
referido autor elencando os conceitos de energia psíquica, inconsciente pessoal,
inconsciente coletivo, arquétipos, tipos psicológicos e processo de individuação. No
que tange ao fenômeno religioso, recorremos a experiências vivenciadas por Jung em
épocas e locais distintos, tais como: os árabes no deserto do Saara na África do Norte,
os nativos do monte Elgon na África Ocidental, os índios pueblos no Novo México, o
hinduísmo e o budismo na Índia, e o cristianismo na Europa, evidenciando como este
fenômeno encontra-se presente nas mais diversas representações culturais e, como
o indivíduo dele se apropria. A Psicologia Analítica de Jung e a ênfase que esta atribui
ao religioso aponta que este fenômeno se apresenta de acordo com a função psíquica
envolvida, por isso, ressalta a importância em observar todas as formas de religião.
Os tipos introversão e extroversão; e as funções, pensamento, sentimento, percepção
e intuição, configuram a dinâmica arquetípica na experiência e atitude religiosa e
psíquica. Em seu trajeto, Jung interessou-se pela psicologia das experiências
religiosas do indivíduo, experiências que culminam no processo de individuação ou
na totalidade psíquica. Apropriamos-nos da experiência religiosa do Apóstolo Paulo,
a fim de representar este processo, a partir de uma experiência individual. Desse
modo, esta pesquisa pretende compreender o fenômeno religioso a partir dos relatos
de experiências com o transcendente. O transcendente no imanente é o que
estabelece a linguagem possível entre o ser humano e algo que está para além dele
mesmo. Esta linguagem acontece por meio dos símbolos religiosos arquetípicos do
inconsciente coletivo, sendo que, a função da alma, enquanto função psíquica, é
tornar conscientes esses símbolos inconscientes.

Palavras-chave: Carl Jung; Psicologia Analítica; Fenômeno Religioso; Fenômeno


Psíquico.
ABSTRACT
SILVA, Edilza Rodrigues Campelo da. The transcendent in the immanent: the religious phenomenon
from the perspective of Carl Gustav Jung’s Analytical Psychology. 2019. Dissertation (Master of Science
in Religion) – Strictu Sensu Postgraduate Program in Religious Sciences of the Pontifical Catholic
University of Campinas.

The aim of this paper is, from the thought of Carl Gustav Jung (1875-1961), founder of
Analytical Psychology, to understand the relationship between religious phenomenon
and psychic phenomenon. For this, we use the theoretical framework of the author,
listing the concepts of psychic energy, personal unconscious, collective unconscious,
archetypes, psychological types and process of individuation. Regarding the religious
phenomenon, we resort to Jung’s experiences in different times and places, such as:
Arabs in the Sahara Desert in North Africa, Mount Elgon in West Africa, Pueblos in
New Mexico, Hinduism and Buddhism in India and Christianity in Europe, showing how
this phenomenon is present in the most diverse cultural representations and how the
individual appropriates it. Jung’s Analytical Psychology and its emphasis on the
religious point out that this phenomenon is presented according to the psychic function
involved, therefore, emphasizes the importance of observing all forms of religion. The
introversion and extroversion types, and the functions, thought, feeling, perception,
and intuition, shape the archetypal dynamic in religious and psychic experience and
attitude. In his journey, Jung became interested in the psychology of the individual’s
religious experiences, which culminate in the process of individuation or psychic
wholeness. We appropriate the religious experience of the Apostle Paul in order to
represent this process from an individual experience. Thus, this research intends to
understand the religious phenomenon from the reports of experiences with the
transcendent. The transcendent in the Immanent is what establishes the possible
language between the human being and something beyond himself. This language
happens through the archetypal religious symbols of the collective unconscious, and
the function of the soul as a psychic function is to make these unconscious symbols
conscious.

Keywords: Carl Jung; Analytical Psychology; Religious phenomenon; Psychic


phenomenon.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 8
Um breve relato sobre o autor ....................................................................................................... 9
Psicologia, Religião e Ciências da Religião: um percurso histórico. ...................................... 10
1 A RELAÇÃO ENTRE A TEORIA DE JUNG E O FENÔMENO RELIGIOSO ......................... 17
1.1 A energia primeira: a força propulsora da libido ................................................................. 17
1.2 O inconsciente e sua autonomia: uma nova concepção ................................................... 25
1.3 A função transcendente: passagem para uma nova atitude ............................................. 30
1.4 O Processo de Individuação.................................................................................................. 35
1.5 Os tipos e as funções psíquicas: o indivíduo e o fenômeno religioso ............................. 43
1.5.1 O conceito de Deus e a relação com os homens ........................................................ 44
1.5.2 A estrutura psíquica: diferenças e desdobramentos ................................................... 47
1.5.3 Os tipos racionais e irracionais: as funções superiores e inferiores. ........................ 53
2 DIVERSIDADE CULTURAL E APROPRIAÇÃO DO FENÔMENO RELIGIOSO: UM RELATO
EMPÍRICO .......................................................................................................................................... 69
2.1 África do Norte: primeiras impressões ................................................................................. 71
2.1.1 Momento das preces: hora sagrada .............................................................................. 72
2.1.2 Cerimônias: anteparo da imagem de Deus .................................................................. 74
2.1.3 A voz de Mungu: a importância dos sonhos ................................................................ 75
2.1.4 O livro e o fogo: Europa e África .................................................................................... 77
2.2 O deus Sol e os Índios Pueblos no Novo México ............................................................... 80
2.2.1 Devoção ao Sol: sentimento introvertido ...................................................................... 82
2.3 O Oriente e a introversão ....................................................................................................... 84
2.3.1 Índia: uma civilização matriarcal .................................................................................... 85
2.3.2 Hinduísmo: o fenômeno religioso e a função transcendente ..................................... 87
2.3.3 Buda: uma representação do si mesmo ....................................................................... 91
2.4 O Ocidente e a extroversão ................................................................................................... 96
2.4.1 O símbolo de Cristo: o arquétipo do si-mesmo............................................................ 98
2.4.2 A experiência do numinoso: transformação da consciência .................................... 102
2.4.3 Experiência Religiosa e Processo de Individuação: o Apóstolo Paulo ................... 103
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................... 108
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................... 113
8

INTRODUÇÃO

O interesse pelo tema da pesquisa surgiu a partir do estágio em um CAPS


(Centro de Atenção Psicossocial) 1 como atividade correspondente à disciplina de
psicopatologia no curso de psicologia. Esta experiência possibilitou alguns
questionamentos relacionados à psique e religião. Isto me ocorreu por observar que
muitos “usuários” do CAPS apresentavam uma relação bem significativa com o
fenômeno religioso. Advindo de diferentes credos, essas pessoas evidenciavam suas
crenças apesar das crises ou adoecimento psíquico. Ao buscar uma abordagem
dentro das ciências psíquicas que auxiliassem na compreensão da relação entre
fenômeno religioso e fenômeno psíquico, deparei-me com a Psicologia Analítica ou
Psicologia Profunda do médico psiquiatra Carl Gustav Jung (1865-1961), abordagem
utilizada como mote para o desenvolvimento desta pesquisa.
Ao tomar conhecimento do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, uma possibilidade para
desenvolver a pesquisa e aprimorar os conhecimentos foi avistada. A abrangência de
conhecimentos e saberes não apenas relacionados ao fenômeno religioso em sua
grande diversidade, como também em diversas áreas do conhecimento como filosofia,
antropologia, sociologia, teologia, política, história, comunicação, entre outros
oferecidos no curso, junto à possibilidade de dialogar com pesquisadores de diversas
abordagens voltados para a compreensão do fenômeno religioso ou experiência
religiosa, foram os principais motivadores pelos quais decidi me candidatar ao
processo seletivo do referido programa.

1
As Conferências Nacionais de Saúde Mental, e em especial a III Conferência realizada em 2001,
consolidaram a Reforma Psiquiátrica como política oficial do SUS e propuseram a conformação de uma
rede articulada e comunitária de cuidados para as pessoas com transtorno mentais. Sendo assim, a
mudança do modelo de assistência psiquiátrica tem se dado principalmente por via dos Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS), unidades de atendimento em saúde que começou a surgir nas cidades
brasileiras na década de 80 e passou a receber uma linha específica de financiamento do Ministério da
Saúde a partir do ano de 2002, vem demonstrar a possibilidade de organização de uma rede
substitutiva ao Hospital Psiquiátrico no país. A proposta do Ministério da Saúde para esse serviço é
prestar, num dado território, atendimento diuturno às pessoas que sofrem com transtornos mentais
severos e persistentes. O CAPS oferece cuidados clínicos e de reabilitação psicossocial, com o objetivo
de substituir o modelo hospitalocêntrico, evitando as internações e favorecendo o exercício da
cidadania e da inclusão social aos usuários e suas famílias. Vale ressaltar, que a psiquiatra brasileira
Nise da Silveira (1905-1999), foi uma das pioneiras no movimento da reforma manicomial. Tendo por
base a teoria junguiana, abordagem pela qual ela mesma foi responsável por introduzir no Brasil,
apropriando-se da arte como proposta de tratamento terapêutico para pessoas com distúrbios mentais.
9

As disciplinas oferecidas atingiram as expectativas preliminares. Todas com


sua relevância para compreensão científica do conceito de religião ou fenômeno
religioso, diferenciando-o do conhecimento trazido pelas instituições seus credos e
dogmas e ampliando o campo de visão daqueles que se propõem a abordar tal
fenômeno. Dentre as disciplinas que foram possíveis participar e contribuíram para
refletir sobre o tema proposto nesta pesquisa, como também norteá-lo, destacam-se:
Fenômeno Religioso, ministrada pelo prof. Dr. João Miguel Teixeira; Fenomenologia
da Religião, ministrada pelo prof. Dr. Renato Kirchner; Teologia Política, ministrada
pelo prof. Dr. Douglas Barros; Estado, Religião e Sociedade, ministrada pela profa.
Dra. Ana Rosa Cloclet; como também a disciplina Método de Pesquisa, ministrada
pelo prof. Dr. Breno Campos, que contribuiu com o levantamento do referencial teórico
e seu enquadramento nas exigências de uma pesquisa acadêmica com enfoque em
Ciências da Religião.
Não poderia deixar de destacar a relevância que os Seminários Avançados
de Pesquisa (SAP I, II e III) tiveram no processo de construção e desenvolvimento
desta pesquisa. O prof. Dr. Douglas Barros que acompanhou o projeto de pesquisa
no SAP I, e o início da construção da dissertação no SAP II, trouxe o direcionamento
metodológico, fundamental para rever alguns conceitos e redirecionar o tema da
pesquisa. No SAP III, o prof. Dr. Breno Campos acompanhou o desenvolvimento da
dissertação, instigando a discussão com a participação dos colegas. Exercício este,
fundamental para aumentar o campo de visão dentro da pesquisa. Finalmente enfatizo
as contribuições do prof. Dr. Renato Kirchner, que acolheu a ideia em orientar esta
pesquisa e, com seu olhar clínico, considera os detalhes sem perder de vista o todo,
apontando para as inúmeras possibilidades de ampliação.
A ideia desta pesquisa que surgiu da inquietação acima apresentada foi
crescendo e tomando forma a partir do aprofundamento na teoria do autor pesquisado,
principalmente no que tange aos assuntos concernentes à psique e religiosidade.

Um breve relato sobre o autor

O médico suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) muito cedo confrontou-se com
o fenômeno religioso. Nascido em uma família de tradição luterana, o ambiente
familiar e social em que cresceu como também suas experiências interiores, o
influenciaram de modo que as questões religiosas se tornaram o centro de sua
10

atenção e o alvo de seus estudos. Permaneceu membro da igreja luterana até a sua
morte, no entanto, comparecia à paróquia somente em ocasiões festivas, casamentos
ou funerais de amigos. Seu interesse pela religião foi direcionado para um caráter
privado, intelectual e científico (MACHÓN, 2016, p. 28-32).
Ainda muito jovem, começou a visitar a “biblioteca relativamente modesta” do
seu pai em busca de respostas às suas perguntas. Através das leituras, procurava
entender e relacionar o fenômeno religioso e suas experiências pessoais (JUNG,
1961/2006, p. 87)2. Posteriormente, enquanto acadêmico, procurava compreender a
mente humana profunda. Assim, Jung tornou-se o fundador da Psicologia Analítica
sendo que um dos principais aspectos de seu trabalho consistia em abordar temas
relacionados à concepção de mundo e tratar do confronto entre a psicologia e as
questões religiosas (JUNG, 1961/2006, p. 249).
Em Psicologia e Religião (1971), Jung afirma que a religião constitui uma
das expressões mais antigas e universais da alma, e que o fenômeno religioso é
inerente à psique humana. Desse modo, compreende que o sentido dos termos
religião e religiosidade não se vinculam a questões relacionadas às instituições
religiosas, mas aos fenômenos culturais e às experiências individuais. Esta questão
torna-se evidente em suas palavras: [...] “não tomo como ponto de partida qualquer
credo religioso, mas sim a psicologia do homo religiosus, do homem que considera e
observa cuidadosamente certos fatores que agem sobre ele e sobre seu estado geral”
(JUNG, 1971/2012a, p. 22).
A convicção de Jung (1971/1994, p. 1) consistia na ideia de que “as religiões
se acham tão próximas da alma humana, com tudo quanto elas são e exprimem que
a psicologia de maneira alguma pode ignorá-las”. Então, se propõe a desenvolver uma
psicologia da experiência religiosa, que para ele é um fenômeno psíquico.

Psicologia, Religião e Ciências da Religião: um percurso histórico

Ao abordarmos a psicologia da religião, recorremos a Edênio do Valle (2007,


p. 123-161) que apresenta um panorama sobre o desenvolvimento da psicologia da
religião, apontando que, a relação entre psiquismo e religião, é um problema que há
milênios a humanidade busca esclarecer. No entanto, a complexidade da alma

2
Ao nos remetermos às obras completas de Jung, traremos o ano da primeira publicação e o ano da
edição utilizada.
11

humana e sua busca por sentido dificultam as ciências da religião, sobretudo, a


psicologia da religião, em definir seu objeto de investigação. A grande diversidade nas
motivações, objetos e dinâmicas dos comportamentos religiosos, assim como os
grupos religiosos marcados pela variedade de suas crenças, expressões e
secularização dos comportamentos religiosos são questões que influenciam e ao
mesmo tempo dificultam esse campo de investigação.
Da mesma forma que as outras abordagens da psicologia, a psicologia da
religião não detém o monopólio do conhecimento sobre religião e religiosidade, pois
se conscientiza dos limites instrumentais e da complexidade de seu objeto. O que
consta, é um esforço para delimitar e caracterizar de maneira mais adequada o espaço
da psicologia da religião, dentro de um campo maior tanto da psicologia, como das
ciências da religião.
De acordo com Valle (2007, p. 134-136), antes de chegar à definição que lhe é
dada hoje, a psicologia da religião recebeu ao longo da história diversos nomes
atrelados a diversas ideologias, embora o termo “psicologia da religião”, desde o início
do desenvolvimento científico dessa área, tenha recebido primazia em detrimento de
outros.
Entre os termos atribuídos encontram-se: “psicologia religiosa”, utilizado por
psicólogos mais próximos à igreja, em especial a igreja católica; “psicologia da
espiritualidade”, criado com o objetivo de evitar a expressão “religião”, uma expressão
carregada de conotações históricas, institucionais, ideológicas e socioculturais
ambíguas; “psicologia e religião”, acentuando a autonomia tanto de um termo, quanto
de outro no campo de estudo. P. Vitz, na década de 1970, na medida em que via
aumentar o interesse da psicologia pelo religioso, e do religioso pela psicologia, julgou
ser válido inventar uma designação diferente, que usou como título de um de seus
livros – Psicologia como religião, porém, como dito anteriormente, a designação que
tem prevalecido nos estudos psicológicos do religioso é psicologia da religião (VALLE,
2007, p. 134-137).
De acordo com Hock (2010, p. 163-164), as raízes do pensamento psicológico-
religioso são mais profundas e, no mínimo, tão antigas quanto os primeiros
testemunhos escritos. O ser humano ao refletir sobre si, inevitavelmente esbarra em
questões relacionadas aos aspectos psíquicos da vida. Enquanto ciência
empiricamente fundamentada, suas origens encontram-se nos Estados Unidos.
Inspirados pelas pesquisas estatísticas de Francis Galton (1822-1911), relacionadas
12

à influência da oração sobre a saúde e a carreira, Granville Stanley Hall (1846-1924),


Edwin Diller Starbuk (1866-1947) e, James Henry Leuba (1868-1946) colocaram a
pedra fundamental da psicologia da religião.
Entretanto, o início da disciplina está ligado, principalmente, ao psicólogo,
filósofo e líder do movimento conhecido como pragmatismo, Willian James (1842-
1910). Sua fama internacional como filósofo e psicólogo, possibilitou que a psicologia
da religião, uma disciplina principiante, ganhasse reconhecimento mundial. James
alegava que “a religião está sempre configurada na vida individual e, nesse sentido, é
também apenas a religião do indivíduo, a religião subjetiva, “pessoal” que pode se
tornar objeto da psicologia da religião” (HOCK, 2010, p. 164).
Na obra As variedades da experiência religiosa (1995), William James
investiga a psicologia da religião, aplicando o método científico a um campo abordado
anteriormente como filosofia teórica e abstrata. Ele acreditava que a espinha dorsal
da vida religiosa, constituía-se das experiências religiosas individuais, e não dos
preceitos estabelecidos pelas religiões organizadas. A obra conduz a uma abordagem
pragmática da questão religiosa, na qual a religião é considerada uma experiência,
uma vivência, e não apenas uma crença na experiência alheia. Sua visão pluralista
da religião, levou-o à tolerância extraordinária para com as formas extremas de
comportamento religioso.

[...] não vejo como seria possível criaturas em posições tão diferentes e com
tão diferentes poderes como são os indivíduos humanos, terem exatamente
as mesmas funções e as mesmas obrigações. Não haverá dois entre nós que
tenham dificuldades idênticas, nem se poderá [esperar] deles que elaborem
as mesmas soluções. Cada qual, do seu ângulo especial de observação, vê
certa esfera de fato e de problema, com os quais lidará de maneira singular
[...] O divino não pode significar uma qualidade única, tem de significar um
grupo de qualidades, e se diferentes homens forem paladinos delas
alternadamente, poderão todos encontrar missões dignas. Sendo cada
atitude uma sílaba na mensagem total da natureza humana, seremos
necessários todos nós para soletrar completamente o significado. Assim, ter-
se-á de consentir que “um deus de batalhas” seja um deus para uma espécie
de pessoa, um deus da paz, do céu e do lar para outra [...] Não há dúvida
alguma de que alguns homens têm a experiência mais completa e a vocação
mais elevada, tanto aqui como no mundo social; mas o melhor será
seguramente que cada homem fique na sua própria experiência, seja ela qual
for, e que os outros o tolerem ali. (JAMES, 1995, p. 301-302).

A argumentação sólida de James, e a síntese final, evidenciando que as


experiências religiosas em sua diversidade apontam para a existência de inúmeros
reservatórios específicos de energias conscientes, em que o indivíduo pode fazer
contato quando estiver em dificuldade, foi relevante para adeptos de várias religiões,
13

pois forneceu um material apologético que não estava em conflito com a ciência e o
método científico.
O desenvolvimento da psicologia da religião na Alemanha seguiu um caminho
totalmente diferente. De acordo com Hock (2010, p. 165), inicialmente foram teólogos
como George Wobbermin (1869-1943) que traduziram obras de psicólogos da religião
estadunidenses, proporcionando, assim, sua recepção na área da língua alemã.
Entretanto, este processo conferiu à psicologia da religião um significado
evidentemente teológico. Já o representante da psicologia experimental, o psicólogo
etnólogo Wilhelm Wundt (1832-1920), classificou amplamente as questões
psicológico-religiosas como perspectivas histórico-religiosas.
Na França, inicialmente foram os especialistas da área da psiquiatria que se
dedicaram às questões psico-religiosas. Entre eles estão, Pierre Janes (1859-1947) e
Théodule Amand Ribot (1839-1916), que direcionaram suas pesquisas principalmente
para a relação entre religião e fenômenos psicopatológicos e ao fundamento biológico
da religião (HOCK, 2010, p. 166).
Outros movimentos, em várias vertentes da psicologia, surgiram a partir de
diferentes teóricos. Entretanto, uma vez superado o momento inicial, a psicologia da
religião passou por um desenvolvimento diferenciado. Na área do idioma alemão,
Sigmund Freud (1856-1939) fundou, através da psicanálise, uma vertente de pesquisa
que trouxe novas inspirações (HOCK, 2010, p. 166).
No pensamento de Freud, a religião deveria ser considerada ilusão, mas seria
superada através do desenvolvimento científico. Assim, no ensaio O futuro de uma
ilusão (1927), além de abordar temas ligados à constituição da cultura e da sociedade,
Freud procura analisar a origem da necessidade do ser humano de ter uma crença
religiosa. Apesar de respeitar o fenômeno religioso como manifestação cultural e
manifestação de fé calcada nos sentidos, ele procura desconstruir esse fenômeno
enquanto forma de conhecimento do mundo, por considerá-lo como origem da
alienação e superstição, com base na imaginação. Ele escreve sobre religião neste
momento específico de sua obra, pois luta para estabelecer a psicanálise enquanto
campo de saber que formula uma concepção do aparelho psíquico e, este, por sua
vez, fornece a base de uma nova terapêutica para o sofrimento mental humano.
Através do desenvolvimento cultural, as pessoas passariam a tratar as
doutrinas religiosas com desdém, pois a veriam como ilusões. O reconhecimento
dessas ilusões, além de favorecer a observação e o pensamento no trabalho
14

científico, possibilitaria o pensamento aplicado na crítica de si mesmo, e na construção


de outra visão de mundo. Para ele, mesmo que a nossa cultura esteja construída com
base em doutrinas religiosas, que evidentemente contribuiu para a domesticação dos
impulsos antissociais, a religião perderia uma parte de sua influência sobre as
massas. Isso aconteceria em decorrência do efeito dos avanços científicos nas
camadas superiores da sociedade, pois pesquisas apontariam para os erros que os
documentos religiosos apresentam. Assim, quanto mais pessoas tivessem acesso ao
conhecimento, mas renegariam as crenças religiosas (FREUD, 2012, p. 83-102).
De acordo com Hock (2010, p. 170), provavelmente a contribuição mais
sustentável para a psicologia da religião é proveniente da psicologia profunda de Carl
Gustav Jung. Assim como Freud, Jung apresenta o desenvolvimento científico como
um dos principais fatores do distanciamento da vida religiosa. No entanto, Jung
identifica o sofrimento humano como consequência deste distanciamento. Ele relata
que, de acordo com o que observou em seus pacientes, a decadência da vida religiosa
proveniente da falta de uma atitude religiosa autêntica, tem contribuído para o
aumento de indivíduos com adoecimento psíquico.

[...] De todos os meus pacientes que tinham ultrapassado o meio da vida, isto
é, que contavam com mais de trinta e cinco anos, não houve um só cujo
problema mais profundo não fosse o da atitude religiosa. Aliás, todos estavam
doentes, em última análise, por terem perdido aquilo que as religiões vivas
ofereciam em todos os tempos, a seus adeptos, e nenhum se curou
realmente, sem ter adquirido uma atitude religiosa própria, o que,
evidentemente, nada tinha a ver com a questão da confissão [credo religioso]
ou com a pertença a uma determinada igreja. (JUNG, 1974/2003, p. 80).

Ao identificar doenças psíquicas, como a neurose, Jung percebeu que o


problema não se concentrava apenas em um fenômeno isolado e definido, pois se
tratava de uma reação total do indivíduo. Desse modo, entendeu que seria necessário
um tratamento visando não apenas questões somáticas e biológicas, mas também
questões relacionadas ao plano religioso ou espiritual. Este tratamento, que
englobava a totalidade do indivíduo, considerando as questões espirituais, conduziu
a uma descoberta que, de certo modo, incomodou a medicina: “[...] a descoberta da
alma enquanto fator etiológico suscetível de provocar enfermidades no domínio
humano” (JUNG, 1974/2003, p. 74).
No início de seus estudos, Jung trabalhara em estreita ligação com Sigmund
Freud. Entretanto, apesar de reconhecer a relevância do pensamento de Freud, Jung
seguiu por outro caminho diferenciando-se do pai da psicanálise em termos de
15

conteúdo e método. Com o passar dos anos, estabeleceu estreitas relações com
cientistas da religião, teólogos psicólogos e cientistas naturais. Desta relação, surgiu
o chamado Círculo de Eranos. Existente desde 1933, ficou conhecido especialmente
pela publicação do Anuário Eranos – Jahrbuch (HOCK, 2010, p. 173).
Tendo como fundadora Olga Froebe-Kapteyn (1881-1962), o Círculo de
Eranos tinha como proposta reunir autores de diversas áreas do conhecimento
humano, configurando-se por importantes personagens internacionais. Os Estudos
perduram até os dias atuais e o principal interesse é pesquisar o simbólico e o
imaginário. O estudo sobre o imaginário e o simbólico originou-se no século XX,
quando alguns autores e precursores pretendiam proporcionar maior atendimento ao
humano que incluísse os níveis: antropológico, espiritual, social e político.
Provavelmente, o interesse em pesquisar o simbólico seria uma tentativa de
compreender a formação dos símbolos no ser humano e, ao mesmo tempo, sair da
concepção positivista dominante (FERREIRA; SILVEIRA, 2014, p. 259-261).
O nome Eranos foi sugerido por um dos integrantes, Rudolf Otto (1869-1937)
que, em grego, significa comida em comum, troca de alimentos, sem a presença de
um anfitrião (ORTIZ-OSÉS, apud FERREIRA; SILVEIRA, 2014, p. 260). Com a
escolha do nome e o simbólico em discussão nos encontros, o mito tornou-se um dos
temas cruciais para o estudo sobre o imaginário e a compreensão da psique humana.
Desse modo, Eranos tornou-se o lugar ideal para pensadores que tinham como
proposta discutir e conduzir suas pesquisas em direção ao simbólico. Este espaço
contribuiu para que Jung interagisse com outros pensadores como, Otto, Eliade e
Zimmer (FERREIRA; SILVEIRA, 2014, p. 262).

Olga Froebe-Kapteyn descreve nestes termos a importância da psicologia


complexa em Eranos: A obra de C.G. Jung, ainda que nunca especialmente
enfatizada, representa a força sintética no coração de Eranos. Essa obra
pode-se dizer sorrateira, invisivelmente uniu, deste modo, a todos e
incorporou o significado mais profundo desta convenção. Ela estabelece uma
rede de relações entre os diferentes âmbitos da pesquisa, entre outros
oradores e entre todos os participantes ali reunidos, estivessem cônscios ou
não disso [...] Este é um dos aspectos mais importantes de Eranos: o fato de
que o ensinamento de Jung estivesse estabelecendo uma relação com
diferentes âmbitos da pesquisa, através de seus próprios expoentes de
destaque (BERNARDINI apud FERREIRA; SILVEIRA, 2014, p. 262).

O ambiente propício a temas que não faziam parte do âmbito acadêmico da


época contribuiu para que Jung tivesse a oportunidade de continuar suas pesquisas.
Os conceitos como inconsciente pessoal, inconsciente coletivo, arquétipos, si mesmo
16

e individuação, sempre estavam em pauta nas conferências em Eranos. Assim como


Jung proporcionou uma demarcação psicológica a Eranos, este proporcionou uma
demarcação intelectual a Jung. Pode-se então dizer que, assim como Jung foi
importante para Eranos, Eranos foi importante para Jung (BERNARDINI apud
FERREIRA; SILVEIRA, 2014, p. 263).
Ao longo de sua obra, Jung refere-se a inúmeros trabalhos que foram
primeiramente apresentados em conferências e reuniões científicas de Eranos, por
exemplo, Arquétipos do Inconsciente Coletivo (Eranos – 1934); Simbolismo dos
Sonhos e Processo de Individuação (Eranos – 1935); A Respeito da Psicologia da
Trindade (Eranos – 1940), entre outros. As abrangentes discussões envolvendo
pensamentos filosóficos, saber antropológico e etnológico, conhecimentos
psicológicos e das ciências da religião estão na base da Psicologia Analítica e seu
método terapêutico (DORST, 2015, p. 20).
O arcabouço teórico de Jung, principalmente no que tange a assuntos
relacionados à psicologia e religião, não apenas influenciou como também recebeu
muita influência através das discussões que ocorreram em um contexto
interdisciplinar, em que pessoas de diversas áreas do conhecimento humano tinham
um objetivo em comum. Diante disto, pode-se dizer que o pensamento de Jung trouxe
e poderá trazer inúmeras contribuições para a área das Ciências da Religião, sendo
este um dos objetivos que esta pesquisa pretende alcançar.
No primeiro capítulo, apresentamos um arcabouço de conceitos, tais como
energia psíquica, inconsciente pessoal, inconsciente coletivo, arquétipos, função
transcendente, processo de individuação e tipos psicológicos, sempre apontando para
a relação destes com o fenômeno religioso ou a experiência religiosa. Ao elucidar os
tipos e as funções psíquicas, intencionamos apontar para as infinitas diferenças
existentes entre os seres humanos. Por isso, a apropriação do fenômeno religioso,
uma vez que está intrinsecamente ligado às funções psíquicas, é encontrado em
extraordinária diversidade.
No segundo capítulo, buscamos apresentar algumas investigações de Jung
em algumas culturas diferenciadas no intuito de compreendermos o fenômeno
religioso em sua diversidade. Apesar das pesquisas de Jung comprovarem
experimentalmente sua teoria, os resultados não foram colocados em um sistema de
pensamento fechado, pois, à frente de cada indivíduo, existe um mistério
incompreensível que nos coloca em uma nova descoberta.
17

1. A RELAÇÃO ENTRE A TEORIA DE JUNG E O FENÔMENO RELIGIOSO

Desde a infância, a ideia de Deus fascinava Jung intensamente. Sempre


comparava o que diziam com o que observava em torno de si. Impressionava-o um
mundo repleto de contradições e imaginava que Deus as houvesse criado
intencionalmente. Pensava e sentia Deus como uma poderosa força avassaladora em
que, da mesma maneira que trazia consigo bem-aventurança, dispensava desespero
e terror. Porém, mantinha esses pensamentos secretamente, pois tudo o que ouvia
na igreja ou em casa, nas conversas entre seu pai e os amigos pastores, era bem
diferente daquilo que pensava e sentia. Sendo assim, o sentimento de algo muito
profundo pelo qual era tomado separava-o dos demais (SILVEIRA, 1981, p. 12-13).
Quase todos os escritos de Jung, principalmente os dos últimos anos, trazem
em seu conteúdo questões referentes ao fenômeno religioso. É evidente o lugar de
destaque que a problemática religiosa ocupa em sua obra. Seu grande mérito está em
reconhecer, como conteúdos arquetípicos da alma humana, as representações
primordiais coletivas que estão na base das religiões em sua diversidade. Assim, a
teoria junguiana e a relação com questões do plano religioso trazem em sua base e
dimensão, além da própria experiência e convicção, a perspicácia em voltar sua
atenção para a natureza psíquica do homem, observar e sentir as manifestações do
inconsciente.

1.1 A energia primeira: a força propulsora da libido

Em 1911, aos trinta e seis anos de idade, Jung escreve Símbolos da


Transformação. Neste período, iniciou o inevitável rompimento com Freud3. Para Jung

3
A relação de Jung com Freud iniciou-se em 1906, ocasião em que Jung enviara a Freud sua
publicação sobre a associação de palavras e, em 1907, seu livro A psicologia da dementia praecox, o
que resultou em um convite de Freud para que Jung viesse visitá-lo em Viena no mesmo ano. A primeira
conversa entre eles durou treze horas, sem interrupção. Em 1908, a instâncias de Freud, Jung tornou-
se diretor chefe da primeira revista de psicanálise em que Freud e Bleuler eram os diretores. Em 1909,
viajaram juntos para os Estados Unidos e em 1910, Jung tornou-se o primeiro presidente da Associação
Psicanalítica Internacional. Em 1911, Jung publicou a primeira parte de Símbolos da Transformação.
Nesta obra, evidencia-se que Jung não concordava com as concepções de Freud sobre a sexualidade
e o complexo de Édipo. Em setembro de 1912, Jung foi novamente aos Estados Unidos ocasião em
que criticou abertamente Freud e a psicanálise. A relação entre ambos tornou-se cada vez mais
complicada tanto no âmbito pessoal, quanto acadêmico, chegando ao fim em 1913 (PALMER, 2001, p.
18

(1973/1995, p. XVII), esta é uma época crítica, porque representa o início da segunda
metade da vida de um homem e, nesta fase, geralmente ocorre uma metanóia na vida
do indivíduo, ou seja, acontece uma retomada de posição na vida (KIRCHNER, 2018,
p. 115-116).
Na referida obra, Jung aponta para duas formas de pensamento – o pensar
dirigido e o pensar espontâneo. O pensamento dirigido ou lógico, além de se adaptar
à realidade e imitá-la, produz aquisições novas sobre ela. Este é o pensar para os
outros, e falar a outros, ou seja, é o pensar consciente, pois lida com a comunicação
através de elementos linguísticos. Assim, este pensar é trabalhoso e cansativo porque
se relaciona com o desenvolvimento cultural, com a mobilidade e capacidade de
deslocamento da energia psíquica. Já o pensamento espontâneo está relacionado ao
sonho e à fantasia. Ele se afasta da realidade e liberta tendências subjetivas, sendo
improdutivo em relação à adaptação. Por ser um trabalho espontâneo, não necessita
de esforço, pois os conteúdos são encontrados prontos e dirigidos por motivos
inconscientes. O pensamento espontâneo não se preocupa com a situação real das
coisas, nele se reúnem os fatos mais heterogêneos, e um mundo de impossibilidades
ocupa o lugar da realidade. O pensar no sonho, portanto, retrocede às matérias-
primas da memória, como por exemplo, às atitudes infantis e aos mitos (JUNG,
1973/1995, p. 9-21).
A distinção entre os dois tipos de pensamento, de acordo com a concepção
de Jung (1973/1995, p. 24-26), relaciona-se com a origem da tendência e da
capacidade do espírito humano de manifestar-se simbolicamente. Assim, enquanto o
pensamento dirigido e adaptado é um fenômeno inteiramente consciente, o
pensamento fantasia é movido por razões inconscientes. Ainda que parte dos

113-114). As discussões envolvendo questões de ordem metodológica e epistemológica entre Freud e


Jung foi um dos momentos mais significativos da história da psicanálise. Ainda hoje tem sido objeto de
grandes debates entre as duas escolas de pensamento. No início, quando Freud percebeu as
vantagens práticas de seu relacionamento com Jung, pois este, além de se mostrar um formidável
defensor de suas teorias, não era judeu nem austríaco, assim, teria a possibilidade de defender com
mais facilidade a psicanálise das acusações do elitismo intelectual e sectário, atraindo o interesse de
um público maior. Nesta época, Freud ainda era discriminado de modo geral no âmbito da comunidade
acadêmica, assim, considerou Jung não apenas seu discípulo mais bem dotado, mas seu príncipe
coroado destinado a levar sua obra adiante no futuro (PALMER, 2001, p. 118). Em uma conversa que
tiveram em 1910, Jung lembra-se do que lhe disse Freud: “prometa-me jamais abandonar a teoria
sexual. Essa é a coisa mais essencial. Veja, você tem de fazer dela um dogma, um baluarte inabalável...
contra a maré negra de lama... do ocultismo” (JUNG apud PALMER, 2001, p. 120). Jung ficou tanto
alarmado quanto surpreso com essas observações. Para ele, esta atitude totalmente estranha, feriu o
coração da amizade de ambos. Em 1912, ao publicar a segunda parte de Símbolos da Transformação,
Jung repudia decisivamente a teoria freudiana da libido, tendo consciência de que isto lhe custaria
definitivamente sua amizade com Freud (PALMER, 2001, p. 120-125).
19

conteúdos do pensamento fantasia ocorra na área consciente, outro tanto ocorre na


penumbra ou totalmente no inconsciente, sendo desvendado apenas indiretamente.
Através deste pensamento, ocorre a ligação do pensamento dirigido com as camadas
mais arcaicas do espírito humano que se encontram abaixo do limiar do consciente.
Torna-se, então, evidente que os conteúdos procedentes do inconsciente têm
parentesco com o mito, pois as fantasias que se relacionam diretamente com o
consciente são os sonhos acordados, ou as fantasias diurnas. Posteriormente vêm os
sonhos noturnos que, inicialmente, oferecem um aspecto enigmático ao consciente,
adquirindo sentido através dos conteúdos inconscientes e reconhecidos
indiretamente. Finalmente, existem os sistemas de fantasias totalmente inconscientes
que se encontram num complexo separado e apresentam tendência à constituição de
uma personalidade à parte.

A fantasia consciente, seja de origem mítica ou outra, não pode ser tomada
ao pé da letra e sim compreendida quanto ao seu significado. Se nos
ativermos ao seu conteúdo literal, ela permanecerá incompreensível e
teremos de contestar a utilidade da função psíquica [...] As fantasias
conscientes, portanto, através de um tema mítico relatam outras tendências
da própria personalidade que ainda não foram reconhecidas. (JUNG,
1973/1995, p. 27).

As fantasias não são inventadas, elas se apresentam como imagens ou


cadeias de ideias que irrompem do inconsciente. Por muitas vezes, apresentam
conexão com episódios de características míticas, daí surgem os mitos. É por isso
que as fantasias provindas do inconsciente possuem tantos pontos em comum com
os mitos arcaicos, pois os mitos são projeção do inconsciente, nunca invenção
consciente. Compreende-se, então, que semelhantes mitos encontrados por toda
parte representam fenômenos psíquicos característicos (JUNG, 1971/1997, p. 36-37).
Os símbolos, assim como as fantasias, nunca foram inventados
conscientemente. Foram produzidos pelo inconsciente através da via chamada
revelação ou intuição. Devido à estreita conexão existente entre os símbolos
mitológicos e os símbolos oníricos, Jung acredita ser mais do que provável que a
maior parte dos símbolos históricos derive diretamente dos sonhos ou pelo menos
seja influenciado por eles. Eles representam os processos religiosos cuja natureza é
essencialmente simbólica. Na forma abstrata, são ideias religiosas; na forma de ação,
são os ritos ou cerimônias. Ambos constituem degraus que levam a novas atividades,
20

ou seja, é o mecanismo psicológico que transforma a energia (JUNG, 1971/1997, p.


46-47).
De acordo com Jung, desde o início da humanidade se realiza o processo de
transformação de energia através dos símbolos. A mitologia apresenta diversos
equivalentes deste gênero, como por exemplo, os objetos sagrados, os fetiches, a
figura dos deuses, os ritos etc.

[...] Os ritos com que se cercam os objetos sagrados frequentemente nos


revelam, de modo bastante claro, a natureza como sendo um transformador
de energia. Assim, o [arcaico] esfrega o seu churinga4, de maneira rítmica, e
com isto recebe em si o poder mágico do fetiche, ao mesmo tempo em que
faz receber uma nova “carga”. Um estágio superior nesta mesma linha de
pensamento é a ideia do totem, que se acha intimamente ligada aos começos
da formação da vida em comunidade e conduz diretamente à ideia do
paládio5, da divindade tutelar e tribal, e também à ideia de uma comunidade
humana organizada em geral. (JUNG, 1971/1997, p. 46).

A potência mágica proveniente das ideias arcaicas representa ao mesmo


tempo uma força objetiva e um estado subjetivo de intensidade. Isso mostra que os
símbolos, desde o início de sua formação, encontram-se ligados intimamente a um
conceito de energia (JUNG, 1971/1997, p. 60). Tal conceito, que se tornou uma ideia
quase universal, é uma expressão evidente de que, mesmo em seu estágio inicial, a
consciência6 sentia a necessidade de representar concretamente o dinamismo
percebido dos acontecimentos psíquicos. Diante disso, se a psicologia de Jung coloca
ênfase no ponto de vista energético, o faz de acordo com os fatos psíquicos que se
encontram impressos no espírito humano desde épocas remotas (JUNG, 1971/1997,
p. 64).
Jung propôs que o conceito de energia utilizado na psicologia analítica fosse
designado pelo termo libido. Ainda que a escolha do termo não lhe parecesse ideal
por determinados aspectos, se apropriou por razões de justificativa histórica. Ele
reconheceu que, quem primeiro observou determinadas relações psicológicas

4
A churinga é um objeto com significado espiritual utilizado pelos aborígenes australianos como forma
de registro. Considerado sagrado, faz conexão entre o passado e o futuro. Está relacionada com a
lembrança dos ancestrais, a herança dos mitos e a cultura dos indivíduos em um grupo.
5
Paládio está relacionado a qualquer objeto sagrado em que se confiava a segurança de uma cidade
ou estado.
6
“Por consciência entendo a referência dos conteúdos psíquicos ao eu, enquanto assim for entendida
pelo eu. Referências ao eu, enquanto não entendidas como tais pelo eu, são inconscientes. A
consciência é a função ou atividade que mantém a relação dos conteúdos psíquicos com o eu.
Consciência não é a mesma coisa que psique, pois a psique representa o conjunto de todos os
conteúdos psíquicos; estes não estão todos necessariamente vinculados ao eu, isto é, relacionados de
tal forma com o eu que lhes caiba a qualidade de conscientes. Existe uma boa quantidade de complexos
psíquicos que não estão necessariamente vinculados ao eu” (JUNG, 1971/1991a, p. 401-402).
21

utilizando de maneira coerente o termo libido, foi Freud7. O referido autor apresenta o
termo como definição sexual da energia sendo uma força instintiva específica. Ele se
apropria das expressões “instinto” e “energia psíquica”, limitando-se exclusivamente
à sexualidade (JUNG, 1971/1997, p. 28)8.
Ao fazer alusão à teoria da libido de Freud, Jung aponta que tal investigação
oferece excepcionais contribuições na relação da sexualidade para com a psique.
Entretanto, considera que não se deve considerá-la apenas de modo exclusivo e
unilateral, pois “a supervalorização levou Freud a reduzir inclusive as transformações
que correspondem a outras forças específicas e coordenadas da alma à sexualidade”
(JUNG, 1971/1997, p. 18). Para Jung, a dinâmica sexual representa meramente um
caso particular da totalidade da psique, assim não seria suficiente uma teoria
psicológica que recorresse apenas a uma energia sexual, ou a um instinto específico
como conceito explicativo. Com isto, não se lhe nega a existência, mas lhe atribui o
justo lugar (JUNG, 1971/1997, p. 28).
Jung atribui à libido o conceito psicológico de energia do curso da vida, com
leis definidas e um caminho determinado:

[o conceito de libido significa] a energia do curso da vida. Suas leis são as da


energia vital. A libido como conceito energético é uma fórmula quantitativa
para os fenômenos da vida que são, reconhecidamente, de intensidade
diversa. Assim como a energia física, a libido passa por todas as
transformações possíveis, manifestadas pelas fantasias do inconsciente e
pelos mitos. Essas fantasias são em primeiro lugar [autorrepresentações] dos
processos energéticos de transformação que têm, naturalmente, suas leis
definidas e um “caminho” de escoamento determinado. Este caminho é,
portanto, a expressão simples e pura da energia que flui e se manifesta.
(JUNG, 1971/1991a, p. 208).

Filogeneticamente a natureza da libido consiste nas necessidades físicas


como fome, sede, sono, sexualidade e nos estados emocionais como os afetos. Indica
um desejo ou um impulso que não é refreado por qualquer instância moral ou outra.
Seria um appetitus em seu estado natural (JUNG, 1973/1995, p. 122-123). Trata-se
de fatores que têm suas diferenciações e sutis ramificações na psique humana. “É

7
Freud apresenta elementos possíveis para se analisar os fundamentos da psique e a sexualidade na
obra Os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905). A Teoria da Libido encontra-se
especificamente no terceiro ensaio desta obra.
8
Toda linha de pensamento de Freud se baseia firmemente na teoria sexual. Com certeza não existe
pensador ou pesquisador que, sem preconceitos, não reconheça e admita imediatamente a
extraordinária importância das experiências e dos conflitos sexuais e amorosos. Mas nunca se poderá
provar que a sexualidade seja o instinto fundamental e a essência da psique humana (JUNG,
1974/1993, p. 16).
22

mais prudente por isso, ao falarmos de libido, entender com este termo um valor
energético que pode transmitir-se a qualquer área – ao poder, à fome, ao ódio, à
sexualidade, à religião” (JUNG, 1973/1995, p. 124).
Em tipos psicológicos (1971/1991), Jung enfatiza que a questão prática da
psicologia analítica é mais profunda do que a sexualidade e sua repressão (p. 214-
215). Tal enfoque seria insuficiente como princípio explicativo da alma humana em
sua totalidade, que não apenas se relaciona com o inconsciente, mas também
personifica os seus conteúdos (p. 239). Isto se torna evidente, pois as concepções
etnológicas e históricas da alma apontam que ela pertence tanto ao sujeito, quanto ao
mundo espiritual, ou seja, se constitui por conteúdos conscientes e inconscientes.
Assim, tem sempre algo de terreno e algo de espiritual – como se observa nos rituais
religiosos nos quais se evoca a força mágica, a força divina. Por isso, a alma deve ser
considerada função entre o sujeito consciente e as profundezas do inconsciente, que
seriam inacessíveis ao sujeito (p. 242) 9.
A compreensão de Jung sobre a função da alma é representada da seguinte
maneira:
A força determinante (Deus) que atua a partir dessas profundezas é refletida
pela alma, isto é, ela cria os símbolos, imagens, e ela mesma é pura imagem.
Por essas imagens ela transfere as forças do inconsciente para a
consciência. Dessa forma ela é vaso transmissor, um órgão de percepção
dos conteúdos inconscientes. O que ela percebe são símbolos. Mas símbolos
são energias configuradas, forças, isto é, ideias determinantes que tem
grande valor tanto espiritual quanto afetivo. [parêntese do autor] (JUNG,
1971/1991a, p. 242-243).

Certos processos psíquicos não são possíveis de serem explicados. São


manifestações e expressões que Jung denomina excedente da libido, e estão
relacionadas às ideias religiosas, aos seus símbolos e ritos. Para o autor, enquanto
as funções instintivas, de acordo com as leis da natureza, seguem seu curso regular,
nem toda libido se encontra fixada em uma forma regular que determina seu curso.
Ele compara esse excedente a um aqueduto cujo diâmetro é muito estreito para
desviar uma grande quantidade de água que se substitui constantemente. Então, essa
água transbordaria de uma forma ou de outra (JUNG, 1971/1997, p. 46). Quando se

9
Jung não trata de um conceito filosófico e muito menos um conceito religioso da alma, e sim, do
reconhecimento psicológico da existência de um complexo psíquico semiconsciente, cuja função é
parcialmente autônoma (JUNG, 1971/1990, p. 66). No decorrer de suas investigações sobre a estrutura
do inconsciente, Jung fez uma distinção conceitual entre alma e psique. Por psique ele entende a
totalidade dos processos psíquicos, tanto conscientes quanto inconscientes. Por alma, ele entende um
complexo determinado e limitado de funções que podemos caracterizar melhor como “personalidade”
(JUNG, 1971/1991a, p. 388).
23

trata da transferência de intensidades ou de conteúdos psíquicos realizados através


dos símbolos e rituais é utilizada a expressão canalização da libido para designar a
conversão ou transformação da energia (JUNG, 1971/1997, p. 39).
Desde os tempos mais remotos, o homem busca reunir e se apropriar dessa
energia excedente. É possível observar que as práticas religiosas mais arcaicas, estão
sempre em harmonia com a natureza; ela, sem dificuldade, acompanha o instinto em
qualquer direção. Desse modo, o homem recria para si a força mágica necessária. Já
as consideradas grandes religiões como, por exemplo, o cristianismo, tem como
diretriz não ser desse mundo. Então, o movimento da libido se dá para o interior do
sujeito, ou seja, é dirigido para o inconsciente. Assim, através dos símbolos e imagens,
que são criados e refletidos pela própria alma, o homem se apropria desta força que
atua a partir da profundeza do inconsciente 10 (JUNG, 1971/1991a, p. 241-243).
Ainda que os valores hereditários em sua totalidade sejam constituídos de
referências fisiológicas, eles foram traçados pelos processos mentais provenientes
dos ancestrais. Assim, para que estas referências alcancem a consciência do
indivíduo, necessário se faz que novos processos mentais ocorram por meio da
experiência individual e, consequentemente, surgirão como aquisições individuais.
“Toda experiência individual é uma destas irrupções num leito de rio, por certo muito
antigo, mas até então inconsciente” (JUNG, 1971/1997, p. 52).
Jung considera que uma das maiores e mais importantes aquisições do
homem é o mito religioso. O mito oferece a segurança e a força necessárias para lidar
com a imensidão do universo. Se observado sob o ponto de vista do realismo, não
apresenta uma verdade concreta. Entretanto, psicologicamente torna-se verdadeiro,
pois representa a ponte para as grandes conquistas da humanidade. Ainda que a
verdade psicológica não exclua a verdade metafísica, a psicologia enquanto ciência
precisa abster-se de quaisquer afirmações metafísicas. Ela se apropria da psique e
seus conteúdos enquanto objeto de pesquisa, pois reconhece que ambos são eficazes
por se tratar de realidades efetivas. Nada sabemos de objetivo em relação à alma

10
O símbolo central da arte cristã é a cruz ou crucifixo. Até a época carolíngia, a forma comum era a
cruz grega ou equilateral. Com o passar do tempo, o centro deslocou-se para o alto até que a cruz
tomou sua forma latina, com a estaca e o travessão, como se usa até hoje. Essa evolução corresponde
à evolução interior da cristandade até uma época adiantada da Idade Média. Em termos mais simples,
simboliza a tendência de deslocar da terra o centro do homem e sua fé e “elevá-lo” a uma esfera
espiritual. Essa tendência surgiu do desejo de traduzir em ação a s palavras de Cristo: “Meu reino não
é deste mundo”. A vida terrena, o mundo e o corpo eram, portanto forças a serem vencidas (JAFFÉ,
1964/2008, p. 328-329).
24

humana, julgando ser possível observá-la sob um ponto de vista aritmético externo.
Mas, ao criar os símbolos, ela representa a realidade subjetiva, cuja base é o arquétipo
inconsciente e a imagem aparente provém das ideias que o consciente adquiriu
(JUNG, 1973/1995, p. 220-221).
De acordo com Jung (1964/2008, p. 117), os símbolos distinguem em
símbolos naturais e símbolos culturais. Os símbolos naturais são provenientes de
conteúdos inconscientes da psique. Desse modo, representam grande variedade de
imagens em sua essência, assim, pode-se chegar, em alguns casos, às origens mais
arcaicas. São ideias e imagens encontradas nos mais antigos registros e nas
sociedades mais remotas. Os símbolos culturais, por sua vez, são aqueles utilizados
por muitas religiões e que expressam verdades eternas. Tais símbolos passaram por
inúmeras transformações11, trata-se de processos de elaboração conscientes que se
tornaram imagens coletivas aceitas pela sociedade contemporânea.

11
O símbolo da cruz, por exemplo, além do exemplo acima citado, em diferentes épocas e culturas
apresenta várias transformações. Partindo de uma compreensão mística, de acordo com Biasi (2012,
p. 79-83), as duas linhas perpendiculares da cruz representam duas forças contraditórias que se
equilibram sem se prejudicar. A linha horizontal corresponde à expansão, e a vertical à limitação,
resultando na atração universal que seria a condição da eclosão e do desenvolvimento da vida. Este
símbolo absolutamente universal que também representa justiça é encontrado em toda parte nos
monumentos da América pré-colombiana, nas mais antigas construções, como as monolíticas celtas
em forma de expirais, outros têm sobre seus braços os atributos dos quatro elementos que
correspondem aos quatro pontos cardeais. Em outras partes, a cruz desenhada, gravada, esculpida,
não se limita a expressar o equilíbrio; ela significa ainda que esse equilíbrio é a origem do movimento
que faz agir o céu e a terra, assim está contida em um círculo e forma uma roda. Essa forma de cruz
inscrita em um círculo é encontrada em um templo em Chalco, cidade considerada santa no Peru. O
equilíbrio da matéria em movimento é também o que significa a roda céltica, cujas representações
abundam em todos os países do Norte e Nordeste. Por toda parte, nas tradições dos remotos
antepassados da ordem rosa cruz, existe uma ordem arcaicamente estabelecida que é a perfeição. É
representada pela ilha santa, dividida em quatro partes iguais, por quatro fossos de rios e cujo centro
é o templo da luz. Algumas formas de compreensão demonstram que a cruz indica paz, a alegria, o
imortal, o devir. Longe de ter sido para os que nos precederam um emblema de dor ou perigo, ela era,
pelo contrário, o emblema da felicidade. Entre todas as formas de cruz; a cruz ansata do Egito é aquela
que melhor exprime o contato das energias masculinas e femininas. Colocada nas mãos dos deuses
egípcios é o sinal da vida que nos é proveniente do alto e que deve retornar ao alto quando o homem
souber devolver à origem sagrada a centelha que ele recebeu. As cruzes cristãs são provenientes
daquela que Constantino fez esculpir para substituir os símbolos pagãos sobre as insígnias romanas.
O que faz para muitos, com que represente ideia de tristeza e penitência, é que ela foi o instrumento
da morte do representante do cristianismo. Na antiguidade o suplício da cruz era destinado aos
escravos que fugiam, transgredindo a hierarquia social, daí provém sua característica infame. Esse
suplício foi infligido e, de acordo com as concepções teológicas da tradição cristã, convinha que Cristo,
ao tomar para si as faltas da coletividade humana em relação ao plano divino, se submetesse a esse
suplício, que correspondia à falta que ele não tinha cometido. Assim, a cruz para o cristão, mais do que
morte e sofrimento, representa redenção. De acordo com Jung (1971/2012b, p. 104-105), a cruz é um
dos símbolos mais arcaicos, e no âmbito dos fatos psíquicos, possui igualmente a função de um centro
gerador de ordem, ou seja, a cruz significa a ordem em oposição ao desordenado ou caótico. O centro
tem como definição a limitação do universo, também a totalidade de algo definitivo.
25

A função das religiões tem sido a de estabelecer uma posição espiritual


contrapondo-se à natureza instintiva original. Isso acontece porque os sistemas
religiosos capacitam o homem a desenvolver uma atitude cultural em face da mera
instintividade. Assim, por longo tempo, e para a grande maioria dos homens, uma
religião coletiva com seus símbolos e ritos seria o suficiente. Entretanto, para um
número relativamente pequeno de pessoas, as religiões coletivas existentes tornaram-
se inadequadas. São algumas pessoas que se conscientizaram através da
individuação; meio pelo qual o indivíduo abre um novo caminho por um lugar ainda
não desbravado e retorna às questões fundamentais do seu próprio ser. Essa
conscientização não dependente de qualquer sistema religioso ou tradição religiosa.
Está relacionada à experiência individual, e leva ao desenvolvimento da personalidade
(JUNG, 1971/1997, p. 57).

1.2 O inconsciente e sua autonomia: uma nova concepção

Em 1902, período em que Jung se ocupava do processo de desenvolvimento


psíquico de uma jovem sonâmbula, ocorreu-lhe uma ideia que se distinguiria
totalmente da concepção de Freud em relação ao inconsciente. Trata-se da ideia da
autonomia do inconsciente. Assim, o ensaio O eu e o inconsciente que se originou em
uma conferência publicada em dezembro de 1916 nos Archives de Psychologie, sob
o título La structure de l’inconscient, seria o resultado de vários anos de novas
experiências e uma séria tentativa de chegar a uma representação intelectual de um
novo campo de consciência até o momento inexplorado (JUNG, 1971/1990, p. VII-
VIII).
Do ponto de vista da teoria freudiana12, tem-se o conhecimento de que os
conteúdos do inconsciente, geralmente se reduzem aos desejos infantis reprimidos. A
repressão estaria relacionada a um processo iniciado na primeira infância, a partir da
influência do ambiente e seus aspectos morais, perdurando por toda a vida. De acordo

12
A teoria do inconsciente em Freud encontra-se no artigo O inconsciente (1915). Este artigo faz parte
do volume História do Pensamento Psicanalítico, Artigos Sobre a Metapsicologia (1914-1916). Neste
artigo, Freud defende a tese da existência de processos psíquicos inconscientes. Para Freud, a vida
psíquica é povoada de pensamentos eficientes, embora, inconscientes de onde se originam os
sintomas. “O inconsciente, é por assim dizer, a parte inferior da consciência: é o campo extensivo e
dinâmico da vida mental no qual estão ideias e lembranças censuradas na mente consciente por meio
de fortes mecanismos de recalque” (PALMER, 2001, p. 125). Na concepção de Freud, o aparelho
psíquico configura-se da seguinte forma: primeira tópica do aparelho psíquico: pré-consciente,
consciente e inconsciente; segunda tópica do aparelho psíquico: id, ego e superego.
26

com este conceito, o inconsciente seria constituído apenas das partes da


personalidade que poderiam ser conscientes se a educação não as tivesse reprimido.
Entretanto, mediante análise, tais repressões seriam abolidas e os desejos reprimidos
conscientizados. Na concepção de Jung, o inconsciente não deveria ser definido ou
avaliado apenas pelos conteúdos reprimidos. Tanto pela sua vasta experiência,
quanto por questões teóricas, ele reconheceu que, além deste, existe outro aspecto
do inconsciente que abarca todo o material psíquico que subjaz ao limiar da
consciência. Trata-se dos componentes psíquicos subliminares, incluindo as
percepções subliminares dos sentidos (JUNG, 1971/1990, p. 3).
Jung considera que os conteúdos inconscientes adquiridos durante a
existência fazem parte do inconsciente pessoal. Sendo a existência limitada, tais
conteúdos também seriam limitados. Então, se o inconsciente é motivado por
repressão de ordem pessoal, e mediante análise fosse possível anular a repressão,
haveria a possibilidade de esgotar tais conteúdos. Entretanto, através da experiência
com seus pacientes, constatou que isso seria possível apenas numa proporção bem
limitada. Apesar da teoria original de Freud afirmar que os sonhos e fantasias seriam
motivados por repressão de ordem pessoal, Jung percebeu que o processo de análise
não exercia qualquer influência sobre o inconsciente, este continuava a produzir
sonhos e fantasias espontaneamente (JUNG, 1971/1990, p. 4).
Para Hillman (1985, p. 81), as concepções de Freud e de Jung não devem ser
vistas como duas posições conflitantes e distintas. A visão de Jung consiste em
ampliar a proposta de Freud proporcionando uma nova dimensão quando, ao se
apropriar dos mesmos fatos e das mesmas descobertas, os apresenta como símbolos
paradoxais. A experiência levou Jung a reconhecer que tanto os conteúdos
conscientes quanto os inconscientes estão engajados numa certa atividade psíquica.
Enquanto alguns conteúdos provêm da atividade psíquica consciente, outros, no
entanto, são produtos da atividade inconsciente sem qualquer participação
consciente. Os sonhos, por exemplo, apresentam-se espontaneamente, não os
criamos conscientemente (JUNG, 1971/1991a, p. 426).
As imagens e associações que não são criadas pela intenção consciente
aparecem nos sonhos e revelam uma atividade psíquica alheia à nossa vontade
arbitrária. Estas imagens estão relacionadas a um produto natural e altamente objetivo
da psique. Sendo assim, o sonho traz indicações de certas tendências básicas do
processo psíquico, classificadas como autorrepresentações de desenvolvimentos
27

inconscientes, que permitem a expansão gradual da psique (JUNG, 1971/1990, p. 7-


10).
De acordo com Amaral (2009, p. 54-55), a imagem está inserida nessa
tessitura que é apresentada pelo símbolo. A reflexão ampliada do símbolo favorece a
relação com o próprio inconsciente. O processo de amplificação simbólica faz parte
do método construtivo de interpretação utilizado por Jung. Ele se apropria de
situações como a associação livre, um determinado conteúdo, evento, fantasia,
sonho, entre outros, que permitem uma aproximação com as imagens universais,
paralelismos míticos, históricos, culturais e artísticos. Tal atitude contribui para ampliar
e explicitar os conteúdos inconscientes.
Seguindo com suas observações, destituído de preconceitos, Jung se
deparou com um material que, apesar da semelhança aos conteúdos pessoais em
seu aspecto formal, parecia conter indícios de algo que ultrapassaria a esfera
meramente pessoal. Acompanhemos sua definição:

[...] nossa experiência até aqui sobre a natureza dos conteúdos inconscientes
nos permite certa classificação geral dos mesmos. Podemos distinguir um
inconsciente pessoal que engloba todas as aquisições da existência pessoal:
o esquecido, o reprimido, o subliminarmente percebido, pensado, sentido. Ao
lado desses conteúdos inconscientes pessoais, há outros conteúdos que não
provêm das aquisições pessoais, mas da possibilidade hereditária do
funcionamento psíquico em geral, ou seja, da estrutura cerebral herdada. São
as conexões mitológicas, os motivos e imagens que podem nascer de novo,
a qualquer tempo e lugar, sem tradição ou migração histórica. Denomino
esses conteúdos de inconsciente coletivo. (JUNG, 1971/1991a, p. 426).

A hipótese de Jung seria que esses componentes de ordem coletiva, sob a


forma de categorias herdadas, provêm de níveis mais profundos e possuem
conteúdos coletivos em estado relativamente ativo. Por isso os designou inconsciente
coletivo. Ele entendeu que, do mesmo modo que além do indivíduo existe uma
sociedade, além da psique pessoal há uma psique coletiva; e a relação entre a psique
individual e a psique coletiva corresponde à relação do indivíduo com a sociedade.
Assim como o indivíduo não é apenas um ser singular e separado, mas também um
ser social, a psique humana não é algo isolado e totalmente individual, mas também
um fenômeno coletivo (JUNG, 1971/1990, p. 13-22). Desse modo, atribui a parte
objetiva do psiquismo ao inconsciente coletivo e, ao inconsciente pessoal, a parte
subjetiva (JUNG, 2015, p. 40).
28

Uma imagem que possui caráter arcaico e apresenta concordância explícita


com motivos mitológicos conhecidos expressa materiais derivados do inconsciente
coletivo. Tal imagem, que Jung qualifica como imagem primordial, é no mínimo comum
a todos os povos e épocas. Trata-se de um sedimento e, com isso, uma forma típica
fundamental de certa experiência psíquica que sempre retorna. Assim, a imagem
primordial é um organismo de vida própria dotado de força geradora, pois é uma
organização herdada da energia psíquica. Por ser um sistema sólido, não é apenas
expressão, mas também possibilidade do desencadear do processo energético. A
essa imagem primordial considerada como a expressão condensada do processo
vivo, que é comum em seus motivos mitológicos devido a sua origem arcaica, Jung
denominou de arquétipos (JUNG, 1971/1991a, p. 419-422).
Sendo assim, o termo arquétipo foi utilizado por Jung para designar
determinadas formas e imagens de natureza coletiva, cujo conteúdo surge, aparece
por toda parte como elementos representativos dos mitos e ao mesmo tempo como
produtos autóctones individuais de origem inconsciente. Este termo, que pertence aos
primeiros séculos da nossa era13, provavelmente tem origem nas criações do espírito
humano que são transmitidas tanto por tradição e migração, como por herança. Para
Jung, a hipótese da transmissão por herança “é absolutamente necessária, pois
imagens arquetípicas complexas podem ser reproduzidas espontaneamente, sem
qualquer possibilidade de tradição direta” (JUNG, 1971/2012a, p. 68-69).
As fantasias que surgem enquanto manifestações da camada mais profunda
do inconsciente fazem parte dos segredos da história do espírito humano, e não a
esfera da reminiscência pessoal, pois além das recordações pessoais, estão em cada
indivíduo as grandes imagens universais em seu aspecto originário. Estas imagens
relacionam-se à aptidão hereditária da imaginação humana em ser como era nos
primórdios. Entretanto, ainda que alguns motivos e lendas se repitam no mundo inteiro
em formas idênticas, a hereditariedade explica o fenômeno, mas não as imaginações,
estas não são hereditárias; hereditária é apenas a capacidade de ter tais imagens
(JUNG, 2015, p. 38-39).
As representações arquetípicas, que reaparecem sempre e por toda parte,
manifestando-se espontaneamente através dos mitos e contos de fadas da literatura
universal; ou através dos sonhos, fantasias, ideias delirantes ou ilusões dos

13
O termo “arquétipo” foi empregado por Cícero, Plínio e outros. Com referência à psicologia, encontra-
se nas obras de Adolf Bastian e em Nietzsche (JUNG, 1971/2012a, p. 69).
29

indivíduos, impressionam, influenciam e fascinam. Assim, quanto mais nítidas, mais


acompanhadas de tonalidades afetivas vívidas (JUNG, 1961/2006, p. 484-485)14.
Tomemos como exemplo, o trajeto que o sol parece percorrer todos os dias.
Trata-se de uma experiência bem comum, mas que sempre impressiona. Enquanto
mito heroico, o sol aparece em diferentes versões, sendo que é este mito, e não o
processo físico que configura o arquétipo solar. Se o considerarmos apenas enquanto
processo físico conhecido, o inconsciente nada revelará a respeito. Mas a ideia da
fantasia subjetiva provocada pelo processo físico é exclusivamente o que impregna
no inconsciente. Logo, é possível supor que os arquétipos sejam as impressões
gravadas pela repetição e reações subjetivas (JUNG, 2015, p. 44).
As religiões mais arcaicas e mais variadas do mundo são fundamentadas na
imagem primordial. Todas partem do princípio de que existe uma força universal e
tudo gira em torno desta força15. As imagens primordiais são como a planta de um
projeto onde se fundamentam os maiores e melhores pensamentos da humanidade.
Por isso, Jung considera tais imagens como sedimentos de experiências
constantemente revividas pela humanidade. Cada vez que um arquétipo se manifesta
em sonho, na fantasia ou na vida de um indivíduo, ele traz consigo uma influência
específica ou uma força que lhe confere um efeito numinoso e fascinante ou que
impele à ação (JUNG, 2015, p. 43-45).
De acordo com Jung (1973/1995, p. 145), este efeito numinoso do arquétipo
se mostra na história de diferentes fenômenos religiosos. O conceito de numinoso é
proveniente de Rudolf Otto16 e o autor se apropria deste conceito a fim de trazer à luz

14
O conceito de arquétipo de Jung está na tradição das ideias platônicas, com sua definição “de que a
ideia é preexistente e supra-ordenada aos fenômenos em geral”, presentes também nas mentes dos
deuses, e que servem como modelos para todas as entidades do reino humano. As categorias iniciais
da percepção de Kant, e os protótipos de Schopenhauer também são conceitos precursores para Jung.
Na verdade, os nomes dados às estruturas psíquicas são todos retirados dessas bases (MEDNICOFF,
2008, p. 62).
15
A força universal mágica é o chamado Mana; entre os povos antigos Mulungu (precisamente conceito
primordial de energia). A imagem desenvolveu-se em variações sempre novas no decurso da história.
No antigo testamento a força mágica resplandece na sarça que arde em chamas diante de Moisés. No
Evangelho manifesta-se pela descida do Espírito Santo em forma de línguas de fogo vindas do céu.
Em Heráclito aparece como energia universal, como o fogo eternamente vivo. Entre os persas é a viva
luz do fogo do haoma, da graça divina; para os estoicos é o calor primordial, a força do destino. Na
legenda medieval aparece como a aura, a auréola dos santos, desprendendo-se em forma de chamas
do telhado da cabana onde o santo jaz em êxtase. Nas faces dos santos essa força é vista como sol e
plenitude da luz. Segundo uma interpretação antiga, a própria alma é essa energia; a ideia de sua
imortalidade é a de sua conservação; e na acepção budista da transmigração da alma, reside a sua
capacidade de transformação e perene conservação (JUNG, 2015, p. 43-44).
16
Rudolf Otto (1869–1937) teólogo protestante alemão que faz uma análise fenomenológica da
experiência do numinoso em sua obra O Sagrado (1917). Segundo Otto, O Numinoso vem da palavra
latina numen e não pode ser explicado em conceitos por ser uma experiência que ultrapassa o âmbito
30

a experiência arquetípica do inconsciente coletivo e, consequentemente, a relação


com a experiência religiosa:

[O numinoso é] uma existência ou um efeito dinâmico não causado por um


ato arbitrário. Pelo contrário, o efeito se apodera e domina o sujeito humano,
mais sua vítima do que seu criador. Qualquer que seja a sua causa, o
numinoso constitui uma condição do sujeito, e é independente de sua
vontade. (JUNG, 1971/2012a, p. 19).

Esse efeito dinâmico que se apodera e domina o indivíduo, ou seja, o efeito


numinoso do arquétipo tem relação com a imagem primordial. Esta imagem primordial,
de acordo com Jung (1971/1991a, p. 420) “é a expressão condensada do processo
vivo”. Ela proporciona um sentido ordenado e coerente às percepções sensoriais e às
percepções interiores do espírito, que inicialmente parecem desordenadas e
incoerentes, oferecendo uma forma espiritual ao instinto puramente natural. A clareza
da ideia provém do fato de que a imagem primordial é um organismo de vida própria,
atribuído com uma força geradora. Trata-se de uma organização que tem por herança
a energia psíquica, sendo que a energia não está vinculada apenas à expressão, mas
a um sistema sólido com a possibilidade de desencadear o processo energético,
seguido da apreensão de uma nova situação (JUNG, 1971/1991a, p. 422).
O simbolismo arcaico que aparece com frequência nos sonhos e fantasias,
como também os instintos básicos, as formas fundamentais do pensamento e
sentimento, sobretudo o que os homens consideram de forma geral, tudo o que existe,
e o que todos dizem e fazem é de origem coletiva. Mas apesar dos conteúdos
pessoais serem provenientes dos conteúdos da psique coletiva, e por este motivo
estarem intimamente ligados, é absolutamente necessário distinguir esses conteúdos.
Jung chama atenção para o fato de que, é preciso cuidado para o indivíduo não
desaparecer completamente no aspecto coletivo. Assim, aponta para a individuação
como uma exigência psicológica imprescindível, pois a tendência do homem para a
imitação o leva a valorizar os propósitos coletivos. Entretanto, a força superior do
coletivo nos permite compreender que é preciso dar especial atenção às questões
individuais, a fim de que não seja sufocado pelo coletivo (JUNG, 1971/1990, p. 29).

1.3 A função transcendente: passagem para uma nova atitude

racional. No entanto, essa experiência pode ser entendida como um sentimento confesso de
dependência ou sentimento de criatura. O autor descreve como sendo “momentos de estado psíquico
de solene devoção e arrebatamento” (OTTO, 1917/2017, p. 38-44).
31

Sabemos bem pouco sobre a verdadeira natureza do inconsciente, e


desconhecemos o que nos afeta imediatamente. Ainda que nos apareça enquanto
natureza psíquica, não é possível afirmar que seja isto ou aquilo. Assim, com o
objetivo de estimular uma compreensão mais ampla e mais profunda de um problema
que se identifica com uma questão universal, Jung (1971/1991b, p. 67) argumenta: de
que maneira nos é possível confrontar com o inconsciente?
Questionamento desta natureza é colocado de modo particular pelo budismo
e a filosofia Zen, assim como na filosofia da Índia, e de forma indireta é a questão
fundamental na prática de todas as religiões e filosofias. O início da compreensão
deste processo psíquico demanda esforço. Com o objetivo de proporcionar alguma
ideia de como se chegar a uma visão concisa do referido processo, Jung escreve em
1916 o ensaio A Função Transcendente. De acordo com Byington (apud Amaral,
2009, p. 69), durante quatro décadas, Jung concebeu e aplicou a Teoria dos
Arquétipos que lhe permitiria explicar, dentro dos moldes científicos, a vivência da
transcendência do Eu. Ao publicar A Função Transcendente, ficou reconhecida como
a função que ligaria o ego17 e a consciência aos arquétipos.
O autor denomina função transcendente a passagem para uma nova atitude.
Ele entende que numa atitude renovada, a libido submersa no inconsciente reaparece
como trabalho positivo. E isto equivale a uma reconquista de vida nova (JUNG,
1971/1991a, p. 244). Entretanto, não se deve entender por função transcendente algo
misterioso, suprassensível ou metafísico. Mas como uma função que por sua natureza
é possível compará-la a uma função matemática de igual denominação com números
reais e imaginários, pois a função psicológica e transcendente é o resultado da união
dos conteúdos conscientes e inconscientes (JUNG, 2015, p. 63-64).
Ao distinguir os termos função e transcendente, Jung esclarece o conceito
apontando para a influência do símbolo vivo neste processo:

Não entendo por “função” uma função básica, mas uma formação complexa,
composta de outras funções; e por “transcendente”, não uma qualidade
metafísica, mas o fato de que por esta função se cria a passagem de uma
atitude para outra. A matéria-prima elaborada pela tese e antítese e que une
os opostos é o símbolo vivo. Em sua matéria-prima, insolúvel por longo
tempo, está sua riqueza de pressentimento; e na forma que sua matéria-

17
Ego – palavra latina que significa “Eu”. É utilizada, em geral, para designar o sujeito substancial ou o
“eu” transcendental, ou seja, o “eu” que, para além do empirismo, condiciona a experiência e as
representações (cf. JAPIASSU; MARCONDES, 2006, p. 82).
32

prima recebe, pela ação dos opostos, está sua influência exercida sobre
todas as funções psíquicas. Indicações dos fundamentos do processo de
formação dos símbolos encontram-se nas escassas referências sobre os
conflitos experimentados pelos fundadores de religião em seus períodos de
iniciação, como por exemplo, Jesus e Satanás, Buda e Mara, Lutero e o
demônio, Zwínglio e sua vida mundana anterior, o rejuvenescimento de
Fausto após o contrato com o diabo, em Goethe. Ao final de Zaratustra
encontramos exemplo típico da opressão da antítese na figura do “homem
mais feio”. (JUNG, 1971/1991a, p. 459-450).

Em ocasiões em que a consciência é repentinamente tomada por


acontecimentos estranhos e inesperados, conflitos acontecem e geralmente é aí que
ocorrem conversões religiosas. Estas não são provenientes diretamente da sugestão,
e sim de processos interiores autônomos que levam à transformação da
personalidade. Tais processos alcançam gradualmente a consciência, pois possuem
a particularidade de serem inicialmente subliminares (JUNG, 1971/1990, p. 51).
Neste processo resta saber como o ego, cuja presença se faz sentir desde os
primeiros tempos de infância e representa em sua realidade o centro da continuidade
da consciência, irá se comportar ao encontrar-se em confronto com um fato psíquico,
produto este que tem sua origem em um evento inconsciente, por isso se encontra,
de alguma forma, em oposição ao ego e suas tendências. A confrontação entre o ego
e o inconsciente leva à aproximação dos opostos, resultando na função
transcendente. Como a função transcendente não é um processo parcial, a
confrontação precisa ser multilateral, ou seja, não se trata de um envolvimento
condicional, mas um acontecimento integral no qual todos os aspectos em questão
devem ser incluídos. Entre os requisitos essenciais do processo de confrontação está
considerar o lado oposto. “A confrontação é conduzida a partir do eu, embora deixando
que o inconsciente também fale audiatur et altera pars (ouça-se também a outra
parte)” (JUNG, 1971/1991b, p. 87-89).
Enquanto as posições contrárias forem mantidas afastadas, conflitos são
evitados, porém não funcionam e permanecem inertes. Se forem aproximadas,
acontece a confrontação. Tem-se, então, um deslocamento que leva a um novo nível
de ser, a uma nova situação, pois uma tensão carregada de energia é gerada,
produzindo algo vivo. Por isso, a função transcendente aparece como uma das
propriedades características dos opostos aproximados. Quando tudo está envolvido
na discussão, apesar de se ter consciência apenas de alguns fragmentos, a
consciência continuamente é ampliada, pois através da confrontação conteúdos até
então inconscientes podem ser integrados. No processo de confrontação com o
33

elemento contrário, nada fica excluído, assim assume o caráter de totalidade (JUNG,
1971/1991b, p. 90-91).
Partindo da análise dessa relação entre ego e inconsciente, temos outra
questão: “em que consistem os processos inconscientes? Como se formam?
Naturalmente na medida em que são inconscientes, nada se pode dizer a respeito”.
Ao propor este grande problema, Jung (1971/1990 p. 52) aponta que, apesar de
manifestarem-se parcialmente por meio de sintomas, ações, opiniões, afetos,
fantasias e sonhos, estes são apenas meios de observação que podem nos auxiliar
fornecendo conclusões indiretas referentes à constituição e o estado momentâneo do
processo inconsciente e seu desenvolvimento. É ilusório pensar que seja possível
descobrir a verdadeira natureza do processo inconsciente. Ficamos, então, apenas
com o hipotético, pois não conseguiremos ultrapassá-lo. “É muito árduo descobrir a
alma e difícil entendê-la, também é difícil chegar ao conhecimento do homem
completo” (JUNG, 1976/1998, p. 212).
Dentro daquilo que é possível alcançar com a experiência atual, pode-se dizer
que os processos inconscientes e a consciência se encontram numa relação
compensatória. A expressão “compensatória” e não a palavra “oposta” é utilizada
propositalmente por Jung (1971/1990, p. 53) ao entender que consciente e
inconsciente não se encontram necessariamente em oposição, ambos se completam
mutuamente para formar uma totalidade que ele denomina self (si-mesmo)18. Partindo
desta definição, compreende-se o self como uma instância que engloba tanto o eu
consciente como o inconsciente.

O si-mesmo, como conceito empírico, designa o âmbito total de todos os


fenômenos psíquicos no homem. Expressa a unidade e totalidade da
personalidade global. Mas na medida em que esta, devido à sua participação
inconsciente, só pode ser consciente em parte, o conceito de si-mesmo é, na
verdade, potencialmente empírico em parte e, por isso, um postulado, na
mesma proporção. [...] engloba o experimentável e o não experimentável,
respectivamente o ainda não experimentado. [...] Na medida em que a
totalidade que se compõe tanto de conteúdos conscientes quanto de
inconscientes for um postulado, seu conceito é transcendente, porque
pressupõe, com base na experiência, a existência de fatores inconscientes e
caracteriza, assim, uma entidade que só pode ser descrita em parte e que,
de outra parte, continua irreconhecível e indimensionável. (JUNG,
1991/1971a, p. 442-443).

18
O Si-Mesmo – Self em inglês, Selbst em alemão.
34

A expressão simbólica, do Self aparece empiricamente representada em


sonhos, mitos, contos de fadas; assim como em figuras representativas de
personalidades superiores como reis, heróis, profetas, salvadores. Também em
símbolos da totalidade como o círculo, o quadrilátero, a quadratura circuli (quadratura
do círculo) e a cruz. Enquanto um complexio oppositorun (união dos opostos),
geralmente apresenta-se como dualidade unificada, como no tao, onde concorrem o
yang e o yin. Desse modo, empiricamente o Self surge como um jogo de luz e sombra,
imagem que compõe a totalidade (JUNG, 1971/1991a p. 443).
Assim como todos os arquétipos, o Self apresenta um caráter paradoxal e
antinômico. Ele pode ser ao mesmo tempo masculino e feminino, velho e criança,
poderoso e indefeso, grande e pequeno (JUNG, 1976/1988, p. 215). De acordo com
Amaral (2009, p. 74), “[...] qualquer objeto tratado como uma instância simbólica, seu
sentido é sempre simbólico e escapa à interpretação [...] O mais importante aqui é
justamente o sentido. O sentido da força e da potência do arquétipo central, o Self”.
Para Jung, uma vez que o conceito não é explícito, pelo mesmo motivo também é
transcendente (JUNG, 1971/1991a, p. 443).
As imagens simbólicas do Self geralmente possuem uma numinosidade que
são representações arquetípicas significativas para a consciência, produzindo nesta,
especial modificação. O indivíduo se apropria desta representação numinosa do
arquétipo, que Jung denomina experiência do numinoso, seja através de um objeto
visível, que são algumas práticas rituais que recorrem a certos artifícios mágicos a fim
de provocar o efeito numinoso, por exemplo, a invocação, a encantação, o sacrifício,
a meditação, a prática da ioga, ou pelo influxo de uma presença invisível. Neste
sentido, faz alusão à conversão de Paulo, que para ele é um exemplo frisante para
compreensão deste aspecto. Diante disso, acredita que toda confissão religiosa tem
por um lado sua origem na experiência do numinoso, por outro, na fidelidade, na fé e
na confiança em uma determinada experiência de caráter numinoso (JUNG,
1971/2012a, p. 19-21).
Os exemplos acima citados nos permitem chegar a uma ideia aproximada de
como se processa a transformação da personalidade. De acordo com Jung
(1971/1990, p. 99), o caminho da transcendência será possível e fecundo somente
quando os indivíduos realmente assumirem as tarefas específicas e concretas pelas
quais se propõem. Ainda que o caminho da função transcendente seja um caminho
individual, não deve levar à alienação do mundo.
35

A capacidade em admitir a validade do argumento dos outros, reconhecendo


o seu valor, deveria ser uma das premissas fundamentais e indispensáveis de toda
comunidade humana, pois a função transcendente dos opostos também se forma a
partir do alternar-se de argumentos e de afetos. “Na medida em que o indivíduo não
reconhece o valor do outro, nega o direito de existir também ao “outro” que está em
si, e vice-versa” (JUNG, 1971/1991b, p. 89).

1.4 O Processo de Individuação

No intuito de conhecer a si mesmo e o significado da vida, Jung percebeu que


a psique tinha como objetivo retornar o ego às suas origens. Através deste retorno,
ocorre um encontro profundo com o inconsciente, resultando no confronto entre o ego
e o self. O autor utiliza-se de sua experiência como referência para apontar que é na
segunda metade da vida que o indivíduo entra neste confronto (JUNG, 1961/2006, p.
239).
O self representa a totalidade absoluta da psique e o centro organizador de
onde emana a ação reguladora do sistema psíquico, porém, é inconsciente ou oculto
(VON FRANZ, 1964/2008, p. 212). O ego, por sua vez, constitui apenas uma pequena
parte da psique, mas é quem ilumina o sistema inteiro, desse modo, torna o
inconsciente em consciente. “A totalidade inata, mas escondida da psique não é a
mesma coisa que uma realidade plenamente vivida” (VON FRANZ, 1964/2008, p.
213).
Quando conteúdos inconscientes são trazidos à consciência, está se
realizando o processo de individuação. De acordo com Jung (1971/1990, p. 49), o
termo individuação pode ser traduzido como tornar-se si mesmo ou o realizar do si
mesmo.
A individuação, em geral é o processo de formação e particularização do ser
individual e, em especial é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como
ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva. É, portanto o processo de
diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual.
(JUNG, 1971/1991a, p. 426).

Podemos compreender a individuação como um processo de


desenvolvimento psicológico que possibilita a realização das qualidades individuais
inatas, porém, não deve ser confundido com individualismo. Segundo Jung
(1971/1990, p. 49), enquanto a individuação, devido às peculiaridades individuais,
36

conduz o ser humano à realização mais completa e adequada das qualidades


coletivas, tornando-se o fator determinante de uma postura social adequada, o
individualismo, por sua vez, opõe-se a considerações e funções coletivas e o sujeito
torna-se egoísta e não realizado.

Uma vez que o indivíduo não é um ser único, mas pressupõe também um
relacionamento coletivo para sua existência, também o processo de
individuação não leva ao isolamento, mas a um relacionamento coletivo mais
intenso e mais abrangente. O processo psicológico de individuação está
[sobretudo] intimamente vinculado à função transcendente, porque ele traça
as linhas de desenvolvimento individual que não poderiam ser adquiridas
pelos caminhos descritos pelas normas coletivas. (JUNG, 1971/1991a, p.
427).

Este processo, que se origina de maneira espontânea e inconsciente, só se


torna real quando o indivíduo participa conscientemente de seu desenvolvimento indo
em direção à autorrealização. Assim, este indivíduo, procura encontrar o que ainda
não se tornou conhecido por ninguém, pois se trata de algo diferente e exclusivamente
seu. No início, o ego se sente coibido de suas vontades ou desejos, porque o self
geralmente começa infligindo uma lesão à personalidade com consequente
sofrimento. É como se recebesse um choque inicial, uma convocação, que resulta em
frustração. Esta convocação, nem sempre é reconhecida, então o ego tende a projetar
em algo exterior, passando a acusar ou responsabilizar quem está à sua volta por sua
frustração (VON FRANZ, 1964/2008, p. 216-219).
Para Jung, o processo de individuação pode ser representado pelo aspecto
simbólico da alquimia19. Assim como o alquimista, após um processo com várias
etapas, buscava encontrar não apenas o ouro enquanto metal precioso, mas a sua
simbologia de preciosidade, a vida psíquica precisa passar por um processo contínuo,
doloroso e difícil, que ocorre no confronto do consciente com o inconsciente,
desencadeando numa verdadeira metamorfose da psique.

[foi] só descobrindo a alquimia [que] compreendi claramente que o


inconsciente é um processo e que as relações do ego com os conteúdos do
inconsciente desencadeiam um desenvolvimento ou uma verdadeira
metamorfose da psique. Nos casos individuais é possível seguir este
processo através dos sonhos e fantasias. No mundo coletivo, tal processo se
encontra inscrito nos diferentes sistemas religiosos e na transformação de

19
Química arcaica que precedeu a química experimental e onde se mesclavam especulações gerais,
figuradas e intuitivas, parcialmente religiosas, a respeito da natureza e do homem. Na matéria
desconhecida eram projetados numerosos símbolos conhecidos hoje como conteúdos do inconsciente.
O alquimista procurava o “segredo de Deus” na matéria desconhecida e se empenhava em
preocupações e caminhos semelhantes ao da psicologia do inconsciente (JAFFÉ, 1961/2006, p. 482).
37

seus símbolos. Mediante o estudo das evoluções individuais e coletivas, e


mediante a compreensão da simbologia alquimista cheguei ao conceito
básico de toda a minha psicologia, o “processo de individuação” (JUNG,
1961/2006, p. 248).

Quando o ego começa a relacionar-se com conteúdos do inconsciente, o


indivíduo passa a conhecer alguns aspectos desconhecidos de sua personalidade,
então, começa a se descobrir e se conhecer. Da mesma maneira que o alquimista
utiliza um processo com várias etapas em busca da preciosidade da pedra, o indivíduo
atravessa por um processo muitas vezes difícil e doloroso, em busca do encontro com
o self ou o si mesmo.

A pedra alquímica simboliza algo que nunca pode ser perdido ou dissolvido,
algo de eterno que alguns alquimistas compararam com a experiência mística
de Deus dentro de nossas almas. É necessário, em geral, um sofrimento
prolongado a fim de consumir todos os elementos psíquicos supérfluos que
ocultam a pedra. (VON FRANZ, 1964/2008, p. 280).

Compreendemos, então, que o processo de individuação acontece quando o


indivíduo apreende os sinais orientadores vindos de seu próprio núcleo psíquico,
sendo que, para encontrá-lo, é preciso seguir os sinais orientadores que vêm não do
ego, e sim do self. Desse modo, alguns conceitos foram designados para
compreender o desenvolvimento deste processo longo, doloroso e difícil.
Para se relacionar com outras pessoas e atender as exigências sociais, o
indivíduo, muitas vezes, assume uma aparência ou um comportamento que não
corresponde a quem ele realmente é, mas ao que os outros querem ou esperam que
ele seja. A esta falsa aparência Jung designou de persona, que é um termo
proveniente da antiga máscara usada pelos gregos para representar papéis em peças
teatrais. Apropriou-se deste termo por entender que o sentido é o mesmo quando o
indivíduo faz uso de uma falsa aparência ou máscara como recurso para facilitar as
relações sociais.

Por sua identificação, mais ou menos plena com a atitude do momento,


engana no mínimo os outros, muitas vezes também a si mesma, sobre seu
verdadeiro caráter; veste uma máscara que sabe corresponder, por um lado,
as suas intenções e, por outro, às exigências e opiniões do meio ambiente,
prevalecendo ora um ora outro momento. Esta máscara, ou seja, a atitude
assumida eu a denomino persona. Com este nome se designava a máscara
dos antigos atores. (JUNG, 1971/1991a, p. 389).

A persona produz algum tipo de efeito sobre os outros, porém, tenta ocultar a
verdadeira natureza do indivíduo. Por isso, é considerada como um complicado
38

sistema de relação entre a consciência individual e o meio social. Espera-se de todo


indivíduo o melhor desempenho possível da atividade a ele designada, neste sentido,
a persona auxilia a convivência social transmitindo a sensação de segurança, na
medida em que cada indivíduo executa sua tarefa. Como por exemplo, um sacerdote,
um sapateiro ou um poeta, ou em qualquer outro ofício, a expectativa da sociedade é
que o indivíduo cumpra seu papel, atendendo ao que dele se espera naquilo pelo qual
é solicitado (JUNG, 1971/1990, p. 68).
É possível que em sua representação, a persona seja excessivamente
valorizada e o ego venha identificar-se com ela. Neste caso, o indivíduo apropria-se
de seus cargos e títulos ao ponto de desenvolver uma personalidade com aspecto
artificial, ou desencadear uma neurose.

Essas identificações com o papel social são fontes abundantes de neurose.


O homem jamais conseguirá desembaraçar-se de si mesmo, em benefício de
uma personalidade artificial. A simples tentativa de fazê-lo desencadeia, em
todos os casos habituais, reações inconscientes: caprichos, afetos,
angústias, ideias obsessivas, fraquezas, vícios. (JUNG, 1971/1990, p. 70).

Quando o papel desempenhado por uma pessoa passa a ser mais importante
do que seus verdadeiros sentimentos, ela se torna alienada de si mesma e sua
personalidade adquire um aspecto artificial, distanciando-se da própria natureza.
Impelido pelas exigências sociais, o indivíduo identifica-se com a persona e se torna
psicologicamente exigente e inflexível. Neste caso, o inconsciente tende a surgir à
consciência de maneira impetuosa e descontrolada, porque não consegue sentir e
perceber as ocorrências internas. A falta de resistência interior contra a sedução
exterior pode ser vista como a fraqueza em relação às influências do inconsciente
(JUNG, 1971/1990, p. 70).
Enquanto os conteúdos do inconsciente pessoal estão relacionados a
aquisições da existência pessoal, os conteúdos do inconsciente coletivo são
arquétipos existentes a priori. Em uma observação empírica, os arquétipos que se
caracterizam mais nitidamente, são aqueles que com maior frequência influenciam ou
inquietam o eu. Eles são representados pela sombra, pela anima e o animus (JUNG,
1976/1998, p. 6).
A sombra se constitui por aspectos da personalidade inconsciente que
geralmente reprimimos e projetamos por ser repugnante e inaceitável. Segundo Jung
apud Jaffé (1961/2006, p. 496), “é aquela personalidade oculta, recalcada,
39

frequentemente inferior e carregada de culpabilidade, cujas ramificações remontam


ao reino de nossos ancestrais animalescos”. Ela representa o lado desconhecido da
personalidade, são tendências e impulsos que a pessoa nega existir em si, mas
consegue enxergar perfeitamente nos outros.

A sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade


do eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta
realidade sem dispender energias morais. Mas nesta tomada de consciência
da sombra trata-se de reconhecer os aspectos obscuros da personalidade,
tais como existem na realidade. Este ato é a base indispensável para
qualquer tipo de autoconhecimento e, por isso, via de regra, ele se defronta
com considerável resistência. (JUNG, 1976/1998, p. 6).

De alguma forma, a sombra pode ser integrada à personalidade. Mas, existem


resistências ligadas às projeções, que incidem em um esforço moral, que vão além
dos limites do indivíduo. Como não é o sujeito quem projeta, e sim o inconsciente, não
se cria a projeção, porque ela preexiste. Porém, com alguma disposição para a
autocrítica, é possível perceber a própria sombra (JUNG, 1976/1998, p. 7-8). Se for
ignorada ou incompreendida, torna-se hostil, pois, quando o indivíduo projeta em
outras pessoas a sua própria tendência, pode destruir a possibilidade de um
relacionamento humano autêntico (VON FRANZ, 1964/2008, p. 229).
A experiência diária proporcionou a Jung oportunidade de reconhecer a
personalidade externa, como também aceitar a existência de uma personalidade
interna. À atitude ou o caráter externo denominou persona, e à atitude interna anima
ou alma (JUNG, 1971/1991a, p. 391). Em suas investigações sobre a estrutura do
inconsciente, fez uma distinção conceitual entre psique e alma. A psique representa a
totalidade dos processos psíquicos, abrangendo conteúdos conscientes e
inconscientes; e a alma seria um complexo determinado e limitado de funções que
poderiam ser caracterizados por personalidade (JUNG, 1971/1991a, p. 388).
Jung (1971/1991a, p. 392) pressupõe que a alma possui todas as qualidades
humanas comuns que faltam à atitude consciente. Ela posiciona-se como
complemento ao caráter externo, atingindo inclusive o caráter sexual. Observa-se que,
enquanto atitude externa ou consciente, no homem geralmente predomina a lógica e
a objetividade e, na mulher, o sentimento. Porém, na atitude interna, ou na alma, a
questão se inverte, o homem sente e a mulher decide. Assim denominou anima o
feminino no homem e, animus o masculino na mulher.
40

Enquanto no homem o ofuscamento animoso é, sobretudo de caráter


sentimental e caracterizado pelo ressentimento, na mulher ele se expressa
através de conceitos, interpretações, opiniões, insinuações e construções
defeituosas. (JUNG, 1976/1988, p. 14).

Anima e animus são arquétipos de grande significado, pois pertencem à


personalidade e estão enraizados no inconsciente coletivo. Eles possibilitam a
passagem, construindo um elo entre o pessoal e o impessoal, bem como entre o
consciente e o inconsciente. Trata-se de um complexo funcional que se comporta de
maneira compensatória em relação à personalidade manifesta e consciente,
proporcionando aquelas propriedades que lhe faltam. São as características femininas
no homem e as masculinas na mulher que, em determinada medida, normalmente
estão presentes, porém são incômodas para a realidade externa (EMMA JUNG, 2006,
p. 15).
Na concepção de Jung (1976/1988, p. 12) a anima corresponde ao Eros
materno, o animus por sua vez, ao Logos paterno. O Eros, que é a função do
relacionamento e, no caso do homem, geralmente aparece menos desenvolvido do
que o Logos, a função da lógica. Por outro lado, o Eros na mulher é a expressão de
sua natureza real, ao passo que o Logos, muitas vezes, constitui apenas um incidente
deplorável. Estes conceitos são intuitivos, assim, não é possível propor-lhes
definições muito específicas.

Da mesma forma que a anima se transforma em Eros da consciência,


mediante a integração, assim também o animus se transforma em um Logos;
da mesma forma que a anima imprime uma relação e uma polaridade na
consciência do homem, assim também o animus confere um caráter
meditativo, uma capacidade de reflexão e conhecimento à consciência
feminina. (JUNG, 1976/1988, p. 14).

Por ocuparem uma esfera de penumbra, dificilmente se percebe que a anima


e o animus representam complexos autônomos que constituem uma função
psicológica tanto no homem quanto na mulher. A autonomia, sobretudo, a falta de
desenvolvimento, reprime o pleno despertar de uma personalidade. Enquanto seus
conteúdos permanecerem ocultos, não será possível integrá-los à consciência (JUNG,
1971/1990, p. 86).
Segundo Von Franz (1964/2008, p. 236), a função da anima é representar a
personificação das tendências psicológicas femininas na psique do homem; neste
sentido, é a mãe que geralmente contribui para que o caráter da anima se apresente
de maneira negativa ou positiva. Isso irá depender da influência exercida nesta
41

relação, vindo refletir no comportamento e nas escolhas deste homem20. No caso do


animus, que é a personificação masculina no inconsciente da mulher, quem
geralmente contribui para que se apresente de maneira negativa ou positiva é o pai.
Da mesma maneira que a mãe influencia o caráter da anima no homem, o pai
influencia o caráter do animus na mulher21 (VON FRANZ, 1964/2008, p. 251).
Para Jung, anima e animus, estas duas figuras crepusculares de fundo
obscuro da psique com suas complicações e transformações, são tão ricas quanto o
próprio mundo, e tão extensas como a variedade incalculável do seu correlato
consciente, a persona. Elas podem assumir numerosos aspectos, de modo que
encheriam volumes inteiros (JUNG, 1971/1990, p. 86).
O processo de individuação é o caminho pelo qual o indivíduo vai ao encontro
da totalidade psíquica. Nesta jornada, vai se desfazendo de suas máscaras, se
descobrindo, se conhecendo, retirando as projeções que foram lançadas no mundo
externo, integrando-as de volta a si mesmo. De acordo com Jung (1971/1990, p. 50),
“a meta da individuação não é outra senão a de despojar o si-mesmo dos invólucros
falsos da persona, assim como do poder sugestivo das imagens primordiais”.

20
Quando a anima é apresentada na forma negativa, o homem tende a se comportar de maneira
irritada, depressiva, incerta, insegura, suscetível, rancorosa ou venenosa, demonstrando falta de
espontaneidade e dificuldade na comunicação. Geralmente não valoriza as coisas e distorce a verdade.
Pode tornar-se efeminado ou submisso às mulheres, demonstrando incapacidade em lutar diante das
adversidades da vida. Estes aspectos negativos da anima, assim como na sombra, podem ser
projetados em outra pessoa, geralmente em uma determinada mulher, e parecer qualidades
pertencentes a ela. Porém, se o homem conseguir dominar essas investidas de caráter negativo, elas
poderão, ao contrario, servir para fortalecer-lhe a masculinidade. Por outro lado, em seu aspecto
positivo, a anima orienta o homem em questões importantes, como nos momentos em que o espírito
lógico não consegue discernir os fatos ocultos em seu inconsciente, ela ajuda-o a identificá-lo. Outra
questão relevante é sintonizar a mente masculina com seus valores internos positivos possibilitando
um conhecimento interior mais profundo. Essa sintonia pode estar relacionada com a escolha religiosa.
Por exemplo, quando um homem torna-se católico praticante, descobre sua anima sob a forma da
própria igreja, as imagens sacras são, para ele, símbolos do seu inconsciente. Também pode orientar
o homem na escolha da esposa certa (VON FRANZ, 1964/2008, p. 234-250).
21
Ao atuar de forma inconsciente, o animus pode provocar sentimentos e alterações negativas no
comportamento feminino. Ele surge trazendo opiniões espontâneas, não premeditadas, influências que
poderão dominar negativamente na vida emocional da mulher (MEDINICOFF 2008, p. 71). Geralmente
se manifesta como uma convicção secreta, ou seja, a masculinidade encoberta. No entanto, se torna
facilmente reconhecida quando a mulher expressa essa convicção com voz forte, masculina e
insistente, ou tenta impor a outras pessoas com violência. Em contrapartida, uma mulher
aparentemente muito feminina, que de repente, surpreende os outros com atitude obstinada, fria e
inacessível, está apresentando um animus com uma força igualmente firme e inflexível. Sendo assim,
em sua qualidade negativa, o animus apresenta brutalidade, indiferença, tendência à conversa vazia,
às ideias silenciosas, obstinadas e más. Em sua qualidade positiva, se apresenta de maneira muito
valiosa, pois através da sua ação criadora, pode lançar uma ponte para o self. Assim, irá personificar
um espírito de iniciativa, coragem e honestidade, favorecendo a mulher para que tome consciência dos
processos básicos de seu desenvolvimento cultural e pessoal, tendo atitudes positivas em relação à
vida e encontre o caminho para uma espiritualidade de nível elevado (VON FRANZ, 1964/2008, p. 251-
260).
42

A psicologia da persona é acessível a qualquer pessoa. Todos sabem o que


significa “assumir um ar oficial”, ou “desempenhar um papel na sociedade”. Através
da persona, a pessoa pode representar isto ou aquilo, ou então se esconder
construindo uma muralha protetora. Entretanto, quando o indivíduo se volta para o
outro lado, atentando para as influências do inconsciente, existe um mundo interior
obscuro de difícil compreensão. Quando os processos interiores irrompem na
consciência com força sugestiva, não é fácil descrever de maneira compreensiva.
Talvez, uma das melhores maneiras para compreender essas irrupções seria atentar
para as conversões religiosas (JUNG, 1971/1990, p. 50).
Jung (1971/1990, p. 51) faz alusão a William James e sua obra As variedades
da experiência religiosa22, na qual é possível encontrar um extenso material sobre
diversas formas de experiência religiosa e sua relação com as questões psíquicas.
Embora, em muitos casos, a mudança ou a predisposição a ela sejam produzidas por
fatores externos, estes nem sempre explicam suficientemente a mudança de
personalidade, porque tal mudança é proveniente de conteúdos internos e subjetivos.

As conversões religiosas que não procedem diretamente da sugestão, são


provenientes de processos interiores autônomos, que culminam na
transformação da personalidade. Tais processos têm a particularidade de ser
inicialmente subliminais, isto é, inconscientes, só alcançando a consciência
de modo gradual. O momento da irrupção pode, entretanto, ser repentino, de
maneira que a consciência é como que inundada instantaneamente por
conteúdos estranhos e inesperados. (JUNG, 1971/1990, p. 51).

Quando o indivíduo se conscientiza de suas próprias convicções, ou de seus


conteúdos inconscientes, ele começa abrindo um novo caminho pelo terreno ainda
não desbravado. Nisto consiste o avanço que começa sempre com a individuação.
Para que esse processo ocorra, é necessário retornar às questões fundamentais do
seu próprio ser e tomar conhecimento de sua diferenciação. Isto não depende de
qualquer autoridade ou tradição (JUNG, 1971/1997, p. 57).

22
William James (citado na introdução desta pesquisa) nasceu em New York em 1842 e faleceu em
sua casa de campo em New Hampshire em 1910. Psicólogo, filósofo e líder do movimento conhecido
como Pragmatismo foi um dos mais famosos e representativos pensadores da América. Neste trabalho
clássico, William James explora a psicologia da religião, aplicando o método científico a um campo que
já havia sido tratado anteriormente como filosofia teórica e abstrata. O autor acreditava que as
experiências religiosas individuais, diferentemente dos preceitos estabelecidos pelas religiões
organizadas, constituíam a espinha dorsal da vida religiosa. Seus comentários sobre conversão,
arrependimento, misticismo e santidade, e suas observações acerca de experiências religiosas
verdadeiras, pessoais, dão embasamento a essa tese.
43

Se caracterizarmos o si-mesmo como uma espécie de compensação entre


conflitos internos e externos, esta formulação nos levaria a uma finalidade que será
atingida aos poucos e com muito esforço. Então, ele representa a meta da vida, e a
expressão plena da combinação consciente e inconsciente, imanente e
transcendente, ao que damos o nome de indivíduo. Não apenas o indivíduo em sua
singularidade, mas o indivíduo que, no grupo, completa o outro, compondo a imagem
plena. Desse modo, é possível compreender que o processo de individuação não
busca a perfeição, mas a plenitude (JUNG, 1971/1990, p. 114).

1.5 Os tipos e as funções psíquicas: o indivíduo e o fenômeno religioso

Ao escrever Tipos Psicológicos (1920), fruto de vinte anos de trabalho no


campo da psicologia prática, Jung estava lutando com o desconhecido. Desde que foi
escrito, a ideia das quatro funções da consciência e do funcionamento da
personalidade humana consciente mostrou-se bem produtiva (VON FRANZ, 2016 p.
11).
Em uma de suas conferências publicada em 193623, apresentou um panorama
que denominou desenvolvimento cultural. Trata-se de um desenvolvimento da
capacidade de diferenciação e julgamento da consciência. Interessado em apresentar
certas estruturas típicas e modalidades das funções da psique, traz como proposta
principal em seu conceito sobre os tipos psicológicos, estimular a compreensão que o
ser humano tem de si e de seus semelhantes. Para ele, além do importante papel que
o antagonismo dos tipos desempenha nas dissensões religiosas, é também relevante
nas explanações científicas, culturais, cosmovisuais e nas relações humanas em
geral.
Na referida obra, Jung se ocupa em trazer à compreensão os processos
psíquicos lançando mão da filosofia, literatura, teologia como também do pensamento
místico. Ele faz alusão a Tertuliano e Orígenes 24 para relacionar os dois tipos gerais
de atitude (p. 25-35). Apropria-se do pensamento de Friedrich Schiller 25 para se

23
Anexo em Tipos Psicológicos, p. 499-502.
24
Tertuliano e Orígenes foram contemporâneos no final do século II. Jung se utiliza da personalidade
destes dois padres como representação do tipo introvertido e do extrovertido.
25
Johann Christoph Friedrich Von Schiller (1759-1805) foi um poeta, filósofo, médico e historiador
alemão. De acordo com Jung, foi o primeiro a tentar uma distinção consciente e de grande envergadura
entre atitudes típicas, e fazer delas uma descrição completa e detalhada.
44

aprofundar na concepção das funções da consciência (p. 77-137). Em Nietzsche,


retrata sobre O nascimento da tragédia (1888), no qual as divindades gregas Apolo e
Dionísio representam os opostos, ou o instintual e o espiritual no ser humano (p 138-
147). As ideias de Willian James também entram no escopo dos estudos de Jung no
que tange aos pares dos opostos (p. 295-307). A experiência mística de Mestre
Eckhart26 contribuiu na compreensão da relatividade de Deus para com o homem e
sua alma (p. 243-250).
Jung adaptou seus métodos de análise e intervenção de acordo com a
necessidade de cada indivíduo. O conhecimento da natureza humana através de
vários anos de experiência prática levou-o a considerar cada caso pelo qual precisaria
encontrar uma forma de aproximação particular e especial. Fazendo alusão aos
escritos de Jung, Silveira (1981, p. 20) afirma que, se a experiência interior é como
um relâmpago, o trabalho científico necessariamente teria que ser construído devagar
e com prudência.

1.5.1 O conceito de Deus e a relação com os homens

Jung apropria-se da experiência pessoal de Mestre Eckhart (1260-1328) a fim


de trazer uma compreensão puramente psicológica, portanto relativa, do conceito de
Deus e sua relação com os homens. Ele parte do pressuposto de que houve, em
Eckhart, extraordinária exaltação do valor da alma, isto é, de seu valor íntimo,
possibilitando tal compreensão. Dotado por uma perspicácia psicológica e elevado
sentimento religioso, Mestre Eckhart tornou-se um representante ilustre da corrente
crítica da Igreja no final do século XIII (JUNG, 1971/1991a, p. 237). Para Jung,
apresentar de maneira detalhada a relatividade de Deus para com o homem e sua
alma, parecia um importante passo que levaria ao caminho da compreensão
psicológica do fenômeno religioso. Partindo da análise da referida experiência,
apresenta sua compreensão da relatividade de Deus:

26
Johann Eckhart (1260-1328), designado pelo nome de Mestre Eckhart, figura de prestígio no
Ocidente Cristão do início do século XIV, conheceu em seu tempo o opróbrio de um processo de
heresia, pois “quis saber mais do que convinha”. Seu pensamento e sua vida foram alvo dos círculos
eclesiásticos de sua época, entretanto, graças a seus discípulos mais próximos, os dominicanos
Henrique Suso e Johannes Tauler, que entraram em sua defesa e exploraram suas intuições, sua
influência se manifestou em algumas das maiores obras de tradição especulativa mística, tais como:
Ruysbroeck, Nicolau de Cusa, Ângelo Silésio, Baader, Hegel, Jung, Heidegger e Bataille (JARCZYK;
LABARRIÈRE, 2004, p. VII).
45

Por relatividade de Deus entendo um ponto de vista segundo o qual Deus não
existe como “absoluto”, isto é, desvinculado do sujeito humano e além de toda
e qualquer condição humana, mas dependente, em certo sentido, do sujeito
humano, havendo uma relação recíproca e essencial entre o homem e Deus,
de modo que se possa conceber, por um lado, o homem como função de
Deus e, por outro, Deus como função do homem. Para nossa psicologia
analítica que, como ciência, deve restringir-se ao empírico, a imagem de
Deus é uma expressão simbólica de um estado psíquico ou de uma função
que se caracteriza por ultrapassar absolutamente o querer consciente do
sujeito e consegue, assim, impor ou tornar possíveis, ações e resultados
inacessíveis ao esforço consciente. Este impulso poderoso – uma vez que a
função de Deus se manifesta no agir – ou esta inspiração que transcende o
entendimento consciente, provém de um represamento da energia no
inconsciente. (JUNG, 1971/1991a, p. 235).

A ideia da relatividade de Deus tem por finalidade mostrar que uma parte dos
conteúdos inconscientes pode ser considerada, ainda que indiretamente, como
conteúdos psicológicos. No caso dos místicos, como por exemplo, Eckhart, tal
consideração tornou-se válida ao voltar atenção à alma mais do que normalmente
acontecia. Assim, distinguiram-se os conteúdos inconscientes e suas projeções nos
objetos, proporcionando-lhe certa consciência, fazendo-os parecer como
pertencentes ao sujeito. Apesar de apresentada pelos místicos, em princípio, a ideia
da relatividade de Deus está presente entre os antigos de forma natural.
Manifestando-se como natureza puramente dinâmica, aparece como uma força divina,
capturada por certos procedimentos, que proporciona aquilo que as pessoas
necessitam para obter vida e saúde. Jung entende que toda forma de religião, traz em
sua constituição ética e cultural alguma tendência arcaica. Assim, as misteriosas
forças instintivas que, através do processo religioso contribuem para o
desenvolvimento humano, provêm desta relação com o arcaico (JUNG, 1971/1991a,
p. 236).
De acordo com Hillman (1984, p. 39), a atitude simbólica da psicologia tem
como origem a experiência da alma que direciona para a presença oculta e numinosa
do divino. A experiência da alma, ou o encontro de Deus com o homem na alma, seria
a imagem de Deus na psique enquanto algo conhecido, experimentado, sentido,
intuído, pelo qual o indivíduo venha formular ou representar. Trata-se inicialmente de
uma experiência, seguida de um conceito. Sobretudo, tal experiência ou imagem não
é única e nem sempre a mesma. No transcurso da vida de qualquer indivíduo, ela
sofre transformações com diferenças significativas de uma pessoa para outra
(HILMAN, 1984, p. 67).
46

Jung faz distinção entre conceito e existência de Deus. Enquanto conceito


trata-se de uma função psíquica, mas, na questão da existência, a intelectualidade
humana não seria capaz de encontrar respostas. Acompanhemos sua definição:

O conceito de Deus é simplesmente uma função psicológica necessária, de


natureza irracional, que absolutamente nada tem a ver com a questão da
existência de Deus. O intelecto humano jamais encontrará uma resposta para
esta questão. [...] A ideia de um ser todo-poderoso, divino, existe em toda
parte. Quando não é consciente, é inconsciente, porque seu fundamento é
arquetípico [...] nosso intelecto sabe perfeitamente que não tem capacidade
para pensar Deus e muito menos para imaginar que Ele existe realmente e
como Ele é. A questão da existência de Deus não tem resposta possível. Mas
o “consensus gentium” (o consenso dos povos) fala dos deuses há milênios
e dentro de milênios ainda falará. (JUNG, 2015, p. 46-47).

É possível observar que Jung não está preocupado em provar a existência de


Deus, e sim, demonstrar que em todos os povos, desde os tempos primórdios, existe
uma relação recíproca entre o divino e o humano, ou seja, entre o transcendente e o
imanente. Esta relação está vinculada à experiência da alma, meio pelo qual o
indivíduo tem acesso às imagens arquetípicas do inconsciente trazendo-as à
consciência, sendo que os símbolos exercem papel fundamental neste processo.
De acordo com Amaral (p. 61-62), “o que dá configuração à experiência
(reflexo das coisas temporais e atemporais, visíveis e invisíveis), são as funções
psíquicas” e quem traduz essa experiência é o símbolo. Este, sendo de natureza
complexa, sua estrutura tem conexão com a dinâmica arquetípica da psique
inconsciente e as funções da consciência.
Jung considera que a complexidade do símbolo se dá por sua natureza não
ser de ordem racional e nem irracional, e esclarece a relação deste com as funções
psíquicas.

O símbolo é sempre um produto de natureza altamente complexa, pois se


compõe de dados de todas as funções psíquicas. Portanto, não é de natureza
racional e nem irracional. Possui um lado que fala à razão e outro inacessível
à razão, pois não se constitui apenas de dados racionais, mas também de
dados irracionais fornecidos pela simples percepção interna e externa. A
carga de pressentimento e de significado contida no símbolo afeta tanto o
pensamento quanto o sentimento, e a plasticidade que lhe é peculiar, quando
apresentada de modo perceptível aos sentidos, mexe com a sensação e a
intuição. (JUNG, 1971/1991a, p. 447).

Pensamento, sentimento, sensação e intuição são os quatro tipos funcionais


que correspondem às quatro formas evidentes em que a consciência se orienta em
relação à experiência. Enquanto o pensamento e o sentimento são considerados
47

funções racionais, a percepção e intuição são vistas como funções irracionais. As


quatro funções, dividem-se em oito tipos psíquicos classificados como introvertidos e
extrovertidos. Trata-se de distinções mais específicas nas quais o indivíduo se adapta
ou se orienta. Jung define introvertido e extrovertido como os dois tipos gerais de
atitude, que se apresenta de acordo com o interesse ou movimento da libido (JUNG,
1971/1991a, p. 316).

1.5.2 A estrutura psíquica: diferenças e desdobramentos

Através da experiência tanto profissional quanto cotidiana, Jung percebeu que


estar com o outro é um constante desafio. Isso acontece pela incrível diferença
existente entre os indivíduos, ou seja, um não é tão semelhante ao outro como
desejaria. Ao observar tal dificuldade, ocupou-se em trazer sua contribuição para que
o indivíduo pudesse se orientar melhor nos quadros de referência do outro. Assim, as
pesquisas voltadas a explorar o inconsciente não o fizeram perder o interesse pelas
relações exteriores. Parecia-lhe que a relação pessoal se apresentava sempre como
uma questão de maior importância. De maneira genérica, fez inicialmente a distinção
entre os que partem rápidos e confiantes em direção ao objeto e denominou de atitude
extrovertida; já os que parecem hesitar ou recuar frente ao objeto, atitude introvertida
(SILVEIRA, 1981, p. 51-52).
Acompanhemos a narrativa de Jung em sua experiência clínica:

Em minha prática médica junto a pacientes nervosos constatei, de longa data,


que a par de muitas diferenças individuais na psicologia humana, há também
diferenças de tipos que denominei de introvertido e extrovertido. Quando
observamos o desenrolar da vida humana, vemos que o destino de alguns é
mais determinado pelos objetos de seu interesse e o de outros mais pelo seu
interior, pelo subjetivo. (JUNG, 1971/1991a, p. 19).

Jung apresenta o tipo psicológico como uma espécie ou generalidade que


reproduz características semelhantes. Seria um “modelo característico de uma atitude
geral que se manifesta em muitas formas individuais” (JUNG, 1971/1991a, p. 450).
Mesmo não sendo possível saber o que determina a disposição básica original dos
tipos, acredita na provável antecedência ou paralelo biológico. Para ele, a relação
sujeito-objeto sempre acontece através da adaptação. Essa relação pressupõe
modificações que surtem efeitos nos indivíduos, constituindo assim a adaptação.
48

Portanto, o processo de adaptação seria as atitudes típicas direcionadas ao objeto


(JUNG, 1971/1991a, p. 317).
De acordo com Jung, na natureza existem duas maneiras fundamentais e
possíveis de adaptação e sobrevivência entre os organismos vivos. Uma seria a
enorme proliferação, que consiste na força defensiva relativamente pequena, com
curta duração de vida, como por exemplo, a pulga, o piolho, o coelho. Outra apresenta
capacidade de autoconservação construindo fortes mecanismos de defesa, mas com
proliferação relativamente pequena, como no caso do porco-espinho e o elefante. Da
mesma maneira que acontece na natureza, encontram-se presentes no homem duas
possibilidades de lidar com a realidade: defendendo-se e afastando-se enquanto
constrói sua própria vida, ou indo ao encontro, sobrepujando-a ou conquistando-a. O
primeiro representa o tipo introvertido e, o segundo, o extrovertido no reino biológico
(VON FRANZ, 2016, p. 17).
Este contraste biológico parece que não seria apenas análogo, mas o
fundamento dos modelos psicológicos de adaptação. Limitando-se a uma
consideração geral, Jung aponta que, enquanto a característica do extrovertido
consiste na constante doação e intromissão em tudo, o introvertido tende a se
defender das solicitações externas, criando para si mecanismos fortes e seguros de
defesa, precavendo-se do consumo de energia direcionado ao objeto (JUNG,
1971/1991a, p. 319). Para o autor, ainda que nenhuma classificação venha definir a
psique individual, o tipo psicológico é um caminho que se abre para melhor
compreender a psicologia humana em geral (JUNG, 1971/1991a, p. 475).
Diferentes posicionamentos em épocas distintas foram os meios pelos quais
Jung se apropriou, a fim de exemplificar a diferenciação dos tipos e como eles se
apresentam no indivíduo. Desse modo, aponta que o introvertido e o extrovertido são
duas formas de pensar, no que se refere às suas condições, totalmente e
fundamentalmente diversas, sendo assim, são incomensuráveis (JUNG, 1971/1991a,
p. 39).
Apesar da imensa variedade de motivos e tendências, alguns grupos
apresentam características notáveis de conformidade em suas motivações. Há
indivíduos que colocam grande ênfase em fatores externos de modo que seus
julgamentos, percepções, sentimentos, afetos e ações originam-se por motivações
externas. Ao passo que, em outros, as motivações são originadas principalmente das
realidades internas, a saber, do próprio sujeito. Enquanto para o extrovertido tudo o
49

que lhe é valioso está no objeto, para o introvertido está no sujeito (JUNG, 1971/
1991a, p. 474-476).
O problema dos tipos e a relação com o fenômeno religioso apresenta-se no
decurso histórico desde o pensamento antigo e medieval. Assim, Jung se apropria da
experiência religiosa de Tertuliano e Orígenes27, atentando para as características da
personalidade e visão de mundo de ambos, a fim de exemplificar os tipos extrovertido
e introvertido.
Nascido em Cartago por volta de 160 d.C., Quintus Septimius Florens
Tertullianus era filho de gentios, e sua conduta em relação ao cristianismo consistia
inicialmente em zombar dos cristãos. Ele mesmo confessa que, até acontecer sua
conversão ao cristianismo, levava uma vida dissoluta em sua cidade natal (BOEHNER
apud SILVA, 2018, p. 64). Jung relata que a conversão de Tertuliano ocorreu aos trinta
e cinco anos de idade, desde então, tornou-se autor de vários escritos nos quais
aparece com clareza o zelo e a ardente paixão, bem como a profundidade de sua
concepção religiosa. Combatia enfaticamente a gnose28, que seria uma paixão do
pensamento e do conhecimento, como também da ciência e filosofia que para ele,
pouco se diferenciavam (JUNG, 1971/ 1991a, p. 28-29).
A Tertuliano foi atribuída a grandiosa confissão: Creio porque é absurdo.
Entretanto, ao que parece, não seria bem isso que consta como verdade histórica, e
sim que teria dito: “e morreu o Filho de Deus, isto é perfeitamente crível porque é
absurdo. E sepultado ressuscitou; isto é certo porque é impossível”29. De acordo com
Bohnener e Gilson apud Silva (2018, p. 67), provavelmente Tertuliano queria dizer que
“se a fé não nos propusesse nada de incompreensível ela deixaria de ser crença, para
se transformar em ciência e conhecimento”. Também é possível que estivesse
tentando apontar que, a não ser que reivindique a própria fonte da verdade que é
Deus, a razão inevitavelmente incidiria em erro, caso fosse abandonada em si mesma.

27
O objetivo aqui não consiste em uma discussão filosófica acerca desses dois pensadores, e sim, a
partir da concepção de Jung, apontar para os aspectos psicológicos envolvidos na experiência religiosa
de ambos.
28
“Gnose” (do grego gnosis: conhecimento). Na história das religiões o termo “gnose” é reservado ao
conjunto das doutrinas heréticas que, nos séculos II e III, ameaçaram a unidade do cristianismo. Em
substância, a gnose consiste em afirmar a possibilidade da salvação religiosa pelo conhecimento
intelectual, sem o dom direto da graça divina. Por extensão, o termo passou a designar o conhecimento
esotérico e perfeito das coisas divinas pelo qual se pretende explicar o sentido profundo de todas as
religiões. Em outras palavras, conhecimento das coisas religiosas superiores ao conhecimento comum
dos crentes ou ao ensinamento das Igrejas (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006, p. 122).
29
“Et morttus est dei filius, prorsus credibile est, quia ineptum est. Et supultus ressurrexit, certum est,
quia impossibile est”. TERTULIANO, De carne Christi, 5 apud Jung (1971/1991a, p. 29).
50

Graças à agudeza de espírito, percebeu o lado vulnerável do saber filosófico


e gnóstico e o repudiou com desprezo. Apoiou-se então, no testemunho de
seu próprio mundo interior, nos fatos de sua própria intimidade que se
identificavam com sua fé [...] O fato íntimo irracional que para ele era de
natureza essencialmente dinâmica foi o princípio e fundamento perante o
mundo e perante a ciência e filosofia racionais ou de validade geral. (JUNG,
1971/1991a, p. 29).

Tendo como inspiração a ideia mítica do símbolo do sacrifício do filho de Deus,


Tertuliano sacrificou o que lhe era mais valioso – seu brilhantismo intelectual e o
conhecimento que dele originavam. Ao abandonar o caminho da intelectualidade,
reconheceu o princípio do sentimento, assim, o caráter racional que induzia os
fenômenos religiosos por meio da gnose tornou-se repulsivo para ele. Para Jung
(1971/ 1991a, p. 28), esse seria um processo de desenvolvimento psicológico, que no
caso de Tertuliano, designou-se por tornar-se cristão. Ao realizar o sacrificium
intellectus, fechou-se o caminho para o desenvolvimento puramente intelectual [grifo
nosso], levando-o a reconhecer a dinâmica irracional de sua alma enquanto
fundamento de seu ser. Diante disso, tornou-se um exemplo clássico do pensamento
introvertido. “A consciência introvertida vê as condições externas, mas escolhe as
determinantes subjetivas como decisivas” (JUNG, 1971/1991a, p. 354).
Enquanto consideração biológica, o sacrifício visa apenas domesticar os
impulsos. Porém, no sentido psicológico, ao dissolver laços antigos, proporciona
novas possibilidades de desenvolvimento espiritual. A fim de desvincular-se do
mundano, Tertuliano realizou o sacrifício do intelecto (sacrificium intellectus);
Orígenes por sua vez, sacrificou seu vínculo sensual com o mundo (sacrifícium phalli).
Para este, a questão não estava vinculada ao intelecto, mas ao sentimento e à
sensação que o ligavam ao objeto (JUNG, 1971/ 1991a, p. 32-33).
Nascido em Alexandria por volta de 185 dC, Orígenes, ao contrário de
Tertuliano, tinha uma teologia com essência filosófica e se manteve aberto à influência
do gnosticismo. Filho de um mártir cristão30 nasceu em uma atmosfera mental ímpar,
onde as ideias do Oriente e Ocidente misturavam-se. Sua ânsia pelo saber o levou a
absorver tudo o que considerava digno de conhecimento, apropriando-se de toda

30
Suscitada pelo imperador romano Severo (146-211), uma perseguição contra as igrejas consumou-
se em toda parte desde o Egito até a Tebaida. Notáveis e numerosos martírios ocorreram
especialmente em Alexandria com diversos tormentos e gênero de morte que eram suportados com
firme paciência. Leônidas, o pai de Orígenes, foi decapitado, deixando seu filho ainda muito jovem, que
cresceu e viveu com predileção pela palavra divina (CESARÉIA, 1999, p. 193).
51

riqueza intelectual de Alexandria. Com extraordinária erudição e impressionante


capacidade de pesquisa, tornou-se um autor muito prolífico e grande professor. Seu
discurso cativante o possibilitou exercer grande influência pessoal. Assim, vivia
cercado por discípulos que o consideravam um mestre venerável, também de
numerosos estenógrafos empenhados em recolher suas preciosas palavras (JUNG,
1971/1991a, p. 31).

E muitas outras pessoas instruídas, quando se estendeu a fama de Orígenes


por todas as partes, acudiam também a ele para experimentar a perícia deste
homem nas doutrinas sagradas. E milhares de hereges e não poucos
filósofos dos mais ilustres aderiram a ele com afã, e eles o instruía não
somente nas coisas divinas, mas inclusive nas coisas de fora. (EUSÉBIO,
1999, p. 207).

Orígenes conservou vivo o ensinamento cristão recebido por seus pais.


Entretanto, levou a cabo uma façanha que, por um lado, revela um comportamento
imaturo e juvenil e, por outro, demonstra uma prova plena de sua fé. Assim, antes de
211 d.C., efetiva a autocastração com o propósito de desvincular-se daquilo que,
especificamente para ele, representava perigo – o sentimento e a sensação que o
ligavam ao objeto.

Efetivamente, tomando muito ao pé da letra com ânimo bastante juvenil a


frase: Há eunucos que se castram a si mesmos pelo reino dos céus [Mt
19,12] e pensando, por um lado, cumprir assim a palavra do Salvador, e por
outro, com o fim de evitar entre os infiéis toda a suspeita e calúnia
vergonhosa, já que sendo tão jovem, tratava das coisas de Deus não apenas
com homens, mas também com mulheres, decidiu-se a concretizar a palavra
do Salvador, cuidando para que passasse despercebido para a maioria dos
seus discípulos. (EUSÉBIO, 1999, p. 199).

Demonstrando minuciosa preocupação por fatos objetivos e suas condições,


pois seu processo de desenvolvimento cristão teve como fundamento e orientação
básica a relação com o objeto, Orígenes representa um exemplo clássico do tipo
extrovertido. Simbolicamente, a relação com o objeto se manifestava na sexualidade.
Desse modo, como expressão adequada para o sacrifício do mais forte dos instintos,
da função mais valiosa e a mais amada possessão, realizou a castração. Livrando-se
da sensualidade ligada ao gnosticismo, sem medo se entregou à riqueza do
pensamento gnóstico. Ainda que o sacrifício que Tertuliano e Orígenes realizaram
52

pareça extremamente radical, corresponde ao espírito concretista da época 31 (JUNG,


1971/1991a, p. 32-35).
Aplicar uma hipótese em determinado assunto ou tema impessoal, é legítimo
em todos os seguimentos científicos. No entanto, a psicologia que inevitavelmente lida
com o confronto nas relações entre indivíduos, deve considerar a subjetividade de
ambos, sem despersonalizar em qualquer outro sentido. Ainda que extroversão e
introversão sejam aparentemente óbvias e de fácil reconhecimento, tratam-se de
critérios extremamente genéricos para se compreender um indivíduo em suas infinitas
peculiaridades. Assim, no intuito de compreender e organizar as “diferenças
aparentemente ilimitadas da individualidade humana”, Jung busca por outras
particularidades básicas do ser humano (JUNG, 1964/2008, p. 70-73).
De acordo com Silveira (1981 p. 54), Jung percebeu que indivíduos
introvertidos, apesar de apresentarem reações análogas frente aos objetos, poderiam
diferir muito entre si. O mesmo ocorria com o grupo dos extrovertidos. Assim, em cada
uma das duas atitudes típicas existiam inúmeras variações. Contínuas observações o
levaram a concluir que essas diferenças dependiam da função psíquica utilizada pelo
indivíduo, meio pelo qual se adapta ao mundo exterior. “A psique consciente é uma
espécie de aparelho de adaptação ou orientação, constituído por certos números de
diferentes funções psíquicas” (JUNG, 1971/1991a, p. 477).
A palavra função deriva de fungi, fungor, que significa realizar. Uma função
está relacionada a algo que se realiza, opera ou age. Seria um processo que acontece
no decorrer de determinado período de tempo. Referindo-se à sua raiz sânscrita
(bhunj) tem o sentido de apreciar. Apreciar tem relação com a palavra latina functus.
“O exercício e a realização de uma função é algo a ser apreciado, como atividade
agradável ou saudável, como a operação das capacidades pessoais em qualquer
esfera da ação” (HILLMAN, 2016, p. 119).
Jung (1971/1991a, p. 477) apresenta a sensação, o pensamento, o
sentimento e a intuição como funções básicas da psique consciente. O conceito de
sensação abrange todas as percepções através dos órgãos sensoriais; o pensamento
tem conexão com o conhecimento intelectual e o raciocínio lógico; o sentimento avalia
as questões subjetivas, e a intuição seria a percepção de conteúdos inconscientes.

31
O concretismo é um conceito que se remete à peculiaridade do pensamento que representa o
contrário de abstração (JUNG 1971/1991a, p. 400).
53

A sensação constata o que realmente está presente. O pensamento nos


permite conhecer o que significa este presente; o sentimento, qual o seu
valor; a intuição, finalmente, aponta as possibilidades “de onde” e “para onde”
que estão contidas neste presente. E assim, a orientação com referência ao
presente é tão completa quanto à localização geográfica pela latitude e
longitude. As quatro funções são algo como os quatro pontos cardeais, tão
arbitrárias e tão indispensáveis quanto estes. Não importa que os pontos
cardeais sejam deslocados alguns graus para a esquerda ou para a direita,
ou que recebem outros nomes. É apenas questão de convenção e
Compreensão. (JUNG, 1971/1991a, p. 497).

Consideradas por Jung como funções da consciência, as funções psíquicas


relacionam-se ao desenvolvimento da personalidade consciente. Elas fazem parte da
consistência do ego com sua forma peculiar de atuar, seus hábitos, sua unidade e
memória. Constituem a intencionalidade da consciência, assim, revelam como
acontece a relação do indivíduo consigo mesmo e com os outros, e de que maneira
impõem suas intenções e expressam seu caráter. Podem ser concebidas como quatro
maneiras distintas de organizar a vida (HILLMAN, 2016, p. 120-121).
As tentativas de resumir em categorias as infinitas diferenças dos indivíduos,
e extinguir a aparente uniformidade destes por uma caracterização determinada das
diferenças psíquicas, são de longa data. Jung lembra que as mais antigas e
conhecidas categorias provêm do médico grego Cláudio Galeno (século II dC)32 que
as distinguia em quatro temperamentos básicos: o sanguíneo, o fleumático, o colérico
e o melancólico. Tal ideia baseava-se no ensinamento de Hipócrates (século V aC),
em que o corpo humano se compõe de quatro elementos: ar, água, fogo e terra
(JUNG, 1971/1991a, p. 470).

1.5.3 Os tipos racionais e irracionais: as funções superiores e inferiores

Jung apropria-se do pensamento de Schiller no intuito de abranger sua


compreensão sobre as atitudes típicas. O ponto de vista bem elaborado e a descrição
completa e detalhada das funções conscientes do referido pensador, demonstram sua
profundidade de pensamento, e ampla visão no sentido de uma possível solução
psicológica do conflito dos opostos (JUNG, 1971/1991a, p. 77).
A ideia de Jung, concebida a priori intuitivamente nos mitos e simbolismo
religioso, teve posteriormente sua confirmação ao observar o comportamento de seus

32
Galeno teve o mérito de criar uma classificação psicológica dos indivíduos humanos que persistiu
por 1.800 anos, classificação que se baseia na diferença perceptível da emocionalidade ou afetividade
(JUNG, 1971/1991a, p. 470).
54

pacientes. Através da experiência clínica, parecia ter encontrado uma estrutura básica
da psique que transcende as funções conscientes, representada por uma
automanifestação arcaica do inconsciente (VON FRANZ, 2016, p. 13).
Essa estrutura seria organizada pelos tipos funcionais, sendo estes
responsáveis por diferenciar os indivíduos cuja particularidade depende da adaptação
ou orientação. As funções psicológicas básicas, por sua vez, nunca apresentam o
mesmo grau de desenvolvimento num determinado indivíduo. De acordo com Silveira
(1981, p. 55-56), todas as pessoas possuem as quatro funções, mas uma delas,
denominada função principal, sempre se destaca como mais desenvolvida e mais
consciente que as demais. Em cada indivíduo, a função principal é o mecanismo mais
eficaz no processo de orientação e adaptação no mundo exterior, tornando seu
habitus reacional. Ela é responsável pela identificação característica do tipo
psicológico. O indivíduo apropria-se preferencialmente da sua função principal, pois é
através dela que alcançará melhores resultados na luta pela existência. Com certo
grau de diferenciação, a segunda função serve de auxiliar à principal e a terceira fica
à margem do desenvolvimento rudimentar. A quarta função, geralmente permanece
em um estado arcaico ou inconsciente, sendo denominada função inferior.
As funções se dividem em racionais que são: o pensamento e o sentimento;
e irracionais: a percepção e a intuição. As funções racionais se caracterizam pelo
primado de funções com julgamento racional, baseando-se em dados objetivos. As
funções irracionais, por sua vez, o julgamento da razão não tem por base apenas
dados objetivos, mas também subjetivos. Cada uma das quatro funções pode ser do
tipo introvertido ou extrovertido, resultando em oito tipos psicológicos.
Quando a vida de um indivíduo é conduzida sob o comando da reflexão, na
qual o pensar atua em primazia, e as atitudes principais sejam intelectualmente
geradas e motivadas, ou que tenham essa tendência, trata-se então do tipo
pensamento. Geralmente o pensar pode ser alimentado de fontes subjetivas
proveniente de fontes inconscientes, como também de dados objetivos tendo como
fonte transmissora as percepções sensíveis. Assim, utiliza-se como critério básico
para avaliar se um pensar é introvertido ou extrovertido – observar a orientação do
julgamento, se este é proveniente de dados objetivos, ou se é de origem subjetiva
(JUNG, 1971/1991a, p. 330-327).
Iniciando pelas funções racionais, abordaremos o tipo pensamento
extrovertido. De acordo com a definição de Jung (1971/1991a, p. 330), esse tipo
55

psicológico é constituído por pessoas que se orientam por dados objetivos, sejam eles
fatos objetivos ou ideias válidas em geral. Tais indivíduos esforçam-se para que todas
as suas atividades sejam direcionadas a partir de conclusões intelectuais. Para
Silveira (1981, p. 57), quando a personalidade consciente é extrovertida, e a função
principal é o pensamento, a tendência é ter atitudes em que coloque ordem lógica e
clara entre as coisas concretas. Por isso, esses indivíduos tentam fazer com que seu
ponto de vista prevaleça geralmente de maneira autoritária, rígida e impessoal.
Baseiam sua conduta em regras rigorosas, procuram impor seus princípios também
aos outros, desconsiderando as nuances pessoais.
Von Franz (2016, p. 65-68) aponta que esse tipo estabelece a ordem tomando
uma posição definida. Apresentam as situações exteriores com clareza, tendo como
ênfase sempre o objeto, pois o elemento subjetivo se mantém no segundo plano de
sua personalidade. As ligações sentimentais com certos ideais ou pessoas quase não
aparecem em suas atividades diárias, porém possuem uma espécie de lealdade
imperceptível que pode durar eternamente. Aquele sentimento forte, profundo,
arrebatador, quase nunca aflora, pois se encontra escondido em sua função
inconsciente ou inferior – o sentimento introvertido.
De acordo com Jung (1971/1991a, p. 355), a sociedade geralmente apresenta
uma tendência em supervalorizar a capacidade objetiva de conhecer e reprimir o fator
subjetivo e sua importância, ou seja, a importância do sujeito. Por isso, ele chama
atenção para esse fator subjetivo que consiste na ação ou reação psicológica, que ao
ser influenciado pelo objeto, funde-se em um novo estado psíquico. “Entre a
percepção do objeto e o agir do introvertido se interpõe uma opinião subjetiva
impedindo que o agir assuma um caráter objetivo” (JUNG, 1971/1991a, p. 354). Desse
modo, o tipo pensamento introvertido orienta-se por fatos de percepção do
conhecimento que representam a disposição subjetiva, ou fator subjetivo, acolhendo
a excitação sensorial.
Segundo Silveira (1981, p. 62), o tipo pensamento introvertido considera o que
há de mais importante nas ideias gerais. Assim, seu interesse está em produzir ideias
novas e originais. Os dados empíricos têm valor somente para documentar suas
teorias, mas não lhe atribui interesse próprio.

O pensar [na atitude introvertida] pode entreter-se com dados concretos ou


abstratos, mas na hora decisiva, orienta-se por dados subjetivos. Não
reconduz, a partir da experiência concreta, para a coisa objetiva, mas para o
56

conteúdo subjetivo. Os fatos externos não são causa ou meta desse pensar,
ainda que o introvertido gostasse de lhe dar essa aparência, mas este pensar
começa no sujeito e reconduz ao sujeito, mesmo que faça larga incursão no
campo da realidade concreta. [...] Os fatos são de importância secundária
para este pensar; o que vale é o desenvolvimento da ideia subjetiva, da
imagem simbólica inicial que paira mais ou menos obscura diante da sua
visão exterior. (JUNG, 1971/1991a, p. 360).

Ainda que para o indivíduo do tipo pensamento introvertido a estrutura interna


dos seus pensamentos lhe seja clara, não tem clareza de como e onde devem entrar
no mundo real. Como sempre é motivado pelas ideias de origem subjetiva, seu
interesse se volta para o aprofundamento e não à ampliação de horizontes. Nestes
indivíduos, tudo tende a desaparecer e a se camuflar. Sua busca sempre está para
além do objeto, permitindo que manifeste a superioridade do sujeito. Em relação a
suas ideias, são obstinados e não permitem que sejam influenciados (JUNG,
1971/1991a, p. 362-364).
De acordo com Von Franz (2016, p. 69-70), pertencem ao tipo pensamento
introvertido pessoas que não estão preocupadas em colocar ordem nos objetos
exteriores, mas esclarecer as ideias subjetivas e compreender o papel do sujeito. Por
isso, estabelecem como prioridade: conhecer a origem da ideia, investigar o
pensamento em sua profundidade e eliminar a ignorância. Em sua função inferior, que
é o sentimento extrovertido, apresentam algumas características como: sentimento
forte, leal, caloroso, julgamentos bem definidos, sim ou não, amor e ódio. Seu
sentimento é facilmente envenenado por outras pessoas e pelo ambiente coletivo. Se
feita uma avaliação positiva desse sentimento, será visto como fiel, entretanto numa
avaliação negativa é pegajoso. Von Franz (2016, p. 71) compara a função inferior do
pensamento extrovertido, “a uma corrente de lava de um vulcão; ele se move apenas
uns cinco metros por hora, mas devasta todas as coisas no seu caminho”. Quando
ama, é extremamente verdadeiro e inteiramente dedicado ao outro, pois não há limite
no seu amor.
Assim como o pensamento, o sentimento também é uma função racional.
Seus valores geralmente são atribuídos de acordo com as leis da razão, que também
governa a formação de conceitos (JUNG, 1971/1991a, p. 441). De acordo com Hillman
(2016, p. 129), os sentimentos não representam apenas questões pessoais, mas
também refletem fenômenos com base histórica e universal, que podem ser comuns
57

e coletivos33. Assim, não são apenas do indivíduo, pois são partilhados, como
acontece, por exemplo, nos sentimentos religiosos e de nacionalidade.
Hillman (2016, p. 123) considera que “a psicologia acadêmica e clínica, em
sua ânsia de “cientificidade” e “objetividade”, corre o risco de perder a conexão com o
sentimento humano, ao desdenhar suas raízes filosóficas e teológicas”. Ele parte do
pressuposto que, se a base da psicologia é a filosofia, então seria necessário recorrer
aos filósofos para obter o histórico da função sentimento enquanto conceito.
Pensadores como Platão, Aristóteles, os escolásticos, Descartes, Spinoza, Hume e
Kant, ocuparam-se da vida afetiva tornando-a parte importante da filosofia afetiva.
Portanto, partindo do humanismo dos filósofos, dos ensaístas da moral, dos
romancistas e dramaturgos, dos teólogos e dos místicos é possível obter um amplo
conhecimento sobre o sentimento.
Enquanto na moderna literatura psiquiátrica e psicanalítica o sentimento
enquadra-se na categoria geral de afetividade, Jung o classificou como função da
consciência, no mesmo nível do pensamento, da sensação e da intuição. Essa
diferenciação conceitual trouxe grande contribuição à história e ao próprio conceito de
sentimento (HILLMAN, 2016, p. 133). Acompanhemos a definição de Jung:

O sentimento é, em primeiro lugar, um processo que se realiza entre o eu e


um dado conteúdo, um processo que atribui ao conteúdo um valor definido
no sentido de aceitação ou rejeição (“prazer” ou “desprazer”), mas também
um processo que, abstraindo do conteúdo momentâneo da consciência ou de
sensações momentâneas, pode aparecer como isolado, como “disposição de
ânimo” [...] O sentimento é, portanto, também uma espécie de julgamento,
mas que se distingue do julgamento intelectual, por não visar ao
estabelecimento das relações conceituais, mas a uma aceitação ou rejeição
subjetiva. A valorização pelo sentimento estende-se a cada conteúdo da
consciência, seja de que espécie for. Aumentando a intensidade, surge um
afeto, isto é, um estado sentimental com inervações corporais sensíveis. O
sentimento se distingue do afeto por não provocar inervações corporais

33
O pensamento grego e romano revelava preocupação com assuntos referentes ao sentimento, seja
na condução da vida e da cidade, em questões de relacionamento humano, ou na estética. Seu
diferenciado panteão de figuras divinas oferecia um fundamento arquetípico a muitas formas de
expressão do sentimento. Como eram muitos deuses, a relação desses povos com eles não podia ser
resumida num único ritual ou por meio de um credo único. O politeísmo fornecia à multiplicidade de
complexos existentes na psique uma base para a descoberta de valores e para a vinculação destes
com inúmeros aspectos da vida. Bastava apreciar o sentimento que cada Deus reivindicava para si, e
encontrar maneiras de se relacionar com esse fundamento arquetípico da existência. A doutrina católica
e a vida monástica encorajavam a autorreflexão profunda sobre a vida dos sentimentos. Na
Renascença, a expressão das paixões e emoções ocorria por meio de pinturas e esculturas, sendo a
análise do sentimento um tema dominante na literatura. No decorrer do século XVIII, romancistas e
poetas deram início à elaboração de sutis e exaustivas descrições de estados de sentimentos e, no
período romântico que cedo surgira, aparecem afirmações como “o sentimento é tudo” e “beleza e
verdade” (HILLMAN, 2016, p. 122-123).
58

sensíveis [...] Assim como o pensamento ordena os conteúdos da consciência


em formas de conceito, o sentimento os ordena de acordo com o seu valor.
(JUNG, 1971/1991a, p. 440-441).

Jung classifica o sentimento como uma atividade parcial, sobretudo,


conectada à consciência. Ao passo que, o afeto, em grande parte, expressa uma
reação fisiológica. Através da função sentimento, situação ou pessoa, objeto ou
momento, são apreciados em questão de valores. Trata-se, então, de um processo
psicológico que avalia (HILLMAN, 2016, p. 138-143).
Quando o sentimento orienta-se por valores objetivos, ou seja, o modo de
sentir está em sintonia com situações objetivas e valores aceitos em geral, Jung
classifica como sentimento extrovertido. Neste caso, o sentimento predomina,
reprimindo o pensamento. O pensamento por sua vez, acontece a partir do
sentimento, assim, aquilo que não consegue sentir, também não é possível pensar
conscientemente (JUNG, 1971/1991a, p. 337-340).
Segundo Von Franz (2016, p. 73-74), a principal característica do tipo
sentimento extrovertido é avaliar adequadamente os objetos exteriores, buscando
uma relação apropriada com eles, mas sempre levando em consideração os lados
positivos e negativos. É capaz de fazer amizades facilmente, envolvendo-se
amavelmente com o mundo, entretanto, terá poucas ilusões sobre as pessoas. São
indivíduos bem ajustados, capazes de suavizar o ambiente, proporcionando um clima
social agradável e, com isso, facilmente conseguem o que querem. Pela grande
capacidade em sentir de maneira objetiva a situação de outras pessoas, são os que
geralmente, mais se sacrificam pelos outros.
Indivíduos que apresentam como função superior o sentimento extrovertido
tendem a não apreciar princípios filosóficos, abstrações ou questões existenciais mais
profundas, pois consideram que tais reflexões levam à melancolia. Na verdade,
pensam sobre estas questões, mas não estão cientes disso. Ao negligenciar, seu
pensamento se torna negativo e rude, geralmente com julgamentos grosseiros e
arcaicos. Desse modo, pessoas amáveis e bem ajustadas socialmente podem, de
repente, tornarem-se extremamente frias e dizer algo que faça com que o outro sinta
como se fosse atingido por um bloco de gelo. Isso acontece quando
inconscientemente a função inferior, o pensamento introvertido, entra em primazia, e
a função superior perde o controle (VON FRANZ, 2016, p. 75).
59

Assim como o tipo sentimento extrovertido adapta-se à vida por meio do


sentimento, o tipo sentimento introvertido apresenta a mesma característica,
entretanto, de maneira introvertida, pois é determinado, sobretudo, pelo fator
subjetivo. Para Von Franz (2016, p. 80), indivíduos do tipo sentimento introvertido
possuem uma escala de valores bem diferenciada, porém não a expressam
exteriormente, mas a ocultam no íntimo.
Jung alega que, apesar das características específicas deste sentir serem
visíveis quando identificadas, o processo introvertido do sentimento é algo muito difícil
de apresentar teoricamente, ou mesmo descrever aproximadamente. Sendo
subordinado a condições prévias subjetivas, geralmente se manifesta bem pouco e
de maneira equivocada. Em relação a questões objetivas, direciona-se
secundariamente. Aparentemente desvaloriza o objeto, trazendo consigo um aspecto
negativo. Tenta dominá-lo e não adaptar-se a ele, buscando de maneira inconsciente,
tornar reais as imagens que lhe servem de base. Sempre está à procura de uma
imagem que, de certo modo pressentiu, mas que não se encontra na realidade. Por
isso, não é possível captar com clareza a profundeza desse sentimento. São pessoas
quietas, de difícil abordagem, que sutilmente se retrai frente ao objeto, protegendo-se
com julgamentos negativos ou indiferença total. Tem como propósito, preencher as
profundezas do sujeito. Assim, a expressão “as águas mansas são as mais profundas”
se encaixa nesse tipo (JUNG, 1971/1991a, p. 365-367).
Por serem calmas, retraídas, silenciosas e pouco abordáveis, tornam-se
pessoas difíceis de serem compreendidas. Como são dirigidas por forças subjetivas,
sempre ocultam suas verdadeiras intenções e não expressam seus sentimentos.
Mantém as relações dentro de limites bem medidos, e toda manifestação emocional
exuberante lhe desagrada provocando reações de repulsa de sua parte. Apesar da
aparência fria e indiferente, muitas vezes, preservam internamente grandes paixões.
Se os objetos forem mantidos distantes, e conseguirem esquivar-se de participações
emocionais, representações arquetípicas poderão surgir do inconsciente na forma de
ideais religiosos ou humanitários, sendo possível aderir com tanta devoção, chegando
ao extremo de entregar-se a sacrifícios heroicos (SILVEIRA, 1981, p. 63-64).
Sendo o pensamento extrovertido a função inferir do sentimento introvertido,
é possível observar nesses indivíduos um chocante contraste. De acordo com Von
Franz (2016, p. 80-81), a aparência imperturbável e silenciosa representa a
personalidade consciente que tende a não se movimentar. Entretanto, uma série de
60

fatores externos divaga em seu pensamento extrovertido. Como este é sua função
inferior, normalmente se expressa numa monomania, ou seja, o indivíduo se apropria
apenas de um ou dois pensamentos e a partir deles produz uma enorme quantidade
de material.
A sensação ou percepção sensitiva entra no escopo das funções irracionais.
Isso se dá porque as ações não têm como base julgamentos racionais, e sim, na força
absoluta da percepção que se direciona apenas ao que acontece. De nenhuma
maneira baseiam-se no princípio da razão e seus postulados, por isso os tipos
sensitivos são irracionais em sua essência (JUNG, 1971/1991a, p. 351-352).
Jung apresenta a sensação e a percepção como idênticas, porém, distintas
do sentimento.

A sensação ou o sensualizar é a função psicológica que proporciona a


percepção de um estímulo físico. Por isso é idêntica à percepção. Deve-se
distingui-la rigorosamente de sentimento, pois este processo é bem diverso
que pode associar-se à sensação como “totalidade afetiva”. A sensação
relaciona-se não apenas com os estímulos externos, mas também com os
internos, isto é, com as transformações dos órgãos internos. Por isso é ela,
em primeiro lugar, sensação dos sentidos, ou seja, percepção pelos órgãos
dos sentidos e pelo “sentido do corpo” (sensação cinestésica, vasomotora,
etc.). Por um lado, é elemento da representação porque fornece a ela a
imagem percebida pelo objeto externo e, por outro lado, é elemento de
sentimento porque dá a este o caráter de afeto, através da percepção das
transformações corporais. Enquanto fornece à consciência a transformação
corporal, representa também os instintos fisiológicos. Mas nem por isso é
idêntica a eles, pois é apenas função perceptiva. (JUNG, 1971/1991a, p. 438).

Assim como as demais funções, a sensação pode ser do tipo extrovertido ou


introvertido. O tipo sensação extrovertido é sempre direcionado ao objeto, ou seja, o
indivíduo será orientado apenas pela realidade que recai sobre os sentidos. Estes
indivíduos desenvolvem um vínculo sensível com os objetos e, na medida em que
estes objetos emanam sensações mais fortes, são decisivos para a psicologia do
sujeito, porque passam a ser plenamente assumidos pela consciência. Portanto, a
sensação é a função vital dotada com o instinto vital mais forte. Na concepção de
Jung, nenhum tipo humano é capaz de se igualar na questão do realismo quanto ao
tipo sensação extrovertido. Ao desenvolver um senso objetivo dos fatos de maneira
extraordinária, agregam experiências reais sobre objetos concretos (JUNG,
1971/1991a, p. 344-345).
De acordo com Silveira (1981, p. 80), o sensitivo extrovertido valoriza a
descrição exata e detalhada dos objetos, mas despreza as discussões teóricas de
61

caráter geral. No âmbito científico, hipóteses de interpretações são vistas como


utópicas. São indivíduos práticos e eficientes, contudo, geralmente não percebem o
desdobramento de novas possibilidades, pois a intuição é sua função inferior.
Sendo representado por alguém com capacidade especializada em sentir e
se relacionar com os objetos de maneira concreta e prática, o sensitivo extrovertido é
mestre em perceber detalhes. Observam todas as coisas, sentem o cheiro de tudo e,
quando entram em um ambiente, quase que imediatamente percebem a presença de
todas as pessoas, e como estão vestidas. Entretanto, apesar de tão aprimorado no
que diz respeito aos fatos concretos, de repente, pode ser assaltado por premonições
suspeitas, ideias de possibilidades ruins, melancolia, coisas que o indivíduo não sabe
de onde, nem como surgiram. Neste caso, é a função inferior que está em evidência
– a intuição introvertida. Normalmente, a intuição circula em torno da posição do
sujeito, pois sua característica é transmitir conteúdos cheios de significação. As
fantasias são simbólicas e sua interpretação pode acontecer também de maneira
simbólica. Porém, o sensitivo extrovertido, de alguma forma, procura sempre
concretizar suas intuições (VON FRANZ, 2016, p. 41-48).
De acordo com sua natureza, a sensação depende do objeto e do estímulo
objetivo. Porém, na atitude introvertida está sujeita a uma considerável transformação,
pois apresenta também um fator subjetivo. Ao lado do objeto sensualizado, existe um
sujeito que sensualiza. Desse modo, o que contribui para o estímulo objetivo, é a
disposição subjetiva desse sujeito. Compreende-se, então, que na atitude introvertida
a sensação tem por base a parte subjetiva da percepção, ou o fator subjetivo. Este
fator subjetivo da sensação, assim como nas demais funções introvertidas, é uma
disposição inconsciente e, neste caso, modifica a percepção dos sentidos, desfazendo
o caráter de pura influência do objeto. Na concepção de Jung, a arte é um dos
melhores exemplos da força extraordinária do fator subjetivo no sensitivo introvertido
(JUNG, 1971/1991a, p. 371).
Von Franz (2016, p. 49) faz alusão a Ema Jung (esposa de Jung) que, ao
realizar uma descrição de si mesma, comparou a sensibilidade do sensitivo
introvertido a uma câmera fotográfica. Esse tipo, quando alguém entra numa sala,
percebe cada detalhe: a maneira que a pessoa entra; como arrumou o cabelo; como
está vestida; a expressão do rosto. Aparentemente mostra-se totalmente indiferente,
apenas observa, sem nenhuma reação. Porém, em seu interior a impressão está
62

sendo absorvida. A impressão que vem do objeto para o sujeito, é como uma pedra
lançada em águas profundas, que vai caindo, caindo e afunda.
Apesar de causar a impressão de ser uma pessoa muito lenta externamente,
a reação interna do sensitivo introvertido é bem rápida. São capazes de absorver os
menores matizes e os mais íntimos detalhes. Entretanto, geralmente é mal
interpretado e mal compreendido, pois as outras pessoas não conseguem
compreender o que acontece com este indivíduo. Assim, expressam suas impressões
fotográficas artisticamente, reproduzindo-as através da pintura ou da escrita (VON
FRANZ, 2016, p. 49-50).
De acordo com Silveira (1981, p. 65), enquanto na sensação extrovertida o
indivíduo sempre está em perfeita harmonia com a realidade naquilo que se refere ao
aqui e ao agora, na sensação introvertida, não há relação racionalmente proporcional
entre o objeto e a intensidade das sensações. Por isso, o sensitivo introvertido
surpreende com comportamentos imprevisíveis e fora das medidas comuns. Isto
corresponde à intensidade das experiências interiores suscitadas nele pelo objeto, e
não pelo valor ordinário que o mundo real atribuiu.
A função inferior do sensitivo introvertido, que é a intuição extrovertida,
apresenta características bem misteriosas, assustadoras e fantásticas, semelhante à
função inferior do sensitivo extrovertido. Contudo, está mais direcionada ao mundo
exterior impessoal e coletivo. E quando suas fantasias internas surgem, apresenta
muita dificuldade em assimilá-las, devido à precisão e à lentidão da sua função
consciente (VON FRANZ, 2016, p. 51).
Jung (1971/1991a, p. 375) identifica essa função inferior ou inconsciente da
sensação introvertida à repressão da intuição com caráter extrovertido e arcaico. “A
intuição inconsciente e arcaica tem a capacidade de farejar todos os aspectos dúbios,
sombrios, sujos e perigosos que estão por traz da realidade”. Ela prevê as
possibilidades dos níveis mais arcaicos e inconscientes, assim, a intenção real e
consciente do objeto não significa nada para essa intuição. Entretanto, enquanto
função principal, a intuição extrovertida possui uma característica sagaz, “um bom
nariz”, para todas as possibilidades da realidade objetiva.
A palavra intuição, proveniente do latim intueri, significa olhar para dentro,
contemplar. É uma função psicológica básica que transmite a percepção através do
inconsciente, em que tudo pode ser objeto dessa percepção – questões internas ou
externas e suas relações. A característica específica da intuição é não ser sensação
63

dos sentidos, nem sentimento, nem interpretação intelectual, ainda que venha se
apresentar nessas formas. “Na intuição, qualquer conteúdo apresenta como um todo
acabado sem que saibamos explicar ou descobrir como este conteúdo chegou a
existir” (JUNG,1971/1991a, p. 430). Trata-se de uma função perceptiva irracional,
assim como a sensação, mas como uma espécie de apreensão instintiva, não
importando o conteúdo.
A intuição pode se manifestar de maneira subjetiva ou objetiva. A forma
subjetiva relaciona-se à percepção de fatos psíquicos inconscientes, proveniente do
sujeito. A objetiva é evocada pela percepção de fatos, pensamentos e sentimentos
subliminais relacionados ao objeto. Também se distingue em formas concretas ou
abstratas de acordo com o grau de participação da sensação. Enquanto a forma
concreta transmite percepções relacionadas à realidade das coisas, pois se trata de
um processo reativo proveniente dos fatos dados; a abstrata está voltada a transmitir
percepções relacionadas às ideias, necessitando de um elemento diretivo, uma
vontade ou intenção (JUNG, 1971/1991a, p. 431).
De acordo com Von Franz (2016, p. 52-55), a intuição funciona quando se
observam as coisas de longe, de maneira vaga, semicerrando os olhos, assim, é
possível captar o pressentimento proveniente do inconsciente. Quando se olha os
fatos muito de perto, ou as coisas com muita precisão, o foco estará nos fatos e o
pressentimento não surgirá. Por este motivo, os intuitivos apresentam tendência a
serem vagos e imprecisos, sendo sempre aqueles que inventam, mas geralmente não
tiram proveito de suas invenções. Mas, se conseguir alcançar o equilíbrio, poderá vir
a ser uma pessoa com capacidade em agregar coisas novas em todos os cantos do
mundo, pois a intuição é a função pela qual o indivíduo capta possibilidades. “A
intuição é, portanto, a capacidade de intuir o que ainda não é visível, possibilidades
futuras ou potencialidades ainda não realizadas” (VON FRANZ, 2016, p. 53).
Para Jung (1971/1991a, p. 348-349), a intuição é uma função da percepção
inconsciente representada na consciência, através de certa atitude de expectativa,
contemplação, penetração. Como se trata de um processo inconsciente, é difícil
alcançar conscientemente sua natureza. Enquanto atitude extrovertida, ela se volta
totalmente para objetos exteriores, assim, a expectativa, a contemplação e a
penetração, tornam-se processo ativo e criador que instiga o objeto. Ainda que a
intuição não seja orientada pelas sensações, estas são o seu ponto de partida e, na
atitude extrovertida, procura atingir a realidade mais forte, na qual se apresenta a vida
64

em sua plenitude. Uma vez que o pressentimento se satisfaz pela contemplação de


possibilidades, a intuição busca abrangê-las. Assim, situações da vida comum
representam espaços fechados que a intuição precisa abrir a fim de encontrar saídas
e novas possibilidades.

Quando a intuição predomina, resulta uma psicologia especial e


inconfundível. Visto que a intuição [extrovertida] se orienta pelo objeto, temos
uma forte dependência das situações externas, mas um tipo de dependência
bem diversa daquela do tipo sensação. O intuitivo nunca está lá onde se
encontram valores reais, aceitos em geral, mas sempre lá onde se encontram
as possibilidades. Tem faro aguçado para o embrionário e para o que promete
o futuro. Nunca se encontra em situações estáveis, duradouras e bem
fundadas, de validade aceita por todos, mas limitada. Está sempre à procura
de novas possibilidades e, por isso, está ameaçado de sufocar-se em
situações estáveis. Apreende novos objetos e novas pistas com grande
intensidade e, às vezes, com extraordinário entusiasmo para friamente os
abandonar, sem piedade e aparentemente sem lembrança, logo que fixados
seus contornos e quando já não deixam antever um desenvolvimento ulterior
apreciável. (JUNG, 1971/1991a, p. 349).

Como está sempre em busca de novas possibilidades, ou acontecimentos que


ainda não assumiram forma definida no mundo real, o tipo intuitivo extrovertido
empreende vários projetos ao mesmo tempo, são probabilidades promissoras que se
apresentam a ele, porém os que estão à sua volta sequer percebem. Mas com a
mesma facilidade com que inicia novas atividades, as abandona no meio do caminho
por outra mais fascinante. Situações estáveis o fazem sentir-se como um prisioneiro.
Por isso, é preciso que sua função inferior, a sensação introvertida, o repreenda, a fim
de que haja equilíbrio, caso contrário sempre estarão outros a colher o que ele semeou
(SILVEIRA, 1981, p. 61).
Von Franz (2016, p. 55-57) aponta que, na função inferior da intuição
extrovertida, que é a sensação introvertida, o indivíduo torna-se lento, pesado e
carregado de emoções. Como se trata de uma função introvertida tende a afastá-lo
do mundo exterior e seus problemas em diferentes aspectos. Assim como as demais
funções inferiores, apresenta uma conotação mística, pois é a porta pela qual o
indivíduo tem acesso às camadas mais profundas do inconsciente.
Da mesma maneira que o intuitivo extrovertido está sempre em busca de
novas possibilidades e, apesar de orientar-se pelo objeto, não se prende a ele; o
intuitivo introvertido encontra novas possibilidades através das imagens que surgem
do inconsciente, mas não estabelece conexão do fenômeno consigo mesmo. Assim,
a função intuição em sua atitude introvertida volta-se para os objetos interiores, que
65

podem ser denominados elementos do inconsciente. Tais objetos, que não se


constituem da realidade física, mas psíquica, são imagens subjetivas e estão
relacionados aos conteúdos do inconsciente e, em última análise, do inconsciente
coletivo. Por isso, o fator subjetivo na intuição introvertida é de grande importância,
pois esses conteúdos ou imagens interiores apresentam-se à percepção intuitiva
subjetiva, e não em experiências exteriores (JUNG, 1971/1991a, p. 375-377).
Jung considera que a intuição introvertida capta as imagens oriundas de
fundamentos a priori, cuja natureza não é acessível à experiência objetiva. Trata-se
de imagens hereditárias do espírito inconsciente, ou seja, imagens arquetípicas que
“representam o sedimento do funcionamento psíquico da linha ancestral” (JUNG,
1971/1991a, p. 377). Portanto, nesses arquétipos, encontram-se representadas
experiências que aconteceram desde eras bem remotas.
A intuição introvertida, através da percepção de processos subjetivos, pode
proporcionar informações relevantes para se compreender acontecimentos em geral,
inclusive, como numa visão profética, prever acontecimentos futuros, apontando para
novas possibilidades. A natureza peculiar do intuitivo introvertido cria um tipo especial
que pode ser o sonhador e o visionário místico, ou o fantasista e o artista. Quanto
mais o indivíduo se aprofunda na sua intuição, mais se afasta da realidade palpável,
quando isso acontece, pode se tornar um completo enigma, inclusive para as pessoas
mais próximas. Neste caso, geralmente deixa de utilizar a linguagem comum, e passa
a se comunicar de maneira altamente subjetiva. Seus argumentos não são racionais
nem persuasivos, apenas proclama. “É a voz do que clama no deserto”34 (JUNG,
1971/1991a, p. 378).
Silveira (1981, p. 66) aponta que o intuitivo introvertido não se sente atraído
pelo mundo real. As inúmeras solicitações da realidade externa poderão ser
vivenciadas como algo torturante. Esse tipo, que é sensível à atmosfera dos lugares,
apresenta como característica essencial capacidade para pressentir o futuro e
apreender possibilidades que estão em sintonia com as condições do tempo e da
história. De acordo com Von Franz (2016, p. 57), o intuitivo introvertido “conhece os

34
Nesta frase Jung faz menção ao profeta Isaías, ao predizer a vinda do mensageiro João Batista que
teria a incumbência de anunciar a chegada de Jesus, preparando-lhe o caminho. “Voz do que clama
no deserto: Preparai o caminho do Senhor” (Isaías 40,3). De acordo com o evangelho de Mateus 3,1-
4, João Batista apareceu pregando no deserto da Judéia. Usava vestes de pelos de camelo, um cinto
de couro e alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre (Bíblia de Estudo da Reforma, 2017, p. 1543-
1544).
66

lentos processos que ocorrem no inconsciente coletivo, as mudanças arquetípicas, e


os comunica à sociedade”. Numa cultura mais arcaica, é representado pelo xamã ou
o feiticeiro que sabia o que os deuses ou espíritos ancestrais estavam planejando e
comunicavam à tribo. Os profetas do Antigo Testamento também representam esse
tipo, pois recebiam as mensagens de Yahweh e comunicavam aos filhos de Israel.
Podemos observar a mesma característica entre os artistas e poetas. Geralmente sua
produção é de natureza arquetípica e fantástica como, por exemplo: Assim Falou
Zarathustra, de Nietzsche.
A característica inconsciente do intuitivo introvertido é reprimir ao máximo a
sensação do objeto. Trata-se da sensação extrovertida que, enquanto função inferior,
é compensadora e de caráter arcaico (JUNG, 1971/1991a, p. 379). Para Von Franz
(2016, p. 60), “a sensação inferior de um intuitivo introvertido é muito intensa, mas só
aparece aqui e ali, desaparecendo logo do campo da consciência”. Entretanto,
representa um aspecto positivo de compensação. Um exemplo relevante relacionado
à sensação extrovertida enquanto função inferior é a experiência de Jacob Boehme.
Considerado um intuitivo introvertido, Jacob Boehme (1574-1625) nasceu em
uma pequena cidade alemã. Seus pais que eram simples e honestos, o encarregaram,
enquanto criança, em cuidar dos animais. Ao perceber suas aspirações elevadas,
enviaram-lhe à escola onde aprendeu a ler e escrever e, posteriormente, o iniciaram
no ofício de sapateiro. Boehme casou-se, teve quatro filhos e exerceu seu ofício. Com
uma alma extremamente religiosa desde a juventude, era um assíduo leitor da Bíblia
e gostava de frequentar a igreja. Porém, as disputas teológicas da época conduziram-
no a um estado de grande angústia. Diante das inúmeras opiniões contrárias a
respeito de Deus, da religião e das Escrituras Sagradas, muitas dúvidas suscitaram
em seu íntimo. Ao perceber o grande mal causado pelas facções em nome de Cristo,
pediu fervorosamente a Deus que lhe revelasse a verdade. “Algum tempo mais tarde,
sua prece foi atendida, pois a Luz divina o envolveu e o manteve por sete dias na mais
alta contemplação das verdades divinas” (SOMMERMAN, 2011, p. 11).
No intuito de não esquecer o que contemplara, Boehme pôs-se a escrever seu
primeiro livro: A Aurora Nascente. Mas, se dependesse de sua vontade, a obra jamais
se tornaria pública. No entanto, recebeu a visita de um conhecido, que por acaso viu
os manuscritos e insistiu em folheá-los, levando-os consigo. Percebendo o tesouro de
Sabedoria que tinha em mãos, dividiu-o em partes. Com a ajuda de alguns amigos,
pôs-se a copiar dia e noite devolvendo-o ao autor após terminar. Quando as cópias
67

começaram a circular, muitos rumores foram suscitados, ao ponto do pastor-primaz


da cidade apreender o manuscrito original, e persuadir o magistrado que proibisse
Boehme de escrever. Porém, essa experiência de iluminação foi seguida por outras,
de maneira que, mesmo sendo coibido de escrever por algum tempo, várias outras
obras foram escritas e publicadas em anos posteriores (SOMMERMAN, 2011, p. 12).
A revelação da divindade, que se tornou a maior experiência de Boehme, e
consequentemente a base de todo seu trabalho futuro, aconteceu através da visão
real de um raio de luz que refletia em um prato de latão sobre sua mesa. “Essa
experiência de sensação levou-o a um êxtase interior e, durante um minuto, ele
percebeu, por assim dizer, o mistério da divindade” (VON FRANZ, 2016, p. 61). A
intensidade da experiência foi tamanha que, por anos, tudo o que fez foi tentar traduzir
em linguagem discursiva o que tinha visto.
Se nos atentarmos para além do aspecto inferior da sensação extrovertida,
será possível perceber o caráter de totalidade, o aspecto místico, que a função inferior
geralmente possui. Assim, de acordo com Von Franz (2016, p. 61), esse fenômeno
que o levou à sua função inferior, representa o início do processo de individuação em
Boehme.

[...] Nenhuma tentativa de intermediação será profícua se não pretender


soltar as energias das funções inferiores e, então, conduzi-las à
diferenciação. Este processo só pode ocorrer de acordo com as leis da
energética, isto é, precisa-se criar uma diferença de nível que forneça às
energias latentes uma possibilidade de atuação. (JUNG, 1971/1991a, p. 94).

Uma experiência autêntica leva o indivíduo à sua função inferior, e esta pode
proporcionar uma ligação profunda com o inconsciente. Diante disso, Silveira (1981,
p. 55) afirma que, além de ser a ponte de união entre consciente e inconsciente,
representa um meio para restaurar conexões de vital importância na realidade
psíquica. Para Von Franz, (2016, p. 35), quando a função principal, junto com as
outras funções auxiliares, entra em equilíbrio com a função inferior, produz um estágio
mais ou menos do mesmo nível entre as duas camadas, onde nada é pensamento,
sentimento, percepção ou intuição. Então surge algo novo, isto é, uma atitude
completamente diferente e inédita em relação à vida. Ao exteriorizar sua visão,
Boehme produziu um sistema de realidade em relação a Deus e ao mal do mundo.
Baseado nesses fatos construiu toda uma filosofia voltada para o exterior, embora
68

pessoalmente esse tímido sapateiro fosse muito introvertido (VON FRANZ, 2016, p.
62).
O posicionamento teórico de Jung no que se refere ao indivíduo e sua
estrutura psíquica perpassa o consciente, atingindo as camadas mais arcaicas do
inconsciente. Nesse ínterim, apresentamos este arcabouço de conceitos, sempre
apontando para a relação destes com o fenômeno religioso. Ao elucidar os tipos e as
funções psíquicas, intencionamos apontar para as infinitas diferenças existentes entre
os seres humanos. Por isso, a apropriação do fenômeno religioso, uma vez que está
intrinsecamente ligado às funções psíquicas, é encontrado em extraordinária
diversidade. Entretanto, ainda que o fenômeno religioso venha se manifestar por meio
das funções psíquicas, a experiência em si é algo que transcende e, por isso, pode
não se submeter a meros conceitos teóricos.
69

2. DIVERSIDADE CULTURAL E APROPRIAÇÃO DO FENÔMENO RELIGIOSO: UM


RELATO EMPÍRICO

Ao atentarmo-nos para a obra de Carl Gustav Jung, é possível perceber que


o pai da Psicologia Analítica ao longo de sua vida preocupou-se com questões
espirituais, transculturais e transpessoais. Seu interesse esteve voltado para as
experiências que estão além daquelas situadas nas confissões, instituições e
tradições religiosas. Assim, buscou demonstrar repetidamente que, para se conhecer
a realidade por trás da realidade, ou a transcendência da psique, faz-se necessário
reconhecer que tanto o mundo físico e psíquico, quanto o corpo e espírito, podem ser
compreendidos e apercebidos com os sentidos e o mundo invisível do inconsciente.
Para tanto, suas observações científicas abrangem tanto o conhecimento psicológico
quanto pensamentos filosóficos, saber antropológico, sabedoria de vida e ciência das
religiões (DORST, 2015, p. 18).
Diante de tais observações, o autor percebeu que “a religião constitui, sem
dúvida alguma, uma das expressões mais antigas e universais da alma humana”
(JUNG, 1971/2012a, p. 17). Para ele, o fenômeno religioso, além de ser um fenômeno
sociológico ou histórico, é também um fenômeno psíquico, sendo que o
reconhecimento de tais aspectos seria imprescindível para a compreensão da
estrutura da personalidade humana. Assim, destaca a importância em observar de
maneira minuciosa tal fenômeno:

Embora me tenham chamado frequentemente de filósofo, sou apenas um


empírico e, como tal, me mantenho fiel ao ponto de vista fenomenológico.
Mas não acho que infringimos os princípios do empirismo científico se, de vez
em quando, fazemos reflexões que ultrapassam o simples acúmulo e
classificação do material proporcionado pela experiência. Creio, de fato, que
não há experiência possível sem uma consideração reflexiva, porque a
“experiência” constitui um processo de assimilação, sem o qual não há
compreensão alguma. Daqui se deduz que abordo os fatos psicológicos, não
sob o âmbito filosófico, mas de um ponto de vista científico-natural. Na
medida em que o fenômeno religioso apresenta um aspecto psicológico muito
importante, trato o tema dentro de uma perspectiva exclusivamente empírica,
limito-me, portanto, a observar os fenômenos. (JUNG, 1971/2012a, p. 17).

Ao afirmar que se mantém fiel ao ponto de vista fenomenológico, parece que


Jung buscava na observação empírica concentrar sua atenção na experiência tal
como ela se apresenta. Entretanto, para compreender o fenômeno religioso em seu
aspecto psicológico, deve-se atentar para o processo de assimilação que constitui a
70

experiência em si através de uma consideração reflexiva. De acordo com Machón


(2016, p. 59), o escrito sobre os tipos psicológicos aponta para uma maneira pela qual
Jung se apropriava para chegar a esta compreensão: [...] “a criação de diversas
tipologias, compreendidas como tendências e regularidades, que permitiam estruturar
grandes quantias de material analítico e assim gerar uma compreensão” (JUNG apud
MACHÓN, 2016, p. 59).
Jung opta pelo método de pesquisa empírico-fenomenológico, porque ele
parte do pressuposto que a natureza humana não pode ser adequadamente
compreendida, e os processos dinâmicos da alma não podem ser reduzidos à mera
pulsão35. Através deste método protegeria sua análise do reducionismo orientado
pelas ciências exatas, pois os fenômenos seriam descritos da maneira pelos quais se
apresentam. A postura de Jung ao utilizar o procedimento fenomenológico e empírico
em suas pesquisas tinha como propósito abordar diferentes conteúdos de diversas
maneiras. Assim, ele se aproxima dos fenômenos pesquisados de forma descritiva,
pragmática e pluralista, ocupando-se com fatos e dados da experiência. Entretanto,
mostrava-se aberto para fenômenos de diversos tipos, como sonhos, visões, fantasias
e delírios. Neste sentido, seu método de pesquisa diferenciava-se da fenomenologia
clássica (MACHON, 2016, p. 57-63).
Algumas observações empíricas foram possíveis quando Jung deixa a Europa
e viaja por diversas regiões em épocas distintas. As experiências destas viagens são
compartilhadas na obra autobiográfica intitulada Memórias Sonhos, Reflexões (1961),
editada e organizada por Aniela Jaffé (1903-1991). O autor narra que por onde
passou, presenciou diversos tipos de vivências culturais, como também múltiplas
formas de crenças e rituais religiosos. Entretanto, nesta pesquisa nos atentaremos
apenas a algumas regiões da África e Novo México visitadas no ano de 1920, também
algumas regiões na Índia onde ele esteve por volta de 1938.

35
Parece que aqui Jung faz referência à teoria de Freud e a sistematização dos processos mentais.
Para Freud, estes processos se dividem em: id, ego e superego. No id encontram-se as pulsões
inconscientes e os instintos que motivam o indivíduo, sendo primárias a pulsão sexual (libido) e a
exigência de prazer. Esta classificação foi mais tarde revisada na forma de duas classificações gerais
de instintos: instinto de vida (Eros) e instinto de morte (Tânatos). O ego lida com a realidade, sendo
que, a primeira realidade é a consciência do eu corporal. A tarefa primordial do ego é a autopreservação
e a busca de controle, não apenas do mundo exterior, mas também do mundo interior do id. Assim,
enquanto a principal meta do id é o prazer, a do ego é a segurança. O superego atua como mediador
entre o id e o ego. Ele traz consigo os padrões ideais aprendido com os pais e com a sociedade em
geral. Assim como o id, o superego representa o passado, enquanto o id contém as influências
hereditárias, o superego personifica a influência de outras pessoas. O ego, por sua vez, é determinado
pelas experiências exclusivas do próprio indivíduo (PALMER, 1997, p. 29-30).
71

De acordo com Dorst (2015, p. 20), a intuição de Jung presente em suas pesquisas,
demonstrava que ele estava “à frente de seu tempo” e, desse modo, sua obra se
constitui de abrangentes estudos empíricos, psicológicos, antropológicos e,
etnológicos. Através da leitura da obra de Jung, é possível ter acesso não apenas aos
relatos de suas pesquisas, como também ao conhecimento transmitido através das
experiências cotidianas, seus sentimentos e pensamentos.

2.1 África do Norte: primeiras impressões

O convite de um amigo para acompanhá-lo a uma viagem de negócios seria


um dos motivos pelo qual Jung seguiu em direção à África do Norte (JUNG,
1961/2006, p. 283). No entanto, em uma carta à sua esposa, escrita em 15 de março
de 1920, relata sobre sua experiência e confessa que, para ele, estar em um país não
europeu, habitado por um povo com idioma, tradição histórica e concepção de mundo
diferentes da europeia e onde os preconceitos cristãos não dominavam, era o lugar
em que desejou muitas vezes estar. Em alguns trechos da carta utiliza as seguintes
expressões:

[...] Esta África é inaudita! [...] perde-se o sentimento do próprio eu, que
parece dissolver-se nessa diversidade difícil de ser apreciada e ainda mais
descrita [...] um vaivém de túnicas vermelhas, brancas, amarelas, azuis,
marrons; turbantes brancos; fez36 vermelho uniforme; faces que vão do
branco e do amarelo claro até o negro de ébano; calças amarelas e vermelhas
provocam um ruído farfalhante enquanto os pés negros e nus se esgueiram
silenciosamente. De manhã, ergue-se o grande deus enchendo os dois
horizontes de júbilo e de poder; tudo o que vive lhe presta obediência. À noite,
a lua surge tão prateada, tão divinamente clara e luminosa que não é possível
duvidar de Astartea37[...] Na verdade, eu não sei o que a África me diz, mas
ela me fala. (JUNG, 1961/2006, p. 431-433).

Ao utilizar a expressão “inaudita”, é como se Jung estivesse visualizando algo


extraordinário, incrível, pelo qual nunca se ouviu dizer. Além da paisagem, ele aponta
para a diversidade “difícil de ser apreciada e ainda mais descrita”, buscando retratar
sobre os vestígios de outras culturas que passaram por ali e, de certo modo, deixaram
suas marcas. Diante deste cenário, revela a compreensão de algo não vivenciado ao
afirmar: “na verdade, eu não sei o que a África me diz, mas ela me fala”.

36
Fez: Gorro; chapéu quadrangular sem abas.
37
Astartea: provém de Astarte, deusa sírio-fenícia identificada com Vênus.
72

De acordo com a teoria de Jung sobre os tipos psicológicos, tema abordado


no capítulo anterior, o homem lida com as impressões que recebe do exterior e do
interior através das quatro funções da consciência denominadas: pensamento,
sentimento, intuição e sensação ou percepção sensorial. Estas funções estão
relacionadas a dois tipos gerais de atitude, que se distinguem por seu comportamento
peculiar em relação ao objeto: o tipo introvertido e o extrovertido. É também por meio
destas funções psíquicas que o ser humano compreende, assimila e reage diante de
suas experiências (JAFFÉ, 1964/2008, p. 323).
De acordo com Silveira (1984, p. 66), a sensibilidade à atmosfera dos lugares
e às novas possibilidades que possam oferecer como também a “aptidão para
apreender o encaminhamento dos processos que se desdobram na profundeza do
inconsciente coletivo, as transformações, as elaborações dos seus conteúdos em
diálogo com as condições do tempo e da história”, podem ser compreendidas como
função intuitiva introvertida. Para Von Franz (2016, p. 57), o intuitivo introvertido é
capaz de reconhecer os lentos processos que ocorrem no inconsciente coletivo, as
mudanças arquetípicas e comunicá-los à sociedade.
Ao realizar a análise através da leitura atenta dos escritos de Jung, Silveira
(1984, p. 68) permitiu-se discernir que a intuição introvertida seria a principal função
psíquica pela qual o autor apreendia suas experiências. Sendo assim, é possível
compreender através da narrativa “eu não sei o que a África me diz, mas ela me fala”,
que sua investigação em terras africanas ocorreu por meio da intuição.

2.1.1 Momento das preces: hora sagrada

Estando na África do Norte no deserto do Saara, Jung acampa no oásis de


Nefta, possivelmente uma região dominada pela cultura árabe. Ele descreve sua
experiência ao observar um fenômeno pelo qual declara ter se sentido intensamente
comovido. De acordo com seu relato, ouvia-se por todo lado o som de tamborins e
pessoas visivelmente excitadas gritavam como selvagens, gesticulavam, dançavam e
trabalhavam com zelo e exaustivamente. Em meio a essa agitação, que Jung
classificou como um caos ruidoso, o marabu38 em sua mula branca comandava o

38
O marabu seria o administrador dos bens dos pobres. Figura representada por um homem idoso que
possuía numerosos campos no oásis. Nesta ocasião, vários clãs vieram trabalhar para ele por dois dias
na preparação dos campos e abertura de canais de irrigação. Estavam também se preparando para
uma festa (JUNG, 1961/2006, p. 286).
73

trabalho cavalgando com movimentos pacíficos e aparência tranquila como se


representasse a figura de um santo. Por onde passava, percebia-se a veneração
daqueles homens por esta figura, pelo que refletia no aumento do zelo pelo trabalho.
Ao pôr do sol, aparentemente esgotados, entregaram-se ao sono profundo perto de
seus camelos. Despertaram aos primeiros raios do sol, com a invocação do muezim39,
chamando para a prece da manhã (JUNG, 1961/2006, p. 285-287).
Sobre este fato Jung reflete:

Para mim, foi uma lição: essas pessoas vivem por seus afetos; são
conduzidos por eles. De um lado, sua consciência os orienta no espaço,
comunicando-lhes as impressões vindas de fora e, de outro lado, são
agitadas por pulsões e afetos de ordem interior. Mas isso, sem reflexão, o eu
é desprovido de qualquer autonomia. (JUNG, 1961/2006, p. 287).

Diante desta declaração, é possível observar que Jung faz uma análise sobre
como estas pessoas lidavam com as pulsões internas e os estímulos externos. E
indica que vivem e são conduzidos por seus afetos. De acordo com sua definição, o
afeto pode ser compreendido tanto como um estado psíquico de sentimento, como
um estado fisiológico das inervações. Entretanto, ambos exercem efeito “cumulativo
e recíproco um sobre o outro. Isto é, um componente da sensação alia-se ao
sentimento intensificando de modo que o afeto fica mais próximo das sensações e
essencialmente diferenciado do estado sentimental” (JUNG, 1971/1991a, p. 388).
Von Franz (2017, p. 41) relaciona esta função psíquica a indivíduos “cujo dom
e função especializada é sentir e relacionar-se com objetos externos de forma
concreta e prática”. A partir do relato descrito acima sobre o comportamento das
pessoas no oásis de Nefta, é possível perceber que lidam de maneira prática e
concreta não apenas no trabalho, mas também na devoção ao seu líder e
principalmente quando são alertadas para as preces, evidenciando, assim, a maneira
pelo qual se relacionam com o fenômeno religioso que seria através da função
psíquica sensação extrovertida.
A religiosidade pode ser identificada como um traço básico da natureza
humana e a força motriz da evolução. Ela se manifesta nas diferentes formas culturais
no mundo. Além disso, as diversas formas de manifestação religiosa se relacionam

39
Muezim: pregoeiro encarregado de anunciar, do alto dos minaretes (torre alta e fina das mesquitas),
a hora das preces obrigatórias dos mulçumanos.
74

com a espiritualidade40. Entretanto, a espiritualidade pode ser entendida como um


“conceito superior que abrange uma pluralidade de fenômenos religiosos” (DORST,
2015, p. 12,13). Assim, a espiritualidade se apresenta ao longo da história como uma
constante antropológica que se manifesta de múltiplas maneiras.

2.1.2 Cerimônias: anteparo da imagem de Deus

Entre nativos do monte Elgon na África Oriental, Jung continua sua


investigação perscrutando o modo de vida de algumas tribos, no intuito de encontrar
algum vestígio de ideias e cerimônias religiosas. Após semanas entre eles, não
percebeu qualquer indício, mas não desistiu. Certo dia, em meio a conversas comuns,
um ancião da tribo disse que, ao nascer do sol, todos os dias, as pessoas saíam de
suas cabanas, sopravam ou cuspiam nas mãos e as erguiam “em direção aos
primeiros raios do sol, como se estivessem oferecendo o seu sopro ou a sua saliva ao
deus nascente – mungu”41. Jung questionou tentando entender o sentido daquela
prática, mas o ancião respondeu confuso: “sempre se faz assim quando o sol se
levanta”. Ao concluir que o sol seria mungu, os nativos riram de Jung, porque para
eles, “o sol, na verdade, não é mungu quando está acima da linha do horizonte. Mungu
é precisamente o nascer do sol” (JUNG, 1964/2008, p. 101).
A resposta do ancião da tribo – “sempre se faz assim quando o sol se levanta”
–, demonstra que provavelmente nunca souberam o que aquela cerimônia significava,
e talvez seus antepassados soubessem menos ainda. Eles realizavam o ritual matinal
sem reflexão consciente, entretanto, acreditavam ser esta “a verdadeira religião de
todos os povos”. Para eles, mesmo as tribos mais distantes que pudessem ser vistas
do alto da montanha, e aquelas infinitamente mais longe, veneravam o Sol quando se
ergue (JUNG, 1961/2006, p. 313).
É possível observar que, nessa tribo, o fenômeno religioso aparece como uma
atitude natural apreendida pela sensação ou percepção introvertida. De acordo com

40
A palavra “espiritualidade” como é usada hoje em dia não era muito utilizada na época de Jung.
“Religião” e “religiosidade” eram as designações estabelecidas. Assim quem procura pela palavra-
chave “espiritualidade” em passagens das obras completas de C.G. Jung, não encontra muita coisa
(DORST, 2015, p. 16).
41
Mungu: termo do dialeto swahili, utilizado para explicar um ato ritual, originado de uma raiz polinésica
equivalente a mana ou mulungu. Essa e outras palavras semelhantes designam um “poder” de
extraordinária eficácia e penetração, que poderíamos chamar de divino. Assim, a palavra mungu
equivale a Deus ou Alá (JUNG 1964/2008, p. 101).
75

Von Franz (2017, p. 49-51), o tipo perceptivo introvertido estaria relacionado a


pessoas altamente sensíveis, que apresentam uma percepção muito apurada de tudo
e são capazes de absorver cada detalhe. Observemos que o ritual diário era realizado
em direção aos primeiros raios do sol, porque “Mungu é, precisamente, o nascer do
sol”.
Jung (1971/1991a, p. 373) afirma que a sensação introvertida “é um tipo
irracional porque, no fluxo dos acontecimentos, não escolhe, sobretudo por
julgamentos da razão, mas simplesmente se orienta pelo que acontece”. Esta
característica se evidencia na resposta do nativo: “sempre se faz isso quando o sol se
levanta”. Este ato era praticado diariamente, mas nunca refletiram a seu respeito, por
isso não conseguiam explicá-lo (JUNG, 1964/2008, p. 101).
Em algumas culturas antigas, existe uma crença de que há “uma força
universal mágica, e tudo gira em torno dessa força”. Esse conceito arcaico de energia
denominado mulungu ou apenas mungu está relacionado a questões espirituais
(alma, deus, espírito), a questões físicas (saúde, força corporal, fertilidade, remédio),
e a questões sociais (poder, influência, respeito). Jung acreditava que esse conceito
de energia poderia ser considerado a primeira versão do conceito de Deus entre
nossos antepassados (JUNG, apud DORST, 2015, p. 43).
Eis a reflexão de Jung sobre a cerimônia que certamente tratava-se de uma
oferenda ao deus nascente:

A saliva é a substância que, segundo a concepção [arcaica], contém o mana


pessoal, a força que cura, a força mágica, a força da vida. O sopro é o vento,
o espírito: é zoho; ruch em árabe; ruah em hebraico; pneuma em grego. O
ato significa: eu ofereço a Deus minha alma viva. Trata-se de uma oração
sem palavras, feita através de um gesto. (JUNG, 1974/1993, p. 77).

Através dos rituais, o homem arcaico sentia-se seguro em seu mundo. Assim,
qualquer exceção que viesse impedir a regularidade desses acontecimentos
ordinários, seria interpretada como um presságio de acontecimentos adversos e
perigosos (JUNG, 1974/1993, p. 64). De acordo com Silveira (1984, p. 150), é possível
observar que os rituais religiosos surgiram a partir da necessidade dessa proteção,
pois “funcionam como anteparos entre o divino e o humano, isto é, entre o arquétipo
da imagem de Deus presente no inconsciente coletivo e o ego”.

2.1.3 A voz de Mungu: a importância dos sonhos


76

Através da experiência entre estes nativos africanos, Jung identificou


costumes culturais bem antigos. Diante disso, ele afirma que a função psíquica tanto
do homem arcaico quanto do contemporâneo “é essencialmente a mesma”, pois não
existe nenhuma indicação de que o arcaico pense, sinta ou perceba de maneira
diferente do moderno. Assim, considerou relativamente irrelevante que um tenha ou
pareça ter uma consciência mais limitada que o outro. No entanto, observou certa
“inocência” tanto para o bem, quanto para o mal entre eles. Isso, de certo modo,
proporcionou-lhe um sentimento de estranheza, pois, o homem arcaico vive em uma
cultura diferente, com pressupostos diferentes (JUNG, 1974/1993, p. 60-61).
Foi o que constatou quando aqueles nativos disseram que não tinham sonhos,
porque isso era privilégio do chefe da tribo e do curandeiro. Eles acreditavam que os
sonhos seriam a voz do desconhecido – a voz de mungu, que advertia sobre novas
intrigas, perigos, sacrifícios, guerras e outras coisas ruins, então não seria sensato
suspeitar que uma pessoa comum tivesse sonhos (JUNG, 1971/2012a, p. 30).
De acordo com Jung, os sonhos exercem importante função na constituição
psíquica do indivíduo. Algumas vezes eles podem ser premonitórios, advertindo ou
revelando situações antes que venham a acontecer. Entretanto, os símbolos oníricos
muitas vezes, passam despercebidos ou são incompreendidos (JUNG, 1964/2008, p.
58).
Apesar de afirmarem que não tinham sonhos, Jung supunha “que a razão era
no fundo, o medo e a desconfiança” e que talvez temessem ser prejudicados, caso
seus sonhos se tornassem conhecidos (JUNG, 1961/2006, p. 311). Ou então,
poderiam estar apenas convencidos de que seus sonhos nada significavam, pois
afirmavam que os sonhos do homem comum não diziam nada e os sonhos que tinham
importância eram aqueles que traziam algo para o bem geral da tribo. Desse modo,
apenas os sonhos dos chefes da tribo e dos curandeiros eram observados (JUNG,
1964/2008, p. 60).
A questão naquele momento era que nem mesmo o chefe da tribo e o
curandeiro sonhavam. Assim, as advertências não vinham mais através deles. Eis a
revelação do curandeiro a Jung:

Quando o interroguei acerca de seus sonhos, explicou-me com lágrimas nos


olhos: “Outrora, os laibons tinham sonhos e sabiam quando haveria guerras
ou doenças, se a chuva viria e para onde os rebanhos deveriam ser levados”.
77

Seu avô ainda sonhara. Mas desde que os brancos haviam chegado na
África, ninguém mais sonhava. Não havia mais necessidade de sonhos, pois
agora os ingleses sabiam tudo [...] Sua resposta mostrou-me que o medicine-
man perdera sua razão de ser. A voz divina que aconselha o clã tornara-se
inútil, pois os ingleses “sabiam mais”. (JUNG, 1961/2006, p. 311).

A imposição de uma cultura a outra, geralmente, provoca desintegração social


e psíquica naqueles que são submetidos a semelhante processo. A principal
característica que se apresenta é a perda de sentido da vida.

Os antropólogos descrevem o que acontece a uma sociedade [arcaica]


quando seus valores espirituais sofrem o impacto de uma civilização
moderna. Sua gente perde o sentido da vida, sua organização social se
desintegra e os próprios indivíduos entram em decadência. (JUNG,
1964/2008, p. 119).

O sentido da vida consiste no fato de o indivíduo estar convicto de que ocupa


o seu próprio lugar no mundo (JUNG, 1964/2008, p. 111). Se ele tem esta convicção,
é capaz de suportar as mais incríveis provações. Caso contrário, ele se perde, ou
desintegra-se. A desintegração psíquica que o autor denomina neurose42, geralmente
tem relação com questões de ordem religiosa ou espiritual (JUNG, 1971/2012a, p. 7).
Quando Jung aponta para o indivíduo e seu próprio lugar no mundo, é possível
observar que não remete apenas ao mundo físico, mas também para o mundo
psíquico. Sendo que, uma das formas representativas do mundo psíquico são os
simbolismos que aparecem nos sonhos. Ele comenta que por mais de meio século
esteve investigando os símbolos naturais e concluiu que, tanto os sonhos quanto seus
símbolos, não são fenômenos inconsequentes ou desprovidos de sentido, mas que
eles têm relação com fenômenos tanto de ordem física como espiritual. No entanto, o
homem moderno que se encontra fascinado e envolvido com sua consciência
subjetiva, tem se esquecido do fato milenar de que “Deus nos fala, sobretudo, através
dos sonhos e visões”. Desse modo, as pessoas não deveriam se auto eleger “juízes
dos méritos ou das desvantagens dos fenômenos naturais”, colocando-se numa
posição de “Deus Todo Poderoso” (JUNG, 1964/2008, p. 129,130).

2.1.4 O livro e o fogo: Europa e África

42
Neurose – Estado de desunião consigo mesmo, causado pela oposição entre as necessidades
instintivas e as exigências da cultura, entre os caprichos infantis, e a vontade de adaptação, entre os
deveres individuais e coletivos. A neurose é um sinal de parada para o indivíduo que está num caminho
falso, e um sinal de alarme que o induz a procurar um processo de cura pessoal (JUNG, 1961/2006, p.
491).
78

Ao viajar pela África, Jung revelou que buscava “encontrar um lugar psíquico
exterior ao europeu”. Ele acreditava que o seu desejo inconsciente seria encontrar em
si mesmo parte de sua personalidade que estava oculta. No entanto, pelo fato de ser
europeu, não concedia espaço a esse desejo, assim, essa parte se encontrava em
oposição inconsciente43. Em sua concepção, o europeu, por ser em grande parte
determinado pela razão, desconhece muito do que é humano. Em consequência
disso, a parte arcaica da personalidade fica condenada a uma existência
particularmente subterrânea (JUNG, 1961/2006, p. 290).
Para uma compreensão mais ampla em relação ao racionalismo europeu em
contraposição à mitologia africana, apresentaremos a ilustração do mito africano da
criação:

[...] Zambi, filho do deus supremo mebe’e, criou um chimpanzé, um gorila, um


elefante e dois homens – um europeu e um africano – e, cada um deles
ganhou também o nome de Zambi. A essas criaturas Zambi deu meios de
sobrevivência – fogo, água, alimento, armas e um livro. Antes que fosse tarde,
Zambi voltou para ver como estava a Terra. “Onde estão”, perguntou ele a
cada criatura, “os meios de sobrevivência que lhes dei?” O chimpanzé e o
gorila tinham jogado tudo fora, menos as frutas, e Zambi os expulsou da
floresta para sempre. O elefante não conseguia lembrar o que tinha feito com
suas coisas. O europeu ficou com o livro, desprezou o fogo, enquanto o
africano desprezou o livro e ficou com o fogo. Assim, os europeus ficaram
sendo os protetores do livro, e os africanos os protetores da chama. (FORD,
1999, p. 44).

De acordo com este mito, o livro simboliza a trajetória que a civilização


ocidental seguiu. Esse caminho consiste no esforço do homem em dominar o mundo
natural e a humanidade através da razão e do intelecto. Além disso, o fogo simboliza
uma parte do Sol trazida para a Terra como representante terreno do deus-sol, criador
da vida. Assim, o fogo é o símbolo da energia cósmica imortal, pelo qual concebe tudo
o que é vivo; o poder sagrado da origem da vida através da criação. Também
representa o calor intenso da luz da alma humana, é o símbolo da sabedoria sagrada
que enxerga para além do mundo humano criado, o mistério divino que o criou.
Segundo o mito, para ter domínio sobre o mundano, os europeus sacrificaram o
sagrado. Para se agarrar ao sagrado, os africanos sacrificaram o mundano. Assim,
para se perceber e compreender os mistérios da alma, e esclarecer os enigmas

43
Ao falar sobre oposição inconsciente, é provável que Jung esteja se referindo à função psíquica
inferior.
79

pessoais e sociais, seria necessário ir além da razão europeia, pois a sabedoria mítica
da África mantém acesa uma chama que talvez ajude a iluminar o caminho (FORD,
1999, p. 44-45).
O homem que está em contato com a natureza, não sonha em ser dono da
criação, por isso está longe do particularismo humano. Ele faz parte da natureza como
um todo, sendo assim, não pensa que pode dominá-la. Seu esforço consiste apenas
em proteger-se contra os perigos do acaso. O homem direcionado pela razão, por sua
vez, esforça-se em descobrir o que as causas naturais podem lhe proporcionar para
conseguir “a chave do laboratório secreto da natureza”. Enquanto um acredita no sol,
o outro acredita no olho humano e, “se não sofrer do mal dos poetas ou não se
entregar a grandes reflexões”, vai procurar des-espiritualizar a natureza para tentar
dominá-la (JUNG, 1974/1993, p. 71-72).
O fenômeno religioso, observado por Jung entre esses nativos, apresenta-se
de forma natural e espontânea, sendo apreendido pelas sensações. Os rituais têm
uma conexão intrínseca entre o homem e a natureza, que está naturalmente embutido
na cultura e vivência cotidiana desses indivíduos.
Jung considera a alma como um fator autônomo e os enunciados religiosos
como uma espécie de confissão da alma, com suas raízes em processos
inconscientes e, consequentemente, transcendentes. Assim, cita o que diz Tertuliano
em sua obra De testimonio animae: “Estes testemunhos da alma quanto mais
verdadeiros, tanto mais simples; quanto mais simples, tanto mais vulgares; quanto
mais vulgares, tanto mais comuns; quanto mais comuns, mais naturais; quanto mais
naturais, tanto mais divinos” (TERTULIANO apud JUNG, 1971/2012c, p. 12-13).
Hilmam aponta para a importância dos mitos arcaicos na constituição psíquica
e religiosa do indivíduo trazendo a seguinte consideração:

[...] será necessário desmitologizar a religião para ir ao encontro do homem


moderno? Não poderíamos escolher a alternativa do envolvimento com o
inconsciente e, a partir daí, religarmos o homem moderno com os seus mitos?
Talvez dessa maneira venhamos novamente a nos deparar com a alma e o
seu interesse religioso natural. (HILLMAM, 1984, p. 69-70).

Existe em cada indivíduo uma linguagem comum, baseada em experiências


idênticas ou arquetípicas. Por isso, o campo da realidade psíquica imanente a cada
um, transcende as diferenças pessoais, independente de pressupostos culturais,
religiosos e étnicos raciais. Desse modo, através do inconsciente, todos podem
80

experimentar as imagens e emoções que nos foram dadas coletivamente (HILLMAM,


1984, p. 69).

2.2 O deus Sol e os Índios Pueblos no Novo México

Em companhia de alguns amigos americanos, Jung dirigiu-se ao Novo México


e ficou em uma aldeia entre os índios pueblos. O contato com os nativos aconteceu
através do chefe da aldeia que se chamava Ochwiay Biano. Este homem, em
princípio, demonstrou-se inacessível aos assuntos relacionados à religião, pois
intencionalmente procurava manter as práticas de sua aldeia como um segredo bem
preservado. A fim de conseguir informações a respeito deste mistério, Jung decidiu
abordá-lo de maneira indireta, pois seria impossível seguir o caminho da pergunta
direta. Assim descreve:

Estava sentado no terraço, em companhia de Ochwiay Biano enquanto o sol


se elevava cada vez mais brilhante. Apontando-o, ele me disse: “Então, não
é nosso Pai, aquele que se ergue no céu? Como negá-lo? Como poderia
existir um outro Deus? Nada pode existir sem o sol!” Sua excitação que já era
visível foi aumentando. Buscava palavras e por fim exclamou: “O que pode
fazer um homem sozinho nas montanhas? Sem Ele, não pode nem ao menos
acender o fogo!”. Perguntei-lhe se não pensava que o Sol era uma bola de
fogo, formada por um deus invisível. Minha pergunta não suscitou espanto e
muito menos desagrado. Simplesmente deixou-o indiferente. Tive a
impressão de esbarrar num muro intransponível. A única resposta que obtive
foi: “O Sol é Deus; todos podem ver isso!” (JUNG, 1961/2006, p. 296).

Na vida comum, este nativo apresentava um grande domínio sobre si. Porém,
ao falar de suas concepções religiosas e como se relacionava com tais mistérios, era
tomado por uma emoção surpreendente. Ao tocar no essencial, ficava em silêncio ou
dizia de maneira evasiva. Às vezes seus olhos enchiam-se de lágrimas. Com
admiração, Jung constatava que as concepções religiosas daquelas pessoas não
estavam vinculadas às meras teorias, e sim, a fatos que remetiam importância e
significado como as realidades exteriores correspondentes, pois que teorias
arrancariam lágrimas de um homem? (JUNG, 1961/2006, p. 295-296).
Jung considera o fenômeno religioso uma atitude do espírito humano
caracterizado pela consideração e observação cuidadosa de certos fatores dinâmicos
que podem ser compreendidos como poderes ou potências (JUNG, 1971/2012a, p.
20). Esses fatores que agem sobre o estado geral do ser humano não estão
vinculados a algum credo ou instituição em particular, mas se relacionam a uma
81

função psíquica natural e com a experiência religiosa individual na qualidade de


processo psíquico (SILVEIRA, 1981, p. 151). Desse modo, aponta para a importância
dos símbolos que estão na base das diversas formas de religião, sua relação com os
conteúdos arquetípicos do inconsciente coletivo e o que eles representam para cada
indivíduo.
Os símbolos religiosos têm por finalidade e aspiração dar sentido à vida do
homem. Assim, acreditar que são filhos do Pai Sol permite aos índios pueblos a
liberdade para uma vida plena enquanto seres humanos. Também possibilita a
abertura para um maior desdobramento das suas personalidades, pois lhes
proporciona um objetivo e uma perspectiva que vai além da existência individual com
suas limitações (JUNG, 1964/2008, p. 111).
Na concepção dos pueblos “é o sol que ilumina o mundo e não o olho
humano”. Assim, Jung percebeu que se apresentasse uma teoria científica em relação
ao sol para aquelas pessoas, elas o acusariam de supersticioso e sem lógica. Isso se
tornou evidente quando insinuou sobre o argumento agostiniano 44 “nosso Senhor não
é o sol, mas quem o fez” e foi repreendido pelo índio. Este, com indignação e
apontando paro o sol exclamou: “Aquele que vai ali é o nosso pai. Tu podes vê-lo. É
dele que vem toda luz, toda vida. Não há nada que ele não tenha feito”. Sua fala era
incisiva e demonstrava agitação ao se expressar (JUNG, 1974/1993, p. 73).
Em seus estudos alquímicos45, fazendo alusão ao sol, Jung afirma ter
compreendido que “Sol não indica propriamente uma substância química
determinada, mas sim um virtus ou uma força misteriosa, a qual se atribui um efeito
produtor e transformador” (JUNG, 1971/1997, p. 90). Tal reflexão o levou a relacionar
o sol físico com o coração humano, pois, assim como o sol ilumina e aquece o
universo, há um mistério solar no coração do homem de onde emana vida e calor. De
acordo como Dorneus46 – “[...] ele (o sol) é chamado o primeiro depois de Deus
(primus post Deum) e pai e gerador de todos, pois nele reside a força que gera e forma

44
Agostinho (354-430) formulou a concepção cristã de que Deus, por sua própria essência trina, é
criador de todos os seres, a partir de nada além dele e como consequência apenas de seu amor infinito.
[...] “Interroguei o céu, o sol, a Lua, as estrelas e disseram-me: Nós também não somos o Deus que
procuras... Já que não sois o meu Deus, falai-me do meu Deus, dizei-me, ao menos alguma coisa d’ele.
E exclamaram com alarido: Foi ele quem nos criou” (AGOSTINHO, 2004, p. 264).
45
Os estudos alquímicos de Jung encontram-se registrados mais precisamente nos volumes XII, XIII e
XIV das obras completas.
46
Gerardus Dorneus, alquimista discípulo de Paracelso. Viveu na Alemanha no início do século XVII.
82

todas as coisas (quorumvis seminaria virtus atque formatus delitescit)” (DORNEUS


apud JUNG, 1971/1997, p. 90).

2.2.1 Devoção ao Sol: sentimento introvertido

Ao conseguir obter daqueles nativos alguma informação sobre suas crenças,


Jung (1974/1993, p. 73) compreendeu que para estas pessoas todo poder encontra-
se localizado no exterior e só graças a este poder é possível viver. De acordo com o
autor (1971/1991a, p. 400), o arcaico não experimenta a ideia de divindade como
conteúdo subjetivo, mas relaciona-se com o fenômeno material e concreto. Assim, o
pensamento e o sentimento arcaicos são exclusivamente concretistas 47.
Eis o relato de Ochwioy Biano:

É preciso lembrar que somos um povo – disse – que permanece no teto do


mundo; somos os filhos de nosso Pai, o Sol, e graças à nossa religião
ajudamos diariamente nosso Pai atravessar o céu. Agimos assim, não só por
nós mesmos, mas pelo mundo inteiro. Se cessássemos as nossas práticas
religiosas, em dez anos o Sol não se ergueria mais. Haveria uma noite eterna.
(JUNG, 1961/2006, p. 297).

Neste argumento, o nativo evidencia a maneira concreta e racional em que


lida com as ideias religiosas. Pensamento e sentimento são tipos psicológicos que
Jung apresenta como racionais ou judicativos por se caracterizarem pela primazia de
funções com julgamento racional (JUNG, 1971/1991a, p. 342). Entretanto, enquanto
o pensamento tem por função esclarecer o significado dos objetos, pois seu
julgamento consiste em classificar e discriminar uma coisa da outra, o sentimento, por
sua vez, faz a estimativa dos objetos e decide o valor que têm para nós. Assim como
o pensamento, o sentimento estabelece julgamento, mas com uma lógica diferente –
a lógica do coração (SILVEIRA, 1981, p. 54).
Os pueblos não conseguiam compreender o que os brancos queriam e
buscavam. Viam nestes um aspecto cruel, os olhos com expressão fixa parecendo
que sempre estavam buscando algo, e eram muito inquietos. “Achamos que são
loucos”, confessou Ocwioy Biano. Jung quis saber o que os levava a tal concepção,
ao que lhe respondeu: “eles dizem que pensam com suas cabeças”. Ao perguntar

47
Concretismo: conceito que remete a certa peculiaridade do pensamento e sentimento que representa
o contrário de abstração (JUNG, 1971/1991a, p. 400).
83

indignado com o que eles pensavam, o índio indicou o coração, dizendo: “nós
pensamos aqui” (JUNG, 1961/2006, p. 293).
Quando afirmou que os brancos são loucos por pensarem com a cabeça, pois,
segundo a concepção dos pueblos, nenhum homem perfeito faz isso, demonstrou
estarem exatamente na idade homérica48. De acordo com Jung, neste período
considerava-se o diafragma (phren=espírito, mente) como o centro das atividades
psíquicas. Assim, enquanto o conceito do branco pressupõe que os pensamentos
emergem da cabeça, para os pueblos pensamentos abstratos não existem, pois a
consciência deriva da intensidade dos sentimentos. Então, para eles, seria impossível
assimilar a ideia agostiniana de que Deus não é Sol e sim o criador do sol. Por não
conseguirem ultrapassar as percepções de suas sensações e de seus sentimentos,
consideravam que o pensamento se localizava no coração (JUNG, 1981/1999, p. 6).
É possível observar que a função sentimento aparece em primazia nas ideias
religiosas dos pueblos. De acordo com Hillman (1971/2016, p. 144), o sentimento
estabelece relações entre o sujeito e o objeto – “somos filhos de nosso Pai Sol”. Entre
o sujeito e os conteúdos de sua psique, na forma de valores – “graças à nossa religião
ajudamos diariamente nosso Pai atravessar o céu”. E entre o sujeito e a sua própria
subjetividade, na forma de uma carga emocional e de um sentido de espírito gerais –
“agimos assim não só por nós mesmos, mas pelo mundo inteiro”. “A função sentimento
desenvolvida é a razão do coração, que a razão da mente não compreende muito
bem” (HILLMAN, 1971/2016, p. 145)49.
As pesquisas psicológicas de Jung (1975/1994, p. 26), provando a existência
dos tipos psíquicos e a relação destes com as representações religiosas, abrem uma
possibilidade de acesso a conteúdos suscetíveis de serem experimentados. Diante
disso, quando Jung (1961/2006, p. 295) observou que os pueblos são extremamente
fechados, absolutamente inacessível no que diz respeito à religião, é possível
pressupor que estes indivíduos relacionavam-se com o fenômeno religioso através da
função psíquica sentimento introvertido.
Ao conceituar tal tipo psicológico, o autor o relaciona a indivíduos que
demonstram ser sempre frios e reservados. De certo modo, quando se faz um

48
O período homérico refere-se ao período da história da Grécia antiga que começa com a invasão
dórica e o final da civilização Micênica, por volta de 1150 a.C., e que termina com a ascensão das
cidades-estados gregas, cerca de 800 a.C.
49
Nesta frase Hillman faz alusão à frase mais conhecida do filósofo Blaise Pascal (1623-1662): “o
coração tem razões que a razão desconhece” (CUNHA; FLORIDO/2005, p. 129).
84

julgamento superficial não se percebe qualquer sentimento. Isto acontece porque os


sentimentos nestes indivíduos não são extensivos, mas intensivos, pois se
desenvolvem na profundeza. Assim, é possível ter apenas uma vaga ideia a respeito
do verdadeiro conteúdo desse sentimento. Entretanto, podem expressar “seu objetivo
e seu conteúdo numa religiosidade camuflada e medrosamente escondida do olhar
profano” (JUNG, 1971/1991a, p. 368).
A atmosfera de mistério intencionalmente inserida na cultura dos índios
pueblos, além de lhes proporcionar coesão e unidade, fazia com que resistissem ao
poder do homem branco com orgulho e energia. Desse modo, seria necessário que
tais mistérios fossem preservados a fim de subsistirem como coletividade
personalizada, e impedir a profanação de suas crenças (JUNG, 1961/2006, p. 295).

2.3 O Oriente e a introversão

Em Psicologia e Religião Oriental (1971), obra na qual constam estudos e


comentários sobre os escritos religiosos dos orientais, Jung mostra os diferentes
modos e formas de expressão do Oriente e faz uma análise comparativa entre
psicologia e religião oriental. O autor aponta que os orientais apresentam sua
transbordante espiritualidade numa concepção refletida no interior, ou seja, a partir da
alma. Assim, buscam a concentração, a meditação e a imersão. Voltam-se do exterior
para o interior, pois entendem que é no interior das coisas que se encontra a divindade
(JUNG, 1971/2013, p. 102). Ao realizar a análise psicológica, o autor faz a seguinte
afirmação:

[...] O Oriente se baseia na realidade psíquica, isto é, na psique, enquanto


condição única e fundamental da existência. A impressão que se tem é a de
que este conhecimento é mais uma manifestação psicológica do que o
resultado de um pensamento filosófico. Trata-se de um ponto de vista
tipicamente introvertido. [...] A introversão é, se assim podemos nos exprimir,
o estilo do Oriente, ou seja, uma atitude habitual e coletiva. (JUNG,
1971/2013, p. 17).

Nesta avaliação, Jung aponta para a introversão como o estilo do Oriente de


forma genérica e abrangente. No entanto, conforme ele mesmo enfatiza “cada uma
das duas atitudes gerais, isto é, introversão e extroversão, manifestam-se de acordo
com uma das quatro funções básicas dominantes no indivíduo” (JUNG, 1971/1991a,
p. 481).
85

As funções básicas têm suas peculiaridades em cada indivíduo e, de acordo


com o que foi abordado no primeiro capítulo desta pesquisa, distinguem-se em
pensamento, sentimento, sensação e intuição. Assim, tanto a introversão quanto a
extroversão são atitudes preconcebidas que condicionam o processo psíquico e
estabelecem a maneira como o indivíduo reagirá diante das questões objetivas e
subjetivas, pois, enquanto o tipo extrovertido orienta-se por fatores objetivos, o
introvertido orienta-se por fatores subjetivos (JUNG, 1971/1991a, p. 354).
Para indivíduos com personalidade introvertida, o objeto tem pouco valor em
relação ao sujeito, por isso não dão muita atenção à realidade objetiva. Sua atenção
se direciona para os processos internos valorizando o próprio sujeito. Enquanto o
mundo objetivo se mantém praticamente na sombra, recebendo pouca atenção, o
mundo subjetivo torna-se o centro de seus interesses aparecendo como único aos
seus olhos (JUNG, 1971/1991a, p. 462). Assim, Jung classifica o tipo introvertido
como uma atitude habitual e coletiva entre os orientais, pois estes, de modo geral,
tendem a buscar a introspecção e o autoconhecimento, fatores de relevância
significativa em pessoas com personalidade do tipo introvertida (JUNG, 1964/2008, p.
72).
Apesar de Jung trazer um panorama geral da relação entre psicologia e
religião no Oriente, nos apropriaremos do relato de Jung sobre sua viagem à Índia,
atentando para algumas de suas vertentes religiosas como o hinduísmo, o budismo e
a prática da ioga utilizada nestas vertentes, a fim de compreender como o fenômeno
religioso se apresenta entre os indianos e qual a sua relação com o fenômeno
psíquico.

2.3.1 Índia: uma civilização matriarcal

Jung ficou extremamente persuadido do valor da sabedoria oriental ao


aprofundar-se na leitura da filosofia indiana e na história religiosa deste país. Assim,
o convite do governo inglês da Índia para assistir às festividades do 25º jubileu da
Universidade de Calcutá no ano de 193850 significou para ele uma excelente ocasião

50
De acordo com Aniela Jaffé (responsável pela organização e edição da obra Memórias, Sonhos e
Reflexões), Jung relata as impressões de sua viagem em dois estudos – The Dreamlike World of Índia
e What Índia Can Teach Us – Estes relatos foram publicados em inglês logo após seu regresso, na
revista Asia (Nova York, janeiro e fevereiro de 1939). Estes dois estudos são encontrados no volume
10 das obras completas – Psicologia em Transição (1974), p. 477-491.
86

para tirar as próprias conclusões (JUNG, 1961/2006, p. 321). Entretanto, ficou


impressionado ao deparar-se com uma civilização estrangeira altamente diferenciada.
Acompanhemos o relato de Jung no qual é possível observar algumas impressões
sobre a cultura indiana:

Os indianos falam sem afetação. Não representam nada. Pertencem às


trezentas e sessenta milhões de pessoas da Índia. As mulheres representam
menos do que nada. Pertencem a grandes famílias vivendo por acaso e
geograficamente num país chamado Índia. É preciso saber adaptar-se à
família, saber como falar e comportar-se quando vinte e cinco a trinta
membros da família estão reunidos em pequena casa sob a hegemonia de
uma avó. Nesta situação a gente aprende a falar com modéstia, cuidado e
polidez. Isto explica aquela voz sussurrando e aquele comportamento
semelhante ao da flor [...] A Índia, porém, leva a família a sério. Não há quanto
a ela amadorismos ou sentimentalismos. É considerada a forma de vida
indispensável, inevitável, necessária e óbvia. Só a religião é capaz de quebrar
esta lei e fazer do “abandono da família” o primeiro passo da santidade.
(JUNG, 1974/1993, p. 484).

Ao se deparar com este povo de costumes tão diferentes comparando-se à


cultura ocidental, pois se trata de uma cultura baseada na antiga tradição matriarcal,
Jung constatou que a Índia representava o outro caminho do homem civilizado, a
saber, o caminho sem opressão, sem violência, sem racionalismo. Ele comenta que
foi possível observar lado a lado, na mesma cidade, na mesma rua, no mesmo templo,
na mesma milha quadrada: o espírito culturalmente mais desenvolvido e o menos
desenvolvido. Traços vívidos do homem arcaico se mantinham naqueles pelos quais
apresentavam maior desenvoltura cultural e espiritual, como também se percebia um
saber inconsciente de verdades misteriosas no olhar melancólico do camponês inculto
e seminu. Uma cultura civilizada, que manteve todos os traços essenciais da cultura
arcaica, integrando o homem em sua totalidade era o que a Índia representava. As
questões culturais e psíquicas estavam representadas em seus templos onde as
esculturas simbolizavam o universo e o homem em todos os seus aspectos (JUNG,
1974/1993, p. 490).
Observar que o problema da natureza psicológica do mal era intrínseco na
vida espiritual do indiano, deixou Jung impressionado: [...] “Espantava-me o fato de
que a espiritualidade indiana contivesse tanto o bem como o mal” (JUNG, 1961/2006,
p. 323). No entanto, tal experiência o levou a uma nova concepção: ele percebeu que
para um oriental a questão moral não ocupa o primeiro plano – como acontece com o
ocidental – pois, o bem e o mal são partes integrantes da natureza e o oriental não
87

pretende atingir a perfeição moral, e sim o estado de nirdvandva51. Este estado que é
obtido pela meditação, leva-o a sentir-se fora do bem e do mal, pois ele procura se
livrar da natureza e alcançar o estado do vazio, ou o estado sem imagens (JUNG,
1961/2006, p. 323).

2.3.2 Hinduísmo: o fenômeno religioso e a função transcendente

“Só é livre o homem que a si mesmo domina.”


(Goethe)

Considerado como uma das religiões mais antigas, o hinduísmo não possui
um fundador oficial. Nasceu de uma tradição milenar, cresceu e se desenvolveu no
decorrer dos últimos quatro mil anos, mais especificamente na Índia, chegando a
atingir outros lugares do mundo. Tem como característica uma grande variedade de
deuses e seitas, entretanto, dentro desta diversidade existe uma unidade – todos os
deuses e toda criação são parte de um Ser Universal. Brahman, a força incognoscível,
origem de toda criação, realidade última para os hindus. Brahman não é visto como
um deus, mas como a alma do universo, a essência da vida e a eterna unidade
cósmica (CAMPOS NETO, 2009, p. 73).
Dentro das centenas de deuses e deusas que integram o hinduísmo, três
deles são os mais populares e dotados de grande significado. Eles representam a
trindade (trimurti) composta por: Brahma o criador; Shiva o destruidor; Vishnu o
protetor. Este último representa o mediador dos dois primeiros, pois cabe a ele a
função de preservar. Enquanto Brahma e Shiva representam forças opostas, Vishnu
representa o equilíbrio. Essas divindades são de grande importância cósmica, pois
existem numa escala de tempo diferenciada da nossa (CAMPOS NETO, 2009, p. 74).
O empenho dos adeptos do hinduísmo consiste em se libertar do samskara
(ciclo de morte e renascimento), e atingir o moksha (tornar-se semelhante a Brahman).
Para chegar a esse encontro com moksha, existem vários caminhos para serem
seguidos, sendo que cada um deles exige renúncia do eu, dos sentidos e demais
coisas terrenas (CAMPOS NETO, 2009, p. 79-80).

51
O termo nirdvandva vem do sânscrito e quer dizer ausência de conflito ou indiferença aos sentimentos
opostos.
88

Jung (1971/2013, p. 21-23) enfatiza que, de modo geral na cultura hindu, os


conteúdos do eu parecem não exercer muita força na relação com o indivíduo. Para
eles, a existência é capaz de se estender além do estágio do eu que chega mesmo a
desaparecer no estado superior. Assim, o eu passa a ocupar uma posição intermédia
entre o corpo e os processos ideais da psique. Através da exercitação ou prática da
ascese, como por exemplo, a hatha-ioga52, as camadas semifisiológicas53 inferiores
da psique são dominadas e controladas. Elas não são negadas ou reprimidas, mas
superadas a ponto de não interferirem no desenvolvimento da consciência superior
(JUNG, 1971/2013, p. 21-23).
Observemos a narrativa de Jung, ao acompanhar o processo pelo qual
camponeses indianos passam, a fim de atingir o estado superior da consciência. É
possível que tal descrição esteja relacionada a um templo hindu, tratando-se de uma
prática comum aos adeptos de alguma das vertentes do hinduísmo:

Em Konarak (Orissa), encontrei um pandit54 que me guiou e instruiu por


ocasião de uma visita ao templo e ao grande “Templo carro”. Da base ao
cume o pagode é coberto de esculturas obscenas e refinadas. Conversamos
demoradamente sobre esse fato insólito; meu guia explicou que se tratava de
um meio de atingir a espiritualização. Objetei – mostrando um grupo de
camponeses jovens que olhavam essas maravilhas, de boca aberta – que
eles não pareciam a caminho da espiritualização, mas se compraziam em
fantasias sexuais. Ao que meu interlocutor respondeu: “Mas é justamente
disso que se trata! Como poderiam eles se espiritualizarem, se não
realizassem primeiro o seu carma? As imagens obscenas aí estão para
lembrar-lhes seu darma (lei); de outro modo, esses inconscientes poderiam
esquecê-lo?” [...] Quando ultrapassamos o portal do templo, meu
companheiro chamou-me a atenção para as “sedutoras” estátuas de duas
dançarinas que, com um movimento tentador das ancas, acolhiam
graciosamente o visitante. “Veja o senhor estas dançarinas, disse ele: elas
têm o mesmo significado. Naturalmente isso não nos diz respeito, pois já
atingimos um grau de consciência superior. Mas para os jovens camponeses,
representam uma advertência e um ensinamento indispensáveis”. (JUNG,
1961/2006, p. 324-325).

52
Hatha-yoga é o sistema de yoga introduzido por Yogui Swatmarama no seu livro Hatha Yoga
Pradipika, aproximadamente no século XV na Índia. “Hatha” – origina-se do sânscrito e quer dizer: “há”
– sol e “tha” – lua. Este método de yoga tem o objetivo de unir os pares opostos, como sol
(representação do positivo) e a lua (representação do negativo).
53
Jung denomina aspectos como fome, sexualidade, ação reflexão e ação de fatores dinâmicos do
psiquismo, devido à capacidade destes de transitarem como fatores tanto psíquicos quanto biológicos.
Uma nova classificação é proposta por Jung “semi physiological modalities” (JUNG, apud HENRIQUES,
2015, p. 21). Nesta categoria (modalidades semifisiológicas) entrariam a idade, as disposições
hereditárias e o sexo, no sentido de gênero. Em seu exemplo para justificar tal classificação Jung diz
que a masculinidade anatômica e a masculinidade psíquica são grandezas diferentes, assim como a
idade fisiológica e a psicológica (HENRIQUES, 2015, p. 21).
54
Um pandit ou pandita seria um estudioso, um professor, em especial um profundo conhecedor de
sânscrito. O sânscrito faz parte do conjunto de 23 línguas oficiais da Índia, porque tem importante uso
litúrgico no hinduísmo, budismo e jaínismo.
89

De acordo com Jung (1971/1990, p. 95), trazer as fantasias do plano


inconsciente para o consciente, com a participação ativa em acontecimentos que se
apresentam em um plano incomum, apresenta algumas consequências, pois
inúmeros conteúdos inconscientes são trazidos à consciência, ocasionando, assim,
uma ampliação da consciência. Desse modo, acontece a diminuição gradual da
influência dominante do inconsciente resultando em uma transformação da
personalidade. É evidente que a transformação da personalidade não altera a
predisposição hereditária do indivíduo, pois ela representa uma transformação da
atitude geral. Assim, vivenciar as fantasias no intuito de conscientizá-las, causa efeitos
profundos sobre a atitude consciente, pois determinam a assimilação das funções
inferiores e inconscientes à consciência.
Por se tratar de uma mudança essencial para o indivíduo, Jung a nomeia
função transcendente, porque acontece por meio do confronto do consciente com o
inconsciente (JUNG, 1971/1991, p. 95). É também denominada transcendente por
tornar possível a passagem de uma atitude à outra organicamente, sem perder o
inconsciente. Por isso, o inconsciente e a consciência são os dois fatores que formam
a função transcendente (JUNG, 1971/1991b, p. 74).

A consciência se vê, deste modo, confrontada, com um novo aspecto da


psique, e isto suscita um novo problema, ou modifica inesperadamente os
dados do problema já existente. Este modo de proceder dura até o momento
em que o conflito original é resolvido de maneira satisfatória. Todo esse
processo é chamado de “função transcendente”. Trata-se, ao mesmo tempo,
de um processo e de um método. A produção de compensações
inconscientes é um processo espontâneo, ao passo que a realização
consciente é um método. A função é chamada “transcendente” porque
favorece a passagem de uma constituição psíquica para outra, mediante a
mútua confrontação dos opostos. (JUNG, 1971/2013, p. 27).

Jung afirma que “o caminho da função transcendente é um destino individual”


(JUNG, 1971/1990, p. 99). Entretanto, não se trata de uma alienação do mundo, mas
de um caminho que só será possível e produtivo se os indivíduos se envolverem com
as tarefas específicas e concretas pelas quais se propõem. Ele entende que os
impulsos fazem parte da constituição integral do indivíduo, sendo assim, não devem
ser considerados como desejo e vontade arbitrários, mas como conteúdos com os
quais é necessário conviver de maneira adequada. Se forem apenas reprimidos sem
que haja alteração na sua essência, se manifestará de outra maneira com uma carga
90

de ressentimento. Assim, o que seria um impulso natural e inofensivo transforma-se


em inimigo (JUNG, 1976/1998, p. 25).

O homem que não atravessa o inferno de suas paixões também não as


supera. Elas se mudam para a casa vizinha e poderão atear o fogo que
atingirá sua casa sem que ele perceba. Se abandonarmos, deixarmos de
lado, e de modo algum esquecermo-nos excessivamente de algo, correremos
o risco de vê-lo reaparecer com uma violência redobrada. (JUNG, 1961/2006,
p. 324).

Enquanto os opostos são mantidos afastados um do outro, é evidente que não


gera conflitos, pois ambos ficam inertes. Assim, apresentam-se fundamentados em
uma consciência obstinada pela unilateralidade e distante da visão de totalidade e
liberdade dos instintos. Para Jung, a função transcendente apresenta-se como uma
das características dos opostos aproximados. Quando as posições contrárias são
confrontadas, uma tensão carregada de energia é gerada, pois um deslocamento que
parte da suspensão entre os opostos, proporciona uma nova situação e um novo nível
de ser, produzindo algo vivo. Desse modo, a consciência passa a ser continuamente
ampliada, porque o processo de confrontação com o elemento contrário abrange tudo,
sem perder a consciência de alguns fragmentos, por isso, assume o caráter de
totalidade (JUNG, 1971/1991b, p. 90-91).
Jung entende que ao tornar-se capaz de assumir de maneira sincera os seus
estados interiores e os seus atos: “assim sou, e assim atuo”, pode-se dizer que, apesar
do processo doloroso e toda resistência, o indivíduo alcançou a unidade consigo
mesmo. Neste processo, é inevitável reconhecer que nada é tão difícil quanto
suportar-se a si mesmo. “Buscavas a carga mais pesada e a ti te encontraste”
(NIETZSCHE apud JUNG, 1971/1990, p. 101). Entretanto, ele afirma que se
conseguirmos distinguir os conteúdos inconscientes, até a mais difícil realização será
possível, e o indivíduo do tipo introvertido descobre tais conteúdos em si mesmo.
Quando o indivíduo consegue compreender as relações do eu com os
processos inconscientes, ele entra “em uma verdadeira metamorfose da psique”
(JUNG, 1961/2006, p. 248). Essa transformação psíquica é que irá direcioná-lo ao
desenvolvimento que resultará na totalidade psíquica ou no encontro com o si-mesmo.
O si-mesmo seria o centro organizador de onde emana a ação reguladora do processo
psíquico, por isso representa a totalidade absoluta da psique. No entanto, é
inconsciente, ou seja, oculto. O eu, por sua vez, constitui apenas uma pequena parte
da psique, porém é quem ilumina o sistema inteiro, desse modo, torna o inconsciente
91

em consciente. Este processo é importante, pois “a totalidade inata, mas escondida


da psique não é a mesma coisa que uma realidade plenamente vivida” (VON FRANZ,
1964/2008, p. 213).
Para alcançar o estado denominado consciência superior, o hindu busca
superar a consciência inferior, que corresponde a superar o eu e chegar ao si-mesmo.
De acordo com Jung (1976/1998, p. 1-4), o “eu seria aquele fator complexo com o
qual todos os conteúdos conscientes se relacionam”. Ele entende que este fator
constitui o centro no campo da consciência, incluindo neste campo a personalidade
empírica. Desse modo, é o sujeito de todos os atos conscientes do indivíduo. Sendo
o ponto de referência no plano consciente, o eu submete-se a todos os esforços de
adaptação na medida em que estes são produzidos pela vontade 55. Enquanto o eu é
o centro da consciência, o si-mesmo representa a totalidade psíquica, porque abrange
o consciente e o inconsciente da psique humana. Assim, o si-mesmo é definido por
Jung como uma grandeza que transcende o eu, e ao mesmo tempo o inclui.

2.3.3 Buda: uma representação do si mesmo

No estudo publicado sob o título The Dreamlike World of Índia, em que Jung
relata suas impressões sobre a Índia, além de apresentar um panorama em relação à
cultura, incluindo os costumes, a arquitetura, os templos e os diversos seguimentos
religiosos, ele aponta para um expressivo símbolo entre os orientais:

Nas mesmas planícies do norte da Índia, em torno de dois mil anos antes do
tempo dos mongóis, o espírito da Índia deu à luz o seu fruto mais maduro, a
verdadeira essência de uma vida, o perfeito senhor Buda. Não muito longe
de Agra e Délhi está a colina de Sânchi com sua famosa stupa. Estivemos lá
em uma fresca manhã. A luz intensa e a extraordinária claridade do ar
deixavam ver todos os detalhes. No topo de uma colina rochosa, com vista
panorâmica sobre as planícies da Índia, vê-se um enorme globo de alvenaria,

55
“O enraizamento do eu no mundo da consciência e o fortalecimento da consciência por uma
adaptação o mais adequada possível, são de extrema importância. Neste sentido, determinadas
virtudes como a atenção, a concensiosidade, a paciência, sob o ponto de vista moral, e a exata
consideração dos sintomas do inconsciente e a autocrítica objetiva, do ponto de vista intelectual, são
também sumamente importantes” (JUNG, 1976/1998, p. 23). “Na esfera psíquica, a vontade influi na
função em virtude de que ela própria ser uma forma de energia que pode dominar ou pelo menos
influenciar outra forma. Nesta esfera, que eu defino como psíquica, a vontade é modificada, em última
análise pelos instintos – não, porém de modo absoluto, pois do contrário, nem seria vontade, que, por
definição, deve ter certa liberdade de escolha. A vontade implica certa quantidade de energia que fica
livremente à disposição da consciência. A pura instintividade não permite pensar em consciência, nem
precisa de consciência, mas, por causa de sua liberdade de escolha empírica, a vontade precisa de
uma instância superior, algo semelhante a uma consciência de si-mesmo para modificar a função”
(JUNG, 1971/1991b p. 189,190).
92

meio enterrado no chão. Segundo o Maha-Parinibbana-Sutta56, o próprio


Buda indicou o modo como seus restos mortais deveriam ser enterrados.
Tomou duas tigelas de arroz e tampou uma com a outra. A stupa visível é
exatamente a tigela superior. É preciso imaginar a que está por baixo,
enterrada. A forma arredondada, símbolo da perfeição desde os tempos
antigos, parece um monumento apropriado e expressivo para um
Tathagata57. É de simplicidade, austeridade e lucidez imensas, bem de
acordo com a simplicidade, austeridade e lucidez da doutrina de Buda.
(JUNG, 1974/1993, p. 481).

Nesta colina, onde se encontram monumentos funerários e relicários 58


construídos de acordo com o ensinamento de Buda, pois a stupa, além de ser um
monumento construído sobre os restos mortais de uma pessoa que realizou a
iluminação, também representa a mente de todos os seres iluminados, ou Budas,
Jung relata que se deparou com uma impressão e uma força inesperada que
despertaram nele a emoção que sente quando se depara com algo, pessoa ou ideia
cujo significado ainda permanece inconsciente (JUNG, 1961/2006, p. 325).
Para Jung (1974/1993, p. 481-482), estar neste lugar foi como testemunhar “o
momento da história da Índia quando o maior gênio de sua raça formulou sua verdade
suprema”. Sua grandiosa solidão mantém algo de indivisível e solene. A arquitetura,
o silêncio e a paz que ali se encontram, leva ao esquecimento das emoções humanas,
assim, fica-se além de qualquer tumulto do coração. Desse modo, mantém o que é
verdadeiramente e essencialmente indiano:

Na colina de Sânchi, o budismo revelou-se a mim numa nova realidade.


Compreendi a vida do Buda como a realidade do si-mesmo que penetrara
uma vida pessoal e a revindicara. Para o Buda, o si-mesmo está acima de
todos os deuses. Ele representa a essência da existência humana e do
mundo em geral. Enquanto unus mundus, ele engloba tanto o aspecto do ser
em si, como aquele que é reconhecido e sem o qual não há mundo. O Buda
certamente viu e compreendeu a dignidade cosmogônica da consciência
humana; por isso via nitidamente que se alguém conseguisse extinguir a luz
da consciência, o mundo se afundaria no nada. (JUNG, 1961/2006, p. 326).

É provável que Siddharta Gautama tenha vivido entre 622 e 543 a.C. Filho do
monarca Shuddhodhana e Maha-Maya, cresceu protegido pelo pai dentro dos muros
de seu palácio, em uma vida luxuosa como príncipe herdeiro. Sem conhecer as
misérias do mundo externo, sentiu curiosidade em saber como era a vida fora dos
muros do palácio. Assim, aos vinte e nove anos, por ocasião de uma festa, consegue
sair em companhia do primo Channa. Entretanto, ficou atormentado ao avistar um

56
Maha-Parinibbana-Sutta: escritura pertencente ao budismo. Diz respeito ao fim da vida de Gautama.
57
Tathagata: é um título para um Buda, alguém que realizou a iluminação.
58
Estes monumentos foram fielmente restaurados pelos ingleses.
93

homem velho, um doente e um morto. Eram situações totalmente desconhecidas para


ele. Quando perguntou para o primo o que aquilo significava, foi informado de que
eram circunstâncias da vida, e que todas as pessoas enfrentam a velhice, doença e
morte. Desse dia em diante passou a refletir que não seria possível existir alegria
enquanto tantas pessoas sofrem. Então, deixou a casa do pai, a esposa e o filho
recém-nascido, passando a viver errante pelas terras da Índia. Preferiu abandonar a
vida mundana e seguir o caminho do ascetismo. Após seis anos chegou à conclusão
de que a vida de asceta de nada valia. Então resolveu abandonar tal prática e buscar
a meditação até chegar à iluminação59. Buda elaborou aproximadamente oitenta e
quatro mil ensinamentos que provavelmente foram transmitidos oralmente aos seus
discípulos. Estes ensinamentos ou Dharma foram entendidos como doutrinas, lei,
verdade, direção60 (REDYSON, 2014, p. 264-265).
Gautama viveu sua vida, agiu movido pelo conhecimento e morreu em idade
avançada. Tornou-se uma personalidade histórica e compreensível para o homem,
como também um modelo a ser imitado. Ele dizia que todo indivíduo que vence a
cadeia dos nidanas – os fios do carma que tecem os destinos de cada um conforme
o fluir dos desejos, pode se tornar um iluminado, um Buda. Assim, ele se tornou a
imago da realização do si-mesmo (JUNG, 1961/2006, p. 327).
De acordo com Jung (1971/1991a, p. 442-443), o si-mesmo enquanto
conceito empírico refere-se ao âmbito total dos fenômenos psíquicos do indivíduo e
se manifesta como unidade e totalidade da personalidade global. Entretanto, tal
conceito é empírico somente em parte, pois a totalidade se compõe tanto de
conteúdos conscientes quanto inconscientes e engloba tanto o experimentável,
quanto o não experimentável. Assim, trata-se de um conceito transcendente e de uma
essência que continua irreconhecível e indimensionável porque só é possível ser
descrita em parte. O autor afirma que o si-mesmo em sua totalidade está para além
dos limites pessoais. Por isso, quando se manifesta, acontece somente sob a forma
de um mitologema religioso (JUNG, 1976/1988, p. 28).

59
O encontro de Siddharta com a iluminação encontra-se registrados nos ensinamentos de Buda, p.
38.
60
Os ensinamentos de Buda espalharam-se por toda a Índia e, depois de a expedição de Alexandre O
Grande, facilitar aos gregos a entrada neste país, tais ensinamentos se tornaram razoavelmente
conhecidos nas regiões mais ocidentais do mundo helenístico. Chegou à China pela primeira vez no
ano de 65, através de Tsi-Yin por ordem do imperador Ming-Ti e no Japão foi introduzido no ano de
538, durante o reinado do imperador Knmei (REDYSON, 2014, p. 270-273).
94

O critério metodológico da psicologia de Jung baseia-se em um ponto de vista


exclusivamente científico. O objeto são fatos e dados da experiência, ou seja, sua
análise consiste a partir de acontecimentos concretos. Ele parte do pressuposto que
a existência psicológica é subjetiva, pois uma ideia só pode ocorrer em um indivíduo.
Mas torna-se objetiva a partir do momento em que é compartilhada (JUNG,
1971/2012a, p. 18). “É a partir da multidão das impressões exteriores que concluímos
que existe um mundo interior” (JUNG, 1971/2013, p. 100).
A doutrina budista, construída na Índia pelo viés de suas tradições, tornou-se
uma efetiva forma de compreensão do eu de nossa era. Tal doutrina direciona o
indivíduo em suas atitudes perante a vida. O adepto do budismo parte do princípio de
não fazer o mal, e sim, beneficiar os outros seres. Se não for possível fazer o bem,
pelo menos evitar trazer sofrimento às pessoas. A ideia de um Deus prefigurado que
dirige o universo, não existe no budismo. A proposta é seguir o caminho pelo qual o
indivíduo alcançará a perfeição da sabedoria, aproximando-se da iluminação
(REDYSON, 2014, p. 257-258).
A concentração, a meditação, a imersão e a contemplação são os caminhos
a serem percorridos, e a prática da ioga o método pelo qual o indivíduo se apropria
para ir ao encontro da iluminação. O que o ocidental chamaria de inconsciente, o
oriental considera como o mais alto grau de consciência, pois ioga, literalmente, quer
dizer imposição de um jugo. Este termo designa conter as forças que prendem o
homem ao mundo, ou seja, disciplinar as forças instintivas da alma (JUNG, 1971/2013,
p. 102).

[...] a ioga como é fácil de imaginar tornou-se a expressão mais adequada e


a metodologia mais apropriada para fundir o corpo e o espírito em uma
unidade que dificilmente se pode negar, gerando assim uma disposição
psicológica que possibilita o surgimento de sentimentos e intuições que
transcendem o plano da consciência. (JUNG, 1971/2013, p. 71).

A ioga em sua origem era utilizada como um processo natural de introversão,


no qual todas as variantes individuais possíveis eram utilizadas provocando mudanças
internas e alteração da personalidade. A diversidade original das experiências
individuais fez com que, no curso dos milênios, estas introversões fossem se
organizando em métodos que seriam utilizados de diferentes maneiras (JUNG,
1971/2013, p. 74). É provável que, quando o indivíduo busca pelas formas superiores
95

da ioga, procurando atingir o samâdhi61, a finalidade seja alcançar um estado


espiritual, no qual o eu se ache praticamente dissolvido (JUNG, 1971/2013, p. 22).
Quando esteve em Kandy, uma antiga cidade real onde se conservava a
relíquia do dente sagrado de Buda, Jung conheceu o templo Dalada-Maligawa. Além
de visitar a biblioteca e conversar com monges, contemplou os textos do cânone
budista62 gravados sobre folhas de prata. Também assistiu a uma cerimônia
vespertina, na qual percebeu que o fundamento da doutrina budista não é invocar o
Buda, mas tornar-se um Buda, ou seja, alcançar a iluminação:

[...] Moços e moças espalhavam grandes braçadas de flores de jasmim diante


dos altares, cantando docemente uma prece: um mantra. Pensei que
implorassem ao Buda, mas o monge que me acompanhava explicou: Não, o
Buda não existe mais! Não é possível invocá-lo, pois está no nirvana63 [...]
Não se trata, pois, de veneração de um Buda não existente, mas de um dos
inúmeros atos de redenção de si mesmo do homem desperto. (JUNG,
1961/2006 p. 331).

O propósito de Buda era que, através das gerações, o processo de


transformação fosse alcançado. Entretanto, a transformação almejada somente seria
possível através de um grande desenvolvimento da consciência humana. Para isto,
precisaria de tempo, milhares de anos talvez. Então, o que os seus seguidores fizeram
foi acreditar. Desse modo, esse futuro pretendido seria antecipado pela intuição
religiosa (JUNG, 1974/1993, p. 488). Eles sublinham o fato de que, o homem é a única
causa eficiente de sua própria evolução superior (JUNG, 1971/2013, p. 16).
De acordo com Jung (1971/2013, p. 40), o espírito intuitivo do indiano
apresenta um caráter totalmente diferenciado. Não observam os fatos, e sim as
possibilidades. Von Franz (1971/2016, p. 52-53) pontua que, através da função
intuição, o indivíduo imagina possibilidades futuras, os germes daquilo que poderá
acontecer. Portanto, a intuição seria a capacidade de pressentir possibilidades futuras
ou potencialidades ainda não vistas nem realizadas.
A experiência de Jung na Índia trouxe-lhe uma série de reflexões. Ao observar
o cotidiano dos indivíduos em um país imenso, com uma variedade de regiões e

61
Sâmadhi – última etapa do sistema, quando se atingem a suspensão e compreensão da existência
e a comunhão com o universo.
62
Os sermões de Buda foram reunidos em um cânone chamado de Tipitaka em páli ou Tripitaka em
sânscrito. Nele contém os ensinamentos originais de Buda e estão divididos em três grupos: Vinaya
Pitaka (Livros de Disciplina), Sutta Pitaka (Livros de Doutrina) e Abhidhama (Livros Psicológicos)
(REDYSON, 2014, p. 267).
63
Nirvana – suspensão definitiva do sofrimento humano alcançado por meio da supressão do desejo e
da consciência individual.
96

grande diversidade de pessoas, percebeu que a simplicidade estava impregnada


como um perfume ou uma melodia na vida psíquica do indiano. Em toda parte ela é
sempre a mesma, mas nunca é monótona porque diversifica sempre ao infinito. “E
não há aldeia nem estrada principal que não tenha aquela árvore de largos ramos a
cuja sombra o ego não busque sua própria supressão, afogando no universo e na
unidade comum o mundo da multiplicidade das coisas” (JUNG, 1971/2013, p. 120).
Jung procurava primeiramente circunscrever e descrever os fenômenos
psíquicos tais como eles se apresentavam, sem a preocupação de encaixá-los em
uma teoria. Assim, permanecia em um nível fenomenológico, pois sua preocupação
não consistia em dizer a última palavra sobre um fato, mas descrevê-lo, convidando-
nos a penetrar na sua realidade. Então, apenas ler a respeito não teria sido suficiente
para ele. Sua visita aos árabes no deserto da África do Norte; aos índios pueblos no
Novo México; aos negros no Monte Elgon na África Ocidental; e aos orientais na Índia,
tinha a intenção de que sua psicologia fosse desvencilhada de um clima ocidental
muito limitado. Apesar de suas pesquisas comprovarem experimentalmente a teoria
dos tipos psicológicos, os resultados não foram colocados em um sistema de
pensamento fechado. Para ele, à frente de cada indivíduo, existe um mistério
incompreensível que nos coloca em uma nova descoberta. Interessava-lhe, antes de
tudo, o homem na sua realidade individual e não no campo teórico. Para tanto, seria
preciso abordar a alma humana de diferentes pontos de vista (BONAVENTURE, 1985,
p. XI-XIII).

2.4 O Ocidente e a extroversão

A psicologia analítica de Jung, sobretudo a importância central que ela atribui


ao religioso, despertou em muitos leitores o interesse pela religião. Ele ressalta a
importância de todas as formas de religião, apontando que o fenômeno se apresenta
de acordo com a função psíquica envolvida. Entretanto, seu maior arcabouço de
estudos e pesquisas está vinculado ao cristianismo. Este fato se dá por se tratar da
religião recebida como herança familiar, que era de tradição cristã luterana. Seu
interlocutor mais natural era evidentemente seu pai, pastor luterano e professor de
catecismo, que o decepcionou profundamente. Sobre isto Jung escreve:
97

[...] Certa vez, folheando o catecismo em busca de algo diferente das


explanações sentimentais, incompreensíveis e desinteressantes acerca do
“Senhor Jesus”, deparei com o parágrafo referente à trindade de Deus. Fiquei
vivamente interessado: uma unidade que, ao mesmo tempo é uma “trindade”!
A contradição interna deste problema cativou-me. Esperei com impaciência o
momento em que deveríamos abordar essa questão. Quando chegamos a
ela, porém meu pai disse: “Chegamos então à trindade, mas vamos passar
por alto este problema, pois, para dizer a verdade, não compreendo de modo
algum”. Por um lado, admirei sua sinceridade, mas por outro fiquei
extremamente decepcionado e pensei: “Ah, então é assim! Eles nada sabem
disso e não refletem! Como poderei abordar esses temas?” (JUNG,
1961/2006, p. 83).

A postura do pai diante da religião foi interpretada pelo jovem Jung como
“pobreza”. E a sua própria situação diante desta questão simplesmente
autodenominou como “tragédia”, mas uma tragédia que o levou a reconhecer a
importância da religião. A falta de esclarecimento por parte de seu pai estimulou-o à
leitura e aos estudos, não apenas da Bíblia e do catecismo, mas de outras obras,
como a filosofia, pelas quais demonstrou grande interesse. As leituras objetivavam
entender e relacionar o fenômeno religioso com as suas próprias experiências
(MACHÓN, 2016, p. 28-32).
A questão relacionada à trindade tornou-se alvo de profunda reflexão nos
estudos de Jung, entretanto não abordaremos esta discussão nesta pesquisa.
Pretendemos neste tópico apenas apontar para o tipo psíquico do homem ocidental,
e sua forma de se apropriar do fenômeno religioso. Para tanto, nos apropriaremos do
cristianismo, uma das formas de religião no Ocidente.
Entre os ocidentais, algo só se torna convincente quando constatado através
de fatos externos. Acredita-se na observação e na pesquisa da natureza, que são
executadas da maneira mais exata possível. A verdade precisa estar de acordo com
fatos objetivos, caso contrário, será uma verdade meramente subjetiva (JUNG,
1971/2013, p. 24). Pelo que parece, a realidade exterior, com sua corporeidade e seu
peso, exerce domínio sobre o espírito ocidental com força e intensidade. Por isso, ele
procura elevar-se acima do mundo (JUNG, 1971/2013, p. 113).
Para Jung, “o ponto de vista religioso representa sempre a atitude psicológica
e seus preconceitos específicos” (JUNG, 1971/2013, p. 18). No caso do Ocidente,
considera-se que o estilo é a extroversão, e o homem ocidental também é extrovertido
em sua atitude religiosa. A grande potência é o totalmente outro, absolutamente
perfeito e exterior. Buscam alcançar seu favor mediante o temor, a penitência, as
promessas, a submissão, a auto-humilhação, as boas obras e os louvores (JUNG,
98

1971/2013, p. 19). “O Ocidente cristão considera o homem inteiramente dependente


da graça de Deus ou da Igreja na sua qualidade de instrumento terreno exclusivo da
obra da redenção sancionada por Deus” (JUNG, 1971/2013, p. 18). Ou seja, a
intensidade do processo psíquico no que tange a questões religiosas, volta-se para
fora. “Falamos de extroversão sempre que o indivíduo volta seu interesse todo para o
mundo externo, para o objeto, e lhe confere importância e valor extraordinários”
(JUNG, 1971/1991a, p. 462).
Independente da estrutura, o inconsciente possui diversas formas de caráter
arcaico que se identificam com as ideias fundamentais da mitologia e as formas
análogas do pensamento. O inconsciente é a matriz espiritual, e o lugar de nascimento
das formas de pensamento pelo qual temos acesso através da função transcendente
(JUNG, 1971/2013, p. 28-29).
Jung (1971/2013, p. 24) afirma que o homem ocidental, apesar de sua
extroversão, consegue lidar e conferir expressão à psique e suas exigências, ao
apropriar-se dos símbolos, ritos e dogmas encontrados nas instituições religiosas. A
psicologia analítica, através de seu arcabouço epistemológico, apresenta
possibilidades para uma melhor compreensão daquilo que se manifesta. Assim, ela
não destrói, mas abre os olhos para a riqueza de sentido destes símbolos, ritos e
dogmas religiosos.

As minhas pesquisas psicológicas, provando a existência de certos tipos


psíquicos, bem como a sua analogia com representações religiosas
conhecidas, abrem uma possibilidade de acesso a conteúdos suscetíveis de
serem experimentados, os quais constituem incontestavelmente e de modo
manifesto o fundamento empírico e palpável da experiência religiosa. (JUNG,
2015, p. 127).

É possível observar que, enquanto função psíquica dominante, o homem


ocidental é direcionado pelo pensamento e pela extroversão, ou seja, pela
intelectualidade e os fatos objetivos. Entretanto, no que tange ao aspecto religioso, ou
à experiência religiosa, a função sentimento entra em primazia. Através desta função,
apropria-se dos símbolos e dogmas que correspondem aos arquétipos do
inconsciente coletivo. Desse modo, o que é expresso através do inconsciente não é
uma situação arbitrária, também não corresponde à mera opinião, mas são fatos que
podem ser demonstrados empiricamente (JUNG, 2015, p. 130).

2.4.1 O símbolo de Cristo: o arquétipo do si-mesmo


99

O símbolo arquetípico representativo da Igreja Cristã é a imagem dogmática


de Cristo (JUNG, 2015, p. 131). Um dos exemplos utilizados por Jung, nesta
representação arquetípica, é o momento da missa em que acontece a consagração 64.
A partir deste momento, “Cristo está presente no tempo e no espaço” (JUNG,
1971/2012b, p. 15). Porém, não se trata de um reaparecimento, pois a consagração
não é a repetição de um ato histórico e único. Essa presença é a expressão visível de
algo que perdura eternamente.

[...] O “símbolo” não é um sinal arbitrário e intencional de um fato conhecido


e compreensível, mas uma expressão de caráter reconhecidamente
antropomórfico (por isso mesmo, limitada, válida apenas em certas
condições) de um conteúdo sobrenatural e, por esta razão, só compreensível
dentro de certas condições. O símbolo é, na verdade, a melhor expressão
possível, mas está muito abaixo do nível do mistério que significa. (JUNG,
1971/2012b, p. 15-16).

Enquanto representação de uma realidade complexa, o símbolo ultrapassa a


categoria da linguagem humana (JUNG, 1971/2012b, p. 70). Para a psicologia
analítica, assim como a figura de Buda, o símbolo de Cristo é de grande importância,
porque pode representar o símbolo mais desenvolvido e diferenciado do si-mesmo.
Esta estimativa é possível, pois a amplitude e o conteúdo dos predicados atribuídos
ao Cristo – uma personalidade humana e única, ligada à natureza divina indefinível –
correspondem à fenomenologia psicológica do si-mesmo de maneira incomum,
apesar de não abranger todos os aspectos deste arquétipo (JUNG, 2015, p. 133).
O si-mesmo representa a união dos opostos e, se não há vivência dos
opostos, não existe experiência de totalidade. Logo, não é possível ter acesso interior
às formas sagradas. Se Cristo representa apenas o bem, e o demônio é a
representação do mal, então a oposição entre o luminoso e o bom, por um lado, e o
escuro e mau, por outro, permanece em conflito aberto, tornando-se o verdadeiro
problema do mundo. Assim, é evidente que, ao insistir no homem pecaminoso e no
pecado original, o cristianismo tem a intenção de abrir em cada indivíduo o abismo da
contradição do mundo. De qualquer maneira, o si-mesmo é o paradoxo absoluto, uma

64
Na missa romana a consagração constitui o ponto culminante, o momento em que se dá a
transubstanciação ou transformação da substância do pão e do vinho no corpo e no sangue do Senhor.
As fórmulas da consagração são a consagração do pão e a consagração do vinho (JUNG, 1971/2012b,
p. 24).
100

vez que representa a tese, a antítese e a síntese em todos os aspectos (JUNG, 2015,
p. 133-134).

[...] a religião empobrece interiormente quando perde ou reduz seus


paradoxos; no entanto, a multiplicação destes últimos a enriquece, pois só o
paradoxal é capaz de abranger aproximadamente a plenitude da vida. A
univocidade e a não contradição são unilaterais e, portanto, não se prestam
para exprimir o inalcançável. (JUNG, 2015, p. 129).

É na concepção simbólica da cruz ou da crucificação que se encontra a união


dos opostos. A cruz é um dos símbolos mais arcaicos que passou por várias
transformações ao longo da história da humanidade. Antigamente, sua forma mais
comum era a grega ou equilateral, com o passar do tempo, o centro deslocou-se para
o alto até que tomou a forma latina, com a estaca e o travessão tornando-se o símbolo
central na arte cristã. Em termos espirituais, essa transformação que culminou no
advento do cristianismo, simboliza a tendência de deslocar da terra o centro do
homem e sua fé, elevando-o a uma esfera superior ou espiritual. Essa tendência surgiu
do desejo de traduzir em ação as palavras de Cristo: “Meu reino não é deste mundo”
(João 18,36). A vida terrena, o mundo e o corpo eram, portanto, forças a serem
vencidas (JAFFÉ, 1964/2008, p. 328-329).
Fazendo alusão à interpretação mística da cruz encontrada no texto de Atos
de João65, Jung (1971/2012b, p. 104-105) aponta para a dicotomia do universo
representada por este símbolo. O centro tem como definição, a limitação do universo,
também a totalidade de algo definitivo. A divisão em direita e esquerda (luminoso e
tenebroso), e também o alto e o baixo (o celeste e a raiz mais profunda), indica de
maneira inequívoca, que no centro, tudo está contido. E consequentemente, Cristo,
através da crucificação, reúne e compõe todas as coisas, atingindo assim a união dos
opostos (JUNG, 1971/2012b, p. 104-105). Acompanhemos uma parte da visão de
João descrita por Jung:

[...] Esta cruz [foi chamada de] Logos, Nous, Jesus, Cristo, Porta, Caminho,
Pão, Semente, Ressurreição, Filho, Pai, Pneuma, Vida, Verdade, Fé, Graça.
Isto em relação aos homens; mas, considerada em si mesma e segundo o
vosso modo de falar, ela é a fixação dos limites do universo e a consolidação
daquilo que é instável [...] a harmonia da sabedoria ou, mais precisamente,
da sabedoria na harmonia. Mas à direita e à esquerda há (lugares), forças,
violências, dominações, demônios, energias, ameaças, explosões de ira,
diabo, satanás e a raiz mais profunda de onde brotou a natureza de tudo o

65
O Evangelho de Atos de João, também conhecido como Evangelho Gnóstico de João é reprovado
pelas igrejas católicas e protestantes por não ser considerado canônico.
101

que existe. Foi a cruz, portanto, que uniu a si todo o universo, por meio da
palavra, e fixou os limites do reino criado e em seguida, como unidade que é,
fez brotar tudo o que existe (JUNG, 1971/2012b, p. 101-102).

A crucificação foi um acontecimento que representou a natureza


incognoscível de Cristo, ou seja, sua personalidade superior, o homem perfeito. A
contemplação da morte cósmica e sacrifical de Cristo reunia fatos psíquicos e
análogos que deram margem a uma rica formação de símbolos. No âmbito dos fatos
psíquicos, esse símbolo possui a função de um centro gerador de ordem, ou seja,
simboliza a ordem em oposição ao caos. Numa divisão clara entre o fato histórico e
perceptível aos sentidos que acontece na terra, e o acontecimento visionário e ideal
que se passa no alto, têm-se, de um lado, a cruz de madeira enquanto instrumento de
tortura e, de outro, a mesma cruz representando a iluminação (JUNG, 1971/2012b, p.
103-105).

Quando chegaram ao lugar chamado Calvário, ali o crucificaram. [...] Já era


quase a hora sexta, e, escurecendo-se o sol, houve trevas sobre toda terra
até a hora nona. E rasgou-se pelo meio o véu do santuário66. Então Jesus
clamou em alta voz: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito! E, dito isto,
expirou. (Evangelho de Lucas 23,33-46)

O véu do santuário rasgou-se ao meio, simbolizando a cortina dos


condicionamentos temporais e eternos, que separa o espírito humano da visão do
eterno, sendo rasgada (JUNG, 1971/2012b, p. 15). “O argumento ontológico não é um
argumento e nem prova, mas a simples demonstração psicológica de que existe uma
classe de pessoas para a qual uma ideia determinada tem eficácia e realidade”
(JUNG, 1971/1991a, p. 54).
Na opinião de Jung (1971/2012a, p. 63-64), até a mais sutil das teorias, sob a
ótica da verdade psicológica, traz em si menor valor do que um dogma religioso. Isto
acontece porque, enquanto uma teoria é forçosa e exclusivamente racional, o dogma,
por meio de sua imagem, exprime uma totalidade irracional. Este representa uma
expressão da alma muito mais completa do que uma teoria científica. Uma teoria
científica com seus conceitos abstratos mal consegue exprimir o que é vivo porque é
formulada apenas pela consciência. O dogma, por sua vez, ao apropriar-se da forma

66
O véu do Santuário ou Santo dos Santos. Cortina que era utilizada no templo de Jerusalém para
separar o local onde o sumo sacerdote entrava uma vez a cada ano, no dia da Expiação, para borrifar
o sangue do sacrifício. De acordo com o texto bíblico, quando Cristo expirou, essa cortina rasgou-se
de alto a baixo (Mc 15,37), simbolizando que a comunhão entre Deus e o homem foi restituída por meio
de Cristo (Bíblia de Estudo da Reforma, 2017, p. 1665).
102

dramática do pecado, da penitência, do sacrifício e da redenção, consegue


representar adequadamente o processo vivo do inconsciente.

2.4.2 A experiência do numinoso: transformação da consciência

A religião é uma relação voluntária ou involuntária com o valor supremo. Isto


quer dizer que uma pessoa pode adotar conscientemente ou ser dominada
inconscientemente por um fator psíquico repleto de energia. “O fator psicológico que,
dentro do homem, possui um poder supremo, age como “Deus”, porque é sempre ao
valor psíquico avassalador que se dá o nome de Deus” (JUNG, 1971/2012a, p. 102).
Jung apropriou-se do vocábulo latino religere, e do conceito de numinoso de
Rudolf Otto para definir o termo religião; assim descreve: “Religião é – como diz o
vocábulo latino religere – uma acurada e conscienciosa observação daquilo que
Rudolf Otto acertadamente chamou de numinoso” (JUNG, 1971/2012a, p. 19). Esta
definição, na visão de Jung, é válida para todas as formas de religião, inclusive as
mais arcaicas. Ele entende que toda confissão religiosa se funda originalmente na
experiência do numinoso por um lado e, por outro, na fidelidade, na fé e na confiança
que estão relacionadas a uma determinada experiência de caráter numinoso, e esta
experiência resulta na transformação da consciência. “Poderíamos, portanto, dizer
que o termo “religião” designa a atitude particular de uma consciência transformada
pela experiência do numinoso” (JUNG, 1971/2012a, p. 21).
Conforme apresentado no primeiro capítulo desta pesquisa, Jung considera
que os fenômenos religiosos, que se apresentam de diversas maneiras, estão
relacionados à numinosidade do arquétipo. Ou seja, a experiência numinosa, é uma
força inconsciente com valor emocional tão intenso, que se impõe ao eu consciente e
à sua vontade. Desse modo, apropria-se do conceito de numinoso a fim de relacionar
a experiência arquetípica do inconsciente coletivo, e a experiência religiosa. Ele
pressupõe que as imagens simbólicas do self possuem uma numinosidade que são
representações arquetípicas significativas para a consciência, produzindo nela
especial modificação.
O autor baseia seu ponto de vista em fatos e dados da experiência, ou seja,
em acontecimentos concretos. Ocupa-se da existência de determinada ideia, sem
preocupar-se se é verdadeira ou falsa. Entretanto, considera que em qualquer sentido,
a ideia é psicologicamente verdadeira na medida em que existe. Para ele, se a
103

existência psicológica é subjetiva, a ideia só pode ocorrer no indivíduo. Mas torna-se


objetiva, na medida em que é compartilhada com outros indivíduos. Neste sentido, faz
alusão à experiência religiosa do Apóstolo Paulo, por considerar este fenômeno um
dos exemplos “mais frisantes” para compreender a experiência de caráter numinoso
(JUNG, 1971/2012a, p. 21).
Lançaremos mão deste fenômeno religioso que se encontra registrado no
livro de Atos dos Apóstolos capítulo 9, versículos de 1-11, a fim de trazer uma reflexão
sobre a experiência religiosa e o processo de individuação. Vale ressaltar que, ao nos
apropriarmos da referida experiência, não temos a intenção de realizar uma
compreensão teológica, tampouco exegética, de Paulo. O que pretendemos é apenas
compreender o processo de individuação a partir da experiência religiosa, pois, este
processo que culmina na transformação ou desenvolvimento psíquico é de ordem
pessoal e profunda. Assim, pode ocorrer com qualquer indivíduo, de qualquer cultura
ou segmento religioso.

2.4.3 Experiência Religiosa e Processo de Individuação: o Apóstolo Paulo

“Transformai-vos pela renovação do vosso entendimento.”


Romanos 12.2

O apóstolo Paulo, conhecido como Saulo de Tarso devido à região na qual


cresceu, herdou de seu pai, além da arte de fabricar tendas, a tradição da religião 67.
Estudou a Torá68 e se tornou um seguidor zeloso da lei judaica 69. No entanto, parece
que algo não estava bem com Saulo, pois desenvolveu certa aversão pelos

67
O apóstolo Paulo cresceu como Saulo de Tarso, na Cilícia (At 9.11). Seu pai era um judeu da diáspora
e um homem livre na sociedade romana (At 16.37-38;22.25-29). Aprendeu a arte de fabricar tendas (At
18,3), mas também estudou as Escrituras como fariseu, em Jerusalém, aos pés do rabino Gamaliel, o
Ancião (At 22.3). Gamaliel era neto do rabino Hillel, conhecido por ideias avançadas em relação aos
prosélitos e por fundar uma importante escola de pensamento judaico, Beth Hillel (cf. Bíblia de Estudo
da Reforma, 2017, p. 1878).
68
Escritura sagrada dos judeus.
69
Paulo relata sobre seu passado judeu em Filipenses 3.5: “Circuncidado ao oitavo dia, da raça de
Israel, da tribo de Benjamim, hebreu, filho de hebreus, quanto à (compreensão da) lei, fariseu, quanto
ao zelo, perseguidor da Igreja, quanto à justiça que há na lei, irrepreensível”. Como seus antepassados,
ele se sentia também na diáspora comprometido com as tradições de sua terra-mãe Palestina. Em
Gálatas 1.14, Paulo enfatiza seu zelo particular pela observância das tradições herdadas pelos pais:
“No judaísmo, eu sobressaía a muitos compatriotas da minha idade, por ser extremamente zeloso por
minhas tradições paternas” (SCHNELLE, 2010, p. 70-71).
104

seguidores de Jesus, a ponto de persegui-los cruelmente. Conforme suas palavras


registradas em Atos dos Apóstolos 26.9-11:

[...] Na verdade, a mim me parecia que muitas coisas devia eu praticar contra
o nome de Jesus, o Nazareno, e assim procedi em Jerusalém. Havendo eu
recebido autorização dos principais sacerdotes, encerrei muitos dos santos
nas prisões e contra estes dava o meu voto, quando os matavam. Muitas
vezes, os castiguei por todas as sinagogas, obrigando-os até a blasfemar. E
demasiadamente enfurecido contra eles, mesmo por cidades estranhas, os
perseguia.

Enquanto um judeu seguidor zeloso da lei, Saulo apropriou-se de seus cargos


e títulos70 desenvolvendo uma personalidade hostil. Neste relado, é possível observar
o ego totalmente identificado à persona, tornando-a excessivamente valorizada, ao
ponto de, psicologicamente, Saulo assumir uma posição exigente e inflexível. Talvez,
sua consciência não conseguisse perceber as investidas do inconsciente, ou os
elementos psíquicos inconscientes não estavam compatíveis com a forma de vida
conscientemente escolhida, então, apresentavam-se de maneira impetuosa e
descontrolada à consciência.
Neste caso, a tendência é projetar estes elementos inconscientes, ou as
sombras, em outras pessoas. Por isso, é provável que a perseguição de Saulo aos
cristãos, esteja relacionada a estas projeções. Resistências ligadas às projeções,
muitas vezes impedem que consciente e inconsciente sejam integrados à
personalidade. Como não é o sujeito quem projeta, e sim o inconsciente, essas
resistências incidem num esforço moral que vai além dos limites habituais do
indivíduo. Conscientizar-se da sombra é reconhecer os aspectos obscuros da
personalidade, sendo que, este ato, é a base indispensável para qualquer tipo de
autoconhecimento (JUNG, 1976/1998, p. 6-7).
Saulo solicitou ao sumo sacerdote71 autorização para ir até as sinagogas da
cidade de Damasco, a fim de perseguir e trazer para Jerusalém, como prisioneiros,
todos os cristãos que ele encontrasse, tanto homens como mulheres. No entanto, no
caminho foi tomado por uma súbita experiência:

70
Paulo era um cidadão do Império Romano, criou-se numa importante metrópole cultural do Império,
submeteu-se a uma intensiva formação farisaica (possivelmente em Jerusalém). Sendo um judeu da
diáspora e fariseu de formação profissional, ele viveu de acordo com a Torá. Ao mesmo tempo, sendo
um cidadão da polis de Tarso, que falava grego e possuía a cidadania romana, não estava isento da
educação e do espírito de seu tempo (SCHNELLE, 2010, p. 92).
71
Líder da religião judaica.
105

[...] ao aproximar-se de Damasco, subitamente uma luz do céu brilhou ao seu


redor, e, caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: Saulo, Saulo, por que
me persegues? Ele perguntou: Quem és tu, Senhor? E a resposta foi: Eu sou
Jesus, a quem tu persegues. (At 9.3-5).

Os homens que com ele estavam ouviram a voz, mas não viram ninguém.
Então pararam e ficaram emudecidos em êxtase. Saulo, que havia caído, levantou-
se, mas não conseguia ver. Precisou, então, ser conduzido até Damasco, porque a
voz lhe disse que deveria entrar na cidade e lá encontraria alguém que lhe diria o
que fazer. Ficou três dias sem comer e beber e sem enxergar.
Para Otto, quando o indivíduo passa por uma experiência de caráter
numinoso, é tomado por um sentimento confesso de dependência, que ele
denomina de sentimento de criatura72 [...] “o sentimento da criatura que afunda e
desvanece em sua nulidade perante o que está acima de toda criatura” (OTTO,
1917/2017, p. 41). Gerardus van der Leeuw (1964, p. 651-652) aponta que a atitude
do homem diante dessa experiência é, em princípio, um estranhamento que Otto
propôs identificar como numinoso e, posteriormente, uma fé. Jung enfatiza que a fé
implica, potencialmente, no sacrifício do intelecto, mas nunca no sacrifício de
sentimentos (JUNG, 1971/2013, p. 13).
Após a experiência no caminho de Damasco, Saulo passou por momentos
difíceis. No entanto, recebeu a visita de um discípulo chamado Ananias, que através
de uma visão recebeu a incumbência de levar a Saulo ajuda espiritual. Este discípulo,
ainda que temeroso, pois conhecia a fama de Saulo como perseguidor dos cristãos,
foi ao lugar em que estava, impôs sobre ele as mãos e disse: “Saulo, irmão, o Senhor
me enviou, a saber, o próprio Jesus que te apareceu no caminho por onde vinhas,
para que recuperes a vista e fiques cheio do Espírito Santo” (At 9.17). Imediatamente,
caíram como que escamas de seus olhos, e recuperou a visão, depois se alimentou e
sentiu-se fortalecido (At 9.17-19).
Quando conteúdos inconscientes começam a se tornarem conscientes, as
escamas dos olhos começam a cair e a pessoa passa a reconhecer aspectos de sua
personalidade que, por várias razões, seria preferível não olhar muito de perto. Assim,
o indivíduo entra em um período de silêncio e afastamento, começando o processo

72
“O sentimento de criatura é de alguma maneira um sentimento de depreciação diante de uma
realidade majestosa. É o estado de alma que se sente finito, aniquilado diante do objeto numinoso que
é de tal natureza que cativa e emudece a alma humana” (BIRCK, 1993, p. 29).
106

lento e doloroso de autoconhecimento ou individuação (VON FRANZ, 1964/2008, p.


222-223).
Ao conscientizar-se de suas próprias convicções, ou de seus conteúdos
inconscientes, o indivíduo começa a abrir um novo caminho pelo terreno ainda não
desbravado. Assim, vai retornando às questões fundamentais de seu próprio ser e
conhecendo sua diferenciação. Nisto consiste o avanço que começa com a
individuação e não depende de qualquer autoridade ou tradição (JUNG, 1971/1997,
p. 57).
Após os acontecimentos narrados acima, Saulo não se aconselhou com mais
ninguém, também não voltou para Jerusalém, onde estavam os que foram discípulos
antes dele. Foi para a Arábia, depois retornou para Damasco onde permaneceu por
três anos (Gl 1.17).
De acordo com Schnelle (2010, p. 116-117), a experiência na estrada de
Damasco, com a participação de Cristo no evento, marcou de maneira abrangente a
vida de Paulo. Uma experiência de transcendência que o levou a um novo
entendimento, e uma nova missão. Antes, ele entendia o anúncio de um messias
crucificado apenas como uma provocação, mas esta experiência o conduziu a uma
nova compreensão.73

[...] a experiência de Damasco conduziu-o à compreensão de que havia na


cruz um potencial de sentido inesperado. Agora, o pensamento biográfico
une-se a perspectivas universalistas, pois Paulo encontrava-se diante da
tarefa de construir, a partir da experiência e da interpretação de um
acontecimento individual do passado, um edifício de sentido que oferecia
orientação no presente e esperança para o futuro. Um mero fato histórico em
si, como a cruz, ainda não abarca sentido, antes é necessária uma atuação
construtiva para “revestir fatos de sentido e significado, para fazer do caos da
facticidade absurda e sem sentido, o cosmos de uma história repleta de
sentido e significado”. (SCHNELLE, 2010, p. 117-118).

Paulo foi impulsionado a descer às profundezas da psique. Quando isto


acontece, o absoluto se transforma na pessoa interior e o transcendente na imanência
total (HILLMAN, 1984, p. 47). Experiências como esta implicam em renovação e
crescimento, tornando possível a existência de um sentido. A experiência se
transforma em fato e a questão religiosa adquire uma conotação espontânea, pois a

73
Os profetas do antigo testamento anunciavam a vinda de um de um messias que viria restaurar o
povo de Israel. O povo judeu aguarda até hoje por esse messias prometido.
107

alma é reencontrada, oferecendo significação aos mitos, símbolos, formas e provas


básicas (HILLMAN, 1984, p. 65-67).
Nota-se que a descrição de Paulo: “Eu vivo, mas já não sou eu, mas o Cristo
que vive em mim” (Gl 2.20) relaciona-se a um novo estado de consciência, após uma
profunda transformação religiosa. Neste novo estado, a consciência não mudou; o que
mudou foi apenas a consciência de alguma coisa, nisto consiste uma experiência de
transformação. É como virar a página de um livro, vê-se com os mesmos olhos, mas
a figura é diferente (JUNG, 1971/2013, p. 86).
Através da persona, a pessoa pode representar isto ou aquilo, ou se esconder
através de uma muralha protetora. Porém, quando conteúdos inconscientes irrompem
na consciência com força sugestiva, não é fácil descrever de maneira compreensiva.
Talvez, conforme sugere Jung, uma das melhores maneiras para compreender essas
irrupções seria atentar para as conversões religiosas. Ainda que, em alguns casos, a
mudança ou a predisposição a ela sejam produzidas por fatores externos, estes nem
sempre explicam suficientemente a mudança de personalidade, porque tal mudança
é proveniente de conteúdos internos e subjetivos (JUNG, 1971/1990, p. 50-51).
A meta da individuação é despojar-se dos invólucros falsos da persona
(JUNG, 1971/1990, p. 50). Neste processo que culmina na totalidade psíquica, o
indivíduo se desfaz de suas máscaras e passa a se descobrir, se conhecer. Ele retira
as projeções que foram lançadas no mundo externo e as integra de volta a si mesmo.
O si-mesmo enquanto compensação entre conflitos internos e externos é uma
formulação cuja finalidade será atingida aos poucos e com muito esforço. Assim, ele
representa a meta da vida e a expressão plena da combinação consciente e
inconsciente, imanente e transcendente pela qual damos o nome de indivíduo.
Sobretudo, não se trata do indivíduo em sua singularidade, mas do indivíduo que no
grupo completa o outro e compõe a imagem plena. Desse modo, o processo de
individuação não busca a perfeição, mas a plenitude (JUNG, 1971/1990, p. 114).
A intuição de Jung aponta para o ponto de referência em que constitui o
aspecto decisivo da vida humana – o transcendente. Porém, [...] “a pergunta decisiva
para o ser humano é esta: tens o infinito como referência? Este é o critério de sua
vida. [...] quando alguém entende e sente que está conectado ao ilimitado já nesta
vida, modificam-se seus desejos e sua atitude” (JUNG, apud Dorst, 2015, p. 21).
108

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A paixão de Jung por conhecer a alma humana levou-o a longas viagens.


Destas viagens, trouxe a descoberta da significação cósmica da consciência.
Impressionou-o observar que, entre alguns povos, o nascer do sol representava um
momento de emoção e significações secretas, mas a escuridão da noite deixava-os
inquietos e medrosos, receando perigos misteriosos. Quando o sol chegava, tudo se
recuperava, tornando-se belo e bom novamente. Jung comparou a escuridão noturna
ao inconsciente e a consciência ao anseio pela luz (SILVEIRA, 1981, p. 18-19).
Através das experiências compartilhadas por Jung e apresentadas nesta
pesquisa, foi possível perceber que toda forma de religião traz em sua constituição
ética e cultural alguma tendência arcaica. Observamos que as misteriosas forças
instintivas que através do processo religioso contribuem para o desenvolvimento
humano provêm desta relação com o arcaico (JUNG, 1971/1991a, p. 236). Assim, vale
ressaltar que as teorias são meros recursos para se apreender, acessar e vivenciar
condições e comportamentos religiosos que existem a priori e são provenientes de um
tempo e espaço que estão além de construções teóricas. Ainda que a alma seja
considerada uma função psíquica, ela se concretiza e se torna plena no envolvimento
religioso.

A atitude simbólica da psicologia que se origina na experiência da alma leva


ao sentido da presença oculta e numinosa do divino, enquanto fé em Deus
conduz à visão simbólica da vida, na qual o mundo é pleno de significações
e de “sinais”. É como se a alma não escolhesse entre psicologia e religião
(HILLMAN, 1984, p. 67).

As diversas culturas, com distintos conteúdos religiosos pelos quais Jung teve
acesso, expressam atitudes espontâneas e autônomas representadas por crenças e
devoções cotidianas que constituem o homem religioso. A dinâmica funcional
parcialmente consciente da psique leva-nos à compreensão de que a religião e a
experiência religiosa fundamentam a experiência psíquica. Quando temos acesso aos
elementos autônomos naturais e primordiais, temos acesso ao conhecimento que é
determinado pelo transcendente. Ao apropriarmo-nos das experiências descritas por
Jung, encontramos, através de suas narrativas, a possibilidade de conhecer diferentes
modos de apreensão do fenômeno religioso.
O arcabouço teórico apresentado nesta pesquisa proporcionou a
compreensão desta relação entre fenômeno religioso e fenômeno psíquico. Assim, os
109

conceitos de energia psíquica, inconsciente coletivo, função transcendente e processo


de individuação foram fundamentais para o entendimento dos conteúdos
inconscientes.
Ao tomarmos ciência das funções psíquicas enquanto função da alma,
tivemos a possibilidade de compreender como acontece esta relação no plano
consciente. Além disso, os tipos e as funções psíquicas apontam para as infinitas
diferenças existentes entre os seres humanos. Por esta razão, a apropriação do
fenômeno religioso, uma vez que está intrinsecamente ligado às funções psíquicas, é
encontrado em extraordinária diversidade. Neste sentido, ressaltamos a importância
em observar, compreender e valorizar todas as formas de religião.
Recorremos, então, a experiências vivenciadas por Jung em épocas e locais
distintos, tais como, os árabes no deserto do Saara, na África do Norte, os nativos do
monte Elgon, na África Ocidental, os índios pueblos, no Novo México, o hinduísmo e
o budismo, na Índia, e o cristianismo, na Europa, evidenciando como o fenômeno
religioso encontra-se nas mais diversas representações culturais.
Observamos que tanto entre os árabes no deserto do Saara, na África do
Norte, quanto entre os nativos do monte Elgon, na África Oriental, aparece a função
sensação na relação com o fenômeno religioso. Entretanto, enquanto no deserto do
Saara evidenciava-se a sensação extrovertida, ou seja, que eram práticos e objetivos,
no monte Elgon, o fator subjetivo ganhava relevância e, então, apresentava-se a
função sensação introvertida. Estes demonstravam uma percepção extremamente
apurada e eram capazes de absorver cada detalhe.
A função sentimento aparece em primazia entre os índios pueblos. Eles se
relacionavam com a ideia de divindade e com o fenômeno religioso de maneira
concreta, porém, procuravam manter os mistérios de suas crenças em segredo bem
preservado, a fim de impedir a profanação e subsistirem enquanto coletividade
personalizada. Diante destas observações, compreende-se que se trata de um
sentimento proveniente do objeto para o sujeito, intensivo e não extensivo,
evidenciando então o tipo sentimento introvertido.
Na Índia, a introversão apresenta-se enquanto atitude geral no estilo do
homem oriental. Esta característica evidencia-se porque a concentração, a meditação,
a imersão e a ioga são suas práticas mais comuns. Aqui, apropriamo-nos de duas
vertentes religiosas: o hinduísmo e o budismo. No hinduísmo, busca-se atingir o
estado superior da consciência, ou seja, a transcendência do eu. A doutrina budista,
110

por sua vez, direciona o indivíduo em suas atitudes perante a vida. Sua proposta
consiste em seguir o caminho pelo qual o indivíduo alcançará a perfeição da
sabedoria, aproximando-se da iluminação. Em ambas as vertentes, a função intuição
entra em evidência, pois, neste caso, não se atenta para os fatos e, sim, para as
possibilidades.
Entre os ocidentais a realidade exterior atua com força e intensidade. Algo se
torna convincente somente quando constatado através de fatos externos, pois,
geralmente, são direcionados pela intelectualidade e fatos objetivos, ou seja, pelo
pensamento e extroversão. Podemos então considerar que o estilo do Ocidente é a
extroversão e sua principal característica é buscar a elevação. Apresentamos o
cristianismo enquanto uma de suas vertentes religiosas, apontando que, neste caso,
o homem ocidental também é extrovertido em sua atitude religiosa, pois a intensidade
do processo psíquico volta-se para fora, porém, é a função sentimento que ganha
primazia neste caso. Através desta função, apropriam-se dos símbolos, ritos e
dogmas encontrados nas instituições religiosas que correspondem aos arquétipos do
inconsciente coletivo. Assim, conseguem lidar e conferir expressão à psique e suas
exigências.
Observamos que em algumas das culturas aqui representadas, os hábitos
culturais são bem arcaicos e o fenômeno religioso se apresenta de maneira natural,
numa relação intrínseca entre o homem e a natureza. Entretanto, Jung constatou que
não existe nenhuma indicação de que o homem arcaico pense, sinta ou perceba de
maneira diferente do contemporâneo. O que existe são culturas diferentes com
pressupostos diferentes (JUNG, 1974/1993, p. 60-61). Em cada indivíduo existe uma
linguagem comum, baseada em experiências idênticas e arquetípicas. Por isso, o
campo da realidade psíquica imanente a cada um transcende as diferenças pessoais,
independente de pressupostos culturais, religiosos e étnico raciais (HILLMAN, 1984,
p. 69).
Vale ressaltar que, ainda que o fenômeno religioso venha se manifestar por
meio das funções psíquicas, a experiência religiosa em si é algo que transcende e,
por isso, pode não se submeter a meros conceitos teóricos. Uma experiência autêntica
leva o indivíduo à sua função psíquica inferior ou inconsciente. Nisso consiste a ponte
entre consciente e inconsciente e o meio para restaurar conexões de vital importância
na realidade psíquica (SILVEIRA, 1981, p.55). Quando a principal função psíquica do
indivíduo junto às funções auxiliares entra em equilíbrio com a função inferior, nada
111

mais é apenas pensamento, sentimento, percepção ou intuição. Um estágio mais ou


menos do mesmo nível entre as duas camadas é produzido e algo novo surge
proporcionando uma atitude completamente diferente e inédita em relação à vida
(VON FRANZ, 2016, p. 35).
Apesar das pesquisas comprovarem experimentalmente a teoria de Jung, os
resultados não foram colocados em um sistema de pensamento fechado, pois, à frente
de cada indivíduo, existe um mistério incompreensível que nos coloca em uma nova
descoberta. Desse modo, buscou-se compreender essa relação com o transcendente
a partir de relatos de experiências como de Jacob Boehme e o Apóstolo Paulo. Para
o autor, são experiências como estas que culminam no processo de individuação ou
no encontro com o si mesmo. Por isso, é possível acontecer com qualquer indivíduo
de qualquer cultura ou segmento religioso.
O mito religioso é considerado por Jung (1973/1995, p. 220) uma das maiores
e mais importantes aquisições do homem. Ele oferece a segurança e a força
necessária para lidar com a imensidão do universo. Quando observado do ponto de
vista do realismo não apresenta nenhuma verdade concreta, mas torna-se verdadeiro
porque, psicologicamente, representa a ponte para as grandes conquistas da
humanidade. A psicologia enquanto ciência precisa abster-se de quaisquer
afirmações metafísicas. Porém, a verdade psicológica não exclui a verdade
metafísica, mas se apropria da psique e seus conteúdos enquanto objeto de pesquisa
por reconhecer a eficácia de ambos quando se trata de realidades efetivas.
Não é possível observar e julgar a alma humana sob um ponto de vista
aritmético externo, por isso, numa perspectiva objetiva, nada sabemos sobre ela.
Porém, ao criar os símbolos, ela representa a realidade subjetiva, cuja base é o
arquétipo inconsciente e a imagem aparente provém das ideias que o consciente
adquiriu. Nesse sentido, apresentamos Buda enquanto figura representativa do
budismo, e Cristo, do cristianismo, destacando as características de ambos e
apresentando-os enquanto símbolos representativos do arquétipo do si mesmo.
Os arquétipos são conteúdos estruturais numinosos e inconscientes, porém,
são capazes de atrair os conteúdos conscientes adequados a eles por possuírem
autonomia e energia específica. Os símbolos, por sua vez, atuam como
transformadores, agindo de maneira sugestiva, e graças ao númeno, energia
específica do próprio arquétipo, é convincente, exprimindo ao mesmo tempo o
112

conteúdo da convicção. Assim, eles naturalmente produzem fé (JUNG, 1973/1995, p.


221).
Podemos compreender que a descoberta da alma através do inconsciente
redesperta a presença do mito interior e de um sentido de estarmos destinados à
existência de uma força transcendente que chama, escolhe ou expressa algo através
de nós. A experiência da alma, ou o encontro de Deus com o homem na alma, seria,
neste caso, a imagem de Deus na psique enquanto algo conhecido, experimentado,
sentido, intuído, que o indivíduo venha a formular ou representar. Trata-se,
inicialmente, de uma experiência, seguido de um conceito. Sobretudo, tal experiência
ou imagem não é única e nem sempre a mesma. No transcurso da vida de qualquer
indivíduo, ela sofre transformações com diferenças significativas de uma pessoa para
outra. Esta força que dá significação e conexão interior existe em nós como um
símbolo da humanidade, tornando-se comum a todos os homens. Ela remitologiza o
curso dos acontecimentos e devolve a numinosidade às coisas do mundo (HILLMAN,
1984, p. 68-69).
A partir do material pesquisado e apresentado nesta pesquisa, foi possível
constatar que o interesse de Jung sempre esteve voltado para as experiências que
estão além daquelas situadas nas confissões, instituições e tradições religiosas. De
acordo com Dorst (2015, p. 18), ele buscou demonstrar repetidamente que, para se
conhecer a realidade por detrás da realidade ou a transcendência da psique, faz-se
necessário reconhecer que tanto o mundo físico e psíquico, quanto corpo e espírito,
podem ser compreendidos e apercebidos com os sentidos e o mundo invisível do
inconsciente.
O tema O Transcendente no Imanente, assim como todo arcabouço teórico e
as experiências empíricas compartilhadas, buscam apontar para a linguagem possível
entre o ser humano e algo que está para além dele. Entretanto, apresentamos aqui
apenas uma síntese deste tema que acreditamos ser extremamente abrangente e
relevante na compreensão desta relação entre fenômeno religioso e fenômeno
psíquico. Esperamos que, em momento oportuno, haja possibilidades para dar
continuidade a esta investigação.
113

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