Patriarcado Devorado: Leitura de "Esses Lopes", de João Guimarães Rosa
Patriarcado Devorado: Leitura de "Esses Lopes", de João Guimarães Rosa
Patriarcado Devorado: Leitura de "Esses Lopes", de João Guimarães Rosa
Resumo: Partindo de uma perspectiva que articula literatura e sociedade, o objetivo deste
texto é analisar a figuração literária do patriarcado brasileiro no conto “Esses Lopes”, de
Tutameia, de João Guimarães Rosa. O patriarcado, entendido como estrutura de poder que
mescla a dimensão familiar à social, surge no Brasil Colônia e toma outras formas, conforme
as demandas da modernidade. “Esses Lopes” apresenta o patriarcado do ponto de vista de
uma mulher que mata os violentos esposos. Os meios pelos quais ela comete os assassinatos
expõem o papel histórico da mulher na sociedade patriarcal. A postura transgressora da
protagonista se expressa simbolicamente na devoração, imagem que conjugará, ao mesmo
tempo, o poder da palavra e os artifícios caseiros. A reflexão pretende ainda expor alguns
confrontos com epopeia Odisseia. O cortejo com o texto homérico busca, para além das
possíveis correspondências, apurar a validade das concepções de História de Theodor
Adorno e Walter Benjamin na trama rosiana, em especial a noção de uma narrativa que
revitaliza a lógica de opressão. Este trabalho expõe alguns apontamentos alcançados na
pesquisa de mestrado que investiga o tema do patriarcado também em outros dois contos:
“Nada e a nossa condição”, de Primeiras Estórias e “A volta do marido pródigo”, de
Sagarana.
“Esses Lopes” faz parte do inusitado Tutameia (Terceiras estórias) (1967). Última
obra publicada em vida por Guimarães Rosa, Tutameia esconde, em suas narrativas
minimalistas e, por vezes, herméticas, enigmas de diversas naturezas. Dentro da enorme
versatilidade de temas e formas, é possível apreender algumas questões da sociedade
brasileira sedimentadas na estrutura do texto. Em face disso, cabe, por exemplo, perseguir
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Bacharel e licenciado em Letras e mestre em Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo sob
orientação da profa. Dra. Simone Rossinetti Rufinoni. E-mail: [email protected]
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Especificamente, ele faz um trocadilho com seu nome e afirma ao monstro que se chama
Ninguém. O logro se consolida quando o herói dá vinho e cega o Ciclope. O monstro, quando
clama ajuda de seus pares, é tido como louco, uma vez que ninguém o ferira. Parte do logro
se faz via esclarecimento: o herói astucioso, ao reconhecer a arbitrariedade do signo, nega
sua identidade racionalmente. Adorno e Horkheimer ainda chamam atenção para o traço
primitivo do Polifemo. Este não respeitava as regras da hospitalidade – já que devorava os
visitantes – não fazia sacrifícios aos deuses olímpicos, não praticava agricultura, além de se
alimentar de carne crua.
Nesse universo do mito, o herói esclarecido logra principalmente através da
manipulação do logos. O sucesso da artimanha de Odisseu dá-se na medida em que
compreende o status primitivo do monstro. A condição pré-histórica do Ciclope emperra o
entendimento da cilada. Algo parecido transita no chão brasileiro.
Longe, portanto, daquele universo mítico, a narrativa de Flausina, de certo ponto de
vista, se encontra com as aventuras de Odisseu. A personagem de Guimarães Rosa tem a
perspicácia de apreender o potencial quase bárbaro do lugar em que vive. Assim, seus
estratagemas, para além do envenenamento literal do alimento, se valem do traquejo com o
discurso que não é captado pelos brutamontes. Ela cria uma teia entrecruzada de recados,
sugerindo a possibilidade do adultério, o que leva dois dos quatro Lopes a se enfrentarem
num duelo mortal. A palavra de Flausina conduz à ação violenta dos Lopes, que não
percebem o engodo e aderem à brutalidade com a qual estão acostumados. Naturalmente, o
logro por meio do logos se faz mais efetivo em terras bárbaras, sejam míticas ou objetivas.
Flausina, é certo, não enfrenta monstros mitológicos. Contudo, ela vive no sertão, onde o
imperativo da violência nacional mina a civilidade dos homens, motivo pelo qual ela busca
soluções que são equivalentes às de Odisseu em terreno pré-histórico. Ao fim, de certo ponto
de vista, a protagonista recorre à razão para enfrentar uma espécie de barbárie familiar
nacional.
Ainda no que diz respeito à épica homérica, cabe lembrar o desfecho do canto IX.
Logo após cegar e lograr o gigante devorador, Odisseu consegue retornar com os
companheiros à embarcação. Não contendo seu ímpeto vingativo, o herói, numa postura
quase estúpida, grita ao Ciclope sua artimanha, revelando seu real nome e o embuste. O
monstro irado arremessa enormes pedras que quase atingem o barco. O importante neste
ponto é perceber a necessidade que o herói tinha de consolidar seu revide.
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ressignificar parte da História. Ao fim, Flausina pode ser lida como uma espécie de heroína:
sozinha, ela vence os maridos ogros, canta sua vingança e reelabora a História.
Referências bibliográficas
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