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2. O tato
O sistema sensorial mais importante que a pessoa cega possui, para conhecer o mundo, é o sistema
háptico ou tato ativo. Como vamos ver, ao longo deste capítulo, muitas das peculiaridades do
desenvolvimento cognitivo das pessoas cegas podem ser explicadas em relação às características da
captação e processamento da informação mediante o tato.
É necessário diferenciar entre tato passivo e tato ativo ou sistema háptico (Gibson, 1966). Enquanto
no primeiro a informação tátil é recebida de forma não intencional ou passiva (como a sensação
que a roupa ou o calor produz em nossa pele), no tato ativo, a informação é buscada de forma
intencional pelo indivíduo que toca. Assim, pois, no tato ativo encontram-se envolvidos não
somente os receptores da pele e os tecidos subjacentes (como ocorre no tato passivo), mas
também a excitação correspondente aos receptores dos músculos e dos tendões, de maneira que o
sistema perceptivo háptico capta a informação articulatória motora e de equilíbrio. Assim, Gibson
destaca a importância da atividade no conhecimento do mundo mediante o tato, da mesma
maneira que o movimento ou atividade perceptiva é necessária na percepção visual. Quando um
cego está explorando com as mãos um objeto estranho, para reconhecê-lo, ocorre algo parecido a
quando um vidente olha uma forma complexa e desconhecida para posteriormente desenhá-la. As
mãos, como os olhos, embora de forma mais lenta e sucessiva, movem-se de forma intencional
para buscar as peculiaridades da forma e poder, assim, obter uma imagem dela.
Não obstante, existem importantes diferenças entre a percepção e o processamento da informação
mediante o tato e a visão. Sem dúvida, a captação da informação mediante o tato é muito mais
lenta que a proporcionada pelo sistema visual, o que traz consigo uma explicação de caráter
seqüencial. Isto dá lugar a uma maior carga na memória de trabalho, quando os objetos a serem
explorados são grandes ou numerosos. Imaginemos, por exemplo, o tempo que um cego leva para
explorar um objeto grande, como uma mesa, e a quantidade de pequenas percepções que deverá
integrar até obter sua imagem, se compararmos com a rapidez da exploração visual desta mesma
mesa. Além disso, enquanto o tato somente pode explorar as superfícies situadas no ambiente que
os braços alcançam, não servindo para conhecer espaços distantes, a visão é o sentido útil por
excelência para perceber objetos e sua posição espacial a grandes distâncias.
Portanto, o tato constitui um sistema sensorial que tem determinadas características e que permite
captar diferentes propriedades dos objetos, tais como temperatura, textura, forma e relações
espaciais. Passemos, agora, à revisão, de forma resumida, das capacidades perceptivas do sistema
háptico, a partir de uma perspectiva genética.
A textura parece ter, para o tato, uma saliência perceptiva semelhante à da cor, para a visão. Assim,
as diferenças de textura são captadas pelo tato muito precocemente, a partir dos três ou quatro
anos. Mais tarde, as crianças são capazes de discriminar tatilmente a forma dos objetos, ainda que
com um significativo atraso, quando esta tarefa é realizada visualmente (Warren, 1984.
Com respeito ao desenvolvimento da percepção da forma dos objetos por meio do tato, os
diferentes autores coincidem ao apontar que o movimento ou a atividade perceptiva autodirigida
aumenta com a idade, o que torna possível um melhor reconhecimento dessas formas. Como já foi
dito, é exatamente essa necessidade da atividade exploratória que torna o sistema perceptivo
háptico semelhante ao visual, ainda que o primeiro tenha um desenvolvimento muito mais lento.
Tais diferenças no desenvolvimento podem ser explicadas (Warren, 1984) pelo fato de o sistema
visual, mas não o háptico, estar preparado, desde muito cedo, para fazer os ajustes musculares
finos necessários para explorar rapidamente os estímulos, e porque a distribuição espacial dos
receptores do olho é mais adequada que a da mão para o registro simultâneo de padrões de
estímulos espaciais.
Foram realizadas numerosas investigações sobre a capacidade dos cegos para captar relações
espaciais mediante o tato. Sem examinar em profundidade tais trabalhos (ver, por exemplo Ochaita
e Huertas, 1988), podemos dizer que existe um aumento gradual, entre os sete e os onze anos,
para compreender tatilmente tarefas especiais de dificuldade mediana (topológicas e algumas
métricas, na terminologia de Piaget).
Quando os problemas são mais complexos, como os que envolvem os relativos à perspectiva,
tornam-se tão difíceis ao tato que só podem ser acessíveis aos cegos ou aos videntes que os
realizam mediante este sistema sensorial, a partir dos quatorze ou quinze anos (Ochaita, 1984).
3. A representação do conhecimento
Um dos problemas que causa mais polêmica nos estudos da moderna psicologia cognitiva é o da
representação mental do conhecimento. Sob a perspectiva do vidente, tende-se a considerar que o
conceito de imagem mental coincide com o da imagem visual. No entanto, essas imagens não têm
por que serem as únicas. De fato, todos têm representações baseadas em outras modalidades
sensoriais, como a audição, o olfato, a gustação ou até mesmo a propriocepção. Portanto, mais
uma vez encontramo-nos diante do fato de que os indivíduos privados da visão dispõe de uma
ampla gama de possibilidades de perceber o mundo que os cerca, utilizando as modalidades
sensoriais de que dispõem.
Vale a pena destacar dois aspectos, em relação à representação. Em primeiro lugar, a capacidade
de representação dos diferentes sistemas sensoriais e, em segundo, as mudanças neles produzidas
ao longo do processo de desenvolvimento.
Um aspecto que tem merecido a atenção dos investigadores é se existe um código háptico que
permita uma representação funcional da informação na memória. Um bom número de trabalhos, a
maioria realizada com adultos, estudou a capacidade de os cegos compreenderem tarefas de
alternação de formas captadas mediante o tato.
A investigação de Carpenter e Eisenberg (1978) constitui um exemplo típico: tratava-se de estimar
se a imagem de uma letra ("P" ou "F") era a correta, tanto quando as letras encontravam-se em
posição normal como com diferentes ângulos de inclinação. Dado que os cegos de nascença foram
capazes de perceber mentalmente a alternação de formas nos eixos horizontal, vertical e oblíquo
do espaço euclidiano, cabe inferir que o sistema háptico pode dar lugar a representações mentais
de caráter espacial. Outros trabalhos (Miller, 1975, 1977; Pring, 1982; Fernández, Ochaita e Rosas,
1988) destacaram a possibilidade de reter, na memória, a curto prazo, a informação apresentada
tatilmente. Isto é especialmente relevante para a leitura, já que os cegos podem ter acesso direto
ao léxico a partir da codificação tátil, sem ter que passar através de um código fonológico.
Mas, além desta possibilidade de perceber mentalmente a informação em um código tátil, ocorre
outro fenômeno interessante, referente à memória semântica. Comprovou-se experimentalmente
que os cegos não apresentam diferenças em relação aos videntes no que diz respeito a sua
capacidade de codificação semântica - profunda - da informação. Isto leva a pensar que, nos casos
em que não tenham acesso a alguns tipos de informação, os cegos possam compreender o
fenômeno de que se trate (por exemplo, um relâmpago ou uma nuvem), através da informação
verbal. Isto torna-se especialmente evidente, quando a informação é apresentada de forma
auditiva (Rosa e col., 1986) e, naturalmente, não se trata de um traço inerente à carência de visão,
senão do resultado de um processo de aprendizagem ao longo do desenvolvimento.
No que diz respeito a este último aspecto, dispõem-se, também, de dados empiricos. Por um lado,
descobriu-se que nos cegos, bem como nos videntes, a capacidade de armazenamento de material
na memória a curto prazo aumenta com a idade, possivelmente devido à automatização de
habilidades que permitem direcionar os recursos de atenção à utilização de estratégias ativas que
permitem reter maior quantidade de informação (Fernandéz e col., 1988). Por outro lado, o fato de
que o processamento profundo da informação aumenta de forma significativa no início da
adolescência (Rosa e col., 1986), pode fundamentar a hipótese de que muitas tarefas que os
videntes resolvem de modo analógico sejam feitas pelos cegos através da mediação verbal, quando
esta habilidade já estiver dominada. Este último aspecto pode ser a chave de algumas
peculiaridades do desenvolvimento cognitivo dos cegos. Mas deixaremos esta discussão para o final
do capítulo.
4. O desenvolvimento psicológico
Exporemos, a seguir, o que podemos considerar "o perfil característico" do desenvolvimento
psicológico das pessoas sem visão. No entanto, como foi dito na introdução, dentro do grupo de
pessoas consideradas como cegas existe uma grande variação que impede fazer afirmações de
caráter geral. Por outro lado, a indissolubilidade entre desenvolvimento e aprendizagem faz com
que as condições familiares e educacionais concretas em que a criança cega cresce sejam aspectos
centrais em seu desenvolvimento psicológico. O que se descreve, aqui, são os aspectos evolutivos
gerais das crianças cegas de nascença (ou que perderam a visão nas primeiras etapas da vida) sem
visão funcional, com certas condições familiares e educacionais mais ou menos normais.
7. Resumo e conclusões
Resumindo, dos dados de que se dispõe, atualmente, pode-se concluir que os deficientes visuais
podem atingir um desenvolvimento intelectual semelhante ao dos videntes. Não obstante, o
caminho do desenvolvimento não coincide com o que estes últimos, normalmente, seguem. Os
motivos desta discrepância não são, de modo algum, o resultado de uma patologia resultante do
dano visual, senão a conseqüência presumível da utilização dos recursos de que estes indivíduos
dispõem. São dois os fatores principais, apontados como responsáveis por estas peculiaridades
evolutivas; o modo tátil de coletar informação e a remediação verbal (Rosa e Ochaita, 1989).
Já havíamos mencionado como o comprometimento visual faz com que o sentido do tato passe a
ser o sentido com o qual se capte, primordialmente, a informação dos objetos. O desenvolvimento
das habilidades perceptivas táteis, como é de se esperar, afeta o conhecimento do meio e marca
seu próprio ritmo na construção de estratégias de conhecimento. Em suma, as limitações do
sistema perceptivo tátil fazem-se notar no desenvolvimento cognitivo. Mas não há motivo para que
esta pobreza relativa do tato em relação à visão marque um limite absoluto ao conhecimento, pois
o indivíduo dispõe de outros recursos, entre os quais a linguagem revela-se como um fator de
importância primordial. Os resultados experimentais que evidenciam como os cegos resolvem
tarefas que se sustentam, fundamentalmente, sobre a linguagem nas mesmas idades que os
videntes, enquanto outras que têm um componente manipulativo-espacial-figurativo não são
resolvidas até um momento posterior, corroboram a explicação de que o atraso na solução destas
últimas depende do desenvolvimento das habilidades táteis. Por outro lado, o fato de que as
diferenças de rendimento entre cegos e videntes desaparecem ao mesmo tempo que o
processamento profundo da informação adquire uma presença funcional importante e manifesta
uma forma proporcional do pensamento, levam a pensar que a Linguagem ocupa um papel de
primeira ordem no funcionamento cognitivo do cego. O fato de que algumas tarefas experimentais,
cuja estrutura é supostamente concreta (na terminologia piagetiana), não são resolvidas
precisamente até que estas habilidades estejam desenvolvidas, poderia dever-se ao fato de que, na
ausência da visão, sua resolução requeira a utilização de habilidades mais sofisticadas que as
propriamente concretas.
NOTA: Um tratamento em profundidade deste tema pode ser encontrado em Ochaita, Fernández e
Huertas (1988).
texto integral de:
Percepção, aCção e conhecimento nas crianças cegas
Esperanza OCHAITA e Alberto ROSA
in colectânea "Desenvolvimento psicológico e educação: necessidades educativas especiais e
aprendizagem escolar"
organizada por César Coll, Jesús Palacios e Alvaro Marchesi
tradução: Marcos A. G. Domingues
Porto Alegre - Artes Médicas, 1995.
v.3, p.183-197.
Fonte: http://www.diversidadeemcena.net/