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Cap.

29
O Sargento Xavier conduziu Elias desalgemado pelo corredor, onde logo de início
puderam ver as duas celas coletivas da cadeia. Toda a carceragem era controlada por
líderes escolhidos pelos próprios reeducandos. Quase sempre estes chefes que eram
chamados de ‘Patrões’ deviam esta escolha as qualidades que possuíam e eram
veneradas entre criminosos: inteligência aliada à malandragem; valentia diante dos
inimigos e histórias de crimes confirmadas por colegas de banditismo: tudo isso era
influenciável na escolha dos Patrões de uma cadeia.

Para Elias a chegada naquele ambiente trazia mais reencontros com a


malandragem que possíveis encontros, pois quase todos os malandros já o conheciam
pessoalmente ou através de seus feitos. Elias foi empurrado pelo Sargento para dentro
da cela 24, mas foi o Patrão da cela 25 quem o cumprimentou. Os reeducandos riram de
sua figura vestida de maneira ridícula, mas não lhe perguntaram nada, pois na cadeia
antes de qualquer interrogação existem as obrigações dos que chegam e uma delas é a
de se lavarem: isto se deve ao fato de que os homens dormem amontoados (quase todas
as prisões brasileiras estavam com superlotação) e quem vem da rua deve estar limpo e
asseado para dormir entre eles.

Depois de um banho frio, Elias recebeu de um jovem reeducando uma calça de


moletom velha e uma camiseta larga para o seu corpo franzino. Como não havia uma
televisão ou algo que os distraísse, um deles lia um livro grosso se utilizando das luzes
do corredor que ficavam acessas, apesar de iluminarem menos que um abajur. Outro
homem mais velho lhe deu um colchão achatado e encardido, para que pudesse dormir.
Sem cobertor que o aquecesse, Elias não estava preocupado com o frio da noite ou da
madrugada, isso porque a maior prova de cansaço em um ser humano vem de seu
comodismo em não reclamar de nada e deixar tudo para depois; menos o descanso cuja
falta é a causa da tolerância. As dores de todas as torturas de que foi vítima não eram
piores que o ar frio que penetrava em sua boca castigando seus dentes quebrados: por
isso ele resolveu que faria de tudo para ficar com a boca fechada. Somente assim
conseguiria adormecer.

Talvez enquanto estivesse dormindo Paulete chegasse. Um pensamento ruim


passou por sua mente, mas não encontrou lógica para ficar ali por muito tempo: pensou
que os Policiais da Civil torturariam Paulete, depois viu que isso não aconteceria,
porque o travesti estava em companhia do Doutor.

Paulete seria ouvido e dentro em breve estaria com ele. A cela 24 estava triste e
calada. Da cela 25 chegava aos ouvidos de todos a voz rouca do homem que era seu
patrão. Zé da Boate que foi um dos que cumprimentaram Elias quando este chegou
também conversava, mas pela distância entre as duas celas os dois parceiros só
poderiam conversar entre si no outro dia pela manhã. O colchão que lhe foi dado fedia a
mofo e urina rançosa e seu nariz ardia por causa do mau-cheiro. Seu ouvido havia sido
desentupido do sangue coagulado, mas não era possível se ouvir nada daquele lado.
Com tudo que seu corpo sentia, ele foi capaz de adormecer vencido pelo cansaço.

Quando acordou sentiu que sua cabeça estava apoiada em algo sólido, mas
macio: eram as pernas magras de Paulete. Sentiu-se feliz por ver seu companheiro ali ao
seu lado, porém, se sentiu entristecido por estar num ambiente onde qualquer carinho
homossexual que dedicasse ao seu amante, seria reprimido pelos outros reeducandos.

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Numa prisão com mais de duzentos homens, muitos destes eram gays enrustidos, só que
até estes às vezes em atitudes hipócritas clamavam contra este tipo de orientação sexual.
Às duas horas destinadas ao banho de sol seria o único período em que os amantes
poderiam ter o privilégio de um beijo ou de um simples abraço: mesmo assim isso só
seria possível se fosse escondido (geralmente as relações homossexuais na cadeia de
Anápolis se davam no banheiro do pátio que era chamado pelos reeducandos de 15º).

O rosto cansado de Paulete revelava que passou a noite acordado cuidando do


amante. Ao abrir seus olhos do sono curto em que mergulhara, Elias retribuiu os
carinhos sobre sua cabeça com um sorriso. Ninguém que estivesse acordado na cela 24
dispunha de um relógio, mas pela luz matinal que entrava por entre as grades via-se que
deveria ser umas seis e pouco da manhã. Com um pano úmido Paulete suavizava as
dores de seus ferimentos. A água fria colhida na torneira penetrava em seu ouvido e em
meio à dor causava o bem-estar de um bálsamo.

A voz do Sargento Xavier ordenava alguma coisa a Levi Cipriano, um


reeducando que trabalhava de faxineiro na cadeia. Logo, empunhando um rodo e um
balde d’água apareceu Levi Cipriano dando início à lavagem do corredor que separava
as celas. Este detento que fazia faxina era negro e forte, talvez um dos homens mais
fortes ali, mas era meio bobo e diziam os outros reeducandos que tinha problemas
mentais. Foi acusado de matar três homens numa briga de bar e acabou condenado a 45
anos de prisão na cadeia municipal de Anápolis. Diziam que ficaria 12 anos preso e o
restante em regimes de penas mais leves. O vozerio dos primeiros a se levantarem,
indicava as presenças masculinas que se enfileiravam na entrada do banheiro; cada qual
esperando sua vez de poder usa-lo.

A cela 24 bem como as outras da cadeia municipal possuíam apenas três


paredes. A parede maior cujas janelas gradeadas davam para o pátio era lateral e tinha o
mesmo comprimento da parte frontal das celas que eram separadas por um corredor. O
corredor que demarcava divisa entre celas de números pares e impares; também
conduzia a dois lugares diferentes: um era o pátio e o outro era o Pavilhão da Polícia
Militar que fazia á vigilância da prisão. As outras duas paredes menores separavam as
celas entre si. Não havia nenhum traço nas paredes que evidenciassem um ambiente
doméstico. Jamais haviam sido pintadas e sua cor original era uma cinza cor de chumbo.
Esta era a cor das paredes, apesar de ser a cor do concreto armado com o qual foram
construídas. O teto complementava aquele recinto, como uma extensão idêntica as suas
paredes. Neste teto havia bocais para lâmpadas, mas elas não eram fornecidas pela
diretoria da cadeia, dependiam das expensas dos próprios reeducandos.

A cela 24 e a 25 eram as famosas ‘celas coletivas’ da cadeia municipal;


famosas porque era impossível a um ex-reeducando ter sido condenado por qualquer
crime em Anápolis e não ter passado por elas. Eram pelas pesadas portas gradeadas da
cela 24 ou então da cela 25 que eram obrigados a entrar todos os que chegavam presos à
cadeia municipal. Estas sinistras portas de entrada, assemelhavam-se as portas dos
antigos calabouços medievais, vistos apenas em filmes de horror. As entradas não eram
guarnecidas por paredes, mas sim por outras grades iguais a elas que formava um todo.
Com suas grades de ferro enferrujadas e enegrecidas, as celas se pareciam com jaulas,
onde circulava um amontoado de homens.

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