Mutações Do Conceito de Anistia Na Justiça de Transição
Mutações Do Conceito de Anistia Na Justiça de Transição
Mutações Do Conceito de Anistia Na Justiça de Transição
DE anistia na Justiça
DE transiçãO BrasiLEira 1
A terceira fase de luta pela anistia
Mutations on the concept of amnesty in Brazilian Transitional Justice
The third phase of the struggle for amnesty
pauLO aBrãO
Doutor em Direito pela PUC-RJ. Professor da Faculdade de Direito da PUC-RS e do Pro-
grama Europeu de Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos da Universidade Pablo
de Olavide (Espanha). Secretário Nacional de Justiça e Presidente da Comissão de Anistia
do Ministério da Justiça.
marcELO D. tOrELLy
Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília. Coordenador-geral de
Memória Histórica da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.
rEsumO: Este artigo busca sumarizar algumas aBstract: This paper aims at summarizing some
teorias desenvolvidas ao longo dos últimos anos theories developed among the past years that
que procuram explicar o processo de justiça try to explain the transitional justice process in
transicional no Brasil. Foca-se nos desenvolvi- Brazil. It focuses on the development, disputes
mentos, disputas e mudanças do conceito de and changes of the concept of “amnesty”. Begins
“anistia”. Começa por apontar o paradoxo da Lei by setting the paradox of the 1979 amnesty
de Anistia de 1979 que permite, a um só tem- law that allows, at once, an idea of “amnesty
po, uma ideia de “anistia enquanto liberdade” e as freedom” and of “amnesty as impunity” in
de “anistia enquanto impunidade”, naquilo que what we refer as the first phase of the struggle
referimos como uma primeira fase da luta pela for amnesty. The second phase is characterized
anistia. A segunda fase caracteriza-se pela ideia by the idea of “amnesty as reparation and
de “anistia enquanto reparação e memória” e memory” and developed mainly by the work of
desenvolve-se principalmente pelo trabalho das the commissions in charge of the reparations
comissões encarregadas dos programas de re- programs, constituting the lynchpin for our
paração, que constituem o eixo estruturante de transitional justice process. Finally it analyzes
nossa justiça transicional. Finalmente, analisa a the insurgency of a third phase, when society
insurgência de uma terceira fase, na qual a so- claims for an interpretation of amnesty as “truth
ciedade demanda uma leitura da anistia enquan- and justice”.
to “verdade e justiça”.
paLaVras-chaVE: Anistia – Brasil – Justiça de KEywOrDs: Amnesty – Brazil – Transitional Justice
Transição – Reparação – Comissão da verdade – Reparation – Truth Commission – Justice.
– Justiça.
1. introdução
Neste estudo1 procuraremos sistematizar algumas teses defendidas em tex-
tos esparsos ao longo dos últimos quatro anos que, partindo de ideia de que
o programa de reparações às vítimas constitui o “eixo estruturante” da Justiça
1. As opiniões expressas neste texto são de seus autores, não necessariamente refletindo
posições das instituições em que atuam. Versões preliminares deste trabalho foram
apresentadas nos seguintes encontros políticos e acadêmicos: seminário internacional
Limites e Possibilidades da Justiça de Transição. Faculdade de Direito da PUC-RS. Porto
Alegre: abr. 2012; seminário internacional História Contemporânea: memória, trauma
e reparação. Instituto de História da UFRJ. Rio de Janeiro, maio 2012; seminário O di-
reito à verdade: informação, memória e cidadania. Assembleia Legislativa do Estado. São
Paulo: jun. 2012; seminário brasileiro alemão Transitional Justice: vergleichende einbli-
cke in transitionsprozesse aus Brasilien und Deutland. Goethe Universität Frankfurt am
Main. Frankfurt: jul. 2012; concessão de título de Doutor Honoris Causa à Paulo Abrão
Pires Junior pela Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais de Florianópolis, do Centro
de Estudos Universitários de Santa Catarina (Cesusc). Florianópolis, ago. 2012. Agra-
decemos a todos os que contribuiram para seu aprimoramento nestes distintos fóruns,
permitindo agora a publicação de uma versão impressa de maior qualidade.
13. É desta época que trata o caso Guerrilha do Araguaia, acima referida.
14. Viana, Gilney; CiprianO, Perly. Fome de liberdade. São Paulo: Fundação Perseu Abra-
mo, 2009.
lei, que previa uma anistia aos “crimes políticos e conexos”, ou seja, uma anistia
bilateral, porém restrita, excluindo os crimes violentos contra a pessoa, os ditos
“crimes de sangue” praticados pela resistência.15 Por apertada maioria de 206
a 201 votos a anistia proposta pelo gabinete do governo militar foi aprovada.
De um lado, o regime impôs à sociedade a anistia que lhe convinha: uma
anistia parcial e restrita, que excluía os ditos “crimes de sangue”, mas que in-
cluía dispositivos de sentido dúbio que seriam posteriormente interpretados
de forma ampliativa pelos tribunais militares responsáveis pela sua aplicação,16
segundo a legalidade autoritária vigente.17 De outro lado, a sociedade civil
obteve sua mais significativa vitória desde a decretação do AI-5, ao alterar a
correlação de forças sociais que obrigou o governo militar aprovar alguma lei
de anistia. A anistia, mesmo parcial, permitiu recompor direitos políticos mui-
tos, a liberdade para a maior parte dos presos políticos, o retorno ao país dos
exilados, a readmissão de servidores públicos expurgados para os seus postos
de trabalho, a liberdade e o direito à identidade para os que haviam sido com-
pelidas à clandestinidade etc. Estas primeiras medidas de liberdade que são
acompanhadas das primeiras medidas reparatórias forjaram o ambiente para
retomar do processo democrático e iniciar a abertura política. A Lei de Anistia
de 1979, mesmo que restrita, constitui-se, assim, no marco jurídico fundante
do processo de redemocratização. Esse processo histórico enseja a ambiguida-
de que definimos com um “paradoxo da vitória de todos”.18
15. Cf.: GOnçalVeS, Danyelle Nilin. Os múltiplos sentidos da anistia. Revista Anistia Polí-
tica e Justiça de Transição. p. 272-295. Brasília: Ministério da Justiça, jan.-jun. 2009.
16. Na apreciação do caso “Rio Centro”, em 1981, a lei de anistia de 1979 sofrerá uma
mutação jurisprudencial pela atuação do STM, passando a ser uma lei “ampla e irres-
trita” a todos os tipos de crimes, incluindo os crimes de Estado, e, forçosamente, até
mesmo aqueles crimes cometidos posteriormente à sua edição.
17. O conceito de “legalidade autoritária” é do politólogo Anthony W. Pereira, e está
amplamente desenvolvido em: pereira, Anthony W. Ditadura e repressão – O autorita-
rismo e o Estado de Direito no Brasil, Chile e Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. p.
237-255.
18. Cf.: tOrelly, Marcelo D. Op. cit., p. 184-198.
19. Por exemplo: FiCO, Carlos. A negociação parlamentar da anistia de 1979 e o chamado
perdão aos torturadores. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. p. 318-332.
Brasília: Ministério da Justiça, jul.-dez. 2010.
20. Diferentemente do caso espanhol, onde uma anistia similar à brasileira é aprovada
em um parlamento com possibilidade de oposição mais efetiva, integrado inclusive
pelo Partido Socialista. Para um excelente exposição crítica do caso espanhol, veja-
-se: aGuilar, Paloma. A lei espanhola de anistia de 1977 em perspectiva comparada:
de uma lei para a democracia a uma lei para impunidade. In: payne, Leigh; abrãO,
Paulo; tOrelly, Marcelo D. (orgs.). A anistia na era da responsabilização – O Brasil em
perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça; Oxford: Univer-
sidade de Oxford, 2011. p. 394-427.
21. O voto do Min. Gilmar Mendes na ADPF 153 é uma importante leitura desta tese, de
que a EC 26 vincula e limita o Poder Constituinte.
22. A esse respeito, veja-se: tOrelly, Marcelo D. A anistia e as limitações prévias à Cons-
tituição. Constituição e democracia (UnB). Brasília: Ed. UnB, out. 2009. p. 20-21.
23. Neste sentido, veja-se: paixãO, Cristiano. A Constituição em disputa: transição ou
ruptura?. In: Seelaender, Airton (org.). História do direito e construção do Estado. São
Paulo: Quartier Latin, no prelo.
24. A esse respeito: barbOSa, Leonardo Augusto Andrade. Mudança constitucional, autori-
tarismo e democracia no Brasil pós-1964. Tese de Doutoramento, Brasília, Universida-
de de Brasília, 2009.
26. Confira-se, refutando tal tese em foro de estudos comparados: paSCual, Alejandra
Montiel. Terrorismo de Estado: a Argentina de 1976 a 1983. Brasília: Ed. UnB, 2004.
27. Cf.: País deveria olhar para frente, dizem militares. Folha de S. Paulo, 06.11.2008.
Disponível em: [www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u464785.shtml].
28. Para um maior desenvolvimento da ideia de “estado de negação”, veja-se: COhen,
Stanley. Estado de Negación. Buenos Aires: UBA/British Council, 2005.
29. Um amplo panorama deste processo é apresentado no nosso já referido texto “O pro-
grama de reparações como eixo estruturante da Justiça de Transição no Brasil”.
30. Vide: abrãO, Paulo; Carlet, Flávia et alii. As caravanas da anistia: um mecanismo pri-
vilegiado da Justiça de Transição Brasileira. Revista Anistia Política e Justiça de Transi-
ção. n. 2. p.110-149. seção especial. Brasília: Ministério da Justiça, jul.-dez. 2009.
31. Neste mesmo sentido veja-se: baGGiO, Roberta. Justiça de Transição como reconheci-
mento: limites e possibilidades do processo brasileiro. In: SantOS, Boaventura; abrãO,
Paulo; maCdOWell, Cecília; tOrelly, Marcelo D. (orgs.). Repressão e memória política
34. Sobre a mobilização junto à Corte, veja-se: kriStiCeViC, Viviana; aFFOnSO, Beatriz. A
dívida histórica e o caso Guerrilha do Araguaia na Corte Interamericana de Direitos
Humanos impulsionando o direito à verdade e à justiça no Brasil. In: payen, Leigh
A.; abrãO, Paulo; tOrelly, Marcelo D. (orgs.). A anistia na era da responsabilização
– O Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça;
Oxford: Universidade de Oxford, 2011. p. 344-390.
35. Ao colocar na agenda nacional tal questionamento, as comissões de reparação re-
capitalizaram o papel político dos ex-perseguidos políticos. Entidades que haviam
afastando-se momentaneamente da agenda justransional, como a OAB, a União Na-
cional dos Estudantes, o Movimento de Direitos Humanos, a Associação Brasileira de
Imprensa e a própria Conferência Nacional dos Bispos do Brasil retornam ao tema.
36. Aquilo que Torelly definiu como o “modelo transicional brasileiro de responsabilida-
de abstrata” e que agora pode ser revertido, a depender do êxito das ações judiciais
em curto pelo Ministério Público Federal e do trabalho da Comissão Nacional da
Verdade. Para conhecer o modelo proposto por Torelly, veja-se: tOrelly, Marcelo D.
Justiça de transição e estado constitucional de direito. Coleção Fórum Justiça e Demo-
cracia. Belo Horizonte: Fórum, 2012. vol. 2, p. 354-368.
37. A esse respeito, veja-se: Cels/ICTJ. Hacer justicia. Buenos Aires: Siglo XXI, 2011.
38. Sobre o caso chileno, veja-se: COllinS, Cath et alli. Verdad, justicia y memoria: las
violaciones de derechos humanos del pasado. Informe anual sobre derechos humanos
en Chile 2011. Santiago: Universidad Diego Portales, 2011. p. 19-53.
39. Veja-se: leSSa, Francesca. Barriers to justice. The ley de caducidad and impunity in
Uruguay. In: leSSa, Francesca; payne, Leigh A. (orgs.). Amnesty in the age of human
rights accountability – Comparative and international perspectives. Nova Iorque: Cam-
bridge University Press, 2012. p. 123-151, bem como Skaar, Elin. Impunidade versus
responsabilidade no Uruguai: o papel da ley de caducidad. In: payne, Leigh; abrãO,
Paulo; tOrelly, Marcelo D. A anistia na era da responsabilização. Brasília: Ministério
da Justiça; Oxford: Universidade de Oxford, 2011. p. 428-469.
40. Cf.: burt, Jo-Marie. Culpado: o julgamento do ex-presidente peruano Alberto Fuji-
mori por violações dos direitos humanos. Revista Anistia Política e Justiça de Transi-
ção. n. 4. p. 108-137. Brasília: Ministério da Justiça, jul.-dez. 2010.
41. Veja-se: rOth-arriaza, Naomi; braid, Emily. De facto and de Jure amnesty laws: the
Central American case. In: leSSa, Francesca; payne, Leigh A. (orgs.). Amnesty in the
age of human rights accountability – Comparative and international perspectives. Nova
Iorque: Cambridge University Press, 2012. p. 182-209.
42. SChWartz, Herman. The struggle for constitutional justice in post-communist Europe.
Chicago: Chicago University Press, 2002.
43. Um exemplo pode ser encontrado em: mOurãO, Alexandre et alii. Os aparecidos polí-
ticos: arte ativista e Justiça de Transição. Revista Anistia Política e Justiça de Transição.
n. 6. Brasília: Ministério da Justiça, jul.-dez. 2011, no prelo.
44. Cf.: Comemoração do golpe de 64 termina em tumulto no Rio. Disponível em: [http://
veja.abril.com.br/noticia/brasil/comemoracao-do-golpe-de-64-termina-em-tumulto].
45. O modelo de “equilíbrio da justiça”, exemplificado pela compatibilização entre anis-
tias e julgamentos é defendido por alguns autores como aquele que mais produz apri-
moramento democráticos pós-transicionais. Confira-se: OlSen, Tricia; payne, Leigh
A.; reiter, Andrew. Transitional justice in balance. Washington: United States Peace
Institute, 2010.
46. Huntiginton, por exemplo, define os dois casos como emblemáticos do modelo de
“transição por transformação”. Cf.: huntinGtOn, Samuel. The third wave. Norman:
Oklahoma University Press, 1993.
47. Como recentemente afirmado pela titular da Comissão Nacional da Verdade, Rosa
Cardoso. Cf.: Revisão da Anistia depende da opinião pública. O Estado de S. Paulo.
Disponível em: [www.estadao.com.br/noticias/impresso,revisao-da-anistia-depende-
-de-opiniao-publica-diz-rosa-cardoso-cunha,873966,0.htm].
48. Cf.: “Verdade e Justiça em perspectiva comparada”. José Zalaquett responde Marcelo
D. Torelly. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. n. 4. p. 12-29. Brasília: Minis-
tério da Justiça, jul.-dez. 2010.
nativas para contornar tal interpretação e processar pelo menos as mais graves
violações praticadas contra os direitos humanos, incorporando em sua atua-
ção institucional importantes aportes da doutrina do Direito Internacional dos
Direitos Humanos. Propiciando, então, um deslocamento gradual do modelo
de impunidade espanhol para o modelo de responsabilidade parcial chileno.
Finalmente, tivemos recentemente a primeira denúncia criminal aceita pela
Justiça Federal do Brasil, no estado do Pará.49
Aos somarem-se ao contexto dos novos atores sociais atualmente mobili-
zadas, essas mudanças institucionais insurgem-se justamente contra o último
sustentáculo da estratégica de saída dos agentes do regime militar de 1964: a
perpetuação da impunidade. Embora ainda muito recente, esse novo cenário
que se desenha é o mais favorável para a Justiça de Transição no Brasil desde
a redemocratização.
49. Justiça Federal. Seção do Pará. Subseção Marabá. 2.ª Vara. Autos n. 4334-
29.2012.04.01.3901.
pEsquisas DO EDitOriaL
veja também doutrina
• A Declaração de Inconvencionalidade da Lei de Anistia brasileira pela corte interame-
ricana de direitos humanos no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil (Guerrilha do Ara-
guaia), de Deo Campos Dutra e Sílvia Maria Da Silveira Loureiro – RT 920/183; e
• Lei de Anistia: um debate imprescindível, de Pierpaolo Cruz Bottini e Igor Tamasauskas
– RBCCrim 77/101.