Mutações Do Conceito de Anistia Na Justiça de Transição

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mutaçõEs DO cOncEitO

DE anistia na Justiça
DE transiçãO BrasiLEira 1
A terceira fase de luta pela anistia
Mutations on the concept of amnesty in Brazilian Transitional Justice
The third phase of the struggle for amnesty

pauLO aBrãO
Doutor em Direito pela PUC-RJ. Professor da Faculdade de Direito da PUC-RS e do Pro-
grama Europeu de Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos da Universidade Pablo
de Olavide (Espanha). Secretário Nacional de Justiça e Presidente da Comissão de Anistia
do Ministério da Justiça.

marcELO D. tOrELLy
Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília. Coordenador-geral de
Memória Histórica da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

recebido em: 21.07.2012


aprovado em: 31.08.2012

árEa DO DirEitO: Penal; Constitucional

rEsumO: Este artigo busca sumarizar algumas aBstract: This paper aims at summarizing some
teorias desenvolvidas ao longo dos últimos anos theories developed among the past years that
que procuram explicar o processo de justiça try to explain the transitional justice process in
transicional no Brasil. Foca-se nos desenvolvi- Brazil. It focuses on the development, disputes
mentos, disputas e mudanças do conceito de and changes of the concept of “amnesty”. Begins
“anistia”. Começa por apontar o paradoxo da Lei by setting the paradox of the 1979 amnesty
de Anistia de 1979 que permite, a um só tem- law that allows, at once, an idea of “amnesty
po, uma ideia de “anistia enquanto liberdade” e as freedom” and of “amnesty as impunity” in

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de “anistia enquanto impunidade”, naquilo que what we refer as the first phase of the struggle
referimos como uma primeira fase da luta pela for amnesty. The second phase is characterized
anistia. A segunda fase caracteriza-se pela ideia by the idea of “amnesty as reparation and
de “anistia enquanto reparação e memória” e memory” and developed mainly by the work of
desenvolve-se principalmente pelo trabalho das the commissions in charge of the reparations
comissões encarregadas dos programas de re- programs, constituting the lynchpin for our
paração, que constituem o eixo estruturante de transitional justice process. Finally it analyzes
nossa justiça transicional. Finalmente, analisa a the insurgency of a third phase, when society
insurgência de uma terceira fase, na qual a so- claims for an interpretation of amnesty as “truth
ciedade demanda uma leitura da anistia enquan- and justice”.
to “verdade e justiça”.
paLaVras-chaVE: Anistia – Brasil – Justiça de KEywOrDs: Amnesty – Brazil – Transitional Justice
Transição – Reparação – Comissão da verdade – Reparation – Truth Commission – Justice.
– Justiça.

sumáRio: 1. Introdução – 2. A centralidade da anistia de 1979 e sua ambiguidade de sentido


na transição política – 3. O contexto da aprovação da Lei de Anistia de 1979: um acordo
político entre iguais? – 4. A constituinte e a insurgência da “anistia como reparação” – 5. A
segunda fase da luta pela anistia no Brasil: a reparação como eixo estruturante da Justiça
de Transição – 6. Impunidades e Justiça de Transição – 7. Anistia como “verdade e justiça”?
– 8. Aportes finais: a anistia enquanto reparação, memória, verdade e justiça.

1. introdução
Neste estudo1 procuraremos sistematizar algumas teses defendidas em tex-
tos esparsos ao longo dos últimos quatro anos que, partindo de ideia de que
o programa de reparações às vítimas constitui o “eixo estruturante” da Justiça

1. As opiniões expressas neste texto são de seus autores, não necessariamente refletindo
posições das instituições em que atuam. Versões preliminares deste trabalho foram
apresentadas nos seguintes encontros políticos e acadêmicos: seminário internacional
Limites e Possibilidades da Justiça de Transição. Faculdade de Direito da PUC-RS. Porto
Alegre: abr. 2012; seminário internacional História Contemporânea: memória, trauma
e reparação. Instituto de História da UFRJ. Rio de Janeiro, maio 2012; seminário O di-
reito à verdade: informação, memória e cidadania. Assembleia Legislativa do Estado. São
Paulo: jun. 2012; seminário brasileiro alemão Transitional Justice: vergleichende einbli-
cke in transitionsprozesse aus Brasilien und Deutland. Goethe Universität Frankfurt am
Main. Frankfurt: jul. 2012; concessão de título de Doutor Honoris Causa à Paulo Abrão
Pires Junior pela Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais de Florianópolis, do Centro
de Estudos Universitários de Santa Catarina (Cesusc). Florianópolis, ago. 2012. Agra-
decemos a todos os que contribuiram para seu aprimoramento nestes distintos fóruns,
permitindo agora a publicação de uma versão impressa de maior qualidade.

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de Transição no Brasil,2 promovendo os denominados “direitos da transição”,3


busca explicitar a ambiguidade da Lei de Anistia de 1979 enquanto processo
social cujo legado e consequências seguem em disputa, ensejando um “parado-
xo da vitória de todos”4 que se traduz em distintas concepções sobre a anistia
no Brasil: de um lado, é lida como impunidade e esquecimento, de outro, como
liberdade e reparação.5
A aprovação da Lei de Anistia no Brasil em 1979, durante o regime militar, é
o marco jurídico fundante do processo de redemocratização. A forte e histórica
mobilização social da luta pela anistia e pela abertura política é de tal sorte que
do conceito de anistia emana toda a concepção da Justiça de Transição no Brasil.
O conceito de anistia enquanto “impunidade e esquecimento” defendido pelo
regime militar e seus apoiadores seguiu estanque ao longo dos últimos anos,
passando por atualizações jurisprudenciais. Por outro lado, o conceito de anis-
tia defendido pela sociedade civil na década de 1970, anistia enquanto “liber-
dade”, seguiu desenvolvendo-se durante a democratização, consolidando-se na
ideia de anistia enquanto “reparação” constitucionalizada no art. 8.º do ADCT.
Para além da exposição da síntese desta tese, o presente texto procurará
analisar também o momento atual da justiça transicional brasileira, com a ar-
ticulação de novos movimentos sociais, com demandas por justiça junto ao
STF,6 na Corte Interamericana de Direitos Humanos,7 com a nova posição da

2. Veja-se nosso: abrãO, Paulo; tOrelly, Marcelo D. O programa de reparações como


eixo estruturante da Justiça de Transição no Brasil. In: reáteGui, Felix (org.). Justiça
de Transição – Manual para a América Latina. Brasília/Nova Iorque: Ministério da Jus-
tiça/ICTJ, 2011. p. 473-516. O termo Justiça de Transição será utilizado em sentido
amplo para referir-se aos mecanismos disponíveis para lidar com o legado de violên-
cia do passado: verdade, reparação, justiça e reforma das instituições.
3. Cf. abrãO, Paulo; GenrO, Tarso. Os direitos da transição e a democracia no Brasil: es-
tudos sobre a Justiça de Transição e a Teoria da Democracia. Coleção Fórum Justiça e
Democracia. Belo Horizonte: Fórum, 2012. Cap. 2, vol. 1.
4. Cf.: tOrelly, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Constitucional de Direito. Belo
Horizonte: Fórum, 2012. Cap. 4, item 4.3.
5. Cf.: abrãO, Paulo; tOrelly, Marcelo D. Resistance do change: Brazil’s persistent amnes-
ty and its alternatives for truth and justice. In: leSSa, Francesca; payne, Leigh (orgs.)
Amnesty in the age of human rights accountability. Nova Iorque: Cambridge University
Press. p. 152-180 ou payne, Leigh; abrãO, Paulo; tOrelly, Marcelo D. (orgs.). A anistia
na era da responsabilização – O Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasí-
lia: Ministério da Justiça; Oxford: Universidade de Oxford, 2011. p. 212-248.
6. ADPF 153/2008.
7. Caso Júlia Gomes Lund e outros vs. Brasil (caso Araguaia). Sentença disponível em:
[www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf], bem como em: Revis-

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Câmara Criminal do Ministério Público Federal,8 com a aprovação da Lei de


Acesso à Informação9 e com a criação da Comissão Nacional da Verdade10 e
com as primeiras condenações judiciais relacionadas aos crimes da ditadura
militar.11
Tais elementos factuais, de acordo com o modelo de análise aqui proposto,
consolidam a perspectiva social de uma ideia de anistia como “liberdade” e
como “reparação” e apontam para o surgimento de uma terceira fase de sig-
nificação social da ideia de “anistia” no processo transicional brasileiro, que
chamamos de anistia enquanto verdade e justiça.
Estas percepções alteram concretamente os pressupostos da anistia enquan-
to impunidade e esquecimento, propagada durante o regime militar e, ainda,
afirmada por setores e instituições conservadoras.

2. a centralidade da anistia de 1979 e sua amBiguidade de sentido


na transição Política
A compreensão do significado político e jurídico do termo “anistia” na his-
tória do Brasil remete-nos diretamente ao contexto político de disputa entre
regime ditatorial e a resistência política na década de 1970. Após o golpe mi-
litar de 1964, que contou com o apoio de importantes setores civis, surgem
diversos movimentos de resistência, inclusive de formas de resistência armada
que não existiam antes do golpe, e que passam a ser utilizadas pelo regime
militar em sua autojustificação.12 Com a proclamação da medida de exceção
denominada Ato Institucional n. 5, em 13.12.1968, a ditadura, estimulada pelo

ta Anistia Política e Justiça de Transição. n. 4. p. 402-554. Brasília: Ministério da Justi-


ça, jul.-dez. 2010.
8. Cf.: 2.a Câmara de Coordenação e Revisão Criminal. Doc. n. 02/2011. Workshop In-
ternacional sobre Justiça de Transição: os efeitos domésticos da decisão da Corte Intera-
mericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil e as atribuições do
Ministério Público Federal. Brasília, 03.10.2011. Disponível em: [www.2ccr.pgr.mpf.
gov.br/diversos/justica-de-transicao/documento% 202.pdf].
9. braSil. Lei 12.527/2011.
10. braSil. Lei 12.528/2011.
11. Como na recente condenação a indenizar vítimas proferida em segunda instância
contra Brilhante Ustra, e a recente abertura de processo criminal na Justiça Federal
do Pará envolvendo o episódio da Guerrilha do Araguaia.
12. SkidmOre, Thomas. The politics of military rule in Brazil 1964-85. Nova Iorque: Oxford
University Press, 1988. p. 23.

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ambiente da Guerra Fria, passou a atuar sistematicamente na repressão de tais


movimentos de resistência, gerando inclusive uma política oficial típica de Ter-
ror de Estado, destinada a generalizar a tortura e a exterminar os membros da
resistência armada,13 a banir ou exilar líderes políticos e sociais identificados
com as ideologias de esquerda do país, além de gerar um incalculável número
de atingidos por prisões, demissões arbitrárias no setor púbico e privado, per-
seguidos políticos em sentido amplo, promover cassações de direitos políticos,
o compelimento à clandestinidade, censuras, torturas, desaparecimentos for-
çados e execuções sumárias.
O movimento em favor da aprovação de uma anistia aos perseguidos polí-
ticos já é presente desde o início do Golpe, mas se fortalece entre os anos de
1974 e 1975, liderado pelas mulheres. Após o momento mais crítico da repres-
são, as mães de filhos mortos, as viúvas de maridos vivos, os familiares de desa-
parecidos, dos presos e exilados políticos, ocupam a arena pública em busca de
liberdade e notícias para seus entes. O movimento pela anistia se irradia pela
sociedade desde os militantes organizados que permaneceram no país, e pelo
movimento estudantil e do meio cultural, que aliados ao movimento popular
operário insurgente formaram uma das maiores mobilizações sociais vistas na
história do Brasil.
A palavra de ordem do movimento social é a “anistia ampla, geral e ir-
restrita”, referindo-se a todos os “crimes” políticos praticados na resistência
contra o regime. Esta fase, que chamamos de primeira fase da luta pela anistia
caracteriza, portanto, a anistia “enquanto liberdade”. A luta social buscou o
resgate das liberdades públicas: civis e políticas. A propósito, uma das crônicas
políticas mais reconhecidas sobre o período, a relatar a histórica greve de fome
de 32 dias dos presos políticos em todo o Brasil em favor da aprovação da Lei
de Anistia, leva o simbólico título de “Fome de liberdade”.14
A ampla mobilização popular obrigou a ditadura a rever sua posição con-
trária a qualquer anistia. Junto ao parlamento brasileiro bipartidário – que fun-
cionou de forma descontinuada, sob intervenções e com parte de senadores
“biônicos” durante o período de exceção – o MDB (Movimento Democrático
Brasileiro), partido da oposição consentida, formulou um projeto de lei de anis-
tia que tinha este condão: devolver a liberdade a todos aqueles que os Estado dita-
torial criminalizou. Não obstante, o governo militar apresentou outro projeto de

13. É desta época que trata o caso Guerrilha do Araguaia, acima referida.
14. Viana, Gilney; CiprianO, Perly. Fome de liberdade. São Paulo: Fundação Perseu Abra-
mo, 2009.

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lei, que previa uma anistia aos “crimes políticos e conexos”, ou seja, uma anistia
bilateral, porém restrita, excluindo os crimes violentos contra a pessoa, os ditos
“crimes de sangue” praticados pela resistência.15 Por apertada maioria de 206
a 201 votos a anistia proposta pelo gabinete do governo militar foi aprovada.
De um lado, o regime impôs à sociedade a anistia que lhe convinha: uma
anistia parcial e restrita, que excluía os ditos “crimes de sangue”, mas que in-
cluía dispositivos de sentido dúbio que seriam posteriormente interpretados
de forma ampliativa pelos tribunais militares responsáveis pela sua aplicação,16
segundo a legalidade autoritária vigente.17 De outro lado, a sociedade civil
obteve sua mais significativa vitória desde a decretação do AI-5, ao alterar a
correlação de forças sociais que obrigou o governo militar aprovar alguma lei
de anistia. A anistia, mesmo parcial, permitiu recompor direitos políticos mui-
tos, a liberdade para a maior parte dos presos políticos, o retorno ao país dos
exilados, a readmissão de servidores públicos expurgados para os seus postos
de trabalho, a liberdade e o direito à identidade para os que haviam sido com-
pelidas à clandestinidade etc. Estas primeiras medidas de liberdade que são
acompanhadas das primeiras medidas reparatórias forjaram o ambiente para
retomar do processo democrático e iniciar a abertura política. A Lei de Anistia
de 1979, mesmo que restrita, constitui-se, assim, no marco jurídico fundante
do processo de redemocratização. Esse processo histórico enseja a ambiguida-
de que definimos com um “paradoxo da vitória de todos”.18

3. o contexto da aProvação da lei de anistia de 1979: um acordo


Político entre iguais?
É também neste processo que se constrói a compreensão jurídica e históri-
ca hegemônica de que aprovação da anistia de 1979 pelo Congresso Nacional

15. Cf.: GOnçalVeS, Danyelle Nilin. Os múltiplos sentidos da anistia. Revista Anistia Polí-
tica e Justiça de Transição. p. 272-295. Brasília: Ministério da Justiça, jan.-jun. 2009.
16. Na apreciação do caso “Rio Centro”, em 1981, a lei de anistia de 1979 sofrerá uma
mutação jurisprudencial pela atuação do STM, passando a ser uma lei “ampla e irres-
trita” a todos os tipos de crimes, incluindo os crimes de Estado, e, forçosamente, até
mesmo aqueles crimes cometidos posteriormente à sua edição.
17. O conceito de “legalidade autoritária” é do politólogo Anthony W. Pereira, e está
amplamente desenvolvido em: pereira, Anthony W. Ditadura e repressão – O autorita-
rismo e o Estado de Direito no Brasil, Chile e Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. p.
237-255.
18. Cf.: tOrelly, Marcelo D. Op. cit., p. 184-198.

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constituiu-se, em duplo aspecto, num acordo político entre oposição e gover-


no.19 Seja em seu aspecto jurídico, de alcance concomitante aos crimes políticos
da resistência e aos crimes “conexos” perpetrados pelos agentes públicos da
repressão, seja em seu aspecto político, de uma condição de possibilidade ina-
fastável para a reconciliação nacional, essa compreensão, a nosso ver, merece
algumas considerações críticas.
Primeiramente, relacionadas ao déficit de legitimidade do suposto acordo.
Como já referido, o espectro de liberdade e de representação política do Con-
gresso Nacional em agosto de 1979 era significativamente restrito. Nem todos os
parlamentares eram efetivamente eleitos pelo voto direto do cidadão. Esse dado
histórico é ainda mais relevante quando se verifica a apertada maioria que per-
mitiu a vitória do projeto de lei do governo (apenas cinco votos). Ou seja: no
Parlamento não houve um acordo, mas sim a disputa entre dois projetos de anis-
tia, decidida por uma pequena diferença. Em segundo lugar, não se pode olvidar
que ao falar-se de “oposição livre” em 1979, falamos na prática de uma “oposição
consentida”.20 Os partidos políticos não eram livres e muitos segmentos políti-
cos não participaram do “pacto” pois somente depois da anistia é que ocorre o
retorno à legalidade de algumas agremiações, bem como de importantes quadros
políticos de oposição que estavam exilados, banidos ou forçados recolherem-se
à clandestinidade. Em terceiro lugar, não existia relação de igualdade ou equidade
entre os pretensos sujeitos do acordo. De um lado, os governantes e a força de
suas armas, de outro, a sociedade civil criminalizada, presa ou pelas grades de fer-
ro ou pelas leis ilegítimas de exceção. Por último, quando se verbaliza que a anis-
tia “para os dois lados” seria uma condição para a reconciliação, revela-se aí a sua
face autoritária, ao produzir-se uma chantagem odiosa e repressiva: a concessão
de uma liberdade restrita somente seria admitida com a condição da impunidade.
Os aspectos percebidos neste suposto “acordo político”, no contexto da
aprovação da Lei de Anistia, definitivamente não são suficientes para carregar

19. Por exemplo: FiCO, Carlos. A negociação parlamentar da anistia de 1979 e o chamado
perdão aos torturadores. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. p. 318-332.
Brasília: Ministério da Justiça, jul.-dez. 2010.
20. Diferentemente do caso espanhol, onde uma anistia similar à brasileira é aprovada
em um parlamento com possibilidade de oposição mais efetiva, integrado inclusive
pelo Partido Socialista. Para um excelente exposição crítica do caso espanhol, veja-
-se: aGuilar, Paloma. A lei espanhola de anistia de 1977 em perspectiva comparada:
de uma lei para a democracia a uma lei para impunidade. In: payne, Leigh; abrãO,
Paulo; tOrelly, Marcelo D. (orgs.). A anistia na era da responsabilização – O Brasil em
perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça; Oxford: Univer-
sidade de Oxford, 2011. p. 394-427.

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consigo as características e os efeitos éticos e normativos que caracterizam os


acordos firmados sob a liberdade e a democracia. Mesmo que os personagens
negociadores do “acordo” considerarem a anistia de 1979 como bilateral, não
cabe afirmar o mesmo quanto aos movimentos políticos da sociedade civil.
Quanto ao déficit de juridicidade, a questão que se apresenta é a seguin-
te: acordos políticos do passado autoritário podem ter o condão de afastar o
exercício de direitos humanos na democracia? Existe democracia sem direitos
humanos?
Estes questionamentos não pretendem, de nenhuma maneira, deslegitimar
a luta política daqueles que, pelos meios institucionais disponíveis, atuaram
pela aprovação da Lei de Anistia de 1979 em favor dos presos políticos, mas
sim contextualizar o limite do possível à época. Procuram, portanto, diferen-
ciar o momento da contingência da transição de seu momento de justiça, no
caso, de Justiça de Transição. Tais questionamentos contribuem para elucidar
os contornos claros deste eventual acordo: a atuação da oposição consenti-
da (restrita e limitada), que não pode ser traduzida historicamente como um
abrangente acordo social.

4. a constituinte e a insurgência da “anistia como reParação”


Após a anistia, o movimento pela redemocratização ganha fôlego, mesmo
sem afetar a manutenção do poder de controle do regime militar. Grandes ma-
nifestações clamam por eleições diretas para presidente. A ditadura mais uma
vez demonstra sua força e capacidade de controle parlamentar e impõe mais
uma derrota à sociedade organizada. Derruba a emenda Dante de Oliveira pelas
“diretas já” e aprova eleições indiretas mais uma vez, via parlamento fragilizado,
para a escolha do primeiro presidente civil pós período ditatorial. Eleito indire-
tamente um presidente civil, é convocada em seguida uma Assembleia Nacional
Constituinte, livre e soberana. Este será o cenário de uma nova disputa pelo
conceito de anistia, tida em um ambiente efetivamente mais democrático.
O colégio eleitoral para a eleição indireta de um presidente civil para o
Brasil, este sim, foi um momento de acordo político. A chapa vencedora é re-
sultado de uma composição de um líder da oposição consentida, com o antigo
presidente do partido de sustentação da ditadura. Este acordo sinalizou a falta
de interesse em uma ruptura com o regime autoritário. Se, na aprovação da
Lei de Anistia, mais de cinco anos antes, não houve acordo, e sim disputa entre
dois projetos, eis aqui o momento do pacto político da transição brasileira. A
transição, pela via indireta da eleição de Tancredo Neves (1985), foi pactuada
com os militares e transcorreu de forma tranquila.

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Enquanto a ditadura Argentina terminou em ruptura, o Brasil e o Chile


são exemplos de transições controladas. E a ditadura brasileira executou de
forma meticulosa seu plano de saída: (a) uma lei de autoanistia restrita para
afastar posições políticas radicalizadas; (b) eleições indiretas para assegurar
uma lógica de continuidade, e; (c) ampla destruição de arquivos públicos dos
centros e órgãos de repressão para tentar apagar vestígios e responsabilidades
individuais pelas graves violações aos direitos humanos.
Um fator relevante para a compreensão da mutação do conceito de anistia
acontece na convocação da Assembleia Constituinte. O ato de convocação da
constituinte é formalizado por uma Emenda Constitucional à Carta outorgada
pela Junta Militar de 1969. Esta Emenda reafirmou a anistia nos termos da Lei de
1979, inclusive em suas ambiguidades, fazendo remissão ao perdão aos crimes
políticos e conexos. A reafirmação da anistia ambígua, “bilateral”, no texto da
Emenda Constitucional teve a intenção de “constitucionalizar” referido dispo-
sitivo e reiterar a dimensão da anistia enquanto “impunidade e esquecimento”.
Deve a Emenda Constitucional convocatória da Constituinte, ser compre-
endida como uma limitação ao Poder Constituinte?21 Uma espécie de limitação
apriorística à própria Constituição democrática?22
O fato é que independentemente de sua forma de chamamento, o Poder
Constituinte brasileiro materialmente mostrou-se independente e não vincu-
lado, como sói de ser um espaço político desta natureza.23Como resultado, o
processo constitucional consolidou-se como espaço de ampla discussão polí-
tica e social, levando ao abandono do texto base produzido por uma comissão
de notáveis, e pela redação de uma efetiva constituição democrática, marcada
pelas lutas e contradições que todo processo político crítico, como o é a in-
surgência constitucional, possui.24 O debate da anistia não escapou ao alcance
deste processo.

21. O voto do Min. Gilmar Mendes na ADPF 153 é uma importante leitura desta tese, de
que a EC 26 vincula e limita o Poder Constituinte.
22. A esse respeito, veja-se: tOrelly, Marcelo D. A anistia e as limitações prévias à Cons-
tituição. Constituição e democracia (UnB). Brasília: Ed. UnB, out. 2009. p. 20-21.
23. Neste sentido, veja-se: paixãO, Cristiano. A Constituição em disputa: transição ou
ruptura?. In: Seelaender, Airton (org.). História do direito e construção do Estado. São
Paulo: Quartier Latin, no prelo.
24. A esse respeito: barbOSa, Leonardo Augusto Andrade. Mudança constitucional, autori-
tarismo e democracia no Brasil pós-1964. Tese de Doutoramento, Brasília, Universida-
de de Brasília, 2009.

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O que ocorre é que a nova Constituição resultante da Assembleia Constituin-


te não previu em seus dispositivos os mesmo termos da anistia ambígua e bilate-
ral, a anistia enquanto impunidade e esquecimento. Ao contrário, a Constituição
da República de 1988, faz referência em seu Ato de Disposições Constitucionais
Transitórias, a uma anistia para os que foram atingidos por atos de exceção, pre-
vendo inclusive, mais um conjunto de novos direitos reparatórios. Portanto, a
anistia constitucional dirigiu-se aos perseguidos políticos e não aos perseguidores,
omitindo-se quanto a anistia a crimes políticos e conexos. A propósito, esta mes-
ma Constituição democrática, de modo coerente, declarou no rol dos direitos e
garantias individuais (art. 5.º) que ninguém será submetido a tortura nem a trata-
mento desumano ou degradante (inc. III); bem como que a lei considerará crimes
inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura (inc. XLIII).
Ao que tudo indica, a Constituição corroborou o sentido da anistia enquanto
liberdade somando-a a uma dimensão de reparação, e determinou que todos
aqueles cidadãos atingidos por atos de exceção deveriam ser reparados pelo
Estado democrático.
Desta feita, o conceito de anistia defendido pela sociedade civil movimen-
tou-se constitucionalmente para o sentido de uma anistia enquanto liberdade e
reparação, antagônico com o sentido de anistia enquanto impunidade e esqueci-
mento imposto pelo regime, seus cúmplices e seus intérpretes legais.
Temos, portanto, que dos quatro pilares da Justiça de Transição, quais sejam:
verdade e memória; reformas das instituições, justiça e reparações;25 este últi-
mo foi efetivamente constitucionalizado em 1988. E esta conquista constitucio-
nal foi possível pela mobilização na Constituinte, especialmente exercida pelos
sindicatos e associações de servidores públicos em geral, perseguidos políticos,
atingidos por atos de exceção ou afastados de suas funções durante movimentos
grevistas ocorridos durante a ditadura militar, insatisfeitos com a incompletude
das medidas reparatórias presentes na Lei de Anistia de 1979 e na EC 25/1985.

5. a segunda Fase da luta Pela anistia no Brasil: a reParação como


eixo estruturante da justiça de transição
A ambiguidade da anistia de 1979, somada ao discurso social construído
ao longo do Estado de Exceção estrutura, desta feita, os pilares da transição

25. Veja-se: ONU. O Estado de Direito e a Justiça de Transição em sociedades em conflito


ou pós conflito. S/2004/626. Trad. disponível em: Revista Anistia Política e Justiça de
Transição. p. 320-350. Brasília: Ministério da Justiça, jan.-jun. 2009.

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Verdade, MeMória e Justiça de transição 367

controlada, quais sejam: politicamente, a negação da existência de vítimas e a


justificação da violência por meio da tese dos dois demônios, que implica na
inexistência de vítimas;26 culturalmente, pela afirmação do esquecimento como
melhor forma de tratamento do passado,27 e; juridicamente, pela garantia da
impunidade por meio da Lei de Anistia.
Se num primeiro momento as forças sociais não foram capazes de superar
esta estratégia, o desenvolvimento do programa de reparações às vítimas no
Brasil gradualmente significou uma primeira ruptura. O seu resultado concre-
to é o de que um pilar da transição controlada, a pretensão ditatorial ao esque-
cimento, é rompido. Afinal, somente foi e é possível reparar aquilo que é objeto
de conhecimento e consequente exercício da memória. Assim, um primeiro
resultado bastante imediato do programa de reparações é por fim a um “estado
de negação da violência de Estado” experimentado pelo país.28
O Brasil tem duas comissões de reparação: a Comissão Especial sobre Mortos
e Desaparecidos Políticos, que funcionou entre 1995 e 2007, e a Comissão de
Anistia, atuante entre 2001 e o presente. Para promover reparação o Estado ne-
cessariamente reconhece a existência de vítimas e suas narrativas, mais ainda,
reconhece as graves violações contra os direitos humanos perpetradas contra
a resistência à ditadura.
De forma menos imediata, as comissões de reparação passaram a produ-
zir verdade e memória, tornando-se mecanismos justransicionais transversais.
Ao desfazer as narrativas oficiais sobre os crimes de Estado e reconhecer as
narrativas das vítimas, as comissões efetivavam o direito à verdade ante as
violações de direitos humanos mesmo antes de tal direito restar positivado no
ordenamento jurídico doméstico pelo disposto na lei de criação da Comissão
Nacional da Verdade. O processo de reparação resulta em um inédito acervo
de testemunhos e registros de violência que compõem os arquivos das duas
Comissões de reparação.29
Mais ainda, as comissões iniciaram a implantação de projetos de resgate
da memória histórica das vítimas, e passaram a promover diversas ações de

26. Confira-se, refutando tal tese em foro de estudos comparados: paSCual, Alejandra
Montiel. Terrorismo de Estado: a Argentina de 1976 a 1983. Brasília: Ed. UnB, 2004.
27. Cf.: País deveria olhar para frente, dizem militares. Folha de S. Paulo, 06.11.2008.
Disponível em: [www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u464785.shtml].
28. Para um maior desenvolvimento da ideia de “estado de negação”, veja-se: COhen,
Stanley. Estado de Negación. Buenos Aires: UBA/British Council, 2005.
29. Um amplo panorama deste processo é apresentado no nosso já referido texto “O pro-
grama de reparações como eixo estruturante da Justiça de Transição no Brasil”.

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368 Revista de diReito BRasileiRa 2012 • RDBRas 3

educação e direitos humanos em todo o Brasil. A este relevante quadrante his-


tórico, de mais de 20 anos, de conquista e afirmação da reparação e memória
contra o esquecimento; de enfrentamento ao negacionismo dos agentes de re-
pressão; de visibilidade às vítimas e seus relatos de violência sofrida; de recons-
trução de episódios históricos que vigiam sob versões oficiais deturpadoras da
verdade factual; de construção crescente de um importante consenso social
sobre a existência e a gravidade destas violações; e do surgimento de novas mo-
bilizações em torno da agenda da Justiça de Transição ainda pendente; damos
o nome de segunda fase da luta pela anistia.
Ao desenvolver ao máximo o processo de reparações, transversalmente pro-
duzindo memória e verdade, a segunda fase da luta pela anistia caracteriza,
portanto, um momento em que a anistia é lida como liberdade e reparação. Nes-
ta fase, o conceito de anistia passou ser debatido de forma mais direta e aberta.
Em 2007, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
lançou o livro relatório Direito à Memória e à Verdade, traçando de forma siste-
matizada seus 12 anos de atuação e quase 400 casos reconhecidos de mortes e
desaparecidos praticados pela ditadura.
No mesmo ano, a Comissão de Anistia, empreende uma particular virada
hermenêutica e, em deliberada disputa pela significação deste mecanismo his-
tórico de clemência, institui atos públicos de pedidos de desculpas oficiais em
nome do Estado, a cada um dos ex-perseguidos e afetados pela violência do
Estado de Exceção, por meio das chamadas Caravanas da Anistia.30 Se o con-
ceito de anistia significava um gesto político do Estado direcionado a perdoar
os cidadãos enquadrados nos dispositivos legais da Doutrina de Segurança Na-
cional, com a medida, a anistia ressignificada passou a constituir-se em ato no
qual o cidadão violado é quem perdoa o Estado pelos erros cometidos contra
ele no passado. A declaração de anistiado político torna-se um ato oficial de
reconhecimento do direito de resistência da sociedade contra o autoritarismo e
a opressão. Se o significado da anistia, para alguns, reverberava o esquecimento
ou amnésia, agora ele passa, pela ação estatal de reconhecimento, a revelar o
protagonismo da reparação e da memória.31

30. Vide: abrãO, Paulo; Carlet, Flávia et alii. As caravanas da anistia: um mecanismo pri-
vilegiado da Justiça de Transição Brasileira. Revista Anistia Política e Justiça de Transi-
ção. n. 2. p.110-149. seção especial. Brasília: Ministério da Justiça, jul.-dez. 2009.
31. Neste mesmo sentido veja-se: baGGiO, Roberta. Justiça de Transição como reconheci-
mento: limites e possibilidades do processo brasileiro. In: SantOS, Boaventura; abrãO,
Paulo; maCdOWell, Cecília; tOrelly, Marcelo D. (orgs.). Repressão e memória política

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Verdade, MeMória e Justiça de transição 369

No mesmo sentido desta ressignificação institucional e política da ideia de


anistia no Brasil, e considerando iniciativas do Ministério Público Federal em
ajuizar ações civis contra agentes torturadores da ditadura militar, a Comissão
de Anistia realizou uma Audiência Pública no Ministério da Justiça, apoiada
por mais de 30 entidades nacionais de direitos humanos, para questionar o
alcance e a interpretação da Lei de Anistia de 1979 como regra de impunidade
para os crimes contra a humanidade.32 O tema que era considerado um tabu po-
lítico foi recolocado na pauta nacional. A ADPF 153, interposta pela OAB junto
ao STF é um dos produtos mais imediatos desta mobilização interinstitucional.
Em 2009, com a ampliação do rol de atores sociais atuantes na pauta, a
sociedade civil mobilizada aprova junto à Conferência Nacional de Direitos
Humanos a proposta de uma “Comissão da Verdade e Justiça”. A pauta seria
incorporada ao III Plano Nacional de Direitos Humanos,33 e coadunaria, dois
anos depois, na criação da Comissão Nacional da Verdade.

no contexto ibero-brasileiro. Brasília: Ministério da Justiça; Coimbra: Universidade de


Coimbra, 2010. p. 260-285.
32. Diante das reivindicações sociais e das obrigações assumidas pelo Brasil em com-
promissos internacionais, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça promoveu
a audiência pública “Limites e possibilidades para a responsabilização jurídica dos
agentes violadores de direitos humanos durante o estado de exceção no Brasil” ocor-
rida em 31.07.2008. Foi a primeira vez que o Estado brasileiro tratou oficialmente
do tema após quase trinta anos da lei de anistia. A audiência pública promovida
pelo poder executivo, com a devida representação de posições jurídicas e políticas
divergentes, rompeu com uma espécie de mito em torno do “tema proibido” e teve o
condão de unir forças que se manifestavam de modo disperso, articulando as iniciati-
vas da Ordem dos Advogados do Brasil, do Ministério Público Federal de São Paulo,
das diversas entidades civis, como a Associação dos Juízes pela Democracia, o Centro
Internacional para a Justiça e o Direito Internacional (Cejil), a Associação Brasileira
de Anistiados Políticos (Abap), a Adnam (Associação Nacional Democrática Nacio-
nalista de Militares), e, ainda, fomentou a rearticulação de iniciativas nacionais pró-
-anistia. A audiência pública resultou em um questionamento junto ao STF, por meio
de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153) pelo
Conselho Federal da OAB. Ressalte-se que a controvérsia jurídica debatida e levada
ao STF pela OAB advinha, inclusive, do trabalho do Ministério Público Federal de
São Paulo ao ajuizar ações civis públicas em favor da responsabilização jurídica dos
agentes torturadores do DOI-Codi, além das iniciativas judiciais interpostas por fami-
liares de mortos e desaparecidos, a exemplo do pioneirismo da família do jornalista
Vladimir Herzog que, ainda em 1978, saiu vitoriosa de uma ação judicial que decla-
rou a responsabilidade do Estado por sua morte e afastou a versão oficial e inverídica
de seu suicídio.
33. Disponível em: [http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf].

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370 Revista de diReito BRasileiRa 2012 • RDBRas 3

Em 2010, os familiares dos mortos e desaparecidos no episódio da Guerri-


lha do Araguaia, com apoio do Cejil (Centro pela Justiça e o Direito Interna-
cional), conquistam uma sentença junto à Corte Interamericana de Direitos
Humanos declarando o dever do Estado brasileiro em suspender todos os obs-
táculos jurídicos impeditivos do direito à proteção judicial das vítimas, inclu-
sive na esfera penal, e de declarar a Lei de Anistia brasileira como uma clara
autoanistia incompatível com a jurisprudência do Sistema Interamericano de
Direitos Humanos, especialmente em relação às graves violações contra os di-
reitos humanos.34
Como se percebe, na segunda fase da luta pela anistia, desde o trabalho das
comissões de reparação e das ações políticas de promoção da memória e da ver-
dade, resgata-se e amplia-se o leque de atores sociais mobilizados para a agenda
da Justiça de Transição.35 Mobilizam-se os familiares dos mortos e desapareci-
dos, os movimentos dos presos e perseguidos políticos, o movimento dos traba-
lhadores civis demitidos em lutas paredistas, o movimento de outros segmentos
civis e militares sociais atingidos por atos de exceção, e toda uma agenda de
entidades de direitos humanos que se volta à temática com grande vitalidade.
Este momento de conscientização social sobre o passado gerou a corrosão
dos pilares do negacionismo e do esquecimento, restando funcional apenas o pi-
lar da impunidade, assegurada nos dias de hoje pela persistência da leitura dada
a anistia de 1979 pelos tribunais superiores brasileiros.

6. imPunidades e justiça de transição


A impunidade dos crimes de Estado perpetrados pela ditadura civil militar
abrange duas dimensões. Uma relativa ao conhecimento histórico das graves vio-
lações aos direitos humanos e suas autorias individuais e institucionais. Outra à
possibilidade jurídica de aplicação de sanções penais e civis a estes autores.

34. Sobre a mobilização junto à Corte, veja-se: kriStiCeViC, Viviana; aFFOnSO, Beatriz. A
dívida histórica e o caso Guerrilha do Araguaia na Corte Interamericana de Direitos
Humanos impulsionando o direito à verdade e à justiça no Brasil. In: payen, Leigh
A.; abrãO, Paulo; tOrelly, Marcelo D. (orgs.). A anistia na era da responsabilização
– O Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça;
Oxford: Universidade de Oxford, 2011. p. 344-390.
35. Ao colocar na agenda nacional tal questionamento, as comissões de reparação re-
capitalizaram o papel político dos ex-perseguidos políticos. Entidades que haviam
afastando-se momentaneamente da agenda justransional, como a OAB, a União Na-
cional dos Estudantes, o Movimento de Direitos Humanos, a Associação Brasileira de
Imprensa e a própria Conferência Nacional dos Bispos do Brasil retornam ao tema.

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Verdade, MeMória e Justiça de transição 371

Sobre o primeiro aspecto, a lei que institui a Comissão da Verdade pode


representar um avanço. Enquanto que as Comissões de reparação, por com-
petência legal, apenas puderam reconhecer fatos e assumir a responsabilida-
de abstrata do Estado brasileiro pelas violações ocorridas,36 a Comissão da
Verdade tem poderes para sistematizar, pelo menos, as graves violações aos
direitos humanos (torturas sistemáticas, desaparecimentos forçados, execu-
ções sumárias, genocídios e massacres) e identificar sua autoria individual e
institucional.
Isso significa que a Comissão da Verdade tem poderes para apurar todas
as violações ocorridas, verificando um certo grau de responsabilidade, uma
responsabilidade individual em sentido amplo. Não uma responsabilidade es-
tritamente jurídica ou judicial, mas sim no escopo do exercício do direito à
verdade que é pertencente às vítimas e a toda a sociedade. O próprio STF brasi-
leiro negou o direito à proteção judicial das vítimas, impedindo a investigação
criminal dos fatos cobertos pela Lei de Anistia, mas afirmou o direito à verdade
da sociedade.
E, neste aspecto, o Brasil diferenciou-se da tradição latino-americana de as-
sociar verdade e justiça. “No hay verdad sin justicia”, expressa o Estado argenti-
no que, em 2005, por meio de sua suprema corte, declarou a lei local de anistia
inconstitucional. Com isso, foi possível abrir processos contra cerca de mil
agentes da ditadura, sendo que 250 já foram condenados por crimes graves,
entre outros, o ex-ditador Jorge Videla.37 O Chile, mesmo não revogando sua
Lei de Anistia, reconheceu e cumpriu a jurisprudência da Corte Interamerica-
na de Direitos Humanos para abrir investigações e condenar casos de graves
violações aos direitos humanos que, como já dito, escapam ao alcance das Leis
de Anistia.38 O Uruguai condenou Juan Bordaberry, seu último ditador, por
atentado contra a democracia e por ser responsável por crimes de desapareci-
mento forçado, além de viver um intenso debate sobre a promoção de justiça

36. Aquilo que Torelly definiu como o “modelo transicional brasileiro de responsabilida-
de abstrata” e que agora pode ser revertido, a depender do êxito das ações judiciais
em curto pelo Ministério Público Federal e do trabalho da Comissão Nacional da
Verdade. Para conhecer o modelo proposto por Torelly, veja-se: tOrelly, Marcelo D.
Justiça de transição e estado constitucional de direito. Coleção Fórum Justiça e Demo-
cracia. Belo Horizonte: Fórum, 2012. vol. 2, p. 354-368.
37. A esse respeito, veja-se: Cels/ICTJ. Hacer justicia. Buenos Aires: Siglo XXI, 2011.
38. Sobre o caso chileno, veja-se: COllinS, Cath et alli. Verdad, justicia y memoria: las
violaciones de derechos humanos del pasado. Informe anual sobre derechos humanos
en Chile 2011. Santiago: Universidad Diego Portales, 2011. p. 19-53.

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372 Revista de diReito BRasileiRa 2012 • RDBRas 3

ante a outras violações.39 O Peru indiciou e sentenciou Alberto Fujimori.40 A


Guatemala abriu dois julgamentos por acusações de genocídio contra o ex-
-ditador Efraín Ríos Montt.41
São medidas que expressam para as sociedades destes países que a lei é
igual para todos, inclusive para aqueles que um dia estiveram em posição de
poder para manipular o modo de produção legislativa e direcionar institutos
jurídicos de clemência para seus próprios crimes. Trata-se de uma concepção
na qual o Estado democrático presta contas daquilo que foi feito anteriormente
pelo Estado de Exceção, pela via da Justiça de Transição.
A Justiça de Transição, in concreto, pode ser concebida segundo três ca-
racterísticas: a complementaridade, a circularidade e a contextualidade dos seus
mecanismos.
Complementaridade significa que verdade, memória, justiça e reparação são
elementos que se entrecruzam, suas funções são superpostas e interdependen-
tes. Por exemplo, o direito à verdade depende tanto da atuação das comissões
de verdade e reparação quanto do sistema de justiça.
Circularidade significa que os resultados de uns destes mecanismos reme-
tem a necessidade de aplicação dos outros. Por exemplo, o trabalho final de
uma comissão da verdade impõe novas medidas reparatórias, abre horizontes
de justiça e promove novas memórias.
Contextualidade, por sua vez, implica que os mecanismos são aplicados
conforme as características históricas, políticas e de cada transição local. Por
exemplo, as ditaduras na América Latina ocorreram no contexto da Guerra
Fria, estimuladas por uma das potências do mundo bipolar contra a expansão

39. Veja-se: leSSa, Francesca. Barriers to justice. The ley de caducidad and impunity in
Uruguay. In: leSSa, Francesca; payne, Leigh A. (orgs.). Amnesty in the age of human
rights accountability – Comparative and international perspectives. Nova Iorque: Cam-
bridge University Press, 2012. p. 123-151, bem como Skaar, Elin. Impunidade versus
responsabilidade no Uruguai: o papel da ley de caducidad. In: payne, Leigh; abrãO,
Paulo; tOrelly, Marcelo D. A anistia na era da responsabilização. Brasília: Ministério
da Justiça; Oxford: Universidade de Oxford, 2011. p. 428-469.
40. Cf.: burt, Jo-Marie. Culpado: o julgamento do ex-presidente peruano Alberto Fuji-
mori por violações dos direitos humanos. Revista Anistia Política e Justiça de Transi-
ção. n. 4. p. 108-137. Brasília: Ministério da Justiça, jul.-dez. 2010.
41. Veja-se: rOth-arriaza, Naomi; braid, Emily. De facto and de Jure amnesty laws: the
Central American case. In: leSSa, Francesca; payne, Leigh A. (orgs.). Amnesty in the
age of human rights accountability – Comparative and international perspectives. Nova
Iorque: Cambridge University Press, 2012. p. 182-209.

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Verdade, MeMória e Justiça de transição 373

do poder da outra. No caso brasileiro, lutava-se contra a expansão do pen-


samento socialista e das ideias de esquerda. As ditaduras do Leste Europeu,
por sua vez, são contextualmente diferentes das do Cone Sul. As eventuais
democracias que insurjam do processo da Primavera Árabe serão, igualmente,
distintas. Esses padrões contextuais devem ser levados em conta tanto para a
integração de políticas interestatais, quando para sua diferenciação.
Para a América Latina, que possui défices históricos na consolidação do
Estado de Direito, é particularmente caro que o sistema de Justiça participe do
processo de democratização da sociedade e das instituições, e supere um con-
junto de jurisprudências autoritárias para afirmar os direitos humanos visando
vocacionar-se para a superação de uma concepção institucional de controle
social repressivo rumo a uma concepção de segurança e justiça protetiva da
emancipação social. Por sua vez, no Leste Europeu o deságio residia na própria
construção de sistemas de justiça vinculados ao ideário constitucionalista.42
Se estas diferenças contextuais inter-regiões são relevantes, as distinções
intra-regionais também merecem atenção. É preciso registrar que a coopera-
ção entre as justiças dos países sul-americanos, por exemplo, tem sido vital
para a promoção de justiça. A posição do Brasil sobre Justiça de Transição
tem, assim, reflexos em nível regional, vez que perpetradores de outros países
latino-americanos estão em território nacional e suas extradições dependem da
compreensão jurídica que o Brasil assume sobre a sua própria anistia.

7. anistia como “verdade e justiça”?


Atualmente emergem no Brasil novos movimentos sociais com o lema da bus-
ca de Verdade e Justiça, que são análogos aos movimentos que antes surgiram
na Argentina e no Chile. Questionam a validade da Lei de Anistia. Exigem o
cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos para
que sejam superados os obstáculos jurídicos para a responsabilização judicial
dos agentes perpetrados de crimes contra a humanidade.43
Se na primeira fase da luta pela anistia os movimentos sociais demanda-
vam liberdade, e na segunda reparação e memória, estes novos movimentos
sociais avançam ainda mais a agenda da transição, inaugurando a terceira fase

42. SChWartz, Herman. The struggle for constitutional justice in post-communist Europe.
Chicago: Chicago University Press, 2002.
43. Um exemplo pode ser encontrado em: mOurãO, Alexandre et alii. Os aparecidos polí-
ticos: arte ativista e Justiça de Transição. Revista Anistia Política e Justiça de Transição.
n. 6. Brasília: Ministério da Justiça, jul.-dez. 2011, no prelo.

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374 Revista de diReito BRasileiRa 2012 • RDBRas 3

da luta pela anistia, ao demandarem verdade e justiça. No período recente, após


a aprovação da Comissão da Verdade e da Lei de Acesso à Informação, vemos
surgirem novos atores sociais da agenda justransicional: os comitês estaduais
pela memória, verdade e justiça, o “movimento quem?”, o “levante popular
da juventude” e os “aparecidos políticos” são alguns destes novos atores. A
manifestação popular contra a comemoração do golpe de 1964 pelos clubes
militares em 2012, no Rio de Janeiro, e os atos políticos dos “escrachos”, de-
monstraram a capacidade de mobilização destes atores e grupos.44
Tal qual os movimentos anteriores, estes novos movimentos sociais não se
insurgem contra a anistia, que mantém sua centralidade na agenda da Justiça
de Transição brasileira desde os anos 1970, mas sim disputam seu significado,
apontando para uma leitura da anistia enquanto justiça e verdade, que exclua
dos efeitos da Lei de Anistia de 1979 os graves delitos de Estado, os denomina-
dos crimes contra a humanidade. Pode-se dizer que buscam gerar as condições
objetivas para aproximação com o modelo chileno de Justiça de Transição,
onde uma anistia penal para crimes comuns convive com julgamentos por
delitos contra graves violações contra os direitos humanos.45
O que explica a eficácia da Lei de Anistia no Brasil, distintamente dos de-
mais países latino-americanos, é a combinação de fatores históricos, relacio-
nados à transição controlada; fatores sociais, como a mobilização social tardia
em torno do tema; fatores políticos, típicos dos presidencialismos de coalizão
e da dificuldade de composição de maiorias estáveis e programáticas; e fatores
jurídicos, especialmente em razão da decisão do STF ao validar a bilateralidade
da Lei de Anistia de 1979.
A interpretação dada à Lei de Anistia pelo Judiciário da ditadura (em es-
pecial pelo STM), recentemente reiterada pelo STF democrático por meio do
julgamento da ADPF 153 é um desafio objetivamente colocado.
A decisão do STF baseou-se, em síntese, em três argumentos: 1.º) Por ser
bilateral, a Lei de Anistia brasileira não se trataria de uma autoanistia, como
outras da região; 2.º) Contra a anistia brasileira não se aplicaria a tipologia
de crimes contra a humanidade, e; 3.º) Tratando-se de uma lei de reconcilia-

44. Cf.: Comemoração do golpe de 64 termina em tumulto no Rio. Disponível em: [http://
veja.abril.com.br/noticia/brasil/comemoracao-do-golpe-de-64-termina-em-tumulto].
45. O modelo de “equilíbrio da justiça”, exemplificado pela compatibilização entre anis-
tias e julgamentos é defendido por alguns autores como aquele que mais produz apri-
moramento democráticos pós-transicionais. Confira-se: OlSen, Tricia; payne, Leigh
A.; reiter, Andrew. Transitional justice in balance. Washington: United States Peace
Institute, 2010.

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Verdade, MeMória e Justiça de transição 375

ção, somente o Poder Legislativo poderia modificá-la. Coincidentemente, essas


foram as mesmas fundamentações recentemente utilizadas no julgamento do
magistrado espanhol Baltazar Garzón, o que permite corroborar a por muitos
alegada similitude entre o processo transicional brasileiro e espanhol.46
Particularmente temos leitura crítica a esta decisão pelos seguintes moti-
vos: (a) ela reconhece no regime iniciado após o golpe de Estado em 1964 os
elementos essenciais de um Estado de Direito, (b) considera legítimo o pacto
político contido na Lei de Anistia que, mesmo sendo medida política, teria o
condão de subtrair um conjunto de atividades delitivas da esfera de atuação do
poder judiciário, (c) consequentemente, como efeito prático, negou o direito
à proteção judicial aos cidadãos violados em seus direitos fundamentais pelo
regime militar por meio de exercício de controle de constitucionalidade, (d)
reconhece que a Lei de Anistia e a Emenda Constitucional convocatória da
Constituinte são as bases do Estado Democrático de Direito no Brasil, (e) igno-
ra que anistiar aos “dois lados” em um mesmo ato não anula o fato de que, no
ato, o regime estaria anistiando a si próprio, (f) não leva em conta os tratados
e convenções internacionais em matéria de direitos humanos, especialmente
a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que já havia
declarado como inválidas as autoanistias e anistia a graves violações contra os
direitos humanos, (g) omite-se quanto ao tratamento consoante os preceden-
tes do próprio tribunal constitucional pátrio, em sede da imprescritibilidade
dos crimes de desaparecimento forçado, forjados nos casos de extradição de
repressores argentinos.
Assim, o fato é que a decisão do STF tornou a Lei de 1979, em sua dimensão
de “impunidade”, formalmente válida no ordenamento jurídico democrático
brasileiro, estabelecendo uma continuidade direta e objetiva entre o sistema
jurídico da ditadura e o da democracia.
Evidentemente é muito cedo para saber se esta terceira fase da luta pela
anistia no Brasil tem ou gerará a força política necessária para alterar este esta-
do das artes, mas o certo é que, como nos demais países da região, somente a
atuação social poderá ensejar tal alteração.47

46. Huntiginton, por exemplo, define os dois casos como emblemáticos do modelo de
“transição por transformação”. Cf.: huntinGtOn, Samuel. The third wave. Norman:
Oklahoma University Press, 1993.
47. Como recentemente afirmado pela titular da Comissão Nacional da Verdade, Rosa
Cardoso. Cf.: Revisão da Anistia depende da opinião pública. O Estado de S. Paulo.
Disponível em: [www.estadao.com.br/noticias/impresso,revisao-da-anistia-depende-
-de-opiniao-publica-diz-rosa-cardoso-cunha,873966,0.htm].

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376 Revista de diReito BRasileiRa 2012 • RDBRas 3

Essa possibilidade de nova ressignificação do conceito de anistia no Brasil,


rumo à Verdade e a Justiça, constitui-se em momento de reflexão sobre as co-
nexões entre a política e o direito e envolvem um conjunto de aspectos muito
interessantes:
a) A relação do direito internacional e o direito nacional no Brasil;
b) Os fundamentos da Constituição brasileira;
c) Os efeitos penais e civis das Leis de Anistia;
d) A distinção de crimes políticos e crimes comuns;
e) O papel do Judiciário nos processos de democratização.
O certo é que já existem resultados tangíveis que apontam ao menos para
uma nova etapa de nossa Justiça de Transição. Primeiramente, temos hoje po-
sitivado em nosso ordenamento o Direito à Verdade. Depois, resta criada e em
funcionamento uma Comissão Nacional da Verdade, com poderes e estrutura
para promover algo nunca antes feito em nosso país: a sistematização e a iden-
tificação das autorias de um conjunto de violações contra os direitos humanos
promovidas pela ação ou omissão estatal, acompanhada de um conjunto de
sugestões de reformas para o enfrentamento do legado de tais violações.
A Comissão da Verdade é produto de um processo histórico que deita lon-
gas raízes, chegando a disputa original pelo conceito de anistia presente nas
ruas em 1979. Constitui, certamente, um momento ímpar e extraordinário
para avançar. Tem poderes, estrutura e atribuições que nenhum outro meca-
nismo de nossa justiça transicional já teve.
Não obstante, a Comissão Nacional da Verdade não será a última etapa de
nossa agenda transicional. Somando-se aos esforços já empreendidos, a Comis-
são da Verdade é um passo a frente, pois seria um erro esperar que a Comissão
da Verdade possa ou deva dar conta de todas as dívidas pendentes da transição,
ou que seja sua responsabilidade fazê-lo isoladamente. Experiência como a do
Chile, que teve duas comissões da verdade e uma mesa de negociação, são ex-
tremamente exemplificativas dos potenciais e limitações que tais mecanismos
têm para fazer avançar a democracia.48
A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso “Guer-
rilha do Araguaia” também foi elemento determinante para a alteração da po-
sição institucional do Ministério Público Federal que, após defender a anistia
enquanto impunidade no julgamento da ADPF 153, passa agora a buscar alter-

48. Cf.: “Verdade e Justiça em perspectiva comparada”. José Zalaquett responde Marcelo
D. Torelly. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. n. 4. p. 12-29. Brasília: Minis-
tério da Justiça, jul.-dez. 2010.

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Verdade, MeMória e Justiça de transição 377

nativas para contornar tal interpretação e processar pelo menos as mais graves
violações praticadas contra os direitos humanos, incorporando em sua atua-
ção institucional importantes aportes da doutrina do Direito Internacional dos
Direitos Humanos. Propiciando, então, um deslocamento gradual do modelo
de impunidade espanhol para o modelo de responsabilidade parcial chileno.
Finalmente, tivemos recentemente a primeira denúncia criminal aceita pela
Justiça Federal do Brasil, no estado do Pará.49
Aos somarem-se ao contexto dos novos atores sociais atualmente mobili-
zadas, essas mudanças institucionais insurgem-se justamente contra o último
sustentáculo da estratégica de saída dos agentes do regime militar de 1964: a
perpetuação da impunidade. Embora ainda muito recente, esse novo cenário
que se desenha é o mais favorável para a Justiça de Transição no Brasil desde
a redemocratização.

8. aPortes Finais: a anistia enquanto reParação, memória, verdade e


justiça
Este estudo buscou resumir e apresentar, de forma direta e sintética, um
conjunto de argumentos que vem sendo construído coletivamente a alguns
anos para não apenas explicar, mas também incidir no processo transicional
brasileiro. Resumimos, então, suas teses centrais.
Primeiro, de que a anistia é um elemento cuja centralidade e mutabilidade
são fundamentais para a devida compreensão da Justiça de Transição brasi-
leira. Do conceito de anistia emana toda a concepção da Justiça de Transição
no Brasil. No Brasil, Verdade, Reparação e Justiça dependem do conceito de
anistia. Sem compreender a amplitude, ambiguidade e a disputa em torno do
conceito de “anistia” no Brasil corre-se o risco de assimilar um senso comum
do discurso da “anistia enquanto impunidade e esquecimento”, desperdiçando
o enorme potencial político que o conceito de anistia tem em nossa transição
para a expansão das liberdades públicas.
Segundo, que o processo de reparação as vítimas foi o eixo estruturante
da Justiça de Transição no Brasil. Mesmo tratando-se de um processo tardio,
quando comparado com o dos países vizinhos, temos que seu fluxo de se-
guimento nunca cessou e desenvolveu-se gradualmente, com o somatório de
forças ocorrendo justamente na medida que o processo de reparação corroía

49. Justiça Federal. Seção do Pará. Subseção Marabá. 2.ª Vara. Autos n. 4334-
29.2012.04.01.3901.

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378 Revista de diReito BRasileiRa 2012 • RDBRas 3

dois dos pilares de sustentação da estratégia de saída do regime (a negação da


existência de vítimas e a imposição do esquecimento), engendrando, inclusive,
o atual questionamento do pilar da impunidade.
Terceiro, a luta pela anistia atravessa gerações e consolida-se como mar-
co de formação de nossa identidade democrática. É por meio desta luta que
a sociedade se mobiliza para mudar um conjunto de alegados elementos de
conformação de nossa identidade nacional, como a premissa do “homem cor-
dial”, avesso à ruptura, que é apropriada e distorcida pela estratégia de saída do
regime por meio de um “acordo político”. É esta luta que nos leva a refutar a
ilação de que somos um povo pacífico, somente porque temos um número de
vítimas fatais menor em nossa ditadura que nas de alguns dos países vizinhos,
que nos leva à falácia da “dita branda”. E, sobretudo, a ideia de que é possível
esquecer o passado e olhar para o futuro como se o mundo se iniciasse neste
mesmo instante.
Quarto, o processo transicional brasileiro nos deixa claro que somente um
amplo trabalho político e jurídico é capaz de superar o legado e os reflexos
das culturas autoritárias advindas dos regimes de exceção, e que é função do
Direito das democracias do presente romper com as pretensões das transições
controladas.
Quinto, o legado de direitos que a Justiça de Transição vem consolidando,
no Brasil e no mundo, é um patrimônio comum da humanidade, que deve ser
cultivado e universalizado. No plano doméstico, o enfrentamento ao autorita-
rismo deve ser estendido a outras causas e a outros períodos. O direito à verda-
de e ao acesso à informação é, sem dúvida, um exemplo por excelência do que
esta conclusão pretende apontar. Todos temos direito a um Estado transparente
e que preste contas a população sobre seus atos. Esse é um exemplo de legado
transicional que deve ser universalizado. No plano internacional, resta clara a
consolidação de uma norma global de responsabilização individual. Seja no plano
civil, seja no plano criminal, nenhuma pessoa pode ser considerada inalcançá-
vel pelo devido processo legal, nem ser excluída da responsabilidade por seus
atos quando estes implicam em graves violações contra os direitos humanos.
As experiências de Justiça de Transição nos demonstram que a palavra “jus-
tiça” não existe no singular, vez que pode ser praticada de distintas maneiras.
Não obstante, parece-nos claro que a noção de crimes contra a humanidade,
impassíveis de anistia e imprescritíveis, ajuda a consolidar um padrão mínimo
de justiça efetivamente capaz de promover a proteção dos direitos humanos
globalmente.

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Verdade, MeMória e Justiça de transição 379

pEsquisas DO EDitOriaL
veja também doutrina
• A Declaração de Inconvencionalidade da Lei de Anistia brasileira pela corte interame-
ricana de direitos humanos no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil (Guerrilha do Ara-
guaia), de Deo Campos Dutra e Sílvia Maria Da Silveira Loureiro – RT 920/183; e
• Lei de Anistia: um debate imprescindível, de Pierpaolo Cruz Bottini e Igor Tamasauskas
– RBCCrim 77/101.

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