Cheikh Anta Diop - Existe Uma Filosofia Africana

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civilização ou barbárie - uma autêntica antropologia (Cheikh Anta Diop)

Cap. 17:

🐝
Existe uma filosofia africana?1

A contribuição egípcia para o Pensamento Filosófico Mundial

No sentido clássico do termo, um pensamento filosófico deve sustentar


pelo menos dois critérios fundamentais:

1. Deve estar consciente de si mesmo, de sua própria existência


enquanto pensamento.
2. Deve ter realizado, em grau suficiente, a separação entre mito e
conceito.
Através dos exemplos dados abaixo, veremos que às vezes é difícil
aplicar este último critério, mesmo à filosofia clássica grega. Antes de avaliar
até que ponto o universo conceitual africano respeitou esses dois princípios,
delimitemos primeiro, com precisão, a área cultural à qual nossa análise se
aplica. Inclui o Egito faraônico e o resto da África Preta.
Em relação à África Preta, o Egito desempenhou o mesmo papel que a
civilização greco-latina desempenhou em relação ao Ocidente. Um
especialista europeu, em qualquer domínio das humanidades, seria
desaconselhável realizar qualquer trabalho científico se se separasse do
passado greco-latino. Da mesma forma, os fatos culturais africanos só
encontrarão seu significado profundo e sua coerência em referência ao
Egito2. Podemos construir um corpo de disciplinas nas humanidades apenas
legitimando e sistematizando o retorno ao Egito: no decorrer desta
consideração, veremos que apenas os fatos egípcios nos permitem encontrar,
aqui e ali, o denominador comum dos resquícios do pensamento, uma
conexão entre as cosmogonias africanas em processo de fossilização.
Porque o pensamento filosófico egípcio lança uma nova luz sobre o da
África Preta, e mesmo sobre o da grécia, "berço" da filosofia clássica, é
importante resumi-lo primeiro, para melhor focar, posteriormente, suas muitas
vezes insuspeitadas articulações, ou seja, seus empréstimos. Essa maneira
de apresentar os fatos, respeitando a cronologia de sua gênese e suas
verdadeiras conexões históricas, é a forma mais científica de retraçar a
evolução do pensamento filosófico e de caracterizar sua variante Africana.

Cosmogonia Egípcia

1
[Tradução Parte 1- Adeodé Geru Rekheru]
2
Cheikh Anta Diop, Nações negras e Cultura (Paris: Présence Africaine, 1954/1979).

1
civilização ou barbárie - uma autêntica antropologia (Cheikh Anta Diop)

A "cosmogonia" egípcia resumida aqui é a atestada pelos textos das


pirâmides (2600 a.E.C), para que possamos nos ater a fatos seguros, ou seja,
à época em que nem os gregos ainda existiam na história, e quando as
filosofias chinesa e hindu eram insignificantes [meaningless].
Pode-se distinguir três grandes sistemas de pensamento no Egito que
tentaram explicar a origem do universo e a aparência de tudo o que é: o
sistema Hermopolitano3, o sistema Heliopolitano4, o sistema Menfita5, e a
este pode ser adicionado o sistema Tebano6.
O resumo abaixo condensa o essencial dessas quatro doutrinas, mas é
rigorosamente fiel aos textos egípcios; não é uma interpretação tendenciosa.
De acordo com esses sistemas, o universo não foi criado ex nihilo [do
Nada], em um determinado dia; mas sempre existiu uma matéria incriada,
sem começo nem fim (o apeiron, sem limite e sem determinação, de
Anaximandro, Hesíodo etc.); essa matéria caótica era, na origem, o
equivalente do não-ser, pelo simples fato de ser desorganizada: assim, o
não-ser não é, aqui, o equivalente do nada, do qual surgiria, ninguém sabe
como, a matéria que seria a substância do universo. Essa matéria caótica
continha no estado arquetípico (de Platão) todas as essências do corpo dos
futuros seres que, um dia, seriam chamados à existência: céu, estrelas, terra,
ar, fogo, animais, plantas, seres humanos, etc. Esta matéria primordial, o
nous ou as "águas primordiais", foi elevada ao nível de divindade (chamado
Nun na cosmogonia egípcia). Assim, desde o início, cada princípio de
explicação do universo é duplicado por uma divindade, e à medida que o
pensamento filosófico se desenvolveu no Egito, e mais particularmente na
Grécia (escola materialista), este último substituiu o primeiro.
A matéria primitiva continha também a lei da transformação, o princípio
da evolução da matéria ao longo do tempo, igualmente considerada uma
divindade: Khepera. É a lei do devir que, agindo sobre a matéria através do
tempo, atualizará os arquétipos, as essências, os seres que, portanto, já são
criados em potencialidade, antes de serem criados em ato. (Eis, o "O Mesmo
e o Outro" de Platão, a teoria da reminiscência etc.; e a matéria e privação de
Aristóteles, potencialidade e atualidade etc.).
Então, levada por seu próprio movimento evolutivo, a matéria eterna,
incriada, à força de passar pelas etapas da organização, acaba por se tornar

3
N.d.T.: De Hermópolis, "Cidade de Hermes", ou seja, Local onde se cultuava Tehwty, chamado
originalmente de Khnm [Khanum], que é o termo usado para se referir ao número 8, o qual está
relacionado diretamente ao acrônimo dos 8 nTrw [entidades-forças da natureza] dos quais Diop
tratará adiante e ao qual os gregos renomearam de ogdóade.
4
N.d.T.: De Heliópolis, "Cidade de Hélio [Sol]", ou seja, Local onde se cultuava Atom-Rá, onde era
chamado originalmente de An [também nomeado como On, Anun, Iunu (o Pilar), Iunet Mehet (o Pilar
do Norte)].
5
N.d.T.: Local chamado originalmente de Hiku-Ptah | Hwt-Ka-Ptah ("Casa da 'alma' de Ptah" |
"Casa em que Ptah habita") , termo ao qual, provavelmente deu origem ao termo grego "Egipto". Em
algumas épocas Mênfis foi chamado de "Ankh-Tawy" ("a Vida das duas Terras"). Mênfis, segundo
alguns estudiosos, é um termo derivado de Men-nefer-Mará que se tornou, Men-nefer > Menti,
depois os gregos renomearam para Mênfis.
6
N.d.T.: De Tebas, também conhecido como Luxor, era o Local chamado originalmente de Waset |
Wast.

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autoconsciente. A primeira consciência emerge assim do Nun7 primordial; é


Deus, Rá, o demiurgo (de Platão) que vai completar a criação.
Até este ponto, a "cosmogonia" egípcia é materialista em essência; pois
está professando uma fé materialista ao postular a existência de uma matéria
eterna incriada, excluindo o nada e contendo seu próprio princípio de
evolução como propriedade intrínseca. Esse componente materialista do
pensamento egípcio prevalecerá entre os atomistas gregos e latinos:
Demócrito, Epicuro e Lucrécio.
Mas com o aparecimento do demiurgo, Rá, a cosmogonia egípcia toma
um novo rumo com a introdução de um componente idealista: Rá realiza a
criação através da palavra ([como no] islamismo e as religiões
judaico-cristãs), o logos ([como em] Heráclito), o espírito ([como] o idealismo
objetivo de Hegel).
Assim que Rá concebe seres, eles emergem à existência. Há, portanto,
uma relação óbvia e objetiva entre o espírito e as coisas. O real é
necessariamente racional, inteligível, porque é espírito; portanto, o espírito
pode perceber a natureza externa. Rá é o primeiro Deus, o primeiro demiurgo
da história que criou através da palavra. Todos os outros deuses da história
vieram depois dele, e existe uma relação histórica demonstrável entre a
palavra de Rá, o Ka - ou a razão universal que está presente em todo o
universo e em todas as coisas - e o logos da filosofia grega ou a Palavra de
Deus das religiões reveladas.
"A ideia objetiva" de Hegel nada mais é do que a palavra (de Rá) de
Deus, sem Deus, uma versão mitificada da religião judaico-cristã, como
observou Engels.
Então, Rá cria os quatro pares divinos, de acordo com a cosmogonia
Heliopolitana:

1. Shu e Tefnut = Ar (espaço) e Humidade (Água).


2. Geb e Nut = terra e Céu (Luz, Fogo)8.

Nesses dois primeiros pares se encontram os quatro elementos que


compõem o universo dos filósofos gregos pré-socráticos (Tales, Anaximandro,
Heráclito, Parmênides, Anaxágoras), a saber, ar, água, terra, fogo; mesmo
Platão ainda os adotará.

3. Osíris9 e Ísis10: o casal humano fértil que gerará a humanidade


(Adão, Eva).
4. Set11 e Néftis12: o casal estéril que introduzirá o mal na história
humana; não há noção de pecado original aqui; o mal é introduzido por
7
Nun: as lamacentas águas pretas do Nilo durante o tempo da criação cósmica.Veja:
Nações negras e Cultura, op.cit., edição revista, 1979, p.169 [edição francesa].
8
DIOP, Parenté génétique de l'égyptien et des langues nègro-africaines, op.cit., p.228.
9
N.d.T.: no mDw nTr original é Wsir.
10
N.d.T.: no mDw nTr original é Ast ou Ist.
11
N.d.T.: no mDw nTr original é st [Set; Sat]
12
N.d.T.: no mDw nTr original é Nbt.hwt [nebthwt = senhora|dona da casa].

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homens, não por mulheres; não há pessimismo, nem misoginia, típicos das
sociedades nômades arianas-semitas13.
Em conclusão, um componente idealista (ou espiritualista) é introduzido
na cosmogonia egípcia com o aparecimento do demiurgo Rá, e é a base para
os conceitos da escola idealista grega (Platão, Aristóteles).
Finalmente, um terceiro componente da cosmogonia egípcia está,
historicamente falando, na origem das religiões reveladas (a judaico-cristã em
particular).
De fato, Rá é, na história do pensamento religioso, o primeiro Deus,
autógeno (que não foi criado, que não tem pai nem mãe).
Por outro lado, Set, com ciúmes por ser estéril, mata seu irmão Osíris
(que simboliza a vegetação, desde a descoberta da agricultura até o período
neolítico). Este último ressuscita dos mortos para salvar a humanidade (da
fome!). Osíris é o deus da redenção.
Em todo caso, Osíris é o deus que, três mil anos antes de Cristo, morre
e ressuscita dos mortos para salvar os homens. Ele é o deus da redenção da
humanidade; ele sobe ao céu para sentar-se à direita de seu pai, o grande
deus, Rá. Ele é o filho de Deus. No Livro dos Mortos, diz-se mil e
quinhentos anos antes de Cristo: "Esta é a própria carne de Osíris". Dionísio,
a réplica de Osíris no norte do Mediterrâneo, dirá quinhentos anos antes de
Cristo: "Beba, este é o meu sangue; coma, esta é a minha carne". E pode-se
ver como a degradação desses tipos de crenças pode levar à noção do
feiticeiro que come14 gente na África Preta.
A cosmogonia egípcia também afirma: "Eu era um; tornei-me três";
essa noção de trindade permeia todo o pensamento religioso egípcio e é
encontrada novamente nas múltiplas tríades divinas como Osíris-Ísis-Hórus,
ou Rá, de manhã, ao meio-dia, à noite.
O termo "Cristo" não é uma raiz indo-européia. Veio da expressão
egípcia faraônica Kher sesheta: "aquele que vigia os mistérios", e foi
aplicada às divindades, Osíris, Anúbis15, etc. Foi aplicada a Jesus apenas no
século IV, por contaminação16 religiosa.
Um raio do céu desce sobre a novilha (símbolo de Hathor), que então
"gera" o deus Ápis17: sem qualquer dúvida possível, esta é a prefiguração da
imaculada concepção da Santíssima Virgem18.

Concepção do Ser. Segundo o pensamento egípcio, o ser é composto


por três princípios (Platão, Aristóteles), aos quais se pode acrescentar um
quarto: a sombra.

1. O Zed ou Khet, que se decompõe após a morte.

13
Émile Amélineau, Prolêgomènes à l'étude de la religion égyptienne, op.cit.
14
Veja A sentença dos canibais, pp.183-184 [no original] neste texto.
15
N.d.T.: no mDw nTr original é Anpw | Inpw [Anpu, Inpu].
16
Wörterbuch der Aegyptischen Sprache, IV, (Berlim: Akademie Verlag, 1971), p.298.
17
N.d.T.: no mDw nTr original é Hipw | Hapw, Hapi [em cópta: Hape].
18
Veja Jacques Pirenne, op.cit.

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2. O Ba, que é a alma corpórea do corpo (o "duplo" do corpo em toda a


África Preta).
3. A sombra do ser.
4. O Ka = princípio imortal que se une à divindade no céu após a morte.
Assim se funda, no plano ontológico, a imortalidade do ser (três mil
anos antes do nascimento das religiões reveladas). Cada pessoa
possui uma porção da divindade que preenche o cosmos e o torna
inteligível ao espírito. Talvez seja com base nisso que a cosmogonia
egípcia faz Deus dizer "que fez o homem à sua imagem".

Por fim, digamos que a ogdóade hermopolitana é composta


especificamente por quatro pares divinos que representam os princípios
opostos da natureza que deveriam estar na origem das coisas:

Kuk e Kuket = a escuridão primordial e seu oposto: escuridão e luz.


Nun e Nunet = as águas primordiais e seu oposto: matéria e nada
[matter and nothingness].
Heh e Hehet = espaço infinito e seu oposto: o infinito e o finito, o
ilimitado e o limitado.
Amon e Amonet = o oculto e o visível, númeno e o fenômeno19.
Niaou e Niaouet = o vazio e seu oposto: o vazio e o repleto, a matéria
(mais tarde).

Pode-se ver como o universo pode ser construído a partir dessas


noções, que também se tornarão a base da filosofia ocidental e
particularmente do pensamento dialético.
Pode-se medir, a partir desse relato que apenas arranha a superfície
desse assunto, tudo o que a filosofia grega deve ao pensamento egípcio dos
pretos do vale do Nilo: a teoria das oposições de Heráclito, a dialética de
Aristóteles... as diversas cosmogonias dos filósofos pré-socráticos, etc.

19
N.d.T.: se o autor estiver se referenciando em Immanuel Kant, então o termo fenômeno,
a grosso modo, faz referência à aparência das coisas. Ou seja, da "coisa-em-si" ( o
ser-em-si, a essência, a identidade daquilo que é, o númeno) nada podemos saber, e
portanto dizer de modo indubitável, apodítico, nos restando apenas o fenômeno [a(s)
aparência(s)] das "coisas|seres" que percebemos no mundo.

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