URGÊNCIA - Cetoacidose Diabética
URGÊNCIA - Cetoacidose Diabética
URGÊNCIA - Cetoacidose Diabética
MINISTÉRIO DA SAÚDE
DIRECÇÃO NACIONAL DOS HOSPITAIS
CID 10 - E10.1
1. INTRODUÇÃO
A diabetes mellitus tipo 1 (DM1) é uma das doenças endócrino-metabólicas crônicas mais comuns na
infância e adolescência, com distribuição desigual entre regiões1. A incidência mundial em crianças
com 15 anos ou menos é de aproximadamente 79.100 casos anualmente.1
A cetoacidose diabética (CAD) é a complicação aguda mais frequente da DM1 e com frequência é
forma inaugural da diabetes. É a urgência endócrino-metabólica mais comum nessa faixa etária e a
principal causa de hospitalização e óbito de pacientes diabéticos na infância.1
No Hospital Pediátrico David Bernardino, desde Janeiro de 2017 à Setembro 2021, foram
diagnosticadas 63 crianças com diabetes mellitus inaugural das quais 32 casos tiveram como
complicação CAD.2
2. DEFINIÇÃO
1
São critérios para o diagnóstico clínico da CAD:3-6
Hiperglicemia > 200mg/dL
Acidose pH <7,3 ou Bicarbonato <15 mmol/L
Cetonemia (≥3 mmol/L ou Cetonúria (≥ +++ ).
A gravidade da CAD é classificada pelo grau de acidose como leve (pH 7,20 - 7,30 ou Bicarbonato 10-
15 mmol/L, EB: 0 à -14); moderada (pH 7, 10 - 7, 19 ou Bicarbonato 5-9 mmol/L, EB: -15 à -25); ou
grave (pH <7,10 ou Bicarbonat0 <5 mmol/L, EB:> -26).3
3. EPIDEMIOLOGIA / ETIOLOGIA
No Hospital Pediátrico David Bernardino, desde Janeiro de 2017 à Setembro 2021, foram
diagnosticadas 63 crianças com diabetes mellitus inaugural das quais 32 casos tiveram como
complicação CAD2.
Na CAD, há uma redução na concentração final efectiva de insulina circulante juntamente com uma
elevação de hormônios contra-reguladoras (glucagon, catecolaminas, cortisol e hormônio do
crescimento). Essas alterações causam manifestações extremas de desarranjos metabólicos que podem
ocorrer no diabetes. Os dois eventos desencadeantes mais comuns são a insulinoterapia inadequada e a
infecção. Os medicamentos que afectam o metabolismo de carboidratos, como corticosteróides,
tiazidas, pentamidina, agentes simpatomiméticos (por exemplo, dobutamina e terbutalina) e agentes
antipsicóticos de segunda geração e inibidores de checkpoints imunológicos podem contribuir para o
desenvolvimento da CAD.7,8. O uso de inibidores do co-transportador de sódio e glicose 2 (SGLT-2)
também tem sido implicado no desenvolvimento de CAD euglicêmica em pacientes com diabetes tipo
1 e tipo 2.9-12
4. FACTORES DE RISCO3,4
Crianças < 2 anos
Infecções
Incumprimento terapêutico
6. DIAGNÓSTICO
I. CLÍNICO3-6
História
Os pacientes comumente apresentam uma história de poliúria e polidipsia devido à glicosúria. Pode
ocorrer uma perda de peso, apesar de um aumento no consumo calórico, devido à perda excessiva de
glicose pela urina e à incapacidade de se utilizar os substratos presentes na circulação.3,6
Exame físico
3
II. EXAMES COMPLEMENTARES3-5
Gasometria de sangue arterial
Glicose
Ionograma: Sódio, potássio, cloro, cálcio, fosfato e magnésio
Ureia e creatinina
Osmolaridade plasmática
Hemograma completo (tenha em consideração que a presença de leucocitose pode ser uma
resposta ao stress e não necessariamente indicar infeção)
Marcadores infecciosos: PCR, Procalcitonina
Urina II, Pesquisa de Plasmodium
Rx tórax
HbA1c
7. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Dor abdominal: Apendicite aguda, vólvulo, pancreatite, pielonefrite;
Insuficiência respiratória: Crise asmática, pneumonia;
Infecções: Meningite, encefalite, sépsis;
Intoxicações agudas. Etanol, etilengicol, isoniazida, salicilatos;
Crises cetoacidóticas associadas a acidemias orgânicas (metilmalónica, isovalérica)
8. TRATAMENTO3-6
I. Medidas gerais
Manter as vias aéreas livres
Medidas de ressuscitação se choque: 2 acessos venosos periféricos
Oxigenoterapia se necessário, para manter SpO2 >92%
Intubação naso-gástrica/ aspiração se necessário
Algaliação/dispositivo urinário para registo e controlo da diurese.
II. Monitorização
4
Monitorização contínua do ECG para detectar alterações da caliémia (hipocaliémia: ondas T
aplanadas, aumento do intervalo QT, aparecimento de ondas; hipercaliémia: ondas T altas,
pontiagudas e simétricas, encurtamento do intervalo QT e arritmias) e arritmias.
Monitorização contínua da saturação de O2
Clínica (avaliação 1 em 1 hora)
a. Sinais vitais (tensão arterial, frequência cardíaca e respiratória)
b. Avaliação neurológica (escala de Glasgow) a fim de detectar precocemente os sinais e
sintomas de edema cerebral
c. Determinação da quantidade de insulina administrada
d. Balanço hídrico
Laboratorial
a. De 1 em 1 hora até estabilização: Glicémia
b. De 2 em 2 horas até à estabilização: Cetonémia/cetonúria, Ionograma, iões (Potássio, Cálcio,
fósforo e magnésio), pH e gases
c. De 6 em 6 horas até normalização: Ureia, Creatinina, Hematócrito
III. Fases de tratamento3-6
Deve pressupor (NÍVEL 1A):
CAD moderada = 5-7% de desidratação
CAD grave = 7-10% de desidratação
A hidratação (incluindo líquidos per os) deve ser sempre calculada para administrar em 48 horas.
0 – 2 Horas:
2 - 24 Horas
NB + 50% défice – líquidos
→ Solução salina + Glicose ou Glicose + iões
Sódio (mEq por L de soro), de acordo natrémia
Na+ < 130 mEq/L: 100-130.
Na+ > 130 mEq/L: 75.
Pseudo-hipernatrémia: A hiperglicemia produz falsa hiponatremia devido aumento de água
intravascular por osmose e diluição secundária de solutos como o sódio. Fórmula de calcular o
sódio real em relacção a hiperglicemia: Na+ real (mEq/L)= Na+ medido + 0,016 x (glicemia
em mg/dL – 100 mg)
Potássio
<3,0 60 mEq/L
3,0-3,5 40 mEq/L
3,5-5,0 30 mEq/L
5,0-5,5 20 mEq/L
Quadro 1. Administração de Potássio de acordo caliémia
Cálcio: 0,5 -1 mEq/kg (dividido em 4 doses EV, ou em perfusão continua não pode juntar
com fosfato nem bicarbonato).
Fosfato: não precisa salvo hipofosfotémia severa.
Glucose: ajustar aporte para glicemia 150-250 mg/dL.
24 – 48horas
C) Administração de insulina
Só deve ser iniciada 1 a 2h depois do começo da hidratação (NÍVEL 1-A)
6
Faça perfusão contínua de insulina de acção rápida em dose baixa. Não faça “bólus” (NÍVEL
1-A)
Utilize preferencialmente acesso venoso independente do soro de hidratação, podendo também
ser utilizado um sistema de perfusão em Y.
Preparação:
5 U/Kg de análogo ou rápida até 50mL de SSF (1mL= 0,1UI/kg).
Em < 15 kg, concentração 10 vezes maior.
Ritmo: 0,1 U/kg/h enquanto houver acidose - depois 0,1–0,04 U/kg/h EV (para glicémia= 150 -250
mg/dL). (NÍVEL 1-A)
Iniciar quando não houver desidratação, acidose ligeira e cetonúria mínima; (NÍVEL 1-A)
Líquidos orais, devem ser introduzidos quando houver melhoria clínica evidente (podendo
haver ainda ligeira acidose/cetose).
Introdução da alimentação oral quando CAD estiver resolvida e houver tolerância oral. Pode
iniciar a insulina SC idealmente, antes de uma refeição. Manter a insulina EV durante 1 hora
(se insulina regular) ou 30 min (se análogo de ação rápida) após início da insulina SC.
E) Bicarbonato de sódio
Administrar apenas CAD grave porque agrava a acidose cerebral (NÍVEL 1-A)
Bicarbonato 1/6M + SF (se pH <6,9, HCO3 <5 ou EB <-25)
Iniciar depois de correcção da desidratação, acidose e cetose leve, se tolera a via oral
Administrar a insulina de acordo protocolo da insulina rápida
EXEMPLO PRÁTICO
7
Criança de 10 kg; Glicémia 300mg/dl; pH 7,0; HCO3- 7 mmol/L; Taquicardia, taquipnea, pulso débil,
preenchimento capilar muito lento. Antes de ficar doente tinha 12 kg.
Bólus: 20 ml/Kg --> 10kgx20ml = 200ml ev passar em 20 minutos. Repetir 3 vezes, se for necessário.
Preparação da Insulina
Prepara-se 60 ml de soro fisiológico 0,9% + 6 unidade de insulina rápida ou regular; passar EV 10ml/h
ou 500 ml soro fisiológico 0,9% + 50 unidades de insulina rápida ou regular correr EV 10ml/h
Noutra veia passamos 500 ml soro fisiológico 0,9% + 5 ml gluconato da cálcio 10% + KC 7,5 % 20 ml
-passar EV – 65,6 ml/h
9. COMPLICAÇÕES3
A. Edema Cerebral
O edema cerebral geralmente surge nas primeiras 12h de tratamento, podendo, contudo, ocorrer
mesmo antes do seu início ou, de forma tardia, após 24h a 48h de fluidoterapia.
Constituem risco de edema cerebral os seguintes factores:
idade ≤ 5 anos;
episódio inaugural;
duração arrastada dos sinais e sintomas;
hipocapnia marcada (após ajuste para o grau de acidose);
uremia;
pH inicial
< 7.1, necessidade de uso de bicarbonato para correção da acidose;
volumes de fluidos > 50 mL/Kg nas primeiras 4h de rehidratação;
8
↓ rápida da osmolaridade efetiva nas primeiras horas;
aumento marcado da natrémia e da diurese (traduzindo diabetes insipidus secundária a
herniação cerebral)
rápida descida do Na+ corrigido nas primeiras horas de tratamento
administração de insulina na primeira hora de tratamento.
Nestas situações, deverá existir solução hipertónica à cabeceira do doente com a respectiva dose
calculada. O diagnóstico baseia-se na presença de um critério diagnóstico, ou de dois critérios major,
ou de um critério major e dois minor. Os sinais que possam ter ocorrido antes do início do tratamento
não devem ser considerados. Por outro lado, sendo um diagnóstico clínico, não requer neuroimagem
para instituição da terapêutica, a qual deve ser iniciada mal haja suspeita diagnóstica.
Critérios Major
- Alteração do estado mental, confusão, flutuação do nível de consciência
- Desaceleração sustentada da FC (↓ > 20bpm não atribuível ao sono ou a melhoria do volume intravascular)
- Incontinência inapropriada para a idade
Critérios Minor
- Vómitos
- Cefaleias
- Letargia ou prostração
- TA diastólica > 90mmHg
- Idade < 5 anos
Quadro 2. Diagnóstico de edema cerebral
B) Outras complicações
Outras causas mais raras de mortalidade e morbilidade incluem:
9
Hipocalémia;
Hipoglicémia;
Hipofosfatémia;
Hipocalcémia;
Hipomagnesémia;
Acidose hiperclorémica;
Outras complicações do SNC (trombose dos seios venosos, trombose da artéria basilar,
hemorragia intracraniana, isquemia cerebral);
Trombose venosa;
Embolismo pulmonar;
Sépsis;
Pneumonia de aspiração;
ARDS
Pneumotórax, pnemomediastino, enfisema subcutâneo;
Rabdomiólise
Isquemia intestinal
Pancreatite aguda
Insuficiência renal aguda
10. PROGNÓSTICO
11. ASSINATURAS
10
Autor(es): Função Assinatura Data
Carlos Faustino1 Médico Especialista 15/09/202
Médica Especialista
Joaquina Magalhães6 19/09/2021
Médico Especialista
Mbemba Makubica7 19/09/2021
Médico Especialista
Leite Cruzeiro8 19/09/2021
Médica Especialista
Manza Makubica9 19/09/2021
Nº Revisão:
1
Chefe da Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos do Hospital Pediátrico David Bernardino
2
Médica interna de Pediatria, Hospital Pediátrico David Bernardino
3
Directora Clínica do Hospital Pediátrico David Bernardino
4
Director Pedagógico do Hospital Pediátrico David Bernardino
5
Chefe de Serviço dos Cuidados Intermédios I do Hospital Pediátrico David Bernardino; Coordenadora do Módulo de Pneumologia do
internato de Pediatria do Hospital Pediátrico David Bernardino
6
Chefe de Serviço de Pediatria Especial, Hospital Pediátrico David Bernardino
7
Coordenador clínico do Serviço de Cirurgia do Hospital Pediátrico David Bernardino
8
Coordenador do Módulo de Neuroinfecciologia do internato de Pediatria do Hospital Pediátrico David Bernardino
9
Médica Especialista em Pediatria, Hospital Pediátrico David Bernardino
11
12. ANEXOS | I. FLUXOGRAMA
HISTÓRIA CLÍNICA EXAME OBJECTIVO INVESTIGAÇÃO
oria
Poliúria, noctúria Desidratação Glicémia > 200mg/dL
Polidipsia, Polifagia Respiraçâo de Kussmaul Cetonémia ≥ 3 mmol/L e/ou
Perda de peso Hálito cetótico cetonúria ≥ +++
Náuseas, vómitos, dor abdominal Letargia / Estado confusional HCO3- < 15 mmol/L
Astenia, fadiga Ureia, ionograma
Confusão, diminuição do nível de Outros parâmetros de acordo a
consciência clínica
CETOACIDOSE
DIABÉTICA
Choque hipovolémico (↓ Desidratação ligeira
pulsos periféricos) Com tolerância oral
↓ nível de consciência Desidratação >5%
Sem choque
Acidótico (hiperventilação)
RESSUSCITAÇÃO Vómitos
Airway TRATAMENTO EV
Via aérea ± SNG TRATAMENTO EV
10 ml/Kg NaCl 0.9% durante 1 h (pode
Breathing Insulina sc
repetir)
O2 a 100% Hidratação oral
Cálculo das necessidades hídricas 24-
Circulation 48ho
10-20 mL/Kg de NaCl 0.9% Monitorização eletrocardiográfica (onda
durante 30-60 min T)
(repete até circulação Adição de 20 mEq de potássio por litro
estabelecida) do soro
Sem melhoria
1h após o início da fluidoterapia:
• 0.05-0.1 U/Kg/h de insulina EV, em
NaCl 0.9%
• adicionar glicose a 5% ao balão de
fluidoterapia
DETERIORAÇÃO
NEUROLÓGICA
MONITORIZAÇÃO
Cefaleia grave/progressiva
ECG - contínuo (onda T)
Desaceleração da frequência
Estado de consicência - no mínimo, a
cardíaca
cada hora
Irritabilidade/confusão/↓consciência
Glicémia - a cada hora
Incontinência
Balanço hídrico - a cada hira
Sinais neurológicos específicos
Ionograma - a cada 2 h
REAVALIAÇÃO
TRATAMENTO ABORDAGEM DO EDEMA
Cálculos da fluidoterapia ev
Adicionar glicose (5%-12.5%) ao Nacl CEREBRAL
Dose e sistema ev de
(0.45%-0.9%) para prevenção de 0.5-1 g/Kg de manitol ou 2.5-5 ml
insulina
hipoglicémia, e de acordo com as de NaCl 3% durante 15 minutos. |
Necessidade de ressucitação
necessidades | Ajustar o aporte de Na+ de Ajustar fluidoterapia ev para
Considerar sépsis
acordo com a natrémia manter TA normal mas evitar
hiperhidratação. Transferência
UCI. Considerar imagem do SNC
TRATAMENTO após estabilização do doente
Clinicamente bem, com resolução da CAD e tolerância oral
12
TRANSIÇÃO PARA INSULINA SC
Iniciar insulina sc, descontinuidando a insulina iv 15 a 30
mintos depois Fonte: Adaptado de Sociedade Portuguesa de
Pediatria, 2019
I. INDICADORES DE AVALIAÇÃO
II. BIBLIOGRAFIA
1. International Diabetes Federation (IDF). IDF Diabetes Atlas. 6th ed. Belgium: IDF; 2013.
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terapêutico Pediatria. Madrid:6º edição, 2018, Pag: 738-743.
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cuidados Intensivos Pediátricos. Madrid: 5º edição, 2019, pag: 353-360
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4º edição, 2019, pag: 124.
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Geriatr Soc. 1987 Aug;35(8):737-41
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13
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consensus statement from the American Diabetes Association. Diabetes Care. 2009 Jul;32(7):1335-43.
III. ESCALAS
14
Tabela 2. Escala de Coma de Glasgow Pediátrica. Pontuação: 13 a 15 - atingimento cerebral ligeiro, 9 a 12 –
atingimento cerebral moderado, ≤ 8 – atingimento cerebral grave. Fonte: Sociedade Portuguesa de Pediatria
15
Tabela 3. Monitorização durante tratamento. Fonte: Sociedade Portuguesa de Pediatria
16