Bataille - Sobre Sade

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Bataille inicia o capítulo sobre Sade com o questionamento sobre o motivo pelo

qual seria logo em uma revolução o momento de grandiosidade das artes e das letras,
afinal essa ocasião da violência armada não parece combinar com o período de
desabrochamento das letras.
Essa Revolução poderia à primeira vista, ter na literatura francesa, a marca de
uma época pobre. Mas é proposta uma exceção, de um indivíduo desconhecido, mas que
manteve uma reputação durante sua vida, uma reputação deplorável, que é o caso do
Marquês de Sade. Bataille consagra os escritos de diversos autores, como ele,
interessados pelo valor literário das obras de Sade, como Pierre Klossowski, Maurice
Blanchot e Maurice Heine.
Sobre Heine, inclui-se detalhes interessantes, sobre como ele dedicou sua vida à
memória de Sade, tendo perdido toda sua fortuna pesquisando sobre ele, e tendo
morrido miserável, “comendo pouco para alimentar inumeráveis gatos”. Como Sade,
era avesso à pena de morte, e segundo as palavras de Bataille, Heine era “em suma, um
dos homens que mais discretamente, mas o mais autenticamente, honraram seu tempo”.
Sade e a tomada da Bastilha
Diz-se que vida e obra de Sade se relacionam a este acontecimento, mas de
forma singular, pois o filósofo não apresenta diretamente o sentido de revolução em
suas ideias, mas ainda sim seria possível relacioná-los em algum sentido. Um dos
motivos para fazer essa relação é que seriam poucos os acontecimentos com maior valor
simbólico que a tomada da Bastilha: por ocasião da festa que a comemora, são muitos
franceses que inflam o sentimento de união à soberania de seu país.
Esta soberania popular seria inteiramente tumulto e revolta; ademais não haveria
sinal que diria mais da festa que a demolição insurrecional de uma prisão. Essa festa
exige essa soberania inflexível para poder existir. Mas houve um elemento de acaso que
aumentou o alcance do acontecimento.
A princípio seria apenas um mal-entendido. Mas um mal-entendido que o
próprio Sade teria suscitado. Sade estava então encarcerado há dez anos, na Bastilha
desde 1784: um dos homens mais rebeldes que já falaram de rebelião e de raiva; um
homem, segundo Bataille, monstruoso, que possuía a paixão de uma liberdade
impossível.
*Tanto o manuscrito de Justine como o de 120 Dias de Sodoma estavam na Bastilha
nesse dia 14 de julho, mas abandonados em um cárcere vazio.
Ele gritava que: "degolavam os prisioneiros", e essas suas provocações acabaram
por retardar em nove meses sua libertação, pois o governador exigiu sua transferência.
Numa carta, sem data, mas pela lógica sendo associada a maio de 1790, Sade diz sobre
si mesmo: "A quatro de julho, por ocasião de um pouco de algazarra que fiz na
Bastilha pelos dissabores que se me provocavam ali, o governador se queixou ao
ministro. Eu inflamava, dizia-se, o espírito do povo, eu o exortava a pôr abaixo esse
monumento de horror... Tudo isso era verdade..."
Os manuscritos do Marquês, que já estavam dispersos, acabaram por se perder.
O manuscrito dos Cento e Vinte Dias de Sodoma, que é para Bataille “um livro que em
algum sentido domina todos os livros, sendo a verdade do arrebatamento que o homem
no fundo é e que ele teve de conter e calar”, desapareceu: este livro que em si mesmo
significou, todo o horror da liberdade. Mais tarde o manuscrito foi encontrado mas Sade
o acreditou para sempre perdido, o que o oprimia, ele escreve que “era a maior
infelicidade que o céu pôde lhe reservar". Morreu sem saber que na verdade o que ele
imaginava assim perdido acabou por tomar pouco mais tarde, entre os "monumentos
imperecíveis do passado".
A vontade da destruição em si
A perda do manuscrito de 120 Dias de Sodoma parece ter sido o marco para que
Sade tenha decidido por dar continuidade a história de Justine, e escrever a terceira
versão, ainda mais escandalosa, da que seria a irmã de Justine, Juliette.
Bataille admite que não é impreterivelmente que autor e livro seriam resultados
felizes de uma época calma; no caso de Sade, este é resultado de uma época de
revolução e violência. Segundo Bataille, a essência das obras de Sade “[...]é destruir:
não somente os objetos, as vítimas, cenário (que existem apenas para responder ao
furor de negar), mas o autor e a própria obra”. “traz a má nova de um acordo dos
vivos com aquele que os mata, do Bem com o Mal e — se poderia dizer — do grito mais
forte com o silêncio.”
É dito que o Marquês de Sade conclui sua vida com as seguintes palavras: "Uma
vez recoberta a cova, serão semeadas em cima landes, a fim de que, em consequência,
o terreno da dita cova se encontrando guarnecido de novo e o mato se encontrando
cerrado como era anteriormente, os traços de meu túmulo desapareçam de cima da
superfície da terra como eu me deleito que minha lembrança desapareça da memória
dos homens". Em relação a essa passagem, Bataille nos diz sobre o desejo que Sade
tinha de se anular, de desaparecer sem deixar nenhum traço humano.
O pensamento de Sade
Segundo as análises de Pierre Klossowski, Sade desenvolve uma teologia do Ser
supremo em maldade, é dito que ele é ateu, mas não a sangue frio, pois o seu ateísmo
desafia Deus e desfruta do sacrilégio. Sade substitui Deus pela Natureza em seu estado
de movimento perpétuo. O mal o diverte.
Sade certamente foi um materialista, mas isso não resolve a questão do Mal que
ele amava e do Bem que o condenava. Sade realmente amou o Mal, em toda sua obra
pretende tornar o Mal desejável, mas sem poder condená-lo, também não poderia o
justificar. Os filósofos pervertidos que Sade descreve procuram o elemento maldito em
suas ações.
Sade tem um ponto que está muito seguro, que se trata da falta de justificação
para a punição, ou pelo menos, no que se refere a punição humana. Uma de suas frases:
"A lei, fria por si mesma, não poderia ser acessível às paixões que podem legitimar a
cruel ação do assassinato".
Em outra carta, de 29 de janeiro de 1782, Sade escreve: “Tu queres que o
universo inteiro seja virtuoso e tu não sentes que tudo pereceria imediatamente se
houvesse apenas virtudes na terra... tu não queres entender que, já que é preciso que
haja vícios, é também injusto que tu os puna porque seria zombar de um limite..."
Bataille pretende difere Sade do simples sádico (que seria o irrefletido). Sade,
longe de ser irrefletido, pretendia atingir consciência clara daquilo que só o
"arrebatamento" atinge, que seria a anulação da diferença entre o sujeito e o objeto , porém,
é dito que esse "arrebatamento" levaria à perda de consciência. Portanto, a não ser pelo
caminho adotado por Sade, seu objetivo parece não diferir muito do objetivo da
filosofia, já que a filosofia partiria da calma consciência, da inteligibilidade distinta e
Sade parte do arrebatamento na intenção de torná-lo inteligível.
O frenesi sádico
Os romances de Sade são comparados aos livros de devoção, pois é dito que são
ordenados por um método completo e religioso “que põe sua alma diante do mistério
divino". Seus romances devem ser lidos tal qual foram escritos, isto é, com a
preocupação de sondar um mistério que não é nem menos profundo, nem talvez menos
"divino" que o da teologia.
A partir do que é descrito por Bataille, Sade, em suas cartas, por vezes se mostra
instável, divertido, sedutor, violento, apaixonado ou engraçado, capaz de ternura,
talvez de remorso.
Na epígrafe de 120 Dias de Sodoma, Sade escreve: "É agora, amigo leitor, que é
preciso dispor teu coração e teu espírito ao relato mais impuro que alguma vez tenha
sido feito desde que o mundo existe, semelhante livro não se encontrando nem entre os
antigos, nem entre os modernos. Imagines que todo gozo honesto ou prescrito por este
animal de que tu falas sem parar sem o conhecer e que tu chamas natureza, que estes
gozos, dizia eu, serão expressamente excluídos deste relato e que, quando tu os
encontrares por acaso, jamais será senão enquanto eles serão acompanhados de algum
crime ou coloridos por algumas infâmias".
Do arrebatamento a consciência clara
Sade não julgou que devia suprimir de sua vida aqueles estados perigosos que
acabam por conduzir a desejos insuperáveis, na verdade, decidiu enfrentá-los. É dito
que entre o arrebatamento das paixões e a consciência subsistia uma oposição
fundamental. Segundo Bataille, “jamais o espírito humano deixou de às vezes
responder à existência que leva ao sadismo”. Sade teve a intenção de opor-se a tudo o
que era tido como inabalável pelos outros, e essa a sensação que seus livros trazem, que
ele queria o impossível e o avesso da vida.
A experiência comum na qual Sade se baseia é a da sensualidade, que se
desperta a partir da modificação do objeto possível, e somente a partir de sua presença.
Seria o mesmo que dizer que “havendo uma impulsão erótica, um arrebatamento é
desencadeado pelo arrebatamento concordante de seu objeto”. Esse arrebatamento não
é, em todos os casos, a ação ativa do objeto de uma paixão, pois o ser também pode ser
arrebatado por aquilo que o destrói, mas que, esse arrebatamento será “sempre a ruína
de um ser que se impusera os limites da decência”.
O rompimento desses limites pode ser exemplificado a partir da nudez, que seria
justamente “o signo da desordem que desafia o objeto que a ela se abandona”. Na
sensualidade estaria presente uma perturbação, um sentimento de ser afogado, análogo
ao mal-estar que os cadáveres exalam. Já na perturbação da morte, entraríamos em um
estado vizinho aquele que precede o desejo sensual, em que uma desordem e uma
impressão de vazio começaria em nós.
Bataille diz, sobre os 120 Dias de Sodoma, que “este livro é o único em que o
espírito do homem está no limite do que é”. A linguagem desta obra “é a do universo
lento, que infalivelmente degrada, que flagela e que destrói a totalidade dos seres que
ele apresentou”.
A condição inumana de prisioneiro em que Sade se encontrava foi essencial para
a consciência clara e distinta que funda o impulso erótico. Pois, se Sade estivesse livre,
seria capaz de estragar essa paixão que tanto queria. Mas essa consciência do desejo não
é muito acessível, já que aparentemente a questão da satisfação sexual teve grande
importância no que é chamado “desordem dos sentidos”. O desejo, por si só,
conseguiria alterar a clareza da consciência.
Sem essa reclusão pela qual Sade foi obrigado a passar, é certo que teria levado
uma vida desordenada, que não o teria permitido a possibilidade de refletir sobre um
interminável desejo, que não pode fazer nada para satisfazer. Em suas obras, Sade nos
revela a realização da consciência, mas não a plenitude da clareza. “O espírito deve
ainda aceder, senão à ausência de desejo, ao menos ao desespero que deixa ao leitor de
Sade o sentimento de uma similitude final entre os desejos experimentados por Sade e
os seus, mas que não têm esta intensidade, que são normais.”
Diz Bataille: “Era preciso uma revolução — no ruído das portas da Bastilha
derrubadas — para nos libertar, ao acaso da desordem, o segredo de Sade: ao qual a
infelicidade permite viver este sonho, cuja obsessão é a alma da filosofia, a unidade do
sujeito e do objeto; é, no caso, a identidade no ultrapassamento dos limites dos seres,
do objeto do desejo e do sujeito que deseja”.

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