Historia Do Brasil Vira Lata
Historia Do Brasil Vira Lata
Historia Do Brasil Vira Lata
O Índio Vira-Lata
Entre todos os povos nativos do planeta à época de terem sido descobertos e
relatados por povos com escrita, ou seja, a ingressar na história já como
sociedades organizadas, nenhum deles é visto como tão bárbaro, tão atrasado e
tão indolente quanto os habitantes do Brasil em 1500.
Bascos, celtas, incas, astecas, mongóis, pigmeus, zulus, javaneses e todos os
demais eram, na visão da maior parte dos cronistas luso-brasileiros, convicção
plenamente enraizada na cultura nacional, muito superiores, especialmente no
aspecto moral, a tupis, guaranis e tapuias.
Desmond Morris, um dos mais conhecidos polemistas sobre os primórdios
dos agrupamentos humanos, a rma que os índios brasileiros não são o espelho
dos primeiros humanos, mas muito piores a estes. Os brasilianos seriam
exemplos acabados de sociedades fracassadas.
Todas as constituições do Brasil independente, inclusive a de 1988,
incorporaram essa visão depreciativa quanto ao índio, tomando o cuidado de
considerá-los, além de idiotas, também estrangeiros, como se não fizessem parte
da nacionalidade, já por demais corrompida com o pior da Europa e o pior da
África, como se verá nos próximos capítulos.
O brasileiro pode não ter autoestima, mas o pouco que tem utiliza para dizer:
“Posso ser a escória do mundo, mas índio não sou, tupis e tapuias são os
outros”. Mesmo no Amazonas, quando se chama um ribeirinho de feições
mongólicas de índio, ouve-se a resposta indignada: “Índio, não. Caboclo”.
Os brasileiros, no entanto, são mais índios do que gostam de admitir; e, mais
surpreendente, os índios, os de 1500 e dos demais séculos, são muito mais
brasileiros do que supõe o mito do bom selvagem (também bom imbecil), em
plena vigência no século XXI.
Em geral não são de boa índole, porque são inconstantes e mudáveis de opinião, duvidosos, descon ados,
indolentes e inimigos do trabalho, ainda que não se lhes note ferocidade de gênio, antes maneiras e tibieza de
ânimo, contudo se alguma perseverança se lhes descobre é nos costumes rústicos e selvagens de seus
antepassados, sendo todos inclinados à embriaguez, à ociosidade e a furto.
Dar-lhes uma carta de total emancipação, dando-se providências policiais para que os mais novos sejam
ocupados nos trabalhos e misteres sociais e aos que forem pais de famílias marquem-se-lhes su cientes
porções das muitas e boas terras, que inutilmente possuem, para nelas trabalharem, revertendo para o Estado
as que restarem para se venderem e nelas levantarem engenhos de açúcar e estabelecerem-se fazendas de
algodão, ou de qualquer outro gênero de cultura.
Que piores inimigos tem o Império do que os súditos dele, que matam ou mandam matar os índios
pací cos sem manifesta ou prévia provocação? Que lhes usurpam a terra? Que os excitam à rebelião e à
descon ança, espalhando entre eles insinuações de que os diretores os querem reunir para os matar? (...) Que
bons cidadãos são os que lhes dão camisas de bexiguentos3 e dos que morreram de sarampo para os
exterminar? Que os convidam para comer e lhes dão tiros? (...) Que esforçam as suas mulheres e lhas? Que
os fazem trabalhar e lhes pagam com pancadas?
Sendo os índios homens racionais, e dotados com os mesmos atributos e potências que os mais homens,
a sua bravura e ferocidade não podia ser tanta quanto nos declara a tradição se não fosse instigada pelo
esquecimento dos seus irmãos já civilizados e com mais razão de regular em sua conduta pelas leis humanas e
divinas, que inteiramente ignoram.
² Os problemas envolvendo as terras demarcadas atuais dos Maxacalis do norte de Minas Gerais
evidenciam o quanto Marlière estava correto nesse ponto.
³ Bexiguentos são portadores de varíola. A prática de presentear índios e posseiros indesejados com
roupas infectadas com a doença remonta ao século XVI e somente a vacinação em massa contra a varíola
erradicá-la-ia.
4 Vieira defendia a escravidão de africanos, explorada comercialmente pelos jesuítas em Luanda, como
necessária para livrar os nativos brasileiros da escravidão. Como se o regime imposto aos índios nos
aldeamentos não fosse análogo à escravatura.
Invadidos e Invasores
O índio entra na história como brasiliano (brasileiro é pro ssão de
português), torna-se mazombo (mameluco de cultura luso-brasileira) ou mesmo
português por mestiçagem ou equiparação em cidadania, para voltar a ser índio,
um estrangeiro do ponto de vista dos brasileiros independentes, após 1824.
Desde então, desenvolveu-se um complexo de culpa na re exão histórico-
sociológica brasileira. Os índios, coitadinhos, donos da terra, puros e ingênuos,
teriam sido massacrados pelos invasores europeus, suas mulheres estupradas,
seus chefes perseguidos como ratos, suas sociedades harmônicas, perfeitas,
idílicas, destruídas pela cobiça de homens maus.
Tal complexo deu origem a uma faceta extremamente danosa da tradição
autodepreciativa nacional: a ideia subjacente de que a terra do Brasil não
pertence aos brasileiros. Seria todo o imenso espaço uma área de conquista,
injusta e provisória, conquista a completar, seguindo os supostos meios sujos
utilizados pelos antepassados dos atuais cidadãos.
Pergunte-se a qualquer professor de história do ensino fundamental, a
qualquer aluno do nono ano, se é verdade que os índios foram massacrados por
malvados europeus e se cabe a cada brasileiro reparar essa injustiça, e a resposta
muito provável, lógica, racional e errada, será “sim”.
Além de afetar a autoestima do brasileiro, tal cção histórica consolidada há
mais de um século, espelhada no bom selvagem de Rousseau, que nunca esteve
na América do Sul, tem um efeito pouco observado, mas muito presente: se a
casa não é nossa, não somos responsáveis por mantê-la ou por limpá-la. Jogar
lixo na rua não seria um acinte à convivência civilizada, apenas a velha
despreocupação do inquilino para com o patrimônio do senhorio, quanto mais
quando está com o aluguel atrasado, devendo ao silvícola dono da terra.
A dicotomia brasileiro-indígena faz bem menos sentido histórico do que se
imagina, isso a elite cultural da terra já sabe há algum tempo, ou pelo menos
desconfia. O que poucos sabem é que do ponto de vista genético-demográfico, a
ideia de invasão e massacre não se sustenta. Ou seja, a culpa histórica não faz
sentido, o brasileiro carrega esse fardo, autodepreciativo e angustiante, esse
sentimento de não lhe pertencer o próprio território pátrio, território a ser
conquistado, por conta de uma obra de ficção.
A quantidade de índios existentes no território brasileiro atual em 1500 é
estimada em um milhão de indivíduos, população semelhante à de Portugal na
mesma época, espalhada em um território quase cem vezes maior. Há autores
apontando até 6,5 milhões de habitantes indígenas na mesma área. Opta-se
aqui pela estimativa mais conservadora, pois números acima de um milhão
geralmente foram estimados a partir de crônicas de colonos e jesuítas do século
XVI, ambos interessados em in ar a quantidade de nativos. A aposta em um
milhão de índios ou pouco mais (1,5 milhão para Julian Steward) é coerente
com relatos históricos depurados dos naturais exageros e estudos genéticos
posteriores. O número exato ou mesmo próximo ao exato é impossível apurar.
Os nativos brasilianos (ou brasilienses) pertenciam a dois grandes troncos
linguísticos e outros menores: os jês e os tupis-guaranis, estes claramente
superiores àqueles em tecnologia, organização social e capacidade militar,
mesmo assim muito aquém dos incas e astecas, nisso tinham razão os
vereadores de Barbacena. Se fosse possível estender aos 8.514.876 km² de área o
conceito de país tal como concebido depois, entre os séculos XVIII e XX, dir-
se-ia, sem dúvida, tratar-se de um país em guerra civil entre os dois principais
grupos, no interior deles e até mesmo entre tribos de línguas e costumes
idênticos, ou seja, entre tupis próximos o su ciente para não se designarem
como inimigos (tapuias) ou dissidentes (tabajaras), a guerra era um hábito, uma
diversão, uma atividade permanente, consideradas suas duas fases: preparação e
batalha.
Em 1817, o cônsul dos Estados Unidos, Henry Hill, estimou a população
brasileira em:
— Livres: 820 mil brancos; 800 mil mestiços e 80 mil negros.
— Escravos: 1.000.000, negros e mulatos.
— Indígenas: 500 mil bravios e 100 mil domesticados6.
O cálculo provavelmente subestimava o total de cativos negros, apontado por
outros autores do período em mais de 1,5 milhão de indivíduos. Interessa aqui,
porém, o número de indígenas, aparentemente menor do que em 1500. Teria
havido um extermínio dos nativos entre uma data e outra? Não, pois é preciso
somar aos 600 mil indígenas apontados por Hill uma considerável porção dos
contados como brancos e porção ainda maior dos contados como mestiços.
Em 300 anos, portanto, estava mantida a população original do território
brasileiro. E o crescimento vegetativo? Bem, as perspectivas de expansão
demográ ca natural do período não eram promissoras. Mesmo que os 820 mil
brancos fossem todos portugueses ou descendentes apenas de portugueses, o
número seria inferior à quantidade de lusos migrantes que chegaram nos três
séculos de colonização.
Para complicar o cálculo, os tupis tiveram enormes perdas no primeiro século
de contato por não possuírem defesas naturais contra as doenças trazidas pelos
europeus e, principalmente, pelos africanos, em especial a varíola, cuja variedade
subsaariana costumava ser mortal mesmo para os portugueses. Outro fator de
despovoamento foi a aquisição, sobretudo pelos tupis, de armamentos mais
so sticados e letais, com os quais os velhos acertos de contas entre nativos
ganharam em mortalidade.
Descontados tais infortúnios, é possível estimar taxas de sucesso reprodutivo
semelhantes para europeus e ameríndios nos três primeiros séculos de contato.
Se a população hoje é majoritariamente eurodescendente e secundariamente
afrodescendente, isso se deve à continuidade do trá co negreiro até 1850 e ao
imenso uxo de imigrantes da Europa chegados posteriormente. Mesmo assim,
segundo estudo publicado recentemente pelo American Journal of Human
Biology, baseado em diversas pesquisas, realizadas especialmente pela UnB e
pela Universidade Católica de Brasília, 8,5% em média da base genética da
população brasileira atual é ameríndia, uma sobrevivência equivalente a 16,2
milhões de indivíduos, número que di cilmente seria alcançado se não fora o
contato com os europeus, mesmo considerando os chutes de 6,5 milhões para a
população nativa de 1500.
E o outro lado? Eram todos malvados interessados em matar por matar?
Exterminar por exterminar? Quem eram os europeus de 1500 e como eles viram
os índios? A Carta de Caminha é uma pista, porém muito incompleta.
Se adotado o ano de 732, como propõem muitos autores, para o nascimento
da Europa como continente etnicamente identi cado pela cristandade, os
integrantes da esquadra de Pedro Álvares Cabral, ao pisarem na Barra do Cahy,
atual município de Prado-BA, representavam 768 anos de civilização europeia.
Os europeus estavam divididos em dois grandes grupos linguísticos, os
latinos e os germânicos, e outros menores. Viviam em guerra entre eles, no
interior dos grupos, formando diversos reinos e repúblicas, ainda dentro dessas
unidades políticas e, em alguns casos, nas divisões menores, as vilas e cidades,
formando facções em disputa por poder local. Mas, ao contrário dos ameríndios
da metade leste da América do Sul, não pensavam apenas em guerra,
dedicando-se a vastas e intrincadas redes de comércio e buscando aperfeiçoar
seus conhecimentos tecnológicos, contando para tanto com as poderosas
ferramentas da escrita e da matemática.
Tendo completado a expulsão dos invasores islâmicos da Península Ibérica
em 1492, os europeus do reino de Portugal e da recém-fundada Espanha
estavam em busca de desforra, invadindo os territórios muçulmanos do norte da
África. Aperfeiçoando a tecnologia naval, lograram estabelecer feitorias7 em
mares e costas nunca antes navegados ou pisados.
A Europa tinha então cerca de 81 milhões de habitantes, entre os quais
portugueses, britânicos, neerlandeses (holandeses não é a forma correta, pode-se
usar também batavos), franceses e espanhóis iriam tentar, ao longo dos três
séculos seguintes, estabelecer algum domínio territorial ou usufruto sobre a
descoberta de Cabral. Pesou no desejo de conquista do território dos tupis-
guaranis e jês um relato atribuído a Américo Vespúcio, espalhado pelo Velho
Continente na forma de literatura popular, que descrevia o Brasil8 como um
paraíso terrestre além do Atlântico. Outro livro que faria sucesso no século XVI,
lançado em 1516, seria Utopia, do inglês omas More, inspirado igualmente
no Brasil, visto como habitat de um povo pacífico, verdadeiro paraíso terrestre.
No Peru e no México, os europeus iriam encontrar reinos organizados de
forma semelhante aos d’além-mar, respectivamente comandados por Incas e
Astecas, que dominavam outros povos (por vassalagem ou escravidão) em volta
de suas capitais, Cuzco e Tenochtitlán. Embora ágrafos, os Incas e Astecas
estavam mais próximos dos europeus em evolução tecnológica, comercial e
política do que dos demais ameríndios, encontrados em pleno paleolítico, pois
estes não conheciam nem a roda, nem a escrita, nem os metais, nem
domesticavam animais.
Os tupis-guaranis e demais brasilianos foram vistos inicialmente como
selvagens, mas bons selvagens, típicos habitantes do paraíso, embora
estranhamente desconhecessem Deus. Logo missionários católicos e
protestantes (franceses e neerlandeses) tratariam de levar Deus ao paraíso. Bem,
o contato real desmentiria a visão dos índios como bons e da nova terra como
Éden.
Ao comparar europeus e tupis, guaranis e tapuias, é correto dizer que os
primeiros invadiram o território dos segundos? A questão é melhor respondida
no quadro ao nal deste capítulo, “sete perguntas e sete respostas”, mas é
anacronismo avaliar a migração de europeus para a América do Sul utilizando o
conceito atual de invasor e invadido, baseado em territórios de estados-nações
com soberania, noção muito recente. Evidentemente, porém, era mais natural
81 milhões espalharem-se pelo território ocupado por um milhão (equivalente,
em extensão, ao dos primeiros) do que o contrário, tanto mais por terem os
primeiros meios logísticos e técnicos para fazê-lo e, no mais das vezes, terem
sido muito bem recebidos pelos segundos.
É instigante, e surpreendente, ver como se deu essa migração, essa
colonização, à vista de hoje “invasão”, a partir da trajetória de algumas famílias
ameríndias muito espertas, para as quais as vantagens superaram largamente as
desvantagens do contato e do convívio com os da “terra sem males”, qual seja a
existente além-mar, de acordo com a mitologia tupi.
6 Entre os índios “domesticados” havia aldeados, administrados (eufemismo para escravos) e moradores
livres das vilas indígenas com privilégios de município, criadas pelo Diretório Pombalino de 1757, embora a
maioria desses últimos contasse a si mesma e fosse contada como branca ou mestiça.
8 O nome Brasil não vem apenas do pau-brasil, mas também de uma antiga lenda irlandesa (celta),
descrevendo uma ilha imaginária e paradisíaca a oeste com o nome de Brésil ou Brasil. A intenção inicial lusa
de batizar o território recém-descoberto como Ilha de Vera Cruz ou Terra de Santa Cruz não resistiu à
popularidade da lenda e sua associação com os textos atribuídos a Vespúcio, comandante da primeira
expedição a mapear o litoral brasileiro.
Três Famílias De Índios Nada Bobas
A trajetória dos índios de verdade ao longo dos três séculos de domínio
português ou, eventualmente, de outra potência europeia, desmente a tradição
autodepreciativa quanto a serem eles incapazes de assimilar a cultura ocidental e
de obter vantagens na relação com os europeus.
Destacam-se aqui três famílias, uma tapuia, Janduí, e duas tupis, Camarão e
Sousa. Causaram inveja a muitos portugueses e tiveram sob seu comando
milhares de europeus temerosos e obedientes. Os casos dessas famílias, como se
verá a seguir, desmentem a bestialidade ímpar, vergonhosa e autodepreciativa,
da bugrada original do Brasil.
Dois anos e meio antes da primeira batalha dos Guararapes, em 22 de
outubro de 1645, Diogo Pinheiro Camarão, chefe potiguara 9 aliado aos
portugueses, escreve a seu parente Pedro Poty, aliado dos neerlandeses:
Sois um bom parente. Sai desse lugar, que é como o fogo do inferno. Não sabeis que sois cristão? Por
que vos quereis perverter? (...) Se os Portugueses têm êxito na guerra é porque, sendo cristãos, o Senhor Deus
não permite que fujam ou se percam, por isso desejamos muito que vos passeis para nós, e isso garantido pela
palavra do grande capitão Antônio Felipe Camarão e de todos os capitães dos Portugueses.
Em todo o país se encontram os nossos escravizados pelos perversos portugueses, e muitos ainda o
estariam se eu não os tivesse libertado. Os ultrajes que nos têm feito, mais do que aos negros, e a carni cina
dos da nossa raça, executada por eles na Baía da Traição, ainda estão bem frescos na nossa memória.
Mantenhamo-nos com os estrangeiros que nos reconhecem e tratam bem na nossa terra. Vinde, pois,
enquanto é tempo para o nosso lado a m de que possamos com o auxílio dos nossos amigos viver juntos
neste país que é a nossa pátria e no seio de toda a nossa família.
Os portugueses têm razão de dizer que o ferro dos holandeses não vale nada e menos ainda seus espelhos
e pentes; nunca vi coisas tão desprezíveis. Eu estava acostumado a receber antigamente de vossa gente belas
trombetas, grandes alabardas, belos espelhos, lindos copos e belas taças bem trabalhadas, que guardo em
minha taba para mostrá-los aos outros tapuias que me vêm visitar, dizendo-lhes: um certo senhor holandês
me enviou isto, outro aquilo.
10 Entre 1580 e 1640, Espanha e Portugal estavam unidas sob uma única coroa.
12 Bretões (da Bretanha, região do noroeste da França) formavam o maior contingente da esquadra
fundadora da França Antártica.
Identidades
A luta pelo estabelecimento da alteridade absoluta entre afrodescendentes,
eurodescendentes e ameríndios remanescentes, tem sido intensa da parte dos
politicamente corretos e militantes “sociais” nos últimos anos. Querem
interpretar a história em preto e branco, literalmente e gurativamente. Jogar
uns contra os outros por critérios étnicos e pelo genótipo é tática para atacar o
que chamam de “mito da democracia racial brasileira”, para questionar e
possivelmente destruir o amálgama social que permitiu a formação e
consolidação do país nas bases atuais.
Tal alteridade radical não apenas é pouco presente nas fontes primárias da
história nacional como não foi proposta ou acolhida sequer por Caio Prado
Júnior, pensador marxista, autor de Formação do Brasil contemporâneo , tendo sido
implicitamente ou explicitamente repelida por Gilberto Freire e Sérgio Buarque
de Holanda, embora encontre algum eco em autor anterior, Capistrano de
Abreu.
É interessante confrontar algumas situações atuais com suas origens
históricas para desmontar o argumento da alteridade absoluta, responsável
também pela tradição autodepreciativa ao diminuir o papel histórico de índios e
africanos unicamente a vítimas indefesas e incapazes de ação ativa, atores
passivos, dotados de qualidades morais apenas pela ausência de ação, nunca por
iniciativa própria.
Essa visão politicamente correta anacrônica em retrospectiva é depreciativa
em relação a quem supostamente visaria proteger ou reparar. Sendo assim, é
autodepreciativa, pois se o brasileiro tem na cultura ocidental, europeia, seus
traços mais característicos, não deixa de ser, etnicamente, ameríndio e africano.
A analogia entre tal proposição e a sentida inferioridade do brasileiro em geral
em relação aos povos do Hemisfério Norte é óbvia.
Dois personagens históricos, o primeiro relacionado ao destino dos atuais
Pataxós, o segundo ao dos atuais supostos Tupinambás, servem para ilustrar o
quão ativos foram ao longo da história nacional negros, caboclos, tupis e
tapuias, e como a história tem sido distorcida para ns ideológicos e mesmo
materiais no século XXI. São eles: João Gonçalves da Costa e Marcelino Alves,
o Caboclo Marcelino.
O movimento negro insiste em a rmar que João Gonçalves da Costa era
negro, com base no texto do vice-rei, que identi ca Costa como “preto forro”. É
possível, embora seja mais provável, conforme relatos posteriores, que fosse
mulato. Contudo, certamente era afrodescendente. Dada a fortuna acumulada
por João Gonçalves da Costa, sua importância política, o respeito adquirido
junto às autoridades coloniais, a menção a ele em muitos textos e documentos e
a abundância de seus próprios textos, é notável que a questão de sua cor não
tenha sido resolvida em de nitivo pela historiogra a justamente pela ausência
de menções a esse detalhe de sua aparência. Não pareceu aos cronistas e
governantes da época um ponto importante, sinal de que o racismo, diante da
aquisição de posses e títulos, era atenuado ou mesmo deixado de lado.
Por outro lado, mulato ou preto, cabe registrar que João Gonçalves da Costa
sofreu prejuízo por sua cor. Tendo casado com uma branca, Josefa, foi
deserdado pelo sogro, o rico Mathias João da Costa, por conta de uma cláusula
racista do testamento deste. A cor, porém, não lhe impediu moralmente de
possuir muitos escravos africanos e de prender cativos negros achados por ele
em quilombos e aldeias indígenas.
O papel de João Gonçalves na conformação dos índios, mestiços, negros e
brancos do sul da Bahia, em especial das cercanias de Porto Seguro,
infelizmente foi esquecido. Tal esquecimento deu ensejo a algumas patacoadas,
como as reivindicações dos supostamente “invadidos” Pataxós.
Em 22 de abril de 2000, o povoado de Coroa Vermelha, no extremo sul da
Bahia, estava em festa. Comemoravam-se os 500 anos do Descobrimento (ou
Achamento) do Brasil. Para estragar a solenidade, contando com o incentivo de
militantes políticos e antropólogos relativistas, um grupo de “índios” Pataxós
protestava. Diziam algo como “o Descobrimento foi uma invasão, queremos
nossa terra de volta”.
Se alguém poderia protestar, não eram os Pataxós, pois lhes faltava
legitimidade. Os descendentes dos índios encontrados por Cabral em Coroa
Vermelha e, antes, em Barra do Cahy, os Tupiniquins, estavam perfeitamente
integrados à sociedade brasileira e provavelmente compunham, miscigenados,
parte dos que saudavam a festividade, entre eles habitantes de Porto Seguro e
Santa Cruz de Cabrália, felizes pelos positivos efeitos econômicos que a festa
trazia à região.
Os Pataxós não estavam naquela praia em 1500. Aliás, chegaram lá depois
de 1970, movidos pelo interesse em explorar o potencial turístico do local. Com
seus cocares coloridos, apresentam-se como os originais da terra e vendem
artesanato. Fazem o mesmo na entrada do Parque Nacional do Monte Pascoal.
Todos falam português.
Os Pataxós são originários do nordeste de Minas Gerais, terra dos Maxacalis,
mas no tempo do contato com brancos já estavam espalhados por regiões
interiores da Bahia e Espírito Santo. A língua Pataxó, até onde se sabe (pouco
restou registrada) é do grupo de línguas Maxacalis, indicando parentesco
próximo entre eles. Alguns Pataxós reconhecem o Maxacali como seu idioma
original, embora nenhum deles o saiba falar. Para precisar a origem dos Pataxós
é preciso retroceder no tempo quase três séculos.
Em 1727, por conta das descobertas auríferas, foi fundada a vila de Minas
Novas, então pertencente ao território da capitania da Bahia, hoje a Minas
Gerais. De lá partiu para o sertão do sudeste da Bahia, área dos Kamakãs-
Mongoiós e residualmente dos Aimorés, também chamados Gueréns e
Botocudos, o mestre de campo João da Silva Guimarães. Em 1744 a ele juntou-
se, por provisão do vice-rei André de Melo e Castro, o jovem João Gonçalves da
Costa, igualmente morador de Minas Novas, nomeado capitão de conquista e
descobrimentos, ou seja, da dupla missão de encontrar minerais e trazer índios à
civilização.
João Gonçalves da Costa nascera escravo e fora alforriado ainda na
metrópole. Com a morte de Guimarães, assumiu o posto de capitão-mor e a
jurisdição sobre uma área de quase 100 mil km². Viveria mais de 100 anos,
tendo fundado o arraial da Conquista, depois Vila Imperial da Vitória, hoje
Vitória da Conquista, cidade governada por seus descendentes até meados do
século XX.
Além desse feito, Costa abriu diversas estradas ligando o sertão ao litoral da
Bahia e estabeleceu dezenas de fazendas de gado bovino. O mais importante,
porém, foi ter aldeado e civilizado a grande nação Kamakã-Mongoió, o que
daria origem a muitas cidades destacadas da Bahia, como Itapetinga e Itambé, e
tornaria viável a implantação do cacau em Ilhéus, Itabuna e Canavieiras.
Os Mongoiós aliaram-se a João Gonçalves da Costa, aceitando sua
liderança, pois ele oferecia proteção militar contra a invasão do sertão da
Ressaca13 pelos Pataxós, por sua vez deslocados pela exploração da região de
Minas Novas. Os Pataxós eram agressivos inimigos dos Mongoiós, estes de
índole mais pací ca. Outros inimigos dos Mongoiós, os Aimorés encontravam-
se em número reduzido na região no século XVIII, ou por terem migrado para o
sul, Espírito Santo e Zona da Mata mineira, ou por terem sido perseguidos por
expedição punitiva realizada por Potiguaras a serviço da capitania de Ilhéus no
início do século anterior.
Nem todos os chefes dos Kamakãs-Mongoiós, porém, foram leais a Costa.
Alguns se aliaram a quilombolas e tentaram atacá-lo. Foram derrotados.
Capivara, chefe Mongoió, selou então uma aliança com Botocudos para atacar
o arraial da Conquista, mas acabou traindo os Aimorés e acordando paz e
vassalagem com o capitão-mor.
Tudo ia bem quando Capivara, mantendo as aparências, ordenou a alguns de
seus guerreiros que matassem soldados de João Gonçalves da Costa quando
esses estivessem sozinhos nas matas. O chefe indígena, depois de um tempo,
foi denunciado por informantes. Costa não expressou sua fúria pela traição.
Preferiu vingar o ardil com outro ardil.
Convidado para um banquete, Capivara levou seus guerreiros consigo. Após
fartas comilanças e muita bebedeira, Costa deu o sinal combinado a seus
homens. Desprevenido, Capivara foi degolado.
Depois desse episódio, os Kamakãs-Mongoiós não tornaram a desa ar a
autoridade de Costa. Uni cado seu “reino” e dada a ordem de guerra justa aos
Botocudos, estendida aos Pataxós, o capitão-mor logrou afastar ambas as tribos
da região, ou melhor, praticamente todos os Aimorés e quase todos os Pataxós.
Antes de passar ao destino dos Pataxós e explicar como eles vieram parar em
Coroa Vermelha, cabe uma avaliação crítica de João Gonçalves da Costa e
registrar dele um feito especial. Costa foi o fundador do aldeamento de
Ferradas, localidade natal de Jorge Amado e berço da “civilização do cacau”,
hoje bairro histórico de Itabuna. O aldeamento foi administrado posteriormente
pelos capuchinhos, que o zeram de nhar, embora, graças à e ciente estratégia
de marketing da ordem católica, tenham passado à história como benfeitores
dos Kamakãs-Mongoiós do lugar.
Para o historiador João da Silva Campos, cronista-mor da capitania de
Ilhéus, Costa foi: “Sem dúvida, um dos maiores desbravadores das orestas
meridionais da Bahia, tendo vivido nessa faina de descobrimentos, explorações,
guerras e redução dos índios durante mais de cinquenta anos”. Campos cita o
governador da Bahia entre 1802 e 1805 Francisco da Cunha e Meneses, para
quem Costa possuía: “O valor e o espírito dos antigos paulistas sem sua
ambição”.
Nem todas as autoridades tinham a mesma opinião. O culto ouvidor da
comarca de Ilhéus, Baltasar da Silva Lisboa, tinha João Gonçalves da Costa
como: “Criminoso e truculento escravizador, explorador, martirizador e
assassino de índios”. Cabe ressalvar, com o perdão do anacronismo, que
Baltasar foi o mais destacado pensador “politicamente correto” de seu tempo,
tendo registrado inclusive uma militância ambientalista. Porém, a maioria dos
contemporâneos de João Gonçalves da Costa concordaria com o fecho, seguido
de referências elogiosas, do conde da Ponte 14: “Não produz um século um
homem com o gênio deste capitão-mor”.
Corridos por João Gonçalves da Costa e seus liderados Kamakãs-Mongoiós,
os Pataxós aparecem na vila litorânea de Prado na década de 1820, indo se
estabelecer em 1861 na aldeia de Barra Velha, paradisíaca planície costeira entre
os rios Corumbau e Caraíva. Nunca antes tinham vivido no litoral, mas ali
caram, embora em pequeno número, e aprenderam a praticar alguma
agricultura, coisa que seus antepassados desconheciam, pois sequer dominavam
o fogo, não construíam qualquer tipo de habitação e viviam exclusivamente da
caça, da coleta e da pilhagem de aldeias inimigas.
Em 1976, morando apenas em Barra Velha e proximidades, os Pataxós
foram recenseados em 684 indivíduos. Em Coroa Vermelha não havia ainda
nenhum deles. De lá até 2010 deu-se o rush do turismo tanto numa região
como na outra. Isso ajudou a aumentar a população, segundo levantamento da
FUNAI, a 3.118 Pataxós em Barra Velha e 2.600 em Coroa Vermelha. É um
incremento populacional espantoso, ou melhor, talvez não tão espantoso,
levando em conta que para ser contado como Pataxó basta dizer-se Pataxó e ser
aceito como tal por seus pares.
É de se prever outro aumento vertiginoso na população Pataxó, pois posar de
índio em Coroa Vermelha parece ser um bom negócio, em Barra Velha
também, dando inclusive direito à terra e à atenção da FUNAI. A menos que os
atuais Pataxós resolvam estabelecer uma reserva de mercado, limitando o acesso
à vantajosa identidade indígena.
Quando você, leitor, for às praias, todas belíssimas, de Corumbau, Caraíva e
Coroa Vermelha, vá sabendo que os de cocar de penas na cabeça não são
descendentes dos indígenas originais daquelas localidades, a menos que não
sejam tão Pataxós quanto dizem que são e tenham, surpresa, alguma
ascendência de seus inimigos Tupiniquins e europeus.
Espécie de cangaceiro litorâneo, Marcelino Alves aparece em registros
históricos em 1929 acusado de homicídio contra a companheira e de estupro
contra outras mulheres. Julgado em 1931, foi absolvido, para revolta de Ilhéus,
inclusive da população de Olivença, distrito desse município.
Em 1934, o líder do Partido Comunista Brasileiro — PCB local, Nelson
Schaun, cooptara o Caboclo Marcelino, como era conhecido, para um plano de
ação militar. Armou-o e a seu bando, que espalhou o terror pela zona rural.
Em 1936, comandava o Posto Indígena Caramuru-Paraguaçu, próximo a
Itabuna, o militante do PCB Telésforo Martins Fontes. Viviam no posto outros
próceres da agremiação revolucionária marxista. Telésforo chamou então
Marcelino para se instalar na área do Posto com seus homens. Quando a dupla
militância do Diretor e o refúgio ao temido caboclo foram descobertos, o
governo estadual mandou para lá uma força composta por 1.200 praças. Os
comunistas, somados aos bandoleiros, tinham apenas 63 homens em armas e
resolveram debandar antes do confronto fatal.
Marcelino Alves entregou-se à polícia de Itabuna dias depois em troca de
garantia de vida. Foi enviado em 1937 para o Rio de Janeiro para julgamento
pela planejada ação subversiva e conluio com os comunistas. Por falta de provas,
foi absolvido, retornando a Ilhéus no ano seguinte. Como não encontrasse boa
receptividade na terral natal, sumiu logo depois sem deixar notícias. Várias
fantasias foram aventadas para explicar o sumiço, nenhuma delas com base
documental.
Está em curso no século XXI uma campanha para transformar os antigos
moradores de Olivença, distrito de Ilhéus, na Bahia, em índios tupinambás,
com os respectivos direitos, como, por exemplo, a ocupação gratuita de terrenos
nobres a beira-mar numa valorizada zona turística. ONGs, grupos políticos e a
FUNAI mobilizam-se para fazer tal campanha virar apropriação de território
historicamente ocupado pela agropecuária. Os argumentos para tal são muitos,
desde que não se toque na história remota, pois essa conta como os
“tupinambás” foram parar em Olivença e o quanto os “índios” atuais são de fato
tupinambás.
As ONGs envolvidas na demarcação da reserva Tupinambá de Olivença
elegeram o caboclo Marcelino como herói popular, líder da causa indígena e
símbolo da causa atual. Na verdade, Marcelino Alves nunca foi bem quisto no
distrito de Olivença e não consta que tenha invocado uma identidade
Tupinambá.
A história documentada não autoriza nada do que pedem as ONGs e alguns
“índios” modernos.
Em 1559 não havia um único índio Tupinambá vivendo na região de Ilhéus.
Os nativos da região eram Tupiniquins ou Aimorés. Naquele ano, eclodiu uma
revolta dos Tupiniquins, que cercaram a vila, povoada por europeus, africanos e
mamelucos. Governava o Brasil, de Salvador, Mem de Sá, também proprietário
então do engenho Santana, o maior da capitania de Ilhéus.
Sem demora, partiram em embarcações Mem de Sá, o capitão Vasco
Rodrigues Caldas e numerosa tropa, composta exclusivamente por índios
Tupinambás do entorno de Salvador. Chegando ao teatro de guerra,
desembarcadas as tropas, partiram ao ataque, encurralando o grosso das forças
Tupiniquins na praia de Cururupe, próxima a atual Olivença, obrigando-os a
buscar refúgio no mar aberto. Uma vez na água, lançaram-se os Tupinambás no
encalço de seus tradicionais inimigos Tupiniquins. Os primeiros eram melhores
nadadores e lograram matar a maioria dos nativos locais sem perder quase
nenhuma vida. O episódio, relatado de próprio punho por Mem de Sá e
referendado por outros cronistas, como o contemporâneo Manuel da Nóbrega,
passou à história como Batalha dos Nadadores.
Seguiram-se outros confrontos. Não morreram todos os Tupiniquins.
Ficaram as mulheres, as crianças, enquanto alguns homens renderam-se e
outros fugiram para as matas. Paci cado o lugar, achou por bem Mem de Sá
manter em Ilhéus parte dos Tupinambás.
Foram esses Tupinambás, a serviço do exército colonial português, os únicos
Tupinambás a colonizar a região de Ilhéus. Estando a serviço da Coroa,
portaram-se como os demais colonos da capitania, em igualdade de direitos, e
muito provavelmente reproduziram-se com mulheres Tupiniquins ou
mamelucas, pois mulheres Tupinambás não tinham vindo com a expedição
punitiva. Se há algum Tupinambá em Olivença ainda, será no mínimo 50%
Tupiniquim ou europeu.
No início do século XVII, novo problema militar na capitania de Ilhéus.
Dessa vez eram os Aimorés a causar devastações, ou supostas devastações, pois
os relatos eram propositadamente exagerados, aos colonos. Nova ação do
governo-geral do Brasil. São enviados 1.300 guerreiros potiguaras diretamente
da Paraíba para atuar na repressão aos Aimorés. Os potiguaras são bem
sucedidos na campanha militar, mas a maioria deles não retorna à terra natal,
permanecendo aldeada em Maria Guarda, na con uência dos rios que tinham
foz em Ilhéus, para prevenir futuras vinganças dos Aimorés.
Há notícias, não con rmadas por mais de uma fonte, mas ainda assim
históricas, da venda de escravos Guaranis por paulistas para a capitania de
Ilhéus, além da possibilidade de Kamakãs-Mongoiós do sertão da Ressaca e
outros indígenas terem migrado para a região. Ou seja, já no século XVII o
entorno da vila de Ilhéus, onde será fundado em 1680 o aldeamento jesuítico de
Nossa Senhora da Escada de Olivença, era um caleidoscópio de povos
indígenas aculturados e miscigenados.
Em 1758, Olivença livrou-se dos jesuítas e foi transformada em vila, gerida
por sua própria câmara, composta por moradores que não falavam tupi-guarani,
mas português, vestiam-se e comportavam-se como mamelucos,
autoidenti cando-se como caboclos. Para defender a tese pró-demarcação do
território indígena de Olivença, a antropóloga Patrícia Navarro de Almeida
Couto apresenta uma lista obtida no Arquivo Público da Bahia, datada de 1805,
com os nomes, idades e estado civil de 62 pessoas da vila identi cadas como
“indígenas de nação”. Não diz o documento o nome da nação, ou nações
indígenas, a que pertenceriam tais cidadãos do reino português, mas todos os
nomes deles são portugueses.
Cita ainda Patrícia Navarro relatos do príncipe alemão Wied-Neuwied, de
passagem por Olivença. Tal crônica é contraditória. Ora diz o visitante ter visto
uma maioria com puros traços indígenas (como se o fenótipo fosse comprovante
inquestionável), ora diz não ter visto ninguém com hábitos indígenas,
lamentando não ter podido contemplar tal espetáculo antropológico.
Três anos após Wied-Neuwied, esteve em Olivença, depois de ter visto
índios de verdade em Ferradas, o também alemão von Martius, médico e
biólogo. Contou ter visto brancos, negros e principalmente mamelucos, que se
autoidenti cavam como caboclos, por sinal, com orgulho. Não viu neles traços
de cultura indígena. Falavam português e portavam-se como brasileiros. Pobres,
mas brasileiros.
O relato de von Martius é omitido pelos defensores da existência de
Tupinambás em Olivença. Preferem lembrar-se do Caboclo Marcelino, como
se esse tivesse sido um autêntico líder indígena, amado pela população local.
Qual a intenção dos antropólogos da Coordenação Geral de Estudos e
Pesquisa da FUNAI ao aumentar arti cialmente a quantidade de indígenas e,
consequentemente, a demarcação de novos territórios sob controle do órgão
indigenista? Tire o leitor suas próprias conclusões.
Salta aos olhos a facilidade com que brancos e caboclos têm se declarado
indígenas nos últimos anos, quem sabe pelas vantagens prometidas ou
oferecidas pela FUNAI para quem tem tal condição reconhecida. Notável
também é que isso quase nunca ocorre na mata fechada, longe de cidades ou
praias. Lugares paradisíacos, como Olivença e Caraíva, são preferidos pelos
neoíndios. Se forem índios mesmo, algo improvável, são tão ou mais espertos
que seus antepassados, muitos deles hábeis na negociação com o Estado
brasileiro. Não autorizam, de forma alguma, o estereótipo de vítimas indefesas
do malvado “homem branco”.
13 Sertão da Ressaca é a antiga denominação da área interior e de baixa altitude entre os rios de Contas e
Jequitinhonha na Bahia. É delimitado a oeste pelo Planalto de Conquista e a leste pela estreita faixa úmida
litorânea.
14 João de Saldanha da Gama Melo Torres Guedes Brito, governador da província da Bahia (1805-
1809).
Da Cachaça à Alteridade
Diante da di culdade em manter os indígenas Kaiowás (subgrupo Guarani)
no aldeamento montado para eles nas proximidades do atual município de
Itapeva-SP, João da Silva Machado, barão de Antonina, criador do estado do
Paraná, passou a fornecer sistematicamente cachaça, rapadura, fumo, sal,
miçangas e roupas aos aldeados.
Em pouco tempo, os índios tomaram o barão como benfeitor, apelidando-o
de “Pai Guaçu”. Corria o ano de 1847. Ninguém mais desertava do aldeamento.
Literalmente viciados nos produtos mais sedutores da cultura brasileira, em
pouco tempo estavam aculturados os antes indomáveis Kaiowás.
A estratégia de Silva Machado, porém, não era novidade. Os donos de
engenho já a utilizavam com sucesso para atrair mão de obra nativa no século
XVI. A política da cachaça, diga-se assim, é mãe do clientelismo brasileiro, tão
comum no meio rural até a atualidade.
Antes os índios, hoje a bugrada, ou seja, a “massa geral” referida pelo
presidente da província da Paraíba. Ver-se-á no capítulo 3, sobre os portugueses,
o quanto essa plebe, selvagem apesar de falar português e vestir-se à moda
europeia, envergonhava os nacionais numa comparação com o resto do mundo,
o quanto a imagem desse índio transformado em pobre comum, que “conserva-
se na estupidez”, evocando o parecer na linha do “pior raça do mundo” do
Legislativo de Barbacena, é responsável pela tradição autodepreciativa nacional.
É um fenômeno comum na América Latina. Astecas e incas são lembrados
com orgulho nos folclores do México e do Peru enquanto puros e extintos. Seus
descendentes, mestiços, são apenas a bugrada indolente, ignorante e pouco
disposta a colaborar com a obra civilizatória, tal qual os tupis retratados por
Manuel da Nóbrega em Discurso sobre a conversão do gentio ou os tapuias
observados pelo bispo de Mariana no início do século XIX.
Não apenas a elite despreza a bugrada, como, reconhecendo inexoravelmente
ser ela própria descendente, em grande medida, dos atrasados selvagens
brasileiros, pintados como parvos, acaba desprezando a si própria diante de
povos tidos como superiores do mais pobre ao mais rico, do antepassado nativo
local ao mais puro representante da elite atual, sem saber, como se verá no
capítulo 4 desta obra, que bugrada já houve e há na Europa, tendo sido muito
desprezada em idos tempos.
Por outro lado, a alteridade inventada por razões ideológicas, assumida por
esperteza na Bahia e em Roraima (Raposa Serra do Sol), entre outros rincões,
que insiste em chamar supostos índios remanescentes de donos da terra,
transforma todos os brasileiros, que deviam a essas alturas serem já brasilianos,
em apátridas no próprio território o cializado pela família Orleans e Bragança,
tenta, e muitas vezes consegue, convencê-los de que são usurpadores de uma
posse ilegítima.
Outro argumento falacioso para a alteridade forçada é a suposta necessidade
de preservar a cultura autóctone tal como encontrada por Cabral e Caminha.
Na extensa, bem documentada e recente tese Serras de Ibiapaba, sobre os
aldeamentos indígenas da região cearense limítrofe com o Piauí, o historiador
Lígio José de Oliveira Maia critica a noção substantivista de cultura, ou seja,
cultura como algo que se ganha ou que se perde, “não como um fenômeno
social que se transforma com o passar do tempo”.
Não há nada de errado em tocar tambor como os tataravós o faziam, o
mesmo tambor até. Daí a transformar isso e todo resto em obrigação, em
patrimônio cultural dos tataravós a ser preservado milênios afora por todos seus
tataranetos, é querer criar museus antropológicos vivos, querer produzir
sociedades estanques, banalizadas pelo compromisso com o passado.
As culturas ameríndias transformaram-se, às vezes muito de uma vez só, às
vezes pouco ao longo dos últimos séculos, como no caso emblemático dos
Xavantes, que se negaram ao contato tanto quanto puderam. Mas o mesmo
ocorreu às culturas europeias e africanas. Não dá para a rmar que o passado dos
Kariris, por exemplo, era melhor, era puro, porque antes dos europeus eles não
eram exterminadores de quilombos africanos nem se misturavam a povos
brancos, nem se orgulhavam de falarem e vestirem e sentirem-se como
cearenses, pernambucanos ou baianos.
O puro está extinto. Não hoje, já o estava em 1500. As culturas aqui
encontradas já estavam transformadas e em transformação. O contato pode ter
acelerado o processo, mas se o processo é inevitável, e não envolve perdas e
ganhos, mas apenas transformação, não se deve julgá-lo melhor por ser lento ou
pior por ser rápido. Uma das melhores vocações do homo sapiens é a troca de
experiências e de culturas. Portanto, ninguém perdeu nada, em termos culturais,
com o 22 de abril de 1500.
Brasileiros são em grande parte tupiniquins, tupinambás, guaranis, potiguaras
e jês. São descendentes de Arariboia, Camarão e Janduí, como o são de João
Gonçalves da Costa, Estácio de Sá e Henrique Dias e de muitos anônimos
indígenas, africanos e europeus. Brasileiros são, ou deveriam ser brasilianos, os
quase 200 milhões de verdadeiros donos da terra.
Quanto aos índios de verdade, convém situá-los devidamente para desfazer
os muitos equívocos que cercam sua percepção pelos brasileiros. É o que se
tenta fazer no quadro a seguir.
2 Muito mais pela miscigenação e fusão cultural do que por qualquer outra coisa. Não se credite aos
jesuítas, capuchinhos e afins o que não fizeram.
4 Reduções — missões jesuíticas nas Américas — foram aldeamentos indígenas comandados por
religiosos da Companhia de Jesus. Reuniam de dezenas a milhares de índios, encarregados de trabalhar para a
manutenção do empreendimento jesuítico e como diaristas em fazendas e engenhos para a geração de renda
aos inacianos. Chamavam-se reduções para traduzir a ideia de “reduzir” os índios à paci cação e ao trabalho
produtivo nos aldeamentos.
Africanos
As Vítimas Perfeitas
Faz parte da tradição autodepreciativa brasileira a rmar que o país é atrasado
pois foi o último do Ocidente a abolir a escravatura. Descreve-se o passado
escravocrata como uma iniciativa sádica de portugueses e brasileiros, armando
expedições de apresamento de africanos indefesos, puros e bondosos no coração
do continente negro. Isso é a parte mais recente da tradição. Há outra, mais
antiga, racista, que joga a culpa da inferioridade nacional na contaminação do
brasileiro pelo sangue africano.
Ambas são incorretas, para dizer o mínimo. Comece-se pelo fato de que a
escravidão não foi abolida em todo globo até o momento em que este livro é
escrito, como se verá no exemplo logo a seguir. Deve-se atentar também que o
quadro “brancos com armas apresando negros à força na África” é falso. Por
m, há e houve racismo, contra negros, búlgaros, ciganos, drávidas e
aborígenes, entre muitos outros, em todos os tempos, mas no Brasil dos tempos
de escravatura o racismo não era especialmente virulento. A miscigenação
ocorreu em larga escala, não repugnando ao europeu a pele escura na hora do
contato mais íntimo, e africanos e afrodescendentes tiveram muito mais espaço
na sociedade brasileira, em posições superiores inclusive, do que se imagina.
Por m, houve escravos de pele clara e livres de pele escura, como houve
senhores de escravos de todos os tons no Brasil.
Quer se vender africanos e afrodescendentes como vítimas da crueldade
ocidental, vítimas sem iniciativa, sem nuances morais, coitadinhos. Isso é
coerente com a tradição autodepreciativa, não com a história documentada de
fato do Brasil.
A Marca Da Escravidão
Clarisse Kimberi, 13 anos, dorme no chão duro de um barraco de barro.
Victorien Kamboule, seu “pai adotivo”, ergue um galho de árvore¹ e grita para
Clarisse:
— Levanta-te.
É época da colheita de algodão. Victorien está preocupado com a
produtividade de sua plantação. Durante meses, Clarisse esmagou larvas com as
mãos e extirpou as ervas daninhas com a enxada, a mesma que usou para lavrar
a terra antes, pois Victorien não tem um arado, muito menos um trator. Agora é
preciso colher tudo rapidamente, o algodão está no ponto. Clarisse e outras
crianças envolvidas não terão muito tempo para dormir.
Dois anos antes, longe daquela plantação empoeirada, numa loja
especializada em lingerie de primeira linha, a atração é o lançamento de uma
nova calcinha. A peça não tem nada de especial. É branca com margaridas azuis
e lilases pintadas. A etiqueta e o folheto que a acompanham, porém, são de
lavar a alma e afagar a consciência. O fabricante garante: é algodão puro de
sequeiro, “orgânico”, produzido sem pesticidas a partir de uma ação de
“comércio justo”. Levar para casa a calcinha será “bom para as mulheres, que
produzem o algodão”, “bom para as crianças, suas lhas”, segue a sobre-etiqueta
unida à peça, que traz ainda um ícone do país onde é produzido o tal algodão:
Burkina Faso, a terra de Clarisse Kimberi.
A calcinha foi lançada para o dia dos namorados nos Estados Unidos em
2009. Clarisse foi agrada, juntamente com dezenas de crianças na mesma
condição, em novembro de 2011 por uma equipe de reportagem da agência de
notícias Bloomberg.
Pouca gente sabe, mas a escravidão não foi abolida. No século XXI, há mais
pessoas trabalhando forçadas e sem remuneração do que em qualquer período
anterior da história universal.
O fabricante americano não vendia mais em 2011 calcinhas com “100% puro
algodão orgânico”. Na maior parte das peças, baixou a percentagem para 20%,
mantendo, porém, as etiquetas politicamente corretas. Tal redução deveu-se à
demanda excessiva. Os fazendeiros de Burkina Faso não davam conta de
produzir algodão su ciente para a confecção de peças “100% puro algodão
orgânico”. O “comércio justo” estava a demandar mais produção. Os
fazendeiros estavam a demandar mais “crianças adotivas”. Queriam aproveitar o
momento propício, já que o “comércio justo” crescia a 27% por ano. Em 2010,
movimentara US$ 5,8 bilhões. Wal-Mart e Starbucks, entre outros gigantes do
comércio, aproveitavam a maré, certi cados pela ONG Fairtrade International,
com sede em Bonn, Alemanha.
Nesse negócio, ninguém é bobo, exceto, talvez, o consumidor, mas quem
pede para ser enganado merece pagar mais caro pelo “orgânico”.
¹ Equivalente, no Brasil, à velha “vara de marmelo” ou “vara de castigos”.
³ Atual Zimbábue.
Africanos No Brasil
Em 1445, Portugal comprou indivíduos da Senegâmbia para servirem como
escravos domésticos no Reino. Era a primeira transação direta, não a primeira
introdução de escravos africanos na Europa, antes comercializados por árabes e
berberes, que os adquiriam pela tradicional e mortífera4 rota do Saara.
Até 1521, 155 mil cativos africanos seriam introduzidos na Europa e ilhas
atlânticas (Açores, Canárias, Madeira e Cabo Verde) pelos tra cantes
portugueses, que por sua vez os compravam em diversos entrepostos da costa da
África. Além desses cativos, outros 80 mil pelo menos foram comercializados
entre um ponto e outro da costa africana, demandados pelas principais
monarquias da época, como o império Songai e reino cristianizado do Congo.
Na ilha de São Tomé, grandes plantations de cana-de-açúcar serviam de
experiência ao sistema de trabalho e produção posteriormente implantado no
Brasil. Boa parte dos senhores de engenho, proprietários às vezes de centenas
de escravos, eram nobres do reino do Congo, todos de origem banto. Muito
ricos, tais senhores tinham o costume de casarem suas lhas com os lhos dos
fazendeiros portugueses.
Os africanos não escravizavam seus irmãos. Escravizavam seus inimigos. As
tribos e estados poderosos dominavam os menos poderosos. A desigualdade era
brutal. No Congo, no nal do século XVI, não havia homens livres a quem se
pudesse pagar um salário para trabalhar. Todos os trabalhadores eram escravos.
Os livres eram nobres ou dependentes desses e não estavam dispostos a realizar
atividades braçais.
Os escravos africanos foram introduzidos como mão de obra no Brasil na
segunda metade do século XVI. Em 1560, eles completavam o plantel de
trabalhadores dos engenhos, majoritariamente indígena. Em 1610, quase todos
os braços já eram africanos. Até 1866 terão desembarcado na América
portuguesa pouco mais de 4,8 milhões de emigrados forçados da África,
comprados principalmente na costa que vai da Guiné a Luanda com ouro,
armas de fogo e extensa gama de produtos europeus e americanos (cachaça e
fumo, principalmente).
4 Embora não haja números precisos, é possível a rmar que a mortalidade na travessia dos escravos pelo
Saara fosse alta, seguramente mais alta que na travessia atlântica África-Brasil.
Racismo Contra o Negro
A sociedade portuguesa dos séculos XV a XVIII era racista à moda antiga, ou
seja, xenófoba. O estrangeiro, notadamente o judeu e os nativos das regiões
conquistadas (Ásia, África, América), poderia manchar a “pureza de sangue”,
requisito à ascensão social. Na prática, não era bem assim, como veremos
adiante, nem fazia muito sentido falar em “pureza” de um povo nascido de
ampla miscigenação. Os espanhóis, por sua vez, estenderam a “pureza” aos
ameríndios, justamente por não serem “infectados” por sangue judeu ou negro.
Os índios eram “sem mistura ou infecção de outro grupo repudiado”,
proclamava um decreto real de 1697.
A repulsa ao negro era universal na Europa, embora não chegasse aos
extremos introduzidos pelo racismo losó co e cientí co a partir do nal do
século XVIII5. Os portugueses conviviam relativamente bem com os africanos
subsaarianos. Já ingleses, franceses e espanhóis procuravam manter uma
distância maior. Os últimos eram especialmente refratários à miscigenação com
negros. O cronista Pedro Alonso O’Crouley, escrevendo sobre as relações inter-
raciais na América espanhola em 1774, advoga, em resumo, que se um indígena
procriar com um branco e o lho desses (mestizo) procriar novamente com um
espanhol, o novo descendente será um castizo e o descendente desse com outro
espanhol tornará a ser espanhol. Porém do cruzamento entre espanhol e
africano nascerá um mulato e não importa quantos cruzamentos tenha esse
mulato com espanhóis daí em diante, toda descendência será considerada
mulata.
Embora os portugueses, para efeitos de um casamento público, também
pensassem como os espanhóis, preferindo as ameríndias como parceiras no caso
de não haver portuguesas disponíveis, os mulatos no Brasil não sofreram o
mesmo grau de discriminação de seus pares nas terras vizinhas. Um ditado
popular já no século XVII dava a dimensão do desembaraço dos pardos: “Brasil,
inferno dos negros, purgatório dos brancos, paraíso dos mulatos”.
De fato, os mulatos logo se tornariam feitores, capitães do mato e soldados
do Exército Colonial Português6. No século XIX, seriam médicos, advogados,
políticos, escritores, comerciantes de escravos e proprietários rurais. Alguns
liderariam revoltas, nunca, porém, contra os brancos. Só se tornariam
defensores dos africanos no período nal da campanha abolicionista. De um
modo geral, jogavam no time dos brancos, pois mesmo quando escravos,
costumavam ter privilégios e orgulhavam-se de sua descendência europeia,
lutando com frequência para o cializá-la. As mulatas, como se verá em detalhes
no capítulo sobre sexualidade, tornaram-se o símbolo sexual das Américas,
malvistas na parte hispânica, desejadas abertamente na parte portuguesa.
No nal do século XIX, o racismo cientí co, baseado em proposições
antropométricas e preconceitos que hoje parecem absurdos, atinge o auge na
Europa e no Brasil. Como expoente nacional apresenta-se o cientista médico
Nina Rodrigues. Ele advoga a tendência de a miscigenação ocasionar a
degeneração do homem. Atacando com estatísticas que mostram uma
tendência maior dos pardos a cometerem crimes como homicídio7, chega a
propor uma diferenciação penal para caboclos e pardos, menos capazes de
compreender a ilicitude de seus atos. A tese pegou para os índios, até hoje
diferenciados como parcialmente incapazes na lei penal.
O pardo está associado à malandragem, traço nem sempre autodepreciativo
da identidade nacional, desde o século XVII pelo menos. É ladino, esperto,
pouco propenso a cumprir regras estritas. A lenta formação de uma maioria
parda, hoje inegável do ponto de vista do genótipo, pois todos os estudos
convergem para uma maioria miscigenada, apesar da predominância de ¾ de
herança europeia, e em menor medida, ligeiramente majoritária, do fenótipo,
estendeu ao brasileiro em geral tais falhas de caráter, por vezes transformadas
em afirmações positivas.
No mais das vezes, o pardo esteve e está associado ao jeitinho brasileiro, ao
pouco caso para com a lei, à ojeriza ao trabalho duro e metódico8, à
malemolência, ao sincretismo cultural e religioso, à dissolução, entre outros
atributos pouco valorizados do ponto de vista do resto do mundo. Como o Brasil
é cada vez mais pardo e seguirá sendo, é inevitável do ponto de vista
demográ co/genético, tais características foram associadas à nacionalidade.
Não é de hoje. Essas críticas os portugueses da metrópole já faziam aos
brasileiros em geral há 200 anos ou mais. Na medida em que cresce a busca por
padrões globais de produtividade, letramento, ordenamento legal e civilidade,
para se usar um termo arcaico, mas de modo algum obsoleto, reforça-se, por
oposição, a tradição autodepreciativa.
Assim, o autodepreciativo vem do racismo, racismo contra o pardo, em larga
medida autorracismo. O “paraíso dos mulatos” segue sendo um paraíso, no
sentido de ser um lugar onde imaginariamente não se precisa trabalhar nem
cumprir as regras, e de nitivamente é dos mulatos (pardos), condição genética
da maioria e cultural de quase todos os brasileiros.
E o negro? O racismo contra o negro, embora sofra in uência do racismo
losó co e cientí co que conheceu seu apogeu no século XIX, tem raízes na
tradição xenófoba, embora contraditória e branda, como já foi ressaltado, dos
lusitanos. Está ligado historicamente a outros dois componentes: a associação à
escravidão, traduzida na expressão popular “trabalhei como uma negra”, entre
outras, e ao medo, ao pavor gerado pela vitoriosa revolução negra de São
Domingos (Haiti), contemporânea das mais importantes (e pouquíssimo
estudadas) revoltas africanas no Brasil.
Desde o início do século XIX, é possível identi car um clamor das classes
média e alta pelo branqueamento. O Império não poupou esforços para atrair a
imigração europeia. A República foi além, institucionalizando o racismo como
política de estado. O decreto nº 528, de 28 de junho de 1890, é explícito: são
bem-vindos os imigrantes, exceto os nativos da África e da Ásia. Os deste
último continente seriam excluídos da proibição posteriormente, mas não os
africanos. Até Getúlio Vargas defenderia a necessidade de branquear a “raça”
brasileira. O referido decreto ia além, punindo quem introduzisse africanos e
asiáticos, assim como “mendigos e indigentes”, em solo nacional. Em outros
artigos, previa subsídios à importação de europeus. Mais racista impossível.
Por outro lado, nunca houve coragem para implantar um regime de apartheid
contra o negro no Brasil, como se fez na África do Sul e nos Estados Unidos. A
ampla adoção do catolicismo, religião propensa naturalmente a aceitar os
sincretismos, e da cultura luso-brasileira pelos crioulos (negros nascidos no
Brasil), a passividade desses e a ampla miscigenação, que rapidamente
transformou os negros em minoria9, foram fatores de dissuasão de tal extremo.
Não signi ca que não tenha sido cogitado, mas felizmente jamais foi
implantado. Numa analogia com o pensamento de Paul Lovejoy para os
escravos, quando o estrangeiro, ou seu descendente, fala a língua do país sem
sotaque e compartilha sua cultura sem restrições, ca mais difícil a
discriminação, pelo menos do ponto de vista legal. Assim foi com os africanos
no Brasil.
O racismo subsiste no Brasil, embora seja residual. Há diferenças de renda
entre negros, pardos e brancos por autodeclaração, curiosamente maiores onde a
presença genética africana é majoritária, como em Salvador. Mas já foram mais
acentuadas. A associação entre renda e cor da pele não é mais automática e não
é correto a rmar que um branco pobre seja menos discriminado que um negro
ou pardo na mesma condição. A sociedade brasileira, como qualquer outra,
valoriza a prosperidade econômica pessoal. Muitos veem o pobre como um
fracassado, carente de iniciativa, de vontade, mas poucos ainda atribuem tais
características a fatores genéticos. O preconceito racial/social remanescente não
resiste a uma simples confrontação demográ ca: há regiões muito pobres com
escassa população afrodescendente e regiões ricas com elevada participação
genética africana.
Segundo o já referido estudo publicado no American Journal of Human
Biology, em média 14,3% do genótipo do brasileiro é de origem africana. Num
hipotético e impossível isolamento genético, daria algo como 27 milhões de
indivíduos, um grande sucesso reprodutivo se tivermos em conta os 4,8 milhões
de imigrantes africanos, mais de 2/3 deles homens, boa parte dos quais nunca
chegou a reproduzir. Sucesso ainda maior é visível no fenótipo. A cor do Brasil é
parda, assim como a etnicidade correspondente e predominante mesmo entre os
aparentemente brancos.
5 O Barão de Montesquieu, importante lósofo iluminista, declarou: “É impensável que Deus, que é
sábio, tenha posto uma alma, sobretudo uma alma boa, num corpo negro”. A Igreja Católica, pelo menos
o cialmente, jamais endossou tal barbaridade. Insistia em ministrar todos os sacramentos a seus éis de
origem africana. Algumas ordens, porém, vetavam aos negros o acesso ao sacerdócio.
6 O grosso do Exército Colonial Português no final da era colonial era composto por pardos.
7 Em uma estatística de acusados de homicídio publicada em 1894 por Nina Rodrigues, a soma dos
classi cados nas categorias pardos, cabras (pardo escuro) e mulatos aponta 238 agressores. No mesmo
quadro estão 55 brancos e 78 crioulos e africanos. A estatística não prova uma propensão genética dos pardos
ao crime. Há que se levar em consideração, coisa que Nina Rodrigues não fez, os meios sociais em que
viviam os pardos e o fato de os brancos homicidas frequentemente não constarem nas estatísticas por seus
crimes serem ocultados, não se lhes apontando a autoria. Branco não era suspeito. Se fosse, tinha meios para
se safar da acusação.
9 Se o número de autodeclarados negros tem aumentado nos últimos censos isso se deve a uma
campanha movida por diversos movimentos ideológicos estimulando a autode nição de pardos como negros.
É improvável que a maioria dos assim autodeclarados não seja geneticamente miscigenada.
Revolta e Negociação
O século XVIII marca o auge do trá co de escravos da África para as
Américas. As colônias americanas da Inglaterra orescem, o mesmo se dando
com as da França. No Brasil, há a corrida do ouro e também uma enorme
expansão da produção dos engenhos de cana-de-açúcar, de mandioca e fumo e
da criação de gado bovino. Naquele século concentra-se 53,8% do trá co
negreiro atlântico, encabeçado não por acaso por ingleses (2.468.000 africanos
tra cados), portugueses (1.888.000) e franceses (1.104.000). Os demais
compradores, dos quais merecem ser citados, pela ordem, neerlandeses, norte-
americanos e dinamarqueses, foram responsáveis por volumes bem menores. Os
espanhóis não compravam na África, abastecendo-se por terceiros.
Entre 1776 e 1850, ingressam nos portos brasileiros 2,67 milhões de escravos
africanos, mais da metade do total histórico. Não é à toa que quase todas as
revoltas importantes desses concentrem-se nesse período, como bem demonstra
o historiador João José Reis, professor da Universidade Federal da Bahia e uma
das maiores autoridades contemporâneas em história negra do país. Stuart
Schwartz endossa Reis, dizendo desconhecer insurreição escrava organizada
antes do final do século XVIII.
Nos Estados Unidos, concentram-se as revoltas no mesmo período. A reação
a elas explica grande parte da legislação segregacionista do Sul americano, parte
dela vigente até os anos 1960. O medo do branco diante da violência organizada
dos negros levou a proibições, como a de escolarização, e a restrições de
locomoção e reunião. Como os pardos, em muitas revoltas americanas,
formaram com os rebeldes negros, ao contrário do que aconteceu no Brasil,
explica-se também em parte a grande identidade, ainda remanescente, entre
negros e pardos naquele país.
A Bahia foi palco das mais importantes rebeliões escravas do Brasil, todas
concentradas na primeira metade do século XIX, quando ingressava na
província uma média anual de oito mil africanos. No interior das províncias do
Rio de Janeiro, São Paulo e Maranhão, principalmente na segunda metade do
mesmo século, houve dezenas de revoltas, mas não na mesma proporção. Em
Minas Gerais, no século XVIII, foram registradas muitas conspirações, porém
nenhuma delas levada a efeito com consequências maiores. No Espírito Santo
houve levantes e ações isoladas, todos de pequena monta. Em Pernambuco, os
atos militares dos negros estiveram ligados a ações antilusas e antimonarquistas,
que absorveram a insatisfação africana e afrodescendente, o que também
aconteceu em Sergipe e no Rio Grande do Sul, onde um batalhão de escravos e
libertos uniu-se aos farroupilhas. Por m, a Guerra do Paraguai proporcionou
uma série de desordens na província de Mato Grosso, reprimidas com sucesso
após o conflito internacional.
No início do século XIX, na Bahia, o maior contingente de escravos era jeje
(20%), seguido de perto pelo hauçá (17%). Ambos os povos eram provenientes
da Costa da Mina, mas os primeiros eram animistas e os segundos islamizados.
Essa característica dos hauçás faria deles líderes de diversas rebeliões entre 1807
e 1820. Uma correspondência datada de 1814, em que o ministro de D. João VI,
o marquês de Aguiar, ordena ao governador da Bahia, conde dos Arcos, a
proibição de batuques de negros em Salvador, mantendo-os livres na capital da
Corte, dá a dimensão do quanto eram temidos: “Além de não ter havido [no
Rio de Janeiro] até agora desordens, bem sabe V. Exa. que há uma grande
diferença entre os Negros Angolas e Benguelas nesta Capital e os dessa Cidade,
que são muito mais resolutos, intrépidos e capazes de qualquer empresa,
particularmente os de nação Hauçá”.
Nessa altura, os hauçás, com taxa de masculinidade superior a 2/3, o que
elevava a tensão, pois poucos formavam famílias, não havia mulheres
su cientes, altamente militarizados e em grande parte alfabetizados em árabe, já
tinham aprontado. Em 5 de janeiro de 1809, cerca de 300 deles, fugidos de
Salvador e de engenhos do Recôncavo, atacaram a vila de Nazaré das Farinhas.
Nos confrontos que se seguiram, muitos foram mortos ou capturados (83
homens e 12 mulheres), mas outros, divididos em pequenos grupos, espalharam
o terror pelo Recôncavo e possivelmente até em Sergipe, onde teriam
participado de um levante. As autoridades preocuparam-se pelo ineditismo da
ação em termos de número de envolvidos e violência empregada.
Em 28 de fevereiro de 1814, uma revolta multiétnica, muito bem organizada
e envolvendo escravos de várias localidades, como os da ilha de Itaparica,
contudo liderada por hauçás, notadamente pelo malomi (sacerdote muçulmano)
João, com 250 homens em armas, atacou as armações pesqueiras de Itapoan,
subúrbio de Salvador. Mataram de 50 a 100 pessoas nessa incursão, incluindo
escravos que se recusaram a se juntar ao grupo, principalmente crioulos, quase
sempre colaboracionistas em relação a seus senhores. Os rebeldes seguiram para
o Recôncavo, pondo fogo em casas (mais de 150) e canaviais no caminho.
Foram derrotados na margem direita do rio Joanes, encurralados por poderosa
tropa legalista, que certamente tinha muitos negros e pardos em sua
composição.
Os sobreviventes de 1814 foram condenados uns à morte, outros a açoites ou
ao degredo para a África, o que estava longe de signi car liberdade, pois eram
largados em pontos da costa africana povoados por inimigos, onde seriam
mortos ou reescravizados pelos locais.
Ainda naquele ano, outra rebelião comandada por hauçás tomaria a rica
região do Iguape, porém os planos desses de atacar Maragogipe, do outro lado
do rio Paraguaçu, foram frustrados pela pronta intervenção de milícias e tropas
oficiais. Os líderes acabaram presos.
Talvez a maior de todas as rebeliões escravas da história do Brasil ocorreria
dois anos depois, em 12 de fevereiro de 1816, em Santo Amaro e São Francisco
do Conde. Após uma celebração religiosa, a guerra começou: africanos de um
lado, milícias brancas, pardas e crioulas do outro. Foram quatro dias de
carni cina, com muitos brancos mortos e grandes engenhos destruídos.
Infelizmente, pouco se sabe sobre a fase conspirativa, se houve de fato uma ou
foi algo espontâneo, e dos personagens africanos do con ito. Mais registrado
está o pânico que tomou a Bahia. Na sequência, vários africanos foram mortos
ou espancados por grupos de milicianos e, em 27 de fevereiro, os proprietários
da região, liderados por Felisberto Caldeira Brant Pontes, futuro marquês de
Barbacena, reuniram-se em São Francisco do Conde, propondo à Corte uma
série de medidas adicionais de controle, como proibir os pretos12 de sentar-se
junto aos brancos em espaços públicos. Por oposição do governador, conde dos
Arcos, tais medidas não chegaram a ser implantadas, e o medo seguiu intenso
entre os brancos e seus aliados.
Em setembro de 1822, em São Mateus, então sob governo da Bahia, “pretos
forros e cativos levantaram-se contra brancos e pardos”, segundo a polícia local.
Pouco se sabe além disso, exceto a prisão de dois africanos, um deles
considerado “rei” pelos demais.
Na mesma época, a Bahia encontrava-se dividida em dois governos, um
representando as Cortes em Salvador, e outro el a Dom Pedro em Cachoeira.
Esse último era liderado por senhores de engenho, que tomaram duras medidas
contra a liberdade de locomoção de escravos e libertos. Foi vetada pelo governo
de Cachoeira a participação de cativos na guerra contra Madeira de Melo, o
comandante português instalado na capital da província, mesmo em funções
logísticas. O chefe militar Pierre Labatut chegou a descumprir tal ordem,
incorporando escravos de um engenho tomado ao inimigo, mas foi
desautorizado.
Do lado português, porém, houve a promessa de libertação se os escravos
combatessem pelas Cortes, de resto em grande parte abolicionistas. Um grupo
de 200 africanos e crioulos chegou a atacar as forças de Labatut estacionadas
em Mata Escura, subúrbio de Salvador, em dezembro de 1822, causando baixas
em seu exército, mas restaram dominados. Para dar exemplo, os “patriotas”,
como se intitulavam, procederam à execução sumária de 52 escravos. Como os
senhores de engenho falavam tanto em liberdade (em relação ao governo das
Cortes), precisavam deixar claro que isso não se estendia à escravaria.
Paradoxalmente, o 2 de julho, marco da vitória final dos “patriotas”, segue sendo
comemorado na Bahia como símbolo de rebelião “popular”. Coisas de uma
história vira-lata.
O Recôncavo Baiano assistiria pelo menos uma dezena de revoltas escravas
com mortes nos anos seguintes, mas seria uma rebelião urbana, comandada por
nagôs islamizados em Salvador, que iria chegar mais perto de transformar o
Brasil num Haiti, para lembrar a implantação de um governo afrodescendente
no Caribe após uma série de rebeliões, golpes e contragolpes entre o nal do
século XVIII e início do XIX, cuja repetição na América do Sul muito se temia
naquele tempo. Trata-se da Revolta dos Malês, desencadeada em janeiro de
1835.
Os nagôs (termo francês equivalente ao inglês iorubá) eram um agregado de
povos próximos entre si vivendo em uma região densamente povoada da África,
correspondente ao sudoeste da atual Nigéria. Uns eram muçulmanos, outros
animistas. Os primeiros tinham capital em Oyo, sede de um considerável
império. Com a destruição do poder de Oyo pelos fulanis do Califado de
Sokoto, muitos nagôs foram escravizados e vendidos para o Brasil. Em 1835,
representavam 28% da população escrava de Salvador, por sua vez 42% da
população total de 65 mil indivíduos.
Na noite de 24 para 25 de janeiro de 1835, cerca de 600 homens, a maioria
deles nagô, vestidos com abadás 13, atacaram o quartel de polícia da Lapa em
busca de armas e a Câmara Municipal14 a m de libertar seu líder, o alufá
Licutan. Não obtendo sucesso em nenhuma das investidas, rumaram para a
enseada do Cabrito, na baía de Todos os Santos, de onde esperavam partir para
o Recôncavo à procura de reforços para a revolução pretendida, porém foram
derrotados no caminho, em frente ao quartel de Água de Meninos.
A revolta fora planejada nos dois anos anteriores e pretendia tomar o poder
político na Bahia. Não tinha, porém, como praticamente nenhuma outra
rebelião do período, a intenção de promover a abolição geral da escravatura, mas
apenas dos muçulmanos e dos africanos que aceitassem se converter àquela
religião. A causa abolicionista somente amadureceria na segunda metade do
século XIX e estaria presente no levante dos escravos da fazenda Castelo, em
Campinas, em 1882, entre outros, especialmente no Maranhão, onde a abolição
tinha muitos simpatizantes entre os livres, inclusive entre os brancos.
O julgamento dos malês15, cuja farta documentação chegou intacta aos dias
atuais, foi severo, inclusas entre as penas o enforcamento, açoites e o degredo
para a África. A preocupação entre a população livre, não só de Salvador como
de todo Brasil, em relação a revoltas escravas aumentou muito. As autoridades,
em resposta, esmeraram-se em medidas de controle. Uma dessas medidas,
adotada em 1857, provocou uma greve entre os escravos de ganho da capital
baiana, comandada por nagôs remanescentes. A greve foi pací ca e durou dez
dias. Parecem ter entendido os cativos que a violência não seria um meio e caz
para conquistar seus intentos.
Assim se deu entre a imensa maioria dos escravos nos mais de 300 anos de
escravatura. Métodos não violentos de pressão e negociação, incluindo ações na
Justiça, juntas de alforrias, fugas e participação política em irmandades,
predominaram como forma de resistência. Quando a abolição nalmente se
deu, em 1888, apenas uma pequena parte dos afrodescendentes permanecia
cativa. Se o ato demorou foi mais pela indecisão quanto a indenizar os
proprietários dos escravos remanescentes ou não. Fato inegável foi a
participação dos negros como atores políticos e militares na história do Brasil,
como também a busca da liberdade, consubstanciada nas alforrias, pelos mais
diversos meios, incluindo a sedução amorosa e a brecha camponesa, quando
escravos vendiam excedentes de suas roças próprias, quase sempre permitidas,
para juntar dinheiro.
Os quilombos, embora tenham eventualmente fornecido homens para os
exércitos de revoltosos e travado pequenas batalhas contra as forças mandadas
para sua destruição, não foram nem de longe a forma maior de resistência nem
de reconstituição de sociedades africanas tal qual existiam do outro lado do
Atlântico. Os exemplos de recriação, sempre parcial, também aconteceram nas
irmandades, nas ordenanças negras e, mais comumente, nas próprias senzalas,
lugar privilegiado e relativamente seguro dos “batuques” em dias de folga.
Nem todos os 4,8 milhões de africanos chegados ao Brasil morreram
escravos. Boa parte de seus descendentes conheceria a liberdade e alguns se
tornariam grandes e pequenos proprietários, comerciantes, artí ces e
pro ssionais liberais. Todos se inseririam na sociedade brasileira,
compartilhando o idioma e, na esmagadora maioria dos casos, a religião
católica16 e os costumes. Essa capacidade de adaptação teria, como ainda tem,
a contrapartida de uma aceitação do afrodescendente como igual pelos europeus
predominantes, de tal forma que a sociedade brasileira acabou desistindo de se
considerar europeia em termos estritos, ao contrário do que zeram os brancos
da África do Sul e do Sul dos Estados Unidos.
12 Por pretos eram designados na época os africanos. Os nascidos no Brasil eram os crioulos.
13 Hoje multicoloridos, usados como fantasia em blocos de carnaval, os abadás originais eram
camisolões brancos que identificavam os muçulmanos africanos.
15 O termo “malês”, de origem controversa, era depreciativo, utilizado por africanos não muçulmanos
para descrever a esses. Os nagôs islamizados nunca assumiram o termo, assim não se reconhecendo.
Preferiam intitular-se muslins (muçulmanos).
1888 — Um Retrato
Tem sido uma obsessão política de alguns a desquali cação do ato formal de
abolição ocorrido em 13 de maio de 1888, assinado pela regente do Império do
Brasil, princesa Isabel. Não foi essa a impressão dos negros contemporâneos da
lei áurea. Esses, juntamente com pardos e brancos simpatizantes da causa
abolicionista, promoveram alegres comemorações pelo país naqueles dias, a
começar pela acontecida no Rio de Janeiro, no Paço Imperial, no dia fatídico. O
sentimento de revanche baseava-se no fato de a lei não prever indenização aos
proprietários, o que foi pessimamente recebido pelos senhores rurais, que se
vingariam por sua vez pouco mais de um ano depois com o apoio ao golpe de
estado da proclamação da República, a propósito, uma causa branca, pois a
maioria dos afrodescendentes era monarquista, pela lembrança dos reinados
africanos, recriados no Brasil, e pelo apoio de Dom Pedro II ao movimento
abolicionista.
Para se ter uma ideia do impacto da abolição sem indenização, tome-se o
caso de Dona Luísa Flora Bulcão Viana, viúva do proprietário do engenho Dom
João, com 233 hectares e 38 escravos em São Francisco do Conde-BA,
Francisco Vicente Viana. O inventário fora aberto na comarca local em 12 de
maio de 1888. Os o ciais de justiça encarregados calcularam um patrimônio
líquido de 45 contos de réis herdados por Dona Luísa. No dia seguinte, a
herança caiu para 22 contos, pois os demais 23 contos, relativos à posse dos
escravos, não podiam mais ser contabilizados. Para piorar, os ex-escravos
recusavam-se a seguir trabalhando nos engenhos e fazendas, pois queriam
distância física da lembrança da antiga condição.
Um detalhe sobre a abolição é que ela não bene ciou quase nenhum escravo
branco. Embora fosse possível tal circunstância e de fato tenha ocorrido, pois a
escravidão não era de nida por cor, os poucos pardos claros e brancos já tinham
há muito sido alforriados, em alguns casos devido ao clamor público, como
ocorreu a um escravo de olhos azuis, conforme registro recuperado por Luiz
Felipe de Alencastro, flagrado em 1858 por uma pequena multidão no centro do
Rio de Janeiro, que logo juntou a quantia necessária para comprar sua liberdade.
Também pouco atingiu os mestiços. O censo de 1872 apontava 87,44% deles
como livres. Os pardos naquela ocasião eram 5,35 milhões numa população
total de 9,93 milhões. No mesmo ano, 52,87% dos negros seguiam sendo
escravos, mas somavam apenas 708 mil indivíduos.
No censo de 1890, logo após a abolição, os pardos seguiriam formando a
maioria da população nacional e somente seriam superados pelos brancos,
reforçados pelo enorme fluxo imigratório europeu, em 1940.
Curiosamente, a abolição deu-se no auge da popularidade do racismo
cientí co entre a elite nacional. Os republicanos positivistas eram os maiores
adeptos da tese de inferioridade de índios, negros e mestiços. O massacre do
arraial de Canudos sem negociação equivaleu de certa forma à extinção de um
quilombo. As fotos dos sertanejos, quase todos mestiços, foram divulgadas pelo
regime para reforçar essa impressão.
Mais do que apagar a mancha da escravidão, a República pretendeu apagar o
que considerava uma mancha genética. Se não ousou obstar a reprodução de
negros e pardos, talvez tenha sido mais por falta de meios do que pelo medo de
possíveis revoltas ou talvez por acreditar, como propunham médicos da época,
que a inferioridade própria dos mestiços os faria naturalmente menos propensos
a reproduzir e, em reproduzindo, menos propensos à sobrevivência e a transmitir
seus caracteres aos descendentes.
De qualquer forma, era impossível deixar de constatar o caráter mestiço do
brasileiro do nal do século XIX. Mestiço não apenas na cor, mas, como
assinalou o polemista Sílvio Romero, “todo brasileiro é mestiço, se não no
sangue, pelo menos nas ideias”.
18 Agudás são descendentes de escravos e comerciantes brasileiros imigrados nos séculos XVIII e XIX
para a região que se transformaria no atual Benim. Mantêm costumes brasileiros e orgulham-se disso.
19 Mestre habilitado pela Marinha para pequenas embarcações ou para navegação interior.
20 Inventário resgatado por Enaile Flauzina Carvalho – Universidade Federal do Espírito Santo.
21 Usa-se o termo “preto” por ser como os africanos eram chamados na época.
De Antônio Pereira Rebouças a
Gilberto Freire
José Tomás de Sousa, nascido em Moçambique, estava em Montevidéu em
1858. Obrigado pelo governo uruguaio a servir como soldado da Guarda
Nacional daquele país, pediu ajuda ao diplomata brasileiro lá em serviço,
Joaquim Tomás do Amaral. Esse último peticionou à chancelaria brasileira,
alegando que José Tomás, liberto no Rio Grande do Sul, onde participara da
Revolução Farroupilha, não poderia ser recrutado à força pelo país vizinho, pois
seria súdito do Império do Brasil e estava protegido de tal coerção por tratados
entre os dois países.
Já se saberá o destino da petição de Joaquim Tomás. Antes convém um
passeio pelo direito luso-brasileiro do século XIX. Escravo, pelas leis
portuguesas, independentemente de naturalidade ou cor, era coisa, não pessoa.
Porém os libertos, mesmo nascidos no exterior, eram súditos de Sua Majestade,
cidadãos lusos em qualquer parte do Império, com direitos quase plenos22.
Na Constituinte brasileira de 1823, muito se debateu a respeito do estatuto
dos libertos. Acabou prevalecendo a posição do pensador e político liberal José
da Silva Lisboa, depois barão e visconde de Cairu, representante da Bahia, com
um discurso válido para o Brasil de qualquer tempo:
Bastem já, senhores, as odiosas distinções que existem das castas pelas diferenças das cores. Já agora o
variegado é atributo quase inexterminável da população do Brasil. A política, que não pode tirar tais
desigualdades, deve aproveitar os elementos que acha para a nossa regeneração, mas não acrescentar novas
desigualdades.
Concluiremos, pois, que, se o lugar do nascimento é indiferente para a questão vertente; que, se pelo
contrário, a manumissão é quem dá a vida civil e política; que, se ela é quem recolhe o libertado para a
associação nacional, resulta sem dúvida que é ela também que rma sua verdadeira nacionalidade. Assim é
que, à manumissão obtida no Brasil equivale o nascimento legal no território dele e, consequentemente, a
qualidade de brasileiro.
Parece que o paralogismo a que foi levado o ilustrado consultor nasceu principalmente de considerações
de utilidade; mas, além de que essas considerações não seriam su cientes, a seção 25 entende que o país nada
ganharia em baratear a qualidade de cidadão brasileiro a libertos que nele não tivessem nascido.
23 Pardo escuro.
24 A condenação moral dos tra cantes de escravos é anacrônica se referida ao século XVIII. Na época,
viam-se e eram vistos como algo correspondente a um “setor de RH” das empresas modernas.
Adicionalmente, eram responsáveis por grande parte das exportações brasileiras da época, como o fumo. No
século XIX, por ação das campanhas abolicionistas inglesas, passariam a ser mal vistos, mas nem tanto, pelos
brasileiros.
Racismo e Racialismo
Racismo no século XXI é sinal de absoluta ignorância. Biologia e
Antropologia convergem: não existem raças. O homo sapiens é uma espécie em
que apenas 0,01% dos nucleotídeos componentes da sequência genética variam
entre dois indivíduos. E apenas algo entre 0,0005% a 0,001% desses
nucleotídeos variam em função do que, historicamente, o fenótipo e a cultura
levaram a classificar como “raças”.
O primeiro homo sapiens muito provavelmente é etíope de nascimento. As
primeiras comunidades humanas, das quais, nisso Desmond Morris tem razão,
os índios isolados atuais não são espelho, migraram para Europa e Ásia, desse
último continente para as Américas, adquirindo por seleção algumas poucas
novas características, entre elas o tom de pele mais claro, o que devia signi car
alguma vantagem evolutiva em lugares com pouca insolação. De indivíduos
africanos, provavelmente pardos ou negros na origem, descende cada um dos
sete bilhões de humanos atuais. Negros são todos. Alguns desbotaram, pois era
melhor assim em estepes árticas e orestas montanhosas. Nas cidades atuais,
não faz diferença nenhuma. Aliás, até faz: expor-se ao sol demasiadamente
predispõe os mais claros ao desenvolvimento de câncer de pele.
Veja-se o que diz uma declaração institucional da Associação Americana de
Antropologia, de 1998:
Dado nosso conhecimento a respeito da capacidade de seres humanos normais serem bem sucedidos e
funcionarem dentro de qualquer cultura, concluímos que as desigualdades atuais entre os chamados grupos
raciais não são consequências de sua herança biológica, mas produtos de circunstâncias sociais históricas e
contemporâneas e de conjunturas econômicas, educacionais e políticas.
Lançados
Antônio Fernandes esteve uma vez no Brasil, a bordo de uma das treze
embarcações da frota de Pedro Álvares Cabral, em ns de abril de 1500.
Antônio Fernandes seguiu viagem para o Índico, destino da expedição, e foi
deixado em Sofala, feitoria comercial árabe na costa do atual Moçambique.
Por 15 anos, Fernandes explorou o rio Zambeze e descobriu a sede do
império do Monomotapa¹. Foi o mais importante personagem da conquista,
que seria completada ao longo de quatro séculos, com avanços e revezes, do
sudoeste da África para Portugal². Antônio Fernandes, carpinteiro da Ribeira
das Naus, era degredado, um criminoso, como muitos dos chamados
“lançados”, homens solitários empregados na aventura de devassar o interior de
quatro continentes. Alguns deles foram obrigados à missão. Outros, como João
Ramalho, o primeiro a fundar uma vila no interior do Brasil, deram-se a ela por
conta própria.
China, Japão, Índia, Sri Lanka, Indonésia, Malásia, Etiópia, Tanzânia,
Quênia, Zimbábue, Moçambique, Congo, Nigéria, Benim, Guiné-Bissau,
Senegal, Brasil, Argentina e Paraguai são alguns dos países modernos cujos
territórios e povos foram apresentados uns aos outros por portugueses, solitários
ou em pequenos grupos, em expedições oficiais, missionárias ou autônomas, nos
séculos XV e XVI. Antes disso, japoneses não sabiam que existiam africanos,
chineses que havia americanos, malaios que havia europeus, e vice-versa.
O feito seria extraordinário em qualquer tempo, levado a cabo por qualquer
potência. O fato de ter sido realizado por um pequeno, periférico e relativamente
pobre reino, num tempo em que o único oceano devassado por embarcações era
o Índico, é simplesmente o mais fantástico empreendimento em 200 mil anos
de andanças do homo sapiens sobre o planeta.
As dimensões das descobertas e da diáspora lusa, engrossada por grandes
contingentes de amengos, bretões e italianos, foram colossais. Em 1500,
apenas um milhão dos 80 milhões de europeus era português. O historiador
Charles Boxer calcula que entre 1400 e 1600 cerca de 1.125.000 pessoas
deixaram Portugal continental para se estabelecerem nas ilhas atlânticas
(Madeira, Açores, Canárias, Cabo Verde, São Tomé), costas ocidental e
oriental da África, Subcontinente Indiano, Extremo Oriente, Sudeste Asiático e
América do Sul. Já Vitorino Magalhães Godinho, mais comedido, estima o
êxodo peninsular, excluídos os demais europeus, em 280 mil entre 1500 e 1580,
gente de todas as partes dos pouco mais de 90 mil km² de Portugal continental,
menos de 1% do território europeu e menor proporção ainda em relação à
máxima extensão dos domínios do Império Português.
Nobres, militares, judeus, comerciantes, lavradores, vagabundos e degredados
participaram ativamente da aventura marítima, enfrentando mares até pouco
antes desconhecidos em embarcações recém-inventadas. Quem era esse povo
capaz de proeza tão difícil de adjetivar? Por que é o protagonismo português na
colonização do Brasil apontado como causa principal da tradição
autodepreciativa brasileira? Não deveria ser o contrário?
¹ Mwene mutapa era o título dado aos reis do território correspondente, aproximadamente, ao atual
Zimbábue, no início do século XVI. Traduzido como Monomotapa pelos portugueses, permaneceu para a
história como topônimo do respectivo reino, em decadência quando da chegada de Antônio Fernandes. Rico
em ouro e fortemente militarizado, o Monomotapa, etnicamente banto, impôs domínio sobre os colonos
portugueses, cobrando-lhes impostos, pelo menos até o final do século XVII.
² Portugal chegou a dominar áreas dos atuais países África do Sul, Zimbábue e Malawi, mas foi forçado
a recuar pelos ingleses no nal do século XIX, restando-lhe apenas o território correspondente ao atual
Moçambique.
Vira-Lata Da Europa
A Europa do século XV vivia o Renascimento, alvorecer cientí co e cultural
de vastas proporções, contudo a maior parte da população do continente
terminaria o século analfabeta e presa a um sistema de castas em que a possível
ascensão social “dependia muito pouco da vontade própria”, e “não se via, pouco
se esperava, mal se desejava”, nas palavras do jurista e historiador Antônio
Manuel Hespanha.
Com exceção dos polos comerciais de Veneza, Gênova, Florença e das
cidades da Liga Hanseática, a enorme massa camponesa e de mecânicos não
dispunha de meios para ascender à baixa nobreza, e esta à alta. A burguesia,
pequena ou alta, era diminuta e carecia de poder político. Em Portugal, os
comerciantes não nobres contavam-se nos dedos e eram em grande parte
judeus³ ou italianos, explorando o pequeno uxo comercial atlântico,
inicialmente dirigido ao norte da Europa, depois estendido às ilhas (Açores,
Canárias, Madeira). Agrário e feudal, o reino luso era pobre e socialmente
estanque.
Quanto à identidade, é visigótica e sueva (dois povos germânicos
cristianizados), mas é também nativa, dos celtas, galegos e lusitanos, tribos
dominadas pelos romanos no século II a.C. Para ns de criação do reino
independente de Portugal (1143), a tradição visigótica, católica por identi cação
com os objetivos da Reconquista, predomina sobre qualquer outra.
Seriam então os portugueses alemães? Sim, porém...
As tribos germânicas, quando da expansão pelo continente que viria a ser
chamado Europa, eram ágrafas. O modo de vida merecia dos romanos o
adjetivo “bárbaro”, justo, justíssimo. Até aí, eram todos semelhantes. No
decorrer dos primeiros séculos de nossa era ocorre a diáspora dos germânicos.
Não de todos. Alguns permaneceram no norte da atual Alemanha. Mesmo
romanizados e logo em seguida cristianizados, esses mantiveram uma unidade
étnica4 que permitiu a prevalência dos idiomas locais, com in uências
minoritárias do latim.
Já os alemães da diáspora, embora tenham se tornado dominantes nos locais
de destino, absorveram os idiomas nativos. No caso da área hoje correspondente
ao norte de Portugal, o latim vulgar foi pouco modi cado, codi cado como
língua escrita portuguesa a partir do século XII.
Os germânicos do noroeste da Península Ibérica mostraram-se propensos à
interculturalidade, característica que teria implicações globais adiante.
Por que foi assim? Seria o equivalente à adoção do tupi-guarani pelos luso-
brasileiros? Os tupis no papel dos celtiberos, lusitanos e galaicos, e os visigodos
e suevos representando os luso-brasileiros? Não, por um motivo óbvio: o latim
vulgar era o idioma de um império extinto, mas profundamente admirado; o
tupi-guarani, não. Roma fora derrotada principalmente por povos germânicos,
tanto que estes, no ano 800, fundam um protoestado amplo denominado Sacro
Império Romano Germânico do Ocidente, onde mantêm os então vários
dialetos alemães como língua falada, mas o latim clássico como idioma culto,
literário.
Assim, embora se deva ressaltar a interculturalidade dos visigodos enquanto
protagonistas principais da fundação e expansão dos reinos ibéricos, tanto que
em 1500 já não se distinguia um português ou um castelhano do outro pela
origem étnica, os germânicos adotaram o falar dos nativos somente porque era
romano. Se não fosse, o idioma ibérico seria o alemão com tempero local. No
norte da Europa, os nativos dominados, como os celtas locais, não falavam
latim. A língua celta, portanto, deixou poucos vestígios, não se impôs como
principal.
A fronteira da Cristandade, que Portugal, Leão e Castela lutavam para
expandir, também admitia um convívio próximo com árabes, judeus e berberes.
Houve aí interculturalidades e miscigenações, no entanto não a ponto da fusão
total. No nordeste da península, igualmente, não foi completa a assimilação dos
bascos. Enquanto os povos germânicos do oeste ibérico dão origem a Portugal,
com uma identidade própria e mestiça; os francos assumem a identidade
gaulesa, sendo a França a fusão de francos, gauleses, bretões e também de
visigodos; enquanto os alamanos, frísios, saxões, turíngios e catos mantêm a
germanidade em maior grau na protoalemanha.
O Ocidente, criado pelos gregos e romanos, é recriado pelos povos
germânicos, mais ou menos miscigenados com nativos e remanescentes itálicos.
Após Carlos Martel, o Ocidente logra seguir vencendo os islâmicos, tomando a
metade oeste europeia após 700 anos de batalha. Assim, a Europa que parte
para conquistar o mundo no século XV é uma criação latino-germânica, da qual
Portugal é a parte mais miscigenada e periférica. Não se constituía, porém, tal
diferenciação, num sentimento de inferioridade dos lusos em relação aos
nórdicos, mais “puros” 5 . Será a partir da Revolução Industrial, paralela à
destruição dos impérios globais ibéricos, que os portugueses se verão como
inferiores aos do norte europeu, não pelo fator miscigenação na origem, e sim
por serem ultrapassados com larga margem em aspectos econômicos e
científicos por aqueles.
A partir do século XIX, a Europa do norte, que já superara com folga e há
tempos a do leste, abre larga vantagem, tecnológica, cientí ca e econômica,
sobre os países ibéricos, empobrecidos pela perda da maior parte de suas
colônias e por abraçarem com retardo as inovações políticas e sociais
protagonizadas pelos do norte. Deprimidos, portugueses e espanhóis ora se
ufanam de um passado glorioso, ora tentam acertar o passo com o novo
Ocidente, capitalista e democrático, onde a ascensão social não depende mais
de mercês, de títulos de nobreza arcaicos, mas da capacidade de inovação e do
fervor laboral dos indivíduos.
Outrora porta-estandartes do Ocidente, os portugueses transformam-se em
vira-latas da Europa, não por negarem as próprias origens, mas por se apegarem
a elas. Surgem então as primeiras críticas internas à interculturalidade, à própria
etnicidade mestiça, vista como inferior. O “pé na África”, antes motivo de
orgulho, passou a ser visto como defeito. Isso não se deu apenas na antiga
metrópole. Deu-se no Brasil. O membro do Instituto Histórico e Geográ co
Brasileiro — IHGB José Maria Pinto Peixoto, tentando justi car em 1893 o
atraso brasileiro em relação aos Estados Unidos, atraso político e econômico,
declarou:
Por nossa educação política não estávamos preparados para essa forma governativa; nós, colonos de uma
nação submetida a um governo absoluto, ignorante, do país mais atrasado da Europa, poder-nos-íamos
comparar com a florescente colônia inglesa, habituada ao self government?
O país pioneiro das descobertas, o mais notável dos europeus dos séculos XV
e XVI, transformara-se no “mais atrasado da Europa”.
As palavras de Pinto Peixoto eram ecos de uma tradição lusodepreciativa
pós-independência, destinada a justi car a construção de dois portugais
separados, Brasil e Portugal europeu, tradição mantida até nossos dias, tradição
responsável pela criação de um Tiradentes supostamente republicano e
supostamente herói, e da grosseira falsi cação histórica de imaginar um Brasil
preexistente para 1822, uma colônia com sentido de identidade nacional. Isso
nunca aconteceu. E não aconteceu porque Portugal e os vários brasis de 1822
eram uma única nação, situação em tudo diferente das treze colônias
americanas inglesas do século XVIII.
Se os portugueses da atualidade colocam-se como vira-latas em relação à
Europa de ingleses, franceses, amengos e alemães supostamente pedigrees, os
brasileiros endossam tal autodepreciação. Mais. Tomam-na como a causa da
própria autodepreciação. Seriam os brasileiros inferiores por terem sido
“colonizados” por portugueses, como se tivesse havido algum dia um “nós e
eles”, como se o projeto de nação sul-americana não fosse um projeto de
colonos portugueses, mas de elites verdadeiramente nativas.
A fundação de Portugal é obra de povos germânicos que abraçaram a cultura
latina antes abraçada pelos nativos e entregaram-se sem reservas à miscigenação
com estes. A fundação do Brasil é obra do povo português, que optou desde o
início pela mestiçagem sem deixar de impor a cultura luso-germânica. Se os
laços entre Portugal e Brasil romperam-se em 1822, foi por uma sucessão de
acidentes e radicalizações inesperadas, não por vontade de nenhuma das partes
como maiorias, conforme se verá adiante. Se há dois países não foi por terem
preexistido duas nações. Se Portugal e Brasil colocam-se como vira-latas diante
da atual parte mais vistosa do Ocidente, não é por coincidência, mas por mútua
identidade, compartilhada e negada por ambos.
³ Expulsos pelos recém-uni cados espanhóis de Granada, último território muçulmano na península
ibérica, tomado pela Reconquista em 1492, os judeus dirigiram-se em grande número para Portugal, onde
podiam permanecer se aceitassem a conversão ao Catolicismo. Apelidados cristãos novos, não tinham, em
tese, acesso a títulos nobiliárquicos por serem esses restritos a quem provasse “pureza de sangue”. Na prática,
não era bem assim. O cristão novo Fernão de Loronha (Fernando de Noronha), primeiro arrendatário do
Brasil, recebeu título de fidalgo de Dom João III em 1524. Não foi um caso isolado.
4 Unidade étnica não deve ser entendida como um único povo. Eram três dezenas de tribos aparentadas,
inimigas entre si em grande parte do tempo. A designação “germânicos”, dada pelos romanos, signi ca,
apropriadamente, “irmãos”. O termo germânico “deutsch”, todos, ou, latu sensu, “todos os irmãos”, é o
correspondente na língua alemã moderna.
Multiculturalidade X
Interculturalidade
Multicultural é uma sociedade onde convivem diferentes etnias (etnias aqui
no sentido cultural muito mais do que no sentido genético) lado a lado, em paz,
sempre relativa, pois o estranhamento permanece, ou em guerra, mais ou menos
aguda, como na Bósnia. A Bósnia é um caso exemplar, pois não há diferença
fenotípica entre seus habitantes, a variação genética é pequena, todos se
conhecem e convivem há séculos, falam o mesmíssimo idioma e, no entanto,
por conta de diferenças religiosas, odeiam-se a ponto de autojusti carem o
extermínio uns dos outros.
O movimento politicamente correto, patenteado como tal em Stanford em
1988, mas jamais autoassumido como essas palavras, surgiu de uma defesa do
multiculturalismo, a partir da ideia de que o ponto de vista ocidental (romano-
germânico) deve ser questionado e não adotado pelos povos não ocidentais e,
principalmente, pelos que, sendo profundamente ocidentais (marxistas), passam
a enxergar a luta contra a cultura ocidental predominante como luta contra o
conservadorismo ocidental, que, por sua vez, não chega a ser uma ideologia,
mas justamente um paradigma cultural, interétnico, intercultural. Ou seja,
fracassadas as experiências marxistas de governo, as esquerdas, ou parte delas,
passam a defender o multiculturalismo, partindo de uma lógica esperta: “se não
podemos derrotar o bloco intercultural conservador, vamos trincá-lo, semeando
a discórdia no terreno da cultura”.
Não se vai alongar a discussão sobre o politicamente correto, gerador de
ódios violentos. Apenas é preciso registrar que o multiculturalismo, ou seja,
culturas estanques e refratárias à mistura convivendo num mesmo espaço, em
oposição ao interculturalismo, ou seja, fusão cultural, cosmopolitismo,
transformou-se numa bandeira útil às esquerdas, embora, no fundo, seus líderes
não devam acreditar muito nisso, pois não há coerência com as bases históricas
do pensamento socialista6. Também convém deixar claro que não há uma
equivalência absoluta do tipo:
— politicamente correto = esquerda.
— politicamente incorreto = direita.
Veja-se a questão do uso de véu por muçulmanas na França.
Véu permitido = multiculturalismo = politicamente correto.
Véu proibido = politicamente incorreto.
As identi cações param aí. A direita liberal será a favor da permissão do véu,
a nal, não sendo uma ação ofensiva, cada um faça de seu próprio corpo o que
achar melhor. Já a esquerda mais clássica, preocupada com o obscurantismo
próprio da cultura muçulmana7, especialmente em relação à mulher, será pela
proibição do véu.
Quando o assunto é o brutal infanticídio praticado pelos índios brasileiros
Kaiamurás, entre outros, as coisas cam mais claras. Os defensores do costume,
tolerado em nome do multiculturalismo, do politicamente correto, são
esquerdistas. E não há esquerdistas contrários, à exceção de alguns poucos
cristãos que não sabem o que estão fazendo ao lado de bárbaros, defensores do
infanticídio e do aborto como boa forma de eugenia desde há muito. Do outro
lado, nem a direita mais liberal defende a tolerância. É abominável e ponto, a
humanidade não pode virar as costas àquelas crianças.
Volte-se aos lusos, campeões da descompartimentação 8 do mundo,
campeões da interculturalidade. O português in uenciou centenas de culturas
distantes, permitindo, em contrapartida, ser in uenciado por essas. Em termos
religiosos, o catolicismo era permeável aos ritos locais. Em termos legais, as
normas portuguesas adaptaram-se a cada região conquistada. Em termos de
costumes, entregaram-se à farta tanto à miscigenação quanto à culinária e ao
comportamento dos povos descobertos. Dominadores, sim, mas propensos a
fusões com os dominados.
A preocupação com a “pureza de sangue”, presente nos ditames da
Inquisição e nas escolas dos jesuítas, foi mais teórica do que prática, vencida
pelas conveniências e por uma contradição óbvia: a cultura lusa era por si a mais
bem acabada expressão da interculturalidade, caldeirão étnico sem par na
Europa quatrocentista.
Era também uma cultura que se via internamente como pura, uma
mestiçagem pura, não inferior às culturas alemã, francesa, castelhana ou
veneziana. O processo de autodepreciação começaria mais tarde, conforme já foi
visto. A epopeia das conquistas levou à mania, seguida de depressão, ou
bipolaridade, na boa de nição de Pedro Mexia: “Ou somos os melhores, ou
somos os piores, não há meio-termo”.
Na interculturalidade, na mestiçagem e na bipolaridade, os brasileiros são
idênticos aos pais fundadores. E, no entanto, como será visto adiante, lusos e
brasileiros passaram a progressivamente verem-se uns aos outros com desdém,
os primeiros como tendo gerado um monstro caipira, os segundos como tendo
recebido uma herança maldita.
Também é comum a saudade da herança germânica, dos alemães ancestrais,
bárbaros amantes da erudição e da loso a, brutos herdeiros da Antiguidade
Clássica. A Alemanha seguirá como referência do que os lusos e brasileiros
seriam se não fossem tão dissolutos, tão vira-latas.
Na verdade, a propensão à interculturalidade é o atributo luso mais admirável,
responsável também pela manutenção do império diante da cobiça de nações
europeias muito mais fortes, como França, Espanha, Inglaterra e Reino dos
Países Baixos, nos séculos seguintes aos descobrimentos. As populações
nativas, logo miscigenadas e culturalmente fundidas aos portugueses, foram
essenciais na defesa da integridade territorial do mundo luso, às vezes até à
revelia da metrópole, como no caso da expulsão dos neerlandeses de
Pernambuco em meados do século XVII.
Ingleses e neerlandeses mais, espanhóis e franceses menos, insistiram na
multiculturalidade em suas colônias. Ficava claro nelas quem era o colonizador,
quem era o colonizado, enquanto na América portuguesa as duas guras
confundiam-se. Quanto à mobilidade social, tão difícil num Portugal governado
por uma alta nobreza estanque, as colônias apresentar-se-ão como a alternativa
possível, daí a atração que exercerão sobre a plebe e a pequena nobreza
metropolitanas. A passagem de pequeno reino a grande império levará a uma
mudança no quadro social, limitada, porém, pela reação da alta nobreza à
concorrência dos novos ricos, primeiramente pela evocação da estirpe, depois
pelo culto à erudição, justi cador de uma elite intelectual impermeável. Ação e
reação trariam, até certo ponto, resultados bené cos, pois tanto a vontade de
enriquecer expandiria as conquistas, como a tradição intelectual da alta nobreza,
lapidada em Coimbra, conservadora por excelência, evitaria os desastrosos
radicalismos revolucionários, comuns nas Américas espanhola e francesa.
6 Marx considerava os nacionalismos, com os multiculturalismos análogos, uma bobagem burguesa.
Stálin, à exceção dos judeus, a quem transplantou para a fronteira com a China, fez o possível para apagar a
diversidade cultural na União Soviética. Hitler, que não deve ser classi cado como de direita, pois não era
nem conservador nem liberal, por sua vez advogava um multiculturalismo radical, com uma “raça” superior,
que não se misturaria às demais. Já na Espanha, por questões estratégicas, a interculturalidade de base
castelhana servia, durante a Guerra Civil, a uma direita nacionalista e teocrática enquanto a esquerda marxista
surpreendentemente apegava-se aos nacionalismos catalão e basco.
7 Teocracia e socialismo só são compatíveis se Alá for substituído pelo Stálin ou Kim-Jong-Il de
plantão.
10 Ter uma ou as duas orelhas cortadas era pena prevista para o crime de roubo. O efeito prático era
óbvio: prevenia a todos do perigo representado pelo meliante. No Brasil, alguns desorelhados tornaram-se
camaristas (vereadores), com pelo menos um caso registrado em Ilhéus em meados do século XVI.
Portugueses e As Mercês
Fernando Gabeira, na melhor tradição autodepreciativa nacional, decretou:
O maior inimigo da República na cultura brasileira: o patrimonialismo, a incorporação dos bens públicos
ao patrimônio pessoal. É um dos nomes científicos da corrupção.
Em apertada síntese, poder-se-ia falar, com relação a essa época, em tributos ou rendas para o real erário,
ou seja, os da metrópole e os do donatário.
Dos primeiros, o monopólio do pau-brasil, das especiarias e das drogas; os direitos alfandegários (de
importação, de exportação ou de mercadorias naufragadas que viessem dar às costas), 10% (dez por cento) do
valor das mercadorias; o quinto ou vigésimo do ouro, prata, cobre, coral, pérola, chumbo, etc., o dízimo do
pescado e dos demais produtos da terra e a sisa (transmissão) por cabeça de índio escravizado.
Dos segundos, o monopólio das explorações das moedas e quaisquer outros engenhos, a barcagem
(direitos de passagem dos rios), quinto ou vigésimo do produto do pau-brasil, das especiarias e das drogas, o
dízimo do quinto do ouro e minerais preciosos, encontrados na capitania; meia dízima do pescado, ou seja, a
cada grupo de vinte peixes, um deles para o donatário, capitão-mor ou governador, e a redízima (isto é, a
décima parte da dízima) sobre todas as rendas da coroa.
O maior detalhe com que esbocei este último tema da natureza multipactada da sociedade de Antigo
Regime é-me útil para sublinhar o bem fundado daquelas interpretações que têm visto no principal cimento
do Império aquilo a que têm chamado uma “economia da graça” ou “da mercê”, descrevendo-a como uma
sociedade de economia “bene cial”. É isso mesmo que eu quero dizer quando falo desta constelação de redes
quase contratuais. (...) Tratava-se, na verdade, não apenas de uma dependência dos vassalos em relação ao rei,
que os obrigava a prestar serviços, esperando recompensas, mas, mais globalmente, de uma rede complexa de
obrigações e pretensões recíprocas que densi cavam e davam solidez ao corpo do império. Cria-se, assim,
uma teia imperial de pactos bene ciais, que envolviam a coroa, os seus funcionários (destinatários e fontes de
atos de graça), as instituições locais – nomeadamente, as câmaras -, os bene ciários particulares que, na base
das graças que recebiam, as repercutiam nos seus bene ciados. Uma constelação de pactos estruturava, assim,
o sistema colonial de poderes (tal como costurava o metropolitano).
16 Subordinado ao provedor-geral.
17 Pernambuco, por meio da câmara de Olinda, cobrou insistentemente recompensas do rei pela
expulsão dos neerlandeses. Recebia várias, mas sempre considerava insu ciente. Tal queixa está na origem da
tradição revoltosa da capitania, depois província, com pontos altos na Revolução de 1817 e na Confederação
do Equador (1824).
18 Vem daí a notória aversão dos brasileiros aos trabalhos manuais. É sinal de falta de nobreza.
Tiradentes
Feriados nacionais cívicos do Brasil: 21 de abril, 7 de setembro, 15 de
novembro. A julgar pelas datas, tem plena razão Nelson Rodrigues ao a rmar:
“O brasileiro não tem motivos pessoais ou históricos para a autoestima”. A
primeira delas é a mais problemática, pois resulta de grosseira falsi cação
histórica e remete a um herói sem causa e possivelmente sem caráter, um
Macunaíma sem méritos dignos de nota ou, na melhor das hipóteses, um
doidivanas.
Luís Antônio Furtado de Castro do Rio de Mendonça e Faro, visconde de
Barbacena, governador de Minas Gerais a partir de 1788, ao ser informado de
falas revolucionárias atribuídas a Joaquim José da Silva Xavier, riu e comentou:
“Só se for uma revolução de meretrizes. Deem nesse maroto com um chicote.
Ele é um bêbado”. Então por que foi enforcado? Porque era um inconveniente,
não no sentido de representar algum perigo às esferas de poder local, muito
menos do Brasil ou de Portugal, longe disso. Tiradentes era inconveniente por
ser um falastrão, um tanto amalucado, que vivia a pregar leviandades contra
tudo e todos. A pena por ele recebida, porém, não se justi ca. Foi um erro, ato
final de uma sequência de erros e mal-entendidos.
Para entender o processo encerrado no enforcamento e esquartejamento do
suposto líder patriota, é preciso colocar a Conjuração Mineira em seu devido
lugar. Na altura da década de 1780, o ouro e os diamantes escasseavam em
Minas Gerais. Em compensação, o contrabando e a sonegação cresciam. Fugir
do quinto, imposto sobre a mineração, era, evidentemente, interessante para os
mineradores, comerciantes e para as autoridades locais, quase sempre envolvidas
na ilicitude. Quando não eram possíveis essas saídas, atrasava-se o pagamento.
Visando diminuir o problema, a Coroa dava ordens aos sucessivos
governadores para a repressão ao descaminho e para a cobrança das dívidas
tributárias. Em 1783, o ministro da Marinha e do Ultramar, Martinho de Melo
e Castro, nomeou Luís da Cunha Menezes para o posto. Cunha Menezes era
então governador de Goiás. Ao assumir o novo cargo, em Vila Rica, capital de
Minas Gerais, ele afastou de posições de mando alguns próceres da terra, como
o administrador Cláudio Manoel da Costa e o poeta e ouvidor Tomás Antônio
Gonzaga, gerando grandes insatisfações.
Os que se acharam prejudicados na nova ordem de Cunha Menezes
passaram a acusá-lo como corrupto, líder, ele próprio, de uma corja de
contrabandistas. Não por esses protestos, alardeados à voz baixa ou escritos em
poesias não dadas à publicação, mas pela ine cácia do governador, incapaz de
manter a arrecadação de impostos nos níveis anteriores, resolveu Melo e Castro
nomear o visconde de Barbacena, homem tido e havido como de muitos
predicados, intelectual de grande respeito, para substituí-lo no governo de
Minas.
Correu então em Vila Rica o boato de que Barbacena vinha para proceder à
derrama, à cobrança de todas as dívidas tributárias vencidas, e combater com
vigor o contrabando. Alguns dos mineradores, militares de alta patente e
eclesiásticos passaram a se reunir com o m de organizar um levante, caso
houvesse mesmo a derrama, tendo como lema a restauração do status quo ante,
tempos do marquês de Pombal, liberal e pródigo em concessões à nobreza da
terra, o poder local.
Tomás Antônio Gonzaga, líder civil dos conspiradores, tentou envolver os
camaristas de Vila Rica na revolta, mas não obteve respaldo. Sua pregação fez
mais sucesso entre os militares, entre eles o tenente-coronel Francisco de Paula
Freire de Andrade, lho natural de um membro da alta nobreza lusa. Na casa
desse último, ocorreram algumas reuniões, onde as divagações eram muitas, mas
não se chegou, até onde sabe a historiogra a, a se preparar um plano concreto e
crível de rebelião.
Tiradentes entra na história nesse momento. Chegando do Rio de Janeiro,
onde tentara sem sucesso instalar, à custa do Tesouro e na condição de
concessionário, uma moenda de grãos20, o alferes (patente mais baixa do
o cialato) procurou o colega de farda e deu conta de ter arregimentado
importantes apoios no Rio de Janeiro para a causa da restauração. Era mentira,
se veria depois.
Freire de Andrade não acreditou muito na história contada por Joaquim José,
um boêmio falastrão que ninguém levava a sério, pouco letrado e dado a
empreendimentos fracassados, como um negócio de mineração que tentou levar
a cabo com três escravos seus e faliu. Até ali também não fora Tiradentes
admitido na conspiração, não seria chamado por nenhum dos líderes, antes
nada por sua pouca serventia em caso de rebelião efetiva. Não tinha liderança
entre os colegas de arma nem credibilidade junto a quem quer que fosse. Talvez
tivesse alguma junto às prostitutas que visitava com frequência, a quem
prometia cargos na “república”, a ser instalada pelos revoltosos, em troca dos
serviços delas. Mas, julgaram Freire de Andrade e outros que, se Tiradentes
sabia de algo, melhor tê-lo no grupo, sob controle.
Muito antes desse momento, em fevereiro de 1788, sem ter ainda assumido
efetivamente o governo de Minas, Barbacena recebera carta de Melo e Castro,
em que esse recomendava que “se fosse causar sérios distúrbios entre os
moradores da capitania”, não se zesse derrama alguma. Mas, uma vez
instalado em seu posto, o visconde resolveu deixar a carta na manga. Assim,
poderia manter os súditos locais, interessados na questão, preocupados,
enquanto tomava medidas para remover funcionários envolvidos com o
contrabando, corruptos e complacentes.
Em 22 de março de 1789, Barbacena dirigiu-se às câmaras da capitania,
deixando claro que derrama não haveria. Apertasse-se o cerco ao contrabando e
era o bastante. Àquelas alturas, já sabia da conjuração, liderada por Gonzaga,
que, nomeado desembargador para a relação da Bahia, adiava a partida.
Tiradentes era um dos que falava em rebelião por todo canto. Até aí, não seria
levado a sério, como se deduz da frase de Barbacena citada no início deste
tópico. Mas outros também falavam, e o burburinho deu conta de o ato de
cancelamento da derrama ser uma reação à conspiração.
Cauteloso, Joaquim José pediu uma licença e um adiantamento pecuniário a
seu superior e partiu rumo ao Rio de Janeiro, acompanhado de seu escravo
mulato. No caminho, pregou a rebeldia, insistindo sempre nos termos
“restauração” e “república”. Uma vez na capital do Brasil, passou a ser seguido
por dois homens e temeu por sua vida. Pediu então o auxílio de amigos para
uma fuga. Pretendia se esconder em um sítio em Marapicu, zona rural do Rio
de Janeiro. Vendeu o escravo para arrumar algum dinheiro e, enquanto não
vinha a autorização para se instalar no sítio, ocultou-se na casa do amigo de um
amigo na zona urbana. Ali foi preso, em meados de maio de 1789, sem
resistência.
Antes, em março, tivera lugar em Vila Rica a última reunião entre os
conspiradores, concluída com a triste observação de Tomás Antônio Gonzaga:
“A ocasião para isso perdeu-se”.
Tiradentes fora preso por insistência do coronel Joaquim Silvério dos Reis
junto ao vice-rei. Viera ele ao Rio a mando de Barbacena, mas foi por conta
própria que exagerou o perigo representado pelo alferes Joaquim José. Naquele
tempo, as autoridades coloniais não perdiam a oportunidade de mostrar serviço à
rainha. Transformar meras cogitações, carentes de qualquer plano concreto, em
monumental devassa fazia parte do script. Era como se dissessem à Corte, à
época sobressaltada pela recente independência dos Estados Unidos da
América: “Vejam o perigo que habilmente debelamos e rigorosamente
haveremos de julgar”.
Assim se fez no Rio, em maio, e em Vila Rica, em junho. Barbacena não
queria car para trás no exagero dos “perigos” enfrentados. Prenderam até quem
apenas ouvira falar no assunto, baseados em delações escritas de seis pessoas:
coronel Joaquim Silvério dos Reis, tenente-coronel Basílio de Brito Malheiros
do Lago, mestre de campo Inácio Correia Pamplona, tenente-coronel
Francisco de Paula Freire de Andrade (denunciou os outros, não a si mesmo),
coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes e tenente-coronel Domingos de
Abreu Vieira. Todas elas, para agradar às autoridades, exageraram nas tintas. A
quem pintavam como o grande propagador da “revolução”? Tiradentes, quem
mais? O inconveniente, o maluco, o falastrão, o covarde, a nal fora o primeiro a
dar no pé de Vila Rica quando cou claro que Barbacena sabia das conversas
conspiratórias.
Na devassa e no julgamento, Tiradentes inicialmente negou qualquer
participação na trama, depois confessou, dizendo-se o grande líder da
conspiração e gritando: “Levantar, não. Restaurar”. Isentou uns, especialmente
Gonzaga, talvez porque esperasse desse, poderoso magistrado, que in uísse em
seu destino, e incriminou outros, como o capitão João Dias da Mota.
No nal, em abril de 1792, 12 pessoas foram condenadas à morte. Três já
haviam morrido na prisão. Houve, porém, um meio perdão régio, algo vago,
instruindo que só deveriam ser executados os que agiram com alarde na
pregação do levante. Os juízes interpretaram que o único a assim ter agido fora
Tiradentes, e desse modo restou apenas ele levado ao cadafalso e tirado da vida.
Os demais tiveram as penas comutadas em degredo.
Essa é a história possível de ser lida a partir dos documentos resgatados.
Todo o resto, independência do Brasil, república no sentido moderno do
termo21, heroísmo e liderança de Joaquim José, “morreu pela pátria” e outras
falsi cações tão bem propagandeadas, justi cadoras do feriado de 21 de abril,
data do enforcamento do suposto mártir, não passa de especulação, conjecturas
não autorizadas pelos fatos históricos conhecidos e documentados.
Mas o ressentimento de brasileiros contra o despotismo dos portugueses, da
Corte metropolitana, não havia? O império português, mesmo após as reformas
implantadas pelo marquês de Pombal, estava longe de ser uma democracia. A
Grã-Bretanha era uma democracia então e, a rigor, só ela. Poder-se-ia incluir os
Estados Unidos, quem sabe, mas o país era nascente e herdara a tradição
britânica. Num regime despótico, é normal haver rebeliões. Houve muitas no
Brasil colônia, e muitas mais na metrópole, estas últimas sim contestadoras do
despotismo. Algumas foram severamente reprimidas, mas, no mais das vezes,
houve negociação e anistia.
Quanto às relações do Brasil com a metrópole, é interessante revelar uma
afirmação do historiador brasilianista John Russel-Wood:
21 República, no século XVIII, segundo o parecer de Norberto Bobbio, supõe uma abrangência
territorial muito restrita e baixa representatividade política.
A Separação
Dom João Matheus Rendon casou-se em 1654, em São Paulo, com
Catharina de Góes, viúva rica de Valentin de Barros. Antes, Rendon fora
casado com Maria Bueno de Ribeira, lha do eminente paulista Amador
Bueno. Dona Maria Bueno morrera em 1646, legando a Rendon, que chegara a
São Paulo sem um vintém, diversas propriedades, entre elas duas sesmarias, e
um plantel de 104 índios cativos. Amador Bueno, como um bom paulista de sua
época, dotara muito bem a lha por ocasião de seu casamento, pois Rendon
tinha duas qualidades fundamentais: era português branco de nascimento e
nobre.
Como as famílias paulistas eram todas mamelucas, não tinham a esperança
de “melhorar o sangue” por seus varões, já que a chance de arrumar uma esposa
vinda da metrópole era praticamente nula. O jeito era investir o grosso do
patrimônio familiar em dotes para as lhas mulheres, atraindo os aventureiros
portugueses. Rendon era um deles. Conseguiu por isso casar duas vezes, com
dois bons partidos.
Perante Portugal e as outras capitanias brasileiras, os paulistas apresentavam-
se como tais, orgulhosos de suas conquistas. Perante os espanhóis, seus
vizinhos a oeste, tinham o orgulho de se a rmar portugueses. No início do
século XIX, brasileiros de todas as províncias, muitos deles mamelucos, também
chamados mazombos, identi cavam-se uns aos outros como paulistas,
mineiros, maranhenses, pernambucanos. Em relação aos vizinhos sul-
americanos, aos ingleses e demais estrangeiros, eram portugueses. Para baianos
e goianos, a Bahia (ou Goiás) era sua pátria, o Brasil, seu país, Portugal, sua
nação.
Ia tudo em paz, o rei residia no Rio de Janeiro, gerando ciúmes de
pernambucanos, paraibanos e baianos, mas veio a Revolução do Porto, de 1820,
e convocados foram todos, brasileiros e metropolitanos, para as Cortes, para
fazer uma constituição que intermediasse as relações entre o rei e seus súditos
dos dois lados do Atlântico, que reestabelecesse os termos da união entre Brasil
e Portugal, desejada por ambos.
Poderia ter sido um casamento como os das famílias paulistas do século
XVII. Os brasileiros, mamelucos, entravam com o dote, com as riquezas locais,
basicamente terras e escravos, e o pretendente luso entrava com a estirpe
europeia. Veriam então os vizinhos criollos22 , pobres gentes americanas, a
partir de um patamar elevado, senhores de um império global, que certamente,
neste caso, incluiria a Cisplatina, a ponta da Ilha Brasil imaginada no passado.
Mas o noivo não aceitou o dote, esquivou-se na hora de assinar o contrato de
casamento, recusou-se a aceitar as poucas exigências luso-tupiniquins. Logo em
seguida, mostrar-se-ia arrependido, colocaria a coisa em termos muito próximos
dos inicialmente propostos pelos lusos da América, mas era tarde, a família
mameluca ofendida enchera-se de brios e por um instante achou possível
transformar tais brios numa nação, sob a condução de uma casa imperial
europeia. Talvez a presença de uma imperatriz austríaca pudesse por si só fazê-
los superiores aos criollos. Recusavam-se a admitir que eram como eles: uma
elite mestiça, minoria em sua própria terra, a comandar uma massa de gente que
não aceitavam chamar de patrícios, não cogitavam elevar a cidadãos.
Muito se fala em crise do Antigo Regime, em falência do pacto colonial.
Que crise? O Brasil nunca fora mais rico, a produção canavieira estava no auge,
com boas cotações no mercado internacional, os portos, especialmente os de
Salvador e Rio de Janeiro, recebiam navios de todos os cantos, graças à abertura
liberal de 1808, pequenas indústrias instalavam-se e, talvez o principal, uma das
mais reluzentes casas monárquicas da Europa fixara residência nos trópicos, sem
intenção aparente de regressar. Os vizinhos que se batessem por suas
independências mambembes. Bom mesmo era ser português.
Na metrópole, porém, as coisas iam mal, muito mal. Não bastasse a ausência
do rei, havia o antipático governo militar inglês, os campos estavam dani cados
pela recente invasão francesa, os comerciantes de Lisboa afetados pela perda do
monopólio comercial. Se pelo menos o rei voltasse, se pelo menos houvesse um
parlamento nacional com voz e poder de decisão, uma monarquia constitucional
como nos países mais avançados da Europa.
Houve uma conspiração em Lisboa, em 1817, destinada a expulsar os
ingleses, que exerciam a regência, por delegação de Dom João VI, da ex-
metrópole. Ex-metrópole? Se não de direito, de fato, como de niu Georges
Canning, secretário de Assuntos Estrangeiros Britânicos. O movimento,
daquela vez, foi derrotado. Mas a insatisfação dos luso-europeus seguia.
Em agosto de 1820, reunidos na Câmara Municipal do Porto, representantes
de várias classes e localidades declararam-se Junta Provisional do Governo
Supremo do Reino. Excesso de pretensão na designação? Nem tanto. De fato, o
velho pacto vassálico que cimentara a unidade nacional em torno do rei era
objeto de contestação, Pombal já lutara contra sua obsolescência. A alta
nobreza estava rica, e os súditos, pobres. Bem, pelo menos muita gente pensava
assim. Não só no Porto ou em Lisboa. Em Recife e Salvador também. Até no
Rio de Janeiro havia quem defendesse uma constituição votada por
representantes eleitos como complemento necessário ao vínculo com o rei.
Em setembro, Portugal continental inteiro estava sob o governo da Junta,
que logo convocou as Cortes. Mandaram avisar cada província brasileira. Em
Salvador, a união de senhores de engenho, comerciantes, liberais e militares
tratou logo de apear o conde da Palma do governo da província. Em apoio aos
revolucionários, os baianos redigiram o seguinte manifesto em 10 de fevereiro
de 1821:
Nossos irmãos europeus derrotaram o despotismo em Portugal e restabeleceram a boa ordem e a glória
da nação portuguesa. Eles proclamaram a religião dos nossos pais, uma liberal constituição, e Cortes e El-
Rei, nosso soberano pela Constituição. [...] Soldados! Nós somos os salvadores do nosso país: a demora é
prejudicial, o despotismo e a traição do Rio de Janeiro maquinam contra nós, não devemos consentir que o
Brasil fique nos ferros da escravidão.
A proclamação foi um golpe para Dom João VI. Contava com a lealdade de
todas as províncias brasileiras para emparedar seus súditos da Europa. Cedo ou
tarde, premidos por necessidades óbvias, a nal quase todas as riquezas eram
produzidas no ultramar, estes cederiam. Não havia jeito. As províncias
americanas foram autorizadas a eleger deputados para as Cortes. Todas o
zeram, inclusive a Cisplatina (Uruguai), aparentemente satisfeita de fazer parte
e dar pitaco numa constituição europeia. O entusiasmo com que os brasileiros se
entregaram à tarefa foi notável. Não estavam satisfeitos com o status quo?
Estavam, as províncias do sul, mais, as do norte, menos, como se pode concluir
do manifesto dos baianos, mas a chance de se verem representadas em Lisboa
em foro tão importante e decisivo era uma honra e tanto para a nobreza da terra.
Convém lembrar que no regime até então vigente, como já visto, quase toda alta
nobreza era constituída de naturais europeus.
As Cortes, enquanto aguardavam a chegada dos brasileiros, proclamaram
mais uma ousadia: o rei deveria retornar a Lisboa e jurar a constituição. Dom
João aceitou, mas antes cometeu o ato que semearia a discórdia entre os lusos:
nomeou o lho Pedro como regente do Brasil, plenipotenciário. O rei
permaneceria virtualmente em prisão domiciliar e sem nenhum poder em
Portugal até maio de 1823, quando uma quartelada, comandada por seu outro
filho, Miguel, deporia o governo das Cortes.
Em 1821 e 1822, duas questões importantes tinham curso: em Lisboa,
deputados brasileiros e portugueses debatiam o destino da nação
multicontinental. Nas províncias brasileiras, quem mandava? Dom Pedro, o
regente? Ou as Cortes? Tratar-se-á do primeiro dilema para, depois,
regressivamente, tratar do segundo.
Nenhuma associação é justa quando não se tem por base a livre convenção dos associados. (...) É, porém,
das instituições políticas que durem enquanto convém a felicidade de todos (...). O Brasil teme, como
Portugal, a divisão e seus terríveis efeitos; proclama a Constituição que zerem as Cortes em Portugal (...).
Mas estes fatos ligarão o Brasil a Portugal? Sujeitá-lo-ão à dura necessidade de uma obediência passiva? A
receber a lei que se lhe quiser ditar? Não, sem dúvida. (...) É, portanto, de necessidade que assintais às nossas
requisições ou que rejeiteis nossa associação. Nós ainda somos deputados da Nação, a qual deixou de existir
desde o momento em que se rompeu o antigo pacto social. Não somos deputados do Brasil, de quem em
outro tempo fazíamos uma parte imediata, porque cada província se governa, hoje, independente. Cada um é
somente deputado da província que o elegeu e que o enviou: é, portanto, necessária a pluralidade dos votos
dos de cada província, pela qual lhe possa obrigar o que por eles for sancionado.
Vaidoso, pretensioso, insolente, cheio de si (...). Mas num Congresso dominado pela inexperiência
política (...) Fernandes omaz se impôs (...). Era um liberal cheio de discriminações e preconceitos,
próprios de um pequeno burguês, (...) o adversário mais ferrenho, sagaz e obstinado dos brasileiros. (...)
sardônico, cáustico, usava e abusava, não da ironia, mas da chacota. Lacônico e cheio de azedume, como
orador, mas de um patriotismo desvairado. O principal líder do liberalismo português achava que o Brasil
não era terra de gente branca, mas de negrinhos e mulatos, de gente inferior.
O projeto que tive a honra de vos propor tem por m concentrar neste augusto recinto a representação
nacional portuguesa de ambos os mundos (...). Senhores, da decisão que ides a tomar pende o destino de uns
poucos de milhões de homens. Conservar a integridade do Império Lusitano em ambos os hemisférios;
estreitar os vínculos de sangue, e dos interesses, que mutuamente ligam os portugueses das quatro partes do
globo (...). Nós não desejamos promover revoluções, desejamos evitá-las. (...) Estou persuadido de que da
união a mais estreita de todas as partes do nosso vasto Império é que depende a nossa força (...). Todos nós
somos troncos da mesma árvore, membros da mesma família.
Territórios Europeus
Nos arredores rurais de Caxias do Sul, ou mesmo ainda na cidade, os
descendentes de imigrantes italianos autodenominam-se e são denominados
pelos não ítalodescendentes como “gringos”, ou simplesmente “italianos”. Para
marcar a alteridade, chamam os lusodescendentes de “brasileiros”.
Ali perto, em Santa Cruz do Sul, o teutodescendente, aparentemente em
maioria, é identi cado rotineiramente como “alemão”. O outro é “pelo-duro”,
expressão vista como depreciativa por ambos os grupos étnicos, ou também
“brasileiro”.
A alteridade já foi mais marcada, e em alguns lugares, como São Paulo
capital, praticamente desapareceu. É inegável, no entanto, que os imigrantes
alemães e italianos chegados ao Brasil desde 1808, ano em que foi aberta a
possibilidade de imigração estrangeira, trouxeram consigo a predisposição,
sobretudo ideológica, à multiculturalidade. Com os japoneses deu-se o mesmo.
Com os portugueses, tanto “internos” como “estrangeiros” (chegados antes ou
depois da separação), não. Como já foi visto, estavam estes propensos à
interculturalidade. Além disso, impunham ou já encontravam o idioma, o
sistema legal, a cultura e o mais em tudo semelhante. O país era uma criação
deles, segue sendo.
O catolicismo, religião dos poloneses, italianos e de parte dos alemães,
facilitou a integração. Onde predominam os luteranos, as questões de alteridade
estão mais presentes. Mais de um século após o auge do movimento imigratório
europeu, há territórios no interior do Brasil vistos como enclaves étnicos por
seus próprios habitantes.
Isso seria um problema? Aparentemente, não. Não há violência ou atos de
discriminação humilhantes associados. Porém, os “brasileiros” que visitam
Caxias do Sul e Santa Cruz do Sul eventualmente, vindos da parte do país onde
a cultura mestiça de base lusa ainda é tudo (aproximadamente, do Rio de Janeiro
para o norte), cam encantados com os aspectos visíveis desses “territórios
europeus”: passeios limpos, espaços públicos bem cuidados, casas bem
conservadas, en m, salta aos olhos o cuidado das populações daquelas cidades
com o bem público, salta aos olhos a noção, tão estranha aos viajantes, de
apreço do povo pelo território comum. Alguns até exclamam: “Nem parece o
Brasil”.
O ex-presidente Lula, em visita a Windhoek, cidade de colonização
neerlandesa e alemã, capital da Namíbia, fez comparação análoga: “É limpa.
Quem chega a Windhoek nem parece que está em um país africano”. A
exclamação, a surpresa, revelou muito do que Lula pensava sobre a África,
continente em que as marcas de civilidade encontradas em Windhoek são raras
ou ausentes. Assim como a exclamação dos turistas brasileiros internos em visita
aos “enclaves europeus” revela muito do que pensam sobre o Brasil, país em que
as marcas de civilidade encontradas em Caxias do Sul, se não são tão raras ou
ausentes, deixam a desejar¹.
Em Santa Cruz do Sul, na praça central, há um amplo sanitário público, de
livre acesso a quem estiver circulando. É simples, mas também limpo e bem
cuidado. Em Salvador, na praça da Piedade, coração do centro da capital baiana,
não há. Das 9 às 21 horas, quem estiver circulando por ali utiliza os sanitários
dos shoppings das redondezas. Quando esses estão fechados, é costume usar a
rua como latrina. O fedor matinal denuncia a persistência do hábito. É provável
que isso, mais do que a propensão germânica à multiculturalidade, seja
responsável pela persistência da alteridade. Enquanto as ruas de Salvador,
Fortaleza, Recife e Rio de Janeiro forem latrinas ou depósitos de lixo, enquanto
os espaços públicos seguirem degradados, os “alemães” de Santa Cruz do Sul
farão questão de manter a alteridade, e os brasileiros de Caxias do Sul seguirão
afirmando que “brasileiros” são os outros.
Nada pode ser mais autodepreciativo do que “nem parece o Brasil”, dito com
certa razão. Alguém pode argumentar: “a Europa, no passado, também era
assim”. Era, de fato. Paris já foi uma cidade fétida. Mas, em 1530, Erasmo de
Roterdã escreveu A civilidade pueril, código de comportamento e higiene
transformado em best seller, de decisiva in uência nos hábitos dos povos do
continente europeu. Muito antes, Roma tinha banheiros públicos limpos e seus
cidadãos guardavam enorme apreço pelo asseio e conservação da cidade-sede do
imenso império. A partir de Erasmo resgatou-se e popularizou-se a ideia romana
de civilidade, associada não apenas à limpeza e organização, como ao cuidado
com os bens públicos compartilhados.
No Brasil, já foi muito pior. Capistrano de Abreu registrou: “Da higiene
pública encarregavam-se as águas da chuva, os raios do sol e os diligentes
urubus”. Em Florianópolis, no início do século XX, saudou-se como grande
avanço civilizatório o fato de o lixo passar a ser recolhido por carroças públicas e
jogado no... mar². Rio de Janeiro, Recife e Salvador eram depósitos de dejetos a
céu aberto. Um trecho do relato de Manuela Arruda dos Santos, enfocando
Recife, dá uma pequena ideia da imundície:
Nesse tempo, imperava nas cidades um fedor que, hoje, di cilmente podemos conceber. Nas ruas e nos
becos estreitos, os maus cheiros se confundiam. Nas praças, vísceras de animais e restos de vegetais estragados
compunham um ambiente insalubre. Dentro das casas, cozinhas sem ventilação tornavam o ar viciado, com
exalações pútridas de matérias orgânicas em decomposição. Nos quartos, poeira e mofo se misturavam ao
cheiro dos penicos.
Nunca é muito agradável submeter-se à insolência de homens de escritório, mas aos brasileiros, que são
tão desprezíveis mentalmente quanto são miseráveis suas pessoas, é quase intolerável.
Se conseguirem, enganarão o viajante com as contas. Os donos são pouquíssimo corteses e muito
desagradáveis em seus modos. Suas casas e suas pessoas são com frequência de uma sujeira imunda. A falta
da comodidade de garfos, facas e colheres chega mesmo a ser comum.
Fez muitas observações sobre a sujeira das ruas, a falta de re namento das
elites, os maus modos de todos, porém o que mais lhe chocou foi o cotidiano da
escravidão. Em 1845, recusou-se a viajar aos Estados Unidos com os seguintes
argumentos:
Agradeço a Deus nunca mais ter de visitar um país escravagista. Até hoje, quando ouço um grito
distante, ele me faz lembrar com dolorosa vivacidade meus sentimentos, quando, passando em frente a uma
casa próxima de Pernambuco, eu ouvi os mais penosos gemidos, e não podia suspeitar que pobres escravos
estavam sendo torturados. Perto do Rio de Janeiro, eu morava em frente à casa de uma velha senhora que
mantinha torniquetes de metal para esmagar os dedos de suas escravas. Eu quei em uma casa em que um
jovem caseiro mulato, diariamente e de hora em hora, era vituperado, espancado e perseguido o su ciente
para arrasar com o espírito de qualquer animal. Eu vi um garotinho, de seis ou sete anos, ser castigado três
vezes na cabeça com um chicote para cavalo (antes que eu pudesse interferir) por ter-me servido um copo
d’água que não estava muito limpo.
Há muitas casas inglesas, tais como seleiros e armazéns, não diferentes do que chamamos na Inglaterra
um armazém italiano, de secos e molhados; mas, em geral, os ingleses aqui vendem suas mercadorias em
grosso a retalhistas nativos e franceses. Os últimos têm muitas lojas de fazendas, armarinho e modistas.
Quanto a alfaiates, penso que há mais ingleses do que franceses, mas poucos de uns e outros. Há padarias de
ambas as nações, e abundantes tavernas inglesas.
O Brasil recebeu muitas visitas estrangeiras no século XIX, pois não vigiam
mais as restrições aos viajantes do século anterior, quando a Coroa morria de
medo de ver facilitado o contrabando de ouro e diamantes. Além disso, os
demais europeus tinham participado de muitas invasões nos três séculos da
colônia. Não eram bem-vistos. Com a independência, passaram a ser bem-
vindos, até para compor o exército, superatarefado na consolidação da unidade
nacional e abalado na confiança por uma perda sensível: a Cisplatina.
Entre os visitantes ilustres do século, estavam os cientistas Carl Friedrich
Philipp von Martius, alemão, seu colega de jornada, Johann Baptiste von Spix,
o naturalista Auguste de Saint-Hilaire, o príncipe renano Maximilian Alexander
Philipp zu Wied-Neuwied, o geólogo alemão Wilhelm Ludwig von Eschwege
e o comerciante inglês John Luccock. Todos deixaram registrados livros ou
anotações sobre o que viram. De um modo geral, a crítica é negativa, nem tanto
aos costumes, que podiam ser bem ou mal avaliados conforme os humores de
viajantes e anfitriões, mas à falta de iniciativa, displicência, preguiça, enfim.
Phillip von Martius, ao passar por Ilhéus, registrou que a vila era miserável,
habitada por mamelucos e “portugueses de baixa extração, aborrecidos do
trabalho”. Registre-se que os europeus daquele tempo ainda tinham os
portugueses em geral em boa conta, apesar do empobrecimento da pequena
nação, daí o “baixa extração”, em oposição aos de “alta extração”, estimados.
Outros irão estender a condição de sublusos aos brasileiros brancos em geral, à
exceção de Graham, que enxerga o contrário, pois detestava os portugueses
europeus.
Sobre a indolência, Luccock, relatando visita a São João Del Rei, é corrosivo:
Não se veem sionomias atarefadas, nem azáfama de negócios, nem pretos à cata de biscates, nenhum
pregão de pessoas anunciando artigos de geral consumo diário à venda, mas sim, ao contrário, uma aparência
uniforme de vadiagem, displicência e repouso. Vivem todos os brancos, aos quais a cor privilegia, livres de
qualquer preocupação ou esforço. As ocupações dos homens raramente exigem deles que saiam de casa, e
quanto às mulheres de categoria e caráter respeitáveis, não estão elas afeitas a mostrar-se nas ruas.
Deteve-me longo tempo, mas em compensação apareceu-me de ponto em branco, chapéu armado, de
velas nos sapatos e nos joelhos e correspondentes parafernais. À saída remanchou ainda a espera de algum
negro que lhe carregasse o martelo, o escopro e outro instrumento pequeno. Sugeri-lhe que eram leves, e
propus eu próprio carregar parte ou todos; mas isso teria sido solecismo prático tamanho como usar ele das
próprias mãos. O cavalheiro esperou pacientemente até aparecer um negro, fez então seu trato e marchou
com a devida solenidade, acompanhado de seu servo temporário. Despachou-se depressa, arrombando a
fechadura em vez de arrancá-la; então o figurão, fazendo-me uma profunda mesura, partiu com seu acólito.
Há como uma espécie de desonra em se conduzir volumes de qualquer natureza. Meu caso seria ainda
mais grave, pois teria de carregar às costas uma mochila de soldado com a caixa de tintas, um pau para apoio
do para-sol, e, deste modo, passar por entre ricaços, moças e até negros de mãos vazias, os quais se sentiriam
chocados com a minha figura.
Saint-Hilaire, por sua vez, narra histórias deliciosas sobre o costume dos
o ciais mecânicos de gastar até o último vintém a remuneração de algum
serviço antes de se porem a realizar outro. Nunca se encomendasse um sapato
ao sapateiro sem lhe fornecer de antemão o couro. Ele não iria atrás de comprá-
lo jamais. Eis um trecho de seus causos:
Perguntava a um homem honrado de São Paulo como fazia quando precisava de um par de sapatos.
Encomendo-o, disse-me, a vários sapateiros ao mesmo tempo e, entre eles, acha-se ordinariamente um que,
premido pela falta de dinheiro, se resigna a fazê-lo.
Feios, sujos, vagabundos, corruptos e ignorantes. Assim eram pintados os
brasileiros nos relatos estrangeiros. Comentavam os letrados nacionais as
ofensas externas? Sem dúvida, contudo mais em tom de concordância do que de
reação. Phillip von Martius foi até premiado pela melhor proposta para escrever
a história do Brasil pelo Instituto Histórico e Geográ co Brasileiro – IHGB,
fundado em 1838 para, entre outras tarefas, de nir a brasilidade. Varnhagen e
Capistrano, além de muitos outros, fariam eco às ácidas observações
estrangeiras, na velha cantilena do “o país é uma beleza, mas o povo...”.
Quanto ao governo, a única monarquia europeia do Hemisfério Sul, longe de
exaltar as qualidades pátrias4, concordava, pelo menos em parte, com as
afrontas e, partindo do princípio “pau que nasce torto, morre torto”, concentrava
esforços na única solução que parecia plausível: trocar de povo, incentivando a
imigração, política iniciada ainda no governo de Dom João VI.
³ Maria da Glória Gonzaga de Bragança, rainha de Portugal por 19 anos efetivos (de direito, são 27 anos
de reinado), nasceu no Rio de Janeiro em 4 de abril de 1819. Se o Brasil teve um imperador português,
Portugal teve uma rainha brasileira. Maria Graham foi sua preceptora por curto período, em 1823, na sede
da corte do pai de Maria da Glória, Pedro I.
4 A propósito, a letra do hino nacional do Brasil, o cializada em 1922, faz pouquíssimas referências às
qualidades dos brasileiros, no máximo um “brava gente”, pouco especí co, porém várias às virtudes da terra,
da natureza. O indolentíssimo “Deitado eternamente em berço esplêndido” serviu e ainda serve de mote para
sátiras ligadas à tradição autodepreciativa. O primeiro hino nacional, de 1822, hoje hino da independência,
com letra de Evaristo da Veiga, um libelo contra as Cortes e a favor de Dom Pedro I, já falava em “mãe
gentil” (repetida no hino de 1922). Com uma “mãe” dessas, quem precisava trabalhar? Por m, o hino da
proclamação da república não contém uma única referência elogiosa ao brasileiro. Pelo contrário, condena o
passado escravocrata (recentíssimo, o hino é de um ano e meio após a abolição), “dos mais torpes labéus”, e
exalta, numa analogia cristã, o sacrifício de Tiradentes por todos. Em contrapartida, os hinos dos estados de
tradição mais “orgulhosa”, pelo menos ao senso nacional comum, São Paulo e Rio Grande do Sul, são odes
aos valores e conquistas de seus povos.
Imigrantes
Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, propôs uma oposição entre
a ética da aventura e a ética do trabalho. Seria possível separar dois tipos, um
impulsivo, outro metódico, um passional, outro racional. Maquiavel já traçara
brilhantemente a distinção, com outra intenção, em O Príncipe. Holanda
associa então o primeiro tipo, o da ética da aventura, ao português, atribuindo-
lhe o atraso do Brasil diante do triunfo do capitalismo, o sistema que privilegia o
esforço lento e persistente.
Não é bem assim, porém contrapor Holanda em profundidade exigiria
desviar esta obra de suas intenções manifestas, intenções nas quais, a propósito,
o grande autor acaba, sem querer, por se encaixar, pois boa parte de sua crítica é
el à tradição autodepreciativa. Basta fazer uma observação: os intelectuais e
políticos brasileiros e portugueses do início do século XIX, de um modo geral,
concordariam com o esquema proposto em 1936 pelo pai de Chico Buarque. A
leitura das atas das Cortes lisboetas constituintes (1821-1822) não deixa
dúvidas. O atraso do império português devia-se, segundo os liberais daquele
tempo, a não adoção das ideias de Adam Smith, à ausência de método. Só
variavam os culpados: na parte europeia, era a alta nobreza; na parte americana,
o próprio povo, incluído aí o branco.
Dom Pedro contava-se entre os liberais, assim como José da Silva Lisboa e
Nicolau Pereira de Campos Vergueiro. Livrar a economia das velhas amarras do
monopólio comercial e dos exclusivismos por mercês, ou seja, do mercantilismo,
era a palavra de ordem dos liberais. E para tal impunha-se, além de importar
ideias, importar pessoas, que, pelo exemplo pessoal, pudessem ajudar a superar o
atraso. Vergueiro e Silva Lisboa eram também abolicionistas, pela necessidade
de livrar os senhores da ociosidade provocada pelo sistema escravista, e a
economia da dependência do tráfico humano.
Olhos daquele tempo, olhos de Holanda, olhos de hoje, que enxergam um
modelo em crise, que veem no luso, e no brasileiro por extensão, a ética da
aventura contraposta à ética do trabalho. Olhos que não enxergavam e não
enxergam o dinamismo de uma economia que produzia muito e produzia bem
em termos relativos. O Brasil da década de 1810 rivaliza com os Estados Unidos
em riqueza, é importante na economia global. O Brasil de 80 anos depois, início
da República, é relativamente mais pobre, menos importante e estará em vias de
ser superado pela Argentina.
O Brasil de 1810 não é apenas plantation, açúcar trocado por escravos e luxo
no comércio atlântico externo. É um país de pequenos produtores, de vivo
mercado interno, de múltiplas atividades econômicas que passaram invisíveis
aos olhos daquele tempo e dos pensadores e historiadores dos tempos vindouros.
Não era tão pobre ou atrasado como os discursos, os velhos e os novos, fazem
supor. E não era terra de aventureiros, embora os tivesse, como todas as terras os
têm, nem os aventureiros do Brasil, como os paulistas, eram avessos, quando a
necessidade ou a oportunidade aconselhavam, ao trabalho metódico. Prudência
e impetuosidade podem e devem se alternar, como já aconselhava Maquiavel, a
depender das circunstâncias.
Bem, a questão não é essa. A digressão teve o objetivo apenas de demonstrar
que o ponto de partida da imigração não é um momento de crise econômica em
termos relativos históricos, nem marca a mudança de um modelo aventureiro
para outro metódico e supostamente avançado de colonização.
Os primeiros dez anos de experiência de imigração comportaram alemães,
suíços e irlandeses, em diversos contextos. A maior parte do uxo, de número
total incerto, foi de homens solteiros, trazidos sob muitas promessas, para
compor o exército brasileiro. Dois personagens merecem destaque nesse
período: um como agente de imigração, outro como imigrante provisório e
cronista perspicaz: George Anton von Schäffer5 e Carl Schlichthorst.
5 Jorge Antônio von Schaeffer, nome adotado no Brasil.
Dois Aventureiros
No contrato entre o Conde von der Osten-Sacken, do Grão-Ducado de
Mecklenburg-Schwerin, um dos estados alemães, e o representante do Império
do Brasil, George Anton von Schäffer, constava como cláusula a ser assinada
pelos presidiários libertados: “in den neuen Verhältnissen ein eiBiger
moralisch-guter Mensch zu werden”6.
O malandro bávaro, von Schäffer, percorria a Alemanha em 1824 em busca
de colonos. Na verdade, a encomenda de Dom Pedro I e da imperatriz
Leopoldina era de soldados, porém, o cialmente, nenhum europeu poderia sair
de seu continente como mercenário, era ilegal. O jeito era falar em colonização.
Alguns eram de fato colonos ou achavam que seriam, caindo nas promessas do
representante brasileiro. Outros eram bêbados, vagabundos e criminosos, esses
últimos dando a von Schäffer lucro dobrado, pois era pago pelo Brasil para
trazê-los e por Meckelenburg-Schwerin para levá-los embora.
A imperatriz amadrinhava von Schäffer, daí seu título de representante do
Brasil nos estados alemães. E defendia-o. Certa vez, respondendo às queixas de
um o cial alemão do Exército Brasileiro, foi sincera: “Que quer que Schäffer
faça? Ele precisa mentir às vezes para nos arranjar gente”. Mais grato cou-lhe
o grão-duque de Meckelenburg-Schwerin. Foi o primeiro estado europeu a
reconhecer oficialmente a independência do Brasil.
Quem não vinha embalado apenas pela oportunidade de sair da cadeia,
pensava em aventura:
Anseios extravagantes de ser feliz e de gozar a vida, desejos que se não realizaram e esperanças que se
frustraram levaram-me a uma viagem ao Brasil.
Os que pagaram a passagem do próprio bolso são livres. (...) O Governo paga a um colono oito vinténs
por dia durante o primeiro ano após sua chegada. Às crianças, a metade. Como por nova disposição de lei,
esse dinheiro não é pago à vista, mas em gêneros alimentícios, a maior parte ca nos bolsos dos funcionários
e de seus fornecedores. (...) Para o segundo ano, dá-se metade do auxílio do primeiro. Depois, tem de cuidar
de si próprios.
A colônia de Nova Friburgo ca a poucos dias de viagem da capital, mas os caminhos são tão ruins que
os colonos não podem vir à mesma vender seus produtos. Reina ali tão grande pobreza que muitos
assentaram praça voluntariamente ao se criar o Corpo de Estrangeiros e outros andam mendigando para
poderem viver como párias.
(...) Os colonos que chegavam eram enviados para o Rio Grande do Sul, onde a grande distância da costa
se fundara a colônia de São Leopoldo. Conversei com muitos que voltaram ao Rio de Janeiro e todos me
descreviam como tristíssima a situação dos que lá haviam cado. Haviam feito tão poucos preparativos para
sua recepção que os infelizes se viram obrigados a dormir ao relento durante meses até que lhes dessem as
terras onde construir suas choupanas.
(...) Rastilho e arado são desconhecidos no Brasil. A terra tem de ser trabalhada à enxada.
Tudo o que o Major von Schäffer, na sua obra sobre o Brasil, diz a respeito do gado e dos instrumentos
agrícolas fornecidos aos colonos é inverídico. Quando muito, recebem uma enxada, um machado e um
serrote para derrubar a impenetrável mata virgem que cobre geralmente a terra que lhes foi distribuída.
Embora de certo modo se aproxime do clima europeu, esta circunstância é prejudicial para os colonos,
porque têm de se limitar principalmente às culturas do milho, da mandioca e do feijão, que não servem tanto
para o comércio como o café. Por isso, não lhes é possível ganhar o dinheiro indispensável para se proverem
de utensílios agrícolas, roupas e demais artigos necessários à vida dum homem semicivilizado.
No Brasil, o branco destina-se ao comércio. O próprio artí ce não trabalha, faz trabalharem para ele.
Sem dinheiro e sem escravos, o branco ca em piores condições que estes. Ele próprio não goza dos frutos de
seu trabalho, senão quando com grandes esforços chega ao ponto de poder comprar alguns escravos e abrir
um negócio.
Aconselho, todavia, a qualquer trabalhador hábil e diligente que queira fazer fortuna, que vá para o Brasil
pagando a passagem do próprio bolso para não ser feito soldado ao chegar. (...) O salário dum ajudante de
operário ascende a 1.000 réis por dia e a mais ainda se for, por exemplo, relojoeiro ou ourives. Se tiver bom
procedimento, sobriedade e economia, em breve terá juntado pequeno capital. Também não é difícil achar
crédito para qualquer estabelecimento, na verdade com juros muito altos, geralmente 35%; mas o ganho será
proporcional.
Um artí ce que comprar escravos broncos e pessoalmente lhes ensinar seu ofício, além de arranjar
ajudantes baratos, poderá ganhar extraordinariamente, vendendo-os, pois um escravo bronco custa 200 mil-
réis; depois de ser um bom sapateiro ou um bom alfaiate, vale 500 mil-réis a um conto de réis. Portanto,
quem assim gerir seus negócios, em pouco tempo cará rico, como acontece com muitos portugueses, que
regressam à pátria com grandes fortunas.
Quem trouxer algum dinheiro para o Brasil também pode empregá-lo vantajosamente em bens de raiz.
No caso de possuir uns 10 ou 20 mil táleres, poderá arranjar com o governo uma sesmaria, que é como
denominam as posses de terras doadas pelo Estado. Geralmente são do tamanho de uma légua quadrada. Os
emolumentos do título de doação ascendem a uns 1.500 táleres. Com algum conhecimento da região onde
se quer estabelecer, emprega-se mais uns 1.000 táleres para dar mais força ao pedido e consegue-se assim
umas 5 mil jeiras de terras excelentes. Parte do capital servirá para comprar escravos e levantar edi cações
muito singelas com abundante material tirado ao próprio terreno. Parte como reserva para os primeiros anos,
que podem nada render.
A lei determina que no prazo de 5 anos a sesmaria deverá estar demarcada e ocupada, reservando-se ao
Governo o direito de retomá-la dentro de 20 anos se não for cultivada. Essas duas condições obrigam ao
emprego de todos os esforços para roçar a mata virgem a m de dar à posse de terra pelo menos aparência de
cultivo. A abertura de estradas para as comunicações, de canais para a irrigação e a construção de casas
decentes exigem ainda mais capital, que será pago em pouco tempo com juros. Apenas nos primeiros anos o
proprietário precisa renunciar a todas as comodidades europeias, não devendo dissipar a toa seu dinheiro. Seu
olhar deve estar sempre xo no futuro, do qual virá a indenização de sua renúncia. Se a sorte lhe favorecer a
empresa, em 20 anos terá um rendimento muito maior do que a soma originalmente empregada e a certeza
de deixar a sua prole uma propriedade que, em tamanho e valor, excede a muitos condados alemães.
À maioria dos alemães a coisa não foi tão fácil. Em São Leopoldo7, que
recebeu toda sorte de desvalidos, tão mancos, velhos ou incapazes que não
serviam nem para compor um exército mambembe, além de desertores e
colonos de verdade, com famílias, as di culdades iniciais foram imensas. Não
poucos se entregaram a toda sorte de vícios, como o furto e o alcoolismo.
Conforme Carl Seidler, soldado mercenário alemão que permaneceu 10 anos no
Brasil:
Tais homens, alguns desabituados de manejar a pá e o machado, outros demasiado preguiçosos, era
impossível que pudessem manter-se; tinham que tornar-se carga de seus patrícios operosos e tornaram-se
uma verdadeira peste na colônia.
7 São Leopoldo recebeu a primeira leva de imigrantes alemães em 25 de julho de 1824. Ao todo, eram
39 pessoas, segundo Telmo Lauro Müller. Essa primeira leva era de agricultores e artí ces, trazidos da
Europa por von Schäffer. No decorrer dos meses e anos seguintes, chegariam ex-presidiários, rejeitados pelo
Exército e desertores.
Achamos o trabalho do homem que tem sua própria vontade e interesses na empresa muitíssimo mais
aproveitável do que o trabalho do escravo.
É indispensável que (...) venham contingentes de outros recantos, de preferência e até mesmo, se possível,
apenas constituídos inicialmente de homens brancos. (...) É necessário que a escolha destes homens se faça de
uma forma tal que não se estabeleça um contraste chocante com os originários da região, pela questão dos
hábitos sociais, apresentação, capacidade intelectual, etc. (...) Não é com contingentes escolhidos à vontade
só pelo fato de serem de outras regiões que se resolverá o problema, mas principalmente com homens que no
dizer preciso de Bilac, “têm o hábito do pente, escova e sabão”.
O problema, pelo visto, não era bem com os alemães. A mesma ideia de
“trocar de povo”, tão difundida ainda no tempo do Reino Unido de Brasil,
Portugal e Algarves, seguia viva século e tanto depois. O problema em 1939,
para Bethlem e para o Estado Novo, era os alemães não colaborarem no
melhoramento genético do povo brasileiro em geral, tão desabituado ao “pente,
escova e sabão” e teimosamente com tons escuros de pele, daí sua ênfase em
trazer “homens brancos”.
Os alemães, na verdade, estavam em alta conta. Fossem caboclos brasileiros,
como os catarinenses do Contestado, da década de 1910, seriam massacrados.
Blumenau e outros recantos deutsch sobreviveram bem às investidas em prol da
interculturalidade e da eugenia. Hoje, a maioria já se comunica em português e
os casamentos interétnicos proliferam. Nos espaços públicos, porém, a marca do
apreço aos bens comunitários segue intacta, lembrando que, melhores ou piores,
questão de ponto de vista, eles são diferentes. E costumam reconhecer, como o
fez Carl Schlichthorst em sua obra de 1829, o caráter afável dos brasileiros,
vendo na propensão à interculturalidade, herança lusa, um valor positivo.
8 Antes, em 1819, 1.617 suíços, de fala alemã e francesa, chegaram ao Brasil por um acordo entre
Portugal e Suíça, fundando Nova Friburgo.
9 William Cotter era irlandês e lutara nas guerras napoleônicas pelo exército britânico em Portugal.
Enviado a Montevidéu, acabou optando por se tornar o cial do Exército Brasileiro. Após a revolta dos
batalhões de estrangeiros, em 1828, acompanhou Dom Pedro na luta pela reconquista do trono português,
usurpado por Dom Miguel. Morreu assassinado no Porto em agosto de 1833.
10 Segundo o jornal londrino Morning Chronicle, partiram da Irlanda para o Brasil 2.450 homens, 335
mulheres, 123 rapazes e 230 crianças, além de 31 passageiros de cabine. Total – 3.169. Alguns morreram em
viagem, entre eles os náufragos de duas das 10 embarcações afretadas por Cotter. Embora a maioria dos
passageiros dos navios naufragados (em Tenerife e na altura de Campos, no Brasil) tenha sido resgatada,
muitos dos salvados nas Ilhas Canárias desistiram de seguir viagem. A con ar nos números do periódico
inglês, porém, é provável que pouco mais de 2.400 tenham chegado mesmo ao Brasil no biênio 1827-28.
11 Não confundir com o atual município de Itabuna, que passou a ter esse nome em 1906, quando se
emancipou. A colônia Cachoeira de Itabuna pertencia e segue pertencendo ao município de Ilhéus.
12 O cacau só se consolidaria como produto de exportação e levaria riqueza a Ilhéus no nal do século
XIX.
13 Relatório de 1855 do governo imperial dá conta de 17 tentativas de colonização estatais até então,
sendo quatro consideradas prósperas e duas “muito prósperas”. As demais tinham fracassado. Já nos 24 casos
de colônias privadas, situadas em cinco províncias diferentes, 21 são considerados prósperos.
É preciso ver com que orgulho patriótico as pálidas e esbeltas mocinhas da nobreza devoram a infalível
feijoada, uma mistura nojenta, (...) que rebelaria até mesmo as galinhas.
Viva a feijoada, outra típica herança lusa. Sim, não faltaria a menção à
corrupção, endêmica, “inclusive na magistratura”. Não é aqui o caso de vivas,
mas que se trata de uma tradição nacional não há dúvidas. A bem da verdade, a
corrupção nos Estados Unidos da América, na mesma época, escandalizava a
Europa. A tradição não é só brasileira.
Mas se vá ao fulcro. Moriconi escreveu para desincentivar a emigração dos
seus ao Brasil. A questão era séria, pois a Itália liberara qualquer amarra em
1888 para quem quisesse sair. Como os governos brasileiros, estaduais e federal,
alternadamente, pagavam a passagem, as companhias de navegação tratavam de
aliciar gente em toda península, do Piemonte à Sicília. Houve quem viesse
apenas para passear. De graça...
Motivos não faltavam para emigrar. A uni cação italiana não fora su ciente
para resgatar a autoestima da população, vista como inferior pelos europeus do
norte, em parte por si mesma. As desavenças entre as regiões permaneciam. A
exemplo do Brasil, era preciso criar uma nação que nunca existira antes de
forma independente, pois o mapa político não correspondia a uma unidade
étnica, sequer idiomática, alguns dialetos eram ininteligíveis entre si, e a
referência mais próxima de algo semelhante era o longínquo Império Romano.
Os vênetos, outrora senhores de um império marítimo-comercial, viviam às
voltas com períodos de fome, a crescente população disputando a parca riqueza,
resultado de pequena industrialização, muito atrasada em relação ao noroeste
europeu, e uma agricultura arcaica, que desconhecia o adubo e mal usava o
arado. A terra, cansada, erodida, rendia pouquíssimo.
No sul, tanto pior. Na Calábria, o crime era a atividade econômica mais
visível, empregando boa parte da população. O analfabetismo, segundo o censo
de 1901, chegava a 78,7% entre os maiores de sete anos. No país todo, não era
muito melhor: apenas 51,5% dos jovens em idade escolar e adultos sabiam ler e
escrever14. Segundo escreve o italiano Giuseppe Scalise, em obra publicada em
1905, o calabrês típico morava em pequenas aldeias nas montanhas, em casas
pequenas de barro, tijolos, pedra ou lava, sem água corrente ou esgoto, com
pouca privacidade, convivendo com animais domésticos. A dieta não tinha
quase nada de proteína, era pão quando havia ou:
Qualquer erva era cozida e comida, sem sal e sem condimento, para dar ao estômago a ilusão de
saciedade.
Precisa-se de oficiais e aprendizes para sapateiro; prefere-se italiano, na rua do Carmo, nº 32-A.
15 O governo italiano tem outros dados: seriam mais de 1,8 milhões de emigrantes para o Brasil. Não
há, porém, grande discrepância nos números, pois muitos morreram no caminho e alguns, poucos,
retornaram.
16 Os grupos de capoeiras eram bandos, geralmente armados, principalmente com facas e canivetes,
envolvidos em brigas, disputas por territórios e roubos. Embora já existisse a capoeira sem armas, apenas com
movimentos, praticada na escola militar inclusive pelo presidente Floriano Peixoto, poucos a viam como arte,
dança ou luta marcial pacífica. A polícia reprimia duramente os capoeiras.
22 Malcolm X adotou posições mais conciliadoras nos últimos dois anos de vida.
23 A origem de Edson Arantes não é tão humilde. Seu pai era ferroviário e sua família era bem
estruturada.
Fatalismos
Não existe superioridade genética. Existem fatalismos étnicos. Se os
indivíduos de uma determinada sociedade, de uma determinada cultura,
acreditarem que outra cultura lhe é superior e inatingível, conformar-se-ão e se
autodepreciarão. Porém, se enxergarem a diferença como desa o, cultura não se
perde, não se ganha, transforma-se, o céu é o limite.
Em diferentes fases da história, os brasileiros, ou brasilianos, para diferenciar
da pro ssão de conquista, puseram-se perante estrangeiros como vira-latas, ao
que se seguiam pensamentos fatalistas. Mas a suposta inferioridade não era um
fato, era uma construção intelectual tomada como verdade, construção
conservadora apropriada como bandeira pelos “progressistas” mais adiante.
A ideia de que os lusos eram aventureiros, os índios, coitadinhos sem
vontade, os africanos, pobres vítimas empurradas para a marginalidade, por isso
“somos assim” merece revisão. E uma revisão que não passe pela importação de
problemas, como a multiculturalidade, a tensão étnica tão comum nos “velhos
mundos”. Pelo contrário, deve-se exaltar a interculturalidade, melhor atributo do
brasileiro médio.
Aventureiros eram todos: lusos, alemães, italianos, japoneses. Ética do
trabalho? Ambição? Ordem e progresso? Não precisavam vir de fora, bastava
buscar bons exemplos no Brasil mesmo (havia) e dar os incentivos apropriados.
Vieram os imigrantes, tanto melhor, mas não dá para olhar para trás e concluir
que eles “salvaram” o Brasil, industrializando-o e melhorando a produtividade
agrícola. Contribuíram enormemente, é verdade, trouxeram exemplos de
civilidade e amor aos bens comunitários, à conjugação de esforços, tão visíveis
em Blumenau, Caxias do Sul, São Carlos e Santa Cruz do Sul, mas a rmar que
sem eles a modernização não seria possível é fatalismo autodepreciativo.
Em 1950, os sul-coreanos não seriam identi cados por ninguém, nem por
eles mesmos, como portadores da “ética do trabalho”, exemplos de gente
ordeira, laboriosa e sedenta de conhecimentos. O mesmo se aplica aos italianos
de 1880: indolentes, ignorantes e supersticiosos aos olhos da Europa e, em
grande parte, aos próprios olhos. A Coreia do Sul não recebeu nos 60 anos
posteriores a 1950 uxo imigratório signi cativo. Os sul-coreanos apenas
abandonaram o fatalismo para alcançar um grau de desenvolvimento e civilidade
notáveis. Se o que o estrangeiro faz é bom, dá bons resultados, não é preciso
importar o estrangeiro, basta imitá-lo no que ele tem de melhor.
Quanto aos caxienses, os “gringos” e os “brasileiros”, civilidade constrói-se, o
destino dos aventureiros vênetos de ns do século XIX emigrados é exemplar
nesse sentido. Não há mais razão para “brasileiros” serem os outros, nem para
estes aceitarem o desaforo depreciativo resignados, fatalistas. Estão todos no
mesmo barco, no qual os antepassados de muitas etnias embarcaram,
aventureiros da miragem verde chamada Brasil. Alteridade? Sim, tudo bem
quanto ao clube búlgaro, ou romeno, ou jeje, ou tupinambá, ou minhoto, ou
italiano, mas que o folclore restrinja-se à memória, não pretendendo virar
construção política excludente ou isolada, marcada pelo fatalismo étnico. O
prefeito de Caxias do Sul em 2012, José Ivo Sartori, é italodescendente e fala
dialeto vêneto, porém nunca fez disso uma bandeira. A memória dos
antepassados pode muito bem conviver com a interculturalidade brasileira,
talvez o melhor atributo nacional aos olhos dos estrangeiros atuais.
Sexo
A Atração da Cor
O já apresentado Carl Schlichthorst, em sua passagem pelo Rio de Janeiro,
entre 1825 e 1826, viu certa noite a passear sozinha pelo centro uma bela moça,
a quem descreveu como levemente de cor. Ela foi atingida por faíscas de um
foguete mal apontado. Carl apressou-se a socorrê-la, usando uma pesada manta
de lã escocesa trazida consigo, pois o no vestido de cambraia da jovem pegara
fogo. Pela pronta intervenção do jovem o cial do Exército Imperial, apagando
as chamas, Benta Lucrécia da Conceição, a tal moça, não chegou a ter a pele
queimada. O estrago no vestido, porém, era considerável, e ele se ofereceu para
levá-la em casa.
Benta morava com a mãe, D. Luísa, “crioula”¹, em uma casa modesta. Tinha
¼ de sangue africano, como descobriu Carl nos dias seguintes, pois passou a
visitá-la com frequência, a pretexto de beber chá e tomar aulas de português. Na
casa, habitavam também escravos de D. Luísa. Dos jornais (diárias) daqueles,
obtidos como trabalhadores na Alfândega, vivia a senhora, viúva.
Aos 17 anos, Benta era amásia de um tropeiro de mulas, sujeito quase
sempre em roteiro de vendas e compras pelos vales e montanhas de Minas
Gerais. Tinha uma lha com o tal viajante. A relação com Carl foi platônica
nos primeiros dias. Ele não avançava, indeciso, em respeito ao tropeiro. Mas
não só:
Quase sou tentado a beijar a mão que me estende. Contra isso, porém, rebela-se o nobre sangue europeu,
ao pensar que a tinge leve cor africana.
O Padre Fogoso
Auguste de Saint- Hilaire, ao passar por Santa Cruz de Goiás², no início do
século XIX, anotou:
Padre Álvares culpou o calor dos trópicos pelo gosto pelo membro viril.
Furtado de Mendonça parece ter concordado com o acusado, pois lhe passou
apenas uma admoestação. Deveria afastar-se dessas pessoas, pois do contrário
seria “gravemente castigado”. Talvez não, pois a pena maior (degredo para o
Brasil) já estava cumprindo, e muito bem, para a alegria (ou tristeza, vai saber)
de 40 ovelhas de seu novo rebanho.
O visitador e seu notário, Manoel Francisco, se não acharam a história do
padre dadivoso muito cabeluda, espantaram-se com a extensão da prática da
feitiçaria entre as poucas mulheres europeias ou eurodescendente da Bahia.
Quem imagina serem os despachos e adivinhações introduzidos no Brasil por
africanos engana-se. Até a esposa do governador-geral e fundador de Sergipe,
Cristóvão de Barros, Dona Isabel, foi acusada de fazer feitiços.
Guiomar d’Oliveira, lisboeta residente em Salvador, contou a história de
Antônia Fernandes, chamada “a Nóbrega”. Conhecia-a da metrópole, onde
alcovitava a própria lha, Joana Nóbrega, também feiticeira, que costumava
atender estrangeiros, oferecendo-lhes sexo anal em troca de boa paga. Vindo a
velha Antônia degredada para o Brasil, passou a atender os reclames das
senhoras da sociedade soteropolitana com suas receitas de feitiços certeiros,
conforme registrou Manoel Francisco:
Tomasse três avelãs, ou em lugar de avelãs, três pinhões dos que nesta terra há que servem de purgas,
furados com um al nete, tirado o miolo fora, então recheá-los de cabelos de todo seu corpo, dela
confessante, e unhas de seus pés e mãos e rapaduras das solas dos seus pés, e assim mais com uma unha do
dedo pequeno do pé da mesma Antônia Fernandes, e que assim recheados os ditos pinhões, os engolisse e
que, depois de lançados por baixo, os desse.
Nojento. O tal preparado foi moído e colocado numa sopa, servida para João
de Aguiar por Guiomar. Ela era casada com outro, mas pretendia atrair o tal
João para sua alcova ou amizade, pois esse era senhorio da casa onde a lisboeta
habitava com o marido, e o aluguel estava atrasado.
As mulheres confessavam com desenvoltura perante os inquisidores. Paula
Siqueira, casada, em 21 de agosto de 1591, declarou ter cultivado uma amizade
especial com Felipa de Souza. Por três anos, as duas encontravam-se com
frequência, ocasiões para prática sexual muito prazerosa, repleta de orgasmos.
Por que Paula Siqueira denunciava a companheira tão solícita e disponível?
Por ciúmes. Ela acusou Felipa de ter como amantes Paula Antunes e Maria
Peralta, ambas casadas.
As in delidades de Felipa revoltavam também Maria Lourenço, casada, que
se apresentou voluntariamente para depor contra a companheira, confessando o
próprio deleite e nominando diversas parceiras da amada.
Furtado de Mendonça visitaria ainda muitas outras mulheres implicadas no
crime de “sodomia (sic) feminina”. Guiomar Pinheiro, mameluca, viúva por três
vezes, confessou “ajuntamento de vasos” com Quitéria Seca. Já Guiomar
Piçarra, natural de Moura, na metrópole, casada, revelou seu caso com uma
“negra da Guiné”, ladina, de nome Mécia. Além da africana, a senhora Piçarra
implicou outras três amantes. Outra a comparecer perante a mesa foi Isabel
Marques, mestiça casada, para confessar caso com Catarina Baroa e denunciar
essa última como lésbica promíscua.
No total, 29 mulheres foram contabilizadas no grupo de lésbicas, tendo sido
punidas, com leveza, apenas as mais promíscuas e aquelas que tinham utilizado
algum objeto fálico com ns de penetrar a parceira, caracterizando algo que a
Inquisição poderia chamar de crime.
Para não perder tempo debatendo sobre os limites do contato íntimo entre
mulheres, os inquisidores resolveriam, em 1646, deixar a “sodomia feminina”
que não envolvesse um homem ao critério privado.
No século XVIII, com o grande aumento no uxo de migrantes para o
Brasil, o Santo Ofício daria mais atenção ao país, mas, de um modo geral, a
atuação da Inquisição foi branda no Brasil.
³ Atual distrito de Caboto, município de Candeias, Bahia.
A Privacidade e As Putinhas
Franciscanas
Olhar para trás é ver um tempo em que a moral sexual imperava, eis o senso
comum. Até pode ser, a Era Vitoriana teve in uência no Brasil dos séculos XIX
e XX, mas convém manter a vista curta. Até o século XVIII, privacidade e
pudor eram artigos mais raros. As casas, mesmo algumas das ricas, não tinham
quartos, casais habitavam camas, esteiras e redes ao lado de lhos, hóspedes e
até criados, nem por isso se abstendo dos exercícios necessários à reprodução ou
ao deleite.
Não era uma particularidade brasileira. A intimidade era rara na Europa, foi
construída entre a Idade Moderna e a Contemporânea, primeiro entre os mais
abastados. Mas se o sexo nas águas tranquilas do matrimônio ou do
concubinato singular não exigia isolamento, sendo compartilhado com os
demais da casa, as relações ilícitas eram vividas em espaços públicos, porém
distantes da vista de curiosos, nos riachos, nas capelas, nos engenhos e
sobretudo no mato.
Quanto ao pudor, eram comuns os dizeres chulos e os convites abertos à
cópula entre homens e mulheres, em muitos ambientes e situações. O
politicamente correto atual certamente escandalizar-se-ia com as cotidianas
expressões “sexistas” do século XVII. Os padres, então, não pensavam em outra
coisa, especialmente nos confessionários. O caso de José Vieira de Paiva foi um
entre centenas. Incentivavam relatos eróticos, aproveitando-os para colocar as
mãos nos seios ou nas partes mais íntimas das confessantes. Daí à cópula era
um passo, às vezes consumada com emprego de alguma violência, às vezes
consentida. Negras, mamelucas e brancas pobres frequentemente se
transformavam em concubinas de padres, todos sabiam, e a própria Igreja
fechava os olhos.
Conforme a historiadora Lana Lage, baseada em Norbert Elias, naquele
tempo:
As pessoas falavam em geral com mais franqueza sobre os vários aspectos da vida instintiva e cediam
mais livremente aos seus próprios impulsos em atos e palavras. Era menor a vergonha associada à sexualidade.
Do Alcouce Às Polacas
A cultura impunha no Brasil o casamento entre iguais: ricos brancos com
ricas brancas, pobres brancos com pobres brancas, mamelucos com mamelucas
ou índias ou, mais raramente, mulatas, pardos com pardas, libertos com libertas,
escravos com escravas. Muito pouco escapou disso como matrimônio
oficializado pela Igreja até o século XIX.
Já foi vista, porém, a propensão genética à exogamia, a buscar o sexo no
diferente. Há um campo em que essa busca se livra das amarras da cultura: o
campo da prostituição eventual. A cultura impõe ao homem a busca de uma
mulher semelhante para esposa, enquanto a biologia move-o à busca da mulher
diferente para uma noite só.
Pode-se encontrar exemplos na atualidade. O turista sexual europeu busca a
mulata no Brasil. O brasileiro quer a prostituta branca, com traços europeus, por
isso mais cara, basta ver as tabelas nos sites especializados ou os anúncios nos
jornais do Rio ou de Salvador colocando em negrito os adjetivos “loira” e
“gaúcha”.
No registro histórico, é o mesmo, principalmente depois da chegada das
“polacas” ao Rio de Janeiro. Antes, porém, houvera a febre do ouro em Minas
Gerais e Goiás, a imensa massa masculina saída da metrópole para o sonho da
fortuna fácil. Não poderia haver lugar mais propício para prosperar, não a mais
antiga pro ssão do mundo, mas a mais óbvia das trocas: a do dinheiro,
conquistado pelos homens, pelo acesso ao prazer proporcionado pela intimidade
feminina.
Não havia bordéis no Brasil até o século XVIII, salvo por raras exceções. A
lei e a moral não permitiam, mas não era por isso. A lei e a moral não permitiam
tantas outras práticas, e zombava-se dessas proibições o mais possível.
As propriedades rurais eram autônomas, isoladas e autossu cientes em
opções eróticas, enquanto os núcleos urbanos eram diminutos. Neles e nos
pousos de viajantes, abundavam os alcoviteiros e alcoviteiras, hábeis em
providenciar mulatas desde o momento em que começaram a existir mulatas, no
nal do século XVI5. Havia também as casas de alcouce, que podiam ser
residências de mulheres pobres ou forras ou estabelecimentos comerciais de
secos e molhados ou tabernas, cujos proprietários exploravam a prostituição
alheia como forma de aumentar suas rendas. Por serem discretos, passaram a ser
muito procurados. Existiam nas vilas e nos povoados menores.
As mulatas representavam a preferência nacional, sendo os clientes quase
todos brancos ou mamelucos. O regimento das minas de Guianases, do século
XVIII, preocupado em coibir a prostituição, proibia a entrada de mulatas nas
áreas de mineração.
Escravas libertas, sem muitas opções de trabalho livre remunerado,
dedicavam-se à exploração da prostituição de suas cativas. Em Vila Boa6, em
1753, a Inquisição registrou o caso de Domingas “preta forra”, que exigia de sua
cativa jornal de três oitavas de ouro por semana, obtidas em troca de serviços
sexuais, o dobro do que ganharia em outras atividades eventuais. Ela foi
denunciada porque chamava a atenção da sociedade local o fato de a maioria
dos clientes serem negros. Se fossem brancos, talvez não houvesse tanto
incômodo.
Tereza, também preta forra, foi acusada no mesmo ano de alugar sua escrava,
Antônia Courona, para servir de concubina a Leonel de Abreu, contrato em
vigor já iam 16 anos. Tanto Tereza como Domingas evitavam expor suas
escravas em casas de alcouce, onde ocorriam seguidos atos de violência,
motivados por ciúmes e bebedeiras.
Para comprar escravas para servirem como prostitutas, as forras juntavam
dinheiro exercendo o metiê elas mesmas, casos de Domingas Gomes da Silva e
Antônia Teixeira.
No ambiente mineiro, escravas casadas eram exceção. Em Vila Boa e Meia
Ponte, entre 1764 e 1808, dos 2.216 lhos de cativas com nascimento
registrado, 73,1% eram ilegítimos, índice alto para o Brasil colonial. Quantas
dessas mães eram prostitutas é impossível quanti car, mas certamente o
percentual não era pequeno. Na população livre local, o índice de ilegitimidade
beirava 50%7, porém apenas 10% dos ilegítimos eram de pai desconhecido. O
concubinato grassava.
Minas Gerais recebia cerca de seis mil migrantes metropolitanos por ano na
primeira metade do século XVIII, além de baianos, pernambucanos, cariocas e
paulistas, quase todos homens, dedicados preferencialmente à mineração.
Ansiavam por mulheres e pela provisão de víveres, que muito faltaram nos
primeiros anos. Muitas escravas, logo alforriadas e passando com frequência à
condição de proprietárias de cativas, atendiam as duas demandas
simultaneamente.
As “negras de tabuleiro” percorriam minas isoladas, oferecendo quitutes e
outros produtos, além de, muitas vezes, a si mesmas. Retornavam com ouro e
diamantes. No arraial de Tijuco8, as casas de alcouce eram boas lojas, muitas
delas administradas por forras, donas de extensos plantéis de negras e mulatas
prostitutas. Rosa Pereira da Costa foi das mais famosas. Tijuco, centro da
mineração de diamantes, foi muito rico durante todo século XVIII.
A febre do ouro, combinada com o comércio e a prostituição, oportunizou
muitas alforrias, mas, com a decadência da extração, notadamente a partir de
1760, sobrou oferta de serviços sexuais, e a miséria atingiu a todos e a todas. A
preta forra Cristina, angolana, foi presa em Vila Rica por alcovitar a própria
lha, a mulata Leandra. Não teve dinheiro para pagar ao carcereiro a
carceragem, apelando às autoridades por uma sentença rápida.
Em 1773, Vila Rica, contando todas suas freguesias, tinha 697 casas
comerciais estabelecidas, pagando impostos, das quais 472 eram de propriedades
de mulheres, a maioria delas negras e mulatas forras. Nem todas faziam de suas
lojas casas de alcouce, e já nesse tempo as prostitutas atendiam em suas próprias
casas ou se ofereciam na rua, mas a ascensão feminina no comércio teve
origem, em parte, na disponibilidade para atender à necessidade masculina mais
premente depois da alimentação: o sexo.
Os migrantes portugueses e brasileiros mergulharam no apelo sexual de
africanas, crioulas e pardas, transformando Minas Gerais em pouco tempo
numa sociedade profundamente mestiçada. Elas souberam transformar tal apelo
em trunfo, obtendo não apenas um grande número de alforrias, como
mobilidade social para negros e mulheres. Há milhares de histórias de ascensão
de mulheres de origem africana. O historiador Eduardo França Paiva revela
muitas delas, como as de Bárbara Gomes de Abreu e Lima e Joana da Silva
Machado, crioula e africana da Mina respectivamente, forras solteiras que
deixaram bens em inventários e extensa lista de relações com homens
importantes da capitania. Não se sabe se as duas eram prostitutas ou usaram o
sexo para prosperar no comércio, porém as estatísticas revelam que os homens
negros e pardos não tiveram as mesmas chances, sinal de que o apelo sexual
delas atuou como diferencial relevante.
No Rio de Janeiro, a partir de 1850, começava outra história da prostituição
no Brasil, com cafetinagem pro ssional e mulheres chiques, “francesas”,
prontas a iniciar os homens nacionais nos hábitos sexuais europeus,
supostamente mais refinados.
Elas eram caras no início, e algumas efetivamente tinham nascido na
França, e o brasileiro era perdulário diante de mulheres loiras, de olhos azuis ou
verdes. Com elas, nada de beber cachaça, era champanhe. Bem, pelo menos a
bebida era legitimamente francesa.
Em 1859, na freguesia do Sacramento, centro do Rio, havia mil prostitutas,
das quais 900 eram estrangeiras. O bordel mais famoso nessa época era o da
“Barbada”, mulata com buço farto e até cavanhaque, que exibia mulatas e
estrangeiras à clientela.
Os mesmos problemas sociais da Europa do século XIX que empurraram
imigrantes italianos, espanhóis, irlandeses e alemães a “fazer a América”
moveram as prostitutas ou as meninas pobres do velho continente. Muitas
vinham por conta própria, baseadas na propaganda de pioneiras sobre a
generosidade do homem brasileiro. Mas pelo menos num nicho de moças, a
máfia iria dominar.
Em ns do século XIX, o judeu polonês Isaac Boorosky fazia parte de uma
rede de aliciadores de meninas (de 13, 14, 15 anos) entre os guetos miseráveis
dos judeus no leste europeu. Por mais pobres que fossem, porém, as famílias
dessa religião não iriam ceder suas filhas para uma atividade considerada por eles
como infamante. Se para as africanas, as indígenas ou mesmo as portuguesas e
francesas, aquilo era um negócio como qualquer outro, as famílias lamentavam,
mas não muito, para os judeus era a danação eterna.
Boorosky, portanto, precisava enganar os pais das adolescentes, e elas
próprias. Foi o caso de Sophia Chamys, 13 anos, paupérrima, moradora de uma
shtetl (localidade suburbana) nos arredores de Varsóvia. Ele prometeu
casamento e cumpriu, numa cerimônia judaica sem valor civil. Pouco tempo
depois, Sophia estava em Buenos Aires, a serviço da má a judaica. Iria ainda
passar pelo Rio de Janeiro, servindo aos brasileiros. Boorosky acabou preso por
trá co de escravas brancas, como se descrevia a atividade. Àquelas alturas, as
“polacas”, judias do leste europeu, já não conseguiam se passar mais por
“francesas”, como zeram a partir de 1867, quando 104 delas desembarcaram
no Rio de Janeiro. Em Manaus e Belém, contudo, durante o boom da borracha
( nal do século XIX, início do XX), seriam sempre “francesas”, o mesmo se
dando em Ribeirão Preto e em outras praças endinheiradas.
A comunidade judaica tradicional do Brasil procurou combater o fenômeno
em seu tempo e, depois, escondê-lo, mas os imigrantes poloneses do Paraná
não tinham como fazê-lo. Famílias convencionais de imigrantes tinham suas
lhas confundidas com prostitutas. Em Curitiba, na década de 1920, havia uma
piada corrente sobre as polonesas jovens que vinham da zona rural. Seriam tão
ingênuas que ao m de alguns dias na capital paranaense exclamavam: “E eles
ainda pagam!”.
A mulata seguiu tendo espaço no mercado do sexo, mas a primazia não seria
mais dela. A concorrência foi numericamente expressiva e quase sempre
preferida e melhor remunerada. Evidentemente, não há números exatos para a
imigração com ns libidinosos, contudo diversas estimativas apontam para
dezenas de milhares, avulsas ou enredadas no trá co que não era apenas judeu
ou polonês, envolvia europeus de quase todas as nações, com destaque para as
do Leste.
A prostituição é um constante histórico e global. Se há algo de peculiar na
história do Brasil é a pouca manifestação dos estigmas ligados às prostitutas. Se
a Igreja e a polícia sempre combateram a alcovitagem e o lenocínio, pouco
perseguiram de fato as prostitutas e, de um modo geral, a sociedade mostrou-se
tolerante com elas. A existência de Dona Beja em Araxá do século XIX talvez
não fosse possível em muitos outros países.
Outra peculiaridade está na prostituição masculina, especi camente no
travesti, que será enfocado a seguir. A mulata é um fenômeno comum ao Brasil,
à Colômbia e a Cuba, entre outros países das Américas, mas são as mulatas
brasileiras o símbolo sexual nacional mais conhecido e desejado no resto do
planeta. É mais um fenômeno de marketing externo do que interno no que
tange à prostituta. À mulata permitia-se o direito ao gozo, por ser julgada como
de natureza lasciva. A lha do pecado inter-racial carregou o peso desse pecado,
pecado prazeroso na visão do brasileiro de todos os tempos, pecado degenerativo
na opinião dos racistas do positivismo e dos arautos da tradição autodepreciativa.
Da mulata nasce o mito machista de que a prostituta brasileira é a única que
goza. Tal como na piada curitibana do início do século XX, a falha de caráter
não está na prostituição, mas no desejo feminino, esse monstro temido por
quase todas as culturas, em todos os períodos históricos. O mito pode ter um pé
na realidade na medida em que o estigma sendo menor, as relações se deem de
forma menos mecânica, abrindo-se espaço para algum romantismo. Pode ser,
mas é improvável, pois a lógica da prostituição obedece a fatores outros,
universais.
Necessidade, exploração por má as que aliciam com promessas e até raptam,
escravidão e livre vontade são quatro fatores que costumam abastecer o mercado
do sexo. O último deles talvez tenha sido mais comum no Brasil pela pouca
repreensão, porém não há como averiguar. Em Minas Gerais, como foi visto,
necessidade e escravidão contribuíam certamente mais, secundadas pela
ambição por alforria, produto direto, contudo, da própria escravidão. No Rio de
Janeiro, no caso das “polacas”, má a e livre vontade estiveram lado a lado, com
a necessidade como pré-condição de origem. Mas não se atribua à brasileira
uma vocação inata para a venda do corpo. Na França do século XIX, o estigma
também era menor, abrindo espaço para a livre vontade, que impera na
Alemanha atual, onde tanto a prostituição como a intermediação são
legalizadas.
Por outro lado, nos Estados Unidos, onde o estigma é forte (em grande
parte, uma tradição histórica), e a prostituição é criminalizada, a livre vontade
também é comum.
Como produto de exportação brasileiro e de atração de turistas sexuais, a
prostituição é recente. Antiga é a visão estrangeira do Brasil como paraíso do
sexo fácil, não necessariamente pago. Assim, o selo “brasileira puta”, atual na
Espanha, Portugal e alhures, não corresponde a uma tradição histórica aos
olhos do mundo e não haveria por que corresponder, pois não foi no país a
prostituição especialmente mais difundida que no resto do mundo. Já o selo
“brasileira dadivosa”, sim, é histórico, mas não necessariamente verdadeiro.
5 Há registro de mulatas trazidas de Portugal nas primeiras viagens após a fundação de Salvador, mas em
número muito reduzido.
8 Diamantina.
Vestidos De Mulher
Não se vai aqui entrar nas questões de nomenclatura politicamente correta
para transexuais, transgêneros, hermafroditas, andróginos e a ns. Interessa,
para ns da tradição autodepreciativa, enfocar os conhecidos travestis
brasileiros, que seriam cinco mil apenas na Europa, segundo estimativa do
Grupo Gay da Bahia (GGB), de 2003. No vocábulo “travesti” cabem os
homens que se vestem de mulher e, modernamente, com ajuda de hormônios,
silicone e outros artifícios, ganham formas femininas, mantendo da
masculinidade apenas o pênis e os testículos.
O travesti não deveria fazer parte da tradição autodepreciativa, cada um faça
de seu corpo o que bem entender, mas a sociedade brasileira em geral tem
preconceito contra tal comportamento, agravado pelo fato, gerado pelo
preconceito, de a maioria dos travestis dedicarem-se ao exercício oneroso do
sexo9.
Nenhuma sociedade, por mais avançada em costumes, gosta de ter suas
cidadãs associadas à prostituição internacional ou ao turismo sexual. É o caso da
Ucrânia no início do século XXI, abalada na autoestima nacional pela alardeada
vocação de suas mulheres à atividade em toda Europa10. O mesmo se aplica aos
homens travestidos. Mesmo ameaçados pela patrulha à homofobia, os
brasileiros dão vazão a queixas autodepreciativas pela emergência do fenômeno.
Se o Brasil ganhou destaque como terra dos travestis11, o fenômeno local é
muito recente. Em 1962, desembarcou no Rio de Janeiro a artista francesa
Coccinelle, travesti que posteriormente mudou de sexo. Causou enorme frisson
na sociedade carioca. A cidade se orgulhava da fama de avançada em questões
comportamentais, pelo menos em relação ao resto do Brasil, e ansiava pelas
novidades europeias. No nal daquela década, inspirados em Coccinelle e em
algumas celebridades locais análogas, os travestis brasileiros já eram numerosos
e começavam a ganhar a Europa, mais liberal, e as ruas das grandes cidades.
Antes, nas décadas de 1930 e 1940, destacara-se Madame Satã ( João Francisco
dos Santos), mas não era a exemplo a ser copiado, processado por 29 crimes,
incluindo três homicídios.
Enquanto artistas, os travestis, como Rogéria, que nunca pretendeu mudar
de sexo por cirurgia, foram e são respeitados e admirados. O mesmo se deu na
Europa por séculos, no teatro, na ópera, no cabaré. A pro ssão do travesti, por
de nição, era o palco. Mas o fenômeno só encontrou ressonância no Brasil no
século XX, não antes.
No século XIX, há registros policiais, relativamente poucos, envolvendo
homens vestidos de mulher. No Rio de Janeiro, em 1875, foi preso o pardo João,
que se apresentava como Rosalina para arrumar emprego de mucama em casas
de família ou de cozinheira nas obras de uma estrada de ferro. João a rmou à
polícia que se considerava uma mulher, tinha gosto em se vestir como tal desde
menino. Para aparentar seios, usava uma almofada de algodão.
A notícia da prisão de João foi dada com alarde pelo Diário do Rio de Janeiro.
Na matéria, embora não houvesse evidências nesse sentido, o jornal especula a
ligação do travesti à bandidagem local. Para ser libertado, livrando-se das
acusações e especulações, João aceitou declarar-se homem e passar a se
comportar e vestir como tal.
Na Bahia, o “vadio” conhecido como Yayá Mariquinhas foi preso na mesma
época. Diferentemente de João, Yayá expunha-se nas ruas em seus trajes
femininos e não tinha pro ssão de nida, daí a polícia tê-lo classi cado como
“vadio”. Não ca claro se o travesti baiano prostituía-se, mas se o fazia era sem
alarde ou as autoridades e os jornais certamente o teriam anotado.
É em Salvador que se registram mais casos de travestismo no século XIX,
nenhum deles explicitamente ligado às artes, pois tal tradição não existia no
Brasil, ou à prostituição. Parecem ocorrências isoladas, tendo em comum o fato
de, em todas elas, os travestis apresentarem-se efeminados, ou seja, não há
relação com os atuais blocos de carnaval compostos por homens de
masculinidade bem marcada que num dia do ano vestem-se de mulher a título
de brincadeira ou fantasia.
Poder-se-ia aqui relatar referências históricas de travestismo masculino e até
mesmo feminino em todo globo. Em comunidades primitivas, elas abundam,
mas também existem nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha, na França, na
Itália, na Colômbia e no Peru. Basta dizer, contudo, serem mais expressivas do
que as correspondentes brasileiras.
Se o grande número de travestis brasileiros dedicados à prostituição, na pátria
de nascimento ou na Europa, incomoda espíritos mais moralistas, o caso de
Camille Cabral, médica12, ativista, eleita vereadora em Paris, que, como
Rogéria, nunca desejou a cirurgia de mudança de sexo, deve ser motivo de
orgulho aos brasileiros. Nascida na Paraíba, Camille teve sucesso na carreira
como médica e principalmente como coordenadora de uma ONG que presta
assistência aos pro ssionais do sexo da capital francesa, dos quais cerca de 10%
são travestis brasileiros, segundo ela própria estima.
Muita coisa tem mudado na aceitação do travestismo e da transexualidade
pelos brasileiros no século XXI. Também a prostituição tende a ser aceita como
uma pro ssão digna quando de livre escolha. Mas esta obra não seria honesta se
não registrasse, sem endossar, evidentemente, a associação entre o enorme
incremento do travestismo entre os brasileiros e a tradição autodepreciativa
recente.
9 Definição de José Saramago.
11 Embora os travestis nascidos homens pre ram o artigo feminino, “as travestis”, opta-se aqui pelo
artigo masculino por questões de clareza. “Travesti” é substantivo de dois gêneros, pois abarca também o
travestismo feminino, a mulher que se faz passar por homem.
12 Neste caso, por ter Camille o nome feminino consagrado pelo uso, além de devidamente registrado,
opta-se pelo artigo feminino.
15 Nas fotos das capas, Luiza Brunet é a única que se assemelha ao padrão da “mulata”.
Dos Olhos Claros De Cristal
Jorge Amado, com Gabriela, “cor de canela”, emprestou à mulher mestiça
não apenas o dom da beleza suprema, como a inocência que encanta o
imaginário masculino, tão erótico quanto sentimental, romântico. João de
Barro, o Braguinha, compositor ainda mais consagrado que Lamartine Babo,
compôs em 1948 A mulata é a tal, música na qual já ressaltava a graça da “cor
de canela” e os “quadris” inigualáveis, por isso “branca é branca, preta é preta,
mas a mulata é a tal”.
O mesmo Braguinha, antes, em 1934, fez mais sucesso com Linda lourinha,
presente o cantadíssimo verso: dos olhos claros de cristal. Nela rea rma o
estereótipo do amor mais quente do que o sol ardente deste meu país. Trópicos
calientes é uma ideia antiga, juntamente com o latin lover, o correspondente
masculino moreno à fama da mulata, de grande apelo junto às mulheres
nórdicas, especialmente entre alemãs.
Por falar em alemãs, nada espantou tanto os militares brasileiros
encarregados de abrasileirar Blumenau nas décadas de 1930 e 1940 quanto a
desenvoltura das teuto-brasileiras. Era comum saírem de casa
desacompanhadas, consumirem cerveja em lugares públicos e praticarem
ginástica e outros esportes com homens em clubes.
O então tenente do Exército (depois general) Rui Alencar Nogueira,
cearense, declarou seu espanto em livro publicado em 1947 com a facilidade
com que descendentes de alemães divorciavam-se e assumiam a relação com a
nova esposa, entre outros hábitos afetivos, sexuais e de gênero que considerou
indecentes, inaceitáveis.
Na mesma época, os descendentes dos brasileiros do início do século XIX,
ou seja, lusos, ameríndios e africanos, com as devidas miscigenações, estavam,
via de regra, sob um regime moral bem mais rígido. A maioria da população era
rural, as lhas das famílias eram vigiadas de perto, pobres ou ricas, brancas,
pardas ou negras. Se alguém de orasse uma moça e não se dispusesse a casar,
era caso de briga séria, até de morte. O divórcio era uma impossibilidade.
A história da mulher branca no Brasil inicia-se como raridade estatística do
século XVI, segue com a estrita vigilância nos dois séculos seguintes, embora a
moralidade em palavras, gestos e vestimentas não fosse tão castradora, e
enfrenta todo peso do machismo e de uma exacerbação do moralismo entre o
século XIX e a primeira metade do século XX. Mas tudo isso se aplica à lusa, à
espanhola, em parte à italiana, não à alemã, muito menos às milhares de
prostitutas do leste europeu que imigraram, voluntariamente ou
involuntariamente, desde meados do século XIX. Assim, o Brasil descobre a
independência feminina, necessariamente associada a um papel sexual mais
ativo, com mulheres que são o oposto do clichê das mulatas, e
predominantemente no Sul subtropical, não nos trópicos ardentes. A “lourinha”
de João de Barro, fetiche do homem brasileiro, terá tão ou mais apelo que a “cor
de canela”. E, à parte o problema do acesso por diferença de classe social, será a
nova branca mais acessível que a velha mulata.
Serão Europa e Estados Unidos, nos anos 1950 e 1960, quem irão
in uenciar tanto a independência feminina quanto a revolução sexual no Brasil.
Até então, o brasileiro não era um povo lascivo, mas pudico, com taxas de
ilegitimidade nos nascimentos decrescentes. Muita coisa se fazia escondida?
Sim, claro, mas isso é universal, não uma característica brasileira. Somente a
ignorância nacional, que pouco lê romances estrangeiros e desconhece a
história da vida privada da Europa e outras paragens pode imaginar um Brasil
devasso em oposição a um mundo vitoriano mesmo antes da rainha Vitória.
A sensualidade exacerbada do brasileiro é um mito, como se verá a seguir.
² O ano de fundação de Laguna não tem comprovação histórica. Alguns historiadores apontam como
ano provável 1684 ou ainda mais tarde. Indiferente às polêmicas, Laguna comemorou o tricentenário em
1976.
4 Coimbra era praticamente a única universidade de todo Reino. Existiu, de 1559 a 1759, a Universidade
Jesuítica de Évora, voltada para estudos de Teologia, que, porém, teve poucos estudantes brasileiros. As
universidades de Lisboa e do Porto são do século XX.
Porém, o estudo etnológico desenvolvido por Veríssimo chegava a uma conclusão pouco amável em
relação ao caráter do brasileiro: nossa formação racial aliada a condicionantes geográ cos e histórico-sociais
nos zera destituídos de vontade, indiferentes à transformação produtiva da natureza, à participação na vida
política do país. Nossa unidade de raça seria o resultado de uma fusão pouco afortunada: duas selvagens
[africana e indígena] – alheadas, portanto, do diligente espírito civilizado – e outra [portuguesa] num
momento em que declinava moralmente após seu brilhante auge.
A feição dominante do caráter desta gente [o brasileiro mestiço] é uma falta completa, absoluta, de
energia e de ação.
Em toda prática humana, individual ou coletiva, a avaliação é um processo que acompanha o desenrolar
de uma atividade, corrigindo-lhe os rumos e adequando os meios aos ns. Na escola brasileira isso não é
considerado. Espera-se um ano inteiro para se perceber que tudo estava errado. (...) E mais: em lugar de
corrigir os erros, repete-se tudo novamente: a mesma escola, o mesmo aluno, o mesmo professor, os mesmos
métodos, o mesmo conteúdo...
Mas, no momento de identi car a razão do não aprendizado, apenas um elemento é destacado: o aluno.
Só ele é considerado culpado, porque só ele é diretamente punido com a reprovação. Como se tudo,
absolutamente tudo, dependesse apenas dele, de seu esforço, de sua inteligência, de sua vontade. Para que,
então, serve a escola?
6 Os Estados Unidos, no PISA 2009, caram com a 17ª colocação, motivando sérias preocupações e
debates na imprensa e na política americanas. O Brasil cou em 53º, após ter melhorado muito em relação à
avaliação anterior, motivando comemorações das autoridades locais da área de educação. O teste foi aplicado
naquele ano em 65 países. A Argentina, cujos sucessivos governos populistas têm se empenhado em destruir
o futuro do país, obteve o 58º posto. O líder foi a China, seguida da Coreia do Sul e Finlândia.
O Fracasso Produtivo
Dom João VI, em 1810, resolve criar o Estabelecimento Montanístico de
Extração de Ferro das Minas de Sorocaba e, em seguida, no mesmo local, a
Real Fábrica de Ferro de São João do Ipanema. Havia classes de minas e
metalurgia em Coimbra desde 1771, dentro do curso de Filoso a, mas, pela
opção feita pelo rei de chamar diretores e operários nórdicos para o
empreendimento, é razoável supor que ainda não se formara ninguém
competente para essas funções na vetusta universidade lusitana.
Para administrar a mina e a fábrica, veio o sueco Karl Gustav Hedberg,
acompanhado de 13 homens de mesma nacionalidade. Para scalizá-lo,
compondo uma junta, nomeou-se o engenheiro alemão Frederik Ludwig
Wilhelm Varnhagen (pai de Varnhagen historiador, Visconde de Porto Seguro),
que antes dirigira a fábrica de ferro Figueiró dos Vinhos, na Estremadura. Sobre
Hedberg, José Bonifácio de Andrada e Silva diria anos depois: “Acusam-no de
muito desleixo e várias prevaricações, mas se não lhe dessem carta branca para
fazer tudo o que lhe vem à cabeça e estivesse debaixo da inspeção de um
superior inteligente poderia ter sido de proveito. Mas como poderia scalizá-lo e
dirigi-lo uma junta composta de homens leigos pela maior parte, alguns deles
sem caráter?”.
O contrato com Hedberg era de 10 anos e oferecia o dobro do salário de um
tenente-coronel, além de pensão de 2/5 após o término do prazo. Pouco mais
que um charlatão7, às turras com Varnhagen, o sueco foi embora na metade do
tempo previsto, em 1815, sem conseguir fazer funcionar a fábrica.
Na mesma época, outro alemão, Ludwig Wilhelm von Eschwege, foi
encarregado da fábrica de ferro do Prata, em Congonhas do Campo. Em 1820,
nalmente funciona o alto forno de Ipanema, proeza de outro sueco, Lars
Hultgren. Varnhagen é o diretor, com direito a salário anual total de 1 conto e
912 mil réis, mais que o dobro da remuneração do luso ocupante do posto de
Intendente Geral das Minas e Metais do Reino.
Todo reforço estrangeiro especializado não garantia competitividade. O
melhor ferro sueco chegava ao porto do Rio custando 2$000 a arroba. Ipanema
vendia um similar inferior por 1$600, mas só de carvão (vegetal) gastava o
equivalente a 2$460. Dava prejuízo, porém não mais que a fábrica de
Congonhas, onde o ferro de má qualidade tinha preço de custo orçado em
6$450.
Na década seguinte, o governo atribui a baixa produtividade de Ipanema aos
culpados de sempre: os ignorantes, improdutivos e incorrigíveis brasileiros,
encarregados das funções subalternas na siderúrgica. Em 1837, o regente Feijó
manda recrutar na Europa 56 novos empregados. Vindos com família,
totalizaram uma caravana de 227 pessoas.
Como Ipanema seguisse de citária, nalmente, em 1860, o capitão
engenheiro Joaquim de Sousa Mursa é matriculado da Academia de Minas de
Freiberg, Alemanha. Voltou em 1865, assumindo a direção da siderúrgica.
A produção melhorou e a guerra contra o Paraguai começou. O ferro foi
transformado em armas, muitas delas, Mursa saudado como salvador da pátria.
Acabado o con ito, o prejuízo voltou e, em 1895, Ipanema foi fechada. Tempos
depois se descobriu a causa de tantos insucessos: o teor de óxido de titânio no
minério de ferro retirado do morro de Ipanema era alto demais, di cultando a
formação da liga. Nunca daria certo. A luta do Brasil pela instalação de uma
indústria de base fora em vão e cara, pois teve que importar conhecimento na
forma de mão de obra estrangeira, o que segue em curso devido às de ciências
educacionais, que vão da base ao topo do capital humano nacional.
Nas décadas de 1960 e 1970, a experiência com Joaquim Mursa de um século
antes voltou a ser repetida, dessa vez múltipla. O governo federal pagou pós-
graduações para brasileiros pelo mundo, especialmente nas áreas de exploração
de petróleo, pesquisas agropecuárias e designe de aviões. Não por acaso, tempos
depois o país passou a dominar tecnologias de ponta nas três áreas. No caso da
aviação, o Instituto Tecnológico de Aeronáutica — ITA, que começou a se
formar em 1939, com o Curso de Engenharia Aeronáutica, atuou como
multiplicador de conhecimentos e formação de pro ssionais locais. É a joia da
coroa de uma tradição iniciada ainda no governo de Dom João VI com as
escolas militares de engenharia.
Na agricultura, esteio do país desde sempre, foi Dom Pedro II quem criou o
primeiro curso superior da área, implantado a partir de 1876 na vila de São
Francisco do Conde, na Bahia, providência logo levada a outras províncias. No
nal do século XIX, por iniciativa privada do bem sucedido agricultor e
industrial Luiz Vicente de Sousa Queiroz, que estudara agronomia na França e
na Suíça, após muita briga com o Estado de São Paulo, passou a funcionar a
Escola Prática Agrícola de Piracicaba, depois Escola Superior de Agricultura
Luiz de Queiroz — ESALQ, ainda em pleno funcionamento e referência em
ciências agrárias.
Porém, antes da ESALQ a agricultura nacional sofreu com a falta de
racionalidade, método e gente estudada. Fazendeiros ingleses, em 1842, já
cultivavam cana com métodos importados de Cuba e da Louisiana e arados que
faziam o trabalho de até 40 escravos, além da prática da adubação verde. Na
Bahia e em Pernambuco, na década de 1870, o uso de arado era raro, a
adubação inexistente e a produtividade dos banguês, tecnologia do século XV, e
engenhos a vapor declinava. O governo imperial resolveu nanciar então os
modernos engenhos centrais, liberando crédito de até 60 mil contos de réis.
Foram instalados 87 engenhos centrais, dos quais só restavam 12 em
funcionamento em 1889. Diversos problemas afetaram a iniciativa, um dos
maiores, como era de se esperar, foi a falta de mão de obra especializada. Muitos
dos que vieram do exterior para assumir a direção dos estabelecimentos eram
charlatães.
Em 1890, surgiram as usinas de açúcar, mas os banguês só viriam
desaparecer depois de 1950.
Pouco se fez ao longo da história nacional pelo ensino técnico e científico. O
ensino superior, raquítico até os anos 1960, era (ainda é) quase todo voltado a
humanidades (Direito, Filosofia, Letras) e Medicina. O ensino médio por muito
tempo cou restrito aos cursos de Letras e Normais, voltados à formação, no
mais das vezes precária e insuficiente, de professores.
O ensino técnico ligado diretamente à indústria somente surgiria em 19428,
por iniciativa de Roberto Simonsen e Euvaldo Lodi, respectivamente
presidentes da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo — FIESP e
Confederação Nacional da Indústria — CNI. Estava criado o Serviço Nacional
de Aprendizagem Industrial — SENAI, desde o início voltado à busca de novos
conhecimentos no exterior, enviando técnicos para serem treinados fora. Até
2010, oferecera mais de 52 milhões de matrículas, com bons resultados. Não
poderiam ser melhores em função da péssima formação de base dos treinandos,
a maioria deles oriunda de escolas públicas.
E assim se chegou à realidade atual, com baixa produtividade decorrente das
históricas e sistemáticas falhas do ensino básico. No ensino superior, a trajetória
não foi mais auspiciosa, como se verá a seguir. Desde 1810, o país importa o que
não produz, ou produz pouco: gente instruída.
7 No início do século XIX, os suecos tinham fama de espertalhões na Europa. Se Hedberg apenas
correspondeu à reputação pátria ou de fato era desonesto é questão de difícil esclarecimento.
8 Há quem considere, e ponderou-se incluir aqui nesta categoria, os liceus de artes e ofícios (Rio de
Janeiro, 1856, Salvador, 1872, São Paulo, 1873) como ensino técnico industrial. De fato, na construção civil,
as aulas dadas nos liceus tiveram alguma importância, assim como houve serralheiros e carpinteiros formados
no liceu paulista e aproveitados na indústria local, porém a ênfase nas artes e no artesanato marca a atuação
dessas instituições. Não se trata de desmerecer o trabalho dos liceus, louvável sob todos os aspectos. Trata-se
apenas de demonstrar que o impacto dos liceus na formação de operários e mestres de indústria não foi tão
expressivo. De qualquer forma, fica o registro.
Burocrática e Elitista
No ano de início do processo de separação Brasil-Portugal, 1822, existiam 26
universidades na América hispânica. No Brasil, nenhuma. A primeira a ter
continuidade surgiria quase 100 anos depois, a Universidade do Rio de Janeiro,
em 1920. A comparação, porém, é enganosa. O Brasil esteve representado em
Coimbra durante todo período colonial e seria um brasileiro, Francisco de
Lemos de Faria Pereira Coutinho, quem estaria à frente da modernização
daquela universidade a partir de 1772, sendo dela reitor por longos períodos até
1821.
Cursos superiores já funcionavam no Brasil desde pelo menos 1671, quando
a Câmara da Bahia tentou equiparar o colégio jesuíta local ao de Évora, pois a
formação era semelhante. As primeiras escolas de nível superior do Reino fora
de Coimbra seriam todas criadas no Brasil. Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco
e Vila Rica passaram a sediar cadeiras de economia, medicina e engenharia,
entre outras, entre 1808 e 1821. Até Paracatu, no noroeste de Minas, teve sua
escola superior de filosofia e retórica instalada nesse período.
Não se fará aqui uma extensa catalogação da história do ensino superior no
Brasil. Basta assinalar que na tradição autodepreciativa há críticas contra o
bacharelismo, o foco em humanidades com abandono dos cursos técnicos e da
formação em ciências físicas e naturais, o elitismo, pelo pouco acesso percentual
de jovens às universidades, a burocracia e a ideologização esquerdista nessa área.
Algumas dessas críticas correspondem aos fatos históricos, outras devem ser
relativizadas, mas, desde a criação do Império do Brasil, há poucas exceções a
essas mazelas. Pode-se a rmar, sem estar longe da verdade média, que os
autodepreciadores têm razão em tachar o ensino superior brasileiro como legado
de todos esses vícios e outros, portanto ine ciente e pouco contributivo à
riqueza nacional. Mas não é tanto um problema de herança portuguesa.
Pereira Coutinho, sob as ordens inicialmente do Marquês de Pombal,
implantou diversas disciplinas técnicas-cientí cas e matemáticas em Coimbra
na mesma época em que se valorizavam tais conhecimentos na Europa.
Portugal, se não tinha o melhor ensino superior do velho continente, não fazia
feio, e a elite brasileira ali formada não pecava por falta de erudição e espírito
cientí co no nal do período colonial em comparação com as elites das demais
paragens do Ocidente. Faltava-lhe a formação técnica-industrial, como se viu
no exemplo da mina de Ipanema, mas a ignorância não era endêmica entre a
nobreza da terra.
A tragédia de erros na condução da formação superior no Brasil começou
com a autogestão, com a separação iniciada em 1822. A Universidade de São
Paulo, criada em 1934, seria a primeira a se preocupar com o desenvolvimento
da pesquisa e com a quebra do paradigma dos departamentos estanques,
isolados. Destacar-se-ia como a melhor universidade brasileira nas décadas
seguintes, apesar de carregar consigo os muitos defeitos da tradição de ensino
superior brasileira, como a burocracia excessiva. Esperava-se dela o rompimento
com a tradição bacharelesca, objetivo atendido apenas parcialmente.
Raul Leitão da Cunha, reitor da Universidade do Brasil — UB, do Rio de
Janeiro, e ministro da educação no nal de 1945 (sucedendo Gustavo
Capanema, ministro durante todo Estado Novo), resumia a experiência até ali
como desastrosa, especialmente pela subordinação do ensino às normas
vigentes nas repartições burocráticas.
A primeira instituição a romper os maus hábitos foi o ITA em 1947. Acabou
com a cátedra vitalícia, com a estabilidade dos professores no emprego, deu
autonomia à comunidade acadêmica para de nir as contratações e estruturou a
carreira em quatro níveis, exigindo pós-graduação já para o primeiro desses
níveis, uma grande novidade à época. Alunos e professores passaram a residir no
campus e a dedicar-se com exclusividade ao ensino e à pesquisa.
Na década seguinte, ao invés de seguir o exemplo do Instituto, vinculado ao
Ministério da Aeronáutica, o governo federal optou pelo populismo e foi
criando universidades federais sem enfrentar a corporação catedrática,
interessada em manter e ampliar seus privilégios, não no ensino.
Em compensação, os militares fundaram o Centro Nacional de Pesquisas —
CNPQ em 1951, inicialmente com foco em energia nuclear, depois ampliado
para outras áreas. O CNPq seria fundamental no apoio à formação de cientistas.
Outra instituição criada no mesmo ano, por Anísio Teixeira, a Campanha de
Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (atual CAPES), também atuaria
no mesmo sentido, fortalecendo o intercâmbio com universidades e
pesquisadores do exterior.
Fundada em 1962 por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, no governo de João
Goulart, a Universidade de Brasília — UnB investiu pesados recursos na
contratação de um corpo docente de reconhecida qualidade, do ponto de vista
da ideologia esquerdista-nacionalista dos dois pensadores, é claro. Inovava com
a autonomia administrativa e a introdução de uma base curricular comum a
todos os cursos, a ser vencida nos primeiros dois anos de graduação. A UnB
tornou-se um polo ideológico, com governo exercido por órgãos colegiados,
onde havia expressiva participação dos estudantes, experiência interrompida pela
mudança de regime, em 1964, e retomada em meados dos anos 1980. Data do
período de implantação da UnB a ampla in uência da União Nacional dos
Estudantes — UNE nos debates sobre os rumos da universidade. Num
seminário realizado em Curitiba, a entidade propôs o m do “tecnicismo
pragmático”, preconizando um “humanismo total”. Ou seja, o que já era ruim, a
ênfase demasiada em ciências humanas, deveria piorar. Quando diziam
“humanismo total” queriam dizer doutrinação rousseauniana-leninista-
gramscista. Infelizmente, conseguiram impregnar o meio universitário com tais
propostas, sob o argumento de que cursos pro ssionalizantes servem ao sistema
capitalista. A turma que deseja anular qualquer formação útil na universidade
brasileira segue ativa, tendo sua in uência durante o período militar apenas
atenuada, não erradicada.
Os militares tratariam de popularizar o ensino superior, antes destinado a
cerca de 1% da população de 18 a 24 anos. Entre 1968 e 1974, as matrículas
passaram de 278 mil para 897 mil. De lá para cá, não parariam de crescer. Em
1995, o ministro Paulo Renato de Souza criou o Exame Nacional de Cursos
Superiores, o “Provão”, apesar da forte resistência corporativa dos professores e
estudantes da rede pública. O Exame revelou a péssima qualidade da maioria
dos cursos oferecidos. Fábricas de diplomas sem avaliação de mérito, repletas de
conivências corporativistas e burocracia inútil, as universidades brasileiras, com
poucas exceções, eram um desastre.
Em 2011, as matrículas no ensino superior chegaram a 6,5 milhões. A
qualidade dessa formação em massa segue baixa, em parte pela formação
de ciente no ensino médio, em parte pelas de ciências das próprias instituições
superiores, contudo ocorreram alguns avanços, sobretudo pela introdução das
avaliações. O ensino superior brasileiro está muito aquém do desenvolvimento
econômico nacional e do lugar do país no mundo. A tradição autodepreciativa,
nesse ponto, é justa, tanto faz se levando em conta apenas o presente ou todo o
passado.
Os Camponeses Desconfiam Do
Letramento
Saber algo implica em algum grau de amargura. Os intelectuais são tristes.
Os camponeses analfabetos são felizes. Perdida a inocência, porém, não há
como voltar atrás, não dá para se despir da intelectualidade, está-se condenado à
danação eterna. Os que, nestes tempos, empreendem viagens ao Oriente em
busca de técnicas budistas de “desligar a mente” fracassam miseravelmente ao
final.
Os camponeses pobres da Europa dos séculos XVIII e XIX intuíam o
problema. Não poucos resistiram à ordem de deixar seus lhos frequentar uma
escola. Muitos intelectuais europeus da mesma época concordavam: seria uma
pena tirar o povo de sua “feliz ignorância”. Para que, a nal, se a função deles era
cultivar a terra? Para isso, as letras seriam inúteis. O estudo por parte da canaille,
ademais, poderia ser subversivo.
O Ocidente assistia à decadência da velha nobreza patrimonialista,
suplantada pela igualitária ideologia capitalista, fundada, entre outros, em John
Locke, precursor da democracia moderna, defensor da propriedade privada. O
século XVIII será o “século das luzes”, que deveriam ser espalhadas. Para todos?
Eis uma questão a dividir os iluministas. Não se tinha certeza, era uma grande
dúvida.
A Academia de Berlim, em 1778, promoveu um concurso a respeito,
intitulado “É útil enganar o povo?”. A pergunta era tendenciosa. A Prússia fora
o primeiro estado a universalizar o ensino primário, e na Academia defendia-se
tal iniciativa, daí quali car como “enganar” a ideia contrária, a de manter os
pobres na “feliz ignorância”.
Os acadêmicos berlinenses selecionaram 33 trabalhos no concurso, 20
respondendo “não” a pergunta-desa o, 13 dizendo “sim”, um livro de Voltaire,
por exemplo, só poderia fazer mal a um lavrador. Um ensaio de cada posição
acabou recebendo a premiação maior. O caso ainda não estava decidido, haveria
marchas e contramarchas no Ocidente. Em 1833, em Lorain, na França, um
cronista anotou o pensamento dominante entre os camponeses: ensinar todos a
ler era ruim, pois faltariam braços para a agricultura, poderiam colocar os
camponeses nas fábricas ou virarem vagabundos, como os “advogados de
aldeia”, especialmente odiados.
O pensamento dos camponeses franceses encontrou eco entre pensadores
até o século XX, pelo menos em Portugal, onde o analfabetismo era de 75,1%
em 1911 e ainda de 67,8% em 1930. Segundo Rômulo de Carvalho, eminente
historiador da educação lusa, muitos escritores e dirigentes locais perguntavam-
se na década de 1920 se as letras não levariam à “corrupção do ativismo da raça
e à infelicidade daqueles que as aprendessem”. Antônio de Oliveira Salazar, a
maior autoridade do país a partir de 19289, considerava mais urgente formar
elites, Portugal carecia delas, do que ensinar o povo a ler.
A rigor, nenhum estado antes da Prússia fez valer a obrigatoriedade do
letramento para todos. Na Roma Antiga, assim como na Grécia e entre os
judeus (povo do livro), havia um culto à erudição. Ter livros e saber ler e escrever
eram condições valorizadas. Houve, em Roma e na Grécia, escolas públicas
destinadas às primeiras letras, mas jamais se chegou à universalidade do ensino
nos moldes do que seria implantado a partir do século XVIII na Europa. O
mesmo se aplica ao Japão e à China antigos.
Com a reforma protestante, no século XVI, pregou-se a necessidade da
leitura da Bíblia. As escolas bíblicas10 tiraram milhões do analfabetismo, cujos
índices começaram a cair na metade norte da Europa, a metade que abandonou
o catolicismo. A Contrarreforma não chegaria a incentivar a leitura do livro
sagrado diretamente pelos éis, mas, por meio de suas ordens, especialmente da
Companhia de Jesus, multiplicou as escolas primárias e os colégios na metade
sul e nos domínios católicos ultramarinos. A invenção da imprensa, no século
anterior, colaborou para ambos os intentos, popularizando os livros.
Será apenas em 1717, porém, com Frederico Guilherme I, da Prússia, que se
decretará o ensino compulsório para todos os habitantes, homens e mulheres. A
medida teve efeitos práticos, mas teria que ser reforçada por outro decreto, de
Frederico II, em 1763, determinando ensino obrigatório dos cinco aos 13 anos
de idade, e de nindo o currículo: leitura, aritmética básica, escrita e religião. Nas
escolas urbanas, acresciam-se história, geografia, ciências naturais e francês.
A rainha católica Maria Teresa, da Áustria, copiaria o sistema para seu país
em 1774. Foram povos alemães, portanto, os primeiros a experimentar a
revolução do letramento universal, coincidente, não por acaso, com a revolução
industrial e com a ascensão do capitalismo. A Alemanha, uni cada no século
XIX, viveria períodos de intensa prosperidade e exuberância intelectual e
técnica, todavia, como nem tudo é perfeito, produziria na contramão um Hitler,
alerta de que a educação não é um elixir mágico, não torna o povo imune a
cometer erros históricos.
A ascensão de Hitler, como antes fora a de Stálin, na Rússia, deveu-se em
parte ao rancor contra os intelectuais, contra os letrados de ideias so sticadas,
pelas massas conduzidas por um frenesi contra a diversidade de ideias. Também
na China de Mao Tsé-Tung e no Camboja de Pol Pot, ambos os ditadores
socialistas aproveitar-se-iam da velha descon ança camponesa quanto à
utilidade da educação primária, promovendo campanhas de reeducação dos
professores, eufemismo para a eliminação do ensino fundamental (no Camboja,
também de qualquer outro). Mestres que fossem considerados “intelectuais”
eram submetidos a trabalhos degradantes, humilhados em público ou mortos.
John Locke, um dos mais importantes teóricos do liberalismo econômico, do
capitalismo, se alguém preferir essa palavra tão mal compreendida no Brasil,
pregou a universalização do ensino primário. Outros pensadores da mesma
época caram em dúvida. Hoje, o patrimonialismo elitista, inimigo de primeira
hora do liberalismo, e o totalitarismo socialista são residuais enquanto sistemas
de governo no Ocidente e no Extremo Oriente. O capitalismo venceu, com ele
a ideia de igualdade de oportunidades para todos baseada no acesso universal à
educação. Porém a tentadora proposta de que se pode ser mais feliz sem as letras
ou sem conhecimentos cientí cos persiste. O apelo a um “viver, simplesmente
viver”, sem preocupação com a soma da sabedoria adquirida em milhares de
anos e acumulada justamente pela ferramenta da escrita, está nas entrelinhas de
muitos discursos contemporâneos anticapitalistas.
9 Salazar começou a exercer o poder em Portugal em 1928, na condição primeiramente de ministro da
Fazenda, depois de presidente do Conselho de Ministros, nele permanecendo por 40 anos. Na prática, foi o
principal mandatário luso durante todo esse período.
10 A recente expansão dos cristãos não católicos no Brasil, muitos deles com acesso às escolas bíblicas,
certamente colaborou para o letramento no país, embora a extensão dessa in uência ainda careça de uma
quantificação mais apurada.
12 O modus parisienses, em oposição ao modus italicus, é o modelo escolar vigente até hoje. Pressupõe a
divisão de alunos em classes, a prática de exercícios e mecanismos de incentivo ao trabalho escolar, com
castigos e recompensas. A reforma pombalina é um misto dos dois modelos, híbrido em vigor no Brasil por
longo período. O italicus é baseado em preceptores, grupos de discípulos e estudantes mais adiantados ou
instrutores para ajudar os atrasados ou os novos a acompanhar a classe.
Por todo o tempo que existiu o professor paroquial, foi ele quase sem exceção uma figura exponencial em
numerosas comunidades de nossa diocese. Era um homem polivalente e preparado: professor e educador,
catequista, diretor do culto dominical, regente do coral e organista, orientador e animador da comunidade,
conselheiro do povo, colaborador do clero, pessoa de con ança das autoridades e outras pessoas de
responsabilidade, representante e promotor das entidades socioculturais de inspiração católica de então,
correspondente, articulista dos jornais e revistas. Era sem dúvida a pessoa mais habilitada do lugar e
reconhecida como tal. (...) Geralmente pobre e desprendido, despretensioso, reto, idealista e equidistante de
quaisquer facções partidárias. Era o líder inconteste da comunidade. Nele se concentrava a vida cultural,
religiosa e associativa da época. (...) Por tudo isto, eram guras imprescindíveis no lugar. Tanto isto era assim
que, já não existindo, até hoje não se conseguiu encher convenientemente o vácuo que deixaram, com não
pequeno detrimento da vida comunitária.
14 A Segunda Guerra Mundial foi iniciada em 1º de setembro de 1939 pela invasão do território polonês
pelo exército alemão.
Razões Históricas
A fundação do Brasil precede o debate sobre a conveniência de suprir de
letras a totalidade da população. Apesar disso, houve um esforço grande e
louvável nos dois primeiros séculos nesse sentido. Esforço por vezes estendido
até aos escravos, pois escravos letrados valiam mais.
No século das luzes, o XVIII, o Brasil alinhou-se, por meio de Pombal, e
também de brasileiros, como o bispo Azeredo Coutinho, responsável pela
formação de muitos mestres no seminário de Olinda, à ideia de educar as
massas rurais. Embora circunstâncias práticas tenham tornado esse
alinhamento pouco efetivo nas isoladas comunidades do interior do Brasil,
como nos exemplos de Laguna e Viamão, é inegável o propósito estatal na
profusão das letras.
Assim, não se pode falar de vício de origem para os problemas da educação
brasileira. Onde e quando o Brasil cou para trás? Bem, a história toda dos erros
nas políticas de ensino do Brasil independente não cabe nesta obra, mas é
evidente a simbiose, causa e consequência ao mesmo tempo, pari passu, da
tradição autodepreciativa com a tradição da carência de letras.
O brasileiro era ignorante porque aprendia menos, ou aprendia menos por
que sua ignorância era um vício genético e cultural? Valia a pena insistir no jeca
tatuzinho? Tanto os intelectuais 15 quanto os jecas tatuzinhos tendiam a
responder não à pergunta. Para que insistir em repetidos fracassos? Melhor
jubilar, como fazia o Pedro II, educandário modelo.
O contraste com certas comunidades imigrantes reforçou o traço
autodepreciativo e fatalista: o brasileiro não levava jeito para a coisa. Se alguém
virasse os olhos para a lastimável situação de Portugal na primeira metade do
século XX, talvez emendasse: “Estão vendo? Quem descende dessa ‘raça’, além
de tudo, aqui no Brasil, misturada à bugrada, não pode mesmo querer ser
doutor”.
No ensino universitário, há o problema histórico do bacharelismo, da
burocracia, da centralização em Coimbra, do atraso na criação de universidades
no Brasil emancipado (98 anos de espera), da pregação anticientí ca
esquerdista, avessa a formar pro ssionais para servirem ao “monstro capitalista”,
da insu ciência de vagas no século XIX e nas sete primeiras décadas do século
XX etc. Mas não se nota aqui uma incompatibilidade ideológica.
Desde o século XV, valorizava-se, muito até, a formação de elites intelectuais
no Reino. No Brasil, tanto ou mais nos tempos seguintes. “Doutor”, sinônimo
de rico e poderoso, não por acaso é termo oriundo da academia. O prestígio dos
bacharéis, médicos, advogados, sempre esteve em alta.
Em geral, não se duvidava da capacidade da elite nacional formar-se bem nos
cursos superiores. Não entrava aí o peso da tradição autodepreciativa. Mas
ciência, ciência pura, pesquisa, experimentação, isso sempre foi coisa de maluco.
Sim, pensam isso dos cientistas no mundo todo, mas no Brasil talvez mais, ou,
pelo menos, não se incluíam os cientistas nas rodas dos advogados, dos
médicos, nem dos lósofos. Pior. Quando se incluíam, tratava-se de cidadãos a
usar uma antropometria interpretada para depreciar o tipo nacional mameluco
ou pardo, quali cado como inferior em capacidades cerebrais ao europeu puro.
Mais um motivo para excluir o brasileiro típico da escola.
Outro problema do ensino superior era a inversão do princípio aplicado na
escola fundamental quanto à reprovação ao extremo oposto. Se a bugrada não
aprendia a ler, culpa da bugrada. Mas se o bacharelando é inepto, deixe estar,
meu caro, você é dos nossos, aqui não se reprova ninguém. Ao rigor para com o
menino camponês correspondia o paternalismo leniente para com o jovem
formando, geralmente lho da elite, membro das confrarias que gravitavam em
torno do poder. Fez-se da escola superior pública instrumento de perpetuação da
nobreza patrimonialista, de quem jamais se cobrou resultado algum. Se era
possível dividir Pernambuco entre cavalcantes e cavalgados, preguiçosos eram
muito mais os cavalcantes, que faziam das faculdades meros instrumentos para a
obtenção de diplomas, não de conhecimento, uma coisa não era necessária para
a outra.
Por m, o atraso técnico, a baixa produtividade. O brasileiro trabalha muitas
horas, mas produz muito pouco. Falta-lhe o conhecimento de métodos, faltou-
lhe aprender a trabalhar. ITA e SENAI vieram tarde e não preencheram
sozinhos a lacuna, que é histórica. A Escola de Sagres é lenda, nunca existiu,
assim como ninguém teve a ideia de fazer das minas de Ipanema um lugar para
formar metalúrgicos nacionais. No século seguinte, seriam necessários 82
técnicos e engenheiros norte-americanos para fazer funcionar, com enorme
atraso, a primeira siderúrgica moderna no país, a Companhia Siderúrgica
Nacional — CSN.
Ninguém melhor que Capistrano de Abreu, o mais elegante historiador
brasileiro, para sintetizar o problema:
Um indivíduo podia tentar uma empresa e levá-la a bom êxito; com a sua ausência ou com a sua morte
perdia-se todo o trabalho, até vir outro continuá-lo passados anos para a nal colher o mesmo resultado
efêmero.
Tal identidade, que enfatiza não a memória mas a paisagem e o presente, não reconhece também uma
relação de continuidade com a população indígena do passado. A crença nos encantados, de origem indígena,
é apropriada de forma anônima. Esse imaginário pertence também à identidade do grupo, mas a partir da
relação das entidades encantadas com os ambientes e os lugares, e não com base no reconhecimento de que
esta é uma herança ameríndia.
FIM