Lixo Cenografico Um Olhar para A Cenogra

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LIXO CENOGRÁFICO: UM OLHAR PARA A CENOGRAFIA DA TELENOVELA AVENIDA
BRASIL

Laura Carone Cardieri

Profa. Dra. Maria Cristina Palma Mungioli

Disciplina: Narrativas Televisuais e Identidades

RESUMO

O artigo investiga a ambientação cenográfica do lixão, um dos cenários da telenovela Avenida Brasil, no ar pela
Rede Globo de Televisão desde 3/3/2012, transmitida no horário das 21h00. Foram aplicados de conceitos de
Michel de Certeau e Mikhail Bakhtin como tática, estratégia, políticas de reuso, carnavalização e cultura popular.
Traça-se um panorama dos espaços cenográficos com base nos perfis dos personagens e da narrativa, bem
como as relações entre espaço ficcional e real.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo refere-se à ambientação cenográfica do lixão da telenovela Avenida Brasil. As cenas
que se passam no lixão apresentam um recorte da vida no local tanto no aspecto documental – o lixão real, o
aterro sanitário do Jardim Gramacho – como ficcional: a casa de mãe Lucinda e seu entorno, a casa de Nilo, o
trabalho dos catadores e de suas crianças. Este eixo apresenta duas imagens da pobreza e
subdesenvolvimento, a primeira real e crua, a segunda carnavalizada, alegórica.

A telenovela se vale desse recurso, a apropriação da realidade, para gerar verossimilhança. Trabalha
em dois níveis constitutivos, mesclando elementos melodramáticos e realistas, constituídos pela estrutura do
cotidiano, em que os elementos da realidade se constroem como representação do cotidiano vivido (Motter,
2001)

O objetivo é discutir aspectos dessa visão alegórica, com o intuito de compreender o espaço através
desta lente, deste filtro. Para tal, foi utilizado o conceito de carnavalesco de Mikhail Bakhtin, e a visão de Michel
De Certeau sobre reuso e táticas do oprimido.

O fechamento do aterro sanitário de jardim Gramacho foi um dos assuntos da semana em que este
trabalho foi escrito. Este fato reforça a pertinência de se discutir o tema, já que a telenovela, segundo Motter,
incorpora elementos da realidade que lhe garantem manutenção de intenso diálogo com o cotidiano social
concreto do país.(Motter, 2001)
  2 
A abordagem é a linguagem da cenografia, o entorno cenográfico que cria um elo entre ficção e
realidade, inserindo o espectador no universo da telenovela através de elementos visuais.

“O estrato realista, essa base que sustenta a vida cotidiana da personagem, constitui-se numa, pois,
potente fonte de identificação, num elo entre personagem – telespectador, entre ficção e realidade.
Boa parte desse trabalho está a cargo da cenografia (com seu entorno, produção,etc) de televisão,
de teledramaturgia, ou melhor, de telenovela. Quando a esse estrato realista se junta uma produção
que também persegue o real, tematiza questões sociais candentes, obtém a integração que facilita
sua inserção na realidade concreta e tende a ganhar total adesão do público, não só telespectador,
mas envolve também os que não fazem parte da audiência medida e, mesmo assim, participam
indiretamente e acabam formando opinião.” (p.167)

A investigação dos espaços cenográficos e reais tem como base a ideia de tática de Michel de Certeau.
Esse pensamento coloca o oprimido como agente do seu cotidiano através do uso e reuso de elementos
impostos pela superestrutura, no caso, a organização do lixão. A metodologia adotada busca apresentar tipos
de operações (De Certeau, 2007) utilizadas pelos habitantes do lixão, com enfoque na personagem Mãe
Lucinda, interpretada pela atriz Vera Holtz. Estes tipos de operações criam maneiras de utilizar a ordem imposta
pelo lugar, sem sair do lugar onde tem que viver e que lhe impõe uma lei, (p. 100). Ao incorporar elementos de
sua própria cultura, instaura pluralidade. Investiga-se aqui a intermediação, os meios em que isso se dá através
do espaço da cena.

2. GRAMACHO: INSPIRAÇÃO E REALIDADE

Localizado no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, às margens da Baía de Guanabara,


o aterro sanitário de Gramacho recebia o lixo de 80% da cidade do Rio de Janeiro e de mais 5 municípios. Eram
despejados diariamente 8 toneladas de lixo, contando com o trabalho de aproximadamente 1.600 catadores.
Ocupava uma área de 1,3 milhão de metros quadrados: o maior aterro sanitário da América Latina. No início de
junho de 2012, foi oficialmente fechado. O local abrigará uma indústria de biogás, já em construção, e os
catadores receberão uma indenizacão em torno de 13 mil reais.

A equipe de reportagem do programa Profissão Repórter acompanhou o último mês de funcionamento


do aterro. Retrataram o cotidiano de alguns catadores, o trabalho no lixo e suas moradias, e a forma de
empregar o dinheiro recebido na indenização. Uma das famílias era a de Carol, uma garota por volta de 8 anos.
Ela se apresenta andando descalça num lixão clandestino, ao lado de Gramacho, com a esperança de encontrar
um chinelinho. Já em sua casa, um barraco de madeira na favela, mostra os brinquedos que catou no lixo:
bonecas, brinquedos e elementos que compõe um universo lúdico. Revela também uma casa de bonecas, onde
ela vive sua fantasia de menina: tem cama, televisão, lustre, cortina. Cenografia de uma vida, alegoria?
Estratégia: família de catadores vive no lixão em condições sub humanas. Tática: Carol cria seu universo lúdico a
partir do lixão. Esse tipo de operação é o objeto de estudo aqui.
  3 
O figurino de uma das catadoras é também representativo dessa dinâmica. Por fatores de segurança,
utiliza-se um “meião”, botas, luvas, gorro e um avental de identificação, às vezes para definir o tipo de material a
ser catado, ou empresa de reciclagem. Como uma necessidade humana de expressão e identidade, a catadora
personaliza seu figurino, usando cores nas meias e gorro, uma bolsinha tipo pochete, um lenço no pescoço. No
dia da festa de fechamento oficial do aterro, ela enterra o figurino no chão que garantiu seu sustento por 20
anos: ritual de morte ou de nascimento? Para Bakhtin, não há separação entre os aspectos cósmicos e
corporais. O chão é o baixo, a terra e sua capacidade de absorção: ao mesmo tempo túmulo e ventre materno.

Um catador guardou pedaços do solo, fragmentos de terra e areia, como um tesouro, escondido
embaixo de uma pilha de objetos pessoais. Mais um significado do que este solo é para os catadores. No final da
reportagem, ele aparece beijando esses fragmentos, imagem que pode ser grotesca já que é sabido que a
composição desse chão é lixo, são detritos e há o risco de contaminação. Em seu discurso, fala do seu amor a
este solo, de onde tirou o sustento da família por mais de 20 anos.

3. LIXO EXTRAORDINÁRIO

Gramacho foi pano de fundo do documentário “Lixo Extraordinário” (Brasil, 2010), sobre o trabalho do
artista plástico Vik Muniz. O artista, reconhecido e aclamado internacionalmente por seu trabalho com materiais
inusitados e foco em inclusão social, passou 2 anos trabalhando com catadores.

O objetivo inicial era criar quadros a partir de retratos dos catadores. Quadros feitos de lixo, por
pessoas que trabalham e vivem do e no lixo. E que este processo gerasse dinheiro para esses catadores através
da venda das obras.

Novamente o aspecto que interessa aqui é o carnavalesco e o tipo de operação. Os quadros são
imagens carregadas de dramaticidade, tanto pela forma captada no retrato como no processo de fabricação
utilizado. O resultado visual relaciona-se com a cenografia apresentada na telenovela Avenida Brasil, mais
precisamente na casa de Mãe Lucinda.

4. OPERAÇÕES DE REUSO

Pode-se relacionar o uso do lixo como matéria, no caso de Vik Muniz, com o tipo de operação realizada
pela garota Carol, que fez sua casa de bonecas a partir de brinquedos catados, gerando também uma espécie
de cenografia. Esses procedimentos de mediação podem ser as bases da linguagem cenográfica da telenovela
Avenida Brasil, nas cenas do lixão. De Certeau oferece uma visão dessas maneiras de recriar e da liberdade
criativa a partir de uma matriz “sem valor”:
  4 
Essas “trilhas” continuam heterogêneas aos sistemas onde se infiltram e onde esboçam as astúcias
de interesses e de desejos diferentes. Elas circulam, vão e vêm, saem da linha e derivam num relevo
imposto, ondulações espumantes de um mar que se insinua entre os rochedos e os dédalos de uma
ordem estabelecida. (p. 97)

De Certeau sugere que práticas do cotidiano de consumidores – ou aqueles que fazem uso de – são do
tipo tático.

Habitar, circular, falar, ler, ir às compras ou cozinhar, todas essas atividades parecem corresponder
às características das astúcias e das surpresas táticas: gestos hábeis do “fraco” na ordem
estabelecida pelo “forte”, arte de dar golpes no campo do outro, astúcia de caçadores, mobilidades
nas manobras em operações polimórficas, achados alegres, poéticos e bélicos. (p.104)

Conforme Certeau, o colonizado/oprimido lança mão de táticas para sobreviver numa cultura imposta
por alguma organização. No caso do lixão, a organização é a da própria sociedade, e também os hábitos
humanos. A produção de lixo de cada residência, de cada indivíduo, problema e condição inevitáveis e inerentes
à vida contemporânea. Numa esfera maior, a necessidade de trabalho e a condição de pobreza no Brasil geram
esse tipo de atividade, que se configura fundamental para o encaminhamento de resíduos, fazendo do catador
uma figura chave no processo de reciclagem. A questão da sustentabilidade se apresenta cada vez mais como
um caminho sem volta no mundo, que pode ser contornada apenas com a tomada de consciência coletiva.

Os catadores reais e os personagens da telenovela são, no presente estudo, os agentes e


transformadores do espaço do lixão: aqueles que se utilizam das táticas como intermediárias.

Embora sejam relativas às possibilidades oferecidas pelas circunstâncias, essas táticas


desviacionistas não obedecem à lei do lugar. Não se definem por este. Sob este ponto de vista, são
tão localizáveis como as estratégias tecnocráticas (e escriturísticas) que visam criar lugares segundo
modelos abstratos. O que distingue estas daquelas são os tipos de operações nesses espaços que
as estratégias são capazes de produzir, mapear e impor, ao passo que as táticas só podem utilizá-
los, manipular e alterar. (p.92)

5. RENASCIMENTO E CARNAVALIZAÇÃO

Bakhtin (2011), em seu estudo sobre a obra de Rabelais, oferece uma visão de mundo a partir da
cultura popular e seu contexto na idade Média. O que interessa aqui como arcabouço teórico é tanto as imagens
apresentadas por ele, quanto o conteúdo de inclusão social presente durante as festas populares medievais, já
que:

“as formas e símbolos da linguagem carnavalesca são impregnados do lirismo da alternância e da


renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder. Ela
caracteriza-se, principalmente, pela lógica original das coisas ‘ao avesso’, ‘ao contrário’, das
permutações constantes do alto e do baixo (…) A segunda vida, o segundo mundo da cultura
popular constrói-se de certa forma como paródia da vida ordinária, como um ‘mundo ao revés’.”
(p.09)

Essa visão festiva do mundo, em que se vive uma segunda vida, pode ser relacionada com a casa de
mãe Lucinda e o tratamento oferecido por ela às suas crianças. A casa é repleta de materiais não convencionais,
  5 
o que faz vir à tona uma superfície que exala liberdade e criatividade. Quem vive nesse espaço pode então,
experimentar uma nova maneira de viver. No caso das crianças, viver a infância, já que o trabalho no lixo as priva
dessa fase da vida. A cenografia da casa parece buscar, através do espaço ‘carnavalizado’, uma atmosfera de
inclusão e ao mesmo tempo de fuga da dura realidade no lixão.

"ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relacões humanas totalmente diferente,
deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao estado: pareciam ter construído, ao lado do
mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida aos quais os homens da Idade Média
pertenciam em maior ou menor proporção, e nos quais eles viviam em ocasiões determinadas."
(p.06)

Para Bakhtin, o carnaval surge do mundo dos ideais, das esferas superiores do ser humano, e não da
vida doméstica, cotidiana. Por isso traz uma carga tão grande de libertação e utopia.

"o homem tornava a si mesmo e sentia-se um ser humano entre seus semelhantes, O autêntico
humanismo que caracterizava essas relações não era em absoluto fruto da imaginação ou do
pensamento abstrato, mas experimentava-se concretamente nesse contato vivo, material e sensível.
O ideal utópico e o real baseavam-se provisoriamente na percepção carnavalesca do mundo, única
no gênero." (p.05)

Os traços de rebaixamento também estão presentes no carnaval e foram amplamente utilizados para a
investigação dos espaços. O “baixo” é tudo aquilo que aproxima da terra, que corporifica. Não há separação
entre os aspectos cósmicos e corporais, tudo se mistura, é ao mesmo tempo unificado e ambivalente. O alto é
representado pelo céu, e também pelo rosto e cabeça. O baixo é a terra e seu caráter de absorção, ao mesmo
tempo túmulo e ventre, trazendo aqui a ideia de seio materno, local em que há o nascimento, e também a
ressurreição.

O lixão é um tipo de “cemitério” de elementos que já tiveram uso. Já cumpriram sua tarefa no mundo,
sua função. Agora estão no estado de ‘descarte’, expostos ao tempo e sob avaliação dos catadores para serem
selecionados, separados, julgados, analisados. Os s catadores são aqueles que vão novamente trazer vida aos
elementos, fazem a etapa inicial e assim, retomam o ciclo: voltar à vida, para elementos inanimados, é voltar a
ter uso, utilidade em algum contexto.

6. VIVER E MORAR NO LIXÃO

Com os conceitos de Bakhtin e De Certeau estabelecidos como fio condutor, passa-se agora ao estudo
dos espaços apresentados na telenovela. O universo é o da cenografia, do entorno cenográfico como
representação das narrativas dos personagens que vivem no lixão. Sobre cenografia televisiva, Motter (2003)
traz sua visão:

“O cotidiano da telenovela brasileira é constituído a partir de vários elementos associados, dos quais
destacamos a base concreta que o sustenta. Esta base é constituída pelo entorno cenográfico, onde
cada detalhe é tratado de maneira a construir um ambiente que guarde a mais estreita relação de
identidade com os ambientes que nossas referências permitam reconhecer como reais, pesando aí
  6 
detalhes mínimos e, considerando o cotidiano, até o merchandising comercial. Trata-se, pois, de uma
característica das producões da TV Globo, onde arte e técnica fazem um casamento perfeito.”
(p.165)

6.1. CASA DE MÃE LUCINDA

A personagem de Vera Holtz não vê sua vida fora do lixão. Algumas falas de seu discurso indicam de
que ela vive “uma vida fora da vida” (Bakhtin, 2011), em sua casa feita de elementos catados e do trabalho no
lixo. Quando convidada por Jorginho e até por Santiago (seu antigo amor) a sair da vida no lixão, responde: “Eu
mereço, lá é o meu lugar” ou “imagina, filho, meu lugar é aqui com as minhas crianças, o mundo lá fora não é
pra mim não”.

O tom carnavalesco do espaço criado pela cenografia pode conter elementos que revelem e se adequem
ao discurso de Lucinda. Bakhtin considera as formas carnavalescas, na linguagem da literatura, poderosos meios
de interpretação artística da vida (p.181), em que aparecem e podem ser investigadas as camadas mais
profundas da vida. Esse conceito permeia o estudo dos espaços em questão.

Recém abandonada no lixão por Max, Rita se vê obrigada por Nilo a se juntar às crianças catadoras de
lixo. Conduzida pela menina Jéssica, aprende a separar os materiais e guardá-los num saco, sob o olhar severo
de Nilo. Assim que nota crianças brincando felizes em meio ao lixo, o universo poético começa a tomar forma.
Mãe Lucinda surge com uma bandeja de sanduíches, pedindo a todos que parem o trabalho para lanchar.
Jessica diz que “Essas crianças são diferentes da gente. São meninos de sorte. São os meninos da Lucinda.” A
imagem das crianças em festa é embalada por uma trilha sonora feliz.

Batata aborda Rita com uma alegria de criança livre: ‘Vamos brincar?” Tudo em sua aparência
transborda inocência, elementos de jogo e brincadeiras infantis: o chapéu do Mickey e a capa de plástico bolha,
que logo mais será utilizada como capa de chuva para a fuga de Rita. Ele está fantasiado para brincar, ele vive
em festa, uma vida em que ser criança ainda é possível, mesmo com o trabalho pesado de catador. Enquanto
brincam, a cena é em câmera lenta, trazendo um ar de cumplicidade entre eles e selando a amizade.

Rita foge de Nilo, esconde-se e é resgatada por Batata, que a conduz até a casa de mãe Lucinda. O
diálogo entre eles novamente traz a esperança de uma vida melhor para Rita, apoiado na imagem da fachada da
casa vista à distância:

Rita: “Essa é sua casa ?

Batata: É a casa da mãe Lucinda. É aí que eu moro.

Rita: É uma casa linda!

Batata: Eu sei. A mãe lucinda fez essa casa com as coisas que a gente cata lá no lixo. Ela é a melhor
pessoa do mundo. Eu vou dar um jeito de você morar com a gente”
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A tipologia – forma que define o uso das edificações - da casa de Lucinda remete à uma casa
convencional: telhado com duas águas, porta central e janelas reutilizadas. Assemelha-se também a um
barracão, ou a um barraco de favela. O que traz o poético e carnavalesco é o fato de conter elementos catados
do lixo compondo as superfícies. O fato da casa buscar se paracer com uma residência unifamiliar reforça o
sentido de acolhimento e aconchego. Por outro lado, a casa de Nilo remete a um celeiro, um galpão ou cativeiro,
o que afasta a ideia de proteção da família.

Elementos de proteção quase militar também compõe as texturas externas da casa: há uma espécie de
cortina feita com latinhas amassadas que remete às redes de camuflagem utilizadas em operações de guerra. Ao
mesmo tempo traz, por conta do material, o metal, uma conotação de armadura medieval ou coletes de malha
metálica antiperfuração.

Há um galinheiro, onde Rita passa, escondida, sua primeira noite na casa de Lucinda. É uma área
externa, que ao longo da trama consolida seu caráter de esconderijo: o dinheiro do resgate de carminha,
roubado por Rita, é enterrado no chão do galinheiro por Lucinda. Onde vivem galinhas e ovos, de certa forma
um local onde vidas são geradas, recebe algo de valor no interior e dentro de seu terreno. Vale ressaltar que o
dinheiro foi escondido com o argumento de proteger Rita “dela mesma”, segundo Lucinda. Aí estão alguns
símbolos de vida e renascimento: os ovos, as galinhas, o abrigo, a terra que é túmulo mas que também gera
vida. Num sentido mais amplo, o dinheiro vai parar no lixão, o que tem valor é colocado dentro do local que
abriga tudo o que é rejeitado pelo homem: a ambivalência e a contradição se fazem presentes.

No interior da casa, notam-se uma série de elementos arquitetônicos que utilizam possíveis elementos
encontrados no lixo. Há uma parede com garrafas de vidro coloridas, dispostas transversalmente na parede de
alvenaria. Essas garrafas filtram a luz que vem de fora, colorindo o espaço e carregando de poesia o lugar
como um todo. Cria um certo ar lúdico, aproximando o espaço do universo infantil e trazendo uma atmosfera de
certa inocência. O fechamento interno das paredes é feito de garrafas pet, todas unidas, que criam uma alegre
superfície. Panelas e utensílios de cozinha transformam-se em luminárias.

A paleta de cores traz tons quentes e neutros como base: terracota, tijolo e amarelados remetem ao
papelão e papéis diversos. Pontuada de verdes e vermelhos, é composição harmônica, equilibrada, e também
contrastante. Verde e vermelho são cores complementares, vermelho é expansivo e aqui tem conotação de
feminino, afinal, a chefe da família é uma mulher. No início da novela a casa apresentava mais coloridos, o que
pode ser uma forma de acentuação do tônus dramático (Motter, 2003) que a cenografia pode proporcionar.
  8 
A geografia cenográfica conta com um amplo espaço, em que a geratriz é a mesa de refeições, grande e
sempre farta, com frutas coloridas. Cortinas de renda e de plástico fazem a divisão dos quartos das crianças,
possibilitando uma certa individualidade e privacidade para a convivência.

Diversas cortinas feitas com tiras de jornal amarrado, artesanato que tem por característica o emprego
de materiais de baixo custo com alto nível de manipulação humana: o trabalho manual em que o tempo gasto
para realizá-lo é visivelmente grande, como em peças feitas no tear, crochê, filigranas, bordados e rendas. O
fato de apresentar esse tipo de artesanato de certa forma ‘trabalhoso’ traz para a cena a conotação de cuidado,
de estima, que mãe Lucinda busca passar às suas crianças. Uma decodificação possível seria: ‘mãe Lucinda tem
cuidado com seus filhos porque tem em seu universo elementos desse nível de delicadeza e complexidade
manual’, como se ela mesma pudesse tê-los confeccionado com suas próprias mãos. Assim, agrega-se valor
positivo e ‘do bem’ à personagem.

6.2. PENUMBRA

Embora a casa seja repleta de ludicidade e riqueza visual, o ambiente tem pouca luz, que vai da
penumbra ao festivo, com luzes coloridas e pontuais, lampadinhas de Natal, festões, luminárias e luz indireta.
Mesmo durante o dia a casa é escura, enfatizando o segredo que todos escondem: Lucinda, Nilo, o próprio lixão,
as relações entre eles. A penumbra é mais intensa nas cenas em que Rita, já adulta e com o nome de Nina, entra
em crise. Jorginho, que era Batata, utiliza o espaço da mesma forma, para esconder-se, proteger-se e sofrer.
Nessas cenas a câmera é mais alta e os personagens estão mais perto do chão, situando o olhar do espectador
numa posição superior e enfatizando o drama.

Há também aspectos espaciais que revelam o quão obscuros são os fatos relacionados ao lixão. A
fotografia adotou o primeiro plano desfocado com alguns dos elementos de artesanato como linguagem: um
ponto de vista de alguém que se esconde, no caso o telespectador. Ele espia através do espaço, como se
estivesse inserido nele, incluído na trama. Ele mesmo descortina a cena e a espreita, gerando um sentido de que
há algo mais a ser dito, algo está escondido, misterioso e prestes a ser revelado.

Mãe Lucinda configura-se como personagem que mais guarda segredos da trama. Pode-se dizer que
ela mesma é um túmulo, com respostas evasivas para a maioria das perguntas. O espaço em que vive reforça
ainda mais essa característica de estagnação: depois de 15 anos, com a volta de Rita/Nina, a casa continua a
mesma. Apresenta pequenas alterações de superfícies e mobiliário, como as janelas e a mesa da cozinha, agora
maior. Enfim, o espaço pouco se transformou, demonstrando a estagnação da personagem e de certa forma, a
realidade social de quem mora e vive do lixo. Aqui os aspectos de renovação e renascimento não têm vez, ou
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acontecem apenas dentro de um contexto: o universo do lixão é um microcosmo fechado em si mesmo, onde o
que evolui e renova-se está contido, inserido nele.

O segredo de Lucinda pode ser o fato de ela ter sido um tipo de traficante de crianças, agora em busca
de redenção. Cogita-se que Rita foi vendida aos pais argentinos, e por isso mudou seu nome para Nina. Se esse
é mesmo o mistério que ronda o lixão, pode-se ter um olhar de reciclagem sobre as crianças, em que elementos
rejeitados são realocados e reaproveitados, elevando esse tipo de operação às proporções humanas. Se Lucinda
busca se redimir, justifica-se o fato de abrigar tantas criancas em sua casa, e dar aconchego e carinho a elas.
Justifica-se também o fato de sua casa ser estranhamente escura e até sombria em algumas cenas,
principalmente nas mais recentes, numa iminência de revelação de um segredo terrível.

6.3. CASA DE NILO

A casa de Nilo – antes de ser amparado por Nina e morar num flat – era um tipo de barraco, pequeno,
lúgubre. A estrutura é toda feita em pallets: tipo de estrado, nesse caso em madeira, utilizado como plataforma
para armazenamento de carga. Esses estrados tem as madeiras afastadas entre si, criando vãos que permitem a
passagem de luz natural. Colocados na posição vertical, funcionam como fechamento, paredes. Tons de cinza
vibram algo triste e também sujo: poeira, água suja, umidade, mofo, abandono. Assemelha-se a uma cela de
prisão, com poucas aberturas e nenhum conforto. Assim é o tratamento que Nilo oferece às suas crianças. A
comida é servida como aos presos, em latas improvisadas. Nesse espaço há o pior do lixo, o sujo, o cru, o
decomposto. Ali não há possibilidade de renascimento.

6.4. A FESTA DE NOIVADO DE RITA E BATATA

Nos capítulos iniciais da novela, Rita conhece Batata e passa a morar na casa de mãe Lucinda. As
crianças, com idades por volta de 10 anos, desenvolvem uma forte amizade e decidem ‘se casar’. Há então um
ritual de noivado, já que o casamento ficaria para quando tivessem idade para isso. Acontece então uma
cerimônia “não-oficial”, alguns procedimentos semelhantes à realidade de um ritual e festa de casamento:
alianças, com anéis que Rita e Batata guardam até o presente; padre: uma das crianças vestida com figurino de
padre feito com restos de roupas encontradas no lixo; a organização do espaço como numa igreja: a passarela
por onde entra a noiva, os padrinhos no altar, lado a lado, e os convidados.

Essa cena traz um certo espírito festivo de que fala Bakhtin. As festividades ‘não- oficiais’, o carnaval na
idade média, eram rituais de mais de três meses, onde todos participavam: o rei, os oficiais, ricos e pobres, todo
o povo sem distinção. Era uma época do ano em que todos eram iguais, incluídos e unidos pelo espírito festivo,
pelo carnaval.
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Na festa de Rita e Batata impera o mesmo espírito: Lucinda lidera as crianças nos preparativos das
alegorias, transformando sua casa numa grande oficina criativa de decoração de festas. O processo de
confecção dos objetos é mostrado com ênfase, valorizando o trabalho do artesão e ao mesmo tempo
estimulando a reciclagem de materiais. A forma como isso chega ao espectador é plena de poesia e embalada
uma bela trilha sonora, bastante emotiva, o que novamente enaltece a personagem de Lucinda. Ela não apenas
aceita o suposto casamento entre crianças, como também participa ativamente da festa e incentiva todas as
outras crianças a isso, numa grande brincadeira de alguns dias. Transforma um fato que poderia ter sido
reprimido por pais severos em aceitação e inclusão.

O vestido de Rita é confeccionado com um pedaço de renda branca (uma cortina?) encontrada no lixo.
O adereçamento feito com fitas de presente, prateadas e brilhantes. As fitas em si já trazem uma conotação de
presente, de algo bom de se ter e ganhar, e de festa. Um adereço de cabeça, a grinalda, é composta de fitinhas
metalizadas. E a saia, com tiras de alumínio trançado cria uma espécie de armação baloné prateada.

Nota-se nesse tipo de adereçamento/acabamento de figurino um requinte digno de profissional da área:


aderecistas de figurino, especialistas familiarizados com a linguagem de indumentária cênica. A pergunta: “será
que eles mesmos fizeram isso” vem à mente. Não é questão aqui de julgar nem de justificar a habilidade de
crianças em produzirem esse tipo de artesanato, e sim do caráter alegórico que se apresenta, que simplesmente
aparece. E assim a atmosfera de sonho e delicadeza se instaura em meio ao lixo, atravessando, e de certa forma
vencendo a pobreza e a condição de subdesenvolvimento em que se vive.

Emerson foi o personagem escolhido para ser o padre do noivado. Ele recebe de Lucinda uma estola
sacerdotal feita de papel alumínio. Esse paramento, típico da indumentária eclesiástica, é o suficiente para que
se signifique que o menino será o padre.

Lucinda carrega um fascinator de fitas metalizadas, tipo de adereço de cabeça que se assemelha a um
casquete, típico dos ingleses. As meninas madrinhas estão com diademas de flores em papel e laços de
presente.

O figurino do noivo Batata é uma capa de chuva transparente e uma gravata borboleta, também feita de
fita de presente. A capa tem as dimensões de uma casaca, uma solução simples e criativa.

O local da festa é o pátio em frente a casa de Lucinda. Festões de flores brancas e vermelhas de papel
preenchem o teto e o espaço como um todo, criando um invólucro carnavalesco e festivo. Pendurados nos
festões, garrafas e móbiles de forminhas de doces, papel laminado recortado em forma de coração. Estes
elementos ficam por vezes em primeiro plano, desfocados, representando o amor inocente de duas crianças.
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Todos carregam buquês de flores de papel. A cena é pontuada de vermelhos vivos numa alusão às
festas populares, um clima quase barroco. O que importa, novamente, é a superfície, a textura dessa imagem, e
não os elementos em si. A riqueza visual feita com elementos catados no lixo compõe o todo cenográfico e gera
a poesia. De perto, e fora de contexto, é apenas lixo. Manipulado, reorganizado e trabalhado pelo oprimido – a
tática do reuso – transforma-se em arte.

8. REFERÊNCIAS

DE CERTEAU, M. Fazer com: usos e táticas. In A invenção do cotidiano. Vol 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ:
Editora Vozes, 2007

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média.: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Editora Hucitec,
2011

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011

HALL, S. Codificação e decodificação. In: Hall. S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2002

MOTTER, M. L. Ficção e Realidade: a construção do cotidiano na telenovela. São Paulo: Alexa Cultura,
Comunicação & Cultura, Ficção Televisiva, 2003

MOTTER, M. L. Mecanismos de renovação do gênero telenovela: empréstimos e doações. In: LOPES, M. I. V. de.
Telenovela: internacionalização e interculturalidade. São Paulo, Loyola, 2004

LIXO extraordinário. Direção: Lucy Walker Co-direção: João Jardim e Karem Harley. Downtown Filmes, 2009 (99
min)

<http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI5810900-EI8139,00-
Lixao+de+Gramacho+e+fechado+oficialmente+no+Rio+de+Janeiro.html> acesso em: 20/07/2012

<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2012/05/29/interna_brasil,304801/catadores-do-
aterro-de-jardim-gramacho-esperam-recebimento-de-indenizacoes.shtml > acesso em: 21/07/2012

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