Texto 8 - África PDF

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I

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

“COMO SE FOSSEM INSETOS”: ÁFRICA E IDEOLOGIA


NO CINEMA CONTEMPORÂNEO
MARCOS JOSÉ DE MELO

Orientadora: Professora Doutora Regina Maria Rodrigues Behar

Linha de Pesquisa: Ensino de História e Saberes Históricos

JOÃO PESSOA
2012
II

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

“COMO SE FOSSEM INSETOS”: ÁFRICA E IDEOLOGIA


NO CINEMA CONTEMPORÂNEO

MARCOS JOSÉ DE MELO

Orientadora: Professora Doutora Regina Maria Rodrigues Behar

Linha de Pesquisa: Ensino de História e Saberes Históricos

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em História
do Centro de Ciências Humanas, Letras
e Artes da Universidade Federal da
Paraíba, em cumprimento às exigências
para obtenção do título de Mestre em
História, Área de Concentração em
História e Cultura Histórica.

JOÃO PESSOA
2012
III

“COMO SE FOSSEM INSETOS”: ÁFRICA E IDEOLOGIA NO CINEMA


CONTEMPORÂNEO

Marcos José de Melo

Dissertação de Mestrado avaliada em ___/___/___ com conceito


___________________

BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________
Professora Doutora Regina Maria Rodrigues Behar
Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal da Paraíba
Orientadora
___________________________________________________
Professor Doutor Alberto da Silva
Professor da Université Rennes II
Examinador Externo
___________________________________________________
Professor Doutor Raimundo Barroso Cordeiro Júnior
Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal da Paraíba
Examinador Interno
___________________________________________________
Professor Doutor Élio Chaves Flores
Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal da Paraíba
Examinador Interno
___________________________________________________
Professor Doutor Iranilson Buriti de Oliveira
Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal de Campina Grande
Suplente Externo
___________________________________________________
Professora Doutora Solange Pereira da Rocha
Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal da Paraíba
Suplente Interna
IV

Dedico este trabalho à memória de um trabalhador africano


chamado Muhammad ibn Bouazizi. Que sua morte seja
lembrada como o marco do início de uma primavera não
apenas para os Muhammads, mas para os Juans, Smiths, Jans,
Johns, Xiangs, Jeans e, quem sabe, Joões e Josés. Louvada e
imitada seja sua coragem. A revolta não deve ser contra uma
tirania, mas contra toda a tirania – esteja sob o disfarce que
estiver.
V

“Leopardos irrompem no templo e bebem até o fim o conteúdo


dos vasos sacrificiais; isso se repete sempre; finalmente, torna-
se previsível e é incorporado ao ritual.”

Franz Kafka

"Quando todos pensam do mesmo jeito, é porque ninguém está


pensando."

Walter Lippman
VI

AGRADECIMENTOS

À escritora belga Marguerite Yourcenar são atribuídas as seguintes sábias


palavras: O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira
vez um olhar inteligente sobre nós mesmos. Seguindo tal raciocínio, posso dizer que
apesar de ter visto a luz em São Paulo e ter crescido em Pernambuco, não tenho dúvidas
de que nasci de fato em João Pessoa, Paraíba. Essa dissertação, obra primeira desse
recém-nascido, não existiria sem a ajuda fundamental de um grupo especial de pessoas
que cruzaram meu caminho e ajudaram a pavimentar a estrada que me trouxe a João
Pessoa e a essa vida nova.

Agradeço à minha mãe por todo o esforço e sacrifício desprendido na minha


criação e educação. Ao meu grande amigo José Maria Gomes de Souza Neto, eterno
mestre, agradeço por ter me ensinado tão bem o ofício de historiador; certamente não
estou à altura do que você ensinou, mas isto aqui não existiria sem você, Zé. Alberon
Lemos é um amigo que sinceramente ainda não me acho merecedor de ter; de coração
agradeço a sua presença silenciosa nas entranhas dessa dissertação. Kalina Vanderlei,
sem uma única conversa particular, se tornou pra mim um exemplo de profissionalismo,
e eu a agradeço por isso também. A José Luciano Queiroz Ayres eu deveria dedicar esse
trabalho inteiro, e não apenas agradecer, pois foi uma singela frase dita por ele em um
simpósio temático, há muito tempo, que desencadeou o processo criativo cuja
culminância é esta bendita. Agradeço por isso e por toda a ajuda que generosamente me
estendeu.

Provavelmente eu não acharia João Pessoa essa cidade tão maravilhosa que
acho se não fossem as pessoas maravilhosas que me acolheram aqui. Aos meus colegas
de copo e de cruz gostaria de agradecer pessoalmente por terem tornado tão suave
minha estadia. Dentre a minha turma não posso deixar de nomear alguns que estiveram
mais próximos nesse processo: meu querido Almair Morais e a inseparável e
maravilhosa sousense Rafaela Dario; a querida Jandynéa Gomes; o demônio do Geisel
Márcio Macedo; a aracajuana arretada Carla Karinne; a sempre serena e zen Juliana
Barros; o todo-coração Vanderlan Paulo; o esquisitão gente boa João Batista; a flor de
Itaporanga Fabíolla Furtado; a enigmática Sylvia Brito; a futura primeira
VII

campinograndense canonizada, Germana Guimarães. Em especial, agradeço ao ilustre


cidadão ‘siarense’ Leonardo Rolim por ter me ensinado nos dias mais sombrios o
significado da palavra companheiro, e tomo a liberdade de ‘recitar’ para ele os versos
do Pessoa: “Damo-nos tão bem um com o outro / Na companhia de tudo / Que nunca
pensamos um no outro, / Mas vivemos juntos e dois / Com um acordo íntimo / Como a
mão direita e a esquerda.” Valeu, companheiro.

Aos professores do PPGH que de uma forma ou outra auxiliaram na


consecução do trabalho, especialmente ao poético Raimundo Barroso e suas leituras de
meus manuscritos e ao etílico Mozart Vergetti e nossas reuniões administrativas em
Orlando’s bar, agradeço. À compreensão do professor Damião de Lima a cada farrapada
minha no projeto de auxílio à docência, agradeço. E às leituras repletas de erudição do
professor Élio Chaves Flores, sou também extremamente grato.

Às instituições que, com o dinheiro de impostos do povo brasileiro,


financiaram o projeto, por meio da bolsa acadêmica Reuni, e tornaram possível minha
vida aqui e a realização da pesquisa, serei eternamente grato.

Agradeço a João Pessoa, ou Philipéia de Nossa Senhora das Neves, ou Cidade da


Parahyba, como queiram, cidade maravilhosa, por tudo que me proporcionou,
especialmente as pessoas. Como expressar a plenitude de minha gratidão a Filomena
Vargas – a única pessoa que sempre acreditou em mim (não em relação à dissertação,
mas ao que realmente importa), e que se não tivesse tido as longas conversas que teve
comigo, não tenho dúvidas que teria atendido precocemente ao chamado e não
concluído esse trabalho –, muito provavelmente nunca saberei. A Verônica Behar
agradeço pela generosa ajuda que em diversas ocasiões me estendeu. A Jorge Pereira
agradeço pela casa e pela amizade, e por ter em casa Harry Potter, que me deu a
infância que eu não tive – sem falar nos consertos do PC. A Leila Medeiros agradeço
por toda e cada conversa edificante. Agradeço à Sulleyma Andrade toda a paciência e
generosidade para comigo. Agradeço a amizade terna de Luísa Gadelha, Normanda
Leitão, Laís Medeiros, Dany Almeida. À Etelvina Fernandes, que semeou alegria e bons
conselhos em meu coração cotidianamente, além de prestar socorro sempre que preciso,
agradeço, mais do que por tudo isso, pela filha: Olga Elis e sua poética amizade e
presença, que foi quem me fez mesmo sentir em casa aqui. Os sábados nunca mais serão
os mesmos.
VIII

Um grupo de pessoas que não vive em João Pessoa também foi fundamental
para minha chegada e estadia aqui, de uma forma ou de outra. Se não fosse Alfredo
Neto ter me explicado o que é vestibular, em julho de 2004, nada disso teria sequer
começado, por exemplo. Quero agradecer à Rúbia de Kássia, à tia Mary, à Manoela
Ferreira, a Tito Silva, a meu pai, a Lula (meu único e querido tio, não o presidente), e a
Celso Amorim (meu querido irmão, não o ministro) por toda a ajuda que me
estenderam. Em cada momento, ela foi fundamental.

Por último, o maior e mais afetuoso de todos os agradecimentos que me sinto


impelido a fazer é àquela que sempre foi mais que orientadora, foi amiga, Regina Behar.
Ainda não existe nas línguas humanas palavra que defina o quanto lhe sou grato por
tudo. Das mais abissais profundezas de meu coração, muito obrigado, Regina. E muito
obrigado, a todos vocês, inclusive quem eu porventura tenha me esquecido de citar.
IX

RESUMO

A imagem da África no cinema hegemônico contemporâneo não compõe um mero objeto


passível de apreciação ou depreciação estética; para além disso, essa imagem é um dos
indicadores palpáveis de uma prática política contemporânea cujas raízes estão fincadas no
discurso colonial eurocêntrico do século XIX. Nesta dissertação, o esforço intelectual é
direcionado no sentido de mostrar as maneiras pelas quais o cinema hegemônico contemporâneo
representa o continente africano, após o quê é feita uma revisão histórica de como essa imagem
da África foi construída pela intelectualidade europeia, em fins do século XIX, a que interesses
essa imagem inventada atendia, quais argumentos legitimadores lhe forneceram sustentação e
por quais modos tal imagem foi popularizada. Ao final, é feito um esboço da ponte que liga a
conjuntura política do final do século XIX, que engendrou a invenção da África, à do início do
século XXI, que faz com que aquela imagem permaneça popular, e algumas considerações
sobre a relação entre os filmes e o ofício do historiador. Mais do que simples exercício de
curiosidade ou erudição, esta dissertação constitui uma tentativa consciente de participar em um
esforço intelectual amplo de descolonização do conhecimento.

Palavras-chave: África; Cinema hegemônico; Eurocentrismo; Cultura Histórica.


X

ABSTRACT

The image of Africa in contemporary hegemonic film does not make up a mere object to be
aesthetic appreciation or depreciation, and moreover, that image is a tangible indicator of a
contemporary political practice whose roots are embedded in the Eurocentric colonial discourse
of the nineteenth century. In this dissertation, the intellectual effort is directed towards showing
the ways in which hegemonic contemporary cinema represents the African continent, what is
done after a historical review of how this image of Africa was built by European intellectuals in
the late nineteenth century , which served the interests invented this image, which supplied him
with arguments legitimizing support and ways by which this image was popularized. At the end,
is made a sketch of the bridge that connects the political situation of the late nineteenth century,
which spawned the invention of Africa, the beginning of the century, which means that the
image remains popular, and some considerations on the relationship between films and craft of
the historian. More than mere curiosity or pursuit of scholarship, this dissertation is a conscious
attempt to engage in a broad intellectual effort of decolonization of knowledge.

Keywords: Africa; hegemonic film; Eurocentrism; Historical Culture.


XI

SUMÁRIO

CAPÍTULO 1: À GUISA DE INTRODUÇÃO 12

A falácia da Descolonização 25

CAPÍTULO 2: A ÁFRICA QUE OS FILMES MOSTRAM 41

Estereótipos 43

Para além do estereótipo: Discurso 52

Um percurso 71

Ainda: Ampliando a noção de estereótipo 82

Estereótipos de África 1: O tropo da Inferioridade 86

Estereótipos de África 2: O tropo da Intervenção 102

Estereótipos de África 3: O tropo da Fuga 114

CAPÍTULO 3: A INVENÇÃO DA ÁFRICA 123

Imperialismo 126

Como se inventa um continente (ou: A ‘Partilha da África’ realmente 135


aconteceu?) 153
O ministério da curiosidade europeia (ou: A ‘Partilha da África’ realmente
aconteceu? II)
176
Silêncios Ensurdecedores: as Resistências Africanas
191
Cinema: Documento, Cultura Histórica ou escrita da História?
XII

CONSIDERAÇÕES FINAIS 211

FILMOGRAFIA 216

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 222


CAPÍTULO 1: À GUISA DE INTRODUÇÃO

Vocês mostram, vocês fixam uma realidade sem ver a evolução. O que eu
tenho contra você e os africanistas é que vocês nos olham como se fôssemos
insetos.
Ousmane Sembene, em conversa com Jean Rouch.

Em 28 de junho de 1914 teve lugar em Sarajevo, capital da Bósnia, o evento que


serviu de estopim para a maior tragédia causada pelo homem em toda história, até então: a
Primeira Guerra Mundial. No confuso quadro geopolítico europeu do período, cuja marca
principal era a agressiva rivalidade imperialista entre as nações industrializadas daquele
subcontinente, a justificativa para que essas nações se lançassem num conflito de tudo-ou-
nada umas contra as outras poderia ter vindo de qualquer um dos lugares onde os seus
interesses estavam sob constante tensão. Quase veio, por exemplo, de uma questão
diplomática acerca de quem teria direito a pilhar o Marrocos, em 1906, e da anexação da
Bósnia pela Áustria, em 1908. Quis o acaso, porém, que um estudante de 19 anos tomasse nos
ombros a responsabilidade pelo atentado político que detonou a sequência de eventos mais
impressionante já registrada, a que foi dada o nome „oficial‟ de Século XX, e o epìteto de „era
dos extremos‟, por Eric Hobsbawn.

De fato, o assassínio do herdeiro presumido do trono do Império Austro-Húngaro por


um nacionalista sérvio, membro de uma dentre várias organizações que lutavam pela
independência dos estados balcânicos da dominação imperial, foi o pretexto para que, em
algumas semanas, todas as grandes potências imperialistas europeias estivessem engajadas na
Grande Guerra, como foi chamada até o advento da Segunda. Ao invés de durar algumas
poucas semanas e trazer a felicidade tão aguardada pelas populações que, jubilosas,
praticamente forçaram seus governos a se lançarem nela, a Primeira Guerra Mundial durou
quatro anos e trouxe o mais profundo horror, além de uma multidão de consequências nefastas
que vêm se arrastando e assombrando a humanidade desde então1.

Ironicamente, dentre as consequências da Primeira Guerra está justamente a realização


do objetivo de Gavrilo Princip – o estudante que matou Francisco Ferdinando e sua esposa em

1
Análise apurada sobre as causas e consequências da Primeira Guerra Mundial, incluindo o citado papel
desempenhado pela participação popular em sua deflagração, pode ser encontrada na obra “A Sagração da
Primavera”, de Modris Ekteins. EKSTEINS, Modris. A Sagração da primavera: a grande guerra e o nascimento
da era moderna. Trad. de Rosaura Eichenberg. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
2

uma rua de Sarajevo em 1914 – e seus companheiros de causa. Com o fim do Império Austro-
Húngaro, os estados balcânicos, agora livres de sua influência, formaram uma confusa
entidade conhecida a partir de então como Iugoslávia, a terra dos eslavos do sul. Estado
natimorto, posto que destinado a tentar congregar povos cujas lideranças tinham interesses
diametralmente opostos, a Iugoslávia foi, no decorrer do século XX, palco de inúmeras
atrocidades, culminando na terrível guerra da Bósnia que, na década de 1990, trouxe
novamente Sarajevo para as primeiras páginas de jornais do mundo inteiro. Os horrores da
limpeza étnica e os traumas causados pela separação de famílias, vizinhos e amigos, em
função da etnia, religião e nacionalidade e das tentativas de desmembramento das várias
nações que formavam a Iugoslávia (que atualmente são seis países independentes e uma
„pendência‟, o Kosovo) deram origem, como ocorre sempre em decorrência de eventos dessa
natureza, a uma série de manifestações culturais retratando esse período conturbado, de teses
acadêmicas e livros a filmes e histórias em quadrinhos.

Nessa onda, em 1998 foi lançado o filme Um tiro no coração (Shot Through the
Heart, David Attwood, 1998). Drama feito nos EUA e Canadá para a TV, baseado numa
história verídica, esse filme conta a desventura de dois atiradores olímpicos, amigos de longa
data, que se veem transformados em oponentes inconciliáveis lutando em lados opostos na
guerra civil que assolou a Iugoslávia. Mas o que esses prolegômenos têm a ver com o tema
desse trabalho, cujo título indica tratar-se de um estudo sobre a imagem que o cinema
contemporâneo divulga sobre o continente africano? Todo esse circunlóquio tem como
objetivo contextualizar o filme citado para poder chamar a atenção a um detalhe, uma pista
infinitesimal, no dizer do historiador Carlo Ginzburg (GINZBURG, 1989, p. 150), que servirá
de mote para introduzir o estudo aqui proposto. Em dado momento de Um tiro no coração,
quando o cerco dos sérvios a Sarajevo antecipa os terríveis acontecimentos que estão por vir,
Slavko (Vicente Pérez), sérvio, cristão ortodoxo, alistado nas fileiras de Radovan Karadizic,
oferece para a família do melhor amigo, Vlado (Linus Roache), que é bósnio muçulmano,
passagens de avião para que fujam da Iugoslávia prestes a se esfarelar. Segue-se uma acirrada
discussão em que a esposa de Vlado diz: “E que diabos nós vamos fazer em Viena? Ser
refugiados?” 2 A essa opção, o próprio Vlado, erguendo-se num arroubo de orgulho nacional
ferido, grita: “Não, não e não. Nós não vamos ser refugiados! Isso é coisa de terceiro mundo!
Aqui é Sarajevo, não é a Somália! Pelo amor de deus, nós somos europeus!” Em versões do

2
Em toda a dissertação, as transcrições de diálogos dos filmes virão sempre em itálico e entre aspas, a fim de
destacá-las das demais citações.
3

filme dubladas em português, especialmente as televisionadas, Somália é substituída por


África.

O que a palavra África, ou Somália, como forma de sinédoque, representa em tal


contexto? África foi usada nesse momento do filme, aparentemente, para simbolizar uma
entidade completamente abjeta, uma condição deplorável à qual uma nação situada na
desenvolvida Europa jamais se rebaixaria, ou seria rebaixada. Mesmo levando em conta a
situação em que os habitantes da Iugoslávia se encontravam então – vivenciando um conflito
tribal em que o nome do deus ou a tribo a que pertence poderia ser a diferença entre estar vivo
ou morto, conflito cujo início pode ser creditado a tiros disparados por um rapazote, mais de
setenta anos antes –, ainda assim não podia ser tão ruim quanto a África. A condição de
europeus é o bastante para proibir qualquer equiparação com a África.

Esse trabalho não é sobre a história de África. É sobre a imagem (ou o conjunto de
imagens) produzida sobre aquele continente, historicamente situada. Imagem fabricada em
contraponto a uma concepção específica do significado do que é ser europeu, como bem
definido por Vlado. Isto é, trata-se de um trabalho muito mais sobre política do que sobre uma
linguagem: imagem, como um dos suportes para uma ideologia. Imagem num sentido lato,
algo próximo mas que extrapola o sentido de imagem canônica, no uso que faz de tal conceito
o historiador Elias Tomé Saliba:

Ícones canônicos seriam aquelas imagens-padrão ligadas a conceitos-


chaves de nossa vida social e intelectual. Tais imagens constituem pontos
de referência inconscientes, sendo, portanto, decisivas em seus efeitos
subliminares de identificação coletiva. São imagens de tal forma
incorporadas em nosso imaginário coletivo, que as identificamos
rapidamente (In CAPELATO, 2005, p. 88. Grifo do autor).
A acepção de imagem da qual faço uso não se refere apenas ao sentido físico da
palavra, à imagem em si, à iconografia, ao retrato. O discurso sobre, o que se diz a respeito, a
concepção mental que se tem, também compõe, também faz parte do quadro geral que temos
sobre determinado objeto. Embora no filme Um tiro no coração não apareça nenhuma
imagem da África no sentido geral em que compreendemos esse vocábulo, ou seja, nenhuma
visualização propriamente dita do continente africano, a referência feita a ele uma única vez
evoca uma série de imagens canônicas e emoções, como uma espécie de “reputação
percebida” (WILLIAMS, 2007, p. 219) ou como uma “imagem de marca” (JOLY, 1996, p.
21), que permitem introduzir, eu acredito, a partir de tal afirmação, um estudo sobre a imagem
criada para a África pelo cinema. No meio de uma representação do terror da guerra da
Bósnia, o que implica, quais são os significados ideológicos, qual a necessidade, do ponto de
4

vista da narrativa cinematográfica, de se afirmar que não se está em África? Por que justapor
precisamente a África a uma situação extremamente indesejável? Para dizer que ainda pode
ficar pior, que ainda não se chegou ao último estágio da degradação humana?

A ligação entre a imagem da África e uma representação fílmica da guerra da Bósnia


pode parecer tênue, se é que existente, mas o caso é que neste filme específico a África é
apresentada como contraponto ao universo europeu – algo recorrente no discurso histórico
„ocidental‟, seja o produzido no seio da academia, seja o oriundo de outras fontes. Trata-se de
um filme impregnado de eurocentrismo, um filme em que a Europa, mesmo a Europa tribal
das guerras balcânicas, simboliza a encarnação da ciência e da técnica, enfim, da „civilização‟,
detentora de um saber que pode proporcionar o progresso de lugares „atrasados‟ como a
África. Ouvimos, assim, nitidamente, em Um tiro no coração, ecos de teorias supostamente
mortas e enterradas no „distante‟ século XIX, como o darwinismo social evolucionista ou o
poligenismo degeneracionista, que davam sustentação à crença política na superioridade de
uma “raça” – a „raça europeia‟, logicamente, mas que ironicamente não incluìa todos os
europeus – às outras.

Escolhi como ponto de partida um filme que não se passa em África, mas apenas cita o
continente uma única vez, para exemplificar qual a pretensão desse trabalho como um todo.
Mesmo um filme com essas caracterìsticas pode contribuir para o „entendimento geral‟,
reforçando o discurso histórico hegemônico sobre a África. Que dizer então dos filmes que se
propõem a retratar algum aspecto específico da realidade africana? De um modo genérico, nos
filmes que tratam da África ou de outras partes do Terceiro Mundo, “a superioridade branca
não é afirmada, ela é simplesmente presumida” (SHOHAT & STAM, 2006, p. 290), muito
embora em alguns casos particulares, como Um tiro no coração mostra, podemos ver a
“superioridade branca”, europeia, ser declarada abertamente em relação ao continente
africano. Este trabalho é uma análise sobre como a linguagem cotidianizada tem o poder de
disseminar, de maneira muitas vezes quase subliminar, uma ideologia específica. Por
exemplo, um leitor mais atento certamente encarou com estranheza a maneira como me referi
à Europa no primeiro parágrafo desse texto: subcontinente. A intencionalidade desse modo
inusitado de caracterizar a Europa está em demonstrar sucintamente o poder da linguagem, a
que se dedicará o presente estudo; quantas vezes costumamos ver o elemento antepositivo
“sub” associado à Europa? Sub, como aponta o dicionário3, tem uma série de acepções que

3
HOUAISS, Antônio & VILLAR, Mauro de Sales. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001.
5

denotam inferioridade, subalternidade hierárquica; “sub” está simbolicamente abaixo: por


isso a Índia é recorrentemente chamada de „subcontinente indiano‟, enquanto a Europa
dificilmente o é (eu não recordo ter visto em lugar algum), muito embora do ponto de vista da
linguagem técnica geográfica os dois lugares possam corretamente receber tal alcunha. A
linguagem, construção humana, pode estigmatizar simbolicamente como inferior ou como
superior realidades empíricas que, em si mesmas, não são nem uma coisa nem outra. De modo
específico, este trabalho busca fazer uma análise de como uma linguagem específica, a
cinematográfica, oriunda de um lugar social especìfico, o “ocidente”, considerado
hegemonicamente, não em sua totalidade, produz um discurso sobre uma realidade específica,
o continente africano, tentando ver, através dos recursos da análise do discurso (utilizando o
arcabouço teórico disponibilizado especificamente pela assim chamada escola francesa de
análise do discurso), como os filmes que de algum modo retratam a África, em suas
intencionalidades e aspectos mais amplos tanto quanto em seus detalhes aparentemente
insignificantes, reproduzem uma ideologia historicamente situada.

Este estudo tem suas raízes em um projeto de Iniciação Científica, financiado pela
FACEPE (Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco), a que me
dediquei durante a graduação em História, na Universidade de Pernambuco. A pesquisa,
vinculada ao grupo de pesquisa em história antiga Leitorado Antiguo, intitulava-se “A África
Antiga e o ensino de História da África: o Kebra Nagast e suas raízes bíblicas”, tendo sido
ensejada em parte pelas disposições da Lei 10.639/03, que tornou, pela primeira vez no Brasil,
obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, incentivando
consequentemente a pesquisa historiográfica na área. Tinha como objetivo, a partir do
cruzamento de artefatos culturais hebraicos e africanos antigos – a saber, o assim chamado
“Velho Testamento” e o Kebra Nagast, epopéia nacional etíope – e da escassa historiografia
sobre o tema, trazer à tona a importância de uma civilização africana antiga, a Etíope, no
contexto maior do espaço geográfico que envolve o eixo Mediterrâneo Oriental/Mar
Vermelho/Oceano Índico. De nação fundamental na conjuntura da virada da era cristã, dos
pontos de vista cultural, econômico e militar, que foi o segundo Estado nacional a se
converter oficialmente ao cristianismo, antes mesmo de Roma, elencado na Bíblia como uma
das mais poderosas e temidas nações da Antiguidade, a Etiópia se tornou, na historiografia
eurocêntrica, algo como os participantes de reality shows que desaparecem do „meio artìstico‟
depois de fazerem algum sucesso no programa. Ela é, de maneira quase absoluta,
simplesmente ignorada, como comprovam os livros didáticos a que têm acesso os estudantes
6

brasileiros. O incentivo legal para se pesquisar e produzir conteúdos referentes à história


africana está, felizmente, mesmo que a passos tímidos, começando a mudar este panorama,
tanto no que se refere à Etiópia quanto a diversas outras sociedades africanas.

O fato é que aquela pesquisa produziu um “efeito colateral” inesperado. Por sua causa,
me vi quase que forçado a discutir a questão dos estereótipos acerca do continente africano
alardeados nos meios de comunicação, e que grassam também no meio acadêmico (que
supostamente deveria estar isento de determinismos baseados em preconceitos). Cada
apresentação em encontros acadêmicos era necessariamente seguida por várias expressões de
admiração dos ouvintes em relação a tais “maravilhas” – as informações divulgadas pela
pesquisa – referentes à África, que a maioria sequer tinha ouvido falar: “Literatura na
África?” “Construções monumentais?” “Estado nunca colonizado por europeus?”. E a cada
vez eram necessários argumentos a favor de uma concepção não reducionista da África.
Tendo em vista que apenas muitíssimo recentemente, como dito, medidas legais vieram tornar
obrigatória a inserção de história da África nas instituições de ensino de nosso país, os
veículos midiáticos, e em especial o cinema, têm sido, ao longo das décadas, o principal
difusor de conhecimento sobre o continente africano para a população em geral. Esse fato é
plenamente compreensível quando consideramos a condição de recepção permanente de
imagens e sons midiáticos a que a sociedade humana se habituou a estar exposta no decorrer
do século XX, tal qual resumido por Todd Gitlin: “A plenitude icônica é a condição
contemporânea, e é tida como lìquida e certa” (GITLIN, 2003, p. 25), e ainda mais
sucintamente por Guy Debord no título de sua obra mais famosa: vivemos em uma Sociedade
do espetáculo, saturada de todo tipo de experiência estética. A essa constatação somou-se a
percepção de que a África é objeto de um discurso específico no cinema, em que
determinados temas e tropos são repetidos exaustivamente, denunciando alguma espécie de
intencionalidade por parte de seus realizadores. Assim, era necessário afirmar, vez após vez,
que a África não é apenas isso que os filmes mostram...

Mas o que é, exatamente, “isso” que os filmes mostram sobre a África? Por que a
África apresentada em produções cinematográficas do início do Século XXI tem medidas
equivalentes de desgraça, miséria e dependência que a África apresentada pelos romances
imperialistas do Século XIX? Tais foram os questionamentos que conduziram ao estudo que o
leitor tem em mãos. Na primeira década do Século XXI pôde ser observada uma profusão de
filmes oriundos da indústria cinematográfica hegemônica (estadunidense e europeia) que
retratam de alguma forma o continente africano em seus enredos, filmes que têm ampla
7

recepção no Brasil, principalmente levando em conta o fenômeno contemporâneo da larga


acessibilidade à cultura cinematográfica, possibilitada pelo comércio popular de cópias ilegais
e pelo hábito recente de fazer downloads de filmes gratuitamente na Internet. Tendo isso em
vista, a proposta desta dissertação é ajudar a preencher o vácuo de interpretações
historiográficas existente sobre a cultura histórica que tais filmes veiculam sobre a África,
refletindo sobre diversas questões que a envolvem. Pouco importa se o filme analisado é
considerado um “filme histórico” ou não, uma vez que todo filme é, a priori, um documento
histórico, já que é um retrato da sociedade que o produziu. Assim, filmes aparentemente tão
diferentes quanto Falcão Negro em perigo (Black Hawk Down, 2002, Ridley Scott), Amor
sem fronteiras (Beyond borders, 2003, Martin Campbell), Lágrimas do Sol (Tears of the Sun,
2003, Antoine Fuqua), Honra e coragem (The four feathers, 2003, Shekar Kapur), Hotel
Ruanda (Hotel Rwanda, 2004, Terry George), O Senhor das Armas (The lord of the war,
2005, Andrew Niccol), O elo perdido (Man to man, 2005, Régis Wagnier), O Jardineiro Fiel
(The Constant Gardner, 2005, Fernando Meirelles), A intérprete (The interpreter, 2005,
Sidney Pollack), A massai branca (Die Weisse Massai, 2005, Hermine Huntgeburth),
Diamante de Sangue (Blood diamond, 2006, Edward Zwick), Babel (2006, Alejandro
González Iñárritu), O Último Rei da Escócia (The last king of Scotland, 2006, Kevin
Macdonald), Primitivo (Primeval, 2007, Michael Katleman), Atirador (Shooter, 2007,
Antoine Fuqua), Distrito 9 (District 9, 2009, Neil Blomkam) e Invictus (2010, Clint
Eastwood), são alguns dos que compõem o vasto corpo documental a ser investigado nesta
pesquisa, uma vez que a África figura em cada um deles e todos foram produzidos na primeira
década do século XXI. É importante ressaltar que, muito embora a quantidade de filmes
elencada como fontes para esse trabalho aparentemente seja muito grande, a viabilidade foi
possível a partir de uma opção metodológica, o trabalho com sequências especificas dentro
dos filmes, caracterizando a dimensão indiciária das mesmas, e não a partir de análises
completas de todos os filmes. Também se faz necessário deixar patente que nem todos os
filmes dessa década que citam a África, embora porventura citados, serão necessariamente
analisados, pretensão inviável para uma dissertação.

Assim, trabalho com um recorte bem específico. Não vou procurar mapear os
discursos produzidos pelo cinema mundial sobre a África. O próprio cinema africano não será
incluído. Não que não exista, conforme reza mais um estereótipo sobre aquele continente – a
indústria cinematográfica da Nigéria, apelidada de Nollywood, por exemplo, foi citada pelo
8

jornal The Economist como a terceira maior indústria do segmento no mundo4. Analisarei o
discurso eurocêntrico presente nas representações de África feitas por filmes de
entretenimento produzidos pela indústria cinematográfica hegemônica no recorte cronológico
citado, tanto os filmes classificados como hollywoodianos como aqueles de origem europeia,
empregando a acepção de hegemonia oriunda da obra de Antonio Gramsci, ou seja,
entendendo hegemonia como um termo não limitado à questão do controle político direto,
mas que

busca descrever um predomínio mais geral que inclui, como uma de suas
características centrais, um modo particular de ver o mundo, a natureza
humana e as relações. É diferente, nesse sentido, da noção de “visão de
mundo”, na medida em que os modos de ver o mundo, a nós mesmos e aos
outros não são apenas fatos intelectuais, mas políticos, expressos em um
leque que vai das instituições até as relações e a consciência. Também difere
de IDEOLOGIA (v.), na medida em que se considera que hegemonia
depende, para seu domínio, não apenas de sua expressão dos interesses de
uma classe dominante, mas também de sua aceitação como “realidade
normal” ou “senso comum” por aqueles que, na prática, lhe são
subordinados (WILLIAMS, 2007, p. 199).
Não assumo uma postura que alinha as produções europeias e as assim chamadas
hollywoodianas num mesmo nível estético, mas, conforme se demonstrará no decorrer do
trabalho, tais produções, apesar das diferenças formais e estéticas, compartilham e
reproduzem um mesmo discurso essencialista sobre o continente africano, com diversas
nuances. E, claro, juntas essas produções dominam o mercado mundial contemporâneo. O
objetivo não é fazer uma genealogia dos avanços, mudanças e permanências das
representações de África pelo cinema hegemônico ao longo de todo o século XX, projeto
certamente de grande interesse, mas que demandaria esforços além dos possíveis para a
escrita do presente estudo.

Muito embora o cinema africano não vá figurar como protagonista nesse trabalho,
simplesmente pelo fato de que analisá-lo não é o objetivo aqui pretendido, acredito ter
reservado para ele um lugar de honra, uma forma de homenagem indireta. O título que escolhi
faz referência a uma célebre fala do cineasta senegalês Ousmane Sembene, considerado por
muitos o maior cineasta africano de todos os tempos. Em 1965, durante uma conversa com o
francês, e também cineasta, Jean Rouch, este perguntou a Sembene: “Gostaria que você me
dissesse por que não gosta dos meus filmes puramente etnográficos, aqueles nos quais nós
mostramos, por exemplo, a vida tradicional?”. A resposta de Sembene, de certa forma,

4
http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u462864.shtml Acessado em 02/03/2012. A esse
respeito, consultar a obra de referência Cinema no mundo, v.1: MELEIRO, Alessandra (Org.). Cinema no
mundo: indústria, política e mercado: África. São Paulo: Escrituras Editora, 2007 a.
9

antecipa o cerne das questões que serão trabalhadas nesse estudo: “Porque vocês mostram,
vocês fixam uma realidade sem ver a evolução. O que eu tenho contra você e os africanistas é
que vocês nos olham como se fôssemos insetos.”5 A crítica de Sembene aos filmes
etnográficos é parte central das críticas que estendo aos filmes de entretenimento que retratam
em algum momento a África: a a-historicidade. A África e os africanos representados como
uma sociedade de pessoas congeladas no tempo. Seja em Diamante de sangue ou em Hotel
Ruanda, a „situação africana‟ não é mostrada como parte de um processo, mas sim como uma
situação de instabilidade permanente.

Cumpre observar que o objetivo da dissertação, como diz Edward Said a respeito do
seu Orientalismo (SAID, 2007, p. 51), não é buscar a existência ou não de um possível
vínculo entre a representação de África nos filmes e a “realidade” do continente, muito
embora, obviamente, essa seja uma abordagem válida para um estudo. Além de válida, essa
seria uma abordagem factível, uma vez que existem numerosas fontes com as quais seria
possìvel „contrastar‟ o discurso fìlmico hegemônico sobre a África e assim traçar um paralelo,
num esforço de desmistificar os estereótipos quase que totalmente negativos sobre aquele
continente que, como veremos no decorrer desse estudo, são a ordem do dia nos filmes sobre
a África produzidos pela grande indústria do cinema contemporâneo.

Para ficar em apenas um exemplo, posso citar o possível contraste entre dois relatos a
respeito de meninos-soldados em África, um verídico e outro ficcional. Ishmael Beah, jovem
serra-leonense que hoje mora nos Estados Unidos, foi forçado a se tornar soldado-mirim e
conseguiu sobreviver à guerra civil dos anos 1990 em seu país. Após conseguir refúgio nos
EUA, ele escreveu um relato autobiográfico em que conta os horrores daquela guerra. Em
2005, o mundo conheceu a representação fílmica de um menino soldado fictício que passou a
ser considerada icônica, o personagem Dia Vandy (Kagiso Kuypers), do filme Diamante de
sangue (Bloody diamond, Edward Zwick, 2005). Vamos ao contraste entre os dois relatos.
Beah, falando de sua infância e pré-adolescência na Serra Leoa pré-guerra, conta que até os
doze anos de idade as únicas guerras que conhecia eram aquelas sobre as quais lia ou ouvia

5
Fonte: The Short Century: Independence and Liberation Movements in Africa 1945-1994, editado por Okwui
Enwezor, p. 440. Munich, London, New York: Prestel, 2001. Transcrito por Albert Cervoni e traduzido para o
inglês por Muna El Fituri. <http://africabrasis.blogspot.com/2011/02/cinema-e-historia.html> acessado em
04/04/2011.
10

falar na TV e no rádio (citando filmes como Rambo: programado para matar). Mais
importante, ele diz:

Quando eu tinha sete anos de idade, costumava ir à praça da aldeia recitar


monólogos da obra de Shakespeare para os adultos da comunidade. (...) Eu
ficava em pé em cima de um banco e usava um pedaço de pau para
representar minha espada. Começava com Júlio César: “Amigos, romanos,
patrícios, concedei-me vossa atenção...” Eu sempre recitava falas de
Macbeth e Júlio César, que eram os preferidos entre os adultos. (BEAH,
2007, p. 101).
Em Diamante de sangue, filme que busca retratar a mesma guerra e a mesma
sociedade (e que será uma das obras mais citadas nesse trabalho), o garoto Dia Vandy pré-
guerra é um personagem sem educação formal alguma, e com uma grande relutância em
adquiri-la, apesar da insistência do pai, „simples‟ pescador, que deseja um „futuro melhor‟
para o filho. Muito embora tal comparação possa parecer um detalhe sem importância, um
trabalho calcado nesse tipo de operação poderia mostrar, talvez de maneira sólida, como as
representações fílmicas da África insistem em deixar patente o fato de que os africanos
supostamente não podem ser equiparados aos euro-estadunidenses no que diz respeito ao
“nìvel de refinamento ou civilização”. A partir do relato de Beah, pode-se inferir que as
condições materiais de existência de sua família antes da guerra eram semelhantes às
mostradas no filme, antes também da guerra; nesse ponto, na representação plástica da
„realidade‟ de Serra Leoa, o filme pode não pecar gravemente. Mas quando se compara a
representação fìlmica das capacidades intelectuais dos personagens negros com a „realidade‟
apresentada em um relato oriundo daquela própria sociedade, como o de Beah, ficam
evidentes as distorções e intencionalidades ideológicas do filme. Mas, repito, realizar essa
operação de comparação não é o objetivo da presente dissertação. A ênfase aqui recairá
menos nos eventos históricos em si do que nas formações discursivas a seu respeito.

O presente estudo também não toma como premissa uma estética da verossimilhança.
Aqui, procuro não tomar como pressuposto um ideal de simplicidade no que toca à “verdade”
sobre a África, que implica dizer que “as mentiras que os filmes contam” podem ser
apontadas e desmascaradas sem grande esforço. O continente africano, como todos os outros,
é por demais complexo para que um estudo sobre suas representações no cinema eurocêntrico
se resuma a apontar os “erros” supostamente cometidos pelos cineastas. Um argumento
simples para invalidar essa perspectiva teórica é a simples existência de diversas versões e
visões do que é o “mal” por parte de analistas e do público em geral (SHOHAT e STAM,
2006, p. 261).
11

Em alguns casos, porém, especialmente naqueles filmes baseados em fatos ou pessoas


reais, cujo enredo comenta, aprovando ou não, uma situação vivenciada, o impulso de emitir
julgamentos sobre a questão da acuidade da representação pode ser considerado legítimo. Um
filme com uma versão flagrantemente errônea ou distorcida de determinado evento histórico
certamente pode induzir o público que não tem acesso a outras informações sobre aquele
evento a tomar como “verdade” os pontos de vista de determinado grupo especìfico, que
possui interesse em que determinada representação seja divulgada, muito embora não exista, é
claro, uma verdade absoluta sobre nenhum evento histórico, mas sim pontos de vista.

Assim como Edward Said analisa as maneiras como os romances produzidos no


contexto de dominação imperialista do último quartel do século XIX eram a um tempo reflexo
de uma mentalidade e elemento partícipe no condicionamento dessa mesma mentalidade, em
sua obra Cultura e Imperialismo (SAID, 1995), o intuito desta pesquisa é investigar as
representações da África na cinematografia hegemônica contemporânea e como elas
constroem a cultura histórica vigente em nossa sociedade sobre aquele continente. Não
obstante, o estudo não se restringe unicamente a aspectos como os analisados por Said em
Cultura e Imperialismo, uma vez que o objeto de análise aqui são filmes, cabendo, portanto,
não esquecer de elementos narrativos que inexistem em romances escritos. Uma análise
„tradicional‟ do retrato social feito por um filme de uma determinada comunidade, ou de um
determinado personagem, não ficaria diferente da análise de um romance, sendo imperativa a
análise de questões ligadas às dimensões especificamente cinematográficas porque, diferente
de um romance, “o discurso cinematográfico eurocêntrico pode se revelar não nos
personagens ou no enredo, mas na iluminação, no enquadramento, na mise-em-scène, na
música.” (SHOHAT & STAM, 2006, p. 302).

A dissertação se estrutura da seguinte maneira: o segundo capítulo tem como cerne a


apresentação dos modos como a África é descrita no cinema hegemônico contemporâneo.
Antes de fazer isso, exponho o dispositivo teórico escolhido para a análise dos filmes ao
longo de todo o trabalho, bem como o dispositivo analítico que construí para a sua execução.
Apresento uma discussão sobre estereótipo, discurso, formação discursiva e ideológica,
memória discursiva e a teoria dos tropos. Na parte final do capítulo situo os principais tropos
narrativos utilizados pelos filmes para contar a África, recorrendo à teoria dos tropos para
efetuar essa descrição – que, a despeito de pretender apenas descrever, sem dúvida já carrega
elementos de análise.
12

Escolher iniciar esse estudo falando da Primeira Guerra, como origem primordial da
Guerra da Bósnia, tem também um significado simbólico. Em teoria, o ano de 1914 encerra o
período do Imperialismo histórico, ou pelo menos o processo da assim chamada „Partilha da
África‟. O período que vai de 1875 até a Primeira Guerra será alvo de atenção no terceiro
capítulo, onde buscarei analisar o período histórico conhecido como Imperialismo, e assim
deslindar as origens históricas das representações da África que continuam tão populares no
cinema contemporâneo, mergulhando na memória discursiva de que se alimentam essas
representações. De modo que no terceiro capítulo é analisada a „invenção da África‟, como
essa imagem da África foi construída pela intelectualidade europeia, em fins do século XIX, a
que interesses essa imagem atendia e de que modo tal imagem foi popularizada. Nesse
capítulo busco fazer algumas considerações sobre a relação entre os filmes e o ofício do
historiador, dedicando espaço às teorias que relacionam história e cinema, especialmente a
que advoga que os filmes podem ser considerados uma forma de escrita da história, em que o
cineasta encarnaria o papel do historiador. Analisando os filmes sobre a África como um
estudo de caso de uma historiocinegrafia (neologismo criado para suprir a inexistência de um
termo preciso para esse conceito, a ser discutido) específica sobre um tema, nesse capítulo
busco apresentar a ideia de que novas formas de escrita da história estão já se
institucionalizando, e mesmo usufruindo de maior status operacional que a história
„tradicional‟, e que é urgente que os historiadores penetrem nesse debate, sob pena de uma
possível obsolescência de suas análises dos fenômenos históricos e de como estes são
apreendidos pela população em geral.

Uma das epígrafes que escolhi para essa dissertação é uma famosa parábola de Franz
Kafka. Ela sempre me vem à mente quando penso no discurso sobre a África que o cinema
hegemônico insiste em repisar; o que mais me impressiona é como este se configura em um
discurso de permanente eficiência, não questionado pela maioria, mesmo entre aqueles que
fazem parte da academia. É um discurso tão prolongado, tão duradouro, tão confortavelmente
instalado na mente das pessoas, que se tornou amplamente aceito, senso comum, cultura
histórica. Foi „incorporado ao ritual‟ da „normalidade‟. Como todo projeto carrega uma
esperança, a minha é que este possa fazer uma contribuição, ainda que modesta, para que esse
paradigma narrativo tão amplamente aceito comece a ser questionado. Lembrando as palavras
de Josep Fontana sobre a função social da história6, a pretensão desse estudo não é

6
“As legitimações históricas estão por trás de grande parte dos conflitos políticos atuais, e não somente dos
conflitos entre países e etnias, mas daqueles que se produzem no próprio interior das sociedades de cada país”
(FONTANA, 2004:18).
13

simplesmente analisar as práticas discursivas que subalternizam a África, mas contribuir no


esforço de criar um arcabouço teórico e prático para que tais práticas sejam questionadas,
historicizadas (no sentido de situá-las na estrutura histórica mais ampla onde se encaixam e
exercem uma função) e substituídas por outras, construídas também, mas moralmente
responsáveis e comprometidas com interesses outros que não apenas aqueles ligados à
acumulação de capital. Minha esperança pode ser traduzida nas palavras do filósofo
pragmatista Richard Rorty:

Qualquer coisa que a filosofia possa fazer para libertar um pouquinho nossa
imaginação é de grande serventia política, pois, quanto mais livre for a
imaginação do presente, maior será a probabilidade de que as práticas sociais
futuras sejam diferentes das passadas. (...) Mas, ao contrário do que
infelizmente nos ensinou a crer a tradição marxista, a filosofia não é uma
fonte de instrumentos para um trabalho político inovador. Nada de
politicamente útil acontece enquanto as pessoas não começam a dizer coisas
que nunca disseram antes – com isso nos permitindo visualizar novas
práticas, e não apenas analisar as antigas (Apud ŻIŻEK, 1996, p. 231).
14

A FALÁCIA DA DESCOLONIZAÇÃO

A cultura é um palimpsesto e todos escrevemos sobre o que outros já


escreveram.
William Faulkner, citado por Rosa Montero em A louca da casa
(2004).

O que me inspirou a escrever esse livro foi o fato de o determinismo


biológico estar crescendo em popularidade, como sempre acontece em
tempos de retrocesso político. Com a habitual profundidade, começam a
circular de festa em festa os comentários sobre agressividade inata, as
funções específicas de cada sexo, e o macaco nu. Milhões de pessoas estão
começando a suspeitar que seus preconceitos sociais são, afinal de contas,
fatos científicos. Entretanto, esse ressurgimento do interesse pelo tema não
deriva da existência de novos dados, mas da sobrevivência desses
preconceitos latentes.
Stephen Jay Gould, em A falsa medida do homem (1991).

[Originalmente, na escrita desta dissertação, esse trecho fazia parte de um quarto


capítulo, que, por uma censura imposta pela banca, precisou ser suprimido. Deste modo,
perdeu-se a organicidade que minha disposição original dos capítulos pressupunha. No intento
de manter as reflexões daquele capítulo, eu as dispersei como pude ao longo da dissertação.
Este é o primeiro trecho do capítulo que deveria concluir a dissertação; o segundo trecho
encontra-se como último subtópico do terceiro capìtulo, intitulado “Cinema: documento,
cultura histórica ou escrita da história?”]

Na historiografia hegemônica, os eventos são dispostos e apresentados em ordem


inequívoca. A imagem a que se assemelha essa história é a de uma flecha em voo, cujo
percurso é único e inevitável. É a „história única‟ a que se refere a romancista nigeriana
Chimamanda Adichie 7. Em tal organização dos acontecimentos, após a “inevitável” „Partilha
da África‟ segue-se o período colonial, que ocupa a primeira metade do século XX, por sua
vez seguido, a partir da década de 1950, pelo processo de descolonização. Este processo é

7
Um discurso dessa escritora, em que alerta para o perigo das interpretações eurocentradas da história da África,
e de outros lugares, pode ser assistido na íntegra no seguinte endereço eletrônico:
http://www.ted.com/talks/lang/pt/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html Acessado em
10/03/2012.
15

qualificado como sendo a retirada completa dos europeus do continente africano, através de
negociações diplomáticas, em alguns casos, ou expulsos por vias militares, em outros. O que
nivela todas as novas nações africanas surgidas após a „descolonização‟, no padrão da
„história oficial‟, quer tenham alcançado a independência por meios pacìficos ou violentos, é a
extrema pobreza de que são vítimas. As supostas condições subumanas de vida na África
depois da saída dos europeus corroboram, nessa leitura da história, as interpretações
analisadas no capítulo anterior, que classificam a África e os africanos como inerentemente
inferiores à Europa e aos europeus. Sem a presença europeia, a África estaria entregue
novamente à barbárie na qual supostamente estava imersa antes da presença organizadora do
europeu e sua missão civilizadora.

Assim cruamente exposta, essa interpretação pode parecer inaceitável; pode aparentar
ser impossível que atualmente tal visão seja aceita por membros da intelectualidade
„ocidental‟. Mas o fato é que se trata de uma interpretação tão em curso que há correntes
dentro dessa intelectualidade que defendem seriamente uma urgente recolonização da África
por razões humanitárias, como apontam Serrano e Waldman:

[...] nova leitura desqualificante da África. Agora o continente é domínio da


pobreza, da anarquia, do subdesenvolvimento, das doenças, das “guerras
tribais”, dos golpes de Estado contìnuos, do analfabetismo, dos refugiados,
da seca e da falta de perspectivas. (...) Cabe alertar que, nos anos 1990,
existiu notória mobilização de alguns círculos de opinião para os quais a
África deveria voltar a ser colonizada pelo Ocidente. Essa corrente de
opinião, denominada reabilitacionista, pleiteia o fim da descolonização
argumentando, inclusive, em nome de uma pretensa finalidade humanitária.
Acima de tudo se trataria de reconquistar a África a título, enfim, de salvar
os africanos de si mesmos (SERRANO & WALDMAN, 2007, pp. 32,33).
A questão patente é: o que na realidade encerra o termo „descolonização‟? Enquanto o
processo que leva esse nome ainda acontecia, o presidente de Gana à época, Kwame
N‟Krumah, pouco antes de ser deposto por um golpe militar, publica um estudo intitulado
Neocolonialismo - último estágio do Imperialismo (N‟KRUMAH, 1967), com o objetivo de
descrever a realidade da nova situação que se instalava em África, na sua opinião: a
dominação econômica. Ele escreve que a essência da expressão neocolonialismo é “de que o
Estado que a ele está sujeito é, teoricamente, independente e tem todos os adornos exteriores
da soberania internacional. Na realidade, seu sistema econômico e portanto seu sistema
polìtico é dirigido do exterior” (N‟KRUMAH, 1967, p. I). Para N‟Krumah, esse domìnio
econômico-político externo podia se configurar através de diversos procedimentos, desde a
ocupação militar, meio extremo a que recorre a ex-metrópole para controlar o Estado da ex-
colônia, ou o mais comum controle através de meios econômicos e monetários: “O estado
16

neocolonial pode ser obrigado a aceitar os produtos manufaturados da potência imperialista,


com a exclusão dos produtos competidores de outra origem” (N‟KRUMAH, 1967, pp. II)
Marc Ferro analisa como exemplo disso os gastos militares que muitas ex-colônias foram
impelidas a fazer em função de acordos com as ex-metrópoles que beneficiavam a indústria
dessas últimas, gerando os „três decênios gloriosos‟ para as economias da França e Inglaterra
logo após as independências de suas colônias em África.

Segundo Ferro, “esta foi a primeira forma que assumiu o neocolonialismo,


perpetuando os laços privilegiados entre a Europa e suas ex-colônias. A segunda forma foi a
colusão que se armou entre os novos dirigentes das ex-colônias e os meios políticos ou
financeiros das metrópoles” (FERRO, 1996, pp. 392,393). O quadro geral resultante disso que
chama de Neocolonialismo é, para N‟Krumah, que “o capital estrangeiro é utilizado para a
exploração, em lugar de ser para o desenvolvimento das partes menos desenvolvidas do
mundo. O investimento, sob o neocolonialismo, aumenta, em lugar de diminuir, a brecha
entre as nações ricas e pobres do mundo” (N‟KRUMAH, 1967, p. II). Nas palavras mais
abrangentes e atualizadas de Ella Shohat e Robert Stam, os efeitos do neocolonialismo têm
sido “pobreza generalizada (mesmo em países ricos em recursos naturais); fome crescente
(mesmo em países outrora autossuficientes); paralisantes dívidas externas; abertura dos
recursos locais para os interesses do capital estrangeiro; e, em muitos casos, opressão política
interna” (SHOHAT & STAM, 2006, p. 43).

De modo que, seguindo a linha de raciocìnio inaugurada por Kwame N‟Krumah, os


paìses africanos, mesmo após o processo de „descolonização‟, continuaram em larga medida
submetidos às políticas de suas ex-metrópoles. Albert Memmi chama a descolonização de “a
grande desilusão”, pois “o fim da colonização deveria trazer liberdade e prosperidade; o
nativo daria origem ao cidadão, o senhor de seu destino polìtico, econômico e cultural”, mas
“na maioria dos casos, tudo continua a mesma coisa; muda-se apenas de senhor, e o atual é
por vezes mais tirânico que o anterior” (MEMMI, 2007, p. 17,18). De fato, não utilizo nesta
dissertação o termo „pós-colonial‟, em virtude não apenas das razões já apontadas, mas
principalmente por levar em conta a ambivalência estrutural que Shohat e Stam apontam nele.
Este termo é parte de um „modismo‟ acadêmico que alinha vários „pós‟ na vaga noção de algo
que „está além‟ de algum paradigma filosófico, estético ou polìtico considerado obsoleto –
pós-feminismo, pós-modernismo, pós-estruturalismo; mas enquanto estes termos se referem a
paradigmas intelectuais ultrapassados ou revistos, pós-colonial carrega um sentido de
“movimento além de um ponto especìfico na história” (SHOHAT & STAM, 2006, p. 74), tal
17

como pós-revolução, pós-Guerra Fria, pós-independência8. Isto é, o primeiro tipo de „pós‟


aponta para „avanços‟ e releituras disciplinares da história intelectual, enquanto o segundo
aponta para eventos cronológicos da história factual.

Assim, a utilização de „pós-colonial‟ apaga certas relações de perspectiva, tornando


confuso o vocabulário sobre o tema (por exemplo: discurso colonial é o produzido pela
metrópole, mas discurso pós-colonial é o produzido pelos setores de esquerda da colônia que
lutam contra o colonialismo); apaga as noções de opressão e resistência, uma vez que não há
dualidade entre pós-colonizador e pós-colonizado, como há entre colonizador e colonizado; é
confuso cronologicamente, pois agrupa acriticamente as independências de países da América
do Sul contemporâneas às guerras napoleônicas com as de países africanos, contemporâneas
às viagens espaciais; e, principalmente, implica a noção de encerramento de um período
histórico, isto é, aponta para um estágio „após‟ o colonialismo, pretendendo a inexistência de
relações que poderiam ser classificadas como tais atualmente.

A ideia de que o colonialismo e a dominação estrutural tiveram fim com o ciclo das
independências, que teve seu auge na década de 1960, exime os países do „Primeiro Mundo‟
de qualquer responsabilidade sobre o que aconteceu no continente africano (e em outros
lugares) desde então. Também culpabiliza em absoluto „o pobre pela sua pobreza‟, por assim
dizer: com a suposta saída dos europeus, todas as calamidades que supostamente atingem
cotidianamente o continente africano são consequências da própria incapacidade africana de
auto-gestão. A expressão „pós-colonial‟ oculta, desse modo, o antigo viés racista calcado em
justificações pseudocientíficas que alegam a incapacidade dos “povos inferiores” e, portanto,
a necessidade de intervenção estrangeira, já que a responsabilidade pelos diversos problemas
que assolam a África desde a “saìda” das potências estrangeiras – fome, guerra, pobreza –
seria desses povos que não sabem se cuidar. Justifica assim discursos como o
reabilitacionista. Referendando a análise de N‟Krumah, Shohat e Stam escrevem que “para os

8
Em Palavras-chave pode ser encontrada a seguinte definição de „estudos pós-coloniais‟: “têm como origem
desenvolvimentos teóricos produzidos por intelectuais radicados em centros acadêmicos metropolitanos, mas
provenientes de regiões consideradas periféricas, especialmente de antigas colônias britânicas e francesas. Entre
esses intelectuais, destacam-se Edward Said, Homi Bhabha, Gayatri Chakravorty Spivak e Ranajit Guha, que
deram impulso a uma crítica epistemológica profunda que evidenciou a relação entre as práticas colonialistas
ocidentais e a produção de imagens estereotipadas das culturas não metropolitanas. Na construção teórica
ocidental do Oriente e da África, com o intuito de legitimar os valores ocidentais e de forjar uma cultura
homogênea para melhor subjuga-los, atribuíram-lhes estereótipos como: irracional, primitivo, sensual, vicioso,
cruel, retrógrado e preguiçoso, entre outros (...). O caráter polissêmico do termo “pós-colonial’ produziu certo
grau de insatisfação entre alguns autores (que, no entanto, continuam a utilizá-lo. Uma das razões para isso é
que a nomenclatura sugere, erroneamente, que a era do controle e da exploração ocidental sobre países não-
ocidentais cessou, embora se saiba que esse domínio ocorre por outros meios na atualidade. A maioria das ex-
colônias ainda está longe de deixar de sofrer influência ou controle colonial; dessa forma, não pode ser
considerada pós-colonial literalmente” (WILLIAMS, 2007, pp. 427, 428. Grifos meus).
18

antigos paìses colonizados, a independência formal raramente significou o fim da hegemonia”


(SHOHAT & STAM, 2006, p. 76), mas que em muitos casos a dominação estrutural se tornou
na verdade mais aguda após isso. Para estes autores,

as estruturas hegemônicas e arcabouços conceituais gerados nos últimos


quinhentos anos não podem simplesmente evaporar com o emprego de um
“pós”. Ao implicar que o colonialismo acabou, o pós-colonial obscurece a
presença de traços de colonialismo no presente. Falta ao pós-colonial uma
análise política das relações de poder contemporâneas (...). Pois quaisquer
que sejam as conotações de “pós” como um ponto de continuidades e
descontinuidades, suas tentações teleológicas levam a um apagamento
celebratório de um espaço conceitual (SHOHAT & STAM, 2006, p. 77).
Outro problema da terminologia empregada para descrever esse movimento histórico é
apontado por Marc Ferro: o termo „descolonização‟ em si. Para o mestre francês, além da
problemática já apontada no que diz respeito ao apagamento das relações de poder
contemporâneas, escondidas por seu uso, trata-se de um “termo mal escolhido, eurocentrado,
e que ignora a participação dos povos oprimidos em sua libertação” (FERRO, 2004, p. 11).
„Descolonização‟, ao centrar a atenção no paìs europeu que „concede‟ a independência ao paìs
africano, contribui ainda mais para os silêncios ensurdecedores sobre as resistências africanas,
que foram as grandes responsáveis pelo fim da relação de dominação clássica estabelecida
pelo Imperialismo. Ferro pergunta: “No mundo afro-asiático, independente desde os anos 50 e
60, deve-se falar de neocolonialismo ou de neo-imperialismo?” (FERRO, 1996, p. 392). A
escolha que faço para a escrita desta dissertação é baseada em opções teóricas específicas.
Considero o termo Neocolonialismo mais apropriado, em função tanto do uso consagrado por
N‟Krumah quanto da teorização que dele fazem Shohat e Stam:

Enquanto o termo neocolonial também indica uma passagem, ele enfatiza a


repetição com diferença, um ressurgimento do colonialismo sob outros
disfarces. O termo neocolonialismo designa uma hegemonia geoeconômica,
ao passo que o pós-colonial sutilmente desvia o foco de qualquer ideia de
dominação contemporânea. (...) “Neocolonialismo” enfatiza continuidades
(SHOHAT & STAM, 2006, p. 78. Grifo meu).
Neocolonialismo também dá conta melhor das responsabilidades compartilhadas entre
dominadores e elites locais dominadas, a colusão pós-independências apontada por Ferro (Cf.
SHOHAT & STAM, 2006, p. 73-77). Shohat e Stam afirmam que, embora o controle colonial
direto não exista mais, “grande parte do mundo permanece sob a égide de um
neocolonialismo; ou seja, uma conjuntura na qual o controle político e militar deu lugar a
formas de controle abstratas, indiretas, em geral de natureza econômica, que dependem de
uma forte aliança entre o capital estrangeiro e as elites locais” (SHOHAT & STAM, 2006, p.
42).
19

Uma das facetas do Neocolonialismo não constantes no Imperialismo é a atuação das


empresas multinacionais. Grande parte da atuação neocolonial é executada por grandes
empresas, que além de se instalar em partes do mundo com mão-de-obra barata disponível,
muitas vezes possuem exércitos mercenários próprios para „pacificar‟ regiões que lhes
interessam; em outros casos, às próprias guerras encetadas pelas potências são atribuídas
razões de interesse das multinacionais, como o caso do petróleo no Iraque, considerada a
primeira guerra quase totalmente terceirizada da história. As prestadoras de serviço ao
exército, que fornecem da comida aos banheiros utilizados pelos militares em combate, para
não falar na indústria bélica, vêm obtendo lucros gigantescos com qualquer intervenção do
exército estadunidense. Em virtude disso, muitos estudos apontam para um declínio da
atuação dos Estados, e mesmo a possibilidade de sua supressão no futuro, em benefício de
uma ideia de mercado livre levada às últimas consequências.

Samir Amin não considera essa uma opção realística, uma vez que a o Estado tende a
atuar como apaziguador e árbitro de conflitos internos entre os interesses do capital em jogo.
Além disso, ele afirma que “o Estado é hoje o agente de execução necessário, a serviço
exclusivo dos segmentos dominantes do capital (justamente os que são “mundializados”),
como ele foi (e pode se tornar novamente) o agente de outras coalizões de forças sociais (é
esse o sentido da democracia)” (AMIN, 2005, p. 5). Podemos ter uma percepção humanizada
da natureza do modelo de atuação neocolonial recorrendo a uma grande e atual obra literária.
No belíssimo As vinhas da ira (1939), livro em que descreve os terríveis efeitos humanos da
irresponsabilidade financeira que levou à Grande Depressão nos EUA, há uma passagem
memorável em que o escritor e ativista estadunidense John Steinbeck descreve a
incredulidade do agricultor ante ao fato de estar sendo expulso de suas terras e simplesmente
não existir alguém que se possa responsabilizar:

– É uma pena, sentimos muito. Mas não temos culpa. A culpa é dos bancos.
E um banco, já sabe, um banco não é como um homem.
– Sim, mas os bancos são dirigidos por homens.
– Não, vocês estão muito enganados, completamente enganados. Um banco
é muito diferente. Acontece que todos os que trabalham nos bancos detestam
o que os bancos têm que fazer, mas eles obedecem, porque os bancos assim
mandam. (...) Vocês têm que sair daqui.
– Nós podemos pegar nas nossas armas, como nossos avós fizeram quando
vinham os índios. Podemos, sim.
– Não, agora é diferente. Primeiro vem o xerife, depois vêm os soldados,
tropas. Vocês serão presos se insistirem em ficar, serão mortos se tentarem
lutar para ficar. Agora é diferente; o monstro não é homem, mas pode tornar-
se homem quando quiser (STEINBECK, 1982, p. 44).
20

No modelo de dominação atual, neocolonialista, a atuação das multinacionais e os


métodos burocratizados ao extremo despersonalizam o “dominador” e tornam indistinto o
“inimigo” que explora a África apresentada nos filmes; são as formas de controle abstrata a
que Shohat e Stam fazem referência. Marc Ferro afirma que da “incapacidade dos dirigentes
em ordenar o processo econômico e social” resulta a pergunta: contra quem se revoltar?
(FERRO, 1996, p. 397). Ainda segundo Shohat e Stam, “a dominação neocolonial é reforçada
por meio de termos de contrato degradantes e “programas de austeridade” através dos quais o
Banco Mundial e o FMI, muitas vezes com o apoio das elites locais, impõem regras que os
países do Primeiro Mundo jamais tolerariam” (SHOHAT & SAM, 2006, p. 43). Tariq Ali diz
que

A diferença entre os antigos impérios e o americano é que os Estados Unidos


geralmente preferem trabalhar por meio de intermediários locais,
governantes da região que são a favor deles. Eles não gostam de governar
diretamente, porque sabem que o gasto é enorme. Por que enviar seus
próprios cidadãos para dirigir um país quando se pode encontrar habitantes
locais que façam isso? (ALI, 2006, p. 23).
Além disso, desejo ressaltar outro aspecto incompleto da descolonização: o cultural.
Mary Louise Pratt afirma que a descolonização política não gera automaticamente o que vem
sendo chamado de descolonização da mente: “Por si mesmas as mudanças polìticas não
transformam a consciência humana, os sistemas de significação e hierarquias de valor. Eles
criam condições nas quais novas formas de subjetividade e consciência poderão ser
procuradas” (PRATT, 1999, p. 16). A relevância do „pós-colonial‟, se entendido enquanto
período histórico, é justamente ser o momento de aproveitar o fim da dominação física para
fazer frente ao desafio de descolonizar o pensamento também, que continua impregnado de
estereótipos imperialistas. Uma das falsas percepções que as expressões „descolonização‟ e
„pós-colonial‟ podem transmitir é de que os postulados de Hegel sobre a suposta a-
historicidade da África, citados no capítulo anterior, estão definitivamente superados. Ledo
engano. J.D. Fage, no capítulo A evolução da historiografia na África (volume I da Coleção
História Geral da África), cita trechos da nota de abertura de uma série de cursos proferidos
na Universidade de Oxford, em fins de 1963, pelo renomado historiador Hugh Trevor-Hoper,
intitulados “A ascensão da Europa cristã”. Em tal nota, ele afirma peremptoriamente a
desnecessidade de se estudar a história do continente africano em virtude simplesmente da
inexistência desta história. Eis a fala do professor:

Pode ser que, no futuro, haja uma história da África para ser ensinada. No
presente, porém, ela não existe; o que existe é a história dos europeus na
África. O resto são trevas... e as trevas não constituem tema de história.
21

Compreendam-me bem. Eu não nego que tenham existido homens mesmo


em países obscuros e séculos obscuros, nem que eles tenham tido uma vida
política e uma cultura interessantes para os sociólogos e os antropólogos;
mas creio que a história é essencialmente uma forma de movimento e
mesmo de movimento intencional. Não se trata simplesmente de uma
fantasmagoria de formas e costumes em transformação, de batalhas e
conquistas, de dinastias e usurpações, de estruturas sociais e de
desintegração social (...). A história, ou melhor, o estudo da história, tem
uma finalidade. Nós a estudamos (...) a fim de descobrir como chegamos ao
ponto em que estamos. O mundo atual está a tal ponto dominado pelas
ideias, técnicas e valores da Europa ocidental que, pelo menos nos cinco
últimos séculos, na medida em que a história do mundo tem importância, é
somente a história da Europa que conta. Por conseguinte, não podemos nos
permitir divertimo-nos com o movimento sem interesse de tribos bárbaras
nos confins pitorescos do mundo, mas que não exerceram nenhuma
influência em outras regiões (Apud FAGE, 1982, p. 49. Grifo meu).
Esta ainda é a pauta seguida pelo conhecimento eurocêntrico para descrever a África.
Em termos de conteúdo, se não de forma, a permanência da visão hegeliana de um século
antes na fala de Trevor-Hoper é facilmente perceptível. As consequências decorrentes dessa
permanência também não são de difícil compreensão. Faz-se necessária uma breve exposição
da atual política internacional, a exemplo da contextualização feita em relação ao século XIX,
para entender quais as motivações políticas para a manutenção desta imagem da África que,
seguramente o leitor deve ter percebido, é precisamente aquela transmitida nos filmes
produzidos pela indústria cinematográfica hegemônica contemporânea.

Para essa contextualização, me utilizo das reflexões do intelectual egípcio Samir Amin
e sua concepção de Imperialismo Coletivo. Como dito anteriormente, Amin entende que “a
expansão global do capitalismo foi imperialista em todas as etapas de sua história e assim
permanece por todo o futuro vislumbrável (enquanto o sistema permanecer essencialmente
fundado sobre a lógica do capitalismo)” (AMIN, 2005, p. 6), de modo que o imperialismo, na
sua concepção, é o “estágio permanente do capitalismo mundializado realmente existente”
(AMIN, 2005, p. 6). Samir Amin compartilha da visão de sistema-mundo moderno de
Immanuel Wallerstein, sendo que o elemento que mais difere no pensamento de Amin em
relação ao que já foi exposto sobre o conceito de sistema-mundo é a noção de „imperialismo
coletivo‟.

Para Amin, os „centros‟ são produtos históricos decorrentes da hegemonia política


alcançada pela burguesia em alguns paìses, enquanto que as „periferias‟ se definem de forma
negativa, são simplesmente as regiões que não se tornam centros do sistema-mundo. Já o
imperialismo é por ele entendido como imanente à expansão do sistema-mundo, e Amin
identifica três fases cronológicas distintas nessa expansão: 1) “O primeiro momento desse
22

desenvolvimento devastador do imperialismo foi organizado em torno da conquista das


Américas, no quadro do sistema mercantilista da Europa atlântica da época” (AMIN, 2005, p.
8); 2) “O segundo momento da devastação imperialista foi construìdo com base na revolução
industrial e se manifestou pela submissão colonial da Ásia e da África. “Abrir os mercados” e
apoderar-se das reservas naturais do globo eram as reais motivações, como é sabido hoje em
dia” (AMIN, 2005, p. 8); e 3) “Estamos hoje nos confrontando com o inìcio do
desenvolvimento de uma terceira onda de devastação do mundo pela expansão imperialista,
encorajada pela derrocada do sistema soviético e dos regimes do nacionalismo populista do
terceiro mundo” (AMIN, 2005, p. 8). Ou seja, a concepção de Imperialismo de Amin se
confunde com o próprio entendimento de sistema-mundo proposto por Wallerstein. Todo o
processo de expansão da economia-mundo capitalista, desde as grandes navegações, seria
caracteristicamente imperialista, variando apenas as particularidades desse Imperialismo em
cada época. A concepção de Imperialismo adotada nesta dissertação é de que ele foi um
momento específico na expansão do sistema-mundo capitalista, caracterizado pela utilização
de uma estratégia específica, que foi considerada, pelo centro do sistema, pouco lucrativa (em
virtude principalmente das resistências locais) e abandonada na metade do século XX; ou
seja, entendo como Imperialismo o que Samir Amin entende como segunda fase do
Imperialismo.

Acredito que a revisão desse vocabulário teórico é fulcral para estabelecer um quadro
nítido onde se possa avaliar com segurança a atual produção de imagens eurocêntricas sobre o
continente africano (e sobre outras áreas „periféricas‟ do globo, por extensão), pois, como diz
o próprio Samir Amin, “a desordem completa que caracteriza nossa época alimenta e se
alimenta de um convite à inação” (AMIN, 2005, p. 5). O quadro maior, o contexto
estruturante amplo onde a história do mundo, inescapavelmente, se encaixa desde o final da
„Idade Média‟ é a conjuntura de expansão violenta do sistema-mundo capitalista e as reações
a ela. Essa expansão atingiu seu auge em fins do século XIX e começo do século XX, na fase
que denomino de Imperialismo. E atualmente essa expansão continua, numa forma que Samir
Amin denomina Imperialismo Coletivo, mas que eu, como já apontei, optei por chamar de
Neocolonialismo, em virtude de sua conotação de repetição de um modelo já posto em
prática, mas com diferenças que marcam a sua contemporaneidade. Cada escolha
terminológica tem uma relevância polìtica, de modo que “não se trata de decidir se
determinado esquema conceitual está “errado” e outro “correto”, mas de perceber que cada
esquema explica apenas parcialmente as questões em jogo”, e as escolhas feitas para esta
23

dissertação tentam formar um “quadro mais móvel e flexìvel de lentes disciplinares e


interculturais mais adequadas à complexa política contemporânea, ao mesmo tempo em que
mantemos vivas as possibilidades de ação e resistência” (SHOHAT & STAM, 2006, p. 78).

Portanto, me utilizo, para situar a „complexa polìtica contemporânea‟, das teorizações


de Samir Amin, simplesmente adaptando a nomenclatura de „Imperialismo Coletivo‟,
utilizada por ele, para „Neocolonialismo‟, pelas razões já explicitadas. Em primeiro lugar,
Amin aponta para as continuidades dentro do sistema-mundo depois do fim da Guerra Fria:

Os objetivos do capital dominante permanecem os mesmos – o controle da


expansão dos mercados, a pilhagem dos recursos naturais do planeta, a
superexploração das reservas de mão-de-obra da periferia – ainda que
operando em novas condições e, em certos aspectos, muito diferentes
daquelas que caracterizaram a fase precedente do imperialismo (AMIN,
2005, p. 8).
Já as principais rupturas no modo de atuação do sistema-mundo se situam em torno do
período da Segunda Guerra Mundial. Para Amin, esse período marcou uma transformação-
chave nas formas de Imperialismo, que foi

a substituição de uma multiplicidade de imperialismos em permanente


conflito por um imperialismo coletivo associando o conjunto dos centros do
sistema mundial capitalista (para simplificar, a “trìade”: os Estados Unidos e
sua província canadense, a Europa Ocidental e Central, o Japão). Essa nova
forma de expansão imperialista passou por diferentes fases de
desenvolvimento, mas ela ainda está em plena vigência. O papel hegemônico
eventual dos Estados Unidos, do qual será necessário precisar as bases, bem
como as formas de sua articulação ao novo imperialismo coletivo, devem ser
situados nessa perspectiva (AMIN, 2005, p. 14).
Essa perspectiva tem a vantagem de explicar o Neocolonialismo em sua
complexidade: há a indiscutível hegemonia político-militar estadunidense, mas essa
hegemonia se situa num modelo de expansão da economia-mundo capitalista que não
pressupõe conflitos com os outros centros do sistema, Europa e Japão, mas sim uma atuação
coletiva, o que explica a opção terminológica de Amin. Não há mais espaços no globo para
serem anexados, como „previu‟ Cecil Rhodes, mas as guerras coloniais continuam a ser
travadas e a expansão do sistema-mundo prossegue, apenas utilizando-se de novas estratégias
que visam maximizar o lucro (já vimos que o Imperialismo demandava investimentos
exorbitantes da metrópole, o que vai de encontro ao princípio de acumulação infinita de
capital que guia a economia-mundo capitalista). O ponto que desejo alcançar, trazendo toda
essa discussão de volta para a reflexão sobre a imagem do continente africano, é que, do
mesmo modo como vimos no capítulo anterior que a expansão capitalista como um todo, e a
invasão da África em particular, necessitavam de legitimidade, a atuação das potências
24

neocoloniais contemporâneas, especialmente os EUA, também precisa. E, dentre os meios


para alcançar essa legitimidade, a indústria cinematográfica é um dos mais atuantes.

Conforme exposto anteriormente9, à história da violenta expansão física do sistema-


mundo moderno corresponde uma história intelectual das doutrinas usadas em cada época
para lhe conferir legitimação. Relembrando essas histórias paralelas, vimos que no primeiro
momento da expansão, a partir do século XVI, essa legitimação advinha do uso feito da „lei
natural‟ e do cristianismo; no perìodo de consolidação da dominação mundial, no século XIX,
o que legitimava a expansão eram a missão civilizadora e suas bases pseudocientífcas. Essas
formas resumidas de caracterizar cada uma dessas legitimações nem de longe pretendem
abarcar a imensa diversidade conceitual que elas abrangeram, mas apenas ressaltar a ideia que
ligava uma à outra, e que por sua vez permanece na teoria legitimadora do Neocolonialismo:
“a ideia de uma identidade europeia superior a todos os povos e culturas não europeus”
(SAID, 2007, p. 34). Trata-se daquele suposto “bem”, supostamente “universal”, com que
apenas o „ocidente‟ foi agraciado e que tem como dever levar para o restante do planeta,
mesmo que as pessoas de outros lugares precisem ser convencidas à força de que precisam
desse „bem‟. O sistema-mundo capitalista já disse que esse „bem‟ era o cristianismo e a
civilização; atualmente esse „bem‟ foi convertido numa vaga noção chamada democracia,
ligada à noção também indefinida de direitos humanos. Discorrendo sobre o direito de
intervenção, Immanuel Wallerstein mostra como as justificativas para a recente invasão do
Iraque pelos EUA, por exemplo, repousam em última instância nos argumentos de Sepúlveda
para a catequização forçada dos amerìndios: “O equivalente no século XXI é o direito e o
dever de espalhar a democracia” (WALLERSTEIN, 2007, p. 58). Diante de qualquer
questionamento sobre o direito de intervir no Vietnã nos anos 1960-70, nos Bálcãs, na década
de 1990, ou no Iraque, nos anos 2000, por exemplo, os governos dos EUA e dos países
europeus que participam na intervenção recorrem à justificativa moral que postula o fato de
essas intervenções terem como objetivo maior levar os direitos humanos e a democracia às
sociedades invadidas. É a „versão 2.0‟ da missão civilizadora, adaptada para o final do século
XX e começo do século XXI. Wallerstein demonstra como as críticas à intervenção expõem
facilmente as limitações do conceito de democracia utilizado para justificá-las, perguntando
como é possìvel medir a „conversão‟ das nações invadidas aos valores democráticos:

Para os interventores, isso [i.e., a „conversão‟] parecia significar


essencialmente dispor-se a realizar eleições das quais vários partidos ou
facções pudessem participar com um mínimo grau de civilidade e

9
Ver páginas 123,124 desta dissertação.
25

possibilitar uma campanha pública. Essa é uma definição bem limitada de


democracia. Mesmo nesse nível mínimo, não é possível ter certeza de que
isso tenha sido alcançado de forma durável em algumas regiões
(WALLERSTEIN, 2007, p. 58).
Mais uma vez, o que entra em ação nessas circunstâncias é o universalismo europeu,
um “conjunto de doutrinas e pontos de vista éticos que derivam do contexto europeu e
ambicionam ser valores universais” (WALLERSTEIN, 2007, p. 60), utilizado como critério
para a atuação global dos agentes do sistema-mundo capitalista10. O escritor paquistanês Tariq
Ali, no livro A nova face do império (ALI, 2006), discorre sobre essa legitimação ideológica
para as guerras neocoloniais contemporâneas: “Todas estas guerras são similares com relação
ao uso da ideologia. É a ideologia da chamada intervenção humanitária. Não queremos fazer
isso, mas fazemos pelo bem das pessoas que vivem lá” (ALI, 2006, p. 12).

Imperialismo é um termo que adquiriu acepções negativas, às quais o governo dos


EUA historicamente nunca quis estar associado. Tariq Ali diz que “esta é uma palavra de que
os americanos não gostam. Em parte por causa da Guerra Fria e em parte porque desafia sua
auto-imagem” (ALI, 2006, p. 19)11. Apesar disso, o governo estadunidense afirma que a
chamada „guerra contra o terror‟, iniciada a partir dos ataques terroristas de 11 de Setembro
de 2001, está apenas em um estágio inicial, que pode se estender por quinze anos e envolver
até sessenta países. Mesmo não rotulada de imperialista, as implicações dessa guerra (que já
interviu diretamente na soberania de dois países do oriente médio e parece se aproximar da
intervenção em mais um) tem cores bastante imperialistas. Ali afirma que a principal
implicação da „guerra contra o terror‟ é “um remapeamento do mundo de acordo com a
polìtica e os interesses americanos”, pois “os recursos naturais são limitados, e os Estados
Unidos querem garantir o abastecimento de sua própria população” (ALI, 2006, p. 16). Isso
traduz a conjuntura política mundial contemporânea, que pode ser resumida nas palavras de
Ali:

Podemos ver exatamente o que está acontecendo. A Estratégia de Segurança


Nacional dos Estados Unidos publicada pela administração Bush em
setembro de 2002 deixa a situação clara. Eles dizem que a defesa do livre
comércio – isto é, o livre comércio como o vemos e de acordo com as regras

10
Eis o conceito de democracia advogado pelo próprio Wallerstein: “Quando o conceito de democracia quer
dizer algo mais amplo, com o controle genuíno da tomada de decisões pela maioria da população na estrutura
governamental, a capacidade real e constante de qualquer tipo de minoria exprimir-se política e culturalmente e a
aceitação da legitimidade e da necessidade constante do debate político aberto, parece bastante claro que essas
condições precisam amadurecer internamente nos diversos países e regiões e que, em geral, a intervenção
externa é contra-indicada por associar o conceito de democracia ao controle externo e aos fatores negativos
provocados pela intervenção” (WALLERSTEIN, 2007, pp. 58, 59).
11
Sobre a temática especìfica do “Império Americano”, ver PIETERSE (2009), LOSURDO (2010), LENS
(2006), CHOMSKY (1996, 1999, 2002).
26

que fazemos – é um princípio sagrado e moral. E de modo a defendê-lo,


estamos preparados para ir à guerra (ALI, 2006, p. 23).
A doutrina „democracia mais direitos humanos, passando pelo livre comércio‟ é
moralmente e politicamente ambìgua por diversas razões. Uma delas é o fato de que “ataca os
crimes de alguns e passa por cima dos crimes de outros, apesar de usar os critérios de uma lei
que se afirma natural” (WALLERSTEIN, 2007, p. 60). Julga com rigor os crimes cometidos
em nações onde há algum interesse político-financeiro subjacente, mas faz vista grossa em
relação aos que são cometidos em „paìses aliados‟ (situação bastante nìtida nas intervenções
ou não-intervenções ocorridas em função da chamada „primavera árabe‟ – a partir de quais
critérios Muammar Kadafi é mais criminoso que Bashar al-Assad?), e, principalmente, aos
cometidos pelos próprios agentes do sistema-mundo: como afirmou Noam Chomsky, “Eu
penso, falando do ponto de vista legal, que há um motivo bem sólido para acusar todos os
presidentes norte-americanos desde a Segunda Guerra Mundial. Eles todos têm sido
verdadeiros criminosos de guerra ou estiveram envolvidos em crimes de guerra”
(CHOMSKY, 1996, p. 14). De uma maneira muito sutil, a prática concreta da doutrina
„democracia mais direitos humanos‟ é uma releitura das práticas racistas que fundamentaram
o Imperialismo. Talvez a tradução mais completa dessa perspectiva seja a noção de “choque
de civilizações”, que entrou na pauta estadunidense logo após o fim do „inimigo comunista‟.
A necessidade orwelliana de estado de guerra permanente engendrou uma rápida justificativa
para a escolha de um novo „inimigo da vez‟:

No final da década de 80, o mundo comunista desmoronou e o sistema


internacional da Guerra Fria virou história passada. No mundo pós-Guerra
Fria, as distinções mais importantes entre os povos não são ideológicas,
políticas ou econômicas. Elas são culturais (HUNTINGTON, 1997, p. 20).
Samuel Huntington e Bernard Lewis estão entre os representantes mais destacados do
chamado neoconservadorismo, setor da intelectualidade estadunidense que entende a política
externa como aspecto central do governo, em função da necessidade de os EUA se manterem
como superpotência isolada para manutenção da „ordem mundial‟, e que advoga, entre outras
coisas, a causa do choque de civilizações como a ordem do dia nas relações internacionais.
Essa expressão foi usada pela primeira vez por Bernard Lewis em um artigo intitulado “As
raízes da ira muçulmana”, publicado em 1990, em que generaliza os cerca de um bilhão de
muçulmanos do planeta, de todos os continentes, com idiomas, histórias e tradições muito
diferentes entre si, como uma civilização „irada‟ e „irracional‟ que tem uma „disposição de
ânimo‟ inquestionavelmente antagônica à civilização ocidental e seus valores seculares (cf.
SAID, 2003, p. 319). Mas a expressão só ganhou destaque no mundo acadêmico quando foi
27

parar no título de um artigo de 1993, transformado em sequência num livro (1995), escritos
por Samuel Huntington: “O choque de civilizações?” – o título do livro não possui a
interrogação – consiste no seguinte, nas palavras do autor:

não é, nem pretende ser, uma obra de ciência social. Ao contrário, ele visa
ser uma interpretação da evolução da política mundial depois da Guerra Fria.
Ele almeja apresentar uma moldura, um paradigma, para o exame da política
mundial que tenha significado para os estudiosos e seja de utilidade para os
formuladores de políticas (HUNTINGTON, 1997, p. 12. Grifo meu).
O livro de Huntington divide o mundo entre “o ocidente e o resto” (HUNTINGTON,
1995, p. 22), classificando de modo por vezes grosseiro o „ocidente‟ – composto pela Europa
Ocidental, América do Norte e Austrália – como o centro de um sistema em torno do qual
giram as outras sete civilizações do mundo elencadas pelo autor: a sínica (a que chamou
primeiro de confunciana), a japonesa, a hindu, a islâmica, a ortodoxa, a latino-americana e a
africana, colocando após esta última um „parênteses‟: (possivelmente). O autor afirma que “os
principais estudiosos de civilização, com exceção de Braudel, não reconhecem uma
civilização africana distinta” (HUNTINGTON, 1995, pp. 50-54). A perspectiva adotada no
trabalho de Huntington e nos que seguem essa linha de raciocínio é a do confronto. Ele
enumera as reações possìveis das outras civilizações ao „ocidente‟, que vão do „rejeicionismo‟
à „ocidentalização‟, e, como ele expõe no trecho grifado supra, indica para os polìticos os
caminhos a tomar para manter o domìnio „ocidental‟.

As críticas a esse ponto de vista, que divide arbitrariamente o mundo contemporâneo


em civilizações, e considera essas civilizações como entidades estanques nas quais todos os
membros tomam como axiomas inquestionáveis as propostas da sua própria civilização, são
muitas. Começando pelo próprio „ocidente‟, já invalidando a sua teoria, e fora dele. Edward
Said escreveu um artigo em que destaca as grandes falhas intelectuais e políticas na
argumentação do choque de civilizações, chamado O choque de definições (In SAID, 2003).
O fato de se basear totalmente em conjecturas e realizar apenas previsões já deveria invalidar
essa tese, mas vejamos o que Said diz a respeito:

É tão forte e insistente a noção de Huntington de que as outras civilizações


entram necessariamente em choque com o Ocidente e tão agressiva e
chauvinista sua receita do que o Ocidente deve fazer para continuar a ganhar,
que somos forçados a concluir que ele está realmente muito interessado em
continuar e expandir a Guerra Fria por meios diferentes de propor ideias
sobre a compreensão da cena mundial ou de tentar reconciliar culturas
diferentes. No que ele diz, quase nada expressa dúvida ou ceticismo. Não
somente o conflito continuará – diz ele na primeira página –, como “o
conflito entre civilizações será a última fase da evolução do conflito no
mundo moderno” (SAID, 2003, pp. 317).
28

Para Said, os escritos de Huntington podem ser entendidos como “um manual muito
curto e grosseiramente articulado da arte de manter uma situação de tempo de guerra nas
mentes dos americanos e de outros povos”, chegando a afirmar que as argumentações dele
assumem propositalmente o “ponto de vista dos planejadores do Pentágono e dos executivos
da indústria de defesa que talvez tenham perdido suas ocupações depois do fim da Guerra
Fria, mas descobriram agora uma nova ocupação” (SAID, 2003, p. 318). Mas o principal
questionamento que Said levanta é: nós queremos ou precisamos de um choque? É evidente a
ligação entre a ideia do „choque de civilizações‟ e a atual „guerra contra o terror‟, uma vez
que o 11 de Setembro reafirmou muitas das convicções preconceituosas dos neoconservadores
sobre o mundo islâmico, perdendo de vista que, assim como no „ocidente‟ há discordância
sobre a própria noção de „ocidente‟, há um intenso debate e muita oposição secular à posturas
radicais entre a imensa maioria dos muçulmanos, e não um simplista e „furioso‟ surto de
fundamentalismo. O posicionamento intelectual do „choque das civilizações‟ não apenas
incentiva o confronto, mas o justifica. Faz com que ele aparente ser inevitável em virtude da
alegada incompatibilidade entre as civilizações. Ora, Braudel é apenas um dos teóricos sobre
civilização que demonstrou que a própria ideia de civilizações isoladas é impossível. Mais do
que uma simples análise do comportamento das civilizações, trata-se de uma teoria que
receita o acuamento permanente das „outras‟ civilizações pelo „ocidente‟, incitando e
justificando um conflito permanente. É nessa perspectiva que a doutrina da „democracia mais
direitos humanos‟ é colocada em prática nos nossos dias, substituindo sutilmente o racismo
que justificava o Imperialismo por um „preconceito‟ estendido à „civilização‟ inteira da qual o
Outro faz parte. O „racismo 2.0‟ colocado em prática pelo Neocolonialismo atualmente pode
ser percebido em situações como a apontada por Tariq Ali:

Não se pode negar que um sentimento subjacente de superioridade branca


existe. Vou dar um exemplo concreto: considere a tragédia do 11 de
Setembro, quando vários civis foram mortos em Nova York e Washington.
O mundo todo foi incentivado a ficar de luto em público por eles, ou pelo
menos isso foi passado em geral pela mídia. Por quê? Porque eram cidadãos
dos Estados Unidos. Quando cidadãos afegãos são mortos em bombardeios
indiscriminados, pelos chamados bombardeios acidentais (...) ou as mortes
que acontecem agora por causa da inanição, essas mortes não contam muito.
Ninguém nunca vai construir um monumento para os civis afegãos que
morreram em ataques com bombas (...). Por que as vidas afegãs tem menos
importância? Porque por trás de toda esta retórica permanece a crença de que
somos uma nação e um povo superiores. Veja a forma desdenhosa como as
baixas no Iraque são discutidas (...). Ele disse que os cálculos discutidos
eram em torno de 250 mil – não devia passar disso. Duzentos e cinquenta
mil mortes de civis são aceitáveis? Três mil mortos americanos não são
aceitos pelos Estados Unidos, mas 250 mil mortos iraquianos são. Hoje, o
29

racismo tem uma forma diferente do que tinha nos impérios antigos, mas
ainda existe (ALI, 2006, p. 30,31).
Esse tipo de ação política concreta só é possível porque tem ideias legitimadoras –
levar a democracia, os direitos humanos e a liberdade de mercado – que o justificam, ideias
que, por mais incoerentes que possam ser, são popularizadas pela grande mídia, a rede
informacional contemporânea, que possui, dentre outros meios e suportes, na indústria
cinematográfica hegemônica um de seus mais potentes canais para chegar ao grande público.
Grandes narrativas cinematográficas, os chamados sucessos de bilheteria, continuam
celebrando a pretensa superioridade eurocêntrica, „ocidental‟, no dizer de Samuel Huntington.
Filmes que sempre tem personagens brancos euro-estadunidenses exercendo o papel central e
o ponto de vista privilegiado, o „homem branco‟ como salvador do oprimido de qualquer raça,
em qualquer lugar e em qualquer época – e até em lugares e época inventados. Basta
recordarmos filmes célebres e populares nas últimas décadas, como Star Wars Episódio VI: O
Retorno de Jedi (Star Wars Episode VI: Return of the Jedi, George Lucas, 1983), Mississipi
em chamas (Mississipi burning, Alan Parker, 1988), Dança com lobos (Dances with wolves,
Kevin Costner, 1990), O último samurai (The last samurai, Edward Zwick, 2003), Avatar
(James Cameron, 2009), Histórias cruzadas (The help, Tate Taylor, 2011), Lágrimas do Sol
(entre tantos outros que se passam em África), para perceber como essa retórica está presente,
sob diversos disfarces, em nosso cotidiano. É nesse contexto político, de uma falsa percepção
da „descolonização‟ bem como de relações neocoloniais precisas, em moldes polìticos e
intelectuais que guardam similaridades mas com revisões em relação aos modelos do
Imperialismo, que se enquadram os filmes alvo de estudo desta dissertação. Assim como os
romances do século XIX e começo do século XX, esses filmes não são moldados
automaticamente pela ideologia de nossa época, mas “estão profundamente ligados à história
de suas sociedades, moldando e moldados por essa história e suas experiências sociais em
diferentes graus. A cultura e suas formas estéticas derivam da experiência histórica” (SAID,
1995, p. 23).
30

CAPÍTULO 2: A ÁFRICA QUE OS FILMES MOSTRAM

– Que deus esteja com vocês!


– Deus já deixou a África.
Tenente Waters, personagem de Bruce Willis em
Lágrimas do Sol (Antoine Fuqua, 2003).

Pode ser um exercício interessante começar um estudo sobre a imagem da África


trazendo à tona uma imagem recorrente sobre aquele continente. Para mim, durante muito
tempo, ouvir falar ou mesmo pensar em África imediatamente trazia à mente uma figuração
de memória12 oriunda da infância, a sequência inicial do filme O rei leão (The lion king, Rob
Minkoff e Roger Allers, 1994)13: um sol enorme e laranja erguendo-se no horizonte da
savana, ao som das inesquecíveis palavras “Nants ingonyama bagithi Baba, Sithi uhm
ingonyama”, gritadas mais que cantadas, em zulu, pelo cantor sul africano Lebo M,
acompanhado pelo ritmo empolgante de tambores e de um coral de vozes „africanas‟, dando
início à canção-tema do filme.14 Enquanto a música toca, a tela vai apresentando diversas
espécies de animais que supostamente habitam as selvas e savanas africanas, que parecem
ouvir o grito dessa mesma canção que o espectador pode ouvir aqui, na sala de casa.
Atendendo a essa espécie de „chamado da selva‟, de girafas a besouros vão abandonando seus
afazeres e se reunindo, num longo cortejo por água, céu e terra. Se você, que lê essas linhas,
esteve entre os milhões de espectadores que tornou O rei leão uma das maiores bilheterias da
história do cinema, ou mesmo se assistiu ao filme em casa num hoje obsoleto aparelho de
videocassete (ou em casa de vizinhos, como eu), ou assistiu O rei leão 3: Hakuna Matata
(The lion King 1 ½, Bradley Raymond, 2004), em que essa sequência é parodiada, é provável
que se lembre de tais imagens. A população animal da savana, mostrada de diversos e

12
Tomo o conceito de „figuração de memória‟ do historiador Eduardo França Paiva: “imagens de memória,
aquelas que trazemos conosco, em nosso cotidiano, muitas vezes sem percebermos e que nem sempre têm uma
representação plástica invariável” (PAIVA, 2004, p. 14).
13
Muito embora O rei leão não se inclua no recorte apresentado anteriormente para a pesquisa, aqui cito
especificamente uma figuração de memória pessoal; além disso, e mais importante, a franquia O rei leão
continuou „dando frutos‟, sendo, por exemplo, O rei leão 3: Hakuna Matata, produzido em 2004, portanto
dentro do recorte da pesquisa, basicamente uma releitura do primeiro filme sob o ponto de vista de outros
personagens, utilizando as mesmas imagens.
14
A letra da música citada, Circle of Life, de autoria do cantor britânico Elton John em parceria com o letrista
Tim Rice (indicada ao prêmio de melhor canção de 1994 da academia de cinema de Hollywood), pode ser
encontrada no seguinte endereço eletrônico (inclusive a tradução para o inglês dos trechos em zulu):
http://www.lionking.org/lyrics/OMPS/CircleOfLife.html. Acessado em 08/08/2011.
31

inovadores ângulos, dirige-se em massa para um imenso rochedo onde um babuíno, que por
algum motivo inferimos que seja sábio, apresenta para todos os animais reunidos – que agora
compreendemos como sendo um imenso e exultante grupo de súditos composto por elefantes,
zebras, macacos, antílopes e várias outras espécies – o filhote de leão herdeiro do „trono da
selva‟, após um ritual de unção com tons mágicos. Logo descobrimos que esse leãozinho se
chama Simba e que ele será o protagonista do drama em tons shakespearianos que segue. O
título do filme aparece com a última batida da música, encerrando essa sequência de abertura.

Através de um processo que não é compreensível automaticamente, temos gravadas


em nossa psique algumas imagens referenciais, imagens que identificamos de modo
automático mesmo sem percebermos, e principalmente sem nos darmos conta de onde
sabemos que sabemos tais coisas. É o caso das imagens que compõem a sequência inicial de
O rei leão: não é necessária uma legenda no início do filme informando que a história se
passará em África. Nós sabemos, “instintivamente”, que se trata do „continente selvagem‟,
pois o conjunto de sons e imagens que abrem o filme não deixa dúvida alguma em nossos
sentidos quanto a isso. Em praticamente todos os filmes que retratam de alguma forma o
continente africano, a presença desse tipo de imagem é facilmente apreensível. Essas imagens
reconhecidas „automaticamente‟ são o que se convencionou chamar de imagens
estereotipadas.
32

ESTEREÓTIPOS

A palavra estereótipo tem origens nas oficinas de imprensa francesas dos séculos
XVIII e XIX, no hoje praticamente esquecido processo manual de estereotipia. Os
estereótipos, ou clichês, eram as chapas nas quais as imagens ou os textos eram impressos.
Assim conta Gregory Bateson a origem desse termo:

Quando imprimiam uma frase, tinham de pegar nas diferentes letras e


colocá-las em ordem uma por uma numa espécie de caixa sulcada para
soletrarem a frase. Mas para palavras e frases que as pessoas utilizavam
muito, o impressor guardou as pequenas caixas de letras já feitas. E essas
frases já-feitas são chamadas clichés (BATESON, 1972, p. 15).
Tal objeto é um tanto difícil de imaginar em nossa época, quando qualquer pessoa
teoricamente tem acesso às impressoras caseiras a laser ou jato de tinta para imprimir o que
lhe interessar. Embora ainda existam em máquinas rotativas de impressão industrial os
estereótipos cilíndricos, talvez o objeto que faz parte do cotidiano atual que mais lembre um
antigo estereótipo seja o prosaico carimbo, aquela pecinha de metal, madeira ou plástico,
geralmente encontrada em escritórios, que tem uma parte de borracha em relevo onde estão
gravadas determinadas informações e que é usada para marcar à tinta documentos,
autenticando-os, datando-os etc. Resumindo, a característica principal do estereótipo
(equipamento) era a possibilidade de reprodução, ad infinitum, de um texto ou de uma
imagem, bastando “carimbar” papéis em branco para isso.

Dessa característica advém a acepção em que a palavra estereótipo é entendida pelo


senso comum em nossa sociedade hoje: “algo que se adequa a um padrão fixo ou geral; esse
próprio padrão, geralmente formado por ideias preconcebidas e alimentado pela falta de
conhecimento real sobre o assunto em questão” (HOUAISS, 2001, p. 1252). Como se percebe
pela definição apontada no dicionário, estereótipo carrega quase sempre, no senso comum,
uma conotação negativa, sendo compreendido como uma “ideia ou convicção classificatória
preconcebida sobre alguém ou algo, resultante de expectativa, hábitos de julgamento ou falsas
generalizações” (HOUAISS, 2001, p. 1252), ou seja, denota visivelmente um tipo de atitude
preconceituosa para com algo ou alguém. Esse sentido pejorativo do termo estereótipo, assim
como do seu aparentado clichê, ambos no sentido de „ideias feitas‟ ou de “pronto-a-pensar do
espìrito”, expressão usada por Ruth Amossy (2011), também é atribuído por Martine Joly ao
fato de que, em nossa cultura, está fortemente enraizada uma “ideologia filosófica e estética
da originalidade”, pois, diferente de uma atitude conhecida como “imitação criadora” de
33

escritos clássicos, por exemplo, “o estereótipo e os seus associados seriam banais,


aborrecidos, vazios de sentido, vazios de corpo”, beirando ou o plágio, a cópia descarada, ou
o chavão, aquilo que não traz nada de novo (JOLY, 2002, pp. 210, 211). Assim, estereótipo, o
vocábulo, traz consigo uma carga de conotação semântica pejorativa tanto no aspecto moral –
seria sinônimo de preconceito – como estético – nesse sentido, seria sinônimo de falta de
criatividade.

Não obstante constitua algo cuja ressonância parece ser inerentemente ruim, como um
determinado preconceito malevolamente imposto de forma subliminar ao indivíduo, a
construção de estereótipos se relaciona com a própria inteligibilidade das realidades
simbólicas, constituindo, assim, algo inerente e aparentemente inescapável à condição
intelectual humana. O jornalista Walter Lippmann começa um artigo clássico sobre os
estereótipos explicando a razão da afirmação que acabei de fazer:

Cada um de nós vive e trabalha numa pequena parte da superfície da terra,


move-se num círculo restrito e, das coisas que conhece, conhece
intimamente apenas umas poucas. De qualquer acontecimento público que
exerça amplos efeitos, na melhor das hipóteses, só vemos uma face e um
aspecto. (...) Nossas opiniões abarcam, inevitavelmente, um espaço maior,
um lapso de tempo mais longo e um número maior de coisas do que as que
podemos observar diretamente. É preciso, portanto, que se formem do que os
outros relataram e do que somos capazes de imaginar (LIPPMANN, 1972, p.
149).
Ou, nas palavras concisas de Ecléa Bosi, em artigo que constitui quase um comentário
ao citado artigo de W. Lippmann, “o nosso cìrculo de experiência é limitado” (BOSI, 1977, p.
97). Citando o filósofo e pedagogo John Dewey, Lippmann explica que as realidades
desconhecidas soam para o ser humano como uma „grande confusão florida e zunzunante‟,
como o mundo para um bebê; em vista disso, a aquisição de significado pelas coisas só
acontece mediante a existência de duas condições: primeiro, precisão e distinção, e, depois,
consistência ou estabilidade de significado. Assim, por exemplo, para a maioria de nós,
brasileiros, o nosso círculo de experiência direta não inclui o continente africano. A palavra
África, para nós, faz parte de uma confusão zunzunante de uma série de palavras que remetem
a espaços geográficos que nunca visitamos pessoalmente (Mongólia, Groenlândia, Patagônia,
Austrália, Mesopotâmia etc). Sendo assim, para que essa palavra passe a ter algum significado
para nós, é necessário que ela passe a se referir de modo preciso e estável a alguma coisa.
Como explana E. Bosi,

nós conhecemos algumas pessoas, algumas coisas, alguns pedaços de


paisagens, de ruas, alguns livros, presenciamos alguns fatos, mas não
presenciamos a maior parte dos fatos sobre os quais conversamos.
34

Confiamos, porém nas pessoas que viveram e presenciaram esses fatos, e o


pensamento e o discurso quotidiano se alimentam dessa confiança social.
(BOSI, 1977, p. 97).
A nossa cultura, através de uma multiplicidade de canais, referencia de modo preciso e
estável para cada um de nós que nunca esteve, por exemplo, em um deserto ou na
Groenlândia, o que vem a significar cada um desses lugares, de modo que podemos afirmar
com convicção, em qualquer mesa de bar, que um deserto é quente e que a Groenlândia é
coberta de gelo. Essa seria a „utilidade‟, sendo este um termo apropriado, dos estereótipos:
trata-se de uma questão de economia. Não há tempo e nem condições reais para que um
indivíduo adquira conhecimento e experiência que abarquem tudo o que é passível de ser
objeto do conhecimento humano e todas as sensações possíveis, nem se pode estar
permanentemente aberto, „nascido a cada momento‟, em sentido prático, „para a eterna
novidade do mundo‟, usando a expressão de Fernando Pessoa15. Não é possível reinventar a
roda ou redescobrir o fogo a cada passo que quisermos dar, nem refazer todo o percurso do
pensamento humano desde os antigos: necessariamente, vamos exercer a confiança social a
que remete E. Bosi e retomar o que já foi dito por outras pessoas. A inexistência dessa
confiança social, dessa retomada dos discursos alheios para complementar o nosso,
significaria, por exemplo, a recusa categórica a aceitar a afirmação de que um deserto é
quente e a Groenlândia é coberta de gelo, a não ser que viajemos pessoalmente a esses lugares
e experimentemos as sensações físicas que eles proporcionam. Nas palavras de W. Lippmann,
“tão inevitável é a necessidade de economizar atenção que o abandono de todos os
estereótipos por um enfoque totalmente ingênuo da experiência empobreceria a vida humana”
(LIPPMANN, 1972, p. 157). Citando Bernard Berenson, crítico de arte, ele diz ainda que “as
coisas não teriam para nós traços e contornos tão precisos e definidos que pudéssemos
recordá-las à vontade, não fossem as formas estereotipadas que a arte lhes emprestou”, e
amplia o argumento ao dizer que "as formas estereotipadas emprestadas ao mundo não
procedem apenas da arte (...), mas também de nossos códigos morais, filosofias sociais e
agitações polìticas” (LIPPMANN, 1972, p. 152), de modo que a ausência de estereótipos
certamente dificultaria bastante a vida, além de empobrecê-la.

Temos patente, assim, o fato, já citado, de que a existência de estereótipos é necessária


para a inteligibilidade do mundo, para que as coisas façam sentido para nós, ou seja, para que
tenham precisão e consistência. Porém, isto posto, Lippmann adverte que “a espécie de

15
In O guardador de rebanhos, II. PESSOA, Fernando. Obra poética: volume único. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 2007, p. 204.
35

precisão e consistência introduzidas depende de quem as introduz”, uma vez que “na grande
confusão florida e zunzunante do mundo exterior colhemos o que nossa cultura já definiu para
nós, e tendemos a perceber o que colhemos na forma estereotipada, para nós, pela nossa
cultura” (LIPPMANN, 1972, p. 151). Isto é, estereótipos são efetivamente necessários, mas
isso não significa que eles sejam isentos de intencionalidade, ou mesmo honestos. Eles são
objetos construídos, e não dados naturais. São feitos (não necessariamente de modo
consciente) para remeter a determinados aspectos de uma realidade de forma esquemática,
para tornar didático e fácil o acesso a determinada informação, mas, no mais das vezes, não
correspondem (em virtude de sua própria natureza) à inteireza daquela realidade. Assim, a
confiança social que pode levar o indivíduo a defender com unhas e dentes a afirmação de que
desertos são quentes e a Groenlândia é coberta de gelo, com base nos estereótipos socialmente
construídos e consolidados sobre tais lugares, pode ser abalada ao se descobrir que existem
desertos gelados (o que os caracteriza, afinal, é a baixa precipitação pluviométrica, e não a
temperatura), e que em outros períodos históricos a Groenlândia não era coberta de gelo (tanto
que a palavra Groenlândia, em dinamarquês Grønland, significa “terra verde”).

Cabe ressaltar que tanto W. Lippmann como E. Bosi, e muitos outros autores, fazem
uma ressalva fundamental, no que diz respeito à percepção estereotipada das coisas: ela não
está apenas atrelada à confiança social no relato de outros sobre a tal coisa em questão, pois
“nem mesmo a testemunha ocular traça um quadro ingênuo da cena” (LIPPMANN, 1972, p.
149). O fato de estar presente a uma situação ou ver algo „com os próprios olhos‟ em hipótese
alguma isenta uma pessoa de ter uma percepção estereotipada ou de fazer um relato
estereotipado, uma vez que “a nossa percepção das coisas é, mais do que uma recepção, uma
construção, uma tarefa sobre o mundo” (BOSI, 1977, p. 104). Para explicar esse fato W.
Lippmann cita uma famosa experiência em que vários psicólogos, „observadores treinados‟,
são testemunhas de uma briga encenada por atores. A encenação foi feita durante um evento
que reunia esses profissionais, e, sem que eles soubessem, os seus depoimentos posteriores
sobre a briga foram analisados e chegou-se à conclusão que praticamente todos simplesmente
descreveram uma cena que não acontecera. Por quê? Pela simples razão de que “eles tinham
visto o seu estereótipo de uma briga. No correr de suas vidas, todos haviam adquirido uma
série de imagens de brigas e essas imagens lhes dançavam diante dos olhos” (LIPPMANN,
1972, p. 152).

O que supomos ser „o relato de um acontecimento‟, isento de subjetividade e, portanto,


passìvel de total credibilidade, é na realidade uma „transfiguração‟ dele, o “produto conjunto
36

do conhecedor e do conhecido no qual o papel do observador é sempre seletivo e geralmente


criativo” (LIPPMANN, 1972, p. 150). No mesmo sentido, John Lewis Gaddis diz que “a
experiência direta de eventos não é necessariamente o melhor caminho para entendê-los,
porque nosso campo de visão não vai mais além de nossos sentidos imediatos”, e para
corroborar sua afirmação cita Marc Bloch: “o indivíduo é muito limitado pelos seus sentidos e
poder de concentração”, e por esse motivo ele “nunca percebe mais do que um minúsculo
fragmento na vasta trama dos eventos” (GADDIS, 2003, p. 18). Um exemplo clássico que
demonstra a insuficiência do “estar presente” é a Crônica de uma morte anunciada, romance
de Gabriel García Márquez. Neste, várias pessoas são testemunhas do assassinato de Santiago
Nasar, mas todas as tentativas do narrador da história de montar o quebra-cabeça e sair do
labirinto que esconde as verdadeiras razões do ato são frustradas, porque todos têm visões
extremamente particulares e parciais do acontecido, não havendo consenso sequer sobre as
condições climáticas no dia do assassinato16. Como no caso citado por Lippmann, as
testemunhas tinham seus estereótipos de uma briga e de razões que legitimariam um
assassinato. No exemplo dos estereótipos sobre um deserto ou a Groenlândia, estar nesses
locais não necessariamente desmontaria os estereótipos a eles atribuídos, tal sua força social e
sua internalização em cada indivíduo, apesar de serem, como demonstrado acima, visões
parciais desses lugares.

Nesse ponto, pode-se ter uma ideia dos motivos para a percepção negativa que o termo
estereótipo costumeiramente evoca: ele perigosamente classifica o todo a partir de uma (ou
algumas) das partes que o constitui. Os exemplos dados, mostrando a problemática que pode
envolver essa parcialidade ou incompletude característica dos estereótipos, se referiam a
localizações geográficas – os desertos, a Groenlândia –, mas esses problemas se tornam bem
mais agudos quando o assunto em pauta é a caracterização do “Outro”, escrito com O
maiúsculo em muitos estudos culturais a esse respeito. Um dos mais relevantes desses estudos
(que não usa o “O” maiúsculo, diga-se de passagem), é O espelho de Heródoto, onde François
Hartog busca apreender “como os gregos da época clássica representaram para si os outros, os
não-gregos”, traçando para isso um amplo “esboço da história da alteridade” – o subtítulo da
obra, significativamente, é “ensaio sobre a representação do outro” (HARTOG, 1999, p. 37).

Em seu estudo, Hartog mostra que ao longo do tempo se desenvolveram, por toda
parte onde aconteceram encontros entre culturas diferentes ou a necessidade de um membro

16
MÁRQUEZ, Gabriel García. Crônica de uma morte anunciada. Tradução Remy Gorga, filho. Rio de Janeiro:
Record, 2006.
37

de uma cultura descrever uma cultura diferente para os seus iguais, o que ele chama de
“retóricas da alteridade próprias das narrativas que falam sobretudo do outro”. Como um
membro de uma cultura a pode explicar, de maneira inteligível, para os membros da sua
própria cultura a existência e as características de uma cultura b? Em outras palavras, como é
possível reunir o mundo desconhecido que se conta ao mundo conhecido em que se conta?
Diante desse problema, que é um problema de tradução, Hartog demonstra que os relatos de
viagem e as utopias recorreram quase sempre a um grupo de figuras narrativas que se
encontram à disposição para suprir a necessidade de dizer o outro, figuras que possibilitam
várias formas de classificação do diferente. Um exemplo é a cômoda figura da inversão, em
que a “alteridade se transcreve como um antipróprio”, pois a explicação mais apreensìvel do
outro seria aquela calcada no fato de que ele é a negação, o contrário, do eu (HARTOG, 1999,
p. 229). Hartog também aponta a comparação e a analogia, além da inversão, como figuras
utilizadas nas retóricas da alteridade, ambas apontadas como ferramentas de tradução do
outro, na medida em que filtram o desconhecido no conhecido, „fazendo ver‟ o diferente
(HARTOG, 1999, pp. 240,245). Ele descreve o processo de eterna descrição do outro,
exemplificado com o seu objeto de estudo, as Histórias de Heródoto, como um “trabalho
incessante e indefinido como o das ondas quebrando na praia”, algo não rigidamente
estrutural. Ao invés disso, é composto por marcas de enunciação específicas que marcam
diferenças de nìvel e “processos que desengancham os enunciados sucessivos”, ou seja, uma
dimensão vertical de figuras que se auto-referenciam dentro da narrativa (HARTOG, 1999, p.
228).

Peter Burke didatiza as teorias de Hartog em “Estereótipos do outro”, capìtulo de sua


obra Testemunha ocular. Ele esquematiza em dois tipos básicos, inversos, as reações que
podem surgir quando grupos humanos entram em contato com culturas diferentes: a primeira
diz respeito à assimilação, quando as diferenças culturais são ignoradas em prol de uma
acentuação dos traços que porventura se assemelhem – “o outro é visto como reflexo do eu”;
a segunda, oposta a essa, de rejeição, é quando o que é acentuado são as diferenças – “nessa
ótica, seres humanos como nós são vistos como “outros”” (BURKE, 2004, pp. 153, 154).
Apreende-se do exposto por François Hartog e Peter Burke que seriam necessariamente
criados, nos encontros culturais, estereótipos sobre aquela outra cultura semidesconhecida.
Isso porque a apreensão do diferente exige que sejam ressaltadas determinadas características
consideradas mais evidentes, como simbólicas do todo: a maioria dos brasileiros aprecia
futebol, logo todos os brasileiros são loucos por futebol. A criação (na maioria das vezes
38

inconsciente, ainda que não desinteressada) desse tipo de silogismo entimemático,


aproximando-se do significado de estereótipo já apontado pelo dicionário, é o processo
através do qual são criados os estereótipos sobre o outro.

A confiança social faz com que um hipotético guatemalteco que nunca visitou o Brasil
tenha convicção de que todo brasileiro é fanático por futebol, porque diversos canais
disponibilizados pela sua cultura – desde algo abrangente, como a televisão, até a restrita
opinião de um amigo que tenha vindo ao Brasil – preenchem a lacuna na sua experiência
pessoal em relação aos brasileiros17. Se lhe for perguntado como ele sabe que todos os
brasileiros apreciam tal esporte, ele provavelmente não responderá que colheu essa
informação já de forma estereotipada, para ele, pela sua cultura. O ponto é que a informação
estereotipada que assegura ser todo brasileiro apreciador do esporte de origem inglesa
provavelmente não seria causa de nenhum transtorno diplomático, caso fosse dita pelo
representante de um governo estrangeiro qualquer, o da Guatemala, por exemplo. Mas, e se a
informação fosse de que todo brasileiro é preguiçoso? Ou sujo? Se o guatemalteco citado
tivesse conhecido um brasileiro desonesto, por exemplo, e estendesse essa característica, em
seus discursos, para todos os brasileiros, como seria? Obviamente, isso seria motivo para
grande revolta por parte de qualquer brasileiro honesto (e desonesto também) que soubesse
dessa caracterização. Isso porque lidamos, agora, com o cerne do problema: os estereótipos
negativos. Mas, obviamente, uma única afirmação de um guatemalteco mal informado sobre a
lisura ou higiene do povo brasileiro não constitui um estereótipo. Para se tornar um, essa
informação precisaria ser objeto de divulgação repetitiva por um amplo espectro de
mediações culturais de modo que pudesse ser dita como algo comum e natural. A estratégia
de estereotipização (negativa) é definida por Durval Muniz de Albuquerque Jr. do seguinte
modo:

O discurso da estereotipia é um discurso assertivo, repetitivo, é uma fala


arrogante, uma linguagem que leva à estabilidade acrítica, é fruto de uma
voz segura e autossuficiente que se arroga o direito de dizer o que é o outro
em poucas palavras. O estereótipo nasce de uma caracterização grosseira e
indiscriminada do grupo estranho, em que as multiplicidades e as diferenças
individuais são apagadas, em nome de semelhanças superficiais do grupo
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p. 20).
Para exemplificar essa estratégia, ou processo, vejamos o exemplo histórico a que
recorreu P. Burke: as afirmações e imagens divulgadas na Europa sobre as Américas, na era
moderna, que não mentiam quanto ao fato de alguns nativos do continente, em ocasiões

17
Mutatis mutandis o que foi exposto anteriormente sobre a experiência pessoal dos fatos.
39

determinadas, ingerirem carne humana, foram estendidas de forma a caracterizar todos os


habitantes do continente inteiro como perigosos canibais (BURKE, 2004, p. 159). É certo que
os europeus da era moderna, para poderem assimilar a existência de culturas tão díspares da
sua própria quanto aquelas dos nativos americanos, precisariam de alguma retórica da
alteridade que descrevesse esse outro, que estabelecesse elementos mínimos de
inteligibilidade – sem dúvida, havia a necessidade intelectual humana, apontada por W.
Lippmann, de alguma forma de estereótipo. O problema, como apontado pelo mesmo autor, é
quem introduziu esses estereótipos no campo de conhecimento europeu: um grupo de pessoas
cujo maior interesse era subjugar e tirar proveito de todas as formas possíveis daquele outro
recém-encontrado. Assim, os estereótipos criados foram necessariamente, intencionalmente,
negativos, posto que destinados a legitimar a dominação, e mesmo o extermínio, daquele
diferente. É assim que o estereótipo negativo se torna pedra angular e basilar no que se
convencionou chamar de discurso colonial.

Os estereótipos negativos funcionam como mecanismos simbólicos de exclusão. No


caso apontado por P. Burke, por exemplo, o estereótipo (que posteriormente tornou-se mito)
do “ìndio” devorador de homens excluìa os americanos nativos da própria noção de
humanidade, posto que não se alimentar da carne de seu semelhante pode ser considerada uma
regra basilar de “civilidade”. O discurso colonial é o ápice da exclusão, levada a todos os
extremos possìveis, tanto simbólicos, quanto nas práticas do mundo „real‟: da exclusão dos
indígenas de um grupo simbolicamente entendido como humanidade decorre a sua exclusão
de práticas reais compreendidas como exclusivamente destinadas àquele grupo simbólico, tais
como o direito à vida e à liberdade (ou seja, o direito de não ser exterminado ou escravizado),
por exemplo. A discussão sobre o discurso colonial, nesta dissertação, será feita adiante, mas
agora cabe ressaltar o entendimento do que ele vem a ser que subjaz a esta escrita, tendo em
vista sua relação com o tema dos estereótipos. Acordando com Homi Bhabha, entendo
discurso colonial como um aparato de poder:

É um aparato que se apoia no reconhecimento e repúdio de diferenças


raciais/culturais/históricas. Sua função estratégica predominante é a criação
de um espaço para “povos sujeitos” através da produção de conhecimentos
em termos dos quais se exerce vigilância e se estimula uma forma complexa
de prazer/desprazer. Ele busca legitimação para as suas estratégias através da
produção de conhecimentos do colonizador e do colonizado que são
estereotipados mas avaliados antiteticamente. O objetivo do discurso
colonial é apresentar o colonizado como uma população de tipos
degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e
estabelecer sistemas de administração e instrução (BHABHA, 1998, p. 111).
40

Segundo H. Bhabha, o discurso colonial, enquanto modo de representação da


alteridade que é também uma forma de governamentalidade, estabelece a noção de “nação
sujeita”, de colonizado, como uma realidade social apreensível e visível a partir exatamente
dos estereótipos que cria em relação ao outro, sendo a estereotipia a “sua principal estratégia
discursiva” (Idem, pp. 105-111). Albert Memmi deixa patente a necessidade desse esforço
constante de representações negativas do outro, na relação colonial, em função da percepção,
por parte do próprio colonizador, da “ilegitimidade constante de sua situação”, uma vez que

chegado a um país pelos acasos da história, conseguiu não apenas um lugar,


mas tomar o do habitante, e outorgar-se privilégios surpreendentes em
detrimento dos que a eles tinham direito. E isso, não em virtude das leis
locais, que legitimam de certo modo a desigualdade pela tradição, mas ao
subverter as normas vigentes, substituindo-as pelas suas (MEMMI, 1977, p.
25).
Ter essa percepção do discurso colonial é fundamental, pois “os estereótipos
contemporâneos são inseparáveis da longa história do discurso colonialista” (SHOHAT e
STAM, 2006, p. 290), como será posteriormente abordado. A seguir, tentarei esboçar a ponte
entre os conceitos de estereótipo e discurso, focando neste discurso em particular, o colonial.
O questionamento inicial deste capítulo, sobre as imagens recorrentes de África – esse nome
de lugar que não diz respeito à experiência pessoal da grande maioria de nós –, está
diretamente relacionado com o que nos é oferecido a respeito daquele continente por todos os
canais culturais a que temos acesso, a „cultura das mìdias ilimitadas‟ que está indelevelmente
presente em nosso cotidiano (GITLIN, 2003, p. 46), e a confiança social que depositamos
nesses canais nos conduz a colhermos uma imagem cevada com estereótipos durante muito
tempo, sem pararmos para questionar os meandros de sua fabricação. Afinal, quem para pra
pensar nisso tudo assistindo a O rei leão?18

18
Além da óbvia disponibilidade em diversas mídias, cabe lembrar que em Agosto de 2011 O rei leão voltou às
telas de cinema mundiais em versão 3D, comemorativa de seus 17 anos de lançamento. Finalmente assisti ao
filme numa tela grande.
41

PARA ALÉM DO ESTEREÓTIPO: DISCURSO

Quero aqui apresentar uma argumentação em favor de uma metodologia de análise dos
filmes que vá além do estudo dos estereótipos, mas sem deixar de levar em conta a
importância destes. Em primeiro lugar, ressaltarei a relevância do estudo focado nos
estereótipos, em seguida suas limitações e, em virtude dessas, a minha opção metodológica.
Deixar nítido o terreno onde pisaremos na discussão sobre a imagem de África na produção
cinematográfica hegemônica do século XXI é fundamental para que essa discussão seja o
mais frutuosa possível.

Iniciei esse capítulo remetendo à sequência inicial de O rei leão, cuja representação de
África remete a uma figuração de memória minha. Mas devo remeter a filmes que dizem
respeito ao recorte cronológico proposto pela pesquisa; portanto, o farei em relação à
sequência inicial de um filme também destinado ao público infantil, e que provavelmente
marcará as figurações de memória que muitas crianças carregarão sobre o continente africano:
Madagascar (Madagascar, Eric Darnell e Tom McGrath, 2005). A abertura desse filme
remete aos mesmos elementos de O rei leão: um sol enorme e laranja e uma „selva‟, a vida
selvagem, o contato com a natureza, a paisagem, os sons. Uma zebra corta a paisagem numa
paródia da imagem clássica de Tarzan gritando enquanto cruza a floresta balançando num
cipó. Enquanto a zebra corre livre pela paisagem e animais fazem coreografias à sua volta, um
leão aparece de trás de uma moita, ameaçador, mas, ao invés de atacar a zebra, dá-lhe um
susto que a acorda do devaneio. Tudo não passava da imaginação de Marty, uma zebra do
zoológico da cidade de Nova Iorque, onde tem como companheiros inseparáveis um leão,
chamado Alex, além de uma girafa macho, Mellman, e de um hipopótamo fêmea, Glória.
Todos “domesticados”, com gírias e hábitos urbanos e característicos da cultura
estadunidense, que contrastam com o anseio de Marty por conhecer „a natureza‟, que será o
motivo condutor do filme. Não há dúvidas quanto à intencionalidade do filme em „pregar
uma peça‟ no espectador, dando a entender que o filme se passará em África desde o começo,
nem quanto ao processo de reconhecimento por parte dos espectadores, o mesmo que citei
antes em relação a O rei leão: certamente ninguém acha que o filme se passará na China. Sem
saber exatamente por que, sabemos automaticamente que o que estamos vendo e ouvindo na
tela se passa em território africano.

Esse processo de reconhecimento automático a que venho me referindo é o mesmo


que ocorre quando identificamos uma imagem de mulheres seminuas sambando e usando
42

plumas na cabeça com uma festa chamada carnaval, comemorada no Brasil; ou então uma
imagem de mulheres seminuas dançando a „dança do ventre‟ com véus no rosto com algo que
chamamos invariavelmente de harém e o situamos em uma região indistinta que chamamos de
Arábia. Com esses exemplos, quero afirmar, desde já, que não considero o continente africano
uma „vìtima‟ isolada da ação de estereótipos negativos. Como dito anteriormente, a
construção de estereótipos está relacionada com a própria inteligibilidade das realidades
simbólicas, sendo inerente à condição intelectual humana.

Porém, a força de estereótipos negativos é de difícil mensuração, em virtude de suas


contrapartidas nas realidades sociais que lhes dão sustentação. O preconceito talvez possa ser
citado como consequência primária dos estereótipos negativos, e as ações que ele provoca,
tais como a intolerância para com o „Outro‟ que é vìtima dos estereótipos negativos, não se se
justificam sob aspecto algum. O combate a essas ações, que, apesar de terem suas raízes no
universo simbólico, são extremamente nocivas no mundo „real‟, tem que passar,
necessariamente, pela desconstrução dos estereótipos que lhe dão a força para existirem.
Como são consequências, é preciso combater o que as causa. Puderam ser vistas nas últimas
décadas diversas frentes de batalha, no campo da cultura, que iniciaram e têm tido relativo
sucesso na desconstrução de estereótipos negativos contra diversos setores da sociedade, e
como consequência tiveram participação decisiva nos rumos das práticas sociais em relação
aos grupos submetidos a tais estereótipos. Um exemplo, que talvez seja suficientemente
grandioso nesse sentido, é a luta dos movimentos negros estadunidenses em busca de direitos
civis. Como é notório, já avançando na segunda metade do século XX a população negra dos
Estados Unidos era alvo de estereótipos degradantes, como o da inferioridade intelectual e
estética em relação aos „brancos‟. O combate a tais clichês mentirosos foi fundamental para as
conquistas políticas de todos os negros que vivem sob a desigual democracia daquele país:
pode-se conjecturar que se Stokely Carmichael não tivesse proclamado que “nós somos
negros, nossos narizes são largos, nossos lábios são grossos, nossos cabelos são duros, e nós
somos lindos!”, trazendo à agenda polìtica daquele paìs as noções de „poder negro‟ e „beleza
negra‟, talvez um homem negro não tivesse sido eleito para a presidência dos EUA menos de
meio século depois. Ou, exemplificando com um produto cultural, é difícil crer que, sem os
esforços desmistificadores citados, a mesma Disney que produziu Branca de neve e os sete
anões (Snow White and the seven dwarfs, David Hand,1937), cujo ideal de beleza pressupõe
a alvura da pele, tivesse produzido, 72 anos depois, A princesa e o sapo (The princess and the
frog, Ron Clements e John Musker, 2009), animação que tem como heroína uma jovem negra.
43

Desse modo, a análise de estereótipos sobre o continente africano, a que se propõe este
estudo, não implica num entendimento de que é ele o único aspecto da nossa realidade vítima
de estereótipos negativos e, portanto, de preconceitos, mas se configura simplesmente como
uma opção e como um recorte, com intenções políticas definidas. O poder do cinema,
enquanto construtor e consolidador de estereótipos negativos, posto que veículo privilegiado
de discursos políticos, é muitas vezes subestimado. W. Lippmann lembra a tendência que
existe, secularmente, de que as características atribuídas a certos grupos na ficção sejam
transferidos para a realidade, e a esse respeito assevera:

Não pode haver dúvida de que o cinema esteja construindo


constantemente imagens que são, depois, evocadas pelas palavras que as
pessoas leem nos jornais. Em toda a experiência da raça, ainda não houve
ajuda à visualização comparável à do cinema (LIPPMANN, 1972, p. 157.
Grifo meu).

Muito ainda será dito a esse respeito nesta dissertação. É muito simplista atribuir os
„avanços‟ citados no que diz respeito à imagem dos negros estadunidenses a uma „evolução‟
ou „progresso‟ do gênero humano como um todo. É como as falas que podemos ouvir
cotidianamente de que em pleno século XXI não há mais lugar para preconceitos, sexismo,
racismo, homofobia etc., que a humanidade já „superou‟ tais coisas, e que a existência de tais
elementos se deve unicamente ao atraso de indivíduos específicos. Enquanto historiador, e
principalmente como humanista, é difícil não reconhecer a falácia desse argumento, bastando
citar alguns exemplos das permanências (e mesmo do perigo de revivência institucional)
desses preconceitos, para deitá-lo por terra. Se não fosse a luta histórica dos movimentos
negros, feministas e pelos direitos dos homossexuais, certamente não teria havido „avanço‟
algum, e o fato de esses „avanços‟ estarem sob constante ameaça mostra a necessidade, em
contrapartida, de constante vigilância por parte desses grupos. O que quero dizer é que não se
há de cair do céu a desmistificação do continente africano, se faz necessária uma luta
intelectual consciente e consistente nesse respeito; este trabalho se insere num contexto maior
de esforço nessa direção.

Assim, contribuindo no esforço de desmistificação de grupos específicos, estudos de


estereótipos negativos como o de David Bogle, no livro (ainda não traduzido para o
português) Toms, Coons, Mulattoes, Mammies, and Bucks: an interpretive history of Blacks in
44

American films19, tem o mérito de explicitar as maneiras pelas quais estes estereótipos
negativos são enxertados na indústria cinematográfica de maneira quase imperceptível. Em
seu estudo, Bogle demonstra que vários estereótipos racistas preexistentes foram reutilizados
nas representações de negros no cinema hollywoodiano,20 remetendo cada um desses
estereótipos a um personagem-padrão evocado no título de seu livro: Tom, o empregado
servil; Coon, o negro ingênuo; o “mulato trágico” ou demonizado; a Mammy (“figura
feminina da empregada gorda, falante, mas de bom coração”); e Buck, o negro brutal e
hipersexualizado (SHOHAT e STAM, 2006, p. 286). De abordagens como essa, centradas na
análise de estereótipos e de “constelações repetidas e perniciosas de traços de personalidade”,
Ella Shohat e Robert Stam apontam inegáveis méritos, pois elas

têm feito uma contribuição indispensável ao:


1. Revelar padrões opressivos de preconceito no que à primeira vista
poderia parecer um fenômeno aleatório e esporádico;
2. Enfatizar a devastação psíquica infligida através dos retratos
sistematicamente negativos sobre suas vítimas, seja através da internalização
do estereótipo, seja através dos efeitos negativos de sua disseminação; e
3. Assinalar a funcionalidade social dos estereótipos, demonstrando que
eles não constituem erros de percepção, mas uma forma de controle social,
exemplos do que Alice Walker chamou de “prisões de imagens” (SHOHAT
e STAM, 2006, p. 289).
Já vimos que pode ser feita uma distinção entre estereótipo „puro e simples‟, que
preenche os espaços entre o conhecido e o desconhecido, e o estereótipo explicitamente,
propositalmente ou não, negativo, assim como os méritos de estudos com foco no segundo
tipo. Agora se faz necessário tecer algumas considerações sobre as limitações de uma
abordagem calcada na análise unicamente dos estereótipos. Uma primeira objeção que se
poderia fazer remete à inegável existência de características negativas na África (atendo-me
ao objeto da dissertação), por exemplo. Qual o problema em os filmes retratarem as guerras, a
fome, a corrupção e a vida selvagem na África, se essas coisas de fato existem? Deveríamos
todos começar a procurar ou inventar coisas boas na África para serem retratadas? Seria o
caso de buscar ou militar a favor da construção de imagens artificialmente positivas sobre o

19
Disponível para consulta parcial no site Google Livros, onde pode ser encontrado no seguinte link:
http://books.google.com.br/books?id=Sz7K1c9QSoMC&printsec=frontcover&dq=Toms,+coons,+mulattoes,+m
ammies,+and+bucks&hl=pt-BR&ei=-
Q5UTp63BZDBtgf11ejdBQ&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=1&ved=0CCoQ6AEwAA#v=onepage
&q&f=false (Acesso em 20/08/2011)
20
Ella Shohat e Robert Stam citam diversos outros estudiosos, cujas obras também em sua maioria não estão
traduzidas para o português, que estudam os estereótipos dessa mesma perspectiva, entre eles Daniel Leab,
James Snead, Jim Pines, Jacquie Jones, Pearl Bowser, Clyde Taylor e Thomas Cripps (SHOHAT e STAM, 2006,
p. 286).
45

continente africano? A resposta para todas essas perguntas parece indicar que se os africanos
pudessem retratar a si mesmos (como se eles não pudessem e o fizessem), a imagem da África
seria muito diferente.

Mas essa perspectiva é enganosa, e esse engano parte de um entendimento errôneo da


natureza e poder do estereótipo. Elucidando a questão, Shohat e Stam sentenciam a respeito
da relação entre controle da representação e produção de “imagens positivas”: “filmes
africanos como Laafi (1991) e Finzan (1989) não oferecem imagens positivas da sociedade
africana, mas perspectivas africanas críticas sobre sua própria sociedade” (SHOHAT e
STAM, 2006, p. 297). Ora, lembremo-nos do Brasil. O crescimento da violência urbana em
nosso país, infelizmente, é um fato. Impossível simplesmente ignorá-lo. Quando uma
representação estrangeira e estereotipada dessa violência veio à tona, no filme Turistas
(Turistas, John Stockwell, 2006), que mostra jovens „mochileiros‟ estadunidenses às voltas
com exploração sexual, favelas, assaltos, sequestro e comércio ilegal de órgãos humanos
numa viagem turística ao Brasil, as reações foram diversas, mas quase que totalmente
negativas. Foi expresso medo, por exemplo, de que o fluxo de turistas estrangeiros para o
Brasil diminuísse em função do retrato grotescamente estereotipado feito pelo filme. O
mesmo se deu em relação ao polemizado episódio Blame it on Lisa (2002), da série animada
Os Simpsons, em que o Brasil, especialmente o Rio de Janeiro, é representado de forma
caricatural (o personagem Homer Simpson é sequestrado, há macacos e cobras pelas ruas,
programas infantis sexualizados na TV etc.), inclusive com tomadas de posição de
autoridades governamentais contra o desenho e o canal de televisão que o veicula. Porém,
representações dessa mesma violência em filmes como Tropa de elite (José Padilha, 2007) ou
Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) são objeto de culto, e o fato de receberem
indicações para prestigiosos prêmios internacionais não causa nenhum temor parecido com
aquele causado por Turistas ou pelo episódio citado de Os Simpsons. A diferença reside no
fato de que aqueles conduzem, ou intencionam conduzir, a uma reflexão crítica sobre o tema,
ao contrário destes.

Centrar a análise unicamente nos estereótipos pode promover o risco de individualizar


e moralizar o problema. Vejamos rapidamente um exemplo de discussão pública
contemporânea que pode evidenciar essa armadilha teórica: as acusações de homofobia e
racismo feitas contra o deputado federal Jair Bolsonaro depois de uma polêmica entrevista
concedida por ele a um canal de TV em março de 2011, onde fez afirmações consideradas
46

ofensivas por diversas organizações de defesa dos direitos humanos21. Acusado de quebra de
decoro parlamentar, sua defesa pública incluiu a alegação de que o irmão de sua esposa é
negro e de que ele tem entre seu pessoal funcionários homossexuais. Acusações em termos
pessoais e defesa em termos pessoais caracterizaram todo o processo, do qual o deputado
acabou absolvido. A grande oportunidade perdida nesse episódio foi o que Shohat e Stam
chamam de uma pedagogia anti-racista, e no caso anti-homofóbica, também: uma questão que
é largamente política e social, que envolve todo o conjunto da sociedade brasileira, foi
ideologicamente reduzida a um debate sobre a ética pessoal de um único indivíduo. O
sensacionalismo midiático que permeou a cobertura televisiva do episódio, ao dar atenção
quase que exclusivamente à moralidade individual, e quase nada discutir acerca das
configurações de poder que engendraram as afirmações alegadamente racistas e homofóbicas
do político, repetiu o que esses autores chamam de “premissa oculta da análise do
estereótipo”: o individualismo. Na análise centrada nos estereótipos, o ponto de referência é
um personagem individual, ao invés das categorias sociais mais amplas em que ele está
inserido – “raça”, classe, gênero, nação, orientação sexual etc. (cf. SHOHAT e STAM, 2006,
p. 293). No caso da análise de um filme, pode-se acabar conjecturando a respeito da
moralidade de um personagem, um indivíduo que sequer existe, e perder de vista os
elementos gerais mais relevantes apontados por Shohat e Stam. Esse individualismo, que
caracteriza a análise centrada nos estereótipos, faz com que tais estudos busquem estabelecer
uma essência, tentando simplificar, enquadrar, “tipificar” os estereótipos. O exemplo do livro
de D. Bogle, independentemente de seus méritos, demostra isso claramente: ele estabelece
cinco tipos de estereótipos negativos que seriam modelo de todas as representações negativas
dos negros no cinema hollywoodiano, e busca enquadrar todos os personagens negros do
cinema em algum deles. Bogle pode ter realizado essa operação com maestria, mas esse tipo
de análise ignora o fato de que, nas palavras de H. Bhabha,

o estereótipo é um modo de representação complexo, ambivalente e


contraditório, ansioso na mesma proporção em que é afirmativo, exigindo
não apenas que ampliemos nossos objetivos críticos e políticos, mas que
mudemos o próprio objeto da análise (BHABHA, 1998, p. 110).

21
A citada entrevista foi concedida pelo deputado ao quadro “O povo quer saber”, do programa humorìstico
“Custe o Que Custar”, da Rede Bandeirantes de Televisão, em 28 de março de 2011. Segundo notìcia no site da
própria emissora, durante a entrevista, “o deputado foi perguntado pela cantora Preta Gil qual seria sua reação
caso seu filho se apaixonasse por uma negra e respondeu que não “corria risco” porque os filhos foram “muito
bem educados” e não viveram “em ambiente de promiscuidade”, como o dela. Também declarou que não
participaria de uma parada gay porque tal evento “promove os maus costumes”. “Acredito em Deus, tenho uma
famìlia, e a famìlia tem que ser preservada a qualquer custo, senão a nação simplesmente ruirá”, completou.”
Fonte: www.band.com.br/noticias/brasil/noticia/?id=100000417073 Acessado em 04/02/2012.
47

Entre as muitas consequências teóricas e políticas de não se levar em conta a


complexidade que H. Bhabha aponta no estereótipo, salta aos olhos em primeiro lugar a perda
de sua dimensão contraditória e historicamente instável. As tentativas de aprisionar numa
jaula conceitual um estereótipo cinematográfico de Hollywood sobre o que seria a maneira
“errada” de se vestir, por exemplo, se perderiam entre os filmes que ridicularizam e/ou
criticam a falta de roupa dos indígenas de vários continentes e aqueles que ridicularizam e/ou
criticam o excesso de roupas das mulheres árabes/muçulmanas (cf. SHOHAT e STAM, 2006,
p. 290). Uma abordagem que conte com a existência (ou, não a encontrando, tente estabelecê-
la) de um padrão fixo de coerência para os regimes de estereotipias, de uma essência que os
caracterize, “acaba gerando uma certa a-historicidade: a análise tende a ser estática, não
permite mutações, metamorfoses, mudanças de sinal, alteração das funções e ignora a
instabilidade histórica dos estereótipos” (SHOHAT e STAM, 2006, p. 289). Como no
exemplo do livro de D. Bogle, há presente o risco de se forçar a acomodação do objeto de
estudo na categoria que se estabeleceu como premissa, “levando a um tipo de simplificação
reducionista que reproduz justamente o essencialismo que deveria ser combatido” (SHOHAT
e STAM, 2006, p. 289).

Em segundo lugar, a preocupação exclusiva com a questão de imagens positivas


versus imagens negativas, focando em personagens e situações individualizadas, ao invés de
estruturas sociais e políticas amplas, acaba por lançar indiretamente sobre a parte oprimida e
estereotipada a responsabilidade pela sua própria representação negativa. Em termos simples,
o argumento oculto que essa abordagem fornece para a parte que constrói o estereótipo
negativo é uma mensagem do tipo “se quiser que eu mostre seu lado bom, seja bom”. Ou seja,
supostamente não haveria nenhuma subjetividade em se mostrar a “selvageria” da África, pois
o estereótipo criado em torno disso seria decorrente da existência objetiva dessa “selvageria”
naquele continente. Essa limitação é ampliada ainda se levarmos em conta a questão da
relatividade do que vem a ser “positivo” e “negativo” e da própria noção de moralidade. Além
disso, mas diretamente ligada a essa transferência de responsabilidade, há a questão da
função, que é ignorada pela análise centrada nos estereótipos. Determinada imagem “positiva”
pode ocupar uma função subalternizada em um quadro mais amplo, reforçando, assim, um
preconceito. Em um filme sobre a África, a imagem “positiva” de um “nativo” geralmente
acarreta o fato de que ele foi cooptado para a causa expansionista europeia, por exemplo.
Assim, o fato de um personagem africano não estar caracteristicamente estereotipado como
um “selvagem” membro de uma tribo de canibais não implica, necessariamente, numa quebra
48

do paradigma geral de inferioridade atribuído pelo cinema hegemônico à África e aos


africanos.

Por fim, e esta não tenciona ser uma lista exaustiva das limitações da abordagem
centrada nos estereótipos, cabe lembrar que “os procedimentos eurocêntricos podem
caracterizar fenômenos culturais complexos como práticas grotescas sem utilizar estereótipos”
(SHOHAT e STAM, 2006, p. 295). Isto é, se for entendido que a única maneira de se
combater o preconceito é isolando e destruindo estereótipos negativos, muita coisa certamente
vai escapar a esse filtro. Uma instituição social, uma prática cultural, uma região geográfica
ou uma característica histórica é passível de um retrato preconceituoso e ofensivo sem que
obrigatoriamente hajam personagens ou situações estereotipadas na narrativa. Nas palavras
de Shohat e Stam,

A mimese problemática de muitos filmes de Hollywood que lidam com o


Terceiro Mundo (...) tem menos a ver com os estereótipos em si e mais com
a ignorância tendenciosa do discurso colonialista. As instituições sociais e
práticas culturais de um povo podem ser aviltadas sem que estereótipos
negativos sejam mobilizados (SHOHAT e STAM, 2006, p. 293).
Tendo isso em vista, concordo com H. Bhabha quando afirma que, para além dos
estereótipos, “o que precisa ser questionado é o modo de representação da alteridade”
(BHABHA, 1998, p. 107). Recorrendo, mais uma vez, a Shohat e Stam, acredito que “uma
alternativa metodológica à abordagem mimética dos “estereótipos e distorções” seria um
enfoque nas “vozes” e “discursos”” (SHOHAT e STAM, 2006, p. 309). Não se trata de uma
atitude simplista que visa ignorar os estereótipos, mas sim de uma postura globalizante que
busca levar em conta o quadro geral onde os estereótipos estão inscritos. Como já apontei
anteriormente, esse quadro é o discurso colonial. Muito embora já tenha apresentado o
referencial de discurso colonial aqui tomado como base, é preciso agora definir que noção de
discurso, e de análise de discurso, será usada, mesmo que evitando um prolongamento
desnecessário nos debates em torno desse conceito.

O entendimento da análise de discurso começa por contrapô-la à análise de conteúdo,


a fim de evitar a confusão que costuma recorrer entre os dois métodos de análise. Na
explicação de Décio Rocha e Bruno Deusdará, na análise de conteúdo “a produção de sentido
se refere apenas a uma realidade dada a priori”, de modo que o que se procura quando é
utilizado como método a análise de conteúdo é “alcançar uma pretensa significação profunda,
um sentido estável, conferido pelo locutor no próprio ato de produção do texto”
(DEUSDARÁ e ROCHA, 2005, p. 307). Tal distinção, para a dissertação que se tem em
49

mãos, é fulcral. Preciso citar um trecho, um tanto longo, em que Eni P. Orlandi explicita a
base de sustentação do meu trabalho:

Diferentemente da análise de conteúdo, a análise de discurso considera que a


linguagem não é transparente. Desse modo ela não procura atravessar o texto
para encontrar um sentido do outro lado. A questão que ela coloca é: como
esse texto significa? Há aí um deslocamento, já prenunciado pelos
formalistas russos, onde a questão a ser respondida não é o “o quê” mas o
“como”. Para responder, ela não trabalha com os textos apenas como
ilustração ou como documento de algo que já está sabido em outro lugar e
que o texto exemplifica. Ela produz conhecimento a partir do próprio texto,
porque o vê como tendo uma materialidade simbólica própria e significativa,
como tendo uma espessura semântica: ela o concebe em sua discursividade
(ORLANDI, 2000, pp. 17,18).
Esse trecho me permite estabelecer algumas definições para o decorrer do trabalho. As
fontes e o objeto são filmes da indústria cinematográfica hegemônica contemporânea, isto é,
oriundos da Europa e dos EUA, e não há a pretensão (nem a necessidade, mas apenas a
possibilidade) de cotejá-los com outras fontes, uma vez que eles não são ilustração de um
conhecimento que se tem em outro lugar. Partindo do pressuposto acima exposto da análise de
discurso, não busco, neste estudo, nenhuma realidade apriorística que os filmes porventura
expõem sobre o continente africano, não busco atravessá-los para alcançar sua pretensa
„significação profunda‟. Concebendo-os em sua própria espessura semântica, a pretensão aqui
é investigar o „como‟ tais filmes representam a África. O percurso a ser percorrido nessa
investigação será exposto logo adiante, por enquanto permaneçamos na exposição do que vem
a ser o discurso e sua análise. A pretensão, certamente, não é teorizar ou expor todas as teorias
existentes sobre análise de discurso, mas sim apresentar o dispositivo teórico da análise de
discurso que utilizo na construção do dispositivo analítico para a análise específica que faço,
que obviamente vai além da análise de textos escritos, e, nos momentos próprios da análise, ir
fazendo as considerações necessárias.

A razão primeira de não coadunar com a perspectiva da análise de conteúdo é a


própria concepção de ciência que subjaz e serve de pressuposto a essa corrente analítica, que
nas palavras de Deusdará e Rocha é “um modelo duro, rìgido, de corte positivista, herdeiro de
um ideal preconizado pelo Iluminismo” (DEUSDARÁ e ROCHA, 2005, p. 308), que, além de
encampar uma obscura noção de “objetividade”, busca conscientemente afastar-se de
qualquer manifestação de “subjetividade”, uma vez que, em tal entendimento do fazer
cientìfico, “aproximar-se da neutralidade equivale, nesses termos, a sustentar-se como
ciência” (DEUSDARÁ e ROCHA, 2005, p. 309). Os mecanismos que fazem funcionar uma
pesquisa em análise de conteúdo são propostos em termos que explicitam os seus objetivos: a
50

descoberta de resultados específicos, empíricos, seguindo o modelo de ciência cartesiana que


lhes dá substância. Essa busca de neutralidade científica faz com que as questões lançadas
pelo pesquisador sejam investidas com a aura de fatos dados, dados naturais e postos, não
passíveis elas mesmas de problematização. Categorias historicamente situadas e carregadas de
significações políticas são tomadas como objetos com existência objetiva, uma vez que o
rigor metodológico buscado é pretensamente alcançado “por intermédio das estratégias de
apagamento da presença do pesquisador”, o que é feito em parte com a “não-problematização
da pergunta norteadora do inquérito” (DEUSDARÁ e ROCHA, 2005, p. 313).

“Historicizar sempre!” é o “mantra” repetido por Fredric Jameson que serve de norte
para as escolhas metodológicas desta pesquisa (JAMESON, 1992, p. 9). Tendo essa assertiva
em vista, dentre a vastidão de usos e acepções em que os termos „discurso‟ e „análise do
discurso‟ são tomados atualmente no campo intelectual, a opção feita foi por aquela que é
chamada de “escola francesa de análise do discurso”, uma vez que essa „corrente‟ tem entre
seus pressupostos precisamente a união entre reflexão sobre o texto e sobre a história e
sociedade que o rodeiam. Dominique Maingueneau explica a origem dupla da AD
(abreviatura que ele convenciona para se referir à „escola francesa de análise do discurso‟, e
que adotarei no mesmo sentido a partir de agora) na conjuntura intelectual dos anos 1960,
quando “sob a égide do estruturalismo, viu articularem-se, em torno da reflexão sobre a
“escritura”, a linguìstica, o marxismo e a psicanálise”, de modo que na França a análise do
discurso se configurou, a partir daquela década, como uma disciplina com base
transdisciplinar; e ao mesmo tempo na tradicional prática escolar caracteristicamente francesa
de „explicar os textos‟, “presente sob múltiplas formas em todo o aparelho de ensino, da
escola à Universidade” (MAINGUENEAU, 1997, p. 10).

Não obstante as considerações explicativas que serão feitas sobre a AD, justificando a
sua „adoção‟, seria uma digressão imprópria em relação ao objetivo deste texto fazer o que o
próprio D. Maingueneau chama de “policiamento terminológico” em torno das acepções do
termo „discurso‟ e do sintagma „análise do discurso‟. Por essa razão, considero inconveniente
discorrer acerca de cada termo e justificar o uso de cada uma das expressões teóricas de que
me utilizo, uma vez que a explicitação de todo e qualquer termo (excetuando-se os casos em
que tal exposição contribua para o andamento do texto) certamente tornaria
desnecessariamente intrincada a leitura; porém, levando em conta a necessidade de evitar
possíveis confusões semânticas, ressalto desde já que o vocabulário teórico que utilizo,
quando se remete aos elementos da análise de discurso, diz respeito especificamente às
51

formulações e à maneira como esse vocabulário é tomado e entendido pela AD, em todas as
instâncias. Assim, para evitar mal entendidos no que tange a expressões que porventura eu
não venha a expor com a precisão devida, tenha-se presente que tomo como referenciais
primordiais nesse campo Michel Pêcheux e Dominique Maingueneau e o vocabulário
pertinente às formulações desses autores, e nas acepções utilizadas por eles.

As tradições intelectuais apontadas por D. Maingueneau como estando na origem da


AD certamente contribuíram para torná-la o que é, um campo de investigação que preconiza
essencialmente um espaço teórico onde o linguístico e o sócio-histórico estão imbrincados de
maneira indissociável. As demandas teóricas desse quadro tornaram dois conceitos
fundamentais para a AD, o de ideologia e o de discurso. Helena H. Nagamine Brandão
explica que

as duas grandes vertentes que vão influenciar a corrente francesa de AD são,


do lado da ideologia, os conceitos de Althusser e, do lado do discurso, as
ideias de Foucault. É sob a influência dos trabalhos desses dois teóricos que
Pêcheux, um dos estudiosos mais profícuos da AD, elabora seus conceitos.
De Althusser, a influência mais direta se faz a partir de seu trabalho sobre os
aparelhos ideológicos de Estado na conceituação do termo “formação
ideológica”. E será da Arqueologia do saber que Pêcheux extrairá a
expressão “formação discursiva”, da qual a AD se apropriará, submetendo-a
a um trabalho específico (BRANDÃO, 2004, p. 18).
São esses dois termos fundamentais para o desenvolvimento desta pesquisa, de modo
que são apropriadas algumas considerações preliminares a seu respeito. Poucos termos são tão
marcadamente polissêmicos quanto ideologia. Terry Eagleton aponta o paradoxo contido nas
afirmações contemporâneas que asseguram a obsolescência do conceito de ideologia, visto
serem facilmente observáveis em várias partes do mundo movimentos políticos abertamente
ideológicos (EAGLETON, 1997, p. 11). Afirmando que a palavra ideologia é algo como um
texto tecido com uma trama de diferentes fios conceituais, e que portanto se presta a
diferentes „usos‟, Eagleton lista nada menos que dezesseis definições de ideologia
“atualmente em circulação” (EAGLETON, 1997, p. 15). Esse emaranhado de significações é
fortemente marcado pelo marxismo. Falar em ideologia sem falar em Marx é quase como
falar em linguística sem citar Saussure ou em psicanálise deixando de lado Freud, muito
embora, como apontado por Marilena Chauí, e por Louis Althusser antes dela, a „invenção‟ do
termo não seja de Marx, atribuição recorrente, mas sim do filósofo Destutt de Tracy, em livro
publicado em 1801 (CHAUÍ, 2008, p. 27; ALTHUSSER, 1980, p. 69). Raymond Williams
aponta para essa mesma origem, situando-a numa data anterior, porém (1796). Esse autor
mostra que a acepção que Tracy originalmente tencionava atribuir ao termo ideologia era o de
52

“ciência das ideias”, mas muito cedo Napoleão Bonaparte revestiu a palavra de uma
significação negativa, como sendo uma “teoria abstrata, não prática ou fanática”
(WILLIAMS, 2007, pp. 212-13). Esse sentido pejorativo foi reproduzido ao longo do século
XIX, mas, ainda assim, foi em decorrência dos postulados de Marx e Engels que o termo
ideologia passou a ter a carga semântica negativa que tem na maioria dos significados
apontados por Eagleton. Em consonância com sua interpretação da história pelo prisma da
dominação do homem pelo homem, dentro da espiral da luta de classes, Marx e Engels
argumentaram em favor de um entendimento de ideologia como a demonstração das ideias da
classe dominante em dado momento histórico:

As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes,


ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo
tempo, o seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição
os meios para a produção material dispõe assim, ao mesmo tempo, dos
meios para a produção espiritual (...). Na medida, portanto, em que dominam
como classe e determinam todo o conteúdo de uma época histórica, é
evidente que o fazem em toda a sua extensão e, portanto, entre outras coisas,
dominam também como pensadores, como produtores de ideias, regulam a
produção e a distribuição de ideias do seu tempo; que, portanto, as suas
ideias são as ideias dominantes da época (MARX e ENGELS, 2009, p. 67).
Sendo o objetivo da obra de Marx a instrumentalização teórica (com vistas à ação
prática) da classe operária na luta de classes contra a classe burguesa, ideologia ganha a
conotação específica e fechada de ideologia burguesa, isto é ideologia como sinônimo de
ideologia da classe dominante. M. Chauí deixa isso bem explícito na contracapa de seu
manual O que é ideologia, onde realiza sucintamente o tìtulo do livro: “Ideologia: um
mascaramento da realidade social que permite a legitimação da exploração e da dominação.
Por intermédio dela, tomamos o falso por verdadeiro, o injusto por justo” (CHAUÍ, 2008). De
maneira mais precisa, ela resume „o que é ideologia‟ como “um conjunto lógico, sistemático e
coerente de representações (...) e de normas (...) que indicam e prescrevem aos membros da
sociedade o que devem pensar e como devem pensar (...)” (CHAUÍ, 2008, p. 113).

A essa maneira de conceber o fenômeno ideológico se opõem Louis Althusser e Paul


Ricouer. L. Althusser se refere de modo recorrente à ideologias, no plural, e especifica que
em sua investigação acerca da necessária e pouco investigada, até então, reprodução das
relações de produção existentes (ele aponta a recorrência de estudos focados apenas na
reprodução dos meios de produção) pela classe dominante, duas instâncias têm papel
primordial: o Aparelho Repressor do Estado, cujo nome é autoexplicativo, e compreende a
dimensão de „coerção fìsica‟ que possui a classe dominante – polícia, exército, burocracia,
sistema prisional etc. (ALTHUSSER, 1980, pp. 42, 43); e os Aparelhos Ideológicos de
53

Estado: o Aparelho Ideológico de Estado religioso, o escolar, o jurídico, o cultural etc. Ele
especifica: “se existe um Aparelho (repressivo) de Estado, existe uma pluralidade de
aparelhos ideológicos de Estado” (ALTHUSSER, 1980, p. 44). Tais aparelhos ideológicos só
funcionam pela violência em última instância, são diversificados mas unificados, apesar das
suas contradições, por estarem todos submetidos à ideologia dominante, a da classe
dominante (ALTHUSSER, 1980, p. 48), e são centrais no estudo de Althusser por serem os
responsáveis mais diretos pela reprodução das relações de produção, ou, em outras palavras,
por tentar “forçar a classe dominada a submeter-se às relações e condições de exploração”
(BRANDÃO, 2004, p. 23).

As proposições de P. Ricouer sobre ideologia serão elucidativas antes de fazer a


ligação entre Althusser e a AD. Esse autor inicia suas considerações sobre ideologia falando
das “múltiplas armadilhas” que esse tema pode lançar ao estudioso, e a primeira das quais
procura se desvencilhar é aceitar “como evidente uma análise em termos sociais”, perspectiva
considerada natural em função da já apontada forte “marca do marxismo sobre o problema da
ideologia” (RICOUER, 1990, p. 64). Procurando escapar a esse determinismo teórico (pensar
automaticamente em termos marxistas), muito embora declare não intencionar seguir nem
tampouco combater Marx, P. Ricouer aponta uma segunda armadilha que o tema lança com
frequência, e que é aqui de especial interesse: aquela que “consiste em definir, inicialmente, a
ideologia por sua função de justificação, não somente dos interesses de uma classe, mas de
uma classe dominante” (RICOUER, 1990, p. 65). Ou seja, essa armadilha teórica consiste em
ter como pressuposto a existência, em cada período histórico, de apenas uma única ideologia,
a ideologia da classe dominante que visa alienar a sociedade dominada. Nas palavras de P.
Ricouer, isso significa que “se tomamos como adquirido o fato de a ideologia ser uma função
da dominação, é porque admitimos também, sem crítica, o de a ideologia ser um fenômeno
essencialmente negativo, primo do erro e da mentira, irmão da ilusão” (RICOUER, 1990, p.
65), ou, em outras palavras, significa que adotamos sem ressalvas a acepção de ideologia de
M. Chauí. Afastando-se desse procedimento, P. Ricouer traça um quadro mais amplo do
conceito de ideologia, apontando as três funções que ela exerce e suas respectivas
subdivisões. Ele não descarta a análise em termos de classes, simplesmente não a toma como
pressuposto, e assim consegue forjar um quadro teórico mais abrangente sobre o tema,
situando com precisão o lugar da dominação social na ideologia.

Em primeiro lugar, P. Ricouer discorre sobre a função geral da ideologia, que seria
mediar a coesão social do grupo, estando ligada à “necessidade, para um grupo social, de
54

conferir-se uma imagem de si mesmo, de representar-se, no sentido teatral do termo, de


representar e encenar” (RICOUER, 1990, p. 65). De modo que todo nicho social
necessariamente traz em seu seio uma ideologia, que é a maneira como ele vê o mundo e se vê
no mundo. Ricouer atribui cinco traços a essa função da ideologia, e o quinto, que se refere à
resistência da ideologia em aceitar o novo, o diferente, será de particular interesse mais
adiante nesta dissertação. A segunda função que ele estabelece para a ideologia, par e passo a
de integração exercida pela primeira, é a de dominação, “que se vincula aos aspectos
hierárquicos da organização social”, no momento em que legitima, justifica o sistema de
autoridades escolhido por ou imposto a essa tal organização (RICOUER, 1990, p. 71).
Havendo a crença social na legitimidade da autoridade, há espaço para o surgimento, que não
é necessariamente „obrigatório‟, da terceira função da ideologia, a de deformação, que é a
acepção de ideologia tradicional marxista, já citada. Essa função pressupõe a existência das
duas anteriores, uma vez que, nas palavras de Ricouer, “a ideologia é um fenômeno
insuperável da existência social, na medida em que a realidade social sempre possuiu uma
constituição simbólica, e comporta uma interpretação, em imagens e representações, do
próprio vìnculo social” (RICOUER, 1990, p. 71). H. Brandão faz um balanço das colocações
de Ricouer e situa o debate sobre ideologia em dois pólos: a concepção, ligada à tradição
marxista, de ideologia como mecanismo de „mascaramento da realidade social‟, ou seja, a
existência de um discurso ideológico; e a “noção mais ampla de ideologia que é definida
como uma visão, uma concepção de mundo de uma determinada comunidade social numa
determinada circunstância histórica”, isto é, a concepção de que “não há um discurso
ideológico, mas todos o são” (BRANDÃO, 2004, p. 30).

A importância de se fazer todas essas ressalvas advém do fato de que o termo


ideologia poderá ser encontrado de maneira recorrente neste estudo, e é nesta compreensão
advinda de Ricouer, de ideologia como concepção de mundo de uma determinada
comunidade social, que será empregado, e não como sinônimo de mascaramento da realidade,
embora a concepção de mundo adotada possa servir a esse propósito. Após essa explicação,
creio, a dupla definição de ideologia de L. Althusser tem ainda mais propriedade teórica:
primeiro, “a ideologia representa a relação imaginária dos indivìduos com suas condições
reais de existência”, e depois “a ideologia tem uma existência material” (ALTHUSSER, 1980,
pp. 77, 83). Essa definição começa a nos levar de volta ao debate sobre a AD. Mas, antes de
mostrar como a noção de ideologia proposta por Althusser se incorpora à escola francesa de
55

análise do discurso, e, por sua vez, como as propostas metodológicas desta serão utilizadas na
análise dos filmes, cabe referenciar também o outro conceito basilar da AD: o discurso.

Como citado anteriormente, a principal fonte de „inspiração‟ para a AD a esse respeito


são os conceitos colocados por Michel Foucault. A sua concepção de discurso passa pela
preocupação em estabelecer um vocabulário preciso, eliminando a polissemia atribuída ao
termo. Distancia-se consideravelmente, por exemplo, da acepção popular de discurso
individual, o discurso proferido por um indivíduo em uma ocasião específica – que vai do
discurso proferido no congresso nacional pelo parlamentar defendendo o seu aumento de
salário ao discurso do ator premiado na entrega do Oscar –, enfim, discurso como exposição
metódica, proferida verbalmente, sobre um assunto qualquer. Para Foucault, os discursos são
uma dispersão, é um “conjunto de enunciados que se apoia em um mesmo sistema de
formação; é assim que poderei falar do discurso clínico, do discurso econômico, do discurso
da história natural, do discurso psiquiátrico” (FOUCAULT, 2008, p. 127), sem que haja um
princípio unificador entre eles. A tarefa da análise do discurso seria então buscar as regras que
orientam essa dispersão e tornam possível a formação dos discursos. A essas regras Foucault
chama de “regras de formação”, e afirma que se encaixam em um sistema de relação entre si –
objetos, tipos de enunciação, conceitos, temas e teorias – atribuindo uma regularidade à
dispersão e determinando o que ele denomina formação discursiva, conceito-chave para a
AD. Como expõe D. Maingueneau, “os objetos que interessam à AD correspondem, de forma
bastante satisfatória, ao que se chama, com frequência, de formações discursivas, referindo de
modo mais ou menos direto Michel Foucault” (MAINGUENEAU, 1997, p. 10). Vejamos
então o que Foucault entende através de tal conceito: formações discursivas são “um conjunto
de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em
uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as
condições de exercìcio da função enunciativa” (FOUCAULT, 2008, p. 138). Michel Pêcheux
torna ainda mais preciso esse termo, ainda mais facilmente apreensível a noção de formação
discursiva, ao escrever que formação discursiva é

aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição
dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes,
determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga,
de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.)
(PÊCHEUX, 2009, p. 147).
Tal é o alcance e importância dessa formulação que D. Maingueneau a estabelece
como baliza para determinar, sem equívoco, o objeto de estudo da AD, nos casos em que a
confusão polissêmica de discurso se manifeste – ou seja, onde se lê discurso, na AD, entenda-
56

se a definição supracitada de Pêcheux (MAINGUENEAU, 1997. p. 22). Essa noção é


assumida na escrita dessa dissertação, também.

Com a referência à ideia de formação ideológica, feita na citação de Pêcheux,


chegamos ao coração da AD. Como já apontado, é decorrente do trabalho de Michel Pêcheux
a “forma acabada” da escola francesa de análise do discurso, conferida quando ele estabelece
os fundamentos de uma teoria materialista do discurso, e cabe expor sucintamente a operação
realizada por ele. Apropriando-se das reflexões de Althusser sobre o conceito de ideologia, de
maneira central da percepção de que “as ideologias não são feitas de “ideias” mas de
práticas”, Pêcheux afirma que “em sua materialidade concreta, a instância ideológica existe
sob a forma de formações ideológicas (referidas aos aparelhos ideológicos de Estado), que, ao
mesmo tempo, possuem um caráter “regional” e comportam posições de classe” (PÊCHEUX,
2009, p. 132). Podemos encontrar a definição exata de formação ideológica adotada pela AD
no célebre artigo La sémantique et la coupure saussurienne: langue, langage, discours,
escrito por Michel Pêcheux, Claudine Haroche e Paul Henry e publicado na revista Langages
n.24, em 1971. Os autores afirmam:

Falar-se-á em formação ideológica para caracterizar um elemento


(determinado aspecto da luta nos aparelhos) susceptível de intervir como
uma força confrontada com outras forças na conjuntura ideológica
característica de uma formação social em um momento dado; cada formação
ideológica constitui assim um conjunto complexo de atitudes e de
representações que não são nem “individuais” nem “universais” mas se
relacionam mais ou menos diretamente a posições de classe em conflito
umas em relação a outras (Apud BRANDÃO, 2004, p. 47).
De modo que as noções de língua, discurso e ideologia estão interligadas de maneira
inseparável na AD. Pêcheux elabora uma concepção materialista, a partir da noção de
ideologia de Althusser, da concepção do discurso de Foucault, criando uma modalidade de
estudos linguísticos baseada em duas noções fundamentais: a base linguística, objeto
específico da linguística, e a ideia de processo discursivo-ideológico, que se desenvolve a
partir da base linguística. A ideia de processo discursivo é caudatária da concepção de
formação discursiva, de Foucault, e H. Brandão aponta a preocupação de Pêcheux em
“inscrever o processo discursivo em uma relação ideológica de classes” (BRANDÃO, 2004,
p. 30). Essa ideia de processo discursivo é repleta de desdobramentos importantes, como o
entendimento, de importância seminal, de que tais processos constituem o lugar onde são
produzidos os sentidos, o que por sua vez leva a investigar as condições de produção,
intimamente ligadas (por sua vez) às formações ideológicas. Estamos aqui diante da
quintessência nas formulações teóricas da AD. E é dessa quintessência que se nutre a minha
57

opção analítica. Aquiesço integralmente ao redimensionamento da análise de discurso que faz


Eni. P. Orlandi, quando afirma que o objeto da análise de discurso

não se trata de transmissão de informação apenas, pois, no funcionamento da


linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela
história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e
produção de sentidos e não meramente transmissão de informações. São
processos de identificação do sujeito, de argumentação, de subjetivação, de
construção da realidade etc. Por outro lado, tampouco assentamos esse
esquema na ideia de comunicação. (...) Daí a definição de discurso: o
discurso é efeito de sentidos entre locutores (ORLANDI, 2000, p. 21.
Grifos meus).
É a partir dessa definição que se justifica a escolha dos métodos propostos pela AD
para analisar os filmes produzidos por Hollywood sobre o continente africano. A partir da
percepção da AD de que “não se separam forma e conteúdo” e de que “a história tem seu real
afetado pelo simbólico (os fatos reclamam sentidos)”, e mais ainda do entendimento segundo
o qual “o sujeito da linguagem é descentrado pois é afetado pelo real da língua e também pelo
real da história, não tendo controle sobre o modo como elas o afetam” (ORLANDI, 2000, pp.
19, 20). Não se trata de determinismo linguístico, mas de um quadro teórico a partir do qual
se torna possível analisar a relação que os sujeitos mantêm com um discurso instituído. Isso
remete a uma última dimensão fundamental da AD interessante aqui, que será basilar na
análise dos filmes também: a memória discursiva, ou o interdiscurso, diretamente ligado às
condições de produção.

Não se trata de uma memória psicológica. A memória discursiva é uma instância em


que toda formação discursiva se ancora, “constituìda de formulações que se repetem, recusam
e transformam outras formulações”, memória presumida “pelo enunciado enquanto inscrito na
história” (MAINGUENEAU, 1997, p. 115). Mais uma vez se faz necessário citar o mesmo D.
Maingueneau, sua definição do que seria interdiscurso para a AD:

O interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração incessante no


qual uma formulação é levada (...) a incorporar elementos pré-construídos,
produzidos fora dela, com eles provocando uma redefinição e
redirecionamento, suscitando, igualmente, o chamamento de seus próprios
elementos para organizar sua repetição, mas também provocando,
eventualmente, o apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação de
determinados elementos (MAINGUENEAU, 1997, p. 113).
Esse é mais um conceito fulcral, nesse mosaico que está se desenhando até o
momento. Em termos simples, o que o interdiscurso, ou a memória discursiva, postula é que
nada é dito no vazio, mas até mesmo o vocabulário que se escolhe para dizer o que quer que
seja tem conotações ideológicas em função do que ele já foi usado para dizer, isto é, dos
58

textos anteriores constituídos tendo-o como base. Interdiscurso é “aquilo que se fala antes, em
outro lugar, independentemente”, e é uma condição sine qua non do intelecto humano, pois é
“o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído,
o já-dito que está na base do dizìvel, sustentando cada tomada de palavra” (ORLANDI, 2000,
p. 31). Relacionando ao que foi discutido anteriormente sobre os estereótipos, fica evidente
seu imbrincamento com o interdiscurso. Isso implica dizer, concordando com a constatação
de E. Orlandi, que “o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia. As
palavras simples do nosso cotidiano já chegam até nós carregadas de sentidos que não
sabemos como se constituìram e que no entanto significam em nós e para nós” (ORLANDI,
2000, p. 20). Toda a carga acumulada de teoria nesses parágrafos tem, como já dito, a função
de situar o terreno onde será feita a análise pertinente a esta pesquisa, e serão feitos
desdobramentos a seu respeito mais detalhados, quando oportuno, no decorrer da análise.

Posso fazer um balanço do exposto até aqui da seguinte maneira: ao invés de focar
apenas nos estereótipos sobre o continente africano, que se pode constatar existirem na
produção cinematográfica hegemônica que representa aquele continente, na abordagem aqui
pretendida esses estereótipos serão compreendidos como partes integrantes de algo maior, um
discurso que os engendra. Este é o discurso colonial, a que já me referi rapidamente e ao qual
voltarei mais detidamente em breve. Porém, isto não basta. Já vimos como Pêcheux
demonstrou que toda formação discursiva está encaixada em uma formação ideológica
(PÊCHEUX, 2009, p. 147), e que ambas se alimentam de uma memória discursiva dispersa
sobre o tema. A formação discursiva a que chamamos discurso colonial só é possível, por sua
vez, por situar-se ela mesma no bojo de uma formação ideológica mais ampla, o
eurocentrismo.

O eurocentrismo é a forma naturalizada, na nossa sociedade, de ver o mundo. Os


mapas privilegiam a posição da Europa e isso é considerado natural – oriente médio e extremo
oriente, por exemplo, são convenções geográficas raramente questionadas em nosso
telejornalismo, nos livros didáticos ou nas falas cotidianas. A história é estudada do ponto de
vista da Europa e essa é a história universal. Podem-se estudar as „outras‟ civilizações, mas
tendo como referencial a „civilização ocidental‟. “O eurocentrismo situa-se de modo tão
inexorável no centro de nossas vidas cotidianas que mal percebemos sua presença”
(SHOHAT e STAM, 2006, p. 20). Quando afirmamos, sem dar importância a isso, que nossa
vizinha tem o “cabelo bom” e que o nosso é “ruim”, ou vice-versa, não notamos a presença
silenciosa do eurocentrismo nessa afirmação; também não vemos o que existe de eurocêntrico
59

quando agimos normalmente quando uma pessoa de pele clara entra num ambiente em que
estamos, mas temos um leve sobressalto quando uma pessoa de pele escura se aproxima de
nós, pois “os traços residuais de séculos de dominação europeia axiomática dão forma à
cultura comum, à linguagem do dia-a-dia e aos meios de comunicação, engendrando um
sentimento fictìcio de superioridade nata das culturas e dos povos europeus” (SHOHAT e
STAM, 2006, p. 20). O eurocentrismo é uma “perspectiva paradigmática que vê a Europa
como a origem única dos significados, como o centro de gravidade do mundo, como
“realidade” ontológica em comparação com a sombra do resto do planeta” (SHOHAT e
STAM, 2006, p. 20). Sob o entendimento eurocêntrico, o mundo se divide em “o ocidente e o
resto”, e é visto a partir de um único ponto de vista, adotado como “o correto”.

Uma discussão mais detida sobre esse tema tem lugar no próximo capítulo, mas, desde
já, convém situá-lo. O pensamento eurocêntrico surge no momento histórico em que o poder
econômico e militar de alguns países europeus os levou a ocuparem posições de dominação
em relação a outros lugares do mundo, precisando assim ser tecido um discurso de
justificação para o colonialismo. Aijaz Ahmad, ao explicitar as razões de não considerar a
categoria orientalismo, proposta por Edward Said, adequada para as análises a que se propõe,
nos diz que prefere “pensar no que Samir Amin chama de “eurocentrismo” – uma ideologia
que, segundo ele, começa com o início da expansão colonial – ou, mais estritamente,
imperialismo cultural, que eu creio ser um fenômeno muito mais moderno e mais enraizado
em relações transnacionais de trocas materiais e culturais desiguais” (AHMAD, 2002, p. 11).
De modo que o eurocentrismo consiste, assim, no “modelo de mundo do colonizador”, mas
não deve de modo algum ser confundido com o discurso colonialista em si, e neste trecho
Shohat e Stam explicitam a razão:

Como base ideológica comum ao colonialismo, ao imperialismo e ao


discurso racista, o eurocentrismo é uma forma de pensar que permeia e
estrutura práticas e representações contemporâneas mesmo após o término
oficial do colonialismo. Embora os discursos colonialistas e eurocêntricos
estejam intimamente relacionados, suas ênfases são distintas. Enquanto o
primeiro justifica de forma explícita as práticas colonialistas, o outro
“normaliza” as relações de hierarquia e poder geradas pelo colonialismo e
pelo imperialismo, sem necessariamente falar diretamente sobre tais
operações (SHOHAT e STAM, 2006, p. 21).
De modo que podemos situar o eurocentrismo nos termos da definição de formação
ideológica exposta acima, e nesse ponto, tendo apresentado as ferramentas teórico-
metodológicas que pretendo utilizar, posso explicitar o percurso que a análise dos filmes vai
seguir.
60

UM PERCURSO

Eni P. Orlandi afirma que “cada material de análise exige que seu analista, de acordo
com a questão que formula, mobilize conceitos que outro analista não mobilizaria, face a suas
(outras) questões” (ORLANDI, 2000, p. 27). O que decorre dessa constatação é o imperativo
de distinção entre o dispositivo teórico, escolhido pelo pesquisador entre outros possíveis para
a análise, sustentado (no caso de se escolher a AD como referencial) em princípios gerais da
AD, enquanto uma forma de conhecimento com seus conceitos e métodos, e o dispositivo
analítico, que cada pesquisador constrói o seu para cada análise que fará, definido pela
questão posta, a natureza do material e a finalidade da análise (ORLANDI, 2000, p. 27). O
dispositivo teórico escolhido para esta análise já foi exposto com certa exaustão, cabe uma
breve apresentação do dispositivo analítico. Dito de modo simples, a análise dos filmes feita
aqui não segue especificamente nenhuma das diversas possibilidades metodológicas sugeridas
pela escola francesa de análise do discurso, mas, ao invés disso, o percurso da análise segue o
próprio percurso teórico de constituição dessa disciplina. Assim, o primeiro passo é ler o texto
por si mesmo, e não em busca de um pressuposto significado oculto, não sucumbindo à
tentação de “superar o filme”, mas tornando-o “o ponto de partida e o ponto de chegada da
análise” (GOLIOT-LÉTÉ e VANOYE, 1994, p. 15). É o que será feito ainda neste capítulo, a
descrição do como o cinema hegemônico contemporâneo descreve o continente africano. Os
passos seguintes consistem em ir ampliando o foco, e tentar definir a formação discursiva que
essas narrativas constituem, em que formação ideológica elas se encaixam e de qual memória
discursiva elas se apropriam. Essa será a tarefa dos capítulos que seguem. Não posso deixar
de recordar, nesse momento, e de me identificar, com o que Edward Said diz do método por
ele utilizado em Cultura e imperialismo: “Meu método é enfocar ao máximo possìvel
algumas obras individuais, lê-las inicialmente como grandes frutos da imaginação criativa ou
interpretativa, e depois mostrá-las como parte da relação entre cultura e império” (SAID,
1995, p. 23).

Assim, assumindo a postura do eu-pesquisador caracterìstico da AD, qual seja, “agente


participante de uma determinada ordem, contribuindo para a construção de uma articulação
entre linguagem e sociedade” (DEUSDARÁ e ROCHA, 2005, p. 321), isto é, assumindo a
impossibilidade da neutralidade científica buscada em outras perspectivas teórico-
metodológicas, a intenção desse estudo é “analisar em que perspectivas a relação social de
poder no plano discursivo se constrói” (DEUSDARÁ e ROCHA, 2005, p. 321), no que diz
61

respeito especificamente à imagem de África. Que relação social de poder faz com que ao
pensar em África eu me lembre de um sol laranja nascendo na savana e de vários animais, e
não de um grupo de jovens se divertindo numa praia, por exemplo? O objetivo não é verificar
uma realidade qualquer, e sim questionar e participar de um espaço de construção de olhares
diversos sobre o real.

Annie Goliot-Lété e Francis Vanoye, em seu estudo clássico sobre a análise fílmica,
afirmam que o analista que se propõe a analisar filmes “deverá estabelecer um dispositivo de
observação do filme se não quiser se expor a erros e ou averiguações incessantes”, além de se
proporcionar “redes de observação a serem fixadas e organizadas em função dos eixos
escolhidos” (GOLIOT-LÉTÉ e VANOYE, 1994, p.12). Assim, exponho de pronto o
„dispositivo de observação‟ de onde observo os filmes que são as fontes históricas do presente
trabalho. Ressalto primeiramente que o entendimento de filme tomado aqui não o compreende
apenas enquanto espetáculo unicamente cinematográfico, que demanda todo o ritual de se
estar fora de casa, compartilhando um ambiente especialmente a isso destinado com outras
pessoas que ali estão com o mesmo objetivo – em outras palavras, demanda a pipoca e a sala
escura (e quase sempre, no Brasil, atualmente, o shopping). O filme é pensado enquanto
fenômeno mais disperso e presente no dia-a-dia, inserido não apenas no fluxo televisivo,
alcançável na sala de casa, característica já percebida por Marc Ferro, quando afirma que a
televisão “vampirizou um pouco o cinema. Mas os dois componentes desse par de siameses
não podem mais viver um sem o outro: o cinema não poderia mais existir sem a ajuda da
televisão; a televisão, sem filmes, perderia igualmente seu público” (FERRO, 2010, p. 10);
mas, tendo em vista o mundo real a nosso redor, principalmente no „megafluxo‟ virtual,
alcançável teoricamente em qualquer lugar.

Assistir diretamente ou fazer download de filmes na Internet é um fenômeno de


caráter massivo que não pode ser desconsiderado, uma vez que, entre outras coisas,
potencializa o alcance dos discursos veiculados por quaisquer filmes. Analisar dados
referentes à recepção dos filmes não está entre as ambições do presente estudo, uma vez que
demandaria um trabalho de fôlego com esse objetivo específico. Ainda assim, vale ter em
mente a realidade social em que estamos inseridos, em que o público que assiste a filmes
aumentou significativamente em função da venda popular de cópias ilegais, a um custo
financeiro muito baixo, somada ao alcance cada vez maior dos tentáculos da Internet. Isso faz
com que as cifras das bilheterias percam parte de sua relevância ao se avaliar a „popularidade‟
de um filme qualquer – já podem ser encontrados pela Internet rankings dos filmes mais
62

baixados do ano, por exemplo22 (algo, diga-se de passagem, assaz difícil de acreditar que se
possa determinar com precisão). Esse caráter “popular” do objeto de pesquisa, longe
configurar alguma espécie de problema, na verdade se constitui em uma vantagem, pois, na
medida em que não se investigará a questão da recepção, de um modo indireto essa
característica preenche silenciosamente a sua lacuna, pois como observam Shohat e Stam,
“embora intelectuais progressistas muitas vezes desprezem produtos da cultura popular, é
precisamente na esfera popular que o eurocentrismo tem sua base principal, fundada na vida
cotidiana” (SHOHAT e STAM, 2006, p. 27).

Como exposto no capítulo anterior, eu circunscrevo como objeto deste estudo o


discurso sobre a África feito pelo cinema hegemônico contemporâneo, que vai além da
definição de cinema hollywoodiano, entendido como “expressão de uma forma “dominante”
de cinema que é maciçamente industrial, ideologicamente reacionária e esteticamente
conservadora” (SHOHAT e STAM, 2006, p. 28), incluindo, portanto, filmes produzidos na
Europa nessa década que também fazem referência à África. Eventualmente pode ser feita
alguma objeção a essa opção, mas destaco que a crítica a que se pretende essa dissertação não
é ao modelo hollywoodiano, “blockbuster”, de se fazer cinema, e sim ao discurso eurocêntrico
presente nos filmes que retratam a África. Trata-se de uma análise, e uma crítica, referente
não simplesmente a uma estética, que pode ser mais ou menos refinada e „rebuscada‟ ou mais
ou menos comercial e „palatável‟, mas sim a uma ideologia subjacente a esses produtos
culturais. Além de ter em comum o período de produção, esse grupo de filmes compartilha as
mesmíssimas visões sobre a África, muito embora as maneiras de descrever o continente e os
recursos narrativos utilizados possam ser diferentes, indo de uma leve e sutil sugestão em
alguns à uma escatologia aberrante em outros. Não obstante, o que ocorre é que a
identificação da África nesse conjunto de filmes selecionado é similar, uma vez que eles
compõem o mainstream, o discurso dominante, sobre o que se diz a respeito da África. Este
conjunto de filmes, procurarei demonstrar, compartilha de um mesmo sistema de
representação e de uma mesma orientação ideológica – e, pode-se dizer, não há nenhuma
tentativa de quebra de paradigma estético ou ideológico (no que se refere à África) que
distancie os filmes produzidos na Europa dos filmes classificados como hollywoodianos.
Antes, todos esses filmes se adequam ao modelo estético que se impôs como dominante no
cinema mundial aproximadamente desde 1914, a que Noël Burch denomina “Modelo de
Representação Institucional” (Apud GOLIOT-LÉTÉ e VANOYE, 1994, p. 28). As condições
22
http://info.abril.com.br/noticias/internet/torrentfreak-divulga-lista-dos-filmes-mais-baixados-26122011-2.shl
Acessado em 15/03/2012.
63

de produção do discurso são um dos pontos chave nesse debate, e conduz à questão da
autoria.

A questão do sujeito discursivo é mais um ponto nodal para a AD, e cito mais uma vez
D. Maingueneau para situar também o sujeito do corpus fílmico a ser analisado, fundamental
no percurso ora descrito. Levando em conta a definição de formação discursiva exposta
anteriormente – “conjunto de regras anônimas (...) que definiram em uma época dada (...) as
condições de exercìcio da função enunciativa” (FOUCAULT, 2008, p. 138) –, ou seja, o já-
dito onde se inscreve o possível de ser dito, chegamos à seguinte proposição:

Nessa perspectiva, não se trata de examinar um corpus como se tivesse sido


produzido por um determinado sujeito, mas de considerar sua enunciação
como o correlato de uma certa posição sócio-histórica na qual os
enunciadores se revelam substituíveis. Assim, nem os textos tomados em sua
singularidade, nem os corpus tipologicamente pouco marcados dizem
respeito verdadeiramente à AD (MAINGUENEAU, 1997, p. 14).
Assim, o foco da análise não recairá sobre os diretores ou autores individuais dos
filmes, suas biografias, intencionalidades ou nenhum outro dos elementos a que com
frequência recorrem os estudos fílmicos. Embora por um ou outro motivo alguma informação
pertinente a esse respeito possa ser levada em conta, é importante ressaltar que as figuras do
diretor ou roteirista não são tomadas como sendo os sujeitos discursivos, ponto de vista
justificado pela afirmação de D. Maingueneau acima. Não interessa particularmente se esse
ou aquele filme foi baseado no livro de alguém que „luta pela emancipação‟ da África ou por
um sujeito que é notoriamente saudosista dos tempos de colonização política, pois, utilizando-
me das palavras de E. Orlandi, “a análise não se interessa pela “verdadeira” posição
ideológica do enunciador real, mas pelas visões de mundo dos enunciadores (um ou vários)
inscritos no discurso” (ORLANDI, 2000, p. 51). Isso porque está disponível, através da
memória discursiva, uma constelação de dizeres já enunciados sobre o continente africano que
significam nas narrativas feitas sobre África por esses sujeitos individuais, e o que “é dito em
outro lugar também significa em “nossas” palavras”, sendo inelutável o fato de que se torna
“inútil, do ponto de vista discursivo, perguntar o que ele quis dizer quando disse “X””
(ORLANDI, 2000, p. 32).

Mais importante do que conjecturar a partir de uma reelaboração da carreira artística


ou pessoal do sujeito individual as possíveis significações do dito, na perspectiva da análise
do discurso, é o lugar de onde o sujeito enuncia o seu discurso. Em uma situação discursiva
qualquer, o que o sujeito diz significa tanto através de tudo que já se disse sobre aquilo – o
interdiscurso –, quanto a partir da percepção que se tem do lugar de onde ele enuncia, em
64

virtude das relações de força que constituem a nossa existência empírica. Para citar um
exemplo simples, basta imaginar a diferença de significado de uma frase como “a vida só é
dura para quem é mole” se dita por um pedreiro ou por um executivo. Dita pelo pedreiro, ela
tem a acepção de luta árdua diária pela sobrevivência honesta. Pelo executivo, adquire
contornos de zombaria em relação aos pobres que “reclamam da vida”. O que está em jogo e
que confere significações diferentes ao mesmo enunciado não é o lugar empírico ou as
posturas políticas de um pedreiro ou de um executivo reais, do ponto de vista sociológico, e
sim a posição dos sujeitos no discurso. “O lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo
do que ele diz” (ORLANDI, 2000, p. 39), por isso os filmes hollywoodianos sobre a África
serão analisados a partir da direção ideológica do lugar social que determina a posição de seus
sujeitos discursivos:

Podemos dizer que o sentido não existe em si mas é determinado pelas


posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que
as palavras são produzidas. As palavras mudam de sentido segundo as
posições daqueles que as empregam (ORLANDI, 2000, p. 42).
A referência ao processo sócio-histórico de produção dos enunciados feita por Orlandi
remete a mais uma elucidação necessária. Lembrando a corrente de análise e interpretação
sócio-histórica de filmes, chamo a atenção para o fato de que ainda não expus nenhuma
argumentação a favor da utilização de filmes como fonte histórica. Entendo que essa questão
por si só já está superada, e não se faz necessária uma defesa nesse sentido. A utilização do
cinema como fonte histórica pode ser considerada lugar comum em 2012, e a legitimidade
dessas fontes é aceita atualmente pela grande maioria dos historiadores (pessoalmente
desconheço algum caso de recusa ao filme como fonte). Raros são os casos de oposição à
compreensão de que um filme “oferece um conjunto de representações que remetem direta ou
indiretamente à sociedade real em que se inscreve” (GOLIOT-LÉTÉ e VANOYE, 1994, p.
55).

Em um primeiro momento, assumirei uma postura que toma como ponto não passível
de questionamento esse fato, partindo imediatamente para a análise dos filmes, no percurso
recém-exposto. A minha tentativa de contribuição ao debate teórico sobre o estatuto dos
filmes na produção historiográfica terá lugar no quarto capítulo, onde serão levadas em conta
as explicações da análise feita no terceiro capítulo dos filmes cuja descrição se encontra logo
adiante, ainda nesse capítulo. Para além das balizas teóricas estabelecidas pelos historiadores
pioneiros no uso de filmes como fonte histórica, representados por nomes como Pierre Sorlin,
Georges Sadoul, Michèle Lagny e marcadamente Marc Ferro, as considerações do historiador
65

Robert A. Rosenstone, teórico da ideia de que os filmes podem ser considerados uma
linguagem historiográfica específica, inclusive com uma aceitabilidade e difusão maior entre
o público em geral do que a história produzida na academia, serão de grande relevância nesse
momento. Segundo ele, precisaríamos de um neologismo para definir o tipo de história
produzida pelos filmes, mas que em todo caso não deixa de ser „história‟ como a acadêmica,
compartilhando semelhanças em pelo menos dois aspectos: “referem-se a acontecimentos,
momentos e movimentos reais do passado e, ao mesmo tempo, compartilham do irreal e do
ficcional, pois ambos são compostos por conjuntos de convenções que desenvolvemos para
falar de onde nós, seres humanos, viemos” (ROSENSTONE, 2010, p. 14). Ainda de acordo
com Rosenstone, deixar de lado a televisão ou o cinema – os „principais meios para transmitir
as histórias que nossa cultura conta para sim mesma‟ – quando, historiadores, analisamos
nossa relação com o passado, significa “nos condenar a ignorar a maneira como um segmento
enorme da população passou a entender os acontecimentos e as pessoas que constituem a
história” (ROSENSTONE, 2010, p. 17).

O filme pode ser legitimamente considerado como um “produto cultural inscrito em


um determinado contexto sócio-histórico”, e essa assunção torna necessária a sua vinculação a
outros setores de atividade da sociedade que o produz (GOLIOT-LÉTÉ e VANOYE, 1994, p.
28). A percepção do cinema como uma indústria é clássica, e vem de pensadores como André
Malraux e Walter Benjamin. Este último, em especial, em seu ensaio clássico A obra de arte
na época de sua reprodutibilidade técnica, situa os fatores que estabelecem o cinema como a
„arte industrial‟ por excelência – a quebra dos elementos que tornavam a aproximação com
uma obra de arte uma experiência semi-religiosa: a aura, o valor cultural e a autenticidade,
eliminados pela estandardização que caracteriza o cinema (BENJAMIN, 2010, pp. 221-254).
Porém, me vejo concordando com Marcel Martin quando afirma que a principal
„desvantagem‟ do cinema não é seu caráter de indústria – a construção das catedrais também o
possuía, afirma – mas sim o seu caráter comercial. Esse aspecto certamente será mais levado
em conta na análise aqui feita, porque

a importância dos investimentos financeiros que necessita o faz tributário


dos poderosos, cuja única norma de ação é a da rentabilidade; estes
acreditam poder falar em nome do gosto do público em função de uma
suposta lei de oferta e procura, cujo jogo é falseado porque a oferta modela a
procura a seu bel-prazer. Enfim, se o fato de ser uma indústria pesa
gravemente sobre o cinema, as responsáveis por isso são antes as
implicações morais desse conceito do que as materiais (MARTIN, 2003, p.
15).
66

Para além dessa característica e do que já foi dito, o conceito de inconsciente político
de Fredric Jameson também encontra eco nessa escolha analítica, e também está
silenciosamente entranhado na abordagem dos filmes. Sua afirmação de que nunca
apreendemos um texto qualquer no “frescor da coisa-em-si-mesma”, mas sim por meio de
“camadas sedimentadas de interpretações prévias” (JAMESON, 1992, p. 9) poderia
perfeitamente ter sido escrita para caracterizar o corpus fílmico que essa pesquisa abrange.
Sempre atento a não cair na armadilha de tentar alcançar o „mito da descrição exaustiva do
filme‟, e considerando a afirmação de Raymond Bellour de que o texto fìlmico é “impossìvel
de encontrar”, não é citável, o primeiro movimento de análise consistiu em assistir o corpus
fílmico seguindo a recomendação de Vanoye e Goliot-Lété, de “soltar as rédeas” na hora da
análise: “O conselho, aqui, evidentemente não pontifica parar por completo qualquer
atividade intelectual. Propõe modificar e flexibilizar uma metodologia que a angústia tende às
vezes a tornar rìgida”, ou, mais sucintamente, “perguntar sem buscar” (GOLIOT-LÉTÉ e
VANOYE, 1994, p.19,20).

Esse contato prévio com os filmes, vendo-os por si mesmos, sem questionamentos
secundários, pôde ressaltar, de imediato, que é facilmente perceptível uma repetição de temas.
Existem alguns estereótipos sobre o continente africano e seus habitantes que são
marcadamente recorrentes. O meu primeiro impulso foi fazer uma extensa e pormenorizada
lista de temas que se repetem em todos os filmes que remetem à África, e então analisá-los
um a um, mas logo essa abordagem não apresentou nenhuma vantagem analítica. De modo
geral, estão presentes em todos os filmes, variando o grau de sutileza e a recorrência, temas
vários que eu nomeei provisoriamente como o tema da África misteriosa, a figura do
mediador, a África selvagem, a África primitiva, a África indigente, a África sombria, a
África inviável, para citar alguns. Todos estes são temas que se repetem, independente do
gênero ou julgamento de valor que se possa fazer a respeito dos filmes. Mas são temas
escorregadios, é um processo complicado isolar e analisar cada um individualmente, uma vez
que se interpenetram e fazem referências entre si. O movimento de ver e rever os filmes fez
com que fosse possível apurar, cada vez mais, estes temas, recorrendo a uma baliza teórica
situada por Hayden White: A teoria dos tropos se configurou como o meio mais adequado de
enquadrar os temas sobre a África a que fazem referência os filmes. Embora as considerações
de H. White sobre os tropos, em Trópicos do discurso, sejam voltadas especificamente para
como o elemento trópico funciona dentro dos discursos que se propõem realistas,
especificamente as chamadas ciências humanas, não há motivo para não transferi-las para
67

discursos ficcionais como os filmes aqui analisados, até porque esses discursos teoricamente
são o campo de ação privilegiado dos tropos (WHITE, 1994, p. 14). Para H. White, todo
discurso contém um elemento trópico, ao qual ele se refere nos seguintes termos:

Para retóricos, gramáticos e teóricos da linguagem, os tropos são desvios do


uso literal, convencional ou “próprio” da linguagem, guinadas na locução
que não são sancionadas pelo costume ou pela lógica. Os tropos geram
figuras de linguagem ou de pensamento mediante a variação do que
“normalmente” se espera deles e por via das associações que estabelecem
entre conceitos que habitualmente se supõem estarem ou não relacionados de
maneiras diferentes da sugerida no tropo utilizado (WHITE, 1994, p. 14).
Tomando como ilustração o discurso colonial, por exemplo, Shohat e Stam mostram
como o uso de metáforas, tropos e motivos alegóricos são fundamentais na construção do
eurocentrismo. Raça seria um tropo, uma metáfora, uma vez que não faz referência à
realidade da “cor” da pele das pessoas – ninguém é literalmente branco ou vermelho –, mas ao
invés disso é um modo figurado de se referir às variações de tons da cor da pele dos seres
humanos. Embora não possa ser descrita como uma realidade, e sim como um tropo, o termo
raça ganhou todas as acepções de exclusão e justificação conhecidas e combatidas. H. White
descreve o processo tropológico como a alma do discurso, o mecanismo sem o qual a
compreensão se torna impossível:

Este processo de compreensão só pode ser tropológico na essência, pois o


que está envolvido na conversão do não-familiar em familiar é uma criação
de tropos que em geral é figurativa. Segue-se, a meu ver, que este processo
de compreensão se desenvolve mediante a exploração das principais
modalidades de figuração, que a teoria retórica pós-renascentista diz ser os
“tropos principais” da metáfora, da metonìmia, da sinédoque e da ironia.
Além disso, parece que nesse processo atua um padrão arquetípico para
construir tropologicamente campos da experiência que requerem a
compreensão que acompanha a sequência de modos indicados como dados
pela relação de tropos principais (WHITE, 1994, p. 18).
Além disso, um outro viés teórico que dá sustentação à análise dos filmes e que será
visto com detalhes no último capítulo é o proposto pelo historiador estadunidense Robert
Rosenstone. Para ele, o modo de interpretar os filmes históricos a partir da sua comparação
com uma pretensa realidade histórica, encampando um método calcado quase que
exclusivamente na busca de erros, deve ser superado e, se não substituído, ao menos
acompanhado por uma perspectiva mais globalizante, que tente compreender como muitos
filmes vêm participando na construção da visão global que nossa sociedade tem sobre o
passado. Essa “tentativa séria de dar sentido ao passado” (ROSENSTONE, 2010, p. 62.
Grifo do autor), segundo ele, deve tentar ser apreendida da seguinte maneira:
68

É possível encarar a contribuição de tais obras em termos não apenas dos


detalhes específicos por ele apresentados, mas, sim, no sentido abrangente
do passado que elas transmitem, as ricas imagens e metáforas visuais que
eles nos fornecem para que pensemos historicamente. Também é possível
encarar o filme histórico como parte de um campo separado de representação
e discurso cujo objetivo não é fornecer verdades literais acerca do passado
(como se a nossa história escrita pudesse fazê-lo), mas verdades metafóricas
que funcionam, em grande medida, como uma espécie de comentário, e
desafio, ao discurso histórico tradicional (ROSENSTONE, 2010, pp. 23,24).
Esse ponto de vista será retomado adiante, mas por hora cabe ressaltar que para
Rosenstone, é preciso ver o filme histórico em relação ao discurso mais amplo, e é esta
operação que esta dissertação tenciona realizar, mostrando primeiro os filmes contemporâneos
que retratam a África e depois relacioná-los ao plano de fundo político-ideológico em que se
encaixam. Com essa perspectiva em vista, a análise do discurso fílmico se concentrará nos
tropos narrativos repetitivos, nas marcas de enunciação, que podem se utilizar ou não de
determinados estereótipos, para produzir o retrato da África nos filmes. É pela junção de
imagens, sons e diálogos que tais filmes produzem ou reproduzem um discurso
historicamente situado. O olho do estudo, assim passou a fitar as formas de representação, os
tropos narrativos, os paradigmas de representação das estruturas sociais, e não
simplesmente personagens ou países retratados a partir de estereótipos negativos. De todos os
temas que isolei sobre a África nos filmes, três tropos gerais se destacam como o fio de
Ariadne que liga todas as narrativas cinematográficas dos anos 2000 sobre o continente (até o
presente, ao menos): o tropo da inferioridade, o tropo da necessidade de intervenção e o tropo
da necessidade de fuga. São três formas de retratar a África que estão interligadas entre si, são
interdependentes, e significam essencialmente a mesma coisa por caminhos diferentes. A
necessidade de fuga é premente por causa de uma das facetas da inferioridade africana, por
exemplo. Em divisão tripartite das representações de África será exposta a seguir, em um
tópico específico para apontar cada um deles nos filmes. Como já ressaltado, a intenção nesse
momento é deixar as fontes falarem, situar quais os discursos sobre a África são enunciados
nesse corpus fílmico, para, só então, proceder à análise desses discursos, da formação
ideológica onde se encaixam e da memória discursiva de que se alimentam.

Não serão tentadas descrições exaustivas de cada filme, não se trata de algo
absolutamente necessário. No correr do trabalho, as descrições e análises focarão em
sequências específicas, especialmente reveladoras dos tropos relacionados. Do ponto de vista
historiográfico, essa opção certamente se apoia no conceito de paradigma indiciário conforme
explicitado por Carlo Ginzburg, que a respeito dos métodos usados por Freud e Morelli,
aplicando ao ofício do historiador, diz que “a personalidade deve ser procurada onde o esforço
69

pessoal é menos intenso”, nas „pistas infinitesimais‟ (GIZNBURG, 1989, p. 146). Nas
„orelhas de Morelli‟, nos pormenores de um filme onde aparentemente não há esforço de seus
realizadores em „mostrar nada‟, talvez encontremos os indícios mais relevantes sobre a
formação discursiva de que fazem parte, na perspectiva do „sentido abrangente do passado‟
que é por eles transmitido, de que fala Rosenstone. Bárbara Tuchman e sua referência ao
“importante princìpio da historiografia” a que ela chama de detalhe corroborativo também
respalda, historiograficamente, a opção pela análise de sequências. Muito embora ela exponha
a ideia de detalhe corroborativo em sua defesa da prática de uma história “em gramas”, isto é,
do uso de peculiaridades contemporâneas ao assunto como estratégia tanto para dar graça à
escrita da história como para revelar ou reforçar (corroborar) determinados aspectos do
relato23, o reconduzo aqui para a própria leitura da escrita das fontes. Com isso quero dizer
que a descrição feita por B. Tuchman do detalhe corroborativo o aproxima da ideia de pista
infinitesimal, no sentido de que não é um conceito relevante „apenas‟ para a escrita do
historiador, mas também para a análise das fontes, uma vez que determinados detalhes na
fonte podem ser, à moda da pista infinitesimal, “igualmente revelador da personalidade”
(TUCHMAN, 1995, p.26-36).

Infelizmente, nem a todos os filmes poderá ser atribuída a mesma relevância neste
estudo. Ainda que todos compartilhem os mesmos pressupostos narrativos e possam ser
igualmente utilizados, alguns serão apenas mencionados ou deles se extrairá apenas alguma
pista infinitesimal, enquanto alguns outros serão analisados com mais apuro. Esse
inconveniente se deve antes de tudo à questão espaço-temporal que configura a escrita de uma
dissertação, mas também à redundância de se dizer as mesmas coisas referentes a uma série
razoavelmente longa de fontes. Os filmes „privilegiados‟ o serão no mais das vezes em função
de seu caráter paradigmático, por serem mais explícitos e fazerem referências mais constantes
e diretas aos tropos narrativos sobre África, e também em função de sua recepção e contato
com um público mais numeroso. Essa recepção é apenas presumida levando em conta
informações sobre números de bilheteria, premiações popularmente reconhecidas e os
holofotes daí decorrentes, singularmente o prêmio da academia de cinema de Hollywood, o
popular Oscar, ou a presença de atores e atrizes particularmente populares, as „estrelas‟.

23
A autora se coloca em oposição a uma prática da história “aos quilos, cujos fornecedores estão mais
preocupados em estabelecer o significado e propósito da história do que com o que aconteceu”, lembrando que a
história pode “ser considerada e estudada por si mesma, como registro do comportamento humano, o mais
fascinante dos assuntos” e considerando mais prudente “chegar uma teoria através dos fatos do que o inverso”
(TUCHMAN, 1995, p. 27,28).
70

Agora, antes de passarmos à descrição dos filmes, permita-me fazer uma breve digressão em
função de uma ampliação da noção de estereótipo, já nossa conhecida.
71

AINDA: AMPLIANDO A NOÇÃO DE ESTEREÓTIPO

Não acredito que a expressão “estudos da imagem” abarque a complexidade


multifacetária da linguagem cinematográfica. A não ser, naturalmente, que o objetivo seja
analisar especificamente determinadas imagens (fotogramas), a representação plástica de
determinada coisa. Mas o fato é que a imagem pura e simples sequer se aproxima da
especificidade da linguagem cinematográfica. O Cinema é imagem em movimento mais som
mais palavra escrita e/ou falada, e essa especificidade torna necessário um tipo de
aproximação mais ampla do que a ensejada pela simples categorização „estudos da imagem‟.

No mais das vezes, os estudos históricos tendem a analisar estereótipos de duas


categorias: os verbais e os imagéticos. A proposta neste trabalho é buscar uma categoria
diferente de estereótipos, os cinematográficos, que se apresentam numa forma audiovisual.
Martine Joly já fez uma defesa da existência de estereótipos audiovisuais, que acredito estar
condensada na seguinte assertiva:

no seguimento de determinados investigadores literários, nos propomos


reconsiderar a noção de clichê e estereótipo, já não apenas como figuras
imobilizadoras e modificadas, mas em primeiro lugar como modo de
comunicação específico, como discurso social e individual, forçado por
natureza a reativar modelos de aceitabilidade. Na nossa opinião, esta
abordagem merece ser alargada ao audiovisual, mediante uma análise atenta
da especificidade do estereótipo na TV (JOLY, 2002, p. 209).
A especificidade da linguagem cinematográfica é consideravelmente sublinhada na
obra Audiovisão, em que Michel Chion desdobra o conceito criado por ele de que nossa
percepção de um filme ou de um programa de TV está ligada à evocação de um sentido
particular, em que estão unidos, de modo não comparável com outras experiências cotidianas,
os sentidos da audição e da visão, de forma que não „vemos‟ um filme, mas o „audiovemos‟
(CHION, 2011). A importância do elemento sonoro na narrativa cinematográfica é muitas
vezes negligenciada nos estudos históricos, e a ela este estudo pretende dedicar especial
atenção. Por não ter encontrado definição mais adequada na literatura a respeito, chamarei
simplesmente de estereótipos sonoros a presença marcante de elementos sonoros repetitivos
nos filmes sobre África, como um elemento identificador crucial que não pode ser relegado a
um segundo plano.

Recorrendo não só ao conceito de Audiovisão de M. Chion, mas também ao de


Paisagem Sonora, expressão criada pelo teórico musical R. Murray Schaffer, pretendo
estender as considerações sobre a relevância do processo de estereotipia de África para os
72

sons. O neologismo de Schaffer – soundscape no original em inglês, em analogia ao termo


para paisagem naquele idioma, landscape, jogo impossível de traduzir para o português em
uma única palavra – visa delimitar

qualquer campo de estudo acústico. Podemos referir-nos a uma composição


musical, a um programa de rádio ou mesmo a um ambiente acústico como
paisagens sonoras. Podemos isolar um ambiente acústico como um campo
de estudo, do mesmo modo que podemos estudar as características de uma
determinada paisagem (SCHAFFER, 2001, p. 23).

Enquanto a análise de Schaffer se atém primordialmente a ambientes „reais‟, seja a


barulheira característica de um centro urbano ou algo sublime como o canto dos pássaros de
um lugar específico, buscarei usar os recursos teóricos que ele disponibiliza para analisar a
paisagem sonora interna dos filmes que se passam ou citam a África em suas narrativas. O
som de tambores, por exemplo, é utilizado como elemento de identificação, a partir do qual o
espectador se sente prontamente familiarizado com a África, como no exemplo da abertura de
O rei leão. Nas trilhas sonoras de tais filmes é recorrente a presença de artistas tais como o sul
africano Lebo M e o malinense Salif Keita, cujas músicas, a exemplo da que conduz a
sequência de abertura de O rei leão, são caracteristicamente identificadas como “africanas”.
Não convém subestimar importância da trilha sonora e da sonoplastia em um filme, a
influência profunda e penetrante que elas podem exercer sobre o comportamento e o estado de
espírito do espectador durante a sua execução (ou mesmo depois), e os usos que a indústria
cinematográfica tem feito disso. Diz-se, por exemplo, que O exorcista perde praticamente
toda sua célebre capacidade de causar medo se assistido com a função „mudo‟ ativada.

Como aponta de modo aguçado Todd Gitlin, a respeito do poder dos sons, “as
instituições usam rotineiramente o som para orquestrar um sentimento coletivo, para “apor
uma marca” ao espaço, explorando o fato de que podemos optar por não ver com muito mais
facilidade do que não escutar” (GITLIN, 2003, p. 83). Podemos perceber a relevância das
considerações de T. Gitlin se as deslocarmos da sociedade midiatizada em geral, que ele
analisa, para o caráter comercial do cinema: “estados de espìrito tem valor monetário” e
“estìmulos psicológicos podem ser cientificamente programados” (GITLIN, 2003, p. 85, 86).
Se acontece de associarmos a imagem de uma determinada paisagem inconscientemente à
África, essa reação pode ser potencializada pelos sons, tendo em vista que o ouvido
discrimina menos do que o olho, sendo aqui, portanto, a utilização de metáforas auditivas e
musicais objeto de atenção tanto quanto os estereótipos visuais.
73

Além disso, são-me caros dois conceitos, oriundos de escritos de dois historiadores
brasileiros, que entendo como intimamente relacionados à ideia de estereótipo. Sendo
desdobramentos dessa ideia central, pretendo utilizá-los no decorrer da dissertação. O
primeiro é o de imagem canônica, apontado por Elias Tomé Saliba. Esse tipo de imagem
constitui o que ele chama de “pontos de referência inconscientes sendo, portanto, decisivas
em seus efeitos subliminares de identificação coletiva” (SALIBA, 2007, p. 88). Segundo ele,
tais imagens podem ser também chamadas de “imagens coercitivas”, visto que estariam tão
plenamente incorporadas em um imaginário coletivo que sua identificação seria praticamente
instantânea, impondo uma determinada figura “reproduzida infinitamente em série, tão
infinitamente repetitiva que não mais nos provocava nenhuma estranheza”, “não nos levava
mais a distinguir, a comparar – em suma, não nos levava mais a pensar” (SALIBA, 2007, p.
88,89). É provável que fosse a esse tipo de imagem que Martine Joly se referia ao falar de
“tudo aquilo que reconhecemos no tempo de um zapping, o tempo que demora a pressão do
dedo sobre um botão, e que nos diz onde estamos”, constituindo um imenso e difuso
“conjunto de imagens mediáticas memorizadas” (JOLY, 2002, p. 203).

O segundo conceito agregado a estereótipo é aquele a que me referi no início do


capítulo, ao falar de O rei leão. Ele é trazido à tona por Eduardo França Paiva: são as
figurações de memória. Em suas palavras, estas seriam

imagens de memória, aquelas que trazemos conosco, em nosso cotidiano,


muitas vezes sem percebermos e que nem sempre têm uma representação
plástica invariável. Por exemplo, nossas imagens de honestidade, de
patriotismo, de dor, de fé, de sofrimento, de felicidade, entre tantas outras,
estão associadas, quase sempre, a ideias e a representações que variam entre
pessoas e grupos, assim como no tempo e no espaço (...). Elas também
integram a base de formação e de sustentação do imaginário social. (PAIVA,
2004, p. 14).
A presença da palavra memória é importante nesse contexto, uma vez que remete a
esse fator humano individual que é o modo como cada um conforma em si mesmo os
estereótipos externos, pois “o estereótipo nos é transmitido com tal força e autoridade que
pode parecer um fato biológico” (BOSI, 1977, p. 103), acrescentando contornos individuais
ao fenômeno da memória discursiva. De certo modo, o conceito de figurações de memória
parece apontar para o mecanismo que ativa e faz funcionar a identificação das imagens
canônicas em cada pessoa. Seria, portanto, uma dimensão individualizada do funcionamento
da engrenagem dos estereótipos, focada em um desdobramento específico, o visual, e
configurando a maneira mais ou menos distorcida como cada pessoa constrói suas lembranças
74

no que diz respeito ao continente africano, por exemplo. Passemos agora, finalmente, à
descrição dos grandes tropos de África encontrados no corpus fílmico estudado.
75

ESTEREÓTIPOS DE ÁFRICA 1 – O TROPO DA INFERIORIDADE

O primeiro e mais evidente de todos os tropos sobre África, do qual decorrem os


outros, é a atribuição de inferioridade nata que lhe é feita em uníssono por todos os filmes que
lhe fazem referência. Mesmo que seja com a “melhor das intenções”, de denunciar
determinada prática desumana ou de fazer um „registro histórico‟ de certo acontecimento
relevante, o que desejo sublinhar aqui é que invariavelmente tais filmes recorrem a maneiras
depreciativas e subalternizantes de descrição. A situação de território onde a ação de
estrangeiros – leia-se euro-estadunidenses – pode ocorrer livre, numa eterna revivência do
passado colonial, se torna inescapável em função de um eterno jogo de metáforas e tropos que
a estigmatizam de uma ou de outra maneira (SHOHAT e STAM, 2006 p. 211). Deixemos que
os filmes nos digam como fazem isso.

Falcão negro em perigo (Black hawk down, Ridley Scott, 2001) é um dos filmes que
mais motivaram a escrita desta dissertação, em parte por ser tão gritantemente panfletário, e
em parte por estigmatizar de modo tão contundente o continente africano. Difícil escolher
outro filme para começar a falar do tropo da inferioridade africana quando se tem em mente
uma sequência inesquecível desse filme para ilustrar o tema. Falcão negro em perigo é
inspirado numa operação malsucedida do exército dos EUA em território somali, em 1993,
fazendo parte, portanto, da tradição hollywoodiana de ganhar nas telas as guerras que seu país
perde nos campos de batalha – vide Os boinas verdes e a cine-série Rambo, por exemplo. O
tropo da inferioridade, onipresente na produção, aparece com destaque quando a presença de
militares estrangeiros em território africano é legitimada, em um diálogo que precede a
enxurrada de violência que caracteriza esse filme, uma vez que se trata de um „thriller de ação
ininterrupta‟.

Nessa sequência, que mostra os soldados aquartelados e o suposto clima de


companheirismo e descontração que permeia os momentos em que não estão em combate, um
soldado lê um material não identificado, evidentemente explicativo sobre a cultura somali, e
então fala para os demais que “se um somali mata outro somali, o clã dele fica devendo cem
camelos ao clã do morto”. A admiração é geral, e entre comentários como “acho que tá
faltando camelo pra pagar” e “eu não pagaria um camelo” (pela vida de um somali,
obviamente), e ante a dúvida se a afirmação procede, um soldado diz, referindo-se ao
protagonista encarnado por Josh Hartnett: “Pergunte ao sargento Eversmann, ele gosta dos
somalis.” Dizer que alguém gosta dos somalis é aparentemente uma afirmação ofensiva no
76

universo diegético do filme, pois os outros perguntam, numa reação entre caçoada e
sobressalto, ao sargento em questão: “Sargento, o senhor gosta dos somalis?!” A resposta
evasiva do sargento, dizendo que “não é o caso de gostar deles ou de não gostar, eu respeito
eles”, dá ensejo para a pergunta que traz à tona a fala do sargento que sublinha o paradigma
da inferioridade. Recorrendo ao único meio que disponho para introduzir a narrativa
cinematográfica no texto escrito, substituo imagens em movimento e sons pela escrita: “Olhe,
o que vocês não se tocam é que o sargento ali é muito idealista. Acredita nessa missão até a
raiz do cabelo, não é, sargento?” E temos então a emblemática resposta, o detalhe
corroborativo: “Escutem, essas pessoas não tem trabalho, não tem emprego, nem comida e
nem educação. Não tem nenhum futuro. Eu só acho que temos duas opções: ou a gente ajuda,
ou senta e fica vendo o país se destruindo pela CNN.” Após essa „defesa‟ do povo somali, a
conversa continua: “Não sei vocês, mas eu fui treinado para lutar. Foi treinado, sargento?”
“Eu acho que fui treinado para fazer a diferença, Kurt.” “É como o homem disse, é um
idealista”.

Os diálogos dessa sequência são bastante explícitos, mas, em todo caso, permita-me
apontar o tropo da inferioridade gritando nessas falas. Em primeiro lugar, uma aura de
exotismo e curiosidade pitoresca é lançada sobre as relações sociais, jurídicas e políticas
africanas: a referência à organização em clãs e à prática „bizarra‟ de camelos serem utilizados
como pagamento por homicídios obviamente contrasta com o ordenamento racional da
sociedade de onde aqueles personagens são originários. O fato de o perpetrador do crime
aparentemente não ser punido, mas sim o seu „clã‟, distancia ainda mais a suposta realidade
africana do individualismo que caracteriza a „civilização ocidental‟. Um tom de sarcasmo e
desprezo permeia toda a sequência, em que os soldados se indagam sobre as peculiaridades
daquela gente pitoresca que obviamente não possui recursos intelectuais para cuidar dos
próprios assuntos, e necessita da presença deles ali para colocar ordem na situação. É o tropo
da inferioridade por meio da infantilização, não referida aqui a um indivíduo específico, mas a
todo o povo. Esse tropo é deslocado, logo em seguida, para um personagem individual, o
somali „bom‟ que está trabalhando como espião para as forças militares estadunidenses.
Diante do acovardamento do espião de seguir diante com a missão, por medo de ser baleado,
o comandante afirma pelo rádio que se ele não fizer o combinado “eu mesmo vou dar um tiro
nele”, e que se ele não cumprir a tarefa não receberá o pagamento. Quando o espião leva
adiante o plano, o comandante comenta sarcasticamente com seu staff na sala de comando que
“o último informante deu um tiro na cabeça brincando de roleta russa em um bar”. Essa
77

informação se soma a muitas outras, nesse e em outros filmes, que estabelecem como
característica intrínseca dos africanos uma incompetência sistemática. Em Falcão negro em
perigo, em diversas ocasiões é feita caçoada da capacidade militar dos somalis, por exemplo:
“eles têm péssima pontaria”, “cuidado com os somalis que atiram pedras”.

Como eu disse, os tropos sobre a África se interpenetram, e os fortes tons de


inferioridade com que ela é pintada servem de gatilho para o próximo tropo, o da intervenção.
Ora, crianças precisam ser tuteladas. A fala do ídolo juvenil Josh Hartnett/Eversmann
explicita essa concatenação de modo estupendo, ao afirmar categoricamente que se essas
pessoas não tem trabalho, não tem emprego, não tem comida nem educação e nem futuro, a
lógica é que “nós”, que temos todas essas coisas, carregamos o responsabilidade de “ajudar”.
O argumento do personagem prescreve que a presença de forças militares interventoras dentro
das fronteiras de um país soberano é a única alternativa a ficar assistindo pela TV essas
pessoas, que são em diversos aspectos inferiores, matarem-se umas as outras. E essa não é
uma opção válida, pois ele foi treinado para „fazer a diferença‟.

Em Falcão negro em perigo a inferioridade africana é patente desde a sequência


inicial. Nas longas cenas de combate, é interessante perceber como as baixas infligidas pelos
somalis aos estadunidenses são sempre por meio de traição, de ardis, de modos sorrateiros e
desonestos de combate, como emboscar e atirar pelas costas, enquanto os soldados dos EUA
seguem rigidamente a regra de só atirar se em revide, e é sempre de modo triunfal e heroico
que combatem, enquanto somalis morrem como moscas diante da sua artilharia de última
geração. A marcante sequência inicial consiste numa longa contextualização histórica, feita
pela apresentação de longas legendas explicativas, do evento retratado no filme. Enquanto
letreiros vão informando que “anos de guerra civil entre clãs rivais causam fome em
proporções épicas” e que “o mundo reage” “para restaurar a ordem”, vão sendo mostradas
imagens desoladoras de corpos e pessoas desnutridas numa região desértica, castigada por
rajadas de vento arenoso. A paisagem sonora que compõe a sequência de abertura, somando-
se às legendas que falam de guerra e fome e às imagens de corpos num deserto, é
caracteristicamente „africana‟. Com isso quero ressaltar que nos filmes que retratam a África
os sons exercem papel fundamental, uma vez que o som que se pode grosseiramente
classificar como de „tambores‟ serve de elemento de identificação, e o espectador se sente
prontamente familiarizado; a África é sempre identificada com „sons primitivos‟, „sons
ancestrais‟, „sons bárbaros‟, „brutos‟, „não lapidados‟ ou „não refinados‟. As cenas
protagonizadas pelos euro-estadunidenses são invariavelmente compostas com a inserção de
78

uma paisagem sonora de sons de música sinfônica europeia e sons „amenos‟. Em Falcão
negro em perigo, os militares estrangeiros são mostrados ao som de música moderna como
Elvis Presley e Jimi Hendrix, – Voodoo child toca enquanto seus helicópteros decolam, numa
sequência alternada que mostra “enquanto isso” os „rebeldes‟ somalis emoldurados por sons
de tambores e vocalizações lamentosas, entrecortados por riffs de guitarra que sublinham a
tensão dos preparativos deles para o combate. Essa mesma trilha sonora acompanha situações
de suspense, medo e ameaça aos personagens estadunidenses durante o filme.

Essa guerra de sons, que seguramente é apreendida, mas não percebida, pela maioria
dos espectadores, é a transfiguração máxima do tropo da inferioridade: a África é
representada por sons considerados (dentro do nosso universo cultural regido pela memória
discursiva eurocêntrica) „primitivos‟, que supostamente não exigem grandes recursos
intelectuais para serem executados, enquanto os estrangeiros são representados por
sofisticados sons „modernos‟, que denotam um suposto refinamento e capacidades
„intelectuais‟ avançadas. A pecha de música „tradicional‟ sempre é utilizada em relação à
musicalidade africana, como se todos os países do mundo não tivessem as suas próprias
canções „tradicionais‟, e na África não existisse outro tipo de música. Essa descrição pode ser
considerada um exagero, mas quero lembrar toda a questão que envolve a memória
discursiva, já abordada. Muito embora aqui esteja sendo feita apenas a descrição dos tropos
usados pelos filmes para contar a África, e a análise vá ser realizada adiante, é impossível não
descrevê-los nos termos da memória discursiva, segundo a qual, na diegese fílmica, está
colocado que à inferioridade dos somalis em outros aspectos correspondem os sons de
tambores e cantos tradicionais, e à superioridade euro-estadunidense correspondem a guitarra
elétrica e o piano de cauda. É através de tal memória introjetada que essa guerra de sons
(presente não apenas em Falcão negro em perigo, mas na maioria dos filmes aqui analisados),
conjuntamente com outros recursos descritivos, transmite a mensagem de suposta
inferioridade intrínseca do continente africano. Desde o começo do filme, se não por outro
recurso narrativo, a música nos faz saber quem são os „bandidos‟ e quem são os „mocinhos‟
do universo diegético, e indica do lado de quem devemos (na intenção dos realizadores) ficar.

Essas falas de „apresentação‟ da África, como o diálogo entre soldados antes do


começo da „ação‟ em Falcão negro em perigo, são constantes, são um recurso (pobre,
convenhamos) utilizado para situar o espectador na „realidade‟ africana. Eu chamaria de
verdadeiros momentos didáticos, sequências encaixadas nos filmes muitas vezes
aparentemente sem propósito algum para o desenvolvimento da narrativa ou a compreensão
79

da diegese, mas com uma às vezes explícita função pedagógica. Primitivo (Primeval, Michael
Katleman, 2007) brinda o espectador com um exemplo notável de momento pedagógico, uma
apresentação pedagógica da África. O filme narra a história de uma equipe de jornalistas
estadunidenses que são enviados ao Burundi para fazer uma reportagem sobre um crocodilo
gigantesco que há anos vem vitimando pessoas naquele país. Enquanto sobrevoam a
vegetação exuberante da África em um pequeno avião, Aviva Masters (Brooke Langton),
jornalista de quem partiu a iniciativa para o trabalho, e caracterizada como ingênua e fútil,
comenta que o país é lindo. Então explode mais uma pista infinitesimal a corroborar o nosso
tropo da inferioridade. O protagonista Tim Manfrey, interpretado por Dominic Purcell, astro
de uma das séries da TV dos EUA mais bem sucedidas comercialmente, Prison Break,
dispara acidez e dá uma „lição‟ de „realidade‟ na frivolidade de sua colega: “É lindo visto
aqui de cima. Burundi é o país mais pobre do mundo, é o número um. Nos últimos quarenta
anos estão em guerra civil entre hutus e tutsis. Você tem fome, doenças, terrorismo,
corrupção, mas tirando isso é um paraíso.” A óbvia inferioridade com o que o país é descrito
se estende à toda África, e pode-se dizer que serve apenas de entrada para um desfile de
representações estigmatizadas do continente, confirmando em todos os aspectos a descrição
de Manfrey/Purcell.

A simples sequência da chegada dos protagonistas ao aeroporto burundiense,


irrelevante no que diz respeito ao tema central do filme, confirma em vários e sutis aspectos a
afirmação de inferioridade feita pelo protagonista: nela vemos pessoas desesperadas sendo
acuadas em uma parede, ameaçadas e revistadas por soldados armados; o funcionário público
destacado para auxiliá-los tenta retardar o trabalho com trâmites burocráticos claramente
corruptos, respondendo à solicitação de ajuda imediata que “isto é a África, cara. Nada
acontece imediatamente”, mas suas intenções escusas são desmascaradas pelo jornalista que
finge falar ao telefone e então informa ao funcionário que vai ter a ajuda que precisa no
Sudão, fazendo-o voltar atrás em suas chantagens. O título do filme, de fato, já remete à
descrição da África feita pelo protagonista, e logo a narrativa passa a traspor a suposta ameaça
do primitivismo africano do reino animal para as relações humanas, pois os aspectos políticos
da África, também mostrados como „primitivos‟, são misturam, quase imperceptivelmente, à
trama. A presença, em um segundo plano narrativo, de soldados-mirins, “senhores da guerra”,
execução sumária de opositores no meio do mato por decapitação, e outros elementos de uma
polìtica „primitiva‟ correlatos, logo se tornam tão aterrorizantes quanto Gustav, o crocodilo
assassino. Os estadunidenses se veem às voltas não apenas com o problema de capturar “a
80

máquina assassina mais perfeita da natureza”, mas de enfrentar o dilema ético de decidir se
devem envolver-se com as questões locais. À exemplo do Sargento Eversmann, em Falcão
Negro em Perigo, decidem não ficar de braços cruzados e deixar os africanos se matarem, e
quando passam a intervir na política também precisam escapar da ira assassina de um tiranete
local. Não há um momento no filme, praticamente, em que a inferioridade africana não esteja
sendo ressaltada. Por exemplo, na afirmação do câmera da equipe, Steven Johnson (Orlando
Jones), não por acaso um negro que exerce a função de personagem secundário ajudante do
protagonista branco, quando, fugindo do crocodilo e dos „rebeldes‟ ao mesmo tempo, é vìtima
de uma desventura após outra, e então exclama: “Eu odeio essa droga de África!”

Ora, nesses filmes o elemento “primitivo”, “ancestral”, “tradicional”, é fartamente


alegorizado como sinônimo de inferior, de atrasado em relação aos „avanços‟ „ocidentais‟.
Tanto a paisagem sonora como a propriamente dita, a visual, remetem a um primitivismo
insuperável e, portanto à inferioridade. Momentos como a sequência da amputação de mãos e
braços, em Diamante de sangue (Bloody Diamond, Edward Zwick, 2006), ou a amputação de
seios, em Lágrimas do sol (Tears of the sun, Antoine Fuqua, 2003), revelam o primitivismo
das práticas polìticas africanas, que não sabendo lidar de modo „democrático‟ com as
diferenças, precisam reprimi-las brutalmente. A vida sob ameaça constante é um tema
recorrente, mostrado como uma cotidianidade a que os africanos estão habituados e encaram
com naturalidade, sendo também uma medida de inferioridade; esse tema é largamente
utilizado em Primitivo, e exemplificado nas pessoas que tomam banho no rio Ruzizi mesmo
sabendo que o crocodilo Gustav, na narrativa fílmica, habita aquelas águas. Essa narrativa
mostra os habitantes da África como pessoas primitivas, do ponto de vista dos interlocutores
estrangeiros, ao ponto de colocar um pequeno cão em uma balsa no rio como oferenda para
Gustav, mas tal costume é prontamente quebrado por uma revoltada Aviva Masters, que tira o
cãozinho da água: “eu respeito a tradição, mas não vou deixar ele lá!”. Essa ameaça
constante paira em Falcão negro em perigo tão intensamente advinda das circunstâncias
político-militares, que parece desnecessária a afirmação de um personagem, ao sobrevoarem
de helicóptero uma praia, de que “a água está infestada de tubarões”. É o processo inverso
de Primitivo, onde a desgraça natural ganha o primeiro plano, mas é essencialmente o tropo
da inferioridade gritando mais uma vez que em território africano nunca se está seguro.
Outros filmes exploram essa vertente da inferioridade decorrente da selvageria, e um bom
exemplo é Caçados! (Prey, Darrel Roodt, 2007), em que uma família de turistas
estadunidenses passando férias na África é aterrorizada por leões assassinos.
81

O último rei da Escócia (The last king of Scotland, Kevin McDonald, 2006) (que
apesar de alegar ser “inspirado em pessoas e eventos reais” logo no primeiro minuto, tem
como protagonista um personagem fictício), pode parecer, a um primeiro contato, quebrar
essa repetição de tropos negativos. Apenas parece. O filme começa na Europa, com a
formatura de um jovem médico escocês fictício que decide fugir do tédio familiar burguês
aventurando-se como médico voluntário em África. É através de seus olhos e de sua
perspectiva, obviamente de estranhamento e fascinação com o exotismo, que o continente
africano é apresentado. Não é grande a surpresa de que a paisagem seja constituída de
imagens canônicas sobre a África, como estradas poeirentas, ônibus velhos apinhados de
pessoas negras “entre cabras e muito suor”, veículos de guerra ocupados por militares e
notícias de um golpe militar, tudo ao som dos indefectíveis tambores. Uma pista infinitesimal
do tropo da inferioridade está em uma das pequenas cenas que compõem a sequência que
acompanha sua viagem de chegada à África, enquanto passam os créditos do filme, quando
ele chama a atenção por ser o único passageiro branco do ônibus e acaba indo para a cama
com uma passageira negra em uma das paradas. Na cena, durante o ato sexual, o médico
Nicholas Garrigan (James McAvoy) grita triunfante para o teto: “Sou um oficial médico no
exterior!”.

A pretensão do filme é contar a história do pós-ascensão ao poder de Idi Amin Dada e


do regime que esse militar de carreira implantou em Uganda. Em sua primeira metade,
aproximadamente, o filme tenta apresentar um lado positivo da África, mesmo estando
embutida a noção de inferioridade óbvia inferida da necessidade de médicos estrangeiros para
atender a população ugandense, por exemplo. A essa inferioridade estrutural presumível são
acrescentadas outras, como a inferioridade cultural na afirmação do médico a quem Nicholas
vai ajudar de que, apesar de seus esforços, “80% da população local ainda prefere os
curandeiros”, o que o faz pensar que “talvez tudo seja em vão”, e a breve cena em que
Nicholas observa um desses rituais mágicos.

O lado pretensamente positivo vem do contato de Nicholas com o próprio Idi Amin,
cuja interpretação deu a Forest Whitaker o prêmio da academia de cinema de Hollywood de
melhor ator em 2007. Amin é mostrado como um político excêntrico, genial e fascinante, que
defende apaixonadamente a África e tem hábitos pessoais peculiares, e essa personalidade
ganha a admiração incondicional de Nicholas. A decepção deste com o trabalho de médico no
posto de saúde, atendendo a população negra pobre, é realçada para reforçar o motivo de ele
aceitar o convite de Amin para ser seu médico particular – a cena em que ele observa a fila de
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pessoas pobres doentes esperando atendimento e expira pelo canto da boca fazendo uma
careta demonstra seu descontentamento. Já Amin parece representar outra África, longe do
tédio modorrento dos doentes da aldeia. O realce de uma África positiva é demonstrado na
sequência de um jantar de luxo para autoridades políticas, quando Amin profere um discurso
em que, com a interrupção constante de entusiásticos aplausos, afirma o seguinte:

“A civilização iniciou-se aqui. Aqui na África. Foi daqui que os gregos


roubaram sua filosofia e os árabes levaram sua medicina. Nós, ugandenses,
devemos nos orgulhar mais dessa história. Nós somos uma nação africana
independente. Vivemos em paz e temos poder econômico. Poder negro.
Exatamente como vocês [dirigindo-se aos europeus presentes] imaginavam
não ser possível. Agora nós vamos jantar. O cardápio é da nossa culinária
local, comida especial. E nenhum prato será de carne humana.”
O poder de concisão histórica de sequências como essa, que resumem muitas páginas
de livros sobre a história africana, é um dos pontos fortes desse filme. Mas a afirmação de que
O último rei da Escócia apenas parece ir contra as representações negativas da África se deve
principalmente ao fato de que as maravilhas do país, apresentadas na primeira metade do
filme, são sistematicamente desconstruídas na segunda. Todas as frases „positivas‟ sobre a
África ditas por Idi Amin soam como pantomima ou como piada de mal gosto a partir da
segunda metade do filme, quando passamos a descobrir aos poucos, junto com o obtuso
„doutor‟ Garrigan, a “verdadeira” face de Amin: as acusações dos jornais de que Amin pratica
canibalismo, comendo a carne dos perseguidos políticos mortos, inevitavelmente soam como
um comentário do filme a si mesmo, à cena em que Amin fala que não se comerá carne
humana na festa.

O otimismo inicial de Nicholas e seu entusiasmo com a ascenção de Amin ao poder,


contrastados no começo do filme com o pessimismo “chato” de Sarah Merrit (Gillian
Anderson), a esposa do médico residente (ambos brancos e estrangeiros), são mostrados como
puerilidade e alheamento do personagem, que chegou em África cheio de bons sentimentos e
não percebia a “dura realidade” do continente. Por isso, ele receberá uma „punição
pedagógica‟, e a volta para casa, humilhado, após ser torturado por Amin até defecar nas
roupas, mostra que com a África não se brinca. Nas palavras do próprio Amin: "Você veio
aqui para brincar? Achou que era um jogo? Eu irei para a África brincar de homem branco
com os nativos. Foi isso que pensou? Não somos um brinquedo, Nicholas. Nós somos reais.
Esta sala é real. Acho que a sua morte será a primeira coisa real que jamais lhe aconteceu".
Mesmo nesse momento apavorante, em que Amin revela saber que Nicholas mantivera
relações sexuais com uma de suas esposas, já devidamente castigada (numa cena aterrorizante
que mostra seus braços e pernas amputados e costurados de volta, só que as pernas nos
83

ombros e os braços nas virilhas), a superioridade europeia ainda é latente. Nicholas, já


marcado pelo espancamento sofrido, olha nos olhos de Amin e diz: “Você é uma criança, e é
isso que torna você tão assustador”, e ri da ira de Amin. É o ápice do tropo da inferiorização
por infantilização, mostrando que a tirania daquele ditador se devia à sua incapacidade de
governar, era como uma criança que recebera uma responsabilidade da qual não podia dar
conta e por isso os desmandos, por isso as mortes, pela falta de tutela de alguém capacitado.
Nicholas não satisfaz o prazer sádico de Amin gritando durante a tortura, mas aguenta
estoicamente ser suspenso por ganchos embaixo da pele, prática que Amin afirma ser o
costume em sua “aldeia” quando alguém rouba a esposa de um homem mais velho (embora
defeque nas roupas, como demonstra o fato de Amin tapar o nariz e sair „derrotado‟ do
ambiente).

As palavras de Sarah sobre a comemoração da população com a chegada de Amin ao


poder é reveladora do discurso que perpassa o filme: “Cantaram assim também para Obote
[Milton Obote, presidente de Uganda anterior a Amin], até ele transformar a economia do
país em sua conta corrente (...). Você verá daqui alguns anos.” Nicholas sorri, pede que ela
dê “uma chance ao homem” e não dá atenção a essa afirmação, e como ele, mais do que
Amin, é o personagem principal da trama (apesar do duplo protagonismo), nós só
acompanhamos o seu ponto de vista – a trajetória que o filme acompanha é a de Nicholas, sua
saída da Europa, chegada e amadurecimento em África, e posterior fuga. Sabemos o que
Nicholas pensa, mas Amin continua sendo um mistério para nós enquanto Nicholas não
descobre a „verdade‟ sobre o presidente. Durante aproximadamente a sua primeira metade, o
filme tenta passar a impressão de que o otimismo de Nicholas estava certo, mas os
acontecimentos trágicos do final mostram que Sarah estava sempre com a razão. Em dado
momento, Nicholas passa a tentar fugir, mas não é autorizado por Amin a deixar o país, e a
cena em que ele vê de longe Sarah entrando num ônibus e „abandonando o navio‟ é carregada
de simbolismo. Transmite a sensação de que se ele tivesse levado a sério o pessimismo dela
sobre a África estariam se salvando juntos agora. Enfim, o final do filme, com a fuga de
Nicholas e a legenda resumindo o final da trajetória de Amin – a queda de seu regime em
1979, com um saldo de 300 mil mortos, seu exílio na Arábia Saudita e morte em 2003, não
sem uma nota de ironia ao dizer que não se sabe se essa era data do famoso sonho que Amin
afirmava ter lhe revelado a data de sua morte – deixa manifesta sua mensagem geral: a África
não „tem jeito‟. A um Milton Obote corrupto sucedeu um Idi Amin maligno e genocida, como
previu a sábia mulher branca. Fica clara a noção de tempo cíclico com a qual a África é
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investida, de um tempo sem história em que os problemas se repetem, em uma situação que
não pode ser remediada porque sua população está adaptada a tal ritmo de coisas, a sofrer
resignadamente, pois este é o tão decantado „ritmo da África‟. A frase „o ritmo da África é
diferente‟ é repetida em muitos desses filmes.

O star system necessariamente cria uma larga camada de personagens subalternos que
não tem como rivalizar com a importância atribuída aos protagonistas encarnados por astros
consagrados de Hollywood, sejam eles os mocinhos ou os bandidos da história. Toda a
produção do cinema dominante está „contaminada‟ por tal paradigma narrativo, e
praticamente não há exceções a esse modelo24. O fato é que, no que tange aos filmes que são
objeto desta pesquisa, os personagens subalternizados são invariavelmente os africanos. Na
maior parte dos filmes eles são meros coadjuvantes que, para usar a expressão popular,
entram mudos e saem calados dos filmes. Essa mudez que os caracteriza nem sempre é literal,
mas muitas vezes metafórica, já que o pouco que eles falam no decorrer da narrativa não
advém de nenhum conteúdo dos próprios personagens. Eles servem simplesmente como
ganchos para as falas dos astros, como dispositivos para dar ao espectador acesso ao que se
passa na cabeça dos protagonistas. Num desdobramento do tropo da infantilização, os
africanos são representados sempre numa dicotomia inescapável: ou o ignorante feliz, puro,
servil, de braços abertos à presença europeia, a criança, ou o selvagem, rebelde, maléfico
assassino.

É assim, por exemplo, no remake de As minas do rei Salomão feito em 2004 (King‟s
Solomon mines, Steve Boyum, 2004). Os africanos negros são apenas degraus para dar a
conhecer as qualidades do Alain Quatermain de Patrick Swayze, e fica sempre indefinido qual
seria exatamente o status deles nas expedições (uma vez que sua função é clara): são
empregados, servos, amigos ou o quê de Quatermain? No decorrer da narrativa o chamam de
„chefe‟, como quando um deles é baleado e se desculpa dizendo que “é só minha perna,
chefe”. Essa indefinição aliada à percepção estereotipada de pessoas negras como sendo
escravos, e ao fato de que no curso da narrativa esses personagens aparecem inteiramente à
disposição das ordens de Swayze/Quatermain – que nunca pede, simplesmente manda, e suas
ordens são prontamente atendidas –, adicionando-se ainda o fato de que as boas ideias e as
soluções dos problemas partem exclusivamente dos personagens europeus brancos, é
suficiente para criar uma imagem subliminar de inferioridade do africano, e de África, por

24
Sobre o star system, consultar MORIN, Edgar. As estrelas: mito e sedução no cinema. Tradução Luciano
Trigo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.
85

extensão. A falta de substância de África e de seus habitantes/personagens é grosseiramente


sugerida numa sequência em que, numa taberna, Quatermain comunica a seus companheiros
negros que está de partida para a Europa, e a reação destes é de desconsolo e abandono,
condensados na afirmação: “A África não será a mesma sem você, Alan!”, ao que ele
responde com a indulgência peculiar aos heróis dramáticos: “A África sempre será a mesma,
comigo aqui ou não”, ao que os coadjuvantes negros lhe apertam as mãos, relutantes.

Dentro de uma curiosa vertente de filmes que mostram histórias de mulheres europeias
(quase sempre loiras) vivendo alguma desventura em África, a imagem de inferioridade dos
personagens africanos é patente também. Quando a personagem de Kim Basinger chega à
fazenda no interior do Quênia para onde se mudou com o filho e o marido (abandonando o
conforto e a segurança da Itália, nas palavras da sua mãe), no filme África dos meus sonhos (I
dream of Africa, Hugh Hudson, 2000), os empregados africanos simplesmente surgem do
nada e começam a trabalhar na recuperação da casa depredada, sem que se precise sequer
chamá-los, e muito menos oferecer qualquer tipo de contrato que seja. Nessa narrativa
fílmica, que se repete em outros filmes, a mensagem implícita parece ser de que onde há um
europeu branco em território africano, surgirão espontaneamente negros africanos fiéis à sua
inteira disposição, sem que seja necessário ao branco se dirigir ou escutar qualquer coisa
desses negros, que estão ali para aprender tudo que „os brancos‟ tem a ensinar. A fórmula
pode parecer caricata e exagerada, mas é exatamente o que esse aspecto desses filmes deixa
transparecer. Em O fazendeiro e deus (Faith like potatoes, Regardt van der Berg, 2006) essa
subalternidade inerente do negro/africano é mostrada explicitamente no seguinte diálogo entre
personagens secundários negros, quando ficam sabendo da chegada do protagonista branco –
não obstante esse protagonista seja africano, sem dúvida encarna a cultura europeia, ainda
mais por se passar o filme na África do Sul ainda sob Apartheid – ao lugar: “Há um novo
homem branco no lugar de Dixon, precisamos ir ver se ele pode nos dar trabalho.” Esse
tropo narrativo sugere de que em todo o continente africano não há ocupação alguma para os
„nativos‟ que não seja a disponibilizada pelo „homem branco‟, numa repetição da metáfora do
europeu paternal e do africano infantilizado.

A presença desses personagens negros africanos servis é um detalhe corroborativo do


tropo da inferioridade que pode ser encontrado em muitos desses filmes. Citando apenas
alguns, é possível lembrar-se do Abu Fatma interpretado por Djimon Hounsou em Honra e
coragem – as quatro plumas (The four feathers, Shekar Kapur, 2002), um „guerreiro africano‟
que, sem uma explicação consistente do roteiro, passa o filme inteiro protegendo o oficial
86

britânico vivido pelo astro adolescente Heath Ledger durante a guerra do império da rainha
Vitória contra o Mahdi, no Sudão; o Owuor (Sidede Onyulo) que trabalha como cozinheiro
para uma família de judeus alemães refugiados no Quênia durante a Segunda Guerra Mundial
em Lugar nenhum na África (Nirgendwo in Afrika, Caroline Link, 2001) e caminha várias
semanas a pé para continuar servindo-os quando a família se muda, e só depois de anos de
convivência a patroa fica sabendo que ele tem três esposas que mal vê porque “a senhora
branca precisa de mais proteção”; o Jojo (Gabriel Malema) que se dispõe a cumprir qualquer
tarefa ou trabalho para os jornalistas em Primitivo, desde que o levem para os Estados Unidos
ao fim da caçada; entre muitos outros.

Seguindo a citada vertente fílmica que retrata a saga de europeias loiras desbravando a
África, A massai branca (Die weisse massai, Hermine Huntgeburth, 2005) é mais um filme
paradigmático. Esse filme alemão é por vezes elogiado em virtude de uma suposta mensagem
de conciliação entre povos diferentes. Ele conta a história de Carola Lehman (Nina Hoss),
uma suíça em viagem de férias ao Quênia que abandona tudo ao se apaixonar por um
guerreiro massai chamado Lemalian (Jacky Ido), e resolve ir morar com ele na sua „tribo‟. No
começo, o filme mostra a atração de Carola por Lemalian basicamente como um fascínio pelo
seu aspecto exótico, as roupas tradicionais e o cabelo comprido, como uma curiosidade quase
etnológica que desperta um lado „animalesco‟ na psique de Carola que deseja de modo
ardente o contato sexual com aquele homem de tantos modos „primitivo‟, na concepção dela.
Com a satisfação dos desejos sexuais reprimidos e da curiosidade pelo modo de vida do seu
objeto de desejo, esses sentimentos são substituídos paulatinamente na protagonista por um
crescente incômodo em relação a esse modo de vida, e especialmente à recusa ao „progresso‟
demonstrada por Lemalian. O olhar de Carola diante de tudo é permanentemente de alguém
que tem o poder de analisar, e sugerir „melhorias‟, nos estranhos – leia-se: primitivos –
hábitos daquelas pessoas que não possuem os mesmos recursos, intelectuais e materiais, que
as pessoas do lugar de onde ela vem. A massai branca é paradigmático pois percorre
precisamente os três tropos narrativos que afirmo permearem a filmografia hegemônica do
Século XXI que retrata a África: essa percepção da inferioridade dos africanos por parte de
Carola a leva a intervir em seu modo de vida „primitivo‟, e a frustração dessa intervenção por
sua vez conduz à sua fuga da África.

O fato é que de vários modos A massai branca aponta as diferenças, o estranhamento,


entre a cultura de Carola e a de Lemalian como sendo uma relação explícita de choque entre
uma cultura superior e uma inferior. A sequência da circuncisão de uma menina é marcante
87

nesse aspecto25. À parte toda a polêmica que envolve essa prática, a maneira como ela é
encenada ilustra muito bem o paradigma da inferioridade africana. Ao presenciar um ritual de
mutilação genital feminina, Carola dirige-se primeiro a Lemalian, para que ele intervenha de
alguma maneira naquela prática monstruosa. Ante a recusa do marido em interferir, alegando
tratar-se da tradição de seu povo, ela recorre ao padre que tem uma missão no local,
expressando uma fúria imensa pela passividade do padre Bernardo (Antonio Brester) diante
desse ato selvagem. O padre argumenta que é a tradição deles e que não pode interferir, e fica
clara a mensagem, através das reações da protagonista, de como aquelas pessoas são
asquerosamente primitivas e bárbaras para os seus padrões, ponto de vista com o qual o
espectador invariavelmente coadunará, em virtude do „barbarismo‟ intrìnseco a essa prática,
mostrada como paradigmática dos costumes primitivos dos africanos.

Em outra sequência tão forte quanto esta, Carola tenta socorrer uma mulher que está
tendo dificuldades em um parto e a quem ninguém ajuda. O próprio Lemalian se recusa a
ajudar, e quando ela pergunta indignada a razão, descobre que ninguém socorre a mulher
porque ela foi „amaldiçoada‟. Carola tenta desesperadamente salvar a mulher, numa sequência
de esforços titânicos que ressaltam as deficiências estruturais com que o filme dota a África,
como a dificuldade de acesso a médicos e a inexistência de estradas. Mais uma vez seu
heroísmo é frustrado, e a culpa da morte da mulher é atribuída às estruturas religiosas
primitivas e preconceituosas africanas. Essa sequência torna clara a suposta inferioridade
absoluta africana, em todos os aspectos (estruturais e culturais), que guia todo o eixo narrativo
de A massai branca.

De modo geral, é utilizado um vocabulário condescendente para descrever as religiões


africanas, que se utiliza largamente de expressões como “animismo”, “culto ancestral”,
“magia”, sempre caricaturizando-as, apresentando-as ou como crendices irracionais sem valor
ou então como práticas malignas e rituais satânicos, a exemplo da feiticeira de As minas do rei
Salomão. Os filmes mostram que a dura batalha pela sobrevivência é a condição eterna da

25
A circuncisão feminina, mais corretamente denominada como excisão ou mutilação genital feminina, é uma
prática religiosa supostamente ancestral realizada por algumas etnias em regiões da África e do Oriente Médio, e
muitas vezes associada ao Islamismo (não é o caso de A massai branca). Consiste na remoção de parte dos
tecidos que compõem a genitália da mulher ou da menina, e pode ser de três tipos básicos: a clitoridectomia, que
é a remoção da pele sobre o clitóris; a excisão, que consiste na remoção total do clitóris e do lábio menor; e a
infibulação, que é remoção do clitóris, do lábio menor e de partes do lábio maior, além da costura das laterais
deixando apenas um diminuto espaço para a passagem de urina e fluxo menstrual. Fonte:
http://islamicchat.org/fgm.html (acessado em 20/08/2011). Sobre o debate contra essa prática, ver especialmente
ALI, Ayaan Hirsi. Infiel – a história de uma mulher que desafiou o Islã. Tradução Luiz A. de Araújo. São Paulo:
Cia das Letras, 2007; e MANJI, Irshad. Minha briga com o Islã: o clamor de uma mulher muçulmana por
liberação mudança. Tradução Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Francis, 2004. Um outro filme incluído no
corpus dessa pesquisa trata remete a esse tema: Flor do deserto (Desert flower, Sherry Horman, 2009).
88

vida em África. Tal condição torna impossível que haja naquele continente o aprofundamento
cultural que só a vida na Europa civilizada pode proporcionar, por isso a cultura africana é
sempre superficial.

Nessa perspectiva, chegar em África é retratado como voltar no tempo, como um


mergulho num primitivismo que é refletido nas brigas entre o casal de África dos meus sonhos
em função da demora do marido quando sai pra caçar, e ele insiste que esse é o “ritmo da
África”, ou na afirmação da protagonista de Lugar nenhum na África de que “não sei por que
me visto de manhã, aqui poderia andar enrolada num saco que ninguém ligaria.” Algumas
imagens canônicas que representam a inferioridade africana nessas circunstâncias, imagens
que reconhecemos num zapping, são as panorâmicas sobre vastas extensões de terra, de
animais selvagens, o sempre presente sol laranja-avermelhado sobre uma vasta planície, signo
da opressão natural, do calor – de fato, nesses filmes, os personagens estão sempre suados,
sempre reclamando do calor, a fotografia privilegia as cores quentes e transmite sempre a
sensação de clima opressor, quente, desconfortável. “A África é quente” é uma frase repetida
várias vezes pelos jornalistas de Darfur: deserto de sangue (Darfur, Uwe Bowell, 2009), que
pedem para o ar condicionado do carro ser ligado e não são atendidos.

Em 24 horas – A redenção (24: Redemption, John Cassar, 2008) uma das primeiras
cenas mostra um diplomata estadunidense no banco de trás de um carro numa estrada
africana, empapado de suor e se enxugando com um lenço, dizendo com arrogância para o
motorista negro: “Achei que tivesse pedido para aumentar o ar condicionado!” e a resposta
“sim, senhor, eu já fiz isso” o deixa com uma expressão ainda mais forte de insatisfação. Vale
salientar que o personagem negro não está molhado de suor como o branco. Esse sol opressor
aparece visualmente com o título de O último rei da Escócia, no de Lágrimas do sol e no de
Madagascar, para citar alguns exemplos esporádicos, e é onipresente em todos esses filmes,
nas fusões para mostrar passagens de tempo ou demonstrar a vastidão selvagem africana.
Paisagens associadas ao calor, deserto, florestas sufocantes, são imagens canônicas sobre
África. Quando não há tais imagens, como na sequência dos créditos de Em minha terra
(Country of my skull, John Boorman, 2004), estão lá os estereótipos auditivos, identificando
que aquela paisagem litorânea (a ilha Robben, onde Nelson Mandela esteve preso) é africana.
A música da cena faz com que saibamos que estamos vendo a África na tela, mesmo que não
vejamos imagens canônicas que associamos imediatamente ao continente.

Vemos a associação entre imagens canônicas e estereótipos auditivos no trecho de Ali


(Ali, Michael Mann, 2001) que se passa no Zaire, quando é representada a disputa pelo título
89

mundial de boxe realizada de 1974, entre Muhammad Ali e George Foreman. Quando Ali está
se exercitando pelas ruas de Kinshasa e se desvia de sua equipe, continuando a corrida
acompanhado apenas pela população local, aparecem diversas dessas imagens canônicas,
como casebres de palha, crianças esfarrapadas, ruas de chão batido e outras correlatas, com
uma melodia de Salif Keita a ilustrar auditivamente. O texto fílmico parece sugerir que se
trata de algo essencialmente „africano‟, essa sequência de imagens acompanhada por esses
sons, e parece ser isso que o Ali interpretado por Will Smith, um dos astros mais bem pagos
de Hollywood, se dá conta quando observa os desenhos nas paredes das casas paupérrimas,
retratando-o como um herói. Sua expressão parece indicar que, nesse momento, ele se dá
conta de que está realmente na África, e a música enobrece o momento.

Para completar o sentido que essa análise atribui à sequência, temos o único diálogo
do filme que se refere diretamente à África. Ali encontra sua esposa no quarto do hotel, e ao
receber dela uma garrafa d‟água ele diz: “Hum, água engarrafada. Bifes congelados.
Trouxemos todas essas coisas como se na África não tivesse carne.” Ao argumento dela de
que ele “pode pegar algum parasita” Ali responde que “Mobuto [presidente do Zaire] come
isso!”. Então ela diz: “Mobuto cuida de Mobuto. Ele rouba as riquezas e manda pra Suíça.
(...) Estamos aqui porque Don King [empresário de Ali] conseguiu que Mobuto patrocinasse
dez milhões de dólares. Don King não liga pra África”. As presenças do tropo da
inferioridade nessa sequência demonstram exemplarmente a especificidade da linguagem
fílmica: os sons, as imagens em movimento e os diálogos dos personagens se complementam
para reforçar um tropo narrativo que é apreendido de modo inconsciente pelo espectador
enquanto se diverte vendo um filme.

A inferioridade da África é um ponto tão incontestado nesses filmes, é composta por


estereótipos tão frequentes e naturalizados, está presente de modo tão disperso e por meio de
recursos narrativos tão diversos, que se tornou, na nossa percepção cotidiana, invisível, lugar
comum em que sequer reparamos, quanto mais questionamos. Indício dessa generalização da
inferioridade é o fato de que muitos filmes recorrem à invenção de países fictícios que
condensam a maior parte das características negativas atribuídas ao continente em geral, visto
que essas caracterìsticas seriam intercambiáveis. É o exemplo do “Matobo”, de A intérprete
(The interpreter, Sidney Pollack, 2005), do “Sangala” de 24 horas – A redenção, do “Naguru”
de O quinto paciente (The fifth patient, Amin Mann, 2007), ou mesmo do “paìs indefinido”
de Johnny Mad Dog (Johnny Mad Dog, Jean-Stéphane Sauvaire, 2008) e de Minha terra
África. A existência de meninos-soldado, por exemplo, é considerada como líquida e certa em
90

qualquer parte da África, além de doenças endêmicas como a malária, ou de grandes surtos de
fome. Resumindo, a inferioridade da África é um tropo narrativo presente nas grandes e
pequenas características atribuídas ao continente nos filmes, desde uma frase sem importância
como “eu quero uma cerveja decente, e não essa porcaria local”, dita por um jornalista em
Tiros em Ruanda (Shooting dogs, Michael Caton-Jones, 2006), até na afirmação categórica do
tenente Waters, interpretado por Bruce Willis, que resume toda a penosa narrativa de
Lágrimas do sol: “Deus já deixou a África!”, quando o capelão de uma aldeia prestes a ser
massacrada abençoa o grupo de refugiados e diz o tradicional “Vão com deus!”. O tropo da
inferioridade é o primeiro e principal, e os outros a que me refiro são todos dele decorrentes.
As descrições dos dois outros tropos narrativos principais sobre a África podem ser
legitimamente consideradas continuações da descrição do paradigma da inferioridade,
somente com focos diferentes.
91

ESTEREÓTIPOS DE ÁFRICA 2 – O TROPO DA INTERVENÇÃO

Indivisivelmente ligado ao tropo da inferioridade está o paradigma intervencionista.


Posso dizer que cada frase dita aqui sobre a necessidade de intervenção pressupõe uma
inferioridade da África em algum aspecto. Intervencionismo é definido no dicionário como
“ingerência polìtica, diplomática, econômica ou militar do governo de uma nação nos
negócios internos ou particulares de outros paìses”, e esse elemento é introduzido de forma
tropológica em todos os filmes oriundos da indústria cinematográfica hegemônica
contemporânea que se referem à África. Sob diferentes representações, utilizando vários
estereótipos, de modos mais ou menos explícitos, a necessidade de intervenção se faz
presente. A decorrência do paradigma da inferioridade é lógica. O ponto de vista desses
filmes, para começar, é sempre situado no estrangeiro, em como ele entra em contato com a
cultura local, focando a sua inferioridade e as maneiras pelas quais ele pode ajudar.

Vejamos os exemplos de Falcão negro em perigo e Atirador (Shooter, Antoine Fuqua,


2007), para perceber o paradigma intervencionista aparecendo em formas distintas. Em ambos
a intervenção tem caráter militar, mas em um ela é mostrada de forma sutil e no outro
abertamente. Em Falcão negro em perigo o tropo da África inferior e inviável é óbvio,
gritante, e em consequência a intervenção é abordada da maneira mais invasiva conhecida, na
representação da invasão militar do território físico do país, glorificando os invasores,
pintando com cores meritórias a sua causa. A já referida sequência inicial do filme é
emblemática para compreender o que justifica a intervenção, então vejamos na íntegra o que
se diz nela:

“Somália, Leste da África, 1992. Anos de guerra entre clãs rivais causam
fome em proporções bíblicas. 300.000 mil civis morrem de inanição.
Mohamed Farrah Aidid, o mais poderoso dos senhores da guerra, controla
a capital, Mogadíscio. Ele assalta carregamentos de comida vindos de
outros países nos portos. Fome é a sua arma. O mundo responde. Com a
ajuda de 20.000 fuzileiros navais dos EUA a comida é entregue e a ordem
restaurada. Abril, 1993. Aidid espera até que os fuzileiros se retirem para
depois declarar guerra às forças de paz das Nações Unidas que ficaram. Em
junho, a milícia de Aidid embosca e mata 24 soldados paquistaneses e passa
a ameaçar os norte-americanos. No final de agosto soldados do Comando
Delta, Infantaria e o 160º Regimento da Aeronáutica de Operações
Especiais são mandados a Mogadíscio para remover Aidid e restaurar a
ordem. A missão deveria durar três semanas, mas depois de seis semanas
Washington começa a ficar impaciente”.
92

Toda essa longa contextualização histórica do “evento real” no qual o filme se baseia
objetiva justificar o que o filme vai mostrar: soldados estadunidenses entrando na capital da
Somália para sequestrar membros do governo local, a resistência inesperada oposta pelos
somalis e a matança indiscriminada perpetrada pelos estrangeiros pegos em uma arapuca
inesperada pelos „ineptos‟ somalis. Gostaria de fazer um “fichamento” que resume o texto de
abertura do filme com as seguintes frases: “Anos de guerra entre clãs rivais”, “O mundo
responde”, “com a ajuda de 20.000 fuzileiros navais dos EUA a comida é entregue e a ordem
restaurada”, “remover Aidid e restaurar a ordem”. Está colocada a incapacidade africana de
manter-se em ordem, reforçada no mesmo filme pelo diálogo entre os soldados citado no
tópico anterior, que mais do que justificar, impõe a necessidade da intervenção estrangeira,
retrata como um fardo moral carregado pelos EUA como força policial mundial e manter a
ordem em toda parte.

Em Atirador os mesmos elementos estão presentes, mas de forma bem mais sutil e
aparentemente crítica da intervenção. A sequência de abertura se passa na Etiópia, onde dois
fuzileiros navais participam de uma missão e são abandonados quando alguma coisa dá errada
e os „rebeldes‟ descobrem sua presença. Um deles morre, e o outro, chamado Bob Lee
Swagger, interpretado pelo astro Mark Whalberg, sobrevive e se retira das forças armadas. A
trama principal gira em torno do assassinato de um arcebispo etíope em território dos EUA,
ato que foi manipulado por membros do governo e transformado, na mídia, em tentativa
fracassada de assassinar o presidente estadunidense, tendo o assassino vitimado por engano o
arcebispo. A execução do atentado é atribuída a Swagger, que passa então a buscar vingança e
provar sua inocência. E onde se encontra nessa trama clichê de filmes de ação o invariável
tropo da dependência e intervenção quando o assunto é a África no cinema? Ora, a presença
do arcebispo nos EUA objetiva, na diegese, denunciar atrocidades cometidas por militares
estrangeiros na Etiópia, que massacram pessoas para proteger interesses econômicos de
grandes corporações, e por isso foi assassinado. O arcebispo, além de denunciar, iria solicitar
publicamente ajuda do governo estadunidense para parar a onda de crimes e buscar punição
para os responsáveis. A impotência africana de sempre, a mesma incapacidade de se defender
e de cuidar dos próprios problemas, mostrada em diversos outros filmes. A infantilização que
conduz à justificação de que devem ser ajudados, mesmo que não queiram. Mesmo que o
filme intencione denunciar práticas escusas do governo dos EUA em território africano, fica
patente mais uma vez que os africanos não se bastam, precisam sempre de ajuda de fora para
resolver seus problemas. A questão não é se a representação é positiva ou negativa, o que
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ressalto é que ela está lá, presente, mesmo que a intenção política aparente ser oposta à de
Falcão negro em perigo, e o fato de estar lá reforça o paradigma de que, para o bem ou para o
mal, a África precisa sempre de ajuda externa.

É significativo como, ao contrário de Atirador, em Falcão negro em perigo as


questões políticas são abertamente postas de lado para se ressaltar o aspecto glorioso da
atividade militar. Em um diálogo pouco antes do combate, dois militares conversam: “Acha
que não devíamos estar aqui?” “Quer saber o que eu acho? O que eu acho não faz diferença.
Depois que a primeira bala passa pela sua cabeça, políticos e toda essa besteirada vão por
água abaixo.” “Só quero que dê certo hoje.” “É só vigiar sua esquina, e trazer de volta e
vivos os seus homens”. O discurso consiste em aceitar que se está do „lado certo‟, o lado que
„faz a diferença‟, esta é a única coisa que importa, e não cabem questionamentos sobre a
legitimidade ou não da presença em território estrangeiro.

Encontramos a mesma lógica em Honra e coragem – as quatro plumas, onde Heath


Ledger interpreta um oficial do exército imperial britânico de fins do século XIX, auge do
imperialismo. O filme inteiro gira em torno da dualidade coragem/covardia (militar), quando
Harry Faversham, personagem de Ledger, se acovarda diante da convocação para lutar no
Sudão, dá baixa no exército e é imediatamente rejeitado pelos amigos, a família e a própria
noiva, tornando-se um pária não de direito mas de fato na sociedade vitoriana. Para se redimir
e reconquistar a condição de cidadão exemplar, ele parte sozinho para o Sudão e passa a agir
como uma espécie de agente infiltrado do exército da rainha nas forças „rebeldes‟. Em todo o
filme o contexto histórico e as questões políticas não são apresentados claramente nem uma
única vez, a única coisa que interessa à narrativa é contar a instrutiva história do que acontece
com quem não se alista no exército, o peso moral da covardia, e a redenção obtida quando
enfim se para de fugir ao destino glorioso de servir à pátria.

A África é apenas o palco onde a ação do europeu corre livre, exercendo seu papel
patriarcal de proteger os africanos de si mesmos, mesmo que isso custe um enorme sacrifício
ao renegado homem europeu. Os africanos são maus e precisam ser combatidos, e nunca é
revelado o que esses „rebeldes‟ reivindicam, são apenas vilões sedentos de poder. Os europeus
são bons e suas motivações para estar ali não são mostradas, apenas infere-se que sejam boas
e honrosas, e o espectador é irreversivelmente conduzido pelo ponto de vista desses
personagens. Os africanos são mostrados como populações incapazes de autogestão que
precisam ser controladas, e só. E todas as velhas imagens canônicas e estereótipos auditivos
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inferiorizantes estão lá para confirmar que a África de fato precisa daqueles europeus para lhe
salvar de si mesma.

A presença de ajuda humanitária em território africano é uma constante. Médicos,


religiosos, jornalistas, militares, todos estão lá para ajudar. Muitos filmes fazem duras críticas
à instituições que criticam a postura intervencionista, e, coincidência ou não, após o 11 de
Setembro e à intervenção dos EUA no Iraque e no Afeganistão, sem anuência das Nações
Unidas, essas críticas são dirigidas notadamente à ONU. O massacre ocorrido em Ruanda, em
1994, é um dos temas relativos à África mais retratados em filmes nos primeiros anos 2000,
ao lado dos eventos que envolvem Nelson Mandela e o fim do regime de Apartheid na África
do Sul. Mas os eventos em Ruanda ensejaram muitas críticas no que diz respeito à postura da
ONU, que se negou a intervir no massacre de pessoas da etnia tutsi por membros radicais da
etnia hutu, resultando na morte de cerca de um milhão de pessoas. Hotel Ruanda (Hotel
Rwanda, Terry George, 2004) talvez seja o mais popular desse grupo de filmes, e destaca o
tempo inteiro da narrativa como a intervenção estrangeira poderia ter salvado muitas vidas.
História de um massacre (Shaking hands with devil, Roger Spottiswoode, 2007) mostra o
ponto de vista do comandante da missão da ONU em Ruanda e suas tentativas desesperadas
de intervir, sempre podadas pelos seus superiores. Tiros em Ruanda (Shooting Dogs, Michael
Caton-Jones, 2006) e Tensão em Ruanda (A dimanche a Kigali, Robert Favreau, 2006)
recontam a mesma história de pontos de vista diferentes, de médicos, religiosos e jornalistas
estrangeiros no país que registram como a não-intervenção foi fatal para milhares de pessoas
que perderam a vida.

Essa crítica à não-intervenção, especialmente à ONU, é bastante icônica em 24 horas


– A redenção, filme feito para servir como abertura à sexta temporada da série de sucesso na
TV estadunidense 24 horas, estrelada por Kiefer Sutherland, no papel do agente do FBI Jack
Bauer. No filme, Jack Bauer está buscando redenção pelos pecados que cometeu no passado e
fugindo do governo de seu país, então vai para a África ajudar um ex-colega combatente das
„forças especiais‟ na escola que ele montou para as crianças africanas. Enquanto agentes do
governo dos EUA estão no encalço de Bauer, vai sendo mostrada uma conspiração de pessoas
do alto escalão com o governo de Sangala, país africano fictício onde Bauer se encontra, para
um golpe militar. Essas pessoas forneceram armamento para certo general „rebelde‟ chamado
Juma, que agora está recrutando garotos-soldado para derrubar o „governo democraticamente
eleito‟ e chegar ao poder. Nesse ìnterim, sabemos que a rotina da „escola humanitária‟ do
amigo de Bauer inclui receber caminhões de comida da ONU. O funcionário da ONU é
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caricatural, mostra antipatia gratuita por Bauer e, quando chegam boatos de que Juma estaria
organizando um golpe, ele ironiza e diz que não há ameaça alguma. Quando o perigo se torna
evidente e os „heróis‟ pegam em armas para defender as crianças dos „rebeldes‟, o funcionário
da ONU se acovarda e se esconde junto com as crianças, numa cena patética. Quando é
descoberto pelos „rebeldes‟, denuncia prontamente Bauer. De modo que, nesse filme, não
apenas todos os estrangeiros presentes na África são retratados como heróis, mas aqueles que
criticam a política intervencionista são ridicularizados e caricaturizados.

O filme Darfur: deserto de sangue é um produto poderia ser chamado, se fosse


conveniente, de „ultra-paradigmático‟ no que diz respeito à representação da África no
cinema, uma vez que abrange a maioria, senão todos, os tropos narrativos estereotipados
sobre o continente. Um grupo de repórteres estadunidenses vai a Darfur, no Sudão, a fim de
„fazer a diferença‟, denunciando o massacre que de fato vem ocorrendo naquela região da
África (e que a recente criação do país denominado Sudão do Sul, separado do Sudão, espera-
se, venha conter). Virtualmente todos os estereótipos auditivos, imagéticos e discursivos sobre
a África são apresentados no filme, com uma cena de apresentação da África memorável por
seu pretenso apuro histórico. Nesse filme, que advoga de modo contundente a intervenção
estrangeira na África, a crítica que 24 horas: a redenção dirige à ONU é direcionada às tropas
da União Africana, por não intervir diretamente no conflito. Tendo em vista que as tropas
africanas não interferem para fazer cessar as mortes, os jornalistas estrangeiros mais uma vez
encarnam a recorrente figura, dentro da filmografia aqui analisada, daquele que vai „denunciar
ao mundo a realidade da África‟, sempre inferiorizada e subalterna.

Um filme que tem foco contundente na questão da intervenção também é Lágrimas do


sol. Mais uma trilha sonora recheada de tambores e de canções de Salif Keita, utilizadas na
narrativa do filme para caracterizar a África. O filme pode ser chamado de um „drama de
ação‟ e a sequência inicial já sugere algo de trágico: o tìtulo do filme escrito em vermelho
sobre um fundo preto, e por trás dele aparece um enorme sol vermelho-alaranjado, que ocupa
quase que inteiramente a tela, meio coberto por nuvens que parecem vapor e som de algo
queimando. A breve cena transmite sensação de calor e tensão, desconforto emocional, a
câmera acelerada, o sol passa por trás do título do filme, e vê-se uma fusão para um distúrbio
urbano.

Na sequência de abertura, uma saraivada de imagens canônicas toma o espaço da tela,


com um filtro que torna as imagens granuladas, parecendo uma filmagem amadora ou de
arquivo, buscando causar um efeito de realidade: uma multidão de pessoas negras correndo
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desesperadas, sons de vidro estilhaçando e de tiros, automóveis incendiados em uma avenida,


gritos em um idioma „africano‟, pessoas com facões ameaçadores. A paisagem sonora dessa
sequência, além dos sons do distúrbio e da música que torna mais angustiantes as imagens, é a
voz em off de uma jornalista descrevendo os acontecimentos, então percebemos que as
imagens opacas e aquela narração constituem uma reportagem de telejornal, assinalando
efeito de realidade.

A seguir a transcrição do que a voz feminina, no tom marcadamente impessoal dos


telejornais da hora do jantar (enquanto as palavras são ditas, são mostradas diversas imagens
que remetem ao conflito narrado, como um homem negro sem camisa, no meio da citada
multidão, desarmado e aparentando medo e acuação, sendo fuzilado por um soldado fardado,
e depois de estar deitado no chão ainda recebe uma rajada de tiros. São imagens que parecem
ter sido retiradas de algum arquivo de telejornal, envelhecidas, granuladas, de pessoas negras
perseguidas por cães, uma criança sendo espancada por um soldado, corpos enfileirados no
chão, caminhões militares com soldados atirando na multidão, e outras imagens „tradicionais‟
da África):

“A tensão que ocorre há meses na Nigéria explodiu ontem quando o general


exilado Mustafá Iakubu comandou um súbito e violento golpe contra o
governo democraticamente eleito do presidente Samuel Azuka. Na terra de
120 milhões de pessoas e mais de 250 grupos étnicos há muito se conhece a
existência de inimizade étnica, particularmente entre os muçulmanos fulanis
ao norte e os ibos cristãos ao sul. Os vitoriosos rebeldes fulanis tomaram as
ruas e constantes ataques de violência continuam por todo país. Dezenas de
milhares foram mortos no combate ou executados depois. Temendo uma
limpeza étnica a maioria dos ibos abandonou suas casas. Eles estão fugindo
da cidade ou buscando por santuários, onde for possível. No momento o
general Iakubu assumiu o controle da maior parte do país e mostra-se
resoluto no poder. Ainda não há noticia de reação das Nações Unidas ao
golpe, mas as forças dos Estados Unidos já começaram a evacuar sua
embaixada.”
Mais um texto didático de apresentação da África, de contextualização visando a
legitimidade da ação a ser descrita no filme. Embora, ao contrário de Falcão negro em perigo,
Lágrimas do sol não seja inspirado em nenhum „evento real‟ e todas essas informações sejam
fictìcias, isso não faz a menor diferença. Ora, as „más qualidades da África‟ são gerais e
generalizáveis, podem ser atribuídas a qualquer país em qualquer época. Assim
contextualizado, ficamos sabendo que o mote do filme é a missão de um grupo de fuzileiros
navais liderados pelo astro de ação Bruce Willis para resgatar uma abnegada médica cidadã
dos EUA – que está na Nigéria para salvar os corpos dos africanos – e um padre e duas freiras
– que estão lá para salvar as suas almas. Depois de várias tomadas panorâmicas de um porta-
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aviões estadunidense “em algum lugar na costa da África” – propositalmente não


identificado no filme, maneira de apresentar que demonstra (na interpretação feita aqui)
como o continente é considerado homogêneo pela narrativa fílmica –, de mostrar os soldados
descendo de helicópteros enquadrados como heróis ao som de música sinfônica europeia,
finalmente a narrativa principal tem início. O grupo de soldados de elite penetra na selva
africana para encontrar e resgatar a doutora Lena Kendricks, do „serviço de assistência
internacional‟, interpretada por Monica Belucci. De modo que o paradigma da intervenção é
duplo nesse filme: a África demanda a presença de médicos e de religiosos estrangeiros, uma
vez que é inferior científica e culturalmente, e tão primitiva que oferece risco mortal para
essas pessoas abnegadas, que precisam ser resgatadas por heróis de arma em punho. Os
religiosos se sacrificam e morrem junto com os pobres africanos, e a médica se recusa a
abandonar seus pacientes, forçando uma mudança de planos dos fuzileiros, que acabam
resgatando junto vários africanos.

No decorrer do filme, os personagens/soldados vão adquirindo a percepção de uma


obrigação moral de interferir, quando veem pessoas sendo massacradas e mutiladas, e então
desobedecem as regras do comando de só atirar em revide e passam a agir, seguindo a mesma
lógica apresentada pelo sargento Eversmann, personagem de Falcão negro em perigo cuja
fala já foi apresentada. Os personagens demonstram, a partir do momento em que adquirem
essa lógica, que não podem simplesmente ficar de braços cruzados enquanto os africanos
matam uns aos outros. A cruzada moral em favor de um bem maior, referido como a
democracia, faz com que os próprios soldados alcancem a redenção dos pecados de omissão
de seu país através do sacrifício, morrendo para salvar a vida de alguns africanos. No final do
filme, a epígrafe que justifica toda a ação: “Para o triunfo do mal, basta que os bons não
façam nada”, citação do escritor Edmund Burke. No contexto do filme, uma indubitável
defesa da intervenção em paìses „menos favorecidos‟.

Um modo menos agressivo em que o tropo da intervenção necessária se faz presente


nesses filmes pode ser exemplificado com A massai branca. Já foi dito o quanto a europeia
que se casa com um massai nesse filme trata com altivez a cultura do marido. É uma
sociedade de pastores, que vivem em uma região desértica e são autossuficientes. Porém,
Carola decide „melhorar‟ a vida daquelas pessoas levando o comércio até elas, e decide abrir
uma loja, uma espécie de mercadinho, na localidade. Naquela cultura o lugar social da mulher
é submetido ao marido, e obviamente Carola não se submete a esse costume, fartamente
apresentado como algo retrógrado, e busca mudar a tradição. Assume o lugar de dirigente de
98

um negócio, constrangendo o guerreiro Lemalian e causando diversos problemas. Quando ela


descobre que o marido permitia que parentes e vizinhos comprassem a crédito, pois é costume
entre o seu povo favorecer os conhecidos, não negando ajuda a amigos, ela diz que precisam
ganhar dinheiro e o humilha por ser tão estúpido, afirmando “Droga! O que acha que é isso?
É uma loja. É um negócio!” Ela também introduz um carro na rotina dos massai nômades, e
intervém, como já dito, nos costumes religiosos e culturais daquele povo. Ou seja, sob a
cobertura da história do romance entre uma europeia sofisticada e um guerreiro africano está
presente, além do paradigma de inferiorização da África, o paradigma da necessária
intervenção naquele continente, que desconhece as benesses dos avanços culturais europeus.

A intervenção na África pela causa humanitária é defendida de modo grandiloquente


na sequência de abertura de Amor sem fronteiras (Beyond borders, Martin Campbell, 2003),
filme estrelado pelos astros Clive Owen e Angelina Jolie, e alegadamente responsável pelo
interesse dessa atriz em se engajar em causas humanitárias, inclusive adotando crianças órfãs
de países pobres. Na sequência, nos é mostrado um baile beneficente em que várias famílias
ricas se divertem e arrecadam fundos para ajudar a África, quando irrompe na festa o herói da
trama, o membro da organização Médicos sem Fronteiras Nick Callahan (Clive Owen),
acompanhado de um menino africano. O médico critica os valores gastos com o baile
derramando champagne no chão e dando a garrafa vazia ao garoto, dizendo que “esta é sua
parte, Jojo”. Em seguida, tira o casaco que cobre o menino e apresenta para a multidão de
convidados estarrecida o menino magérrimo, desnutrido, chamado Jojo:

“Este é Jojo. Na verdade ele está curioso a respeito do jantar de vocês,


porque quando eu o encontrei ele estava tentando comer a sua própria
língua. Engraçado, não fazem ceasar salad com isso. Não, pra ser honesto
ele era uma pilha de ossos numa poça de merda, e eu não estou falando de
merda civilizada, era aquela coisa amarela, uma desgraça líquida. Enfim,
eu tenho duas mil crianças no meu campo na África com o mesmo problema,
e um filho da mãe aqui cortou a verba. Então eu acho que vou ter que
alimentá-los com moscas. Agora o Jojo aqui queria saber porque, então eu
mostrei isso [retira um papel do bolso]: “Devido ao clima político
repressivo, não podemos mais manter nossa assistência à Etiópia
comunista.” É uma descrição justa, Harry?”.
Aí estão, inseparáveis, os tropos da inferioridade e da necessidade de intervenção. A
fala consegue apresentar a África para o espectador e para os chocados convivas no filme
articulando imagens „reais‟ da miséria, o menino desnutrido ali presente, com as imagens
criadas pela vívida descrição do personagem. A intenção neste momento não é analisar nem
julgar o mérito, apenas apresentar como os filmes descrevem a África. E nesta descrição,
independente das boas intenções do médico, ele pinta um quadro dantesco: nem mesmo a
99

merda dos africanos é civilizada como a dos europeus. E enquanto eles se divertem ali, sem
fazer nada a respeito, duas mil crianças morrem de fome no campo “dele” na África. O
motivo alegado para o corte das verbas estrangeiras que mantinham a África ao menos em
estado vegetativo, já que, diante deste quadro, a morte é certa, complementa o tropo da
inferioridade inserindo no quadro a questão da política.

Enquanto o médico continua seu discurso apaixonado, listando as desgraças que


assolam a África de modo que lembra a fala do jornalista em Primitivo, dizendo “tenho um
campo com trinta mil pessoas onde morrem quarenta por dia, tenho sarampo, tifo, cólera,
todo tipo de doença horrorosa conhecida pelo homem. Daqui a seis semanas estarão todos
mortos...”, alguém atira uma banana na direção do menino. Pessoas riem e aplaudem.
Desnecessário explicar a hedionda piada, mas o médico explica “Ah, já sei! É a piada do
macaco. Querem que ele imite um macaco pra vocês, né?” e enquanto dá a banana a Jojo
pede que ele imite um macaco, o que o menino faz e deixa todos mudos. Sarah Jordan, a
personagem de Angelina Jolie, vai às lágrimas. “300 calorias em uma banana. Mais do que
ele come em um dia”.

“Podemos ajudar ou podemos ficar de braços cruzados e ver o paìs se destruir pela
TV”. Esse mesmo discurso, proferido em circunstâncias tão diferentes em Falcão negro em
perigo e filmes que seguem o viés „militar‟, é o cerne da fala do personagem de Clive Owen.
Uma demonstração irrefutável da necessidade de intervenção, da responsabilidade dos euro-
estadunidenses em relação à África e uma convocação a agir. Tal convocação é aceita pelo
personagem de Angelina Jolie, que usa até as próprias economias para ir até a África ajudar.
A confirmação de que sua ajuda é absolutamente necessária vem com as imagens de África
mostradas quando ela chega ao continente. Além das imagens de estradas de terra e tudo o
mais, temos nesse filme a terrível cena em que Sarah está no caminhão carregado de comida
que cruza um deserto coalhado de pessoas esqueléticas vagando como fantasmas e de corpos
espalhados e vê um bebê a ponto de ser devorado por um abutre. Ela desce do caminhão para
resgatar o bebê, e a imagem é chocante. A criança extremamente desnutrida e a mãe
moribunda a alguns metros, com o ventre já rasgado pelo abutre, são levados por Sarah até o
campo de Nick, onde tentará salvá-los. A cena parece remeter à famosa foto com que Kevin
Carter ganhou o prêmio pulitzer de fotojornalismo em 1994, de uma criança prestes a ser
atacada por um abutre. A discussão ética gerada pela foto, devido à alegação do fotógrafo ter
esperado vários minutos para ver se o abutre se aproximava, tinha como central justamente a
questão da intervenção, sobre qual seria o papel das pessoas que tem o „poder‟ de ajudar a
100

África26. No filme, não há hesitação da parte de Sarah, que intervém e resgata a criança
imediatamente.

Talvez a presença mais sutil do paradigma intervencionista seja encontrada em


Invictus (Invictus, Clint Eastwood, 2010), a versão de Clint Eastwood sobre a consolidação do
Estado democrático na África do Sul após o fim do regime de Apartheid naquele país. A uma
primeira observação, nesse filme não parece haver intervenção estrangeira, pois centra-se na
figura de Nelson Mandela, interpretado por Morgan Freeman (indicado ao prêmio de melhor
ator da academia hollywoodiana pelo papel), e em como ele articulou vontades políticas
extremamente distintas, conseguindo evitar o exemplo de guerra civil e derramamento de
sangue de outras nações africanas no pós-independência política de impérios europeus – de
certo modo, o fim do Apartheid simbolizou o fim de uma relação de dominação colonial em
que dominantes e dominados compartilhavam a mesma nacionalidade. A atenção do filme se
concentra no trabalho de Mandela com a seleção sul-africana de rúgbi, esporte nacional da
parcela branca da população e rejeitada pela população negra como símbolo do regime que
acabara de cair, relação de amor e ódio que ele vê como oportunidade de unir a população e
acabar com o estigma de raça.

Para tanto, entra em contato com o capitão do time, o bôer François Piennar, papel de
Matt Damon, e o estimula a levantar o moral de sua equipe e fazer tudo para vencer o torneio
mundial de rúgbi, a ser disputado ali mesmo, na África do Sul. A pista infinitesimal da
presença estrangeira no filme está no seu título, e é revelada quando Mandela conta a Pienaar
o que o motivou a resistir e levar em frente a luta durante os 27 anos de prisão, e faz com que
o segredo passe às mãos do jogador. Invictus é o título de um poema vitoriano, isto é, escrito
por um britânico durante o auge do imperialismo. Essa partícula da cultura europeia motivou
a resistência solitária de Mandela e motiva a superação dos limites do capitão Piennar e da,
até então, periclitante seleção de rúgbi. Se for levado em conta que no livro em que o roteiro
se baseia simplesmente não há menção ao referido poema, ele pode ser entendido como um
recurso especificamente fílmico utilizado para ligar a bem aventurança sul-africana à herança
cultural europeia. Sutil, mas presente, o tropo da necessidade de ajuda estrangeira.

Em filmes cujo público alvo é o infantil e por acaso se passam na África esses tropos
continuam presentes, adaptando-se e modificando-se ao teor da narrativa. Em Madagascar

26
Para mais informações sobre Kevin Carter, sua foto polêmica e premiada e o seu suicídio, supostamente
causado pela repercussão da foto, consultar http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,981431,00.html
(Extensa reportagem da revista estadunidense Time, em inglês, sobre o caso. Acessado em 10/09/2011.) ou
http://bitaites.org/artamente/as-varias-mortes-de-kevin-carter/ (Acessado em 10/09/2011).
101

(Madagascar, Eric Darnell e Tom McGrath, 2005) a inferioridade do lugar aonde chegam os
animais fujões do zoológico de Nova York é presumida o tempo todo nas falas dos
personagens, no desejo de voltar pra casa, nos hábitos estranhos e repulsivos dos habitantes
locais. Ao som de uma música que é considerada um clássico do repertório estadunidense,
What a wonderfull world, os animais saudosos de casa passeiam por território africano e são
surpreendidos com uma ameaça após outra, como o meigo beija-flor que é devorado pela
planta, o ratinho que come a cobra que o ataca e logo em seguida é comido por uma ave de
rapina, e o patinho que tentam proteger colocando num lago onde é instantaneamente
devorado por um crocodilo enorme. A inferiorização através da ameaça constante. É
significativo que a narrativa do filme passa a girar, depois que eles chegam a Madagascar, em
torno da “primitivização” de Alex, o leão. Acostumado a ser alimentado no zoológico, Alex
civilizara-se e vivia em plena harmonia com seus amigos herbívoros, uma zebra, um
hipopótamo e uma girafa – numa cena ainda no zoológico, Marty, a zebra, enfia a cabeça na
boca de Alex e este não esboça a menor ameaça. Porém, a chegada a um ambiente „selvagem‟
desperta os instintos animalescos de Alex, que se isola por passar a representar uma ameaça
para os amigos. Instando-o a lembrar-se quem é de verdade e da onde vem, Marty, seu amigo
zebra, cantarola New York, New York, mostrando a eterna presença estrangeira, a marca
estadunidense em território africano. Em uma das tentativas de serem resgatados, Alex
constrói uma fogueira em formato de estátua da liberdade – o monumento símbolo da cidade
de Nova York e dos EUA, por extensão – para dar sinal a algum navio que passar.

O paradigma da intervenção é bastante nítido em Madagascar 2 (Madagascar: Escape


2 Africa, Eric Darnell e Tom McGrath, 2008), quando, após conseguirem sair de Madagascar,
os animais do zoológico caem em território continental africano e Alex descobre que é
herdeiro do leão chefe de um bando – qualquer semelhança com O rei leão não é mera
coincidência. No meio da luta para se adaptarem ao ambiente selvagem da África, que vai
contra a maior parte dos seus princípios (o individualismo de Marty, por exemplo, o faz
decepcionar-se com a coletividade da comunidade de zebras a que terá que se integrar),
acompanhamos a trama paralela de um grupo de turistas estadunidenses no meio da África.
Esses turistas, roubados e perdidos, começam a se desesperar: “Nenhum sinal de civilização,
todos parecem muito cansados. Acho que estamos perdidos.” Mas então uma velhinha, que
aparece também no primeiro filme espancando Alex, se dirige decididamente para baixo de
uma árvore, e enquanto os outros lamentam o destino – “Sem comida, sem água, sem abrigo!
O que vamos fazer?” – a velhinha faz fogo com agulhas de tricô e depois o aumenta com
102

spray de cabelo, e aproveitando a admiração geral ante seu feito, inicia um curioso discurso
motivacional:

“Podem deixar a natureza vencer vocês, ou podem vencer a natureza.


Somos nova-iorquinos, certo? Sobrevivemos à selva de concreto! Se
precisamos de comida, caçamos uma carrocinha de cachorro-quente. Não
estou certa? Se precisamos de abrigo, construímos arranha céus. Se
precisamos de água, fazemos uma represa.” “É, somos nova-iorquinos, pelo
amor de deus! Podemos tudo!” “Se podemos vencer lá, podemos vencer em
qualquer lugar!”.
A cena termina com o som de música sinfônica europeia triunfal enquanto a velhinha
se ergue em frente à fogueira com uma tocha na mão, braço erguido acima da cabeça, o outro
braço dobrado segurando a bolsa, e na árvore iluminada pela fogueira atrás dela se projeta a
sombra de uma enorme estátua da liberdade. Uma ode ao empreendedorismo dos cidadãos
dos EUA. Mais tarde, no decorrer do filme, os animais começam a enfrentar um sério
problema de falta d‟água, e ninguém ousa quebrar a tradição e sair do território em busca da
causa. Apenas os animais de Nova York tem a iniciativa pessoal para enfrentar o desafio,
enquanto os animais locais creem simploriamente que um ritual primitivo de sacrificar um
deles atirando-o na lava de um vulcão fará a água retornar. Enquanto o ritual tem lugar, com
tambores, danças rituais, animais em transe com os corpos pintados e usando máscaras
„africanas‟, os animais nova-iorquinos seguem rio acima e descobrem que a razão da falta
d‟água é que os turistas construìram um enorme dique represando a água que alimentava os
animais rio abaixo. Assim, os estrangeiros salvam os africanos de problemas que outros
estrangeiros causaram, como no caso de Atirador, por exemplo. Os africanos não têm, em tais
narrativas, consistência narrativa própria, são simples joguetes nas mãos dos estrangeiros,
bons ou maus. É a repetição de um tropo narrativo, em um formato adaptado a um público
diferente.
103

ESTEREÓTIPOS DE ÁFRICA 3 – O TROPO DA FUGA

A necessidade de fuga é um tropo presente na maior parte das vezes de forma


subliminar no conjunto de filmes que fala da África, acompanhando os dois precedentes. Não
é sempre explicitamente demonstrado, mas facilmente perceptível. Decorre naturalmente da
atribuição de inferioridade que as representações do continente fazem, seja pela insuficiência
em prover as necessidades físicas e intelectuais dos euro-estadunidenses, seja pela ameaça do
ambiente natural „primitivo‟ ou, principalmente, em virtude do atraso político que culmina em
situações de perigo de cunho militar. Independentemente de o filme se passar inteiramente na
África ou de apenas remeter a ela de um ou outro modo, a Europa ou os EUA são sempre
tomados como centro de onde emana a racionalidade e o sentido das coisas, e o resto do
mundo, principalmente África, como periferia. Por isso, a constante sensação de
deslocamento dos personagens estrangeiros em terra africana. Na imensa maioria dos filmes a
fuga se concretiza no final, mas mesmo naqueles em que não acontece, como em África dos
meus sonhos, a sua necessidade é pontuada do início ao fim da narrativa fílmica.

A necessidade de fuga traduz tropologicamente uma sugestão de impossibilidade da


vida em território africano. Esse paradigma narrativo acentua continuamente nos filmes que o
único motivo de os próprios africanos continuarem vivendo lá é a falta de oportunidade para
fugir, como mostra a disposição do garoto Jojo em Primitivo, que se dispõe a enfrentar o
crocodilo Gustav para ter uma chance de sair da África. Uma situação de constante ameaça,
como uma espada pendendo sobre a cabeça de todos, um desvalor atribuído à vida humana,
uma sensação de perigo iminente sempre presente, são estados emocionais transmitidos aos
espectadores por meio de eficazes paisagens visuais e sonoras.

Um dos filmes em que o tropo da necessidade de fuga se faz presente de modo mais
contundente do início ao fim é Minha terra África (Matériel blanc, Claire Denis, 2009). Esse
filme francês, integrante da filmografia de uma cineasta muitas vezes cultuada por setores
intelectualizados da população, é uma amostra de que não faz sentido ser apenas o chamado
cinema hollywoodiano objeto desse estudo. Minha terra África não se enquadra nos padrões
narrativos comerciais e palatáveis dos blockbusters, nem busca fórmulas fáceis de
identificação com o espectador. Sua diretora, Claire Denis, além de uma obra considerada
possuidora de refinamento estético, tem um longo histórico de militância esquerdista e de
cunho anticolonialista, e busca nesse filme construir uma alegoria do fracasso do colonialismo
francês em África. Apesar disso, Minha terra África apresenta um continente africano onde
104

estão presentes todos os tropos narrativos eurocêntricos apontados nesta dissertação27. Mostra
uma visão essencializada de África; mesmo que apontando como responsáveis pela situação
caótica do continente os colonizadores, a imagem de África é a mesma que em outros filmes
com bem menos „qualidades cinematográficas‟. O filme dispõe-se a recriminar o
colonialismo, mas o faz utilizando o vocabulário imagético criado por esse mesmo
colonialismo para descrever a África, como fazem todos os outros filmes citados nessa
dissertação, independente das variações em termos de qualidade estética, sutileza ou
posicionamento político dos realizadores. Por exemplo, a despeito do posicionamento social
da realizadora, o seu lugar social (intelectual europeia) se impõe desde a escolha dos
protagonistas: todos europeus (ou filhos de europeus), brancos, cristãos. É forçoso lembrar as
palavras de Edward Said sobre o orientalismo, substituindo o termo por eurocentrismo e
aplicando-as à imagem de África nos filmes, para entender a aparente contradição da diretora:

O orientalismo tinha uma posição de tal força que ninguém escrevendo,


pensando ou agindo sobre o oriente poderia fazê-lo sem levar em
consideração as limitações ao pensamento e à ação impostas por ele. Em
suma, por causa do orientalismo, o oriente não era (e não é) um tema livre
para o pensamento e a ação (SAID, 2007, p. 29, 30).
Mais uma vez, não se trata de determinismo linguístico ou de causalidade estrita, uma
vez que é inteiramente possível escapar a esse campo de força chamado eurocentrismo. Mas o
que se pode constatar é que, no que diz respeito à África, mesmo os cineastas mais
politicamente engajados incorrem em repetir as descrições do continente pressupostas pelo
pensamento eurocêntrico. Posteriormente se falará mais no assunto, por ora voltemos ao tropo
da fuga. No que diz respeito ao filme, sabemos que a história se passa em África, embora o
país não seja informado, através das conhecidas imagens canônicas, em uma enchente de
estereótipos visuais e auditivos. Minha terra África, apesar do título, não é sobre a África – o
continente constitui apenas o cenário – é sobre a presença francesa na África, o que muda de
modo significativo o foco narrativo. Na sequência inicial, uma mulher branca está tentando
chegar a algum lugar, pega carona num furgão cheio e há muitas pessoas negras
aparentemente fugindo de alguma coisa. Num bloqueio, em conversa com um soldado, diz ter
pagado propina a um grupo „rebelde‟ para transitar na estrada, ao que o soldado diz: “Isso é
que gera a corrupção. Por causa de gente como você, este país é sujo”. As pessoas no furgão
aparentam tristeza e desconsolo, e a trilha sonora potencializa essa sensação, auxiliada pela
monotonia do barulho do motor, enquanto as imagens mostram o que os passageiros veem
pela janela, a paisagem crestada com pinceladas verdes „caracterìstica‟ da África. O filme

27
Sobre o assunto, recordar o que já foi dito nesta dissertação sobre o sujeito discursivo, nas páginas 59 e 60.
105

transmite de forma contínua, integral, uma sensação de ameaça iminente, de que se precisa
fugir urgentemente de algo terrível que está prestes a acontecer. Minha terra África,
harmonizando-se à classificação de filmes considerados „de arte‟, não possui nenhum clímax,
parece se perder entre tantos vaivéns temporais, e não acontece nenhum evento catártico para
toda a tensão acumulada na narrativa, como seria o caso em um filme considerado
hollywoodiano. De modo que, mesmo talvez não sendo a intenção da narrativa, o que ela
aparenta fazer é realçar deliberadamente a sensação de permanente insegurança transmitida
pela África. Certamente podemos atribuir a filmes como Minha terra África ou Hotel Ruanda
o relevante mérito de buscar instigar no espectador uma reflexão séria sobre as situações
complexas e violentas a que são submetidas diversas populações africanas, mas o que ressalto
e analiso nesta dissertação, sem intencionar diminuir ou desmerecer esse mérito, é a utilização
pelo cinema hegemônico contemporâneo, para descrever África, de um repertório comum de
tropos narrativos subalternizantes.

Em Minha terra África, a narrativa fílmica tem como linha mestra o discurso
imagético, com escassas falas dos personagens. Longas sequências sem diálogos mostram a
mulher do início em várias situações em temporalidades diferentes. Em um dado momento,
ela está com um sorriso no rosto pilotando uma motocicleta em uma estrada de terra, entre
árvores, fechando os olhos e abrindo a mão (aparentemente suja de terra vermelha), numa
referência à „sensação de liberdade‟. O sol é mostrado difuso entre os galhos secos das
árvores. Ela para ao encontrar roupas e um rádio de pilhas no caminho, mas nenhuma
presença humana, e então se aproxima um helicóptero de onde alguém grita num megafone:
“Senhora Vial! Esse é o último aviso! Tem de sair imediatamente! O exército francês está
saindo! Vamos embora! Você será morta! Pense nisso, senhora Vial! Pense em sua família!
Estamos caindo fora!” A imagem de dentro do helicóptero só mostra a nuca do homem
branco que está gritando essas coisas. A senhora Vial demonstra indiferença e mesmo asco às
palavras e/ou à pessoa que as pronuncia. O homem insiste: “Você deve ir embora logo!” O
helicóptero se aproxima e levanta muita poeira, e ela faz um gesto obsceno em sua direção.
Jogam vários pacotes do helicóptero, que de perto se vê que são kits de sobrevivência. A
mulher os chuta. E assim o filme segue, numa montagem entrecortada, de sequências em
paralelo que mostra acontecimentos em temporalidades diferentes mas não muito distantes,
todas com esse nível de angústia e ameaça de perigo iminente.

O confuso enredo de Minha terra África pode ser resumido da seguinte maneira:
apropriando-se da maioria dos clichês sobre a África, o filme apresenta um país africano não
106

identificado, onde „rebeldes‟ que utilizam meninos soldado como combatentes estão se
aproximando da região onde uma mulher francesa, Maria Vial, interpretada por Isabelle
Huppert, tem uma fazenda de café. Todos à sua volta insistem para que ela abandone o país e
fuja enquanto é tempo, inclusive o seu ex-marido, interpretado pelo ator Christopher Lambert,
mas ela mantém uma resistência inquebrantável em ficar. Há um personagem secundário
chamado Boxeador que é um lìder „rebelde‟ em fuga também, aparentemente ferido. Como eu
disse, tudo e todos nesse filme estão fugindo de algo o tempo todo. A África é referida como
ininterruptamente ameaçadora, as imagens mostram sempre lugares desolados, recentemente
abandonados pelos moradores.

Em outra cena, Maria Vial encontra vários homens negros descendo uma estrada de
bicicleta. São seus empregados fugindo, por causa do aviso do helicóptero. Ela diz que precisa
deles para não perder a safra: “Só mais cinco dias. Cinco dias não é nada, as coisas já estão
ruins há meses.” Mas os empregados dizem que até os capatazes estão fugindo e que eles têm
que fugir antes de serem atingidos. Ela tenta parar a fileira de homens de bicicleta, em vão. A
forma que ela se dirige a esses trabalhadores negros representa-os como fortemente
amedrontados pela nebulosa razão nunca explicitada: “Fique aqui, fique aqui! Por que está
partindo?” Um homem negro para e responde: “Há sofrimento e guerra em todo lugar!”
“Uma semana, só uma semana!”, insiste a mulher, mas a resposta é não.

Tudo isso, na narrativa fílmica, acontece sem que seja dito de que se deve ter medo ou
fugir. Na diegese, o medo em território africano é abstrato, onipresente e inerente, parece não
precisar provir de algo concreto. Repetidamente são mostradas imagens de cinzas, de casas,
árvores e coisas calcinadas. Ela se dirige ao capataz, que também encontra em fuga: “Você
não pode ir, Maurice. Falta apenas uma semana para a colheita. Você viu as culturas.” Um
dado interessante é que, mesmo não sendo apresentado o perigo que todos correm, ele é
nitidamente um perigo mortal, no universo diegético do filme, e mesmo assim a mulher
insiste arrogantemente que seus empregados negros arrisquem a vida por causa de sua
colheita. Aparentemente a vida de empregados negros vem em um lugar bem abaixo dos
lucros na lista de prioridades de mais essa aventureira branca na África. No filme nada se
explica ao mesmo tempo em que tudo fica facilmente apreensível – a sugestão é de que se
trata simplesmente de uma situação indeterminada que pode acontecer a qualquer momento
em qualquer lugar da África, situação instável causada pela colonização. Ao final, o filme
parece indicar que a mulher recebe um castigo „pedagógico‟ por não levado a sério o perigo
que a África representa e fugido: seu filho racista é morto por soldados, ela mesma mata um
107

homem com golpes de facão e o filme acaba sem sabermos mas prevendo o que acontece com
ela na desolada fazenda incendiada pululando de soldados sanguinários. Assim, o tropo de
que a fuga da África é premente pontua o filme da primeira à última cena.

O enredo de Lágrimas do sol, como já apontado, também gira em torno da necessidade


de fuga. Todo o esforço empreendido pelos fuzileiros, todos os sacrifícios da médica, e toda a
gana dos africanos em fuga é conseguir escapar. As cenas finais mostram o esforço
desesperado dos poucos soldados de elite estrangeiros contra um destacamento inteiro do
exército nigeriano para levar os africanos até a fronteira com Camarões, e vão sendo abatidos
um a um nesse esforço heroico. Claro que apenas o protagonista e uns poucos sobrevivem.
Conquistada a fuga no „último minuto‟, acontece uma comemoração em que o filho do
presidente morto, um dos que fugiam, grita várias vezes a palavra “liberdade!” de punho
erguido, enquanto todos à volta choram e aplaudem. Grande parte da tensão e angústia
provocadas por Babel (Babel, Alejandro González Iñarritu, 2006) provém da incerteza se uma
turista estadunidense ferida por um tiro ocasional em uma região remota da África vai
conseguir ser resgatada antes que morra. Primitivo dispensaria comentários quanto à
necessidade de fuga se não fosse mais uma pérola proferida pelo personagem
estereotipicamente „divertido‟ de Orlando Jones, o câmera Steven. Fugindo desesperadamente
do crocodilo Gustav e dos „rebeldes‟ armados que buscam matá-lo, se enganchando em
espinhos, topando com uma serpente enorme, o personagem murmura de si pra si: “Eu nunca
diria isso na frente de gente branca, mas a escravidão até que era uma boa. Qualquer coisa
pra sair dessa droga de África!” Isto é, o filme nos diz que durante os séculos da escravidão
atlântica os africanos receberam um favor dos europeus que promoviam o tráfico de escravos,
já que estavam sendo retirados daquele continente inviável de se viver.

Diamante de sangue é um dos filmes paradigmáticos sobre a África, de modo que uma
breve análise dele permite rever a presença dos três tropos negativos sobre a África nos
filmes. O filme se passa no final da década de 1990, em Serra Leoa, país africano então
assolado por uma tenebrosa guerra civil. O título do filme faz referência ao fato de Serra Leoa
ser um grande produtor de diamantes, e a venda clandestina dessas pedras no mercado
internacional ser um dos maiores financiadores da carnificina interna. Nesse contexto, o
espectador é convidado a acompanhar a trajetória de dois personagens muito diferentes entre
si, mas que irão participar juntos de uma jornada no meio da guerra em busca de um
valiosíssimo diamante cor de rosa: um deles é um ex-mercenário do Zimbábue, agora
traficante de diamantes, chamado Danny Archer, interpretado pelo astro Leonardo DiCaprio;
108

o outro é Solomon Vandy, um „simples‟ aldeão pescador, interpretado pelo ator beninense
Djimon Hounsou, que ficou conhecido pela interpretação que fez do líder de uma revolta em
um navio negreiro no filme Amistad, de Steven Spielberg.

O tal diamante foi encontrado por Solomon enquanto trabalha forçadamente em uma
mina, após ter sido capturado por „rebeldes‟ e perdido contato com sua famìlia. Expondo-se a
ser sumariamente executado, ele esconde o diamante, e no meio de um ataque das forças do
governo, é preso como rebelde. Na prisão para onde é mandado está preso Danny Archer, e lá
este fica sabendo da existência do diamante, passando, a partir de então, a assediar Solomon
para que o leve até onde está escondida a pedra. Os dois desejam intensamente se apossar da
pedra, mas as motivações dos dois homens são diferentes, pois enquanto Archer quer
encontrar o diamante para ficar rico e poder ir embora do continente africano, que considera
amaldiçoado, Vandy quer a todo custo reunir os meios de reencontrar sua família.

Convencido por Archer de que o diamante é o único meio de reencontrar a família,


Solomon parte com ele na jornada em busca do diamante, que é o tema central do filme.
Nessa jornada serão acompanhados pela jornalista estadunidense Maddy Bowen, interpretada
por Jennifer Connelly, uma idealista que está em Serra Leoa como correspondente de guerra e
quer de qualquer maneira conseguir provas para denunciar ao mundo o tráfico de diamantes
que financia a guerra. Para isso, Bowen ajuda Archer em sua busca ao diamante rosa em meio
às burocracias de uma área em conflito, esperando como recompensa que ele entregue a ela os
esquemas da venda dos „diamantes de sangue‟ para os grandes empresários do ramo na
Europa e Estados Unidos.

Tais são as linhas gerais do enredo de Diamante de sangue, e talvez seja um


pleonasmo dizer que esse filme reproduz a visão sedimentada e estereotipada da África já
referida diversas vezes, uma representação cristalizada do passado e do presente daquele
continente, invariavelmente negativa. Ele reitera as imagens canônicas repetidas
exaustivamente em todo esse grupo de filmes – aldeias desoladas, estradas poeirentas,
crianças famintas, vítimas de mutilação, vítimas de AIDS, adolescentes armados com fuzis,
cenários de pobreza generalizada, animais selvagens, etc. O ponto de vista a partir do qual o
filme é apresentado é externo, é pautado na noção „ocidental‟ de progresso. Nas cenas iniciais
vemos Solomon Vandy incentivando o filho, Dia (Kagiso Kuypers), a estudar para se tornar
médico, e não precisar sucedê-lo na profissão de pescador, exemplificando como tudo em
Diamante de sangue é pautado por valores „ocidentais‟. Os “valores” apresentados no filme
como „naturalmente‟ africanos são sempre bárbaros: há a matança indiscriminada, o
109

decepamento de membros, a ganância irracional, o abuso de poder, a pobreza, coisas das


quais os próprios africanos retratados querem se livrar, estabelecendo como contraponto a
tudo isso os „valores ocidentais‟, permeados pela noção de democracia e direitos humanos,
que são expostos na narrativa como naturalmente “certos”, superiores ao que a África,
segundo o filme, teria a oferecer.

Após as cenas de abertura do filme, em que assistimos primeiro o massacre da aldeia


de Salomon, quando ele é separado de sua família, depois um ritual de amputação de
membros e, em seguida, a prisão de Archer contrabandeando diamantes para a Libéria,
Diamante de sangue transporta o espectador para uma aconchegante sala de reuniões de
políticos e diplomatas em Genebra, na Suíça. Ali, está sendo discutido justamente o problema
dos „diamantes de sangue‟. Uma narrativa em off mostra o que está sendo dito pelos
participantes da referida reunião, algo como a leitura de um relatório, e numa sequência em
paralelo são mostradas imagens da reunião e imagens de conflitos armados na África.
Vejamos o que é dito nessa sequência:

“Em toda a história da África, sempre que algo de valor é encontrado os


nativos morrem em grande quantidade e miseravelmente. Isto aconteceu
com o marfim, o ouro, o petróleo, e agora, os diamantes. De acordo com os
últimos informes do Global Witness, estas pedras estão sendo usadas pra
comprar e financiar a guerra civil. Nós temos que fazer algo para proibir a
importação direta ou indireta desses diamantes de áreas de conflito (...) – O
certo é que a compra destes diamantes constitui só 15% do mercado, mas
em uma indústria de multibilhões por ano isso representa centenas de
milhões de dólares disponíveis para a compra de armas nesses conflitos.”
Temos aqui mais um estupendo exemplo de pista infinitesimal a corroborar a ideia dos
tropos negativos. Nesse trecho, podem ser apontadas referências ao tropo da inferioridade –
“sempre que algo de valor é encontrado os nativos morrem em grande quantidade e
miseravelmente” – e da necessidade de intervenção – “nós temos que fazer algo para proibir...”.
A África não possui dinâmica própria, ela gira em torno de interesses alheios, sempre. Quem
compra o diamante causa desgraça, porque os africanos matam uns aos outros com o dinheiro
ganho, e só impedindo os africanos de vender os diamantes é que pode se evitar a desgraça.
Os africanos não têm autonomia, não tem historicidade, não tem consciência, é essa a
mensagem transmitida sutilmente pelo filme, mesmo que a intenção declarada dos seus
realizadores seja ajudar a África. Ajudar, sempre, pois os africanos precisam ser protegidos de
si mesmos! São os argumentos que justificam a eterna presença de agentes estrangeiros em
todos os filmes que retratam a África, sempre mostrados como parte de uma tentativa
indulgente de levar alguma perspectiva de progresso para aqueles países miseráveis, cultural e
110

economicamente. Em filmes de ação como Falcão negro em perigo ou Lágrimas do sol, toda
a violência é justificada por que os americanos são os heróis que estão ali para salvar os
africanos deles mesmos.

Exemplos como estes são fartamente encontrados em todos os filmes que


relacionados, o que certamente vai muito além dos exemplos descritos. Em alguns casos a
inferioridade justifica a presença de soldados, em outros são missionários, jornalistas ou
médicos, mas em todos fica clara a necessidade de ajuda estrangeira por parte da África. Em
Diamante de sangue assistimos às tentativas desesperadas da jornalista interpretada por
Jeniffer Connelly de denunciar ao mundo as atrocidades que acontecem na África, para que o
mundo tome providências e acabe com a desordem. À África só cabe assistir enquanto seus
benfeitores tentam salvá-la. Para sublinhar o fato de que essa representação da África não se
restringe a um único momento do filme, posso apontar o “ditado” repetido várias vezes por
Archer e outros personagens no seu decorrer: “A.E.A. – Assim é a África”. Sempre que se
refere às péssimas condições de vida na África e às suas intenções de sair dela de uma vez por
todas, o contrabandista repete o ditado, reforçando o discurso de que a África não tem jeito e a
única possibilidade de felicidade é sair dela. Esse ditado reforça uma das mensagens que
perpassam todo o filme Diamante de sangue, novamente o tropo da inferioridade, tão
entranhado em nosso imaginário, que dificilmente é percebido quando o filme é assistido sem
um compromisso maior que o entretenimento, e que pode ser notado em vários outros filmes
que falam da África: afirmações de que o continente africano “é assim mesmo”, naturalmente
ruim, sendo a única maneira de superar suas desgraças a fuga dele.

Não é apresentada nenhuma perspectiva de melhora possível, e, de forma literal ou


metafórica, em todos os filmes há personagens que buscam “escapar” da África. O tìtulo
original de Madagascar 2 é sintomático da existência do tropo da necessidade de fuga:
Escape 2 Africa – em uma tradução grosseira, „escapando da África‟. O “final feliz” de
Diamante de sangue só é possível por que no último momento Solomon Vandy consegue ir
para a Inglaterra com sua família, e depois se apresenta em um tribunal internacional para
denunciar o que tem acontecido na África, enquanto o traficante Danny Archer recebe a
punição pedagógica por seus crimes não conseguindo fugir, morrendo com a mão cheia de
terra africana, terra vermelha cuja cor, em outro momento do filme, é atribuída ao sangue
derramado nela. Uma das mais engenhosas „aplicações‟ do tropo da necessidade de fuga da
África é a de Nicholas Garrigan em O último rei da Escócia, mesclando eventos reais e
fictícios. No plano fictício, Idi Amin descobre a traição de Nicholas e este tenta envenená-lo
111

bem no momento em que, no plano „histórico‟, está acontecendo o episodio do sequestro do


avião israelense por palestinos, conduzido ao aeroporto de Entebe, em Uganda, para ter Amin
como mediador nas negociações. Entre a tortura de Nicholas e alguns avanços na diplomacia
internacional, Amin decide libertar alguns reféns como gesto de boa vontade, e então,
aproveitando-se de uma distração dos torturadores, o doutor Junju (David Oyelowo), médico
pessoal de Amin anterior a Nicholas, consegue ajudá-lo a escapar entre os reféns com a
promessa de “contar ao mundo” o que está acontecendo em Uganda. Junju é executado por
isso. Nicholas escapa das garras da África “por um triz”, torturado e humilhado, na última
sequência do filme.

Concluindo, posso dizer que o papel desses filmes não é necessariamente criar o saber
que eles expõem e que nós aceitamos como correto, usual, sobre a África, embora também
possam fazê-lo, em certa medida. O que eles fazem de forma mais contundente é reproduzir,
reinterpretar e reforçar um conhecimento que já existe e está disperso em nossa cultura. Tais
filmes são fontes históricas por excelência, testemunhos da sociedade que os produziu, uma
vez que nenhuma produção cinematográfica, assim como nenhuma outra atividade humana,
está isenta dos condicionamentos sociais e culturais da época em que foi produzido. É no
campo desses condicionamentos culturais que pretendo adentrar agora.
112

CAPÍTULO 3: A INVENÇÃO DA ÁFRICA

Durante as longas e ociosas horas da viagem, o doutor ministrava


verdadeiros cursos de geografia na sala dos oficiais. Estes rapazes
empolgavam-se com as descobertas realizadas nos últimos quarenta anos na
África. Relatou-lhes as explorações de Barth, de Burton, de Speke e de
Grant. Descreveu-lhes aquela misteriosa região aberta por todos os lados às
pesquisas da ciência. No norte, o jovem Duveyrier explorara o Saara e na sua
volta a Paris trouxera consigo os chefes tuaregues. Por sugestão do governo
francês, organizaram-se duas expedições, as quais, descendo do norte em
direção ao oeste, cruzar-se-iam em Tombuctu. Ao sul, o incansável
Livingstone avançava constantemente na direção do equador e, depois de
março de 1861, subia, em companhia de Mackenzie, o rio Rovoonia. Sem
dúvida, o século dezenove não terminaria sem que a África revelasse os
segredos que vinha ocultando por seis mil anos.

Júlio Verne, em Cinco semanas em um balão (1862)

Era, porém, necessário, para nossa salvação, que deslumbrássemos e


inteiramente nos apoderássemos daquelas almas ferozes e simples. E para
isso, na África (como noutras partes) o mais pronto instrumento é o
sobrenatural. Não hesitei, portanto (com vergonha o confesso), em me
atribuir, a mim e os meus companheiros, uma origem divina! De resto, com
o negro da África Central, que pela primeira vez vê o branco, e assiste a
alguns dos milagres que o branco pode realizar com os pequenos recursos da
sua pequena civilização, este procedimento é o mais seguro e o mais
humano. O selvagem fica desde logo (pelo menos por algum tempo) contido
dentro do respeito, absolutamente razoável e tratável; e assim, poupando ao
negro as traições, os brancos poupam a si próprios as represálias.

Henry Rider Haggard, em As minas do rei Salomão (1885)

Bem, quando eu era pequeno, tinha paixão por mapas. Eu ficava horas
olhando a América do Sul, ou a África, ou a Austrália, e abandonava-me às
glórias da exploração. Naquela época, havia muitos espaços em branco no
mundo, e, quando enxergava um que parecia particularmente convidativo no
mapa (mas todos pareciam assim) colocava o dedo ali e dizia: „Quando
crescer vou para lá‟. (...) Havia um, no entanto – o maior, o mais branco, por
assim dizer –, que me atraía especialmente. É verdade que, nessa época, já
não era mais um espaço em branco. Tinha sido preenchido, desde minha
adolescência, por rios, lagos e nomes. Cessara de ser um espaço em branco
ou um delicioso mistério (...). Tornara-se um lugar tenebroso.
Joseph Conrad, em O coração das trevas (1902)

Moveu-se para a entrada do abrigo, em busca de Tarzan. Ele tinha-se


afastado, mas desta vez Jane não teve medo porque sabia que havia de
voltar. Na erva, à entrada do abrigo, viu a marca do corpo de Tarzan, no
113

lugar onde estivera estendido toda a noite, para velar por ela. O fato de o
saber ali era o que lhe havia permitido dormir em tão profunda paz e
segurança. Perto dele, quem poderia ter medo? Jane pensou se haveria no
mundo algum outro homem junto do qual uma moça pudesse sentir-se tão
segura no coração da selva africana. Nem mesmo os leões e as panteras a
assustavam agora. (...) Compreendeu que se sentia completamente satisfeita,
sentada ali, ao lado daquele gigante sorridente, a comer deliciosos frutos,
naquele paraíso silvestre, nas profundezas da selva africana – que se sentia
satisfeita e muito feliz. Não conseguia entender isto. A razão dizia-lhe que
devia sentir-se torturada pela ansiedade, acabrunhada pelo medo, dilacerada
por ideias sombrias. Mas, em vez disso, o seu coração parecia cantar, e ela
sorria em face do sorriso do homem junto dela.
Edgar Rice Burroughs, em Tarzan dos macacos (1912)

A investigação histórica sobre a imagem da África nos filmes produzidos pela


indústria cinematográfica hegemônica do século XXI não pode começar olhando para o
século XXI. Essa imagem não se formou subitamente, nem existe em um vácuo
informacional. Tal investigação precisa começar olhando para um período bem anterior,
anterior inclusive ao surgimento de tal indústria. Precisa remeter à época em que se formou a
imagem dos povos do mundo que é hoje aceita como natural. Os tipos de comportamento
humano, organização político-social, vestuário, arquitetura e tudo o mais que tem a ver com a
atuação do homem no mundo, hoje, têm como padrão os modelos que emanam dos assim
chamados „paìses desenvolvidos‟, que em termos simples compreendem a Europa ocidental e
algumas de suas ex-colônias, que seguem o seu padrão de desenvolvimento econômico. Por
isso, elementos corporais claros (pele, cabelos, olhos) são considerados o padrão de beleza;
possuir conhecimento ou habilidade em determinadas manifestações artísticas oriundas do
universo cultural europeu é considerado sinônimo de erudição; religiosidades ligadas ao
cristianismo europeu são consideradas as „normais‟; o modelo de gestão nacional chamado de
democrático, organizado em Estados-Nação, é inclusive considerado digno de ser imposto por
vias militares a povos que não se „adequem‟ a ele; investir em uma carreira profissional que
possibilite condições econômicas de manter um modo de vida consumista é considerado o
„caminho certo‟ a ser seguido pelas populações jovens na maior parte do mundo. Tais
referenciais foram objeto de um longo processo de naturalização, que compreende no mínimo
os últimos quatro séculos, até o atual estado de sedimentação e virtual ausência de um amplo
questionamento. É a perspectiva eurocêntrica, já referida no capìtulo anterior, “que vê a
Europa como a origem única dos significados, como o centro de gravidade do mundo, como
“realidade” ontológica em comparação com a sombra do resto do planeta” (SHOHAT e
114

STAM, 2006, p. 20). Qual a razão dessa imagem do mundo, que considera a Europa – de
modo consciente ou não – inerentemente superior, ser hoje considerada natural?

O escritor britânico Neil Gaiman, em uma de suas mais conhecidas criações, o


romance gráfico Sandman, descreve da seguinte maneira a atuação do Destino:

Percorra qualquer caminho no jardim de Destino, e você terá de escolher não


uma, mas muitas vezes. As trilhas se bifurcam e se dividem. A cada passo
que você dá nesse jardim, você faz uma escolha; e cada escolha determina
rumos futuros. Contudo, ao final de toda uma vida caminhando, você
poderia olhar pra trás e ver apenas um caminho (GAIMAN, 2011, p. 13).
Trazendo a lição da frase de Gaiman para o campo da história, o fato é que esta é
entendida a partir do ponto em que se está nela. Sobre o assunto em pauta, olhando-se do
ponto onde estamos para a história do mundo desde o fim do período que se convencionou (na
Europa) chamar de Idade Média, a dominação europeia28 aparenta ser um fato inevitável, em
função do „atraso‟ do resto do mundo. Parece que a história traçou um caminho reto e sem
percalços no jardim do destino em direção a nós, adquirindo, nessa maneira de se interpretar,
uma aura de inexorabilidade29. O atual triunfo do projeto burguês eurocêntrico, de expansão
capitalista global, faz com que os valores de um grupo específico de pessoas beneficiadas com
essa expansão sejam alçados à categoria de “universais” e sua versão da história seja a história
oficial. Mas essa percepção anacrônica do mundo pode e deve ser nuançada, e é nessas
nuances que se encontram as respostas para muitas das questões contemporâneas, inclusive a
que norteia esse estudo: a imagem da África nos filmes.

28
Para fins de precisão no que diz respeito à nomenclatura adotada na dissertação, quero ressaltar o
entendimento em que o termo „europeia‟ é aqui empregado, tomando o pressuposto de Mary Louise Pratt:
““europeia”, nesta acepção, se refere antes de tudo a uma rede de europeus alfabetizados do norte,
principalmente homens dos níveis mais baixos da aristocracia e da média e alta burguesia” (PRATT, 1999, p.
78). Também utilizo o termo em algumas ocasiões como sinônimo de „eurocêntrica‟, ou seja, fazendo referência
à visão de mundo nascida na Europa mas que não se restringe apenas a europeus.
29
Essa interpretação anacrônica perde de vista caminhos que poderiam ter sido tomados no „jardim de Destino‟;
um exemplo suficientemente forte é o caso chinês: no século XV o Império Chinês possuía condições técnicas e
econômicas para „mundializar‟ o planeta a seu gosto e mesmo „descobrir‟ e conquistar a Europa, o que poderia
ter acontecido caso não se tivesse voluntariamente desistido do projeto do imperador Yung Lo (século XV,
dinastia Ming), que enviou 60 juncos (navios de grande porte que a tecnologia europeia à altura nem de longe
possuía) com uma tripulação estimada em 30 mil homens, que exploraram o oceano índico, a costa oriental da
África e chegou a dobrar o Cabo da Boa Esperança no sentido contrário ao de Vasco da Gama, quase cem anos
antes do navegador português (SERRANO & WALDMAN, 2007, p. 185). Immanuel Wallerstein analisa
detidamente o caso chinês, inclusive elaborando algumas possíveis explicações para a retração voluntária da
expansão chinesa (WALLERSTEIN, 1990, pp. 58-68).
115

IMPERIALISMO

O período essencial para o entendimento dessa questão é o Imperialismo, que


compreende de modo geral as duas últimas décadas do século XIX e as quatro primeiras do
século XX. Sentencia Hanna Arendt: “Poucas vezes o começo de um perìodo histórico pôde
ser datado com tanta precisão, e raramente os observadores contemporâneos tiveram tanta
possibilidade de presenciar o seu fim definitivo, como no caso da era imperialista”
(ARENDT, 1989, p. 147). A “era dos impérios”, como chamou Eric Hobsbawn, tem inìcio na
década de 1880 e dura até o final da Segunda Guerra Mundial, com algumas pequenas
mudanças em tais marcos cronológicos dependendo do critério utilizado. A quantidade de
eminentes intelectuais que dedicaram considerável esforço a teorizar e a analisar esse
momento histórico, no decorrer do século XX, denuncia a sua importância seminal para a
formação da sociedade contemporânea: John Hobson, Joseph Schumpeter, Lênin, Rosa
Luxemburgo, Hanna Arendt, Harry Magdoff, Norman Angell, Rudolf Hilderferding, Nikolai
Bukhárin, Paul Kennedy, Immanuel Wallerstein, Edward Said, estudaram esse período cada
um a seu modo, sob as óticas da economia, política e cultura. Uma série de especialistas tem
analisado as repercussões desse período no decorrer do século XX e no início do século XXI,
tais como Kwame Nkrumah, Gabriel Kolko, Domenico Losurdo, Noam Chomsky, Jan
Pianervese, Nialls Fergusson Aijaz Ahmad e Samir Amin. A importância desse período
passou, segundo muitos desses autores, a ser negligenciada após os eventos catastróficos da
Segunda Guerra Mundial, cobrindo com o pó do esquecimento o fato de que tais eventos
estão diretamente ligados ao período imperialista.

Nos meios de comunicação se veem frequentes referências à palavra imperialismo, e


talvez exatamente por esse motivo ela seja um termo um tanto controverso. Sem dúvida,
carrega múltiplos significados. Afinal, o que é o Imperialismo? Ao falar em império,
certamente vem à lembrança manifestações culturais que retratam movimentos históricos
como o Império Romano, o Império de Alexandre Magno ou o Império de Gêngis Khan, e
suas respectivas guerras de conquista. Ou então se pense nos impérios ultramarinos português
e espanhol da era mercantilista. Porém, a acepção de Império que diz respeito a essas
formações estatais é bastante diferente da que surgiu no final do século XIX, como assinala
Marc Ferro:

Os imperialismos do final do século XIX e do século XX diferiam tanto do


espírito de conquista ou de dominação das épocas passadas quanto da
116

expansão colonial dos séculos anteriores pela seguinte característica:


estavam, mais que os outros, ligados ao capital financeiro, e a colonização
ou conquista não eram as únicas expressões de sua existência. É claro que a
colonização e a conquista territorial podem ser imperialistas; mas, no século
XIX, e até a Primeira Guerra Mundial, o imperialismo dispõe de meios de
ação que podem se acomodar com a independência política (FERRO, 1996,
p. 34).
A palavra imperialismo “se impôs pela primeira vez na década de 1870, na Inglaterra
vitoriana, sendo usada para designar a política de Disraeli, que objetivava robustecer a
unidade dos Estados autônomos do império” (BOBBIO, 1986, p. 611). De fato, como assinala
Raymond Williams, os termos imperial e imperialist, em inglês, eram usados desde o século
XIV na acepção diretamente derivada do latim imperium, no sentido de “partidário de um
imperador ou de uma forma imperial de governo”, enquanto que Imperialism se desenvolveu
apenas na parte final do século XIX (WILLIAMS, 2007, p. 220). Eric Hobsbawn lança o que
podemos chamar de uma luz definitiva sobre essa questão etimológica, chamando de inúteis
as referências à antigas formas de império: “Os imperadores e os impérios eram antigos, mas
o imperialismo era novíssimo. (...) Em suma, era um termo novo criado para descrever um
fenômeno novo” (HOBSBAWN, 2010, p. 103). Para referendar essa análise, podemos invocar
um contemporâneo dessa novidade, o líder soviético Vladimir Ilitch Ulianov, Lênin. Ele inicia
seu estudo sobre o Imperialismo, publicado em 1916, com as palavras:

Durante os últimos quinze ou vinte anos, sobretudo depois das guerras


hispano-americana (1898) e anglo-boer (1899-1902), as publicações
econômicas, bem como as politicas, do velho e do novo Mundo utilizam
cada vez mais o conceito de “imperialismo” para caracterizar a época que
atravessamos (LÊNIN, 1975, p. 21).
Que havia de novidade nesse fenômeno, afinal? Até o começo do século XIX, o
padrão de vida dos cidadãos europeus não diferia em praticamente nada do que era usufruído
por pessoas de qualquer outra parte do mundo, seja do ponto de vista da produção de riqueza,
seja do ponto de vista cultural. Nesse século fatídico acentuou-se o processo que nos anos
1970 tornou a renda per capita dos habitantes dos países desenvolvidos sete vezes maior que
a dos moradores do Terceiro Mundo (HOBSBAWN, 2010, p. 34). Tal processo tivera início
séculos antes, com o surgimento de uma classe social que não se adequava ao status quo
europeu medieval.

Como baliza Jacques Le Goff em A bolsa e a vida, as origens do capitalismo e da


burguesia europeia podem ser encontradas no surgimento da prática da usura no distante
século XII (LE GOFF, 2004, p. 13). O grupo de pessoas que, nos séculos seguintes,
empreendeu a tarefa de desafiar a autoridade eclesiástica, a fim de obter lucro em transações
117

econômicas, conseguiu ao longo do tempo um poder cada vez maior sobre os outros setores
da sociedade europeia. Tomaram a dianteira no processo de formação das monarquias
nacionais (século XIV), a fim de livrarem-se dos entraves impostos às suas atividades pela
forma de organização polìtica fragmentária, feudal. Patrocinaram um „renascimento‟ cultural
e uma „reforma‟ religiosa a fim de obter legitimidade. Financiaram essas monarquias e as
atividades expansionistas de seus impérios ultramarinos nos séculos XV e XVI, fiéis à sua
política do lucro – com essa expansão, é inaugurado o que Immanuel Wallerstein chama de
“economia-mundo moderna”, da qual se falará mais adiante. Foram protagonistas de várias
revoluções que visaram acabar com as monarquias por eles mesmos financiadas, no momento
em que imaginaram ter condições de assumir o controle político de seus países. Até que, em
finais do século XVIII e no correr do XIX, a Revolução Industrial, que inaugura e “depois
acentua a ruptura em relação a milênios de produções predominantemente agrícolas de
sociedades predominantemente rurais” (BEAUD, 2004, p. 140), proporciona uma riqueza até
então desconhecida pela burguesia europeia, – riqueza que faz dela uma nova classe dirigente,
proporcionando definitivamente a sua emancipação política, considerada por Hanna Arendt
condição sine qua non para o surgimento do fenômeno novo apontado por Hobsbawn, o
Imperialismo. Nas palavras de M. Ferro, “a diferença fundamental entre a expansão colonial
dos séculos XVI-XVII e o imperialismo que se segue é que a Revolução Industrial dá a este
meios de ação que transformam de cabo a cabo a relação entre metrópoles e colônias”
(FERRO, 1996, p. 36).

O primeiro grande estudo desse fenômeno, intitulado Imperialism: a Study30, foi


publicado pelo inglês John Atkins Hobson no ano de 1902, iniciando o debate que perdura até
nossos dias sobre o tema. Todos os estudos posteriores tomam esse trabalho de Hobson como
referencial. De modo sucinto, o que esse economista social-liberal faz é uma análise dos
problemas socioeconômicos da Grã-Bretanha, apontando o „excesso‟ de capital dos
empresários (acúmulo proporcionado pela industrialização) combinado aos baixos salários
dos trabalhadores, que se traduzia obviamente num escasso poder de consumo, na principal
razão para que esses empresários se interessassem em fazer investimentos no exterior. Assim,
surge o que na concepção de Hobson é o âmago do Imperialismo: “a força motriz do
imperialismo “moderno” repousava na progressiva necessidade de algumas economias
exportarem capitais de forma segura” (MARIUTTI, 2009, p. 169). Lênin corrobora essa
percepção, e a coloca também como marca distintiva do Imperialismo, diferenciando-o do

30
Desconheço qualquer tradução deste importante trabalho para o idioma de Camões.
118

Mercantilismo em voga até então: “O que caracterizava o velho capitalismo, no qual


dominava a livre-concorrência, era a exportação de mercadorias. O que caracteriza o
capitalismo moderno, no qual impera o monopólio, é a exportação de capitais” (LÊNIN,
1975, p. 78).

A concordância entre Hobson e Lênin só vai até a questão da exportação de capitais


(entendida como a caracterìstica central do „Imperialismo moderno‟), pois ambos avaliam
que, para os investidores, esse deslocamento era vantajoso tanto pela rentabilidade das novas
regiões quanto pela manutenção das taxas de juros internas, proporcionada pelo escoamento
desse capital „excessivo‟. Para Hobson, isso é um desvirtuamento da democracia liberal e do
objetivo do mercado livre, pois esse excesso de capital deveria, através de uma distribuição de
renda mais justa, elevar o nível de vida da população em geral. Lênin pondera que a análise
de Hobson do fenômeno imperialista é acurada, mas a conclusão a que chega é errônea: para o
estudioso inglês, “o impulso capitalista não tem nenhum vìnculo orgânico com o capitalismo,
pois ele deriva fundamentalmente de interesses econômicos particulares de um setor
capitalista razoavelmente bem delimitado – o setor financeiro” (MARIUTTI, 2009, p. 169).
Hobson escreve em um trabalho anterior ao citado, intitulado A evolução do capitalismo
moderno, que “foi esse uso ilìcito e desleal da política externa por interesses empresariais
privados que transformou o internacionalismo econômico que ele demonstrou ser”
(HOBSON, 1996, p. 313), pois, ainda segundo Hobson,

são facilmente perceptíveis, sob a capa das injustiças raciais, nacionais e


sentimentais, que vêm-se delineando no primeiro plano do palco da História
como causas de guerra, as lutas dos grupos comerciais, manufatureiros e
financeiros, que usam a “polìtica externa” de seus respectivos governos para
estender seus interesses privados de lucro (HOBSON, 1996, p. 312).
De modo que a avaliação de Hobson é negativa e crítica em relação ao Imperialismo,
considerando-o, além de excessivamente custoso e pouco lucrativo, o causador das guerras
em que os países europeus estavam engajados por toda parte, por partir do princípio de que
este fenômeno não se deve a um impulso intrinsecamente capitalista31. Para Lênin,
contrariamente, o Imperialismo é nada mais que uma fase do capitalismo, sendo portanto
capitalista em sua essência:
31
J. Schumpeter é outro autor, para citar apenas mais um, que concorda com essa percepção do Imperialismo.
Para ele, “o imperialismo moderno não é parte constitutiva do capitalismo, mas sim fruto de sobrevivências pré-
capitalistas, que o capitalismo ainda não conseguiu eliminar” (MARIUTTI, 2009, p. 181). Para os objetivos da
dissertação, não interessa um inventário de todos os autores que analisaram o fenômeno imperialista, mas apenas
daqueles cujas interpretações são essenciais para a compreensão do debate acerca do tema. Para um
aprofundamento na temática do Imperialismo e nas suas diversas correntes interpretativas políticas e
econômicas, consultar o verbete Imperialismo em BOBBIO, 1986, p. 611; SILVA, 2010, p. 218; e WILLIAMS,
2007, p. 219.
119

Enquanto o capitalismo for capitalismo, o excedente do capital não se


consagra à elevação do nível de vida das massas do país, pois isto significa a
diminuição dos lucros dos capitalistas, mas ao fomento desses lucros através
da exportação de capitais para o estrangeiro, para os países atrasados. Nestes
países atrasados o lucro é em geral elevado, pois os capitais são escassos, o
preço da terra e os salários relativamente baixos e as matérias-primas baratas
(LÊNIN, 1975, p. 79).
O Imperialismo, a partir do viés exposto por Lênin, é entendido como uma expressão
do capitalismo monopolista originado no século XIX. Essa forma de dominação é peculiar e
distinta de outros modelos imperiais anteriores, e no capítulo intitulado precisamente O lugar
do imperialismo na história, Lênin enuncia as características básicas do capitalismo
monopolista, resumidas por Eduardo Barros Mariutti do seguinte modo:

(...) forte tendência à centralização da produção em trustes e em cartéis, que


dão origem a grandes monopólios, que passam a exercer um papel decisivo
na vida econômica (...) fusão do capital bancário e do capital industrial gera
uma poderosa oligarquia financeira (...) a exportação de capitais adquire uma
importância decisiva (...) as grandes potências capitalistas dividem o mundo
entre si, ocupando territórios e criando esferas de influência (...) da
efetivação da divisão territorial do planeta, desdobra-se uma intensa luta
entre as grandes potências para redividir o mundo (a luta intercapitalista)
(MARIUTTI, 2009, p. 184,185).
Os dois últimos aspectos são de especial interesse para o presente estudo, pois são
esses elementos constitutivos do Imperialismo que dirão respeito especificamente ao
continente africano e à imagem fabricada para ele pela intelectualidade europeia. Alcançar o
objetivo central do Imperialismo – a exportação lucrativa de capitais „excessivos‟ –
demandava encontrar outros lugares onde investir esses capitais, ou seja, demandava
expansão territorial.

Já na segunda metade do século XX, isto é, já tendo visto o decurso dos


acontecimentos, Hanna Arendt pôde analisar o fenômeno imperialista valendo-se das
proposições de Lênin, Hobson e outros autores que a precederam, indo além delas. Para a
filósofa política, o Imperialismo constitui de fato uma fase na história do capitalismo, mas
diferente de Lênin, afirma que “o imperialismo deve ser considerado o primeiro estágio do
domìnio polìtico da burguesia e não o último estágio do capitalismo” (ARENDT, 1989, p.
168). Ela também afirma que “a exportação de dinheiro e o investimento no exterior não
constituem, por si, o imperialismo e não levam necessariamente à expansão como mecanismo
polìtico” (ARENDT, 1989, p. 179). Havia outros interesses em jogo, em especial, na
concepção de H. Arendt, o outro principal subproduto da produção capitalista (além do capital
„excessivo‟), potencialmente muito mais perigoso para a classe dirigente: o “lixo humano”, a
parcela da população tornada permanentemente ociosa, aqueles que foram dados de comer às
120

ovelhas, no dizer de Thomas Morus, as multidões expulsas dos campos e empurradas para
uma vida de miséria nos centros urbanos. Nas palavras de H. Arendt, “o fato novo da era
imperialista foi que essas duas forças supérfluas – o capital supérfluo e a mão-de-obra
supérflua – unirem-se e, juntos, abandonaram seus paìses” (ARENDT, 1989, p. 180). O
Imperialismo pode ser considerado uma transposição do princípio que orienta e confere
sentido ao capitalismo (acumulação incessante de capitais, acumular por acumular) para a
posse de territórios. “A expansão como objetivo permanente e supremo da política é a ideia
central do imperialismo. Não implica a pilhagem temporária nem a assimilação duradoura,
caracterìsticas da conquista” (ARENDT, 1989, p. 155). O Imperialismo marca, na concepção
de H. Arendt, a emancipação política definitiva da burguesia europeia.

Outro entendimento do Imperialismo, que agrega elementos de algumas dessas


interpretações mas se opõe a seu entendimento geral, é o proposto pelo intelectual egípcio
Samir Amin, tese que será utilizada adiante nesta dissertação. Indo além de Lênin e Arendt,
Amin afirma que o Imperialismo não constituiu uma simples fase do capitalismo, seja a fase
final, como propôs Lênin, ou a fase que marca a ascensão da burguesia, como propôs Arendt.
Para Amin, “a expansão global do capitalismo foi imperialista em todas as etapas de sua
história e assim permanece por todo o futuro vislumbrável (enquanto o sistema permanecer
essencialmente fundado sobre a lógica do capitalismo)”, chamando o imperialismo
simplesmente de “estágio permanente do capitalismo” (AMIN, 2005, p. 6). No capítulo final
essa teorização será revista; por hora, a partir da discussão feita por H. Arendt na segunda
parte de sua obra Origens do Totalitarismo, a que nomeou não por acaso de Imperialismo,
podem ser feitas algumas considerações que condensam o prisma a partir do qual se enxerga o
fenômeno imperialista no presente estudo. Primeiro, é importante notar o quanto, segundo a
autora, é estreito o vínculo entre o Totalitarismo e o Imperialismo. Ter isso em mente é de
suma importância, pois, como lembrou Marc Ferro, “aqueles que estudam os regimes
totalitários parecem ter lido Hanna Arendt com um só olho. Assim, não se aperceberam de
que, ao nazismo e ao comunismo, ela havia associado o imperialismo colonial” (FERRO,
2004, p. 10). Nas palavras da autora,

sua [do Imperialismo] estreiteza ideológica e miopia política conduziram ao


desastre do totalitarismo, cujos horrores sem precedentes anularam a
gravidade dos eventos ominosos e a mentalidade ainda mais ominosa do
período precedente. Assim, os estudiosos do período totalitário têm-se
concentrado quase exclusivamente na Alemanha de Hitler e na Rússia de
Stálin, esquecendo os seus predecessores menos nocivos, enquanto o
domínio imperialista, a não ser para fins de insulto, parece semi-esquecido, o
que é deplorável, principalmente porque é mais do que óbvia a sua
121

relevância para todos os acontecimentos contemporâneos (ARENDT, 1989,


p. 147).
A análise de H. Arendt corrobora os dizeres de Aimé Cesaire, o poeta martiniquense
engajado na luta anticolonial, que foi um dos ideólogos da negritude (movimento político e
literário em que escritores negros de língua francesa buscavam divulgar ideias de valorização
da cultura negra), em seu Dicours sur Le colonialisme (1955):

O que o cristianíssimo burguês não perdoa a Hitler não é o crime em si, o


crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime
contra o homem branco [...], é ter aplicado à Europa procedimentos
colonialistas que, até então, só se destinavam aos árabes, aos cules da Índia e
aos negros da África (Apud FERRO, 1996, p. 14).
Sim, o campo de extermínio não é criado no Holocausto nazista, mas o precede. Em
fins do século XIX e começo do século XX, os europeus „inventaram‟, no processo de
conquista de territórios africanos, a instituição que ficou mundialmente conhecida, a partir do
contexto da Segunda Guerra Mundial, como campo de concentração. Para citar apenas um
exemplo contundente, podemos lembrar o ocorrido entre 1904 e 1907 na atual Namíbia, então
África do Sudoeste. Pouquíssima atenção internacional foi (e é) dedicada ao fato de os
invasores alemães terem exterminado mais de 80% do povo herero em campos de
concentração, tendo em vista a resistência destes à conquista (muito embora o advento dos
campos seja comumente atribuído aos ingleses no correr da segunda guerra anglo-bôer) (ADU
BOAHEN, 2010, p. 247). Cabe ressaltar que foram realizadas macabras “experiências” raciais
na ocasião, depois levadas para território europeu, por ninguém menos que Eugen Fisher,
médico e antropólogo alemão. Esse teórico da eugenia posteriormente se tornou reitor da
Universidade de Berlim sob o governo hitlerista, seriamente comprometido com a política
nazista genocida e de esterilização, e foi professor de um dos maiores criminosos de guerra da
história, Joseph Mengele (SERRANO & WALDMAN, 2007, p. 223,224). Ou seja, a
“tentação fascista”, nas palavras de Albert Memmi, é latente no empreendimento imperialista:
“Que é o fascismo senão um regime de opressão em proveito de alguns? Ora, a máquina
administrativa e política da colônia não tem outros fins. (...) Não há dúvida alguma, para
quem o viveu, que o colonialismo é uma variedade do fascismo” (MEMMI, 1977, p. 64).

Tendo essas considerações em mente, a concepção de Imperialismo adotada nesta


dissertação é de que o momento da história, especificamente datado, a que se chama desse
modo, foi uma experiência histórica colocada em prática pelas classes economicamente
dirigentes do continente europeu. Uma fase do capitalismo, na definição de Lênin, mas não a
última, como Arendt arrazoou. Foi uma tentativa de alcançar com as ferramentas da política
122

um objetivo eminentemente econômico, numa terrível releitura prática da frase de Clausewitz


sobre a guerra ser a política por outros meios32. Experiência desastrada e desastrosa.
Desastrada, pois o próprio Cecil Rhodes, o „empreendedor‟ inglês que personifica o
Imperialismo, ao afirmar que sentia tristeza por não poder anexar também planetas, previa a
inviabilidade do empreendimento, já que a limitação geográfica da terra tornava impossível o
seu objetivo último, a acumulação infinita de capitais e territórios, e inevitavelmente
conduziria a um confronto entre as potências imperialistas. Desastrosa, pois deu ensejo às
maiores atrocidades de todos os tempos: as duas guerras mundiais, os totalitarismos, os
extermínios em massa. Então, como (quase) toda experiência malsucedida, foi abandonado
pelos idos da metade do século XX. Porém, observando com os olhos da longa e média
duração que Fernand Braudel ajudou-nos, historiadores, a desenvolver (BRAUDEL, 2004, p.
48; 1978, p. 44), é facilmente perceptível que o projeto de dominação econômica do mundo
empreendido sob diversas máscaras pela burguesia euro-estadunidense não teve fim. A maior
parte das multinacionais que dominam o mercado mundial hoje tem sua origem nos trustes do
final do século XIX. Apenas aquela estratégia especìfica foi descartada, pois “a motivação do
lucro, cuja importância para a política imperialista foi frequentemente exagerada, mesmo no
passado, agora [década de 1950] desapareceu, e somente os países muito ricos e muito
poderosos podem suportar as enormes perdas que o imperialismo acarreta” (ARENDT, 1989,
p. 150).

Sobre o modo contemporâneo de dominação econômica e política, muitas vezes


também chamado de Imperialismo, se falará com mais cuidado adiante nesta dissertação. Por
hora, cabe lembrar que a estratégia de dominação atualmente em voga, resultado de séculos
de „refinamento‟, pode ser considerada a mais bem sucedida de todas as experimentadas até o
momento (mesmo levando-se em conta as crises econômicas globais recentes que a põe em
risco): além de ser tão onipresente a ponto de se tornar invisível, reduziu de maneira
impressionante os custos, uma vez que aboliu as guerras entre as potências e mantêm um
controle mais ou menos rígido sobre as intervenções feitas em antigas possessões coloniais.
32
Carl von Clausewitz foi um militar prussiano que, na primeira metade do século XIX, escreveu um tratado
considerado clássico sobre guerra. A citação a que fiz referência no texto é por vezes utilizada fora de contexto,
aqui a reproduzo completa em seu contexto original: "Sabe-se evidentemente que só as relações políticas entre
governos e nações engendram a guerra; mas imagina-se geralmente que essas relações cessam com a guerra e
que uma situação totalmente diferente, submetida as suas próprias leis e só a elas se estabelece nesse momento.
Nós afirmamos, pelo contrário: a guerra nada mais é senão a continuação das relações políticas, com o
complemento de outros meios, para afirmar ao mesmo tempo que a guerra em si não faz cessar essas relações
políticas, que ela não as transforma em qualquer coisa de inteiramente diferente, mas que estas continuam a
existir na sua essência, quaisquer que sejam os meios de que elas se servem, e que os principais filamentos que
correm através dos acontecimentos de guerra e aos quais elas se ligam não são mais que contornos duma política
que se prossegue através da guerra até a paz" (CLAUSEWITZ, 1979, p. 737. Grifo meu).
123

Há todo um sistema de argumentos culturais que sustentam essa organização/configuração


atual do mundo. Aqui o objetivo é analisar uma pequena parte de um desses grandes
mantenedores ideológicos do status quo – a indústria cinematográfica hegemônica – a
respeito de apenas uma das muitas regiões dominadas do globo – a África. Mas antes de
adentrar nessa análise, cabe considerar os desdobramentos do Imperialismo no que diz
respeito à África: sua dominação física e simbólica nos últimos anos do século XIX.
124

COMO SE INVENTA UM CONTINENTE (OU: A ‘PARTILHA DA ÁFRICA’


REALMENTE ACONTECEU?)

A pergunta acima provavelmente soa estranha, tendo em vista que a Partilha da África
é um evento histórico aparentemente incontestável. A expressão, associada quase sempre à
Conferência de Berlim, é assaz comum em livros que abordam a temática do Imperialismo,
onde abundam dados estatísticos sobre a rapidez e extensão da ocupação da África no último
terço do século XIX. Em livros didáticos são recorrentes exposições resumidas da „Partilha‟,
que deixam implícita uma suposta inferioridade dos africanos, teoricamente facilmente
subjugados pelos europeus. Alguns rápidos exemplos:

[Sobre a Conferência de Berlim]: Era o que faltava para o continente ser


inteiramente retalhado entre seus pretendentes. Em menos de duas décadas,
quase todo o território africano havia sido dividido arbitrariamente em
colônias sob controle europeu. Muitas fronteiras foram criadas por meio de
acordos diplomáticos entre as metrópoles, sem levar em consideração as
divisões étnicas e culturais dos povos que ali viviam (SERIACOPI, Gislane
Campos Azevedo. SERIACOPI, Reinaldo. História: volume único. São
Paulo: Ática, 2005. p. 336).
[Sobre a Partilha da África]: Mais de 90% do território africano foi
dominado por nações europeias entre a segunda metade do século XIX e o
início do século XX. A divisão do território africano (...) resultou em um
processo iniciado no século XIX. Na Conferência de Berlim, que aconteceu
de novembro de 1884 a fevereiro de 1885, reunindo representantes dos
Estados Unidos, da Rússia e de outros 14 países europeus, foram definidos
os critérios para a conquista dos territórios da África que ainda eram livres
(COTRIM, Gilberto. História global. Volume único. São Paulo: Saraiva,
2005. p. 332).
Os dois exemplos são de livros didáticos brasileiros direcionados ao Ensino Médio, e
resumem a interpretação do tema que predomina na historiografia hegemônica, como
demonstra um dos estudos acadêmicos mais respeitados e consultados no Brasil sobre o
assunto: o livro Dividir para dominar: A Partilha da África, 1880-1914, do historiador Henk
L. Wesseling. A postura assumida pelo autor é marcadamente eurocêntrica, afirmando logo de
inìcio que em seu livro a África “aparece sobretudo como um objeto de interesse dos
europeus” e que, embora o papel dos africanos não tenha sido puramente passivo, entre 1905
e 1940 “a história da África foi obviamente feita mais pelos europeus do que pelos africanos.
Por isso é que as decisões e opiniões dos europeus ocupam um lugar central neste livro”
(WESSELING, 2008, p. 12). De modo que, sendo fiel a essa sua interpretação, afirma que o
propósito de seu livro é descrever a história da Partilha da África, história que segundo o autor
125

foi tão breve quanto espetacular. Quando a partilha começou, por volta de
1880, a expansão europeia em outras partes do mundo já se desenvolvia há
séculos (...). Os europeus adotaram o processo de repartir o continente a uma
velocidade estonteante. Vinte anos depois, a partilha estava quase terminada.
O que restou não passava de um pós-escrito. Quase toda a África, mas de 17
milhões de quilômetros quadrados, fora colocada sob o domínio europeu.
(...) Próximo ao final do século, os europeus governavam virtualmente o
continente inteiro, uma área equivalente a cerca de 10 vezes o da Índia
(WESSELING, 2008, p. 13).
Definição basicamente igual à que consta nos livros didáticos. A partilha da África
negra, de Henri Brunschwig (BRUNSCHWIG, 2006), outro livro tomado como referência
sobre a temática, comparte desse mesmo modo de entender e interpretar o fenômeno, a partir
de um prisma eminentemente eurocêntrico. Em determinada altura de sua descrição da
„Partilha‟, Brunschwig afirma que

a evolução da humanidade é comandada não pela força bruta – os bárbaros


amiúde adotam a cultura dos vencidos – mas pela técnica mais avançada. Os
povos dependentes continuam a sê-lo até o dia em que se apropriam dessas
técnicas e contribuem para o seu progresso. Eles se tornam então capazes de
invenção, e cada invenção cava o túmulo de uma tradição (BRUNSCHWIG,
2006, p. 60).
Sem almejar criar polêmica, pode ser dito que mesmo historiadores africanos
renomados, como Joseph Ki-Zerbo, compartilham até certo ponto de tais interpretações de
raiz eurocêntrica, ao afirmar, por exemplo, que, em função da Revolução Industrial, as
necessidades da Europa eram radicalmente novas e que portanto “a idade mecânica impunha à
África um novo papel a desempenhar no desenvolvimento europeu”, daì a „Partilha‟ (KI-
ZERBO, 2002, p. 68). Digo isso com o mesmo respeito que demonstra Alfredo Bosi ao
propor uma “prudente retificação semântica” de alguns termos e expressões utilizadas pelos
mestres Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda na descrição do contato entre europeus
e ameríndios, colonizadores e colonizados, tais como “assimilação”, “processo de feliz
aclimação” ou “solidariedade cultural”. Segundo Bosi, “o uso desse vocabulário poderá levar
o leitor menos avisado a supor que os povos em interação se tornaram símiles e solidários no
seu cotidiano”, e conduzir também a uma sutil sublimação que “relativiza o contexto de
agressão” em que se deu esse contato, onde o colonizador sempre recorreu à força para tirar
bom proveito para si dos usos e costumes de africanos e ameríndios (BOSI, 1992, pp. 27-29).
É possível que esta dissertação incorra, ela mesma, no uso vicioso de linguagem com carga
semântica eurocêntrica, mas há esforço consciente a fim de evitá-la, e principalmente um forte
questionamento a este modo acima citado de interpretar de se interpretar a chamada „Partilha
da África‟. Seguramente este não é o primeiro estudo a não aceitar essa maneira de interpretar
tal fenômeno, que atribui ao continente africano “um papel de mero apêndice da história da
126

civilização ocidental” (HERNANDEZ, 2005, p. 83). Antes de discorrer sobre a dita partilha, a
fim de averiguar a maneira como esta foi colocada em prática simbólica e concretamente,
convém tentar entender em que contexto essa interpretação do fenômeno „Partilha da África‟
se encaixa: a consolidação da racionalidade europeia.

A ascensão da burguesia ao poder político e econômico na Europa no decorrer dos


últimos séculos, afirmada anteriormente, tem um desdobramento importantíssimo, que corre o
risco de às vezes ser entendido como se fosse um evento independente: o surgimento da
ciência „moderna‟. Boaventura de Sousa Santos não deixa dúvidas: “O modelo de
racionalidade que preside à ciência moderna constituiu-se a partir da revolução científica do
século XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes basicamente no domínio das ciências
naturais” (SANTOS, 2010, p. 20,21). Isto é, o desenvolvimento da ciência e da racionalidade
europeias (denominadas „modernas‟) ocorre, não por obra do acaso, simultaneamente ao
processo que tornou a burguesia a classe dirigente do continente europeu. Assim como a
burguesia enfrentou obstáculos sociais e políticos para se firmar, a ciência moderna também
teve que lidar com uma série de „obstáculos epistemológicos‟, na expressão de Gaston
Bachelard utilizada por Paolo Rossi (ROSSI, 2001, p. 29). Esses obstáculos são definidos
como todas aquelas “convicções (deduzidas tanto do saber comum como também do saber
científico) que tendem a impedir toda ruptura ou descontinuidade no crescimento do saber
científico, e, por conseguinte, constituem obstáculos poderosíssimos para a afirmação de
novas verdades” (ROSSI, 2001, p. 29), e não eram de caráter meramente intelectual, mas
podiam ter, e tinham, repercussão mesmo na integridade física dos que militavam pela
inovação – que o digam Galileu e Giordano Bruno. Poder-se-ia dedicar um capítulo inteiro
(ou uma biblioteca inteira) à relação entre os fenômenos da ascensão política da burguesia e a
ascensão da ciência moderna, mas aqui só será referido o indispensável no que toca ao nosso
problema, a fim de evitar o risco de um distanciamento do objeto de atenção: a imagem da
África. As teorizações do sociólogo e historiador Immanuel Wallerstein sobre o tema serão o
fio condutor do percurso nesse sentido seguido pela dissertação, sendo adequado apresentar
sucintamente o que vem a ser o conceito de economia-mundo defendido por esse intelectual,
relativamente ainda pouco lido na academia brasileira. Autor de uma influente obra publicada
originalmente em três volumes, entre 1974 e 1989, intitulada The Modern World-System33,
Wallerstein é considerado uma das maiores autoridades contemporâneas sobre

33
Na tradução portuguesa: O sistema mundial moderno, em três volumes (WALLERSTEIN, 1990).
127

macroeconomia mundial. A publicação do primeiro volume de The Modern World-System,


em verdade, “demarca o surgimento de uma nova modalidade de reflexão, com uma
problemática razoavelmente bem definida e um campo conceitual próprio” (MARIUTTI,
2009, p. 35). Wallerstein define sistema-mundo como

um sistema social que possui limites (potencialmente variáveis), estruturas,


regras de legitimação e um certo grau de coerência. É dinâmico, pois os
grupos que existem em seu interior estão constantemente envolvidos em uma
luta para modelar o sistema em seu proveito. Sinteticamente: o que
caracteriza um sistema-mundo é o fato da sua dinâmica ser, em grande
medida, interna (autocontida). (...) Uma economia-mundo é um sistema-
mundo que não é englobado por nenhuma entidade política unitária.
(MARIUTTI, 2009, p. 45,46. Grifo meu).
De modo que, ao longo da história, existiram diversas economias-mundo (persa,
romana, chinesa etc.), cujo desfecho sempre foi ou a desintegração ou a transformação em
império-mundo (quando uma economia-mundo desenvolve uma estrutura política que a
engloba, ou é englobada por uma força política em expansão). Esse conceito começa a
interessar ao objeto de pesquisa desta dissertação no seguinte ponto:

Há de fato um sistema-mundo moderno diferente de todos os anteriores.


Trata-se de uma economia-mundo capitalista que nasceu no longo século
XVI, na Europa e na América. E, assim que conseguiu se consolidar, seguiu
sua lógica interna e sua necessidade estrutural de se expandir
geograficamente. Desenvolveu competência militar e tecnológica para
conseguir isso e, portanto, incorporou uma após outra todas as partes do
mundo até abarcar o globo inteiro em certo momento do século XIX
(WALLERSTEIN, 2007, p. 82).
O principal elemento que distingue a economia-mundo capitalista de qualquer outra
economia-mundo anterior, apontado por Wallerstein como o „segredo de sua força‟, é que ela
“não se desintegrou, não formou uma entidade política unitária e não foi conquistada por
nenhum império-mundo” (MARIUTTI, 2009, p. 46). Como já dito anteriormente, o princìpio
que orienta e confere sentido à economia-mundo capitalista, o núcleo de onde emanam todos
os seus significados, é o acúmulo incessante de capitais. Todos os outros aspectos integrantes
dessa economia-mundo são elaborados em relação a esse princípio, mesmo que não em uma
relação de causalidade estrita, mas estando intimamente relacionados. Incluem-se nessa
categoria a ciência e a racionalidade modernas, como Wallerstein aponta ao afirmar que “as
estruturas de saber não estão divorciadas do funcionamento básico do sistema-mundo
moderno” (WALLERSTEIN, 2007, p. 94). Eduardo Barros Mariutti faz uma sìntese do
pensamento de Immanuel Wallerstein que condensa essa problemática (no que diz respeito à
formação das ciências sociais, período posterior e que tem como base o estabelecimento das
ciências naturais com Galileu, Newton, Bacon e Copérnico, que por sua vez também mantêm
128

o mesmo vínculo com a economia-mundo capitalista), poupando aqui uma tergiversação a


respeito. Suas palavras:

Há uma forte correlação entre a formação do sistema mundial capitalista e o


estabelecimento da ciência “moderna”. (...) Há uma conexão entre a
consolidação de uma economia-mundo baseada no modo de produção
capitalista no “Ocidente” em expansão 1640-1815) e a constituição das
ciências sociais 1850-1914[45?]), isto é, a formação de um domínio
específico do conhecimento, dividido em disciplinas supostamente
autônomas (antropologia, ciência política, economia, geografia, história e
sociologia) e, também, a criação de um aparato institucional capaz de
preservar e fomentar a especialização do conhecimento. Isto ocorre em
conjunto com a conversão da economia-mundo europeia em um
empreendimento realmente global (1815-1917), que reforça a divisão do
conhecimento estabelecida no núcleo do sistema e a impõe sobre
praticamente todo o planeta (MARIUTTI, 2009, p. 38).
Na concepção de Wallerstein, essas estruturas de saber “são elemento essencial do
funcionamento e da legitimação das estruturas políticas, econômicas e sociais do sistema. As
estruturas do saber desenvolveram-se historicamente em formas úteis à manutenção do nosso
sistema-mundo vigente” (WALLERSTEIN, 2007, p. 94). O ponto chave que desejo abordar, a
fim de reconduzir o estudo para a imagem do continente africano, são os meios de
legitimação da economia-mundo capitalista, pois “a realidade do poder no sistema-mundo
moderno configurou, nos últimos quinhentos anos, uma série de ideias legitimadoras que
tornaram possível, aos que têm poder, mantê-lo” (WALLERSTEIN, 2007, p. 109). A
eficiência extrema com que esse sistema funciona há pelo menos quatro séculos, tendo sido
capaz de “obter uma expansão extraordinária de tecnologia e riqueza”, principalmente
levando em conta que “só foi capaz disso à custa de uma polarização cada vez maior do
sistema-mundo entre os 20% superiores e os 80% inferiores” (WALLERSTEIN, 2007, p. 89),
é talvez o mais contundente indicativo da força que possuem os argumentos legitimadores que
o sustentam. Quais são esses argumentos?

No capítulo anterior desta dissertação já foram feitas referências às maneiras como tais
argumentos se apresentam, quando da discussão sobre os modos estereotipados de
representação do Outro. Adentremos agora especificamente na maneira como o sistema-
mundo capitalista, através das estruturas de saber que desenvolveu, representa a todo o Outro,
ou seja, todo o não-europeu, e como essa representação busca legitimar a dominação desse
Outro. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a institucionalização e a própria criação
desse sistema-mundo não seria possível sem o recurso à violência. Ela é a primeira
legitimadora do poder. Como afirmou Henry David Thoureau, o ativista político
estadunidense que, em meados do século XIX desenvolveu a noção de desobediência civil,
129

referindo-se ao sistema democrático de poder, “o motivo prático pelo qual se admite o


governo da maioria e sua continuidade não é sua maior tendência a emitir bons juízos (...),
mas sim porque esta maioria é fisicamente mais forte” (THOUREAU, 2001, p. 15). Se isso é
verdade para a manutenção do poder „da maioria‟, como supostamente ocorre em um sistema
democrático (suposição contestada por Thoureau), quanto mais em um sistema-mundo onde o
poder é exercido por uma diminuta minoria. O uso da força foi necessário a cada degrau que a
burguesia subia na pirâmide social europeia, e indispensável quando da expansão de sua
influência para fora dos limites do seu continente de origem. O controle de grandes
populações, as „revoluções‟ sob medida para que houvesse mudanças polìticas mas não
sociais, a repressão tanto das forças reacionárias do ancien régime quanto das forças de
vanguarda populares, todos esses fatores tornaram imprescindível para a burguesia a
formação de um braço armado que tornasse a violência extrema um recurso utilizável assim
que se fizesse necessário. Porém, Wallerstein lembra-nos que, historicamente, “uma força
superior, mesmo que avassaladora, nunca foi suficiente para criar uma dominação duradoura”
(WALLERSTEIN, 2007, p. 110). Se não fosse assim, a superioridade bélica da legião romana
frente a praticamente qualquer outro exército de sua época teria eliminado a possibilidade de
declínio do domínio dos césares sobre a terra, por exemplo. Por tal razão, Wallerstein afirma
que

os poderosos sempre precisaram conquistar algum grau de legitimidade para


as vantagens e privilégios que acompanham sua dominação. Precisaram
obter essa legitimação, em primeiro lugar, entre seus quadros, que eram
como correias de transmissão humanas essenciais ao poder e sem os quais
não poderiam impor-se ao grupo maior formado pelos dominados. Mas
também precisavam de certa legitimação perante aqueles que eram
dominados e isso foi muita mais difícil do que obter a anuência de seus
próprios quadros, que afinal eram diretamente recompensados por
desempenhar o papel que lhes cabia (WALLERSTEIN, 2007, p. 110).
Para Edward Said, “o principal componente da cultura europeia é precisamente o que
tornou hegemônica essa cultura, dentro e fora da Europa: a ideia de uma identidade europeia
superior a todos os povos e culturas não europeus” (SAID, 2007, p. 34. Grifo meu).
Basicamente, as várias doutrinas que foram desenvolvidas para justificar a expansão do
sistema-mundo moderno – expansão que na maior parte dos casos se traduziu em „conquistas
militares, exploração econômica e injustiças em massa‟ – buscaram legitimar essa expansão a
partir da suposta existência de um bem maior (supostamente universal) que, apesar das
“inconveniências”, é hipoteticamente disseminado pelos europeus onde quer que a bússola do
lucro conduza-os. Ou seja, em todas as doutrinas adotadas ao longo do tempo, é tomado como
pressuposto o fato de que os dominadores são intrinsecamente superiores às demais
130

populações do mundo, pois possuem alguma coisa “boa” que os outros não possuem, e então
cabe a esses dominadores a responsabilidade de distribuir esse “bem” mundo afora. A
natureza de tal “bem” variou pelos séculos: no primeiro momento da expansão, a partir do
século XVI tratava-se da „lei natural‟ e do cristianismo, que objetivava „salvar‟ as almas e os
corpos dos ameríndios. Quando da consolidação da dominação mundial, no século XIX, esse
“bem” passou a ser a ser resumido na ideia de missão civilizadora, que, nas palavras de
Edward Said, “tem como pressuposto a ideia de que algumas raças e culturas têm um objetivo
mais elevado na vida do que outras” (SAID, 2003, p. 321), o que daria ao mais poderoso o
status de mais „civilizado‟ e confere à colonização traços de nobreza, popularizada na
expressão „fardo do homem branco‟34, isso com base em teorias pseudocientíficas. No
próximo capìtulo veremos em que esse “bem” foi convertido no final do século XX e começo
do século XXI.

As práticas concretas correspondentes ao “altruìsmo” com que os agentes da burguesia


europeia espalham o “bem” mundo afora – seria preciso revisar aqui todos os massacres de
povos e culturas infligidos sob essa justificativa? –, porém, fez com que tais legitimações
fossem contestadas tanto pelas populações submetidas quanto por setores da própria
intelectualidade dominante35. Assim sendo, “a história do sistema-mundo moderno envolveu
igualmente um constante debate intelectual sobre a moralidade do próprio sistema”
(WALLERSTEIN, 2007, p. 30). Wallerstein aponta o debate público sobre o direito de
intervenção empreendido pelos religiosos Bartolomé de las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda,
no contexto da catequização e submissão forçada de ameríndios pelos invasores espanhóis, no
século XVI, como essencial para toda a compreensão do sistema moral e político do sistema-
mundo moderno, tendo desde então havido apenas releituras dos principais argumentos dos
dois contendores36. Vale recordar que Las Casas, perante as autoridades reais espanholas,

34
"The White Man's Burden" ("O Fardo do Homem Branco") é o título de um poema escrito em 1899 pelo
britânico Rudyard Kipling, um dos luminares culturais da era imperialista. O poema celebrava a conquista das
Filipinas pelos EUA, e a expressão que lhe dá título se consagrou como resumo de uma percepção do
Imperialismo como um empreendimento nobre. Pode ser lido na íntegra em
http://pt.wikisource.org/wiki/O_fardo_do_Homem_Branco Acesso em 20/02/2012.
35
Para citar apenas alguns exemplos de intelectuais de origem eucocêntrica que se postaram contra a colonização
ao longo da expansão do sistema-mundo moderno, podemos lembrar nomes célebres como Michel de
Montaigne, Jonathan Swift, Denis Diderot, Mark Twain e Jean-Paul Sartre.
36
Para mais detalhes sobre o debate entre Sepúlveda e Las Casas, consultar “Lenda cor-de-rosa e lenda negra”,
capítulo 5 de FERRO (1996, p. 194), em especial o tópico “Bartolomeu de las Casas e a defesa dos
colonizados”, assim como “Quem tem o direito de intervir? Os valores universais contra a barbárie”, capítulo
1 de WALLERSTEIN (2007, p. 19). É pertinente ressaltar que o humanismo de Las Casas se restringia à
concepção de que os ameríndios deveriam ser poupados por poderem ser convertidos à fé católica, sendo para
ele o alvo correto do extermìnio o “infiel” muçulmano, além de defender e buscar legitimar e regulamentar a
escravidão de africanos (Cf. SOUZA, 2006).
131

denunciou e censurou duramente as injustiças causadas pelo sistema de encomiendas,


enquanto Sepúlveda buscou refutar sistematicamente, tanto do ponto de vista intelectual
quanto teológico, os argumentos de Las Casas. Eis o que, em sua opinião, justificava a
dominação dos europeus sobre os amerìndios: 1) estes são „bárbaros‟, 2) devem aceitar o jugo
espanhol como punição por seus crimes contra a lei divina e natural, 3) “os espanhóis são
obrigados, pela lei divina e natural a „impedir o mal e as grandes calamidades [que os ìndios]
infligiram‟” e 4) „o domìnio espanhol facilita a evangelização cristã‟ (Apud WALLERSTEIN,
2007, p. 34). Resumindo,

esses são os quatro argumentos básicos que têm sido usados para justificar
todas as “intervenções” subsequentes dos “civilizados” do mundo moderno
em zonas “não-civilizadas”: a barbárie dos outros, o fim de práticas que
violam os valores universais, a defesa de inocentes em meio aos cruéis e a
possibilidade de disseminar valores universais. Mas é claro que essas
intervenções só podem ser realizadas quando se tem poder político-militar
para isso (WALLERSTEIN, 2007, p. 35).
Todas as legitimações, inclusive científicas, para a expansão violenta do sistema-
mundo capitalista, são variações desses quatro argumentos. O que Edward Said notabilizou
como Orientalismo, por exemplo, não é nada mais que um dos desdobramentos do „modo
Sepúlveda‟. Senão vejamos, o liame entre as estruturas de saber eurocêntricas e o pressuposto
de superioridade dos povos europeus é ressaltado por Mariutti na continuação de sua
exposição do pensamento de Wallerstein, segundo quem a correlação entre esses fatores “fica
ainda mais nítida se levarmos em conta a grande questão que subjaz a todas as disciplinas das
ciências sociais: explicar a ascensão do “Ocidente”, isto é, explicar o processo geral do qual
as próprias ciências sociais são uma expressão” (MARIUTTI, 2009, p. 38). As próprias
denominações que o fenômeno tem recebido, tais como “expansão da Europa”, “origem da
modernidade”, “transição do feudalismo para o capitalismo” e “milagre europeu”,
demonstram como essas explicações estão sempre comprometidas com a visão eurocêntrica,
partindo de visões apriorísticas da realidade que entendem sempre a Europa como superior ou
central.

Wallerstein chama de „explicações civilizacionais‟ a estas explicações eurocêntricas


para a dominação do sistema-mundo capitalista, incluindo-se nesse rol

todas as interpretações que, em alguma medida, repousam no princípio de


que a singularidade do desenvolvimento ocidental iniciado no século XVI
(XVII ou XVIII) decorre de algum elemento estrutural ou de alguma
característica civilizatória que remonta a um fenômeno muito mais antigo
(MARIUTTI, 2009, p. 40).
132

É um exemplo a explicação proposta por Max Weber para a questão que ele mesmo se
propõe a responder no primeiro parágrafo da sua introdução d‟A ética protestante e o espírito
do capitalismo, a saber:

Ao estudarmos qualquer problema da história universal, o produto da


moderna civilização europeia estará sujeito à indagação de quais
combinações de circunstâncias se pode atribuir o fato de na civilização
ocidental, e só nela, terem aparecido fenômenos culturais que, como
queremos crer, apresentam uma linha de desenvolvimento de significado e
valor universais (WEBER, 1976, p. 3).
Isto é, antes de tudo, Weber parte do (seu) presente para o passado, atribuindo valor no
presente unicamente às manifestações culturais e científicas oriundas da Europa, o paradoxal
universalismo não-universal, universalismo europeu, a que Wallerstein faz diversas
referências. Como afirma E. Mariutti, “sabendo de antemão que o capitalismo surgiu no
Ocidente, Weber isolou algumas das suas caracterìsticas mais importantes” (MARIUTTI,
2009, p. 40), a seguir, comparou elementos que outras civilizações tiveram em comum com a
sociedade europeia moderna, chegando à conclusão praticamente automática de que se,
mesmo tendo elementos em comum, o capitalismo surgiu apenas na Europa e em nenhuma
outra civilização, é porque o „Ocidente‟ possui uma caracterìstica civilizacional e cultural que
lhe proporcionou esta „vantagem‟: a sua remota herança judaico-cristã. Outro exemplo de
explicação de cunho civilizacional é a construída pelo historiador Perry Anderson nas obras
Passagens da Antiguidade ao Feudalismo e Linhagens do Estado Absolutista, que atribuem o
surgimento do capitalismo na Europa ao legado romano, preservado pela Igreja Católica
(ANDERSON, 1989; 1995). A obra Armas, germes e aço, vencedora do prêmio Pulitzer de
melhor livro científico de 1998, do ornitólogo Jared Diamond, trouxe recentemente uma
„nova‟ explicação civilizacional para o sistema-mundo capitalista e o predomínio da cultura
eurocêntrica. O cientista tece um longo argumento que atribui a fatores geográficos e
biológicos a razão de os europeus terem dominado os africanos e asiáticos, e não o contrário.
De certo modo, o livro resgata o determinismo ambiental de figuras como Friedrich Ratzel,
geógrafo alemão do século XIX apontado como fundador do determinismo geográfico
moderno, vestindo-o com uma roupagem teórica apresentável para o século XXI
(DIAMOND, 2001). Diga-se, de passagem, que há também no presente historiadores que
defendem o determinismo ambiental como fator preponderante no sucesso das relações
internacionais, como o inglês Ian Morris, segundo quem “a geografia determina o nìvel de
133

desenvolvimento”.37 Ou seja, simplificando ao extremo, as explicações civilizacionais (das


quais foram citadas somente alguns exemplos) apenas tecem argumentos para justificar a
dominação mundial europeia partindo de alguma suposta característica superior intrínseca à
Europa, renovando a argumentação de Sepúlveda. Só mudam os fatores, mas a equação é
basicamente a mesma. Segundo Wallerstein, a base dessas explicações é de uma simplicidade
notável:

Só a “civilização” europeia, com raìzes no mundo greco-romano antigo (e


para alguns também no Velho Testamento), poderia produzir a
“modernidade” (...) por definição, a modernidade era a encarnação dos
verdadeiros valores universais, do universalismo, ela não seria meramente
um bem moral, mas uma necessidade histórica (WALLERSTEIN, 2007, p.
66).
A racionalidade europeia é predominantemente ideológica. Precisamos recorrer à
noção de longa duração para compreender que ela está intrinsecamente ligada ao projeto
político-ideológico da burguesia daquele continente; qualquer interpretação que essa
racionalidade faça de outros povos está, portanto, comprometida com os interesses que
orientam essa ideologia38. Referindo-se ao determinismo biológico, que veremos logo adiante,
Stephen Jay Gould, o biólogo evolucionista e historiador da ciência conhecido por ser um dos
maiores divulgadores científicos no século XX, o situa na longa duração e afirma que

as justificativas para se estabelecer uma hierarquia entre os grupos sociais de


acordo com seus valores inatos têm variado conforme os fluxos e refluxos da
história do ocidente. Platão apoiou-se na dialética; a igreja valeu-se do
dogma. Nos dois últimos séculos, as afirmativas científicas converteram-se
na principal justificativa (GOULD, 1991, pp. 3,4).
No contato com o diferente, o Outro, este passa a ser rotulado, “racionalmente”, dentro
de sistemas classificatórios que o adequem ao discurso instituído. E a racionalidade europeia
constituiu rigorosos parâmetros para enquadrar, recortar, matizar, diferenciar o que pode ser
considerado “normal” e “aceitável”, tanto dentro do próprio sistema quanto fora dele,
reservando para tudo aquilo que fica às margens desses padrões, tudo que apresente
comportamento desviante em relação à norma estabelecida, lugares específicos (físicos e
simbólicos) de rejeição. No plano interno, só a título de exemplo, podemos lembrar o

37
Fonte: http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/desenvolvimento/entrevista-ian-morris-geografia-sempre-
vence-650505.shtml Acessado em 19/02/2012.
38
Não se trata de uma percepção determinista ou maquiavélica da cultura europeia; desde já é interessante
ressaltar que compartilho o modo como Edward Said entende essa ligação, conforme apresenta no seguinte
trecho: “Acreditar que a política na forma de imperialismo tenha relação com a produção de literatura, erudição,
teoria social e escritos históricos não equivale de modo algum a dizer que a cultura é, portanto, algo aviltado ou
difamado. Bem ao contrário: (...) podemos compreender melhor a persistência e a durabilidade de sistemas
hegemônicos saturadores como a cultura quando percebemos que suas coerções internas sobre os escritores e os
pensadores foram produtivas, e não unilateralmente inibidoras” (SAID, 2007, p. 43).
134

arquétipo de comportamento desviante das aspirações capitalistas analisado por Michel


Foucault em um de seus mais conhecidos estudos: a loucura, que, não fortuitamente, passa na
modernidade a ter um lugar segregado dentro da sociedade europeia, o hospício
(FOUCAULT, 1978). Como afirma Wallerstein, “o princìpio fundamental da economia-
mundo capitalista é a acumulação incessante de capital. Essa é sua razão de ser e todas as suas
instituições se guiam pela necessidade de realizar esse objetivo, recompensar quem consegue
e punir quem não consegue” (WALLERSTEIN, 2007, p. 88). Não estando, evidentemente, os
loucos empenhados na consecução desse objetivo, são convertidos, pela racionalidade
moderna, em um Outro estigmatizado simbolicamente e segregado fisicamente. A essa altura,

a História e o direito ocidental haviam codificado o que era a civilização – e


o seu vínculo com o cristianismo também. (...) Um conceito cultural, a
civilização, e um sistema de valores tinham função econômica e política
precisa. (...) Os que não se conformavam com isso viravam criminosos,
delinquentes, passíveis, portanto, de punição (FERRO, 1996, p.40).
No plano exterior à sociedade europeia, um exemplo de ligação entre racionalidade e
ideologia burguesas que „criminalizava‟ o diferente é o caso do Systema naturae (1735), obra
fundamental do naturalista sueco Carl Linné (Lineu, na forma aportuguesada), que a princípio
ordena o reino vegetal, mas cujo método é ampliado e passa a enquadrar também os povos do
mundo. Mary Louise Pratt o analisa minuciosamente, e assim classifica a importância desse
livro para o imaginário europeu:

Encontrava-se aí uma criação extraordinária que teria profundo e duradouro


impacto não apenas sobre as viagens e os relatos de viagem, mas na maneira
geral dos cidadãos europeus construírem e compreenderem seu lugar no
planeta (PRATT, 1999, p. 55).
Constituía um esquema simples que, segundo Lineu, poderia abarcar todas as plantas
da terra, conhecidas e desconhecidas dos europeus, uma classificação descrita pelo próprio
como o “fio de Ariadne em botânica”, sem o qual “só existe o caos” (PRATT, 1999, p. 56).
Extrapolando os domínios do reino vegetal, o esquema de Lineu passa a ser utilizado para
classificar o Homo sapiens em variações de acordo com a região geográfica, com o homem
europeu conceituado como o acme de uma suposta escala evolutiva da humanidade. Ainda
que não intencionalmente, Lineu colabora fundamentalmente na resposta à famosa pergunta
sobre “como é possìvel ser persa?” feita pelo barão de Montesquieu poucos anos antes, nas
suas Cartas persas (1721) (MONTESQUIEU, 2002), pergunta que denunciava o
desconhecimento europeu em relação ao restante do mundo: agora o europeu se sabe superior,
portanto “ser persa” é ser inferior, e tal percepção será fundamental na construção das
legitimações e justificativas para o processo de expansão e domínio do Outro.
135

Para além de um simples instrumento científico, este sistema classificatório integra um


discurso político-ideológico e contribui na justificação da dominação europeia. Isso porque o
que impulsionou a expansão europeia nunca foi meramente um desejo de alargar as fronteiras
do conhecimento, mas sim, ainda que não renegasse esse desejo, o objetivo concreto de
extrair qualquer lucro possível desse conhecimento ampliado, como aponta Alexsander
Gebara ao comentar as razões dos altos investimentos da Royal Geographical Society
(sociedade erudita fundada na Inglaterra em 1830) em expedições „cientìficas‟ no decorrer de
todo o oitocentos:

O financiamento da RGS. para estas viagens é bastante esclarecedor quanto


aos objetivos explícitos destes empreendimentos, quais sejam, tornar
conhecidas regiões estranhas à Europa, preencher vazios nos mapas
europeus e possivelmente abrir caminho para o desenvolvimento de
atividades comerciais. Além disto, a relação entre a RGS e o Império
britânico são praticamente diretas. Segundo Robert Stafford, “durante todo o
século dezenove, a Inglaterra sustentou um programa de exploração
cientìfica ligado diretamente com seus interesses comerciais e imperiais”
(GEBARA, 2010, P. 25).
Assim sendo, essa expansão pressupõe a „necessidade‟ de dominação de qualquer
Outro encontrado no percurso. Compreendemos a representação negativa do Outro recorrendo
mais uma vez a Wallerstein, segundo quem a dominação, “ao contrário do mero contato, não
tolera ideias de paridade cultural. O dominante precisa sentir que se justifica moral e
historicamente como grupo dominante e principal receptor do excedente econômico
produzido dentro do sistema” (WALLERSTEIN, 2007, p. 65), existindo então de modo
premente e constante a “necessidade de explicar por que essas regiões deveriam ser polìtica e
economicamente subordinadas à Europa” (WALLERSTEIN, 2007, p. 66).

O brilhante estudo de Mary Louise Pratt intitulado Os olhos do império: relatos de


viagem e transculturação (PRATT, 1999) dá conta do percurso de formação da consciência
europeia que se autoafirma universal, que venho chamando, em acordo com os usos feitos por
essa autora e por autores como Shohat e Stam, de pensamento eurocêntrico. As bases desse
pensamento, que instituem seu apelo moral, são estabelecidas pelas noções da religiosidade
cristã aplicadas no início da expansão marítima; nos setecentos, com a retórica científica
ocupando um espaço cada vez maior, a sistematização da natureza empreendida pela
intelectualidade europeia – inaugurada pela publicação do Systema Naturae e pela primeira
expedição científica internacional da Europa, liderada pelo geógrafo Charles de la
Condamine, ambos eventos ocorridos em 1735 – representa o passo seguinte no “projeto
europeu de construção do conhecimento que criou um novo tipo de consciência planetária”
136

(PRATT, 1999, p. 78). Pratt atribui uma grande importância ao projeto da história natural,
pois a partir do estabelecimento dos seus padrões de autoridade – o urbano, letrado e
masculino como superior em qualquer parte do planeta (por isso o uso constante do termo
“homem europeu” nesta dissertação) – se estabelecem uma série de práticas semânticas e
sociais que serão determinantes em todo o discurso produzido pela Europa sobre o Outro a
partir de então.

A demonstração mais contundente da ligação entre racionalidade e ideologia, passo


dado nos oitocentos, é o racismo embasado em preceitos pseudocientíficos, que configurou o
auge do percurso feito pela consciência europeia moderna. Em função de ter levado, no correr
da Segunda Guerra Mundial, às últimas consequências a lógica que orienta o racismo – o
extermínio da raça presumida pseudocientificamente inferior – é usual que se atribua à
Alemanha a criação do racismo, mas este era um denominador comum à toda Europa no
século XIX, fazia parte da cultura científica e era aceito como verdade pura e simples, acima
de questionamentos. O Holocausto nazista é um divisor de águas, e a partir dele a ideia de
extermínio em função da raça passa a ser considerada hedionda. Segundo H. Arendt, o que
acontece no século XIX é apenas a explosão em vários países europeus (com respaldo
pseudocientífico) de um sentimento que vinha sendo gestado desde o século anterior, e
nomeia especificamente o homem que articulou todas as tendências racistas, muitas vezes
antagônicas, criando uma “nova chave da história”: o conde francês Arthur de Gobineau.
Arendt explica que “nem mesmo a escravidão, embora estabelecida em base estritamente
racial, engendrou ideologias racistas entre os povos escravizadores antes do século XIX”,
citando Tocqueville quando afirmou que o século XVIII “acreditava na variedade de raças,
mas na unidade da espécie humana” (ARENDT, 1989, P. 207).

Porém, na primeira metade do século XIX o empreendimento expansionista passava


por mais uma crise de legitimidade, em função principalmente da Revolução Francesa, que
fez surgir compreensìveis “contradições entre ideologias domésticas igualitárias e
democráticas, de um lado, e, de outro, implacáveis estruturas de dominação e extermínio no
exterior” (PRATT, 1999, p. 136). O racismo pseudocientìfico – excelente exemplo da
ginástica teórica que a racionalidade moderna é capaz de fazer para legitimar os
empreendimentos que interessam à classe dirigente do sistema-mundo moderno –, ao
estratificar „cientificamente‟ os povos e assim justificar tratamentos diferentes para povos
diferentes, possibilita o surgimento da ideia de “missão civilizadora”, a ideologia legitimadora
para a expansão europeia no século XIX, que tem suas fundações firmemente estabelecidas
137

nos paradigmas de progresso e desenvolvimento científico. A publicação da obra


revolucionária de Charles Darwin, A origem das espécies por meio da seleção natural, ou a
conservação das raças favorecidas na luta pela vida (1859), “parecia fornecer caução
cientifica aos partidários da supremacia da raça branca, tema que, depois do século XVII,
jamais deixou de estar presente, sob diversas formas, na tradição literária europeia” (ADU
BOHEN, 2010, p. 25); como afirma Stephen Jay Gould, “o pensamento de evolução
transformou o pensamento humano durante o século XIX. Quase todas as questões referentes
às ciências da vida foram reformuladas à luz desse conceito” (GOULD, 1991, p. 111). Hanna
Arendt define de modo preciso como se deu essa virada epistemológica na racionalidade
europeia, e convém citar integralmente o trecho:

Até o período da "corrida para a África", o pensamento racista competia com


muitas ideias livremente expressas que, dentro do ambiente geral de
liberalismo, disputavam entre si a aceitação da opinião pública. Somente
algumas delas chegaram a tornar-se ideologias plenamente desenvolvidas,
isto é, sistemas baseados numa única opinião suficientemente forte para
atrair e persuadir um grupo de pessoas e bastante ampla para orientá-las nas
experiências e situações da vida moderna. Pois a ideologia difere da simples
opinião na medida em que se pretende detentora da chave da história, e em
que julga poder apresentar a solução dos "enigmas do universo" e dominar o
conhecimento íntimo das leis universais "ocultas", que supostamente regem
a natureza e o homem. Poucas ideologias granjearam suficiente
proeminência para sobreviver à dura concorrência da persuasão racional.
Somente duas sobressaíram-se e praticamente derrotaram todas as outras: a
ideologia que interpreta a história como uma luta econômica de classes, e a
que interpreta a história como uma luta natural entre raças (ARENDT, 1989,
p. 189).
O grande “feito” de Gobineau foi articular as diversas correntes de doutrinas
“naturalistas” que pululavam na Europa, e buscavam de um modo ou outro explicar a
desigualdade que existia entre aqueles mesmos seres humanos declarados “iguais” pelas
revoluções burguesas, em uma lei única. Um exemplo dessas doutrinas é o poligenismo
degeneracionista, que negava a relação entre as raças humanas, que teriam se desenvolvido
separadamente e atingido níveis diferentes de evolução – desnecessário dizer que a “raça”
europeia era considerada a mais evoluìda, e alguns povos “atrasados” chegavam a ser
considerados “sem raça”, isto é, não seriam verdadeiros seres humanos. Tratava-se do que
Wallerstein chamaria de mais uma „explicação civilizacional‟, que intentava explicar a razão
de a Europa ser tão “desenvolvida”, na concepção moderna, em relação a outras partes do
mundo. Gobineau, que é descrito por Arendt como uma “curiosa mistura de nobre frustrado e
intelectual romântico”, simplesmente atentou em apontar uma única razão que comandaria a
ascensão e declìnio de todas as civilizações, formulando uma „lei universal‟ que explicaria a
138

existência do dominado e do dominador ao longo de todo o percurso da história: a


„descoberta‟ de que “a queda das civilizações de deve à degenerescência da raça, e que esta,
ao conduzir ao declìnio, é causada pela mistura de sangue” (ARENDT, 1989, p. 293). Como
apontado no trecho acima citado de H. Arendt, a partir dessa ideia, se desenvolveu o conceito
de história como luta entre raças, e a concepção de “racismo cientìfico” 39.

A frase lapidar de S. J. Gould condensa sumamente a relação entre racionalidade


cientìfica e ideologia a que venho me referindo: “o determinismo biológico é um preconceito
social refletido pelos cientistas em sua esfera especìfica de ação” (GOULD, 1991, p. 10). O
assim chamado darwinismo social ganha força por agregar o princípio político de progresso,
tão caro à racionalidade europeia do século XIX, à noção de hereditariedade do poligenismo.
Ao afirmar que todos os homens, ao invés de passados separados, têm na verdade uma origem
comum e que são aparentados inclusive com os outros animais, tornando a sociologia um
ramo da biologia, Herbert Spencer – o “apóstolo do darwinismo social” (GOULD, 1991, p.
115), primeiro filósofo da evolução, ajudou a fornecer “as armas ideológicas para o domìnio
de uma raça ou classe sobre outra” (ARENDT, 1989, p. 208). Segundo H. Arendt, o
darwinismo em si era politicamente neutro, podia ser usado como base e justificativa tanto
para o pacifismo anticolonial – o próprio Spencer “acreditava que a seleção natural era
benéfica à evolução da humanidade e que dela resultaria a paz eterna” (ARENDT, 1989, p.
208) – quanto para as ideologias imperialistas mais virulentas, já que a noção de
„sobrevivência do mais forte‟ como um dado natural, quando aplicada às relações entre povos,
teoricamente legitima a invasão e pilhagem. A eugenia se torna então uma tentativa de
controlar científica e racionalmente o processo da seleção natural, explicando em termos de
pureza racial a existência de uma classe dominante e intentando „melhorar‟ ainda mais essa
„raça‟. Esse pensamento, embora fornecesse argumentos convenientes para diversas
questiúnculas polìticas nos paìses europeus, não possui nenhuma „lógica inerente‟ e não
chegou a ser dominante em nenhum deles até as razões já citadas de „necessidade‟ de
exportação de capitais os levasse à invasão da África:

39
Sobre a temática, recomendo incisivamente a leitura de A falsa medida do homem, onde Stephen Jay Gould
historiciza e demonstra “a debilidade cientìfica e os contextos polìticos dos argumentos deterministas” e tece
uma crìtica abalizada ao, nas suas palavras: “mito que diz ser a ciência uma empresa objetiva, que se realiza
adequadamente apenas quando os cientistas conseguem libertar-se dos condicionamentos de sua cultura e
encarar o mundo como ele realmente é”, defendendo uma compreensão da ciência como fenômeno social,
portanto sujeito a influências culturais (GOULD, 1991, p. 5). Sobre os testes de Q.I. contemporâneos, por
exemplo, que classifica como uma continuação do determinismo biológico do século XIX, Gould afirma que “os
argumentos deterministas para classificar pessoas segundo uma única escala de inteligência, por mais refinados
que fossem numericamente, limitaram-se praticamente a reproduzir um preconceito social” (GOULD, 1991, p.
12).
139

É provável que esse racismo tivesse desaparecido a tempo, juntamente com


outras opiniões irresponsáveis do século XIX, se a corrida para a África e a
nova era do imperialismo não houvessem exposto a população da Europa
ocidental a novas e chocantes experiências. O imperialismo teria exigido a
invenção do racismo como única "explicação" e justificativa de seus atos,
mesmo que nunca houvesse existido uma ideologia racista no mundo
civilizado (ARENDT, 1989, p. 214).
Mas o fato é que o racismo pseudocientífico existiu, e foi utilizado amplamente como
ferramenta legitimadora, justificadora, da opressão e do domínio sobre o outro. A ideia de
raça foi não apenas “uma tentativa de explicar a existência de seres humanos que ficavam à
margem da compreensão dos europeus” (ARENDT, 1989, p. 215), foi um instrumento
político para aliviar a consciência europeia da culpa por uma série de práticas francamente
inconciliáveis com os padrões morais e políticos em uso na própria Europa. A fala de um
funcionário do Imperialismo britânico demonstra:

Provavelmente todo mundo estará de acordo que um inglês tem direito a


considerar que sua forma de entender o mundo e a vida é melhor que a de
um hotentote ou um maori e ninguém se oporá, em princípio, a que a
Inglaterra faça o possível para impor a estes selvagens os critérios e modos
de pensar ingleses, posto que são melhores e mais elevados. Há alguma
possibilidade, por remota que seja, de que num futuro previsível possa
desaparecer o abismo que agora separa os brancos dos negros? Pode haver
alguma dúvida de que o homem branco deve impor e imporá sua civilização
superior sobre as raças de cor? (Apud BRUIT, 1988, p. 9).
A ideia de raça vai dar azo aos terríveis massacres de não-europeus que
caracterizaram a expansão Imperialista, justificados com a hipócrita lenda do "fardo do
homem branco", criada nesse contexto por Rudyard Kipling: “o racismo e a hipocrisia
escondida na definição do “fardo do homem branco” não impediram que alguns dos melhores
homens da Inglaterra a aceitassem seriamente, transformando-se em trágicos e quixotescos
bobos do imperialismo”40 (ARENDT, 1989, p. 240). É pertinente a análise que Alexsander
Gebara faz dos relatos de viagem de Richard Burton: quando em visita a lugares sobre os
quais tinha algum conhecimento (como na famosa viagem à Meca), através da história, da
literatura ou mesmo de lendas orientalistas, a descrição do Outro é feita em termos sociais;
mas quando penetra em regiões da África sobre as quais não conhecia absolutamente nada,
Burton passa a recorrer a explicações raciais (GEBARA, 2010, pp. 38,39).

No próximo tópico será concedida atenção justamente às descrições da África de


viajantes como Burton, mas por hora cabe indagar: como se relaciona a construção moderna

40
Sem falar, obviamente, nas permanências do pensamento racista e nas práticas danosas que engendrou ao
longo do século XX (em especial casos como as leis segregacionistas em vigor no país cuja classe política o
denomina de “terra da liberdade”, os EUA, até a década de 1960, e o inominável regime de Apartheid sul
africano, até os anos 1990) e até nossos dias.
140

da imagem do Outro com a imagem da África, objeto de estudo desta dissertação? Ora, o
estigma de subalternidade atribuído aos povos não-europeus é, num desdobramento lógico,
estendido aos territórios ocupados por esses não-europeus: “a estratégia de inferiorização do
outro foi também estendida ao território habitado pelas populações não-europeias,
impregnando de modo simultâneo o espaço, as sociedades e as culturas dos demais
continentes com todos os signos da negatividade”, sendo o continente africano “laureado pelo
pensamento ocidental com imagens particularmente negativas e excludentes” (SERRANO &
WALDMAN, 2007, p. 24), em função justamente do pouco conhecimento que o europeu
tinha até então a seu respeito, como demonstra o exemplo de Burton.

De modo que aquela imagem negativa da África que permanece na cultura „ocidental‟,
especialmente nos filmes produzidos pela indústria cinematográfica hegemônica, como visto
no capítulo anterior, foi fixada precisamente nesse período e nesse contexto. A racionalidade
moderna, em função do Imperialismo e legitimando-se na ideia da superioridade europeia,
inventa uma África condizente com os interesses da classe dirigente do continente europeu:
inferior em todos os aspectos, sem história e sem cultura, habitada por seres aquém da sua
noção de humanidade. A célebre passagem da Filosofia da história universal em que o
filósofo alemão Friedrich Hegel explica a África para o leitor europeu talvez seja o
monumento escrito que demarca a invenção da África:

A África propriamente dita é a parte característica desse continente.


Começamos pela consideração desse continente, porque em seguida
podemos deixa-lo de lado, por assim dizer. Não tem interesse histórico
próprio, senão o de que os homens vivem ali na barbárie e na selvageria, sem
fornecer nenhum elemento à civilização. Por mais que retrocedamos na
história, acharemos que a África está sempre fechada no contato com o resto
do mundo, é um Eldorado recolhido em si mesmo, é o país criança,
envolvido na escuridão da noite, aquém da luz da história consciente. [...]
nesta parte principal da África, não pode haver história. (...) No estado de
selvageria achamos o africano, enquanto podemos observá-lo e assim tem
permanecido. O negro representa o homem natural em toda a sua barbárie e
violência; para compreendê-lo devemos esquecer todas as representações
europeias. Devemos esquecer deus e a lei moral. Para compreendê-lo
exatamente, devemos abstrair de todo respeito e moralidade, de todo
sentimento. Tudo isso está no homem em seu estado bruto, em cujo caráter
nada se encontra que pareça humano (Apud HERNANDEZ, 2005, p. 20,21).
Em resumo, pode-se dizer que todos os fatores anteriormente arrolados fazem parte de
um gigantesco movimento histórico, surgido na Europa mas de alcance mundial, que atinge
seu clìmax no final do século XIX e no começo do século XX: “a dominação colonial dos
povos nativos, o controle científico e estético da natureza – por meio de esquemas
classificatórios –, a apropriação capitalista dos recursos e a organização do planeta sob um
141

regime pan-óptico” (SHOHAT & STAM, 2006, p. 141) não são fenômenos contemporâneos
por obra do mero acaso, são todos interdependentes. Vejamos a seguir como a África,
inventada pela intelligentsia europeia, foi paulatinamente transformada em senso comum,
tornando-se parte do dia-a-dia do homem europeu, através do que J. Ki-Zerbo chamou de o
“ministério da curiosidade europeia”. Entender o processo de vulgarização da África
inventada é fundamental para compreender como essa imagem pôde permanecer no cinema
ao longo do século XX e nos alcançar em pleno século XXI.
142

O MINISTÉRIO DA CURIOSIDADE EUROPEIA (OU: A ‘PARTILHA DA ÁFRICA’


REALMENTE ACONTECEU? II)

A intrepidez de um grupo de homens europeus do início da era moderna


autocognominados exploradores, os pioneiros na expansão do sistema-mundo capitalista para
fora da Europa, pôs em curso um processo paradoxal em que o seu propósito original,
aumentar as fronteiras do mundo conhecido, se converteu na realidade em sua diminuição,
abolindo as distâncias. Como pondera Hanna Arendt, “nada que possa ser medido pode
permanecer imenso; toda medição reúne pontos distantes e, portanto, estabelece proximidade
onde antes predominava a distância” (ARENDT, 2010, p. 312). De maneira que, na era
moderna, o que fora considerado por homens como o filósofo francês Michel de Montaigne,
na década de 1580, a “descoberta de um paìs infinito” (as Américas), chegando a afirmar que
não se podia “garantir que no futuro não se faça outra” descoberta semelhante
(MONTAIGNE, 2009, p. 45), passou a fazer parte de uma cotidianidade; o mundo deixou de
ser um mistério para o homem europeu e passou a ser uma bola, onde qualquer ponto do
espaço terrestre poderia ser atingido em uma parcela insignificante de uma vida humana, do
ponto de vista temporal: “o mundo já foi grande”, afirma Júlio Verne em 1874 pela boca de
Phileas Fogg, aquele excêntrico personagem que aposta uma fortuna na possibilidade de se
dar a volta ao mundo em apenas oitenta dias, e vence (VERNE, 2006, p. 21).

Os viajantes que tornaram isso possível eram membros dos mais variegados estratos
da fauna humana europeia, e são figuras centrais na constituição da visão do Outro
eurocêntrica, sendo incontestavelmente os portugueses os pioneiros nesse processo. Como
afirma A.J.R. Russel-Wood, as viagens de exploração portuguesas, iniciadas em 1419,
configuraram “um esforço prolongado no tempo, mantido por mais de um século”, atingiram
“todos os continentes à excepção da Antártida e, possivelmente, da Austrália”, fizeram com
que os portugueses se confrontassem “com uma grande diversidade de regimes polìticos e de
práticas comerciais, bem como todas as principais religiões”, e fizeram com que os
portugueses fossem “protagonistas de uma série de “encontros” (...), durante mais de um
século, em África, na Ásia e na América” (RUSSEL-WOOD, 1998, pp. 21,22). Foram os
portugueses os primeiros a contar o mundo para a Europa moderna, tomando como referência
em suas descrições todos os padrões que a racionalidade europeia desenvolvia para ordenar o
mundo. Mas com o papel cada vez menos relevante de Portugal na expansão do sistema-
143

mundo moderno, os viajantes dos países líderes dessa expansão ocuparão paulatinamente o
lugar dos portugueses na descrição do mundo para o europeu.

Eu recuso usar o termo “exploradores” por pressentir que há algo de elogioso em tal
classificação, como define Felipe Fernández-Armesto: “os viajantes se autodenominam
exploradores quando pensam pertencer a uma cultura superior à do povo entre o qual estão
viajando” (FERNÁNDEZ-ARMESTO, 2000, p. 28). Esses viajantes, mais do que homens,
foram uma função: foram os olhos do império, como M.L. Pratt os nomeia no estudo que fez
dos seus relatos. Relatos de viagem são produzidos constantemente durante todo o processo
de expansão do sistema-mundo moderno, mas o século XIX representa o auge desse gênero
de literatura. Nesse século, vai se consolidar uma “vìvida retórica imperial” dos viajantes, que
passam a descrever as “descobertas” geográficas que faziam como “vitórias” inglesas, ou de
seus respectivos países, e incluíam assim a população em geral – para quem não faria a menor
diferença saber onde diabos fica a nascente do Nilo – no empreendimento imperialista
(PRATT, 1999, p. 339,340).

Essa retórica é tão poderosa que é adotada por uma gama de escritores, literatos que
farão uso dos relatos dos viajantes como fonte para empolgantes aventuras de grande apelo
popular nos últimos anos do século XIX e no começo do século XX, como demonstram as
citações de alguns deles no início deste capítulo. Homens que participaram em pessoa do
empreendimento colonial, como o anglo-polonês Joseph Conrad, exercem uma autoridade
narrativa similar à de outros que nunca colocaram sequer um dos pés em solo africano, como
o estadunidense Edgar Rice Burroughs, que é ironicamente o responsável pela imagem mais
solidificada do continente: a casa de Tarzan, o “detestável ìcone colonialista que assinala,
metaforicamente, a suposta incapacidade dos povos africanos de se governarem e de serem
senhores do próprio destino”, nas palavras de Serrano e Waldman, uma vez que “Tarzan
simboliza o homem branco que não sucumbe à selva e cuja índole o transforma no senhor do
meio natural em que vive” (SERRANO & WALDMAN, 2997, p 207). Tarzan, que é o
segundo personagem mais utilizado em filmes na história do cinema, atrás apenas do conde
Drácula. Cinema, indústria que manteve em uso a retórica imperialista nas descrições que fez
da África ao longo do século XX e a trouxe para o século XXI. Detenhamo-nos um pouco nas
descrições imperialistas, a fim de poder ter um parâmetro de comparação com a imagem da
África apresentada pelos filmes contemporâneos, comentada no capítulo anterior. Marc ferro
nos informa que
144

o slogan imperialista teve sucesso (...) porque afagava o amor-próprio e o


orgulho dos que nada possuíam. De sorte que observamos um contraste: a
opinião pública inglesa, que no início do século XIX havia sido cada vez
mais hostil à expansão colonial, constantemente identificada com o tráfico
de escravos e com as humilhações sofridas pela criação dos Estados Unidos,
tornou-se favorável ao imperialismo na medida em que ele glorificava e
defendia os interesses ingleses (FERRO, 1996, p. 32).
J. Ki-Zerbo usa uma expressão alegórica para se referir à rede informacional,
fundamentada em descrições etnológicas, criada na era imperialista para trazer os „exotismos‟
das fronteiras imperiais para o alcance do europeu comum: “a etnologia recebeu procuração
geral para ser o ministério da curiosidade europeia diante dos “nossos nativos”” (KI-ZERBO,
1982, p. 33. Grifo meu). Essa rede incluìa os escritos propriamente „cientìficos‟, os relatos dos
viajantes, a imprensa de grande circulação, as grandes exposições coloniais e os romances.
Em todos esses suportes, prevalecia o discurso etnológico na descrição do Outro, sendo este,
como afirma Ki-Zerbo, “um discurso com premissas explicitamente discriminatórias e
conclusões implicitamente polìticas”, cujo principal pressuposto era a concepção de
“evolução linear: à frente da caravana da humanidade ia a Europa, pioneira da civilização, e
atrás os povos “primitivos” da Oceania, Amazônia e África” (KI-ZERBO, 1982, p. 33). O
objetivo geral de todo esse esforço intelectual, de modo consciente ou não, era tornar as
viagens pelas imensidões africanas (dentre outras „imensidões‟ percorridas pelos viajantes
europeus) um tema atraente para o cidadão comum. Não se tratava este de um objetivo
exatamente fácil de ser alcançado, mas sem dúvida era um bocado atraente: os viajantes já
haviam percebido que “rios de dinheiro e prestìgio dependiam do crédito que conseguissem
fazer com que outros lhe atribuìssem” (PRATT, 1999, p. 343). Porém, os „grandes momentos‟
dessas viagens, como a „descoberta‟ de um lago ou a confirmação da direção para a qual um
rio vira em determinado lugar, constituem na maior parte das vezes simplesmente um não-
evento. A viagem continha obviamente uma materialidade que, no contexto de superação de
barreiras geográficas, logísticas, políticas e físicas empreendida, poderia ser pintada com as
cores do heroísmo clássico; mas a descoberta em si, nos modelos narrativos consagrados pela
cultura europeia, era basicamente uma experiência passiva: ver.

Dessa “irrelevância” narrativa decorrem a criação e o uso de um arsenal retórico


pesado, pois como M. L. Pratt explica, os viajantes precisavam atribuir a maior relevância
possível para cada uma dessas descobertas, e essa relevância em parte vinha do
reconhecimento público de tais feitos para o engrandecimento da nação. Ou seja, mesmo que
“o sofrimento exigido para se alcançar a descoberta seja inesquecivelmente concreto, neste
paradigma de meados do perìodo vitoriano, a própria “descoberta” (...) não existe em si
145

mesma. Ela apenas se “torna” real quando o viajante volta para casa e a evoca através de
textos” (PRATT, 1999, p. 342). É fundamental atentar para o que a análise de Pratt significa.
A “descoberta” em si não é nada, o relato da “descoberta” é tudo: “eis aqui a linguagem
encarregada por si só de fazer o mundo, e com altos interesses em jogo” (PRATT, 1999, p.
343). Sobre o poder das narrativas, Tzvetan Todorov afirma:

Um fato pode não ter acontecido, contrariamente às alegações de um


cronista. Mas o fato de ele ter podido afirmá-lo, de ter podido contar com a
sua aceitação pelo público contemporâneo, é pelo menos tão revelador
quanto a simples ocorrência de um evento (...). A recepção dos enunciados é
mais reveladora para a história das ideologias do que a sua produção
(TODOROV, 1999, p. 64).
M.L. Pratt lista os três meios mais convencionais utilizados para criar valor qualitativo
e quantitativo para a „conquista‟ do viajante: 1) a paisagem é estetizada, descrita como uma
pintura cujo prazer estético que proporciona compensaria por si só o esforço da viagem; 2) se
procura obter uma densidade semântica nessa passagem, utilizando uma adjetivação
valorativa repleta de referentes conhecidos da cultura do viajante; e 3) a relação de domínio
predicada entre quem vê e o visto, a transmitir a sensação de que o observador pode dominar
e/ou avaliar o que é visto. A missão civilizatória como um projeto estético “é uma estratégia
muito utilizada pelo Ocidente para estabelecer que outros estão abertos a – e carentes de – sua
influência benigna e embelezadora” (PRATT, 1999. p. 345). Pratt chama essas descrições de
metáfora do “monarca-de-tudo-o-que-vejo”, denominação autoexplicativa, e afirma que elas
demonstram de modo particular a ligação entre estética (ocupando o lugar que eu
anteriormente atribuì à racionalidade) e ideologia europeias, uma „retórica da presença‟: “as
qualidades estéticas da paisagem constituem o valor social e material da descoberta para a
cultura de origem do explorador, ao mesmo tempo em que suas deficiências estéticas sugerem
uma necessidade de intervenção social e material pela cultura de base do explorador”
(PRATT, 1999, p. 345).

Nesse momento podemos fazer uma breve pausa nas considerações sobre as
descrições imperialistas e recordar as descrições contemporâneas feitas nos filmes, vistas no
capítulo anterior, apenas a título de comparação e para não perder de vista o que se busca
analisar. As cenas panorâmicas de „pôr-do-sol africano‟ na savana, por exemplo, tão
recorrentes, seguramente podem ser classificadas como releituras da cena do „monarca-de-
tudo-o-que-vejo‟. Tais cenas, de óbvio apelo estético para os padrões „ocidentais‟, podem ser
classificadas, em si mesmas, como simples elementos identificadores da paisagem africana;
mas se forem levadas em conta as outras mensagens a elas agregadas, podem também ser
146

classificadas como sugestões para a necessidade de intervenção estrangeira em território


africano, como já visto anteriormente. Lembremos a descrição feita por Richard Burton do
lago Tanganica: sua exposição sugere a ausência de algo, de elementos que a presença
europeia poderia trazer para “melhorar‟ a paisagem africana; Richard Grant, outro viajante do
século XIX, escreveu que gostaria de ter feito uma pintura do Vitória Nyanza “incluindo nele
vapores e navios ancorados na baìa” (PRATT, 1999, p. 345). Também exatamente como
vimos anteriormente que os filmes mostram o africano contemporaneamente, nos relatos de
viagem os africanos sempre são retratados como eternamente disponíveis às necessidades do
estrangeiro, “referidos apenas como “um (uns)/o(s)/meu(s) hotentote(s) (ou simplesmente
omitidos, como em “nossa bagagem chegou no dia seguinte”), todos são intercambiáveis (...)
e sua presença, sua disponibilité e estado subalterno, são tidos como certos” (PRATT, 1999,
p. 100). Não é a primeira vez nessa dissertação que se fala em descrições de africanos que
envolvem disponibilidade e estado subalterno; é exatamente assim que o cinema
contemporâneo permanece retratando-os.

Resumindo, estes recursos descritivos – “aparatos padronizados do relato de viagem”


– literalmente “produziam temas não europeus para a audiência doméstica do imperialismo”
(PRATT, 1999, p. 118). O processo de homogeneização da África a que já foi feito referência
é apenas a repetição do que a etnografia começou a fazer no século XIX, quando as descrições
do povo a que interessava subjugar apresentavam-no como um sujeito coletivo, „eles‟, “que se
resume ainda mais a um icônico ele (= espécime padrão adulto e macho)” (PRATT, 1999, p.
119). O termo „espécime‟ não é usado à toa por Pratt; os itálicos oriundos da padronização
lineana eram correntemente aplicados aos povos „inferiores‟, imersos, por causa do tempo
verbal utilizado nas descrições, em um eterno “presente atemporal”, que coincide com as
descrições da África sem temporalidade específica, mas em permanente decadência, feitas
pelos filmes contemporâneos. Sobre essa prática textual, Pratt diz que esse “ele” “é uma
entidade sui generis, frequentemente apenas uma lista de características, situada numa ordem
temporal diferente daquela do sujeito perceptual e narrador” (PRATT, 1999, p. 119). Os
recursos descritivos usados pelo viajante colocam-no numa posição de autoridade tanto em
relação à população nativa que ele descreve quanto ao leitor europeu: “O leitor não conhece a
Índia, e os indianos reconhecem-no como senhor. Não importa de fato a relação entre a
descrição de Burton e a realidade observada, é o autor do texto que domina a cena e confere-
lhe significação. A imagem oferecida da população colonial está, certamente, submetida a
essas prerrogativas” (GEBARA, 2010, p. 28). Mais uma vez recorrendo à análise que A.
147

Gebara faz dos relatos de Richard Burton, portanto, podemos concluir que os viajantes criam
a paisagem que descrevem, inventam a África e todo o resto do mundo para o europeu
comum.

Quem eram esses viajantes que abriram caminho para a invasão da África pelos
europeus e tornaram possível o Imperialismo? J. Ki-Zerbo nos diz que “as três figuras
principais desta cadeia de acontecimentos [i.e., a intervenção imperialista em África] são os
missionários, os mercadores e os militares” (KI-ZERBO, 2002, p. 68), continuando que
“poder-se-ia fazer uma galeria de retratos bastante característicos destes pioneiros, que vão do
missionário a arder de compaixão ao inadaptado social mais ou menos desequilibrado,
passando pelo colecionador de troféus de caça e pelo pesquisador de ouro” (KI-ZERBO,
2002, p. 68). O avanço europeu no interior do continente africano só foi possível em virtude
das atividades de tais homens. Um exemplo é o “jovem médico escocês de vinte anos” (KI-
ZERBO, 2002, p. 71), Mungo Park, que viajou para o interior da África nos últimos anos do
século XVIII e nos primeiros do XIX e escreveu um livro de viagens de grande sucesso à
época. Financiado por uma aliança de aristocratas e homens ricos sediada em Londres,
sugestivamente chamada „Associação para a Promoção da Descoberta das Áreas Interiores da
África‟, que foi a responsável pela exploração britânica da África em fins do século XVIII e
nas primeiras décadas do século XIX (mais tarde incorporada à Royal Geographical Society),
Park foi encarregado (em 1795) de descobrir o percurso do rio Níger e estabelecer contato
diplomático e comercial com quem quer que habitasse a região. A associação Africana,
abreviatura pela qual era conhecida, não escondia seus interesses práticos no financiamento
das viagens – o próprio Park escreveu que “receberia de seus financiadores o salário de quinze
xelins por dia “somente caso conseguisse fazê-los conhecer melhor a geografia da África,
abrir-lhes à ambição, ao comércio, à indústria novas fontes de riquezas”” (Apud FERRO,
1996, p. 31); o que interessava era estabelecer contatos comerciais, e interesses científicos não
são sequer mencionados em seu manifesto:

Não obstante o progresso da descoberta nas costas e fronteiras daquele rude


continente (i.e., a África), o mapa de seu interior ainda não é mais do que um
extenso vazio (...). Atentos a esse problema e desejosos de resgatar esta era
do peso da ignorância que, em outros aspectos, é tão oposta a seu caráter,
uns poucos indivíduos, profundamente convictos da praticidade e utilidade
de assim desenvolver o acervo do conhecimento humano, arquitetaram uma
Associação para a Promoção da descoberta das regiões interiores da África
(Apud PRATT, 1999, p. 128).
A tarefa de Mungo Park era tão ingrata que Pratt diz não saber se o mais
impressionante é o fato de ele ter assumido a missão para o Nìger “ou que tenha sobrevivido a
148

ela” (PRATT, 1999, p. 131) 41. Diversas expedições anteriores fracassaram, e o próprio Park,
do ponto de vista prático, falhou tanto em descrever o curso no Níger quanto em atingir
Timbuktu, importante centro comercial da África ocidental. A sua vitória foi não ter morrido
no decurso de uma série de agruras e escrito um relato peculiar a respeito da sua viagem,
relato que marca a “erupção do estilo sentimental na narrativa europeia sobre a zona de
42
contato” (PRATT, 1999, p. 137). De fato, Mungo Park inaugura o estilo do relato de
viagem do oitocentos, trazendo a fronteira imperial, sob uma ótica sentimental, para perto do
leitor comum. Ele “não escreveu uma narrativa de descoberta, observação ou de coleta
geográfica, mas sim uma narrativa pessoal e de aventura” (PRATT, 1999, p. 137); Park
descreve sua própria experiência corporal e emocional diante dos muitos momentos de crise
que enfrentou (torturado durante um mês por um potentado fulani, abandonado à morte no
deserto, etc.) recorrendo sempre a uma autodramatização extrema. Pratt avalia que o relato
sentimental, assim como o científico, por mais diferenças que possam ter entre si, têm em
comum a construção da presença europeia no território do Outro: “o expansionismo europeu é
tão esterilizado e mistificado na literatura sentimental quando no modelo
cientìfico/informacional” (PRATT, 1999, p. 142). Estão sempre presentes as noções
preconcebidas de superioridade europeia sobre todos os elementos nativos encontrados – a
medicina versus a superstição, por exemplo –, e a atribuição de inferioridade ao Outro, bem
como a ausência de crítica às ideologias europeias, por mais incompatíveis que fossem com as
ações de viajantes como Park. Não obstante seu caráter sentimental, o relato de Park também
possui um lado informacional importante que o tornou valioso para os homens de negócios
que financiaram sua aventura, dando „nova intensidade‟ às fantasias mercantis da Associação
Africana: “Park fez contato de primeira mão com os vastos e prósperos reinos Fulani e

41
Ki-Zerbo aponta as razões de tal dificuldade: “O principal enigma geográfico do interior era então o curso do
Níger, que, por causa do relevo, nasce a algumas centenas de quilômetros da costa, mas faz uma curva de 4000
quilômetros pelo interior, antes de atingir o golfo da Guiné. Os geógrafos europeus só conheciam deste grande
rio aquilo que dele havia dito Plínio, que falara de Nigir, depois Idrisi e Leão-o-africano. Ora este último
complicara as coisas, pretendendo que o Níger corria para o ocidente. Chocavam-se as hipóteses mais fantasistas
(...). Ora, as embocaduras do delta do Níger, onde os barcos europeus aproavam desde há séculos, eram
consideradas simples entrelaces de cursos de água costeiros. Era um quebra-cabeças no qual entravam as
controvérsias sobre a velha cidade sudanesa de Tomboctu. Ora, tendo em vista o crescimento do “comércio
legìtimo”, era vital, sobretudo para a Grã-Bretanha, o conhecimento desta via natural de comunicação (...). Ora, a
curva do Níger era defendida pelo deserto e pela hostilidade dos Mouros ou dos sultões muçulmanos do norte,
enquanto, ao sul, a grande floresta lhe levantava uma barreira” (KI-ZERBO, 2002, pp. 70,71).
42
M.L. Pratt elabora alguns conceitos a fim de abordar os relatos de viagem de maneira dialética e historicizada;
um destes é a expressão Zona de Contato, que a autora utiliza para se referir ao “espaço de encontros coloniais,
no qual as pessoas geográfica e historicamente separadas entram em contato umas com as outras e estabelecem
relações contínuas, geralmente associadas a circunstâncias de coerção, desigualdade radical e obstinada”
(PRATT, 1999, p. 31).
149

Bambara da África do Centro-Oeste” (PRATT, 1999, p. 132), o que, nas palavras


entusiasmadas dos membros da Associação, significava o seguinte:

Pelas descobertas do Sr. Park, uma porta foi aberta para toda nação mercantil
entrar e comerciar da extremidade ocidental à oriental da África. (...) Com as
devidas informações e empenho do crédito e iniciativa britânicos, é difícil
imaginar a extensão potencial a que pode chegar a demanda pelas
manufaturas de nosso país, por parte de países vastos e populosos (Apud
PRATT, 1999, p. 133).
No início do século XIX as viagens ao interior da África permanecerão escassas, pelas
razões apontadas por Pratt: “A exploração do interior era bloqueada pela doença em boa parte
do mundo tropical e pela resistência indìgena” (PRATT, 1999, p. 134), e, especialmente no
caso da África: “Graças à malária, febre amarela e disenteria, a exploração do rio Nìger, nas
cinco décadas seguintes [à viagem de Park], foi esporádica até que o Dr. William Bailkie
decidiu testar a eficácia do quinino contra as febres mortais que haviam ceifado todos os
sonhos de expansão naquela área” (PRATT, 1999, p. 153).

Park sucumbiu na sua segunda expedição à África, em 1806, junto com todos os
companheiros. Expedições irregulares são enviadas até a metade do século XIX, quando as
viagens à África são retomadas com força, e alguns nomes ganham destaque. Richard Burton,
John Speke, Pierre Savorgnan de Brazza, Henri Barth, David Livingstone e Henry Morton
Stanley talvez sejam os mais conhecidos, mas fazem parte de verdadeiros exércitos de
viajantes que abriram caminho África adentro para os interesses burgueses, destacando-se em
função de seus relatos. Como já dito suficientemente, o empreendimento expansionista
precisava de legitimidade, e esses relatos foram fundamentais para alcançar essa legitimidade
entre as elites e entre a população em geral. Marc Ferro nos diz que

O apoio popular dado à expansão – conquanto existam fortes correntes hostis


– é um dos traços específicos da era imperialista; um apoio que passa pela
imprensa de grande circulação que se desenvolveu no século XIX, ela
mesma produto da expansão industrial, e cujos títulos mais conhecidos são o
Daily Mail, na Grã-Bretanha, o Täglische Rundschau, na Alemanha, os
Novoe Vremja, na Rússia, Le Petit Parisien e Le Matin, na França. Assim, o
imperialismo é um fenômeno público – o que nem sempre foi a expansão
dos séculos anteriores –, ainda que certas operações se façam às escondidas
(FERRO, 1996, p. 33. Grifo meu).
Um fenômeno tão público que alguns de seus agentes são convertidos em verdadeiras
celebridades e heróis nacionais, partindo-se do pressuposto de que eram os intrépidos
executores da „missão do ocidente‟, como expôs o redator do jornal The Edimburg Review em
1907:
150

Digamos [...] corajosamente que o moderno movimento europeu de


expansão não é [...] principalmente um movimento colonizador. [...] É muito
mais um movimento rumo à organização, direção e controle onde
organização, direção e controle são necessários e fazem falta. O que nos
empurra ao Egito e a França ao Marrocos não é tanto a cobiça de domínio e
desejo de adquirir novas possessões quanto o sentimento de que nós [...]
podemos restaurar ordem onde existe caos e fertilidade onde existe
esterilidade. [...] Não somos vorazes grileiros, mas apóstolos de uma ideia,
os missionários da civilização ocidental (Apud MESGRAVIS, 1994, pp. 14,
15).
De fato, J. Ki-Zerbo aponta para a representação colonialista mais recorrente da África
sem a presença europeia, que seria uma “espécie de vazio político onde tinham livre curso a
anarquia, a selvajeria sangrenta e gratuita, a escravidão, a ignorância bruta, a miséria”, e,
dentro dessa pintura, “os agentes de ocupação europeus eram considerados unicamente como
cavaleiros da civilização e do progresso” (KI-ZERBO, 2002: 82, 83). Dentre esses „apóstolos‟
e „cavaleiros‟ da „civilização ocidental‟, Richard Burton é talvez o viajante que alcançou
maior celebridade em sua época e que a detém ainda hoje. A Wikipédia o descreve com nada
menos do que uma dúzia de „profissões‟ diferentes: ele teria sido “escritor, tradutor, linguista,
geógrafo, poeta, antropólogo, orientalista, erudito, espadachim, explorador, agente secreto e
43
diplomata britânico” . Recentemente foi publicado no Brasil o livro A África de Richard
Francis Burton (GEBARA, 2010), fruto da tese de doutorado do historiador Alexsander
Gebara, que configura o trabalho historiográfico mais completo sobre Burton produzido no
Brasil. O estudo se concentra nas descrições que Burton fez da África enquanto diplomata, e
sua pertinácia ressalta a importância que os escritos desse viajante têm para a imagem
contemporânea daquele continente. Nascido em família abastada, filho de pai militar, Burton
teve uma educação cosmopolita, passando seus primeiros anos viajando pela Europa, e na
juventude servindo como oficial na Índia. Ali, “dedicou-se ao aprendizado de línguas e
dialetos locais”, exercendo, em razão disso, funções de espionagem, e foi também na Índia
que “tomou contato com preceitos da religião islâmica e aperfeiçoou seus conhecimentos na
lìngua árabe” (GEBARA, 2010, p. 24).

Tendo se tornado um „homem do Império‟ incomum, passou a se dedicar com mais


afinco à “carreira” de “explorador” que à militar, sendo financiado pela Royal Geographical
Society em suas três grandes viagens. Notabilizou-se por viajar disfarçado de muçulmano e
ser o primeiro europeu a fazer a peregrinação mais sagrada para os islâmicos (1853),
conseguindo não apenas ir à Meca, mas sair de lá com vida. Depois de visitar Harar (1854),
outro grande centro muçulmano e entreposto comercial importante da África oriental, Burton
43
http://pt.wikipedia.org/wiki/Richard_Francis_Burton Acessado em 15/02/2012.
151

vai ser financiado pela RGS, ainda na década de 1850, para a famosa expedição em busca da
nascente do Nilo, o grande enigma da África oriental para os europeus (1856-1859), auxiliado
por John Speke, seu companheiro mais jovem e rival. A relação conturbada e a longa
desavença entre os dois em função das opiniões diferentes sobre a localização da nascente do
Nilo teve uma cobertura jornalística e foi acompanhado pelo público inglês de modo
comparável às intrigas das celebridades de hoje em dia44.

A partir dos anos 1860, Burton vai exercer funções diplomáticas para o governo inglês
em diversas partes do mundo, desde a África ocidental (alvo do estudo de A. Gebara) até o
Brasil. Além de uma personalidade descrita repetidamente como cativante e polêmica, a
popularidade de Burton pode ser atribuìda principalmente aos seus talentos literários. “Como
se tornou praxe para Burton, cada uma de suas viagens deu origem a novos volumes de
narrativa” (GEBARA, 2010, p. 24), narrativas em que emprega com excelência os recursos
narrativos apontados por M. L. Pratt, citados anteriormente. A vívida retórica utilizada por
Burton, que descrevia a si mesmo como um aventureiro corajoso e temerário, sua abordagem
de temas controversos para a época (como homossexualidade e pornografia), além de seu
conhecimento de dezenas de línguas não-europeias, que lhe possibilitou fazer a tradução de
obras importantes da literatura mundial para o inglês (desde o Kama Sutra hindu até
brasileiríssimo O guarani), fizeram de sua vasta obra um sucesso comercial, e um referencial
na construção da imagem europeia do restante do mundo, em especial a África. Burton
valoriza ao máximo sua experiência em terras não europeias, se colocando, como já dito,
numa posição de autoridade não só em relação aos não-europeus, mas também aos próprios
europeus. Ele era os olhos do império, e os filmes contemporâneos aqui analisados
demonstram que sua visão ainda permanece popular. Além disso, de acordo com a análise de
A. Gebara, Burton pode ser considerado um imperialista antes do Imperialismo, e isso
certamente vaza em seus escritos. Em vários de seus despachos é possível notar qual o padrão
considerado ideal por Burton, no que diz respeito à atuação consular na costa ocidental
africana: à bordo de um navio de guerra, o cônsul deveria impor as condições inglesas de

44
Em 1990 foi produzido um filme que busca retratar a viagem e a relação conturbada de Burton e Speke,
intitulado no Brasil As montanhas da lua (Mountains of the Moon, Bob Rafelson, 1990). A respeito deste filme,
vale citar uma nota de rodapé de M.L. Pratt: “A primavera de 1990 viu o lançamento de uma heroica versão
hollywoodiana da aventura de Burton e Speke intitulada The Mountains os the Moon. Levando adiante uma
tendência vigente nos anos 1980 (... Entre dois amores, A jóia da coroa (minissérie televisiva), Passagem para a
Índia e Greystoke – A lenda de Tarzã, o rei da selva), a nostalgia imperialista fornece uma resposta cultural para
o absoluto fracasso de uma modernização da África que obedeça o estilo ocidental” (PRATT, 1999, p. 343).
152

comércio frente à chefes e comunidades nativas, através da demonstração de força


(GEBARA, 2010, P. 108)45.

Outro exemplo do quão era o Imperialismo um fenômeno público é o encontro entre


Stanley e Livingstone, que a despeito da completa inutilidade para a qualidade de vida de
qualquer operário de Manchester, é celebrado (não só àquela época) como um feito
engrandecedor de toda a „cultura ocidental‟. David Livingstone foi um missionário escocês
que exerceu um papel importante para a expansão europeia em África. Com a justificativa de
levar o cristianismo para povos do interior da África, ele traçou mapas e abriu caminho para
os exércitos coloniais que o seguiriam46. Ele é provavelmente o mais célebre de uma multidão
de missionários alemães, ingleses, franceses, holandeses, suecos e estadunidenses, dos mais
diversos credos cristãos, que podiam ser encontrados em toda a parte na África por volta de
meados do século XIX – da colônia do Cabo à baía de Benin e à região dos Lagos –,
empenhados em expandir cada vez mais seu raio de atuação. Sobre o empenho missionário
cristão em território africano, tanto católico quanto protestante, é importante ressaltar os
pontos em comum que Leila Hernandez aponta a toda essa atividade. Primeiro, ela destaca
que a ideia “era empreender a conversão dos africanos não apenas ao cristianismo, mas ao
conjunto de valores próprio da cultura ocidental europeia”; em seguida vinha “ensinar a
divisão das esferas espiritual e secular, crença absolutamente oposta à base do variado
repertório cultural africano fundado na unidade entre vida e religião”, e, por fim, a realização
de “pregação contrária a uma série de ritos sagrados locais, o que minava a influência dos
chefes tradicionais africanos” (HERNANDEZ, 2005, p. 54). A autora conclui que
“considerando as fases anteriores ou posteriores ao crescimento do trabalho missionário, no
século XIX, é inegável a sua contribuição na abertura do continente” (HERNANDEZ, 2005,
p. 54), isto é, o trabalho missionário foi muito mais efetivo enquanto ferramenta política do
que religiosa. O impacto dos relatos dos viajantes, especialmente dos missionários, pode ser

45
A. Gebara afirma isso a partir da análise dos relatórios de Burton em sua atuação consular no começo dos anos
1860: “Logo em seus primeiros despachos surgem constantes solicitações para o envio de um cruzador, para
ficar a sua disposição. Depois de realizar a primeira visita aos “Rios do Óleo” à bordo de um navio da African
Steamship Company, ainda no final de 1861, Burton mencionou em despacho para o F.O. [Foreign Office] a
“necessidade” de contar com um barco de guerra sob seu comando. Em janeiro do ano seguinte, o autor voltou a
mencionar a importância dos cruzadores para organizar o comércio na região do baixo Nìger. Segundo ele: “As
vilas hostis são em número de cinco ou seis [...] elas irão requerer alguma coerção. [...] Isto pode ser facilmente
conseguido por dois barcos de guerra. Com tais navios, eu poderia ir até lá em julho próximo e garantiria que
depois de seis meses nenhum tiro seria disparado novamente no baixo Nìger.” Desta forma, Burton propôs uma
missão ao F. O., qual seja, destinar dois cruzadores para uma patrulha constante do Delta do Níger, com intuito
de coagir os nativos locais à aceitar as práticas comerciais inglesas” (GEBARA, 2010, P. 107).
46
H. Wesseling nos informa que o trabalho missionário de Livingstone durante seus anos em África teve como
fruto a conversão de um único africano, que posteriormente abandonou a fé cristã (WESSELING, 2008, p. 94).
153

notado no relato de Albert Schweitzer, um médico alemão que se sentiu impelido a viajar à
África e colaborar na missão civilizadora. O relato que fez do período em que atuou na África
equatorial, Entre a água e a selva, muito contribuiu para torná-lo famoso e ser galardoado
com um Nobel da Paz; a sua justificativa para a ida à África é emblemática da noção de
missão civilizadora:

Lera e ouvira testemunhos de missionários revelando a miséria física dos


autóctones. E quanto mais refletia sobre isso, menos conseguia compreender
como nós, europeus, nos preocupávamos tão pouco com a grande tarefa
humanitária que essas regiões longínquas apresentavam. Parecia-me que a
parábola do homem rico e do pobre Lázaro se encaixava bem ao nosso caso.
O opulento seríamos nós, pois os avanços da medicina nos proporcionaram
enormes conhecimentos e processos eficazes contra a doença e a dor. As
vantagens incalculáveis dessa riqueza nos parecem algo muito natural. Lá
fora, nas colônias, está o pobre Lázaro, o negro, que sofre tanto ou bem mais
do que nós com a doença e o sofrimento, porém não dispõe de nenhum meio
para combatê-los. Agimos como o homem rico, pecando com a indiferença
para com o pobre sentado no seu patamar, pois o rico não se punha no lugar
do seu semelhante e nem deixava que o próprio coração se enternecesse. (...)
Assim, compete à nossa sociedade o dever de tomar para si tal tarefa
(SCHWEITZER, 2010, pp. 11,12).
Schweitzer toma conhecimento da „situação africana‟ no final do século XIX, começa
estudar medicina em 1905 e em 1913, no auge da invasão europeia – a „partilha da África‟,
ele chega ao continente. Escreve o seu relato já de volta à Europa, em 1920, quando toda essa
maneira de interpretar o continente continuava tão válida quanto na época dos primeiros
relatos de Livingstone. Voltando ao famoso Livingstone, eis como o descreve Ki-Zerbo:

Era, antes de mais nada, um pastor. Dilacerado pelo comércio sangrento que
encontrava em cada passo, veio a desejar a colonização da África como
único remédio: “Que Deus abençoe amplamente”, diz ele, “todo o homem,
seja ele americano, inglês ou turco, que possa ajudar a sarar essa chaga” (KI-
ZERBO, 2002, p. 74).
Foi o primeiro europeu a entrar em contato com diversas populações africanas e fez
diversas “descobertas”, como as cataratas do Zambeze a que batizou de Victoria Falls,
homenageando a rainha inglesa. O sucesso popular de seus relatos, mais o seu valor
estratégico, o faz ser contratado pelo governo inglês. Na busca pela nascente do Nilo, o
“queridinho da opinião pública inglesa” (WESSELING, 2008, p. 94) fica meses sem
estabelecer contato e é dado como morto, até que o jornal New York Herald envia o jornalista
galês naturalizado estadunidense Henry Morton Stanley à sua procura, com uma expedição
fortemente equipada e financiada. Ao encontrar, após meses, um adoentado Livingstone,
Stanley pronuncia a famosa frase “Doutor Livingstone, eu presumo”, e ambos levam adiante o
mapeamento da região dos lagos centrais da África. Os relatos do agora também famoso
154

Stanley (que, além de encontrar Livingstone, finalmente prova que o Nilo nasce do lago
Vitória e resolve a querela entre Burton e Speke), um grande homem de negócios e verdadeiro
“showman”, serão fundamentais na invasão da África, numa cadeia de eventos que ele mesmo
não poderia prever. Sua descrição das „riquezas inexploradas‟, do potencial econômico da
região – ele vê e descreve as grandes populações do interior africano como um imenso
mercado consumidor à espera de vendedores ambulantes –, a violência com que reprime
qualquer resistência ao contato (“os selvagens só respeitam a força”, escreve (KI-ZERBO,
2002, p. 74)), terão um grande impacto em toda e a Europa. Eis como H. Wesseling descreve
o efeito das viagens de Stanley:

Na década de 1870, os europeus “descobriram” o Congo. As viagens de


Brazza (1875-1878) e sobretudo as de Stanley (1874-1877) conquistaram a
imaginação de um público europeu ávido de conhecimento. As sociedades
geográficas desfrutavam de grande popularidade. A viagem de Stanley foi
patrocinada por dois jornais, um inglês e outro americano. O relato que ele
fez de sua expedição através da África, intitulado Through the Dark
Continent [Através do continente negro], tornou-se um best-seller
internacional. Nele, Stanley exaltava a grande promessa do Congo, o qual
dizia ser mais fértil que o Mississipi, e falava de uma “nova Índia”,
muitíssimo apropriada ao comércio e à colonização. Além de considerações
científicas e comerciais, havia também motivos humanitários pra explorar a
região. O tráfico de escravos, o canibalismo e o paganismo grassavam nessa
parte da África clamando pela intervenção europeia. A África Central
tornou-se, assim, objeto de agudo interesse europeu, inclusive político
(WESSELING, 2008, p. 83).
O fato de que gozava entre a aristocracia inglesa de uma péssima reputação – seus
métodos brutais ainda não eram muito populares, era considerado um fanfarrão histriônico e
sem escrúpulos, além de deter epìtetos não exatamente elogiosos tais como “homossexual
enrustido” e “sadomasoquista” (WESSELING, 2008, p. 95) –, apesar de seus „feitos‟,
dificulta sua contratação pelo governo inglês. Isso faz com que Stanley seja contratado por
Leopoldo II, rei da Bélgica, para servir à Associação Internacional do Congo, e terá papel
fundamental na criação do “Estado Livre do Congo” 47, talvez a maior das infâmias cometidas
por europeus em solo africano. O rei belga, em parte influenciado pelas descrições de
Savorgnan de Brazza, mas sobretudo pelas de Stanley, criara a Associação Internacional do
Congo (1876), com os supostos objetivos apontados por Ki-Zerbo: “exploração do continente,
a supressão do tráfico negreiro e a introdução da civilização” (KI-ZERBO, 2002, p. 75). A

47
Sobre a noção de „Estado Livre do Congo‟ que Leopoldo II desejava implantar: ““O Rei, como particular,
deseja somente possuir propriedades na África. A Bélgica não quer nem colônias nem territórios” (...) Isso não
significava o estabelecimento de uma soberania estrangeira, visto que o Rei não agia enquanto chefe do Estado
belga. Tal procedimento criava na África um Estado africano novo, cujo chefe seria o comitê, quer dizer,
Leopoldo (...). O sonho de Leopoldo: reunir ao tìtulo de Rei dos belgas o de soberano de um Estado negro”
(BRUNSCHWIG, 2006, pp. 31,32).
155

Bélgica é um país que praticamente não entrara nas contas da expansão do sistema-mundo
moderno, até que as aspirações de Leopoldo II ao Congo a tornarão peça-chave na invasão do
continente africano. A região do Congo passou a interessar à praticamente todas as potências
europeias, tanto as antigas, como Portugal, que alegava possuir direitos históricos à região
desde o tempo de Diogo Cão, quanto as novas, como a recém-unificada Alemanha, ávida por
mercados consumidores, sem falar na Inglaterra, que deseja, mais que tudo, o livre-comércio
que seria tornado impraticável caso a região passasse à tutela francesa (que tinha um „direito‟
de preempção ao Congo) e suas altas tarifas. Vendo Stanley, sem a mínima cerimônia,
empenhado em estabelecer postos belgas e assinar tratados com autoridades locais no Congo,
Portugal clama por uma conferência internacional, no que é prontamente atendido pelo
chanceler alemão, Otto von Bismarck, ansioso por dar à Alemanha uma relevância cada vez
maior na política europeia.

O resultado dessa cadeia de eventos, iniciada pelos relatos de viagem de Stanley, será
a célebre Conferência de Berlim, realizada na capital alemã entre 15 de Novembro de 1884 e
26 de fevereiro de 1885 (BRUNSCHWIG, 2006, p. 41), com a participação de catorze países,
incluindo os EUA. Em vista das circunstâncias econômicas já apresentadas, com a
necessidade crescente de exportar os capitais „excedentes‟ na Europa, compreende-se a
convergência dos interesses econômicos e políticos das potências europeias em torno do
continente africano na época da Conferência de Berlim. A África descrita pelos olhos do
império configurava um espaço „ideal‟ para realizar as lucrativas operações financeiras
almejadas, e em Berlim é decidido como isso vai ser feito. Essa reunião e seus
desdobramentos servem em grande medida para demonstrar as linhas gerais do que essa
dissertação inteira se propõe a discutir: o poder da linguagem, das imagens criadas pelas
narrativas. Ora, Henri Brunschwig diz que “até cerca de 1860, não ocorreria ao espírito de
nenhum Ministro do Exterior [francês] provocar um conflito com a Inglaterra por causa de um
pedaço da África negra” (BRUNSCHWIG, 2006, p. 16), mas nos anos 1870 e 1880 houve na
Europa uma “valorização da África negra, que atraiu o interesse de círculos mais extensos que
os dos humanitaristas, dos sábios e dos comerciantes britânicos” (BRUNSCHWIG, 2006, p.
18), ou, em palavras mais diretas, “o descobrimento do Congo atraiu, repentinamente, a
cobiça dos europeus” (BRUNSCHWIG, 2006, p. 28). Em função das narrativas de viajantes
como Stanley, surge um interesse político-econômico tão premente pela África que a
Conferência de Berlim foi a maneira encontrada por esses europeus para estabelecer regras
que minimizassem os conflitos de interesses, e possíveis conflitos militares, entre si. Por outro
156

lado, a narrativa só surgiu, ela mesma, por causa da demanda expansionista do próprio
sistema-mundo capitalista, e em sintonia com suas fórmulas narrativas. Da Conferência de
Berlim, o principal beneficiário foi o rei belga, “cujo tìtulo de soberano proprietário do Congo
foi reconhecido por todos” (FERRO, 1996, p. 101). Ao fim, a ata geral da Conferência
estabelece os seguintes princípios básicos:

Capítulo I – O comércio de todas as nações gozará de completa liberdade: 1º


Em todos os territórios que constituem a Bacia do Congo e de seus afluentes.
(...) Capítulo VI – Artigo 34 – A potência que de agora em diante tomar
posse de um território nas costas do continente africano que estiver fora de
suas possessões atuais (...) fará acompanhar a Ata respectiva de uma
notificação dirigida às outras Potências signatárias da presente Ata, a fim de
lhes dar os meios de fazer valer, se for oportuno, suas reclamações. Artigo
35 – As potências signatárias da presente Ata reconhecem a obrigação de
assegurar, nos territórios ocupados por elas, nas costas do Continente
africano, a existência de uma autoridade capaz de fazer respeitar os direitos
adquiridos e, eventualmente, a liberdade de comércio e do trânsito nas
condições em que for estipulada (Apud BRUNSCHWIG, 2006, pp. 81,90).
Nas palavras de Ki-Zerbo, as „regras simples‟ enunciadas pela Conferência eram: “a
ocupação do litoral não bastava para reivindicar as terras do interior, a menos que este fosse
ocupado, com notificação às potências” e “as bacias do Congo e do Nìger eram declaradas
livres ao comércio internacional” (KI-ZERBO, 2002, p. 76). Essa „necessidade‟ de ocupar
efetivamente o território almejado será a razão para a „corrida para a África‟, em que as
potências europeias passaram e dedicar enorme esforço financeiro, humano e militar para se
fazer presente na maior parte de lugares possíveis em África, levando em conta tudo o que já
foi explanado sobre a exportação de capitais. Essa corrida “constituiu provavelmente o maior
pecado do imperialismo” (KI-ZERBO, 2002, p. 76), diz Ki-Zerbo. É importante ressaltar que
“a conferência de Berlim não oficializou realmente a partilha da África negra, como se
afirmou, nem sequer zonas de influência na hinterlândia”, como explica Marc Ferro, mas
somente “formulou as “regras do jogo”, permitindo essa orgia de operações e de anexações
que ficaram conhecidas como “corrida de obstáculos”, pois cada potência europeia saìa em
disparada para fincar sua bandeira no maior número possìvel de territórios” (FERRO, 1996, p.
102). Em Berlim os europeus dividiram uma África que mal conheciam entre si, o passo
seguinte foi a tentativa de invasão dessa África. Começa aqui a história de massacres e
genocídios cometidos em nome da liberdade de mercado, empregando os métodos que mais
tarde causarão horror ao serem usados contra europeus. É a partir das decisões tomadas em
Berlim que têm lugar as ações livres de genocidas, considerados grandes homens de negócios
e „construtores de impérios‟ em território africano, como Cecil Rodhes, Frederick Lugard,
Carl Peters e o próprio Leopoldo II. Sobre os „métodos administrativos‟ utilizados pelo
157

monarca belga para extrair as riquezas do Congo, Serrano & Waldman citam o relatório de
um funcionário inglês, de 1903:

[...] havia métodos ainda mais desumanos, como o corte de orelhas e outras
formas de mutilação fazendo parte de um macabro sistema de contabilidade.
Em 1899, um agente do governo (...) disse a um missionário americano: cada
vez que um cabo sai para buscar borracha, recebe cartuchos. Deve trazê-los
todos intactos; e para cada cartucho usado, deve trazer uma mão direita.
Com, ou sem precisão, o funcionário informou ao missionário de que em
seis meses o Estado tinha usado 6.000 cartuchos no rio Momboio, o que
significa que 6.000 pessoas foram mortas ou mutiladas. Na verdade, mais do
que 6.000, pois me contaram que, frequentemente, os soldados matavam
crianças com os cabos das armas. (Apud SERRANO & WALDMAN, 2007,
p. 222).
Um homem chamado Joseph Conrad, considerado um dos maiores escritores de língua
inglesa de todos os tempos, vai ser testemunha ocular dos horrores belgas no Congo 48, e
transformará essa experiência naquele que foi considerado por Jorge Luìs Borges como “o
mais intenso de todos os relatos que a imaginação humana jamais concebeu” 49: o romance O
coração das trevas. Infelizmente o mestre argentino não estava totalmente correto quanto ao
fato de ter sido O coração das trevas pura invenção humana, mas o fato é que aqui podemos
perceber nitidamente a ligação entre um „setor‟ do “ministério da curiosidade europeia”, os
relatos de viagem, e outro, os romances imperialistas, aqueles servindo de fonte a estes ou
sendo escritos pelos próprios agentes imperialistas, como é o caso de Conrad. A despeito do
caráter filosófico-reflexivo sobre a condição humana, ou denunciativo do „horror, o horror‟, a
célebre frase do personagem Kurtz, Conrad está imiscuído na cultura imperialista de missão
civilizadora, e a leva para o leitor. No seguinte trecho, por exemplo, um personagem justifica
os abusos cometidos na „colonização‟ do Congo: “A conquista da terra, o que na maior parte
significa tirá-la daqueles que têm uma fisionomia diferente ou narizes ligeiramente mais
achatados que os nossos, não é uma coisa bonita quando você olha demais para ela. O que a
redime é somente a ideia” (CONRAD, 1997, p. 11). A ideia é a missão civilizadora, claro.
Esse „fardo‟ que o „homem branco‟ carrega em benefìcio dos „selvagens‟.

Nesse ponto da dissertação chegamos à tese defendida por Edward Said em Cultura e
Imperialismo, seu trabalho posterior à Orientalismo, onde ele buscou “descrever um modelo
mais geral de relações entre o Ocidente metropolitano moderno e seus territórios
ultramarinos” (SAID, 1995, p. 11). O objetivo desta dissertação não é analisar os romances
48
Para um aprofundamento na história do genocídio promovido pelo governo belga no Congo, consultar
HOCHSCHILD, Adam. O fantasma do rei Leopoldo: uma história de cobiça, terror e heroísmo na África
colonial. Tradução Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
49
A afirmação encontra-se na contracapa da edição de O coração das trevas da Editora L&PM (CONRAD,
1997).
158

imperialistas, e sim os filmes contemporâneos; no momento, o interesse é apenas demonstrar


sucintamente os vínculos entre estas duas expressões culturais eurocêntricas, separadas por
cerca de um século, situando as formações discursivas encontradas no cinema contemporâneo
no interdiscurso mais amplo onde elas apenas exercem um papel, e para isso uns poucos
exemplos bastam. Conrad e seu O coração das trevas será o exemplo principal do que desejo
apontar aqui. Said parece ter percebido, após a conclusão de Orientalismo, que não foi apenas
sobre o Oriente Médio que os europeus construíram narrativas subalternizantes, por isso
afirma: “considero esses discursos africanistas e indianistas, como foram chamados, parte
integrante da tentativa europeia geral de dominar povos e terras distantes” (SAID, 1995, p.
11); a esta „tentativa europeia geral‟ tenho chamado simplesmente de eurocentrismo,
conforme já definido. A análise que Said faz de tais discursos corrobora a interpretação das
narrativas fílmicas a partir de tropos narrativos marcantes, feita nesta dissertação. Para ele, a
marca distintiva dos discursos eurocêntricos (sejam orientalistas ou africanistas, sobre a
Irlanda – primeira colônia inglesa – ou sobre o Caribe, ou seja, sobre qualquer território “não-
civilizado”) é a repetição de determinadas figuras retóricas, que, nas suas palavras, podem ser
encontradas

constantemente em suas descrições do “Oriente misterioso”, os estereótipos


sobre o “o espìrito africano” (ou indiano, irlandês, jamaicano, chinês), as
ideias de levar a civilização a povos bárbaros ou primitivos, a noção
incomodamente familiar de que se fazia necessário o açoitamento, a morte
ou um longo castigo quando “eles” se comportavam mal ou se rebelavam,
porque em geral o que “eles” melhor entendiam era a força ou a violência;
“eles” não eram como “nós”, e por isso deviam ser dominados (SAID, 1995,
pp. 11,12).
Trata-se da mesma repetição que pode ser detectada nos filmes contemporâneos. Para
analisar a ligação entre cultura e Imperialismo, Said elege o romance como veículo
privilegiado, pois, dentre outras formas culturais que tiveram “enorme importância na
formação das atitudes, referências e experiências imperiais”, na sua concepção o romance é “o
objeto estético cujas ligações com as sociedades em expansão da Inglaterra e da França são
especialmente interessantes como tema de estudo” (SAID, 1995, p. 12). As narrativas são o
centro do estudo de Said porque “as histórias estão no cerne daquilo que dizem os
exploradores e os romancistas acerca das regiões estranhas do mundo” (SAID, 1995, p. 13). O
que pretendo ressaltar nesta dissertação é que a importância do que é dito em narrativas
fílmicas como as apontadas no capítulo anterior é muito maior do que a que se atribui
cotidianamente, e na consecução desse objetivo a análise de Said dos romances é de grande
valia. Said reconhece que o objeto de disputa do Imperialismo é seguramente material, é a
159

terra, o espaço físico. Não é nada abstrato. Porém, quando se trata de decidir ou julgar quem
possui o direito pela terra, o direito de viver e trabalhar nela, de invadi-la e expulsar quem
nela viva ou de lutar por ela, todas essas questões “foram pensadas, discutidas e até, por um
tempo, decididas nas narrativas. (...) O poder de narrar, ou de impedir que se formem e surjam
outras narrativas, é muito importante para a cultura e o imperialismo, e constitui uma das
principais ligações entre ambos” (SAID, 1995, p. 13).

Mais uma vez, retomo a questão da autoria. A cultura, para Said, é uma “espécie de
teatro em que várias causas polìticas e ideológicas se empenham mutuamente” (SAID, 1995,
p. 14), teatro no qual as pessoas – nós, cidadãos comuns, historiadores, cineastas, romancistas
– tomam parte quer queiram quer não. É desejo de muitos que a cultura seja percebida como
uma esfera da existência separada dessas questões „práticas‟, por assim dizer; essa percepção
de cultura como algo divorciado do mundo cotidiano torna muitos intelectuais “incapazes de
estabelecer a conexão entre, de um lado, a longa e sórdida crueldade de práticas como a
escravidão, a opressão racial e colonialista, o domínio imperial, e, de outro, a poesia, a ficção
e a filosofia da sociedade que adota tais práticas” (SAID, 1995, p. 14). Essa relação não
pressupõe um determinismo mecânico, como se um cidadão inglês de fins do século XIX não
pudesse ser anti-imperialista ou um cidadão estadunidense do início do século XXI não
pudesse ser avesso à ideia do destino manifesto50. As palavras de Said a esse respeito
traduzem a atitude adotada nesta dissertação, mutatis mutandis:

Não creio que os escritores sejam mecanicamente determinados pela


ideologia, pela classe ou pela história econômica, mas acho que estão
profundamente ligados à história de suas sociedades, moldando e moldados
por essa história e suas experiências sociais em diferentes graus. A cultura e
suas formas estéticas derivam da experiência histórica (SAID, 1995, p. 23).
Não se trata de negar a crítica que Conrad faz em O coração das trevas (e em outras
obras) aos abusos cometidos pelos europeus em solo africano, assim como não se trata de
negar que muitos cineastas contemporâneos realizam um esforço consciente no sentido de
criticar as intervenções estrangeiras em África, apontando-as como suposta raiz dos supostos
grandes males que assolam o continente. O que ocorre é que, por maior que seja a ironia e o
pessimismo com que Conrad descreve o Imperialismo, ele, nas palavras de Said, “escreve
como um homem cuja visão ocidental do mundo não ocidental está tão arraigada a ponto de

50
A estadunidense doutrina do „Destino Manifesto‟ é uma mistura de ideias de superioridade racial com uma
suposta missão, outorgada pela divina providência, de levar o “bem” para o resto do mundo, utilizada como
justificativa para a recente guerra no Iraque, por exemplo. Suas origens remontam ao século XIX: “Em 1885 o
pastor Josiah Strong escreveu que os anglo-saxões estavam encarregados pela divindade de ser os guardiães da
espécie humana e que Deus os havia preparado para a guerra final entre as raças”, e no mesmo ano “o historiador
John Fiske endossava essas ideias em um ensaio intitulado Manifest destiny” (BRUIT, 1988, p. 12).
160

cegá-lo para outras histórias, outras culturas e outras aspirações” (SAID, 1995, p. 19). O olhar
de Conrad só percebe o mundo dominado pelo eurocentrismo, e as resistências que se
levantam contra essa dominação apenas confirmam a iniquidade do próprio eurocentrismo.
“O que Conrad não consegue ver é uma alternativa a essa cruel tautologia. Ele não podia
entender que a Índia, África e América do Sul também possuíam vidas e culturas com
identidades não totalmente controladas pelos reformadores e imperialistas gringos deste
mundo” (SAID, 1995, p. 19). Assim,

não é paradoxal que Conrad fosse imperialista e anti-imperialista:


progressista quando se tratava de apresentar com destemor e pessimismo a
corrupção autoconfirmadora e auto-enganosa do domínio ultramarino;
profundamente reacionário quando se tratava de conceder que a África ou a
América do Sul pudesse algum dia ter uma história ou uma cultura
independentes (SAID, 1995, p. 19).
Outro exemplo que pode ser citado é o de Júlio Verne. Este eminente escritor francês
transpôs, talvez sem perceber, com um elevado grau de precisão, a política colonial francesa
para a sua extensa obra literária. A rivalidade imperial entre França e Inglaterra, por exemplo,
é apresentada quase subliminarmente em uma narrativa como Vinte mil léguas submarinas,
onde o herói, o capitão Nemo, é um indiano que se insurgiu contra o colonialismo britânico e
se tornou um pirata a bordo de um submarino gigantesco. Nesse caso, a resistência é louvada
e a colonização descrita como tirania. Em Cinco semanas em um balão, por outro lado, os
africanos que resistem à colonização francesa são retratados como selvagens “feras de rosto
humano”. Como afirma Marc Ferro, “na verdade Jules Verne só aplica seus princìpios
socialistas de partidário da revolução de 1848 às vìtimas da colonização britânica” (FERRO,
1996, p. 196).

Verne encarna e exemplifica bem o tipo de literatura de grande sucesso popular, que
vai exercer a função precisa dentro do „ministério da curiosidade europeia‟ de vulgarizar a
África inventada pela racionalidade moderna. Trata-se do

romance de aventuras. Ele transforma as dificuldades encontradas pela


Europa numa série de ações heroicas que transfiguram o leitor e o levam a se
identificar com o aventureiro. Independentemente dos que, por esse viés,
celebram a grandeza do Império, tal como Rudyard Kipling, outros
constroem a imagem dessas novas “elites” da civilização técnica e industrial.
Jules Verne inventa os novos aventureiros e sua gesta, que, via de regra, se
passa nas colônias (FERRO, 1996, p. 195).
Um dos aspectos mais incensados na literatura de Júlio Verne, com justiça, é o seu
aspecto de ficção científica, as especulações sobre inovações tecnológicas inexistentes na sua
época e que depois vieram, algumas, realmente a existir, como o citado submarino. Para além
161

de um simples talento visionário, essa característica revela o quão este autor estava
impregnado pela noção de progresso, tão cara à racionalidade moderna, como já visto. Para
Verne, “a ideia de progresso – do progresso da civilização ligado ao da técnica – impõe-se a
qualquer outra consideração. O direito dos povos só existe de fato quando estes participam da
civilização” (FERRO, 1996, p. 196), e é desnecessário lembrar que a concepção de civilização
moderna só incluía a própria Europa. De modo que os professores-exploradores que
protagonizam a maioria dos romances de Verne são, sem exceção, incrivelmente atualizados
com todas as inovações científicas e tecnológicas de seu tempo (como demonstra a citação de
Cinco semanas em um balão que abre este capítulo), exercendo a dupla função de 1) levar
para o grande público o empreendimento imperial em detalhes, reafirmando a superioridade
da civilização europeia, e 2) justificar constantemente, a partir dessa noção que nunca se
permite olvidar de que o progresso é sinônimo de superioridade, todos os empreendimentos
coloniais e seus recorrentes “excessos”. Quem recusa o progresso, inevitável, não merece a
simpatia de Verne:

“O direito desmorona diante da força, por certo, mas a civilização jamais


recua, e parece que é da necessidade que ela extrai todos os seus direitos”.
“É a lei do progresso – os índios desaparecerão. Diante da raça anglo-
saxônica, australianos e tasmanianos se dissiparam. Um dia, talvez, os árabes
serão aniquilados em face da colonização francesa” (Apud FERRO, 1996, p.
196).

Acredito ter traçado as linhas gerais do imenso painel em que se formou a imagem da
África divulgada pela indústria cinematográfica hegemônica contemporânea. Todos os tropos
narrativos analisados no capítulo anterior – os tropos da inferioridade africana, da necessidade
de intervenção estrangeira e da necessidade de fuga – se encaixam nessa formação ideológica
ampla sobre a África, desenvolvida no contexto de legitimação intelectual e moral da
expansão imperialista do sistema-mundo moderno. Tal contextualização, mais do que simples
curiosidade ou erudição, evidencia uma tentativa consciente de participar em um esforço
intelectual amplo de descolonização do conhecimento. Ser antieurocêntrico, como esta
dissertação tenta, não significa de modo algum ser antieuropeu ou antiestadunidense, muito
menos eurofóbico, como demonstra a extensa lista de conceitos e autores europeus que utilizo
na feitura da dissertação.

Como ressaltam Shohat e Stam, „eurocêntrico‟ não é sinônimo de „racista‟, apesar da


ligação histórica entre os termos; quando aponto o pensamento eurocêntrico que permeia
162

desde os escritos de Conrad e Verne até os filmes contemporâneos, não os acuso de uma
atitude política consciente no sentido de dominar simbolicamente a África, justificando sua
exploração concreta. O eurocentrismo, revisando o que já foi dito, é a “visão “normal” da
história que a maioria das pessoas no Primeiro Mundo (e até no Terceiro Mundo) aprendem
na escola e assimilam através dos meios de comunicação” (SHOHAT & STAM, 2006, p. 24).
Em consequência dessa naturalização de um único ponto de vista histórico como „o correto‟, é
possível que um indivíduo seja declaradamente (e de modo sincero) contra o racismo, mas
tenha uma posição implicitamente eurocêntrica. Para exemplificar com um tema candente em
nossa sociedade contemporânea: muitas pessoas que, de modo consciente, se dizem anti-
homofóbicas, entendendo que os homossexuais são cidadãos como quaisquer outros,
merecedores de respeito, dignidade e direitos civis, nas atitudes práticas inconscientes do
cotidiano se mostram em larga medida repetidoras do pensamento dominante – machista,
sexista e homofóbico –, de inegável origem eurocêntrica. As ideias discriminatórias racistas e
sexistas são profundamente imbrincadas, como demonstra Stephen Jay Gould:

Uma vez demonstrada a evolução, os naturalistas do século XIX devotaram-


se a estabelecer os verdadeiros caminhos que ela seguira. (...) A
recapitulação também proporcionou um critério irresistível a todos os
cientistas interessados em estabelecer diferenças hierárquicas entre os grupos
humanos. Assim, os adultos dos grupos inferiores devem ser como as
crianças dos grupos superiores, pois a criança representa um ancestral
adulto primitivo. Uma vez que são como os meninos brancos, os negros
adultos e as mulheres são também os representantes vivos de um estágio
primitivo da evolução dos homens brancos. (...) Todos os grupos “inferiores”
– raças, sexos e classes – foram comparados às crianças brancas do sexo
masculino. E.D. Cope identificou quatro grupos de formas humanas
inferiores segundo esse critério: raças não brancas, todas as mulheres, os
brancos do sul da Europa (em oposição aos do norte) e as classes inferiores
dentro das raças superiores (GOULD, 1991, pp. 111,113).
Esse tipo de teoria justificava „cientificamente‟, ao mesmo tempo, o racismo, o
machismo e o preconceito social contra os pobres51. Apesar de ter perdido o respaldo
científico, tais ideias permanecem presentes em nosso cotidiano em função da permanência do
eurocentrismo como pensamento dominante. Frases „inocentes‟ como “não tenho preconceito
por eles serem gays, mas acho errado que fiquem de mãos dadas em público” resumem muito
bem a homofobia profundamente arraigada, muito embora num nível superficial o indivíduo a
negue, inclusive para si mesmo. A mesma atitude pode ser verificada em relação ao
machismo, nas falas que defendem os direitos da mulher mas culpabilizam vítimas de estupro

51
Uma análise pertinente do vínculo histórico entre racismo e machismo, tendo como objeto a experiência
colonial ibérica, é o artigo da antropóloga espanhola Verena Stolcke intitulado O enigma das interseções: classe,
”raça”, sexo, sexualidade. A formação dos impérios transatlânticos do século XVI ao XIX (STOLCKE, 2006).
163

por “darem cabimento”; e é exatamente essa atitude que esta dissertação aponta no que diz
respeito ao eurocentrismo, em filmes que alegadamente se destinam a „ajudar‟ a África, como
Diamante de sangue (ver análise posterior), mas que repetem com precisão todos os tropos
imperialistas com todos os signos que inferiorizam a África em todos os sentidos. O esforço
intelectual dessa dissertação é colaborar na percepção de que o eurocentrismo (e todas as
formas de discriminação dele decorrentes, como o racismo, a homofobia e o machismo) não é
uma herança genética, é tão somente um discurso historicamente situado e aprendido. Como
afirmou há tanto tempo Simone de Beauvoir, a rejeição a noções como o „eterno feminino‟, a
„alma negra‟ e o „caráter judeu‟ é uma atitude política necessária, uma vez que essas noções
que subalternizam o Outro, em sua origem eurocêntrica comum, tiram “seus argumentos do
estado de fato que ela criou”, citando uma famosa frase de George Bernard Shaw: “O
americano branco relega o negro ao nível do engraxate; e concluí daí que só pode servir para
engraxar sapatos” (BEAUVOIR, 1970, p. 18). As justificativas pseudocientíficas para o
eurocentrismo já vêm sendo intelectualmente combatidas há muito tempo, e essa dissertação
apenas se lança em mais um flanco que precisa ser aberto nesse combate, pois, mais uma vez
citando Beauvoir, “diga-se mais uma vez, não é a fisiologia que pode criar valores. Os dados
biológicos revestem os que o existente lhes confere” (BEAUVOIR, 1970, p. 57).

Gostaria de usar as palavras de Ismail Xavier no prefácio de Crítica da imagem


eurocêntrica para ressaltar ainda mais a relevância do contexto histórico analisado nesse
capítulo:

Se quisermos abolir as fronteiras ou a desigualdade, cabe explicar o que as


constrói, analisar a retórica que as sustenta, fazer o retrospecto histórico dos
“tropos do império”. Este é um campo de tradições revitalizadas que cumpre
um papel na batalha das imagens, dimensão fundamental das empreitadas
imperiais que têm definido novas formas de guerra que, high tech em seus
instrumentos, são, no entanto, fundamentalistas e messiânicas na inspiração-
legitimação. Exibem algo a que o expectador de cinema e TV se habituou ao
assistir aquelas superproduções que, de D.W. Griffith a Stephen Spielberg,
têm misturado tecnologia de ponta com a farta reciclagem das mitologias
imperiais (Apud SHOHAT & STAM, 2006, p. 14).

Antes de dar o passo seguinte na dissertação, analisando as permanências políticas e


estéticas do Imperialismo no cinema contemporâneo, porém, gostaria de dedicar um tópico
para abordar sucintamente uma questão a que fiz constantes referências: as resistências
africanas. O próximo tópico se dedica a abordar e lançar algumas reflexões sobre essa
temática, de maneira que se encaixa no tema geral da dissertação (a imagem da África no
164

cinema contemporâneo), uma vez que, levados em conta, os fatores a seguir arrolados
certamente implicariam em representações significativamente diferentes daquele continente.
165

SILÊNCIOS ENSURDECERORES: AS RESISTÊNCIAS AFRICANAS

Em seu último romance, Caim, o escritor José Saramago remete àquela categoria de
fatos que os historiadores gostariam de “condenar ao esquecimento, em definitiva quarentena,
no limbo daqueles sucessos que, para tranquilidade das dinastias, não é conveniente arejar”
(SARAMAGO, 2009, p. 71). Certamente, a tranquilidade do pensamento eurocêntrico
repousa em grande parte na espécie de acordo tácito estabelecido pela historiografia
hegemônica euro-estadunidense no que se refere à resistência africana à tão propalada
„partilha da África‟ – fato inconveniente de se arejar. O povo judeu organizado não permite
em parte alguma do globo, com absoluta razão, que o Holocausto nazista seja negado ou
esquecido. O governo do país que perpetrou a barbárie participou de muitos modos de
reparação às vítimas e seus descendentes. Hitler e Klaus Barbie, cognominado “carrasco de
Lyon”, só a tìtulo de exemplo, são cotidianamente citados como o pior exemplo do que a
sociedade humana pôde produzir. Correto. Mas porque não é feito o mesmo em relação a
Guilherme II e Lothar von Trotha? E a Leopoldo II e todos os outros protagonistas da invasão
à África, para não parecer que se deseja apontar apenas genocidas alemães? Por que o
Holocausto é ensinado como absolutamente hediondo e a „Partilha da África‟ simplesmente
como um conteúdo a mais no currículo, arrematado em um parágrafo ou dois na maioria dos
livros didáticos? A resposta pode ser inferida a partir das falas, referidas algumas páginas
atrás, de Marc Ferro e de Aimé Cesáire52: Os genocidas e os funcionários que participaram do
massacre de populações africanas no contexto do Imperialismo não são assim classificados na
historiografia hegemônica pela simples razão de que as teorias que justificaram aqueles atos
ainda são, em larga medida, implicitamente aceitas. De modo que àqueles acontecimentos não
é concedido o status de Genocídio, definido como "a recusa do direito à existência de inteiros
grupos humanos", termo jurídico criado especificamente no contexto da Segunda Guerra
Mundial para designar um tipo específico de crime contra a humanidade:

No significado atual, o termo [Genocídio] foi usado pela primeira vez em


1944 por R. Lemkin para indicar a destruição em massa de um grupo étnico,
assim como todo projeto sistemático que tenha por objetivo eliminar um
aspecto fundamental da cultura de um povo. Assim definido, o Genocídio é
tão antigo quanto a história humana, mas somente após a Segunda Guerra
Mundial a comunidade internacional, estarrecida pelos enormes crimes
cometidos pela política racista do nazismo, sentiu necessidade de fixar
normas de direito internacional para coibir tal delito (BOBBIO, 1986, p.
543).

52
Página 132 desta dissertação.
166

Percebe-se uma cruel e velada tautologia nesse estado de coisas: se os africanos não
se encontram no mesmo patamar de „humanidade‟ que os europeus, não podem ser vítimas de
genocídio, nem mesmo em casos como o já citado massacre dos herero na África do
Sudoeste53. A negação do genocídio africano do período imperialista passa pela alegação de
facilidade do empreendimento, inclui dizer que se tratou de uma simples „partilha‟, que os
europeus simplesmente ocuparam vastos territórios escassamente povoados por tribos
desorganizadas. Envolve silenciar a respeito da resistência africana, e das características das
diversas sociedades e Estados africanos. Envolve esquecer quem foi, a título de exemplo, o
Lothar von Trotha que acabei de citar e que muito provavelmente o leitor desconhece, e deve
estar reclamando da ausência de contextualização ante a inserção desse personagem na
narrativa. O que quero denunciar é exatamente isso: o fato de o nome desse criminoso de
guerra e genocida não ser ensinado nas escolas é um indício contundente da atitude geral da
cultura eurocêntrica em relação ao Imperialismo e à invasão do continente africano. Uma
indesculpável e permanente condescendência.

Marc Ferro afirma: “Na América, as revoltas dos negros foram extremamente
numerosas – mas, por terem fracassado, a não ser a última, no Haiti, não tiveram o direito de
entrar para a História” (FERRO, 1996, p. 141). O mesmo pode ser dito a respeito das
resistências africanas – no plural, pois obviamente não existiu uma „frente unificada‟ de
resistência aos invasores. Nesse ponto da dissertação, a intenção é mostrar uma visão a
contrapelo, realizando uma breve discussão sobre as resistências africanas a fim de contrapor
aos fatos que „entraram para a História‟, e que resultaram na imagem da África que os filmes
repetem atualmente, visão que, levada em conta, muda significativamente a percepção de
África. Tendo em vista as limitações da abordagem de um tema tão amplo em um espaço tão
exíguo de uma dissertação que, ela mesma, não comportaria uma merecida análise profunda,
quero registrar a sugestão de algumas leituras básicas sobre a temática: o sétimo volume da
coleção História Geral da África, A África sob dominação colonial, organizado por Albert
Adu Boahen, contém vários capítulos dedicados às iniciativas e resistências africanas à

53
Cabe ressaltar que em 2004 o governo alemão ofereceu sua primeira apologia formal para o massacre do povo
herero, embora tenha ainda descartado a possibilidade de compensação financeira para os descendentes das
vítimas, sob o argumento de que as leis internacionais a respeito de genocídios ainda não estavam em vigor por
ocasião do massacre. Os herero atualmente movem uma ação judicial nos EUA contra o governo alemão. Não
obstante, o que está sendo discutido na dissertação é a atitude da historiografia eurocêntrica sobre tais fatos, não
posicionamentos legais de governos específicos. Para mais informações, inclusive sobre o campo de
concentração da ilha Shark, consultar: http://afraf.oxfordjournals.org/content/106/422/113.abstract /
http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/3565938.stml http://jornalorebate.com.br/site/internacional/4499-o-genocidio-
esquecido--a-revolta-dos-hereros-e-nama-na-namibia. Acessados em 10/02/2012.
167

invasão, divididos por região (ADU BOAHEN, 2010)54; o capìtulo “A invenção da tradição
na África colonial”, de autoria de Terence Ranger, na obra A invenção das tradições
(HOBSBAWN & RANGER, 1997); o capìtulo “A visão dos vencidos”, na obra História das
colonizações, de Marc Ferro (FERRO, 1996); e “A resistência africana”, tópico no terceiro
capítulo de História da África negra Vol. II, de Joseph Ki-Zerbo (KI-ZERBO, 2002). Antes
de adentrar no tema, porém, gostaria de tomar a liberdade de fazer uma breve digressão, a fim
de corroborar a afirmação de que a África foi inventada no contexto do Imperialismo,
refletindo sobre como a Europa compreendia o continente antes desse período.

Ibi sunt leones. Aí existem leões. A frase, estampada por muito tempo pela cartografia
europeia em seus mapas e portulanos, citada por J. Ki-Zerbo em sua introdução geral ao
primeiro volume da coleção História Geral da África (KI-ZERBO, 1982, p. 21), resumiu
durante muito tempo o conhecimento que a classe intelectual europeia possuía acerca do
continente africano. Era um enorme „espaço em branco‟, onde a entrada em massa de
europeus esteve vedada por séculos, dando azo às mais esdrúxulas conjecturas a seu respeito
desde a Antiguidade. Não obstante, registros históricos como os relatos bíblicos, as
Antiguidades Judaicas de Flávio Josefo, o Kephalaia persa, ou os escritos de autores gregos
como Heródoto e Cláudio Ptolomeu dão conta de que em priscas eras o continente africano
gozava de reputação muito distinta da que passou a possuir no século XIX. Povos africanos
eram listados entre as mais temíveis classes de guerreiros conhecidos, nações africanas eram
listadas entre os reinos mais importantes e influentes do mundo55. Em suma, apesar de não
existir um conhecimento aprofundado, a imagem da África era concebida em termos de
igualdade com as outras regiões conhecidas pelo homem.

Isso significa que para os gregos, por exemplo, os africanos, apesar de serem “homens
de elevada estatura e muito belos e de uma longevidade excepcional” (HERÓDOTO, p.185),
eram compreendidos como bárbaros, tais como os citas ou os celtas, uma vez que é bem
conhecida a noção de bárbaro que permeava a sociedade grega, e posteriormente a romana:

54
Lembrando que os 8 volumes da coleção História Geral da África se encontram disponíveis para download
gratuito em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=16146 Acessado em
11/03/2012.
55
Alguns exemplos de referências bíblicas à Etiópia: Naum 3: 9 (“A Etiópia era sua plena força, e também o
Egito”); 2 Reis 19: 9 (“Ouviu então dizer a respeito de Taraca, rei da Etiópia: “ele saiu para lutar contra
ti”. Quando ouviu, enviou imediatamente mensageiros a Ezequias dizendo...”); Salmo 68: 32 (“Do
Egito venham os grandes, e a Etiópia estenda as mãos para Deus”); 2 Crônicas 14: 8-12 (“saiu contra
eles Zerá, o etìope, com um exército de um milhão de homens e trezentos carros...”).
168

bárbaro é aquele que balbucia, que não sabe falar – isto é, qualquer não-grego, qualquer
estrangeiro que não falasse grego, ou latim. Puro etnocentrismo; uma das mais fortes
características do gênero humano, e não apenas de gregos e romanos. No capítulo anterior
apontei as considerações feitas por François Hartog tendo essa característica em vista, aquilo
que ele chama de “retóricas da alteridade próprias das narrativas que falam sobretudo do
outro” (HARTOG, 1999, p. 229). Assim, viajantes como Heródoto, no século V antes de
nossa era, utilizaram esse tipo de fórmula para contar aos seus iguais os Outros que
encontraram em suas viagens. Ora, os povos africanos não escaparam dessas formulações, e
foram objeto de especulações as mais esdrúxulas, como já dito. Cabe ressaltar que a utilização
de mecanismos simbólicos de exclusão não é uma „tradição‟ exclusivamente europeia, todos
os povos em todas as épocas utilizaram algum recurso que os diferenciasse do „Outro‟,
embora não necessariamente menosprezando-o; entrementes, é óbvio que as formulações
oriundas do legado cultural europeu têm nitidamente mais influência sobre nossa sociedade
do que qualquer outra. A questão que desejo sublinhar é que, muito embora em escritos de
viajantes, geógrafos ou historiadores europeus desde a Antiguidade a África seja descrita
muitas vezes de forma negativa, isso não resulta de uma vilania especialmente direcionada, de
um preconceito específico em relação àquele continente, uma vez que essa era (e
provavelmente ainda é) a regra quando o assunto é a descrição do Outro. Não é daí que vem a
imagem negativamente estereotipada da África que perdura ainda hoje. Os povos germânicos,
por exemplo, foram alvo de descrições, por parte dos romanos, certamente tão negativas
quanto os africanos, ou até piores, mas dificilmente podemos afirmar que seus descendentes
contemporâneos carregam a pecha de „povos bárbaros‟, que era atribuìda aos seus ancestrais.
Como afirmam Shohat e Stam, “durante séculos, houve um contato considerável entre a
África e a Europa, e até 1492 o estado de desenvolvimento dos dois continentes era
relativamente igual” (SHOHAT & STAM, 2006, p. 93). Citando John Thornton, esses autores
lembram que

A África possuía uma economia variada e produtiva, com fortes indústrias


metalúrgicas e têxteis. Antes de 600 a.C., os africanos já haviam
desenvolvido técnicas de trabalho com ferro e fornalha que viriam a ser
usadas na Europa somente no século XIX. As exportações de tecidos do
Congo durante o século XVII eram tão grandes quanto aquelas de centros
têxteis europeus importantes como Leiden. De fato, nos primeiros anos de
comércio atlântico, a Europa tinha pouca coisa para vender na África que os
próprios africanos já não produzissem (SHOHAT & STAM, 2006, p. 93). 56

56
Importante ressaltar que esse tipo de comparação não objetiva “parabenizar a África por ter atingido critérios
eurocêntricos de civilização”, mas sim “questionar o abismo supostamente intransponìvel entre a Europa e a
África” (SHOHAT & STAM, 2006, p. 94).
169

No medievo, durante as Grandes Navegações e ao longo de todo o período do infame


comércio de seres humanos perpetrado pelos europeus da África para as Américas, o
continente africano foi muitas vezes objeto de narrativas de caráter negativo, principalmente
em decorrência do fato de que o acesso ao interior do continente era impossibilitado aos
europeus por uma série de razões – das conhecidas razões “médicas”, como a vulnerabilidade
dos europeus à malária, às pouco conhecidas, ou talvez pouco divulgadas, razões “militares”,
especialmente a encarniçada resistência africana, a ser brevemente esmiuçada adiante. O fato
é que também não são os conhecidos mapas medievais Orbis Terrarum, herdeiros da tradição
ptlomaica que referendava a Europa na posição Norte, simbolicamente superior e associada ao
céu, a Ásia no Leste, ou seja, o contrário da Europa, e a África abaixo, simbolicamente
inferior e associada ao inferno, como o Mapa dos Salmos de 1250 e suas „alegorias que
legitimam um código espacial de exclusão‟ (SERRANO & WALDMAN, 2007, p. 25;
NORONHA, 2000, pp. 681-689), nem tampouco encíclicas papais do século XV, como a
Dum Diversas e a Romanus Pontifex, que “deram direito aos Reis de Portugal de despojar e
escravizar eternamente os Maometanos, pagãos e povos pretos em geral” (LOPES, 1995, p.
22), nem pseudointerpretações de trechos da Bíblia como a ominosa teoria camita 57, que
originaram a imagem negativa que persiste da África em nossos dias. O que se pode dizer é
que todas essas representações negativas estereotipadas foram parte do combustível, utilizado
de maneira oportunista para a já citada invenção da África no século XIX, fornecendo alguns
dos ingredientes adicionados ao caldo de uma série de teorias e explicações criadas
objetivamente para desqualificar a África. A “inferioridade” da África foi uma invenção
ideológica do século XIX.

Chegando ao século da invenção da África, comecemos pela ideia tão comum na


historiografia hegemônica de que os europeus não haviam invadido/colonizado a África desde
o século XVI, como fizeram com as Américas, por uma simples e insuspeita falta de interesse.
A desfaçatez do argumento, cujo cinismo beira a zombaria, faz com que chegue a parecer
desnecessário arguir em contrário, mas o fato é que esta é a explicação “oficial” da
historiografia eurocêntrica para que a „Partilha da África‟ só tenha acontecido às portas do
século XX. Por que a ocupação da África só ocorreu no final do século XIX? Por que ela não
57
Em uma passagem do Gênesis (9:23-37), o patriarca Noé embriaga-se e um de seus filhos, Cam, zomba do pai
por estar bêbado e nu, sendo por isso amaldiçoado. Cam é considerado o ancestral bíblico dos africanos, e por
isso a chamada teoria camita, desenvolvida no contexto do tráfico atlântico de escravos, interpreta essa passagem
como uma justificativa bíblica para a escravidão dos negros. A bíblia não fornece nenhuma descrição da cor da
pele nem de Cam nem do próprio Noé.
170

foi ocupada ainda no século XVI pelos europeus, tal como se deu com as regiões que viriam a
ser conhecidas como América portuguesa e espanhola? Ora, como argumenta M. Ferro, “não
foi a falta de interesse pela África que freou o avanço dos diversos colonizadores dos séculos
XV a XIX, e nem suas opções comerciais, mas, de fato, a capacidade africana de se defender”
(FERRO, p. 226).

Façamos uma pausa para refletir no que M. Ferro acaba de nos dizer. Convido o leitor
a fazer um pequeno exercício mental, no sentido de rever uma ideia solidificada, de tentar
reelaborar algo que é provável que esteja internalizado em sua concepção de mundo desde
que se entende por gente. A África resistiu ao ímpeto colonialista europeu por mais de
trezentos anos. Foi o último continente a ser conquistado pela militaria europeia. Dar-se conta
disso implica deitar abaixo o mito de que a África não ofereceu resistência às grandes
potências, e acaba com a surpresa da „incrìvel rapidez‟ com que se deu a „partilha da África‟
no auge do Imperialismo, nas últimas décadas do século XIX. De fato, entre os anos de 1885
e 1914 – a „Era dos Impérios‟ – noventa por cento do território africano foi oficialmente
invadido e repartido por potências imperialistas europeias, mas a mesma tradição colonial
(aqui poder-se-ia ler/escrever: „historiografia eurocêntrica‟) que nessa época cuidou em criar
uma imagem subalterna e desqualificante para a África e os africanos, preocupou-se também
em esconder meticulosamente o fato de que, mal colocaram o pé em solo africano, os
europeus tiveram que começar a lidar com as acerbas resistências dos mais diversos povos
africanos. Em muitas regiões, ditas „colonizadas‟ e „ocupadas‟, transcorreram algumas
décadas até que essas resistências fossem razoavelmente „neutralizadas‟ 58. Ainda assim, de
uma maneira global, os custos para manter à força tais colônias era tão grande, tão
desvantajoso economicamente, que antes de meio século de dominação a maioria das grandes
potências começou a cogitar seriamente a possibilidade de „converter‟ tais colônias em
„parceiros‟ comerciais, como nações independentes. É o caso especialmente da Inglaterra.
Portugal foi a maior exceção. Como diz Edward Said,

em quase todos os lugares do mundo não europeu a chegada do homem


branco gerou algum tipo de resistência (...). Além da resistência armada em
locais tão diversos quanto a Irlanda, a Indonésia e a Argélia no século XIX,
houve também um empenho considerável na resistência cultural em quase
todas as partes (...). O contato imperial nunca consistiu na relação entre um
ativo intruso ocidental contra um nativo não ocidental ou passivo; sempre
houve algum tipo de resistência ativa e, na maioria esmagadora dos casos,
essa resistência acabou preponderando (SAID, 1995, p. 12).

58
Alberto da Costa e Silva apresenta um panorama muito didático e preciso da resistência processual africana à
ocupação europeia na sétima conversa de sua obra A África explicada a meus filhos (SILVA, 2008).
171

Além disso, creio que um dado de grande relevância geralmente escapa às análises
que ressaltam a celeridade da „Partilha da África‟ – aquelas já citadas afirmações
„estarrecidas‟ sobre como é impressionante o fato de que em algumas poucas décadas a maior
parte do continente foi militarmente ocupada pelos europeus (o que provaria a tese da
superioridade europeia) –; esse dado é o simples fato de que nunca antes na história havia se
investido tanto esforço e dinheiro em tecnologia e logística militar, como enfatiza Terence
Ranger:

Se o processo da conquista e da ocupação pelos europeus era claramente


irreversível, também era altamente resistível. Irreversível por causa da
revolução tecnológica – pela primeira vez, os brancos tinham uma vantagem
decisiva nas armas, e, também pela primeira vez, as ferrovias, a telegrafia e o
navio a vapor permitiam‑lhes oferecer resposta ao problema das
comunicações no interior da África e entre a África e a Europa. Resistível
devido à força das populações africanas (RANGER, 2010, p. 51).
Financeiramente, vale lembrarmo-nos do inédito poder monetário adquirido pela
burguesia europeia em função da Revolução Industrial no correr do século XIX, citado
anteriormente; tecnologicamente, todo o desenvolvimento da ciência moderna naturalmente
teve como um de seus desdobramentos o refinamento da tecnologia bélica. O ponto onde
quero chegar é que, à exceção das guerras de Bismarck pela unificação da Alemanha,
especialmente o cerco à Paris, e da guerra da Criméia, nunca antes na história se haviam
utilizado os recursos militares que foram colocados à disposição dos invasores da África.
Fala-se que os europeus tinham a metralhadora, e que por isso os africanos não eram páreo;
ressalta-se a superioridade bélica europeia, em comparação com a „rusticidade‟ da tecnologia
bélica africana, como explicação para a „rapidez‟ da „partilha‟, como na percebe na fala de
Albert Adu Boahen: “O poeta inglês Hilaire Belloc resume bem a situação: Aconteça o que
59
acontecer, nós temos a metralhadora, e eles não” (ADU BOAHEN, 2010, p. 7) . Ora, essa
superioridade, real, apenas ressalta a grandiosidade da resistência africana, e não o contrário:
apenas alguns anos depois do início da invasão à África, as potências europeias vão entrar em
guerra entre si, utilizando pela primeira vez em território europeu toda a tecnologia
acumulada e que até então só tinham usado contra as colônias. Aparentemente ninguém

59
“Além disso, os dirigentes africanos não sabiam que as espingardas que eles usavam e armazenavam ate então,
de carregar pela boca (os franceses tomaram 21365 espingardas dos Baule da Costa do Marfim, depois de
esmagada a sua ultima revolta, em 1911), estavam inteiramente fora de moda, não podendo ser comparadas aos
novos fuzis dos europeus, de carregar pela culatra, com cadência de tiro quase dez vezes superior e carga seis
vezes mais forte, nem às novas metralhadoras Maxim, ultrarrápidas” (ADU BOAHEN, 2010, p. 7). “Os exércitos
europeus dispunham de armas modernas: artilharia pesada, carabinas de repetição e sobretudo metralhadoras
Gatling e Maxim, além de contarem com a artilharia pesada das forças navais. Como Laroui assinala, os
europeus chegaram a empregar, no decorrer das últimas campanhas, veículos motorizados e aviões (UZOIGWE,
2010, p. 45).
172

conclui que qualquer dos paìses europeus é „inferior‟ ou „primitivo‟ por ter sido arrasado
(como praticamente todos o foram) quando esse poder de fogo foi usado contra eles mesmos
no decorrer da Primeira Guerra Mundial, mesmo todos os lados possuindo acesso
basicamente à mesma tecnologia bélica. Então dizer que a África é inferior por ter sido
combalida sob esse mesmo fogo cerrado só se justifica com o uso dos argumentos de
superioridade natural europeia.

Vejamos a „lista‟ com as razões que explicam a conquista da África pelos europeus,
feita por Godfrey N. Uzoigwe em um dos capítulos do volume da História Geral da África há
pouco citado. Primeiro: em razão dos já comentados extensos relatos de viagens, “os europeus
sabiam mais a respeito da África e do interior do continente – aspecto físico, terreno,
economia e recursos, força e debilidade de seus Estados e de suas sociedades – do que os
africanos a respeito da Europa”; Segundo, por causa das inovações da tecnologia médica, “os
europeus temiam menos a África do que antes de meados do século XIX”; Terceiro, a óbvia
disparidade entre os recursos materiais e financeiros que a burguesia europeia se esforçava em
acumular, e que não fazia parte da cultura de nenhum Estado ou povo africano, o que
significava que “se as potências europeias podiam gastar milhões de libras nas campanhas
ultramarinas, os Estados africanos não tinham condições de sustentar um conflito armado com
elas” (UZOIGWE, 2010, p. 44); e quarto, talvez o mais significativo:

Enquanto o período posterior a guerra russo‑turca de 1877‑1878 era


assinalado, segundo J. H. Rose, por “um estado de equilìbrio politico que
contribuiu para a paz e o imobilismo na Europa”, o mesmo perìodo, na
África, foi marcado por conflitos e rivalidades interestatais e intraestatais:
Mandinga contra Tukulor, Ashanti contra Fanti, Baganda contra Banyoro,
Batoro contra Banyoro, Mashona contra Ndebele etc. Assim, a Europa podia
concentrar-se militarmente de maneira quase exclusiva nas atividades
imperiais ultramarinas, mas os países e os Estados africanos tinham suas
forças paralisadas pelas lutas intestinas. Além disso, as potências europeias
conviviam pacificamente, conseguindo resolver os problemas coloniais que
as dividiam no decorrer da era da partilha e até 1914 sem recurso à guerra.
Não obstante uma intensa rivalidade e numerosas crises na África, as
potencias europeias envolvidas na partilha demonstraram notável espirito de
solidariedade, que não só preveniu qualquer guerra entre elas, como também
impediu os dirigentes e as comunidades da África de jogarem, de modo
eficaz, os países da Europa uns contra os outros (UZOIGWE, 2010, p. 44).
Isto é, nos últimos anos do século XIX, as potências europeias se mantinham em paz
entre si enquanto agrediam de forma combinada os Estados e povos africanos, ajudando-se
mutuamente em tal empenho, enquanto a África vivenciava um período de guerras internas,
como tantos que sucederam na própria Europa. Imaginemos, a título de comparação, uma
invasão chinesa maciça à Europa durante a guerra dos trinta ou dos cem anos, e teremos um
173

parâmetro avaliativo. É irrealista e anacrônico esperar que os Estados africanos tivessem


desenvolvido algum tipo de aliança entre si contra os invasores europeus. Leila Hernandez
usa a expressão “processo de roedura” pra designar a presença constante de exploradores
europeus no continente “iniciado por volta de 1430 com a entrada portuguesa na África”
(HERNANDEZ, 2005, p. 45). Discordo do entendimento segundo o qual a „partilha‟ seja o
auge de um processo lento de invasão; acredito que, embora sempre houvesse desejo de
colonizar e explorar o continente, e a presença e os contatos nas bordas, a „Partilha da África‟
se situa num contexto histórico específico, atendendo a demandas específicas, numa
conjuntura totalmente diferente dos séculos anteriores. O fato para que a fala de Hernandez
aponta, no desenvolvimento do argumento desta dissertação, é que durante séculos as regras
de convivência dos povos e Estados africanos com a presença europeia eram estabelecidas
numa relação de igualdade, independente do que os europeus pensassem sobre os africanos;
assim como eram as relações destes com os povos árabes, que negociaram com Estados
africanos durante séculos, entre muitas outras coisas, escravos60. Isso significa que,
militarmente, por exemplo, derrotas e vitórias eram irregularmente distribuídas, nos eventuais
enfrentamentos. A inaugural entrada dos portugueses na África em 1430 teve como uma das
consequências a esmagadora derrota de Dom Sebastião pelos africanos, o que demonstra que,
a não ser pelo desejo de dominação europeu, não há nenhuma relação de continuidade entre
este acontecimento e a „Partilha da África‟. Do ponto de vista militar e diplomático, os
europeus (quaisquer que fossem) constituíam apenas mais um dentre os diversos povos com
que cada Estado africano travava relações – recordemos que a própria noção de „africano‟, de
pertencimento a uma unidade maior chamada África, não existia. Era-se baganda, mandinga,
bambara, banyoro, tukolor ou ashanti, mas ninguém se identificaria como „africano‟. A
sensação de pertencimento era, quando e se existisse, ao seu Estado ou povo, e não a uma
entidade que só existia para a racionalidade europeia, a África inventada. É historicamente
anacrônico e injusto se falar em falta de solidariedade entre os africanos por não resistirem em
bloco à invasão europeia no processo de „partilha‟.

60
A fim de somar no esforço de desmistificação do repertório semântico utilizado para descrever a África,
gostaria de lembrar a etimologia de escravo, palavra consagrada como sinônimo de negro na retórica
eurocêntrica. Nas palavras de Serrano e Waldman: “O ápice da escravização na Europa ocorreu entre as
populações eslavas do Leste. Abrigando pequenos grupos que no alvorecer da Idade Moderna ainda
permaneciam “pagãos”, essas populações foram alvo de cruzadas implacáveis que reduziram muitos dos grupos
capturados à condição de escravos vendidos para países estrangeiros. No mundo muçulmano, as altas
personalidades viviam cercadas por escravos sakaliba, termo procedente de Eslavônia, topônimo que definia
regiões por eslavos. Não por acaso, a expressão eslavo teminou etimologicamente identificada à classe de
pessoas privadas de liberdade. É de eslavo que procedem: slave, em inglês; sklaven, em alemão; esclave, em
francês; esclavo, em castelhano; e escravo, em português” (WALDMAN & SERRANO, 2007, p. 198).
174

O grande problema dessas análises é a perspectiva eurocêntrica a partir da qual elas


são geralmente elaboradas; a questão central é que as realidades da África, sempre
interpretadas a partir do prisma eurocêntrico, são entendidas na maioria das vezes de maneira
totalmente errada, como, por exemplo, o fato de muitos africanos terem incorporado costumes
europeus ser interpretado como “aculturação” decorrente do “atraso” cultural desses povos.
As características dos diversos povos africanos não são levadas em conta nessa interpretação;
a análise toma como ponto de partida e de chegada os padrões europeus. A adaptação como
uma característica de muitos desses povos, apontada por Terence Ranger, não é levada em
conta:

Quase todos os estudos recentes sobre a África pré-colonial do século XIX


frisaram que, longe de existir uma identidade “tribal” única, a maioria dos
africanos assumia ou rejeitava identidades múltiplas, definindo-se em certos
momentos como súditos de um chefe, em outros como membros de uma
certa seita, em outros, ainda, como membros de um clã, e em outros
momentos como iniciantes numa categoria profissional. Tais redes
superpostas de associação e permuta estendiam-se por amplas áreas. Assim
as fronteiras da comunidade “tribal” e as hierarquias de autoridade nelas
existentes não definiam os horizontes conceituais dos africanos (...). As
tribos modernas da África central não são restos de um passado pré-colonial,
mas criações coloniais de administradores coloniais e intelectuais africanos
(RANGER, 1997, p. 255).
Acredito que serão necessários diversos estudos em profundidade sobre ao menos
algumas das centenas de sociedades encontradas em território africano, para que comece a ser
construído e popularizado um conhecimento descolonizado, que leve em conta as razões
profundas, não reducionistas de caráter eurocêntrico, para a assim chamada “Partilha da
África”. Estudos como A conquista da América, de Tzvetan Todorov, que tenta explicar, nos
termos dos padrões culturais das sociedades maia e asteca, o processo de „conquista da
América‟. Levando-se em conta aspectos culturais, psicológicos e religiosos, entre outros, que
influenciaram, às vezes de modo determinante, o curso dos acontecimentos (como, por
exemplo, a imensa rede de burocratização e hierarquização da sociedade e o desprezo asteca –
ou melhor, mexica – pela iniciativa individual), a explicação eurocêntrica de que os europeus
prevaleceram por serem „superiores‟ simplesmente cai por terra (TODOROV, 1999, pp.
79,80). Encontram-se as razões orgânicas, históricas em sua complexidade, para os
acontecimentos terem tomado um curso ao invés de outro.

Outro exemplo de estudo desmistificador da história hegemônica eurocêntrica,


também sobre a invasão da Mesoamérica, é Sete mitos da conquista espanhola, onde Matthew
Restall apresenta “interpretações históricas da Conquista como mitos derivados de
175

concepções e ilusões culturais e pretensões polìticas de seu próprio tempo” (RESTALL, 2006,
p. 18), analisando não só os relatos escritos à época dos acontecimentos, pelos „vencedores‟,
mas também a versão dos fatos engendrada pelos historiadores que se proclamam imparciais e
objetivos. Restall elege alguns tropos narrativos repetidos nos relatos e na historiografia sobre
a „conquista da América‟, e dedica um capìtulo à análise de cada um desses mitos
historiográficos. A análise de Restall mostra, por exemplo, que as versões da história que
apresentam os espanhóis como um punhado de aventureiros intrépidos e destemidos
“dissimulam o caráter prolongado e incompleto da Conquista, bem como os papéis cruciais
desempenhados por “aliados” americanos nativos” (RESTALL, 2006, p. 21), aliados que
nomeia como „guerreiros invisìveis‟, já que não entram na conta do relato na historiografia
hegemônica. Quando se leva em conta que milhares de guerreiros tlaxcaltecas, inimigos
históricos dos mexicas, lutaram ao lado de umas parcas centenas de espanhóis na conquista de
Tenochtitlán, o mito da superioridade espanhola não se sustenta (RESTALL, 2006, pp. 98-
106). Será que se fosse levado em conta, e constasse nos livros didáticos, o fato de que “as
potências europeias, independentemente dos exércitos próprios, podiam engajar mercenários e
recrutas africanos, o que lhes dava, quando necessário, superioridade numérica” e que a maior
parte dos exércitos invasores “recrutava tropas entre os africanos, sendo europeus apenas os
oficiais” (UZOIGWE, 2010, p. 45) no decorrer da „partilha da África‟, o mito da
superioridade europeia nesse caso também se sustentaria?

As formas de resistência africanas foram muitas e variadas, desde formas de


resistência cultural à resistência armada propriamente dita. Um exemplo do primeiro caso é a
reação dos agnis da Costa do Marfim à imposição colonial da cultura do cacau:

toda noite, eles iam despejar água fervendo nas mudas de cacau que os
haviam obrigado a plantar. Foi só mais tarde que perceberam que o produto
lhes rendia algum dinheiro que poderiam utilizar. Esses mesmos agnis
passavam por inaptos para o trabalho manual, e até para qualquer trabalho: a
verdade é que tinham uma etiqueta complicada, a qual respeitavam, e que os
proibia, sobretudo às classes superiores, de trabalhar em público. Eram
taxados de “preguiçosos”, quando na verdade mostraram que podiam ser
extremamente ativos. A inadaptação ao “progresso”, tal como entendido pelo
colonizador, podia se manifestar sob outras formas de “resistência”
cultural... (FERRO, 1996, p. 37)
Referindo-se à resistência armada no extremo sul do continente, a título de exemplo,
Marc Ferro informa que no Transkei os xhosas barraram o avanço europeu por mais de um
século, determinando assim “os locais de implantação dos colonos, que se instalaram ali onde
puderam” (FERRO, 1996, p. 261); o mesmo fizeram os zulus no Natal, os sothos nas
planícies centrais, os bapedis no Transval e os nandabeles no Zambeze. Nos parágrafos
176

iniciais do tópico Contra-história da resistência africana, Ferro faz a seguinte afirmação, que,
apensar de potencialmente questionável no que diz respeito ao Brasil, revela a dimensão da
resistência armada em diversos lugares na África:

A verdade é que no Brasil os conquistadores só enfrentaram tribos esparsas,


enquanto na África negra os povos do Mali, do Congo etc. os impediram
de se instalar de verdade – o que os portugueses conseguiram dois séculos
depois em Angola e Moçambique, assim como os outros europeus em
diversas regiões do continente. Portanto, convém ter em conta a resistência
africana, que a historiografia europeia suprimiu, para explicar o que, no
século XVI, conseguiu frear os conquistadores (FERRO, 1996, p. 225.
Grifos meus).
Os combates mais „espetaculares‟ no correr do século XIX aconteceram
evidentemente nas áreas da África que possuíam grandes Estados organizados, muito embora
a própria existência destes “a tradição colonial pretenda ignorar” (FERRO, 1996, p. 228). São
originados dessas formações estatais os nomes mais „famosos‟, por assim dizer, da resistência
africana no decorrer do século XIX, tais como Chaka, Usman dan Fodio, El-Hadj Omar Tall,
Samori Turé, Mohamed Ahmed (o Mádi), Menelique II, Lat-Dyor Diop, Mamadu Lamine
Dramé, entre outros. Apesar de esses nomes e seus Estados terem ganhado o status de
lendários e simbólicos das resistências aos europeus, Marc Ferro afirma que “foram as
formações estatais menos elaboradas, menos centralizadas que, a mais longo prazo,
opuseram-se de modo mais continuado aos europeus” (FERRO, 1996, p. 229); porém, se por
um lado “a lenda popular ou erudita transformou esses chefes derrotados em verdadeiros
heróis”, por outro “a resistência camponesa, espontânea e de curta duração, não deixou
recordação legendária semelhante” (FERRO, 1996, p. 229). O velho condicionamento
eurocêntrico: “aquelas terras não têm arquivos escritos, portanto não têm “verdadeiro” Estado,
portanto não têm história” (FERRO, 1996, p. 229).

A situação das sociedades e Estados africanos antes e durante a invasão europeia era,
assim como qualquer outra sociedade humana, “infinitamente complexa” (RANGER, 1997. p.
257), em larga medida incompreensível para os europeus, que não conheciam (e podemos
inferir que não se interessavam em conhecer) as características próprias de cada uma daquelas
sociedades, e então simplesmente as enquadraram nos padrões europeus, rotulando-as de
inferiores; a África „precisou‟ ser explicada, harmonizada a modelos inteligíveis para os
europeus, ao pensamento cartesiano. “As pessoas precisavam ser “reconduzidas” a suas
identidades tribais”, de maneira que foram inventadas tradições africanas para a própria
África, a fim de torná-la inteligível para o modo de pensar europeu, que só considera legítimo
algo que, na sua concepção, é tradicional (RANGER, 1997. p. 255). As palavras do
177

antropólogo Paul Mercier resumem a atitude necessária para a construção de um


conhecimento desmistificado não só sobre a invasão europeia, mas sobre a África de maneira
geral: “Só o estudo dos „problemas‟ que cada grupo humano tem de resolver permite captar a
sociedade humana em movimento, numa história, permite compreender e interpretar os
conflitos, as tensões e as contradições internas que ela apresenta” (MERCIER, 1986, p. 154).
Só com esforço intelectual sério nesse sentido serão superadas ideias como a da
“desorganização” da África antes da ocupação europeia, que nada mais é que o não
reconhecimento, por parte dos europeus, dos padrões internos africanos de comércio, política,
comunicação, definição de limites territoriais, etc. (RANGER, 1997, p. 256). Ideias como essa
fizeram com que praticamente tudo o que se escreveu sobre a África, “em particular entre as
últimas décadas do século XIX e meados do século XX”, estivesse eivado de “equìvocos, pré-
noções e preconceitos decorrentes, em grande parte, das lacunas do conhecimento quando não
do próprio desconhecimento sobre o referido continente” (HERNANDEZ, 2005, p. 18) 61.
Pode-se acrescentar a isso praticamente tudo que foi filmado sobre a África.

Afirmar a „falta de solidariedade‟ entre os africanos mediante a invasão da África


repete o mesmo “erro” da justificativa para a escravidão atlântica que se baseia no fato de “os
africanos já escravizarem uns aos outros”. Além de hipócrita, pois implicitamente afirma que
entre os próprios europeus nunca existiu escravidão, é intelectualmente desonesta na medida
em que pressupõe que as sociedades africanas não estão e sempre estiveram sujeitas ao
mesmo dinamismo contraditório que rege a existência de qualquer sociedade humana; fazer
isso nega a essas sociedades “o estatuto de sociedades humanas, pois não se conhece
formação social isenta de antagonismos internos; eles são a mola propulsora de qualquer
processo histórico-social” (WALDMAN & SERRANO, 2007, p. 198). Mas no contexto de
um discurso histórico e cultural hegemônico, eurocêntrico, sobre a temática, tais explicações
são recorrentes. Podem ser chamadas de “manobra camufladora” – o discurso marcadamente
ideológico não pode explicar tudo, sob pena de se autodestruir, expondo suas próprias
contradições. Por isso ele é caracteristicamente marcado pela presença de silêncios, de
espaços em branco. Os filmes sobre a África são repletos desses silêncios. Embora esteja à
disposição um vasto material sobre a complexidade e riqueza das sociedades africanas no

61
Sobre as lacunas no conhecimento das sociedades africanas, convém considerar o estudo de Pierre Clastres A
sociedade contra o Estado (CLASTRES, 2003), que analisa a dinâmica de sociedades que rejeitam a perspectiva
eurocêntrica de organização social, bem como Costumes em comum (THOMPSON, 2002), onde E.P. Thompson
mostra como a ascensão da burguesia está relacionada com profundas mudanças na organização social europeia
– em muitos aspectos, como a relação com o tempo, por exemplo, as sociedades europeias pré-ascensão do
sistema-mundo capitalista guardam similaridades com as sociedades africanas à época do Imperialismo.
178

período que antecedeu a invasão imperialista, e mesmo sobre as contradições desse período –
a exemplo, mínimo, das obras acima citadas –, os filmes sempre dão a entender que a África
sem a presença europeia era „degenerada‟, se constituìa num vazio de humanidade, carecendo
desde sempre de intervenção dos „homens civilizados‟. Embora haja abundante e relevante
material contemporâneo que explica a complexidade das atuais sociedades africanas, os
filmes, mesmo os produzidos sob a égide das „boas intenções‟, continuam utilizando-se de
tropos narrativos carregados de ideologia subalternizante.

Os silêncios da indústria cinematográfica sobre as contradições e assimetria das


relações internacionais do „ocidente‟ com o continente africano são necessários, mesmo que
num nível subliminar para seus próprios realizadores, por que falar/mostrar isso implicaria em
sabotar a própria indústria cinematográfica, que faz parte de um complexo sistema – o
sistema-mundo moderno – que se mantém justamente por explorar sistematicamente o Outro,
e o Outro africano é apenas mais um dentre as „vìtimas‟ do discurso eurocêntrico. Isso porque
toda ideologia é intolerante em relação à novidade – no caso, o novo é uma visão diferente
sobre a África inventada. O quinto traço da função geral da ideologia, segundo Paul Ricouer,
é sua inércia, sua determinação de que o “novo só pode ser recebido através do tìpico”
(RICOUER, 1990, p. 70). Ora, “a ideologia é conservação e resistência às modificações. O
novo põe em perigo as bases estabelecidas da ideologia”, o que conduz a um necessário, para
a manutenção do status quo, “estreitamento das possibilidades de interpretação dos
acontecimentos” (BRANDÃO, 2004, p. 28).

Grande parte dos conteúdos do que eu chamo de África inventada se desenvolveu no


próprio decorrer da invasão. A pretensão de superioridade europeia demandava (quase que
ingenuamente, pode-se pensar) dos “povos inferiores” uma gratidão e um apreço pelo esforço
que os europeus estavam fazendo, em abandonar seus lares e „carregar esse fardo‟ de levar a
civilização até eles. A resistência é um choque para o europeu convencido da missão
civilizadora, como expressa Albert Schweitzer nas palavras de um administrador colonial,
associando a religiosidade islâmica à resistência cultural:

Para o negro maometano, nada está realmente bom. Pode-se construir para
ele estradas de ferro, abrir-lhe canais, gastar centenas de milhares de francos
para a irrigação das terras que ele cultiva; isso não lhe impressionará em
nada, pois é visceralmente indiferente a tudo quanto seja europeu, seja qual
for a vantagem que lhe propiciarmos (SCHWEITZER, 2010, p. 23).
Eis a reação que o europeu espera dos „nativos‟, e sua indignação quando ela não vem:

Quando construímos a primeira estrada de ferro em Madagascar, os nativos


se aglomeravam em torno da locomotiva o dia todo, manifestando alegria e
179

surpresa sempre que ela expelia vapor, e procuravam explicar uns aos outros
como era que tal máquina podia se pôr em marcha. Já numa cidade do
continente de população muçulmana, havíamos utilizado a força hidráulica
para a instalação de iluminação elétrica e esperávamos que a população se
surpreendesse com tamanha claridade! Pois logo na primeira noite em que as
lâmpadas se acenderam, todos combinaram de permanecer em suas casas e
choupanas para deixar patente sua apatia ante tal inovação (SCHWEITZER,
2010, p. 24).
A atitude resumida na frase do líder argelino Ferhat Abbas, que lutou na libertação da
Argélia do jugo francês, era incompreensível para o colonizador mergulhado na ideia de
missão civilizadora: “Pouco me importa se instalam luz elétrica na minha casa, se a casa não é
minha” (Apud FERRO, 1996, p. 268). Ao contrário da tão presumida, na historiografia
hegemônica, passividade africana, que é uma releitura do tropo da inferiorização por meio da
infantilização do „nativo‟, foi justamente a resistência encarniçada – entendida pelo invasor
como recusa ao progresso – um dos elementos que mais contribuiu para o retrato do africano
como bárbaro, como vimos a respeito do retrato que Júlio Verne pinta dos africanos que
resistem aos invasores franceses.
180

CINEMA: DOCUMENTO, CULTURA HISTÓRICA OU ESCRITA DA HISTÓRIA?

“Faça isso, mas não diga nada a ninguém.” Esse foi o conselho de Fernand Braudel a
Marc Ferro no começo dos anos 1960, quando este último expressou o desejo de estudar
filmes como documentos históricos. Pierre Renouvin acrescentou: “Antes, defenda sua tese de
doutorado” (FERRO, 2010, p. 9). A postura que então caracterizava uma heterodoxia tão
patente tornou-se lugar comum em nossos dias: rarissimamente se encontra um historiador
que questione a legitimidade de filmes como documentos históricos. Já nos anos 1970 o
cinema havia sido “elevado à categoria de “novo objeto”, definitivamente incorporado ao
fazer histórico dentro dos domìnios da chamada História Nova” (MORETTIN, 2007, p. 39).
Muito debate marcou e continua sendo parte distintiva dessa área de estudos históricos, e é
certo que a imensa maioria dos historiadores se utiliza de outras fontes, mas o estatuto de
fonte histórica adquirido pelos filmes não é mais combatido. Numerosas teses de doutorado
são produzidas a partir de tais fontes. De modo que não vejo a necessidade de adentrar num
debate sobre esse mérito, tendo em vista que o considero o próprio pressuposto legitimador
desta dissertação em si mesma.

Dentre os muitos estudos sobre a relação cinema-história, indico a introdução de O


canibalismo dos fracos, do historiador Alcides Freire Ramos (RAMOS, 2002), como uma
leitura de iniciação ao tema. Texto especialmente relevante por sua concisão e precisão, nela o
autor faz uma revisão histórica das „vicissitudes da relação história-cinema‟, apresentando o
percurso do debate desde os estudos inaugurais de Marc Ferro, e anteriores a ele. O texto
Apologia da relação cinema-história, de Jorge Nóvoa, também se enquadra em tal descrição
(NÓVOA & BARROS, 2008). Além deles, a leitura do conjunto de textos de Marc Ferro,
reeditado há pouco e contendo alguns inéditos no Brasil, Cinema e História (FERRO, 2010) é
obviamente leitura obrigatória para o historiador com interesse na área. No volume brasileiro
História e Cinema: dimensões históricas do audiovisual há estudos de caso e também artigos
abrangentes sobre a temática, em especial a análise da produção de Ferro voltada para o
cinema feita por Eduardo Morettin no capítulo O cinema como fonte histórica na obra de
Marc Ferro (CAPELATO, 2007). Certamente, diversas outras leituras mais aprofundadas são
181

recomendadas, e os principais teóricos da área estão listados ao fim deste texto nas referências
bibliográficas62.

Não sendo o objetivo desta dissertação esse debate formal em si, tomo como ponto de
partida os pressupostos contemporaneamente aceitos da relação cinema-história, para discutir
dois temas que são recém-chegados ao debate, por assim dizer, e que podem ser relevantes
para o objeto aqui analisado, os filmes contemporâneos e seu discurso recorrente sobre a
África. O primeiro é a noção de Cultura Histórica, área de concentração do Mestrado em
História do Programa em Pós-Graduação da UFPB, onde esta dissertação está sendo
produzida. Farei uma breve análise da possibilidade de filmes poderem ser considerados parte
de uma cultura histórica. O outro é um tema tão heterodoxo hoje quanto era a proposta de
Ferro a Braudel nos anos 1960: é a proposição de que o cineasta pode ser também historiador.
Comecemos pela Cultura Histórica.

O cinema em seu início era considerado uma simples curiosidade técnica, atração de
quermesse surgida no bojo dos muitos „avanços‟ cientìficos alcançados pela ciência moderna.
Para muitos intelectuais, como escritor francês Georges Duhamel, o cinema era um espetáculo
de párias, “uma máquina de idiotização e de dissolução, um passatempo de iletrados, de
criaturas miseráveis exploradas por seu trabalho” (Apud FERRO, 2010, p. 28). Dessa origem
inglória, pouco promissora, “o cinema acabou por se transformar numa das mais importantes
formas de entretenimento de massa do século XX” (RAMOS, 2002, p. 14); Alcides Ramos
enuncia a concretude em que vivemos: “o material audiovisual (Cinema e Televisão) está
definitivamente incorporado à nossa vida cotidiana, constituindo-se em grande fonte de
informação (especialmente a Televisão) e divertimento de massa” (RAMOS, 2002, p. 15). De
que modo esse fenômeno tão amplo, tão abrangente, se relaciona com o conceito de Cultura
Histórica? Atualmente, o debate no campo da história sobre a definição desse conceito está
em pleno andamento, não havendo uma definição consensual entre os historiadores. Porém, a
maioria dos que o utilizam concorda em seus pressupostos básicos, que acredito estarem
resumidos nas seguintes assertivas de Oldimar Cardoso, em artigo onde analisa a didática da
história na concepção de autores como Klaus Bergmann, Jörn Rüsen, e Hans-Jürgen Pandel:
Cultura Histórica como “manifestações culturais da História sem forma cientìfica” e ao
mesmo tempo “a forma como uma sociedade lida com seu passado e sua História”
(CARDOSO, 2008: 158). A expressão é oriunda de um escrito de Jacques Le Goff, que se

62
AUMONT (1995 a), AUMONT (1995 b), FEIGELSON (2009), FURHAMAR & FOLKE (1976), GARDIES
(2007), GAUDREAULT & JOST (2009), KRACAUER (1988), METZ (1971), METZ (1972), RAMOS (2011),
RAMOS (2005), SANTANA (2007), SORLIN (1984), SPINK (2000), VIRILIO (2005), XAVIER (1984).
182

apropriou do seu uso por Bernard Guenée e ampliou seu raio de atuação: “Sob este termo,
Guenée reúne a bagagem profissional do historiador, a sua biblioteca de obras históricas, o
público e a audiência dos historiadores. Acrescento-lhes a relação que uma sociedade, na sua
psicologia coletiva, mantém com o passado” (LE GOFF, 1990, p 48), aproximando cultura
histórica da ideia de mentalidade histórica de uma época, fazendo todas as ressalvas possíveis
à impressão de generalização que esta última expressão pode acarretar. O termo foi utilizado
no Brasil destacadamente por Ângela de Castro Gomes, segundo quem “a proposta de
História do Brasil construída durante o Estado Novo marcou a cultura histórica de nosso país
por muito tempo”, com destaque para sua afirmação de que

se os historiadores podem continuar sendo considerados os principais


formuladores e intérpretes da “cultura histórica” de uma sociedade em
determinado momento, ele não detêm o monopólio desse processo de
construção, atuando interativamente com outros agentes, que não são
homens de seu métier (GOMES, 1996, p. 11).
Diversos intelectuais trabalham com essa mesma noção sem necessariamente utilizar o
termo Cultura Histórica. Podemos citar a expressão “Front Ideológico” com que o filósofo
esloveno Slavoj Żiżek designa a Hollywood atual como a sua definição dos mecanismos
subliminares, e muitas vezes explícitos, de transmissão de uma Cultura Histórica que advoga
a pretensa superioridade estadunidense (Żiżek, 2009, p. 7). Também Mario Carretero, em sua
obra Documentos de identidad: la construción de la memoria histórica em um mundo global,
ao discorrer sobre os três sentidos da História (acadêmica, escolar e cotidiana), faz referências
que remetem ao conceito de Cultura Histórica, que ele chama de “sentido cotidiano da
História”:

La historia popular o cotidiana parece estar emparentada com lo que suele


llamarse “memoria colectiva”: esa comunidad de recuerdos o
representaciones del pasado de la que diversos grupos sociales, políticos y
culturales se dotan a sí mismos para armas los registros de su genealogia,
tenerse em pie em el presente y defenderse de los risgos y acontecimentos
futuros (CARRETERO, 2007, p. 39).
A história „cotidiana‟ “resignifica de modo informal parte del “saber enseñado” y parte
del “saber sábio”, y lo utiliza para interpretar el presente em clave de “actualidad””
(CARRETERO, 2007, p. 39). Essa concepção é relevante para a construção de um conceito
mais nítido de cultura histórica na medida em que sublinha o protagonismo, na realidade
concreta que vivenciamos, do acesso à história através de mecanismos disponibilizados pela
grande mìdia, em detrimento do acesso „tradicional‟, através da leitura e do ensino escolar.
Leva em conta, e traz para o ofício do historiador, o fato de que vivemos na sociedade do
espetáculo, em que as imagens ocupam mais e mais espaço no cotidiano das pessoas: “la
183

industria del entretenimento aumeta su poder como instancia legitimadora de los saberes
compartidos, em detrimento de los canales formales y disciplinarios” (CARRETERO, 2007,
p. 70). A esse respeito, mas sem se referir diretamente a esse fato, Marc Ferro falou de uma
contra-História que seria construída tanto pelo cinema como por outras formas de expressão,
contradizendo a História institucionalizada (FERRO, 2010. p. 25). Em alguns casos, como o
analisado por esta dissertação, parece que contra-história de Ferro, a história cotidiana de
Carretero, o front ideológico de Żiżek, a Cultura Histórica de LeGoff – ou seja, aquela
imagem estereotipada da África que é veiculada nos meios de comunicação de massa,
especialmente o cinema – usufrui mais status de institucional do que a acadêmica, uma vez
que a escolar é praticamente nula. Josep Fontana, embora também não recorra ao termo
Cultura Histórica, expõe a sua maneira de atuação. Do mesmo modo que a „história oficial‟, a
Cultura Histórica

está presente em nosso contexto e é uma das mais eficazes formas de


convicção, de formação de opinião em matérias relativas à sociedade. As
legitimações históricas estão por trás de grande parte dos conflitos políticos
atuais, e não somente dos conflitos entre países e etnias, mas daqueles que se
produzem no próprio interior das sociedades de cada país (FONTANA,
2004:18).
Também podemos lembrar Michel de Certeau como um intelectual que se fez uso da
ideia de Cultura Histórica sem utilizar essa terminologia específica, quando, ao discutir a
relação entre escola e cultura, multilocação e multiplicação da cultura, afirma que “a escola
não é mais o centro distribuidor da ortodoxia em matéria de prática social”, uma vez que “o
poder cultural não está mais localizado em uma escola. Ele infiltra-se em qualquer teto e
qualquer espaço, com as telas da televisão. Ele “personaliza-se”. Introduz por toda parte os
seus produtos. Faz-se ìntimo” (CERTEAU, 1995, pp. 123,143). Ou seja, em se tratando de
conhecimento histórico, estamos aqui diante de “manifestações culturais da História sem
forma cientìfica.” Marcos Napolitano ressalta o fato de que “o longa-metragem ficcional,
independentemente de sua “qualidade” ou reconhecimento a partir de valores estéticos,
também pode ser percebido, por parte do público, como fonte de “verdade histórica””
(NAPOLITANO, 2005, p. 241). A argumentação a ser feita nesse ponto da dissertação é
simples e sumariamente resumida na fala de Marc Ferro: “O cinema ocupou o lugar do
romance e dos jornalistas no enraizamento dessa atitude “colonialista”” (FERRO, 1996, p.
197. Grifo meu). Shohat e Stam circunscrevem o raio de ação do cinema e sua relação com a
ideologia eurocêntrica:

O cinema europeu, na sua infância, herdou o discurso racista e colonialista


(...). Em seu papel pedagógico, o cinema hegemônico prometeu apresentar o
184

espectador ocidental às culturas desconhecidas, aquelas que viviam do “lado


de fora” da história. O cinema tornou-se, assim, um mediador
epistemológico entre o espaço cultural do espectador ocidental e o espaço
das culturas representadas na tela, relacionando temporalidades e lugares
separados em um único momento de exposição (SHOHAT & STAM, 2006,
p. 139).
De modo que a indústria cinematográfica hegemônica, desde seu surgimento, no final
do século XIX, vem literalmente sendo moldada pelo modo de pensar eurocêntrico e ao
mesmo tempo moldando-o, ao vulgarizá-lo. A afirmação de que o cinema reproduz um
discurso colonial sobre o Outro não é novidade; muitos autores, como Ella Shohat e Robert
Stam, já discorreram com maestria sobre o tema. O objetivo desta dissertação é analisar uma
faceta específica da permanência deste discurso, a saber, a permanência de representações
cinematográficas que inferiorizam a África em todos os sentidos. Não se pode falar apenas em
continuidade quando se fala no discurso eurocêntrico sobre a África. Há muitas inovações, em
função de novas circunstâncias históricas, mas principalmente a reciclagem de antigos mitos.

Chegamos aqui ao final do percurso proposto para esta dissertação: partindo dos
próprios textos, os filmes por eles mesmos, vimos „a África que os filmes mostram‟, no
capítulo 2; no capítulo 3, mergulhamos com certa profundidade no interdiscurso, na memória
discursiva que torna possíveis os enunciados feitos pelos filmes contemporâneos,
estabelecendo assim em que formação ideológica eles se encaixam e de que memória
discursiva específica eles se apropriam, lembrando o que diz Eni P. Orlandi sobre o
interdiscurso:

Esse é definido como aquilo que se fala antes, em outro lugar,


independentemente. Ou seja, é o que chamamos de memória discursiva. O
saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do
pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada
tomada de palavra. (...) O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o
modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada (ORLANDI,
2000, p. 31).
A título de exemplo, com esse ponto de vista em foco, analisarei brevemente um
filme. O recente Vênus Negra (Venus Noire, 2010, Abdellatif Kechiche) é um filme que conta
a história de Saartjie Baartman, que entrou para a história como a “Vênus hotentote”, uma
jovem mulher sul africana levada para a Europa no começo do século XIX, com promessas de
que ficaria rica se apresentando em espetáculos artísticos públicos. Ela acabou sendo exibida
como um animal exótico num circo de horrores, e foi posteriormente forçada a participar de
espetáculos eróticos e a se prostituir. Em virtude de suas características físicas, foi obrigada a
servir de espécime para o estudo de cientistas renomados como Georges Curvier, e ao morrer,
no decorrer de pouco tempo, partes de seu corpo foram dissecadas e mantidas em exposição
185

num museu francês até a década de 197063. O filme, esteticamente distante dos modelos
hollywoodianos, considerado „de arte‟, apresenta desde o começo longas sequências da
violência a que Saartjie era exposta. Numa jaula, humilhada publicamente como uma
aberração, tendo seu corpo tocado pelo público. Obrigada a obedecer ao seu “empregador”
europeu nas tarefas mais sórdidas, e buscando refúgio no álcool para o seu sofrimento, sempre
com uma expressão de impassível resignação. Nenhuma contextualização é feita, o filme atira
o espectador para dentro da narrativa e esta segue sem maiores explicações. A compreensão
do sentido de Vênus Negra não se consubstancia apenas por suas falas e imagens, pelo texto
fílmico em si, mas pelo processo de relação inconsciente operado pelo receptor entre esse
texto e sua exterioridade (a sociedade racista em que vivemos) mais as suas condições de
produção, elementos que podem ir, e com frequência vão, além da intencionalidade dos
sujeitos produtores dos textos. Assim, para além de qualquer intenção do diretor franco-
tunisiano Abdellatif Kechiche de combater e expor o racismo, seu filme torna presente de
maneira acrítica essa questão, especialmente em função da memória, que é um dos elementos
fundamentais das condições de produção (entendidas não em sentido estrito, as circunstâncias
da enunciação, o contexto imediato, mas em um sentido amplo, de contexto sócio-histórico e
ideológico). Ao filme Vênus Negra podem ser aplicadas as palavras de Orlandi:

Há uma forte contradição trabalhando esse texto. Apesar da alegada


consciência política de esquerda, alguma coisa mais forte – que vem pela
história, que não pede licença, que vem pela memória, pelas filiações de
sentidos constituídos em outros dizeres, em muitas outras vozes (...). O dizer
não é propriedade particular. As palavras não são só nossas. Elas significam
pela história e pela língua. O que é dito em outro lugar também significa em
“nossas” palavras. (...) É inútil, do ponto de vista discursivo, perguntar o que
ele quis dizer quando disse “X” (...). O fato de que há um já-dito que
sustenta a possibilidade mesma de todo dizer, é fundamental para se
compreender o funcionamento do discurso, em sua relação com os sentidos e
a ideologia (ORLANDI, 2000, p.32).
No caso de Vênus Negra, o texto fílmico seria incompreensível se não se inscrevesse
num histórico de racismo em relação à pessoas negras e de subalternidade do continente
africano, considerado selvagem e exportador de selvagens. Se o filme retratasse uma mulher
com características asiáticas, por exemplo, sendo explorada e humilhada por um grupo de
pessoas com as mesmas características, o filme não seria um texto compreensível, ou então
teriam que ser feitas mudanças em sua estrutura, inserindo alguma explicação para o
tratamento desumano destinado àquela mulher. Um exemplo disso é Dogville (2003), de Lars

63
Ver a análise do caso feita por Stephen Jay Gould no artigo Vênus Hotentote, incluído na obra O sorriso do
flamingo: reflexões sobre a história natural (GOULD, 1990).
186

Von Trier, que narra a história de uma mulher também vítima de abusos e da sordidez
humana, mas o fato de ser branca e estadunidense obriga a narrativa fílmica a tecer toda uma
explicação plausível para o abuso a que é submetida, sendo esta discussão, ademais, o
propósito mesmo do filme. O fato de a protagonista de Vênus Negra ser negra, no entanto,
normaliza o abuso, dentro da narrativa, e dispensa a necessidade de qualquer explicação.

Todas as formulações racistas já feitas e „esquecidas‟ determinam tanto a produção do


texto fílmico quanto sua compreensão. Vênus Negra resgata o passado colonial e os excessos
cometidos em nome da „ciência‟ e sua perspectiva racista, à época, assim como o faz O elo
perdido (Man to Man, 2005), de Régis Wagnier, que trata de um episódio parecido – khoisans
capturados em África e levados para estudos „cientìficos‟ e exposição pública na Europa,
como se fossem a ponte evolutiva entre os seres humanos e os primatas, com foco no
protagonista branco que percebe a humanidade daqueles „seres‟ e tenta protegê-los –; ambos
dedicam à temática o mesmo tratamento acrìtico, apenas „mostrando‟ o preconceito racial.

Shohat e Stam chamam a atenção para o seguinte fato:

A forma de cinema dominante, tanto europeia quanto americana, não


somente herdou e disseminou o discurso colonial hegemônico, mas também
criou uma poderosa hegemonia própria, por intermédio do monopólio
exercido na distribuição de filmes em boa parte da Ásia, África e das
Américas. Assim, o cinema colonial europeu fez um mapeamento da história
para plateias nacionais e internacionais (SHOHAT & STAM, 2006, p. 147).
Mesmo os mais “bem intencionados” diretores da indústria hegemônica, ao fazerem os
seus retratos da “realidade” na África, jamais questionam (ao menos filmicamente) as relações
de poder que tornam possível a ida deles e de um staff multimilionário até aquele continente
para produzir um discurso socialmente aceito sobre aquele Outro (aceito inclusive, em certa
medida, pelo próprio Outro retratado), enquanto que é quase inimaginável o processo inverso:
mesmo que um cineasta africano vá com sua equipe aos EUA ou à Europa e faça um filme
sobre como eles enxergam aquelas sociedades, o discurso produzido não teria ampla aceitação
social, como é o caso quando o objeto descrito é a África (ou qualquer outra região
“periférica” do globo). A atitude desses diretores „crìticos‟ pode ser resumida na colocação de
Said a respeito do paradoxo conradiano: “na medida em que vemos Conrad criticando e ao
mesmo tempo reproduzindo a ideologia imperial de sua época, nessa mesma medida
poderemos caracterizar nossas atitudes presentes” (SAID, 1995, p. 21).

As representações de outras regiões do „Terceiro Mundo‟, como Ásia, Oriente Médio e


a América Latina, pelo cinema hegemônico, também estão repletas de estereotipizações
eurocêntricas. Porém, tais regiões, por diversas razões, possuem indústrias cinematográficas
187

com possibilidades materiais de distribuição no mercado internacional. O cinema africano,


apesar do talento de seus realizadores e do seu engajamento ideológico, sofre uma
desvantagem em relação aos outros no que diz respeito à acessibilidade aos meios de
divulgação. Assim, é possível assistir a um filme iraniano ou argentino que esteja no circuito
comercial em salas de cinema de qualquer grande cidade brasileira. Mas à parte festivais,
salas especiais ou mostras etnográficas, quando se teve notícia de um filme nigeriano ou
etíope exibido no circuito comercial brasileiro?

Em um livro chamado Diante da dor dos outros, a renomada escritora estadunidense


Susan Sontag discute a banalização de imagens violentas nos meios de comunicação de
massa. Em certo momento ela remete à imagem da África consolidada nesses meios de
comunicação:

Quanto mais remoto ou exótico o lugar, maior a probabilidade de termos


imagens frontais completas de mortos e dos agonizantes. Assim, a África
pós-colonial existe na consciência do público em geral do mundo rico – além
da sua música sensual – sobretudo como uma sucessão de fotos
inesquecíveis de vítimas com olhos esbugalhados, desde as imagens da fome
em Biafra, no fim da década de 1960, até os sobreviventes do genocídio de
quase 1 milhão de tutsis em Ruanda, em 1994 e, poucos anos depois, as
crianças e os adultos cujas pernas e braços foram amputados durante a
campanha de terror em massa promovida pela RUF, um movimento rebelde
de Serra Leoa. (Mais recentemente, as fotos mostram famílias inteiras de
aldeões indigentes que morrem de Aids.) (SONTAG, 2003, pp. 61,62).
Os filmes que buscam retratar alguma tragédia vivenciada em África, ou por africanos
em outra parte, não relutam em utilizar imagens chocantes e degradantes, provavelmente com
a intenção de estabelecer uma empatia do público em relação à dor e ao sofrimento dos
outros. O sofrimento de membros da cultura eurocêntrica geralmente é acompanhado por
nuances na narrativa e por uma carga de densidade psicológica que não é atribuída aos
africanos, personagens que são construídos monoliticamente, geralmente ou vítimas ou vilões.
Sontag fala que é um tabu jornalístico a exposição de rostos de estadunidenses mortos, uma
vez que este ato macularia a sua dignidade, mas quando se trata de africanos, o grande
jornalismo estadunidense considera essa dignidade desnecessária. A explicação de Sontag
para esse fato corrobora a conclusão a que desejo chegar, em relação aos filmes e à Cultura
Histórica. Segundo ela,

Em geral, os corpos com ferimentos graves que aparecem em fotos


publicadas são da Ásia ou da África. Essa praxe jornalística é herdeira do
costume secular de exibir seres humanos exóticos – ou seja, colonizados:
africanos e habitantes de remotos países da Ásia foram mostrados, como
animais de zoológico, em exposições etnológicas montadas em Londres,
Paris e outras capitais europeias, desde o século XVI até o começo do século
188

XX. (...) A exibição, em fotos, de crueldades infligidas a pessoas de pele


mais escura, em países exóticos, continua a promover o mesmo espetáculo,
esquecida das ponderações que impedem essa exposição quando se trata de
nossas próprias vítimas de violência; pois o outro, mesmo quando não se
trata de um inimigo, só é visto como alguém para ser visto, e não como
alguém (como nós) que também vê (SONTAG, 2003, pp. 62,63).
Assim, a história da África que a sociedade em geral apreende como correta ou
objetiva a partir de produtos culturais como os filmes, que com muito pouco esforço podem
alcançar a todos na sala de casa, deve ser examinada como parte integrante de um sistema
maior de divulgação de uma ideologia específica e de uma experiência histórica coletiva. Em
outras palavras, de uma cultura histórica específica.

A reforçar o que já se disse anteriormente sobre a questão da autoria, recordo o


argumento de Edward Said de que para além da individualidade do artista ou intelectual que
produz uma obra específica, é preciso levar em conta o interdiscurso em que ele se situa, o
fato de que existe uma formação ideológica que condiciona uma formação discursiva onde
todo o dito, para o bem ou para o mal, se encaixa. Said afirma que parece haver um consenso
entre os estudiosos no que diz respeito à “noção de que os textos existem em contextos, que
há uma intertextualidade, que as pressões das convenções, dos predecessores e dos estilos
retóricos limitam [a ideia] segundo o qual o poeta, por conta própria e a partir puramente de
seu espìrito, criaria sua obra”; mas, por outro lado, existe uma grande relutância em “admitir
que as coerções políticas, institucionais e ideológicas agem da mesma maneira sobre o autor
individual” (SAID, 2007, p. 41). E mais: “os filósofos conduzirão suas discussões sobre
Locke, Hume e o empirismo sem jamais levar em conta que há uma conexão explícita nesses
escritores clássicos entre as suas doutrinas “filosóficas” e a teoria racial, as justificativas da
escravidão ou dos argumentos para a exploração colonial” (SAID, 2007, p. 42).

Segundo Said, “o establishment literário-cultural em geral tem deixado de lado o


estudo sério do imperialismo e da cultura” (SAID, 2007, p. 42), sob a alegação de que os
eruditos, em função de sua formação, estão centrados em análises estéticas, filosóficas ou
literárias dos textos, e não políticas ou ideológicas, seara mais ampla na qual eles não teriam
razões para adentrar. A isso, Said arrazoa que o estudo da cultura e do Imperialismo devem
ser vinculados em função de, em primeiro lugar, “quase todo escritor do século XIX (e o
mesmo vale para escritores de períodos anteriores) era extraordinariamente consciente do fato
do império”, e cita vários exemplos (SAID, 2007, p. 43), e, em segundo lugar, uma opinião
que é fortemente compartilhada por essa dissertação e seu autor, trazendo-a para nosso século
XXI e a produção cinematográfica:
189

Acreditar que a política na forma de imperialismo tenha relação com a


produção de literatura, erudição, teoria social e escritos históricos não
equivale de modo algum a dizer que a cultura é, portanto, algo aviltado ou
difamado. Bem ao contrário: (...) podemos compreender melhor a
persistência e a durabilidade de sistemas hegemônicos saturadores como a
cultura quando percebemos que suas coerções internas sobre os escritores e
os pensadores foram produtivas, e não unilateralmente inibidoras (SAID,
2007, p. 43).
Said afirma estudar o Orientalismo da seguinte maneira, e eu aqui estendo esse modo
de interpretar para o Imperialismo como um todo: “estudo o Orientalismo como um
intercâmbio dinâmico entre autores individuais e os grandes interesses políticos modelados
pelos três grande impérios – o britânico, o francês e o americano – em cujo território
intelectual e imaginativo a escrita foi produzida” (SAID, 2007, p. 44). Desse modo, a
perspectiva em que os filmes contemporâneos devem ser entendidos é a de que eles carregam
representações colonialistas da África não apenas como permanência de um aspecto cultural
de uma época passada e historicamente superada, mas como aspecto político de uma situação
presente, o Neocolonialismo, o Imperialismo Coletivo proposto por Samir Amin. “O
rebaixamento da África relaciona-se intimamente às demandas objetivas da sociedade
capitalista ocidental, que continuamente reapresenta para o continente a condição de periferia
do sistema de produção de mercadorias” (SERRANO & WALDMAN, 2007, p. 29. Grifo
meu) 64.

Said diz que a ideia de raça “inferior” era uma noção amplamente aceita no século
XIX, não questionada pelos produtores de cultura dos países imperialistas (pelo contrário,
como vimos, estes atuavam majoritariamente como divulgadores das ideologias imperialistas)
e colocada em prática pelos seus funcionários. Pode-se dizer que essa ideia fazia parte da
Cultura Histórica daquela época, pois, como explica José Luiz Fiorin, “a partir do nível
fenomênico, constroem-se as ideias dominantes numa dada formação social. Essas ideias são
racionalizações que explicam e justificam a realidade.” (FIORIN, 2007, p. 28). Então, para a
nossa contemporaneidade, temos uma Cultura Histórica sobre a África formada pelos
seguintes elementos: uma formação ideológica segundo a qual a África é um continente
subalterno e passível de exploração, e uma formação discursiva que pode ser resumida como
um conjunto de temas (discursos), imagens e sons que materializam essa visão de mundo.

64
“A geopolìtica da África começa por jogos de representação e de denominação, mas também de
conceitualização. As ciências sociais têm vocação universal, mas também são elaboradas dentro de contextos
sócio-históricos. Além disso, tende-se à mera transposição dos esquemas analíticos, com os riscos que isso
envolve. O passado escravagista e colonial da África não tem o mesmo significado para africanos e europeus.
Essa clivagem memorial associa-se atualmente a uma clivagem territorial e histórica entre Europa e a África”
(HUGON, 2009, p. 12).
190

Fiorin diz que a semântica discursiva é o campo das determinações inconscientes, pois “o
conjunto de elementos semânticos habitualmente usado nos discursos de uma dada época
constitui a maneira de ver o mundo de uma determinada formação social” (FIORIN, 2007, p.
19).

Dentro dessa Cultura Histórica há níveis de variabilidade e invariabilidade, como já


foi exposto, por exemplo, em relação às diferenças entre os filmes mais conceituais
produzidos na Europa e as produções blockbuster estadunidenses. Quando discursos de
aparência diferente utilizam os mesmos elementos semânticos “é preciso estabelecer uma
diferença entre um nìvel profundo e um nìvel de superfìcie”, pois “elementos semânticos que
aparecem na superfície são variações que concretizam um elemento semântico invariante,
mais abstrato e mais profundo” (FIORIN, 2007, p. 20).

Nos filmes, apesar das diferenças entre si, percebe-se a repetição dos mesmos
elementos. O tropo da inferioridade da África, da permanente necessidade de ajuda
estrangeira, por exemplo, se traveste de formas distintas, como já exemplificado com os
filmes Falcão Negro em perigo, onde tal tropo é direto e óbvio, e Atirador, onde essa mesma
mensagem é transmitida de forma mais sutil65. Mais uma vez, “a análise não se interessa pela
“verdadeira” posição ideológica do enunciador real, mas pelas visões de mundo dos
enunciadores (um ou vários) inscritos no discurso” (FIORIN, 2007, p. 51). Em termos
puramente linguísticos, pode-se dizer que a Cultura Histórica aqui analisada é um mesmo
discurso invariável com elementos semânticos invariáveis, propagado sob formas sintáticas
variáveis. Essa percepção é fundamental para compreender a noção de Cultura Histórica
presentemente advogada, pois independente das intenções dos realizadores de um filme,

Quando um enunciador reproduz em seu discurso elementos da formação


discursiva dominante, de certa forma, contribui para reforçar as estruturas de
dominação. Se se vale de outras formas discursivas, ajuda a colocar em
xeque as estruturas sociais. (...) Sem pretender que o discurso possa
transformar o mundo, pode-se dizer que a linguagem pode ser instrumento
de libertação ou de opressão, de mudança ou de conservação (FIORIN,
2007, p.74).
O poder político da linguagem. Eis o cerne desta dissertação, que toma como objeto de
estudo um caso específico, mas cuja teoria pode ser utilizada para a análise de diversas outras
Culturas Históricas. De fato, em uma sociedade convivem muitas culturas históricas

65
Ver as páginas 83 e 84 desta dissertação.
191

simultâneas sobre os diversos aspectos da vivência humana. O professor Elio Chaves Flores
faz um apanhado do entendimento de Cultura Histórica que resume o tema:

Entendo por cultura histórica os enraizamentos do pensar historicamente que


estão aquém e além do campo da historiografia e do cânone historiográfico.
Trata-se da intersecção entre a história científica, habilitada no mundo dos
profissionais como historiografia, dado que se trata de um saber
profissionalmente adquirido, e a história sem historiadores, feita, apropriada
e difundida por uma plêiade de intelectuais (...) que disponibilizam um saber
histórico difuso através de suportes impressos, audiovisuais e orais
(FLORES, 2007, p. 95).
A perspectiva de captar o „saber histórico difuso‟ através dos filmes a respeito da
África é uma das âncoras teóricas desta dissertação. Todos os autores citados anteriormente,
Ângela de Castro Gomes, Mario Carretero, Michel de Certeau, Josep Fontana, Slavoj Żiżek,
Jacques Le Goff, Marc Ferro, Jörn Rüsen, apontam para o fato de que a produção de
conhecimento histórico não é prerrogativa exclusiva dos historiadores, que não “detêm o
monopólio desse processo de construção, atuando interativamente com outros agentes, que
não são homens de seu métier” (GOMES, 1996, p. 11). De modo que a África mostrada pelo
cinema hegemônico contemporâneo é talvez a parte mais explícita e de maior alcance de uma
Cultura Histórica ampla (cujos elementos constituintes foram abordados com certa exaustão),
sobre aquele continente, aceita pela nossa sociedade. Acredito que a relação direta entre os
filmes que retratam a África e a política concreta posta em prática pelo Neocolonialismo ficou
bastante nítida sob o escrutínio aqui realizado. Além de simples documentos históricos, à
disposição do trabalho dos historiadores, esses filmes participam diretamente da construção
da Cultura Histórica que nossa sociedade tem sobre a África.

Apesar de tradicionalmente as últimas páginas de uma dissertação serem dedicadas às


conclusões gerais da pesquisa, gostaria de encerrar esta dissertação com algumas
considerações que não se encaixam propriamente na categoria do que costumamos chamar de
“conclusões”, remetendo ao segundo tema recém chegado à discussão sobre a relação cinema-
história: a ideia de que o cineasta pode exercer a função de historiador. Acredito que o oficio
do historiador tem como função não apenas fornecer respostas, que, de mais a mais, são
geralmente temporárias, mas sim levantar os questionamentos pertinentes para sua sociedade
em sua época. Fazer refletir. Assim, não desejo encerrar fazendo afirmação alguma, mas,
contrariamente aos ditames acadêmicos, ou melhor, às tradições instituídas nesse meio,
aventando algumas hipóteses a partir de tudo que foi dito nesse trabalho, às quais não tenho a
pretensão de responder. Questionamentos que podem ou não ser relevantes, e que podem ou
não ser levados em conta na feitura de trabalhos futuros, mas reflexões que eu creio serem
192

necessárias depois do que se estudou aqui sobre a imagem da África no cinema


contemporâneo, e que podem acrescentar elementos à constituição da noção de Cultura
Histórica. O cinema pode ser considerado uma forma legítima de fazer história?

Essa ideia parece recém-saída do forno, oriunda de um escrito do historiador


estadunidense Robert A. Rosenstone, ainda pouco divulgado no Brasil, mas o próprio autor
ressalta que Marc Ferro levantou essa hipótese em um pequeno artigo, incluído na coletânea
Cinema e História, embora não a tenha desenvolvido. Como mostra a análise de Morettin,
Ferro na verdade não chegou a desenvolver um trabalho amplo e abrangente sobre cinema,
“não produziu um trabalho de maior profundidade que demonstrasse plenamente a eficácia de
sua análise, já que grande parte de sua produção é constituìda por artigos ou coletâneas”
(MORETTIN, 2007, p. 46). Infelizmente, os trabalhos de Ferro sobre cinema, apesar de
inaugurais, carregam a marca de obra inacabada, tendo em vista sua dedicação a outros temas,
fato que o próprio autor admitiu: “Decididamente, yo no tengo tempo disponible para escribir
um libro acabado sobre el Cine, como lo he tenido para tratar de la Revolución de 1917 o la
Gran Guerra” (Apud MORETTIN, 2007, p. 46). Então vejamos que semente por germinar é
essa que Ferro plantou no texto Existe uma visão fílmica da História?, e em seguida como
Rosenstone a desenvolve em seu trabalho, também de caráter provisório e experimental.

Ferro inicia a argumentação apresentado sua concepção de objeto da história, que seria
não somente conhecer fenômenos passados, mas também “a análise dos elos que unem o
passado ao presente, a busca de continuidades, de rupturas” (FERRO, 2010, p. 181). Essa
preocupação, que perpassa toda esta dissertação, é potencializada, para Marc Ferro, pela
condição mais marcante da sociedade contemporânea, já descrita por outros autores, mas que
nas suas palavras é a seguinte:

O tempo passado diante da televisão não para de aumentar nas sociedades


ocidentais, em que a televisão se tornou uma “escola paralela”; ademais,
entre os povos ex-colonizados, especialmente entre aqueles que não têm uma
tradição histórica escrita, o conhecimento histórico se encontra, ainda mais
do que em outras sociedades, sob dependência das mídias (...). Vê-se, aqui,
que algo de extrema importância está em jogo (FERRO, 2010, p. 181).
Ferro faz uma análise próxima da realizada no capítulo anterior desta dissertação,
afirmando que historicamente o romance e o drama foram responsáveis diretos, mais que a
história institucional, pela formação do saber histórico que impregna a „memória difusa‟ das
sociedades, sobre os mais diversos assuntos. Ele pergunta quais são as primeiras lembranças
que vêm à mente (do público francês a quem se dirigia) quando se pensa em Richelieu e
Mazarino, e responde que “são as aventuras dos Três mosqueteiros, de Alexandre Dumas”
193

(FERRO, 2010, p. 182). Trazendo essa questão para o tempo que vivenciamos, repito o
argumento com que iniciei o segundo capítulo: que imagem, que figuração de memória, nos
vem à mente quando pensamos em África? Certamente alguma imagem divulgada pelos
meios de comunicação de massa, muito provavelmente pelo cinema hegemônico – tal como O
rei leão o foi por muito tempo, em meu caso. Ferro diz que “hoje, com o cinema e a televisão,
a História conhece uma nova forma de expressão” (FERRO, 2010, p. 182), e passa a
questionar de que forma essa nova forma de expressão afeta a inteligibilidade da história.
Resumindo a argumentação de Ferro nesse ponto, ele diz, com muitos floreios, circunlóquios
e análises de casos, que sim, determinados filmes e cineastas “contribuem, de modo criativo,
para que certos fenômenos históricos se tornem inteligìveis” (FERRO, 2010, p. 184), ou seja,
atuam como agentes fazedores de história, elevando-se do estatuto de meras fontes e
documentos para o trabalho do historiador para fazerem, eles mesmos, isso que chamamos
história. Ferro faz uma divisão que pretendo questionar adiante: para ele, filmes que podem
ser assim classificados (fazedores de história) são apenas aqueles que trazem uma nova
interpretação para um fato histórico, os que realizam uma contra-análise da sociedade:

É preciso que os cineastas tenham se tornado autônomos em relação às


forças ideológicas e às instituições estabelecidas (o que não é o caso quando
se trata de realizadores de filmes de propaganda), do contrário a ação dos
mesmos só faz completar, sob uma nova forma, a das correntes ideológicas
dominantes, ou dos oponentes (FERRO, 2010, p. 185).
Deixando esta questão momentaneamente de lado, mas tendo em mente a afirmação
de Ferro de que pode existir uma visão fílmica da história, passemos aos ditos de Robert
Rosenstone. Em seu livro recém-lançado no Brasil intitulado A história nos filmes, os filmes
na história (ROSENSTONE, 2010), Rosenstone explica sua tese de que

o mundo familiar e sólido da história nas páginas impressas e a igualmente


familiar, porém mais efêmera, história mundial na tela são semelhantes em
pelo menos dois aspectos: referem-se a acontecimentos, momentos e
movimentos reais do passado e, ao mesmo tempo, compartilham do irreal e
do ficcional, pois ambos são compostos por conjuntos de convenções que
desenvolvemos para falar de onde nós, seres humanos, viemos
(ROSENSTONE, 2010, p. 14).
Para ele, é um fato consumado a história representada nos filmes poder ser
considerada história com „H‟ maiúsculo; seu livro se destina a explicitar as razões e
pressupostos teóricos que legitimam essa afirmação. Certamente, a concordância com ou a
rejeição a esta afirmação depende da própria concepção de história abraçada pelo historiador;
eu aceito como pressuposto a afirmação de Hayden White, também encampada por
Rosenstone: “trato o trabalho histórico como o que ele manifestamente é: uma estrutura verbal
194

na forma de um discurso narrativo em prosa” (WHITE, 1995, p. 11). Em Meta-história, White


demonstrou que no decorrer do século XIX os grandes escritos dentro do campo da história
seguiam os tropos, os estilos e esquemas narrativos dos romances britânicos da mesma época:

As histórias (e filosofias da história também) combinam uma certa


quantidade de “dados”, conceitos teóricos para “explicar” esses dados e uma
estrutura narrativa que os apresenta como um ícone de conjuntos de eventos
presumivelmente ocorridos em tempos passados. Além disso, digo eu, eles
comportam um conteúdo estrutural profundo que é em geral poético e,
especificamente, linguístico em sua natureza, e que faz as vezes do
paradigma pré-criticamente aceito daquilo que deve ser uma explicação
eminentemente “histórica” (WHITE, 1995, p. 11).
Sem aprofundar esse debate, pode-se dizer que é certo que essa concepção não
diminui em nada a relevância social da disciplina de Clio nem macula seu estatuto científico,
pois afirmar a condição de história enquanto literatura não é o mesmo que afirmar que ela é
puramente ficção. O rótulo de pós-moderno que essa postura geralmente acarreta não supõe
um desejo ou um trabalho com fito ao „assassinato da história‟, mas, nas palavras de
Rosenstone:

Nós que somos chamados de “historiadores pós-modernos” certamente não


achamos que estamos envolvidos em uma empreitada com consequências tão
terríveis. Em vez disso, estamos (alguns de nós estão) tentando trazer a
prática da história para o século XXI com muita vitalidade. Queremos que o
nosso profundo interesse e cuidado com o passado seja expresso em formas
agradáveis tanto para uma sensibilidade contemporânea quanto para sistemas
intelectuais consoantes com a nossa própria era (ROSENSTONE, 2010, p.
16).
Falar de história, ensinar história, tirar a história de seu altar empoeirado e levá-la para
o meio da multidão de indivíduos que a constitui, tornando-a compatível com a sensibilidade
contemporânea, inevitavelmente conduz às mídias visuais. Rosenstone diz que o cinema e a
TV se tornaram os „principais meios para transmitir as histórias que nossa cultura conta para
sim mesma‟, e ignorar esse fato quando, historiadores, analisamos nossa relação com o
passado, significa “nos condenar a ignorar a maneira como um segmento enorme da
população passou a entender os acontecimentos e as pessoas que constituem a história”
(ROSENSTONE, 2010, p. 17). Essas mídias são elementos chave, em nossa sociedade, na
constituição das Culturas Históricas que adquirem legitimidade e aceitação. As maneiras
tradicionais, por assim dizer, de se entender o fazer histórico, são majoritariamente
excludentes em relação às heterodoxias, mas o quadro concreto em que nos situamos é uma
realidade onde as imagens e os sons compõem cada vez mais parte daquele discurso de base
empírica, enquadrado dentro de normas específicas, que somos ensinados a aceitar como a
„história de verdade‟. O poder da história enquanto página impressa que segue esses padrões,
195

muito embora tenha ele mesmo uma historicidade que não se estende por mais de dois
séculos, é tido como imutável, mas as mudanças sociais inevitavelmente inserem novos
elementos nesse conjunto, e cabe ao historiador escolher entre a simples resistência ao novo,
ou à sua análise crítica e posterior aceitação ou recusa. É nesse ponto experimental que esse
trecho da dissertação se situa. Não se trata de questionar os pressupostos da tradição da
história escrita, suas conquistas, nem muito menos negar o seu valor intrínseco, mas
simplesmente de pensar a respeito de outras possibilidades para a história, possibilidades que
de modo algum anulam o que já foi estabelecido e firmado na constituição da disciplina, mas
na verdade ampliam o seu raio de atuação. Diante da possibilidade de representar o passado
por meio das mídias visuais, Rosenstone afirma o seguinte:

Foi necessária mais de uma década de pensamento e escrita sobre filmes


históricos para que eu fosse encaminhado para a ideia simples que serve de
base para os capítulos deste livro: os cineastas (alguns deles) podem ser, e já
são, historiadores, mas, por necessidade, as regras de interação de suas
obras com o passado são, e devem ser, diferentes das regras que governam
a história escrita (ROSENSTONE, 2010, p. 22. Grifo do autor).
Certamente essa não é uma noção facilmente apreensível, tendo em vista toda a
tradição consolidada sobre o fazer histórico, e especialmente as muitas ressalvas dos
historiadores em relação aos filmes históricos. Os historiadores geralmente não veem com
bons olhos a intromissão de „homens de fora do seu métier‟ na escrita da história, vide as
críticas feitas aos best-sellers escritos por jornalistas sobre acontecimentos históricos, tais
como a vinda da família real portuguesa ao Brasil em 1808; os cineastas também são
costumeiramente alvos de duras críticas que levam em conta elementos como imprecisões,
“exatidão dos detalhes, utilização de documentos originais, adequação da música e do visual
ou a aparente conformidade de um ator para interpretar um personagem” (ROSENSTONE,
2010, p. 57). No geral, as análises históricas de filmes se concentram em dois aspectos: o
filme como ilustração de um momento histórico estudado, seguido quase que invariavelmente
de um indefectìvel „método de encontrar erros‟ nesses filmes, apontando suas falhas e
imprecisões. A imponente coletânea Passado Imperfeito: a história no cinema (CARNES,
1997), organizada pelo historiador estadunidense Mark C. Carnes, exemplifica bem esse
ponto. Os seus mais de sessenta artigos, ordenados cronologicamente – de Os dez
mandamentos e Spartacus a Apolo 13 e Nixon –, são basicamente textos que buscam
“determinar a verdade histórica” (CARNES, 1997, p. 36) por trás de cada evento relatado nos
filmes analisados, apontando os erros cometidos por cada um deles. Praticamente nenhum
filme, nessa análise, é considerado “uma contribuição para o nosso entendimento do passado”
196

(ROSENSTONE, 2010, p. 58). Nesse modo de se analisar os filmes é que reside o nó górdio
desatado por Rosenstone. Ele afirma que essencialmente o que tem sido feito nas últimas
décadas, desde que os historiadores começaram a analisar os filmes como documentos, é
tentar “fazer com que o longa-metragem dramático se adapte às convenções da história
tradicional, encaixar à força o que vemos em um molde criado pelo discurso escrito para si
mesmo” (ROSENSTONE, 2010, p.61), alimentando uma necessidade de apontar e explicar os
erros e invenções dos cineastas. Ele diz que já é momento de superar esse modo de interpretar
os filmes históricos, e que os historiadores devem começar a “sugerir que tais obras já vêm
fazendo história, se, com a expressão “fazer história”, indicarmos não uma participação
naquele discurso tradicional (algo que os filmes claramente não podem fazer), mas uma
tentativa séria de dar sentido ao passado” (ROSENSTONE, 2010, pp. 61,62. Grifos do
autor). Segundo ele,

É possível encarar a contribuição de tais obras em termos não apenas dos


detalhes específicos por ele apresentados, mas, sim, no sentido abrangente
do passado que elas transmitem, as ricas imagens e metáforas visuais que
eles nos fornecem para que pensemos historicamente. Também é possível
encarar o filme histórico como parte de um campo separado de representação
e discurso cujo objetivo não é fornecer verdades literais acerca do passado
(como se a nossa história escrita pudesse fazê-lo), mas verdades metafóricas
que funcionam, em grande medida, como uma espécie de comentário, e
desafio, ao discurso histórico tradicional (ROSENSTONE, 2010, pp. 23,24).
Para Rosenstone, é preciso ver o filme histórico em relação ao discurso mais amplo,
operação realizada por esta dissertação, onde os filmes contemporâneos que retratam a África
foram mostrados em relação ao plano de fundo em que se encaixam, tanto as origens dos
tropos de que se utilizam quanto as motivações políticas contemporâneas para sua
permanência. “Embora falhas em algum nível possam ser apontadas em todos eles, esses
filmes, quando vistos em conjunto, interagem com o discurso histórico mais amplo e, por
intermédio do poder da mídia em que são apresentados, até acrescentam algo ao nosso
entendimento” (ROSENSTONE, 2010, p. 52). E mais: “temos que considerar o filme não
apenas como uma coleção de asserções individuais verdadeiras ou falsas, mas, como todos os
trabalhos históricos, um argumento e uma interpretação sobre os momentos e acontecimentos
históricos por ele descritos” (ROSENSTONE, 2010, p. 84).

É importante destacar que Rosenstone não defende que todo e qualquer filme é
„história‟, nem que todo cineasta é historiador. Ele estabelece critérios que diferenciam os
diretores que buscam no passado simplesmente um cenário ocasional para suas narrativas, o
197

que é mais comum, daqueles diretores que têm “uma espécie de interesse pessoal pela
história”; segundo ele, esses cineastas

parecem obcecados e oprimidos pelo passado. Todos continuam voltando a


tratar do assunto fazendo filmes históricos, não como uma fonte simples de
escapismo ou entretenimento, mas como uma maneira de entender como as
questões e os problemas levantados continuam vivos para nós no presente
(ROSENSTONE, 2010, pp. 173,174. Grifo do autor).
Ou seja, alguns diretores, em um processo semelhante ao trabalho do historiador, não
simplesmente se perguntam o quê aconteceu e como aconteceu, mas passam a investigar qual
o significado contemporâneo de tais eventos em suas obras. E é no conjunto da obra desses
diretores – Rosenstone analisa os casos de Oliver Stone e Roberto Rosselini, e cita Andrzej
Wajda, Ousmane Sembene, Theo Angelopoulos, Carlos Saura, Vittorio e Paolo Taviani e
Miklos Jancso, entre outros – que pode ser encontrada “uma interpretação ampla e uma
perspectiva mais abrangente de algum tópico, aspecto ou tema do passado” (ROSENSTONE,
2010, p. 174). Para Rosenstone, esses cineastas são historiadores, se com o termo „historiador‟
se quiser referir a “pessoas que confrontam os vestìgios do passado (rumores, documentos,
edifícios, lugares, lendas, histórias orais e escritas) e os usam para contar enredos que fazem
sentido para nós no presente”, levando em conta o fato de que “os códigos, convenções,
regras e práticas que permitem que eles tragam o passado para a tela diferem dos da história
escrita” (ROSENSTONE, 2010, p. 54). Rosenstone utiliza o espaço inteiro de seu livro para
discutir essa questão, o que não é o objetivo aqui; penso que o ato de trazer as reflexões desse
autor para a historiografia brasileira já é pertinente em si mesmo, mas desejo, além disso,
fazer uma pequena crítica a uma postura assumida por ele, em continuação à que Marc Ferro
adotou e que há algumas páginas eu deixei o comentário a respeito em suspenso, e também
levantar a hipótese com que encerro a dissertação.

A crítica se refere ao fato de Rosenstone, assim como Ferro (FERRO, 2010, p. 185),
considerar como historiador apenas o cineasta que contesta a história consagrada pela
historiografia. Rosenstone, definindo historiador como “alguém que dedica uma parte
significativa de sua carreira a criar um significado (em qualquer mìdia) a partir do passado”,
afirma que essa atribuição de significado para o cineasta ocorre, no mínimo, de três maneiras
diferentes: ao criar obras que “visualizam, contestam e revisam a história” (ROSENSTONE,
2010, p. 54). Até onde eu sei, nenhum acadêmico perde o status de historiador por ser
conservador. Então porque apenas cineastas que fornecem “interpretações que contradizem o
conhecimento tradicional” desafiando visões consolidadas de eventos ou questões especìficas,
ou “mostram o passado de maneira nova e inesperada” (ROSENSTONE, 2010, p. 175),
198

merecem ser considerados cine-historiadores? O fato de determinada concepção de história


deixar de ser amplamente praticada não implica na afirmação de que não se tratava de
história. Os profissionais de história adeptos das diversas correntes „revisionistas‟ desde os
Annales, por exemplo, não negam a Langlois e Seignobos o status de historiadores só por não
concordarem com a definição de história por eles advogada ou mesmo por esta ter caído em
franco desuso no século XX. Ferro e Rosenstone, ao tentar atribuir a determinados filmes a
“qualidade” de “histórico” por estes serem contestadores do status quo, parecem esquecer que
a disciplina de Clio não apenas questiona, mas na maioria das vezes apenas e tão somente
legitima conceitos hegemônicos (SHOHAT & STAM, 2006, p. 100).

A referência à legitimação de conceitos hegemônicos nos traz de volta aos filmes que
são o objeto desta dissertação. O conceito de Rosenstone de cineasta como historiador é bem
objetivo, e não se aplica ao conjunto de filmes aqui analisado, uma vez que são obras de
diretores diversos, cada um com interesses também diversos, mas que em algum momento de
suas carreiras resolveram filmar narrativas que se passam ou fazem referência ao continente
africano; porém, desejo não afirmar, mas sugerir uma ideia que extrapola esse conceito de
Rosenstone, mas se adequa à sua concepção e à de Ferro de que os filmes podem ser
considerados uma forma legítima de se fazer história. Para além do conceito de Cultura
Histórica, já analisado, esse grupo de filmes, que „descende‟ em linha direta de uma longa
linhagem de filmes imperialistas e coloniais no decorrer de todo o século XX, escrevem a
história da África apreendida como „verdade‟ histórica pela maior parte do público. Uma
história que não vai de encontro às políticas concretas das potências dominantes, não contesta
nem revisa a versão „oficial‟ dos fatos, divulgada na historiografia escrita, mas que na verdade
supera essa história e é parte integrante das estratégias de legitimação do Neocolonialismo de
forma ainda mais aguda e intensa. O que eu me pergunto, e desejo dividir a dúvida os leitores
desta dissertação, é se esse grupo de filmes pode ser considerado como uma espécie de escola
ou tradição historiográfica específica sobre a África. O neologismo historiocinegrafia me
ocorreu para designar esse fenômeno, caso ele possa ser testado e quem sabe validado.

Este não é o objetivo desta dissertação, que buscou analisar as raízes históricas da
imagem da África no cinema contemporâneo, por isso deixo o aprofundamento dessa questão
para um trabalho futuro, meu ou de outro colega historiador que deseje se arriscar pelas
beiradas do universo de Clio. Imagino se as ideias provocativas de Rosenstone não podem ser
buriladas e ampliadas teoricamente a ponto de se criar uma abordagem específica para grupos
de filmes que tratem de temas específicos; nessa lógica, esta dissertação seria sobre a
199

historiocinegrafia eurocêntrica sobre o continente africano, podendo-se pensar em diversos


outros grupos de filmes que podem ser considerados historiocinegrafia sobre outros temas.
Uma historiocinegrafia estadunidense sobre a „conquista do oeste‟ englobaria os filmes de
faroeste de várias épocas, e poderia localizar as mudanças na interpretação histórica e cultural
desse fato ao longo do tempo, por exemplo; ou uma historiocinegrafia „orientalista‟
hollywoodiana sobre o mundo islâmico, ou a historiocinegrafia brasileira sobre o Regime
Militar. Enfim, esta é apenas uma provocação com que desejo encerrar este trabalho, e não a
conclusão geral a que ele chega. Esta pode ser resumida na ideia de que os filmes mostram
sobre a África uma imagem Neocolonialista utilizando-se de tropos imperialistas, uma
imagem carregada de estereótipos negativos que estão diretamente ligados às demandas
políticas objetivas dos países neocolonialistas. Gostaria de encerrar com uma citação de
Rosenstone que respalda minha elucubração a respeito da possibilidade de uma
historiocinegrafia, e resume a ideia de que a construção das narrativas históricas não está no
poder apenas dos historiadores.

A história escrita, a história acadêmica, não é algo sólido e sem problemas, e


certamente não é um “reflexo” da realidade passada, mas a construção de um
enredo moral sobre o passado a partir de vestígios que sobrevivem. A
história (tal como a praticamos) é um produto ideológico e cultural do
mundo ocidental em um momento específico do seu desenvolvimento no
qual a noção de verdade “cientìfica”, baseada em experiências replicáveis,
foi transportada para as ciências sociais, inclusive a história (na qual
nenhuma experiência desse tipo é possível). A história, na verdade, não
passa de uma série de convenções para se pensar sobre o passado. Essas
convenções mudaram ao longo do tempo – desde os enredos de Heródoto até
o cientificismo de Von Ranke – e obviamente mudarão no futuro. A
“verdade” da história não reside na verificabilidade de dados individuais,
mas na narrativa global do passado (ROSENSTONE, 2010, p. 195).
De fato, a narrativa global do passado que compõe a história da África ensinada pelos
filmes é hoje muito mais poderosa que a acadêmica, o que lança um desafio para os
historiadores: vamos simplesmente nos opor ao novo, ou vamos aceitar que ele sempre vem e
tentar não deixar que nossa prática se torne uma obsolescência empoeirada?
200

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mais do que qualquer outra disciplina, a história é uma ciência humana, pois
ela sai bem quente da forja ruidosa e tumultuada dos povos.

Joseph Ki-Zerbo, na introdução geral da História Geral da África.

Enquanto eu escrevo os trechos finais desta dissertação, no começo de 2012, um vídeo


intitulado Kony 201266 se torna o maior viral, um desses vídeos com grande poder de
circulação que se tornam populares em pouco tempo, de todos os tempos na Internet 67. O
vídeo de quase trinta minutos superou 100 milhões de visualizações em seis dias no YouTube.
Nas palavras da correspondente da agência de notícias France-Presse, Leila Macor, trata-se
de “uma campanha para levar o fugitivo líder [Joseph Kony] da milícia rebelde ugandesa
Exército de Resistência do Senhor (LRA) aos tribunais”.68 Meu óbvio interesse pelo vídeo
não foi menor do que o meu espanto ante o que ele propõe para resolver o seríssimo problema
de crianças soldados em África, que ainda segundo a nota da AFP, é o seguinte: “realizado
pela ONG californiana Invisible Children, o filme propõe a intervenção militar americana
para prender Kony, acusado de sequestrar, torturar e escravizar dezenas de milhares de
crianças nos últimos 20 anos”. Eu pretendia iniciar essas considerações finais com algumas
reflexões a respeito da permanência do discurso da missão civilizadora na política
internacional atual, para então chegar à discussão sobre imagem da África alardeada pelo
cinema hegemônico, mas discutir esse vídeo faz isso de maneira mais incisiva.

Estamos em 2012, o vídeo insiste em repetir, e diz isso para ressaltar a importância das
redes sociais online na nossa vida. Há mais pessoas no Facebook hoje do que existiam
habitantes na terra há duzentos anos, o vídeo inicia dizendo. É inédita na história humana a
possibilidade de compartilhar qualquer – qualquer mesmo – tipo de informação, seja um
texto, uma foto, ou um vídeo caseiro, instantaneamente com milhões de pessoas ao redor do
globo. Eu digo que não importam os suportes – um vídeo no YouTube, uma informação
compartilhada no Facebook, um link no Twitter, uma apresentação em power point enviada
como „corrente‟ por e-mail, uma exposição colonial em Paris com „nativos‟ expostos como

66
Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=LE_DgntYbpw Acessado em 11/03/2012.
67
De acordo com http://br.noticias.yahoo.com/v%C3%ADdeo-kony-2012-atinge-marca-100-milh%C3%B5es-
visualiza%C3%A7%C3%B5es-201313659.html Acessado em 18/03/2012.
68
Disponível em http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/video-viral-sobre-criminoso-de-guerra-de-uganda-
provoca-polemica Acessado em 11/03/2012.
201

animais em um zoológico, romances como As quatro penas brancas ou As minas do rei


Salomão, relatos de viagem como os de Henry-Morton Stanley ou Albert Schweitzer –, se a
imagem da África transmitida é a mesma. Mais uma vez repito que não defendo a existência
de uma relação determinista entre política e cultura, mas negar a relação estreita entre as duas
é não levar em conta toda a teoria, fruto de trabalho intelectual árduo dentro e fora do eixo
Europa-EUA, utilizada na confecção desta dissertação. A mudança nos suportes para
discursos idênticos demanda atenção dos historiadores, e disposição para rever
posicionamentos tradicionais em relação ao fazer historiográfico.

Tariq ali afirma que nos EUA “as pessoas aprendem a esquecer a história” (ALI,
2006, p. 10), para explicar a razão de justificativas absurdas para os atos do governo
estadunidense serem aceitas pela população. “É um fracasso completo da imaginação
ocidental ver apenas Adolf Hitler como inimigo”, afirma, mostrando como em todas as
circunstâncias desde os anos 1950 a retórica Neocolonial estadunidense equipara seu „inimigo
da vez‟ ao lìder nazista, de Gamal Abder Naser à Osama Bin Laden, passando por Slobodan
Milosevic e, claro, Saddam Hussein (ALI, 2006, p. 10). Esse pobre recurso da lógica falaciosa
moderna, descrito pela primeira vez pelo filósofo político Leo Strauss em sua obra Direito
natural e história (1950), chama-se reductio ad Hitlerum. Eis as palavras do autor que
introduziram o termo no léxico contemporâneo:

Infelizmente, é preciso sublinhar que no decurso do nosso exame temos de


evitar a falácia que nas últimas décadas foi muitas vezes usada como um
substituto da reductio ad absurdum: a reductio ad Hitlerum. Para refutar
uma perspectiva não basta assinalar o facto de ter sido partilhada por Hitler
(STRAUSS, 2009, p. 39). 69

Não é de admirar que em certa altura do vídeo Kony 2012, esse líder militar – warlord
(senhor da guerra) na expressão que a mídia estadunidense gosta de usar – ugandense seja
comparado à Hitler. Para Tariq Ali, “eles só conseguem escapar impunes com tais caricaturas
grosseiras porque a história tem sido completamente subestimada” (ALI, 2006, p. 11), e
acrescenta que nos EUA dos últimos quinze anos a história contemporânea deixou de ser
ensinada: “Eles têm uma cultura essencialmente provinciana que gera a ignorância. Tal
ignorância é muito útil em tempos de guerra, porque pode incitar uma fúria rápida em

69
Com a expansão do uso da Internet, nos anos 1990 surgiu no meio virtual, a partir da fórmula reductio ad
Hitlerum, a chamada Lei de Godwin, formulação atribuída a um advogado estadunidense chamado Mike
Godwin, segundo a qual “À medida que cresce uma discussão online, a probabilidade de surgir uma comparação
envolvendo Adolf Hitler ou nazismo aproxima-se de 100%”. De acordo com a Wikipedia, “há uma tradição em
listas de discussões e fóruns que, se tal comparação é feita, é porque quem mencionou Hitler ou os nazis ficou
sem argumentos.” http://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_de_Godwin Acessado em 11/03/2012.
202

populações mal informadas e levá-las à guerra contra qualquer paìs” (ALI, 2006, p. 10). Os
EUA certamente não detém um monopólio sobre a ignorância da história. A colocação de Ali
pode e deve ser estendida para outras partes do mundo, inclusive o nosso Brasil, onde Kony
2012 teve milhões de compartilhamentos online, por exemplo.

Acreditar que incentivar (e fazer pressão por) uma intervenção militar estadunidense
em Uganda para capturar um militar sádico local é a melhor opção para o bem estar das
crianças ugandenses só é concebível com um grande desconhecimento, ou, mais
especificamente, um entendimento enviesado da história, e não a história da „partilha da
África‟, mas da história que se desenrola diante dos nossos olhos. Em 1996, pouco antes da
invasão ao Iraque, Madaleine Albright, embaixadora dos EUA na ONU, quando perguntada
se valia a pena pagar o preço pela morte de 500 mil crianças iraquianas em função do impacto
das sanções impostas ao Iraque, respondeu: “Achamos que o preço é justo” (ALI, 2006, p.
31). Essa é a intransigente opinião do governo conclamado pelo vídeo para salvar as crianças
ugandenses das garras de mais um „Hitler‟ africano.

Ainda assim, 100 milhões de pessoas assistiram e compartilharam esse vídeo em


menos de uma semana. 100 milhões de pessoas tiveram um reforço na imagem a-histórica e
estereotipada de África que já é transmitida pelo conjunto da grande mìdia „ocidental‟. É
animador o fato de que o vídeo também suscitou muitas críticas, como acusações de encampar
interesses corporativos, em vista das recém-descobertas reservas de petróleo em Uganda, e
também “por explicar a situação em termos maniqueístas, por supostamente promover o
trabalho do próprio cineasta, por tratar de um tema cujo momento crucial aconteceu há 10
anos” e propor “uma solução “ocidental” ao problema”; também “sobraram críticas para o
fato de boa parte do dinheiro arrecadado - quase 70% segundo algumas fontes - ser usado para
pagar salários, gastos de representação e produzir filmes”, de acordo com a nota supra da
AFP, que também relata crìticas vindas mesmo de Uganda: “Por que agora? Por que a
campanha busca beneficiar-se ao comercializar a infâmia de um homem já famoso por seus
crimes e cuja captura já está na pauta?”, questionou em seu blog o escritor e jornalista
ugandense Angelo Izama, que mencionou como problemas urgentes do país a prostituição
infantil e a Aids. “Apesar de chamar a atenção para o fato de Kony, indiciado por crimes pelo
Tribunal Penal Internacional em 2005, ainda estar fugitivo, o retrato de seus supostos crimes
no norte de Uganda já são de outro tempo”; o vìdeo também não menciona o fato de que
“atualmente, a região ugandesa mencionada no vídeo vive em paz e o LRA seguiu – reduzido
– para o nordeste”.
203

Não obstante estas críticas, o peso dos milhões de visitas e do apoio recebido pela
ideia do vídeo é indicador do quão aceita é sua mensagem. O recorte da dissertação é a
primeira década do século XXI, mas a quantidade de filmes que foram produzidos apenas no
biênio 2011/2012 sobre a temática é impressionante, e não entram na conta da dissertação.
Filmes como Redenção (Machine Gun Preacher, Marc Foster, 2012), que conta a história de
um ex-viciado em drogas interpretado pelo astro Gerard Butler, que se torna pastor e vai para
o Sudão realizar trabalho missionário, mas acaba se vendo “obrigado” a recorrer aos métodos
de seu passado violento para ajudar as crianças vítimas de ninguém menos que o Joseph Kony
de Kony 2012, se tornando o grotesco „pastor metralhadora‟ do tìtulo original. Coincidência?
Síndrome de John Wayne à flor da pele, Cultura Histórica, saber histórico difuso.

Ao contrário do que pensa Tariq Ali, não acredito que a credibilidade das legitimações
para as práticas do Neocolonialismo pressupõe um desconhecimento da história por parte da
maioria das pessoas. Pelo contrário, se das 100 milhões de pessoas que assistiram Kony 2012,
ao menos os milhões dentre estes que o compartilharam pelas redes sociais e se engajaram na
„campanha humanitária‟ que ele propõe acham que invadir um paìs africano militarmente é a
melhor solução para os problemas daquele país, é porque estas pessoas têm uma visão muito
bem consolidada de uma versão específica da história da África. A questão é o que Tariq Ali e
a maioria de nós entendemos por história:

Entendemos que a história são palavras em uma página e não imagens numa
tela. A história é alguma coisa que vamos trilhando com nosso próprio ritmo,
um texto que podemos analisar à vontade, e não um ataque de imagens em
movimento e sons que passa por nós a 24 quadros por segundo. No entanto,
mais de um século após a invenção do cinema, parece estar na hora de
admitir que boa parte do que aprendemos sobre o passado é transmitida ao
público por meio dessa mídia visual (ROSENSTONE, 2010, p. 83).

Esta dissertação buscou demonstrar que os filmes oriundos da indústria


cinematográfica hegemônica contemporânea que retratam a África repetem uma série de
estereótipos negativos sobre aquele continente, originados no período histórico chamado
Imperialismo, quando os países industrializados europeus invadiram a África e a inventaram,
ao tecer uma série de justificativas para essa violência, justificativas que invariavelmente
desqualificavam a África e os africanos. A repetição desses estereótipos um século depois,
nos meios de comunicação de massa que atualmente substituem os romances e os relatos de
viagem – os filmes –, se dá em virtude das permanências de práticas coloniais e imperialistas
na política internacional contemporânea, o Neocolonialismo. Assim, pode-se dizer sobre a
imagem da África no cinema contemporâneo o mesmo que afirmou o historiador Oswaldo
204

Coggiola sobre os perigos de permanência de práticas repressivas oriundas das ditaduras


militares na América Latina, parafraseando sem citar as últimas palavras da paródia trágica de
Bertolt Brecht sobre a ascenção de Hitler ao poder na Alemanha70: “Ainda está fértil – e
prenhe – o ventre que pariu a besta imunda” (COGGIOLA, 2001 p. 110).

70
BRECHT, Bertolt. A resistível ascenção de Arturo Ui. In PEIXOTO, Fernando. Bertolt Brecht – Teatro
Completo Vol. 8. Tradução Angélika Köhnke. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
205

FILMOGRAFIA

24 HORAS – A REDENÇÃO. Título original: 24: Redemption. País de origem: EUA. Gênero: Ação.
Duração: 86 minutos. Ano de lançamento: 2008. Estúdio/Distribuição: Fox Filmes. Direção: Jon
Cassar. Roteiro: Howard Gordon. Elenco: Kiefer Sutherland (Jack Bauer), Cherry Jones (Allison
Taylor), Bob Gunton (Ethan Kanin), Colm Feore (Henry Taylor), Hakeem Kae-Kazim (Coronel Iké
Dubaku).

2012. Título original: 2012. País de origem: EUA/Canadá. Gênero: Aventura. Duração: 158 minutos.
Ano de lançamento: 2009. Estúdio/Distribuição: Sony Pictures. Direção: Roland Emmerich. Roteiro:
Harald Kloser e Roland Emmerich. Elenco: John Cusack (Jackson Curtis), Amanda Peet (Kate Curtis),
Oliver Platt (Carl Anheuser), Danny Glover (Presidente Thomas Wilson).

ÁFRICA DOS MEUS SONHOS. Título original: I dreamed of Africa. País de origem: EUA. Gênero:
Drama. Duração: 120 minutos. Ano de lançamento: 2000. Estúdio/Distribuição: Columbia Pictures.
Direção: Hugh Hudson. Roteiro: Paula Milne e Susan Shilliday, baseado em livro de Kuki Gallman.
Elenco: Kim Basinger (Kuki Gallman), Daniel Craig (Declan Fielding), Vincent Pérez (Paolo), James
Ngobese (Luca), Ian Roberts (Mike Donovan).

A INTÉRPRETE. Título original: The interpreter. País de origem: Inglaterra. Gênero:


Suspense/Ação. Duração: 128 minutos. Ano de lançamento: 2005. Estúdio/Distribuição: Studio
Canal/UIP. Direção: Sydney Pollack. Roteiro: Charles Randolph, Scott Frank e Steven Zaillian,
baseado em história de Martin Stellman e Brian Ward. Elenco: Nicole Kidman (Silvia Broome), Sean
Penn (Tobin Keller), Curtiss Cook (Ajene Xola).

ALI. Título original: Ali. País de origem: EUA. Gênero: Drama. Duração: 167 minutos. Ano de
lançamento: 2001. Estúdio/Distribuição: Columbia Pictures/Sony Pictures. Direção: Michael Mann.
Roteiro: Stephen J. Rivele, Christopher Wilkinson, Eric Roth e Michael Mann, baseado em história de
Gregory Allen Howard. Elenco: Will Smith (Muhammad Ali), Jamie Foxx (Drew “Bundini” Brown),
Mario Van Peebles (Malcom X), Jeffrey Wright (Howard Bingham).

A MASSAI BRANCA. Título original: Die Weisse massai. País de origem: Alemanha. Gênero:
Drama. Duração: 131 minutos. Ano de lançamento: 2005. Estúdio/Distribuição: Europa Filmes.
Direção: Hermine Huntgeburth. Roteiro: Johannes W. Betz, baseado em livro de Corinne Hofmann.
Elenco: Nina Hoss (Carola Lehmann), Jacky Ido (Lemalian), Antonio Prester (Padre Bernardo), Katja
Flint (Elizabeth).

AMOR SEM FRONTEIRAS. Título original: Beyond borders. País de origem: EUA. Gênero:
Drama/Romance. Duração: 127 minutos. Ano de lançamento: 2003. Estúdio/Distribuição: Mandalay
Pictures/Camelot Pictures/CP Medien AG/MP Film Management UNLS Produktion ando Co. KG.
Direção: Martin Campbell. Roteiro: Caspian Tredwell-Owen. Elenco: Angelina Jolie (Sarah Jordan),
Clive Owen (Nick Callahan), Teri Polo (Charoltte Jordan), Linus Roache (Henry Bauford), Noah
Emmerich (Elliot Hauser).

AS MINAS DO REI SALOMÃO. Título original: King’s Solomon mines. País de origem: EUA.
Gênero: Aventura. Duração: 173 minutos. Ano de lançamento: 2004. Estúdio/Distribuição: Hallmark
Entertainment. Direção: Steve Boyum. Roteiro: Steven A. Berman, baseado em livro de Henry Rider
Haggard. Elenco: Patrick Swayze (Allan Quatermain), Alison Doody (Elizabeth Maitland), Roy
Marsden (Capitão Good), Sidede Onyulo (Umbopa), Hakeem Kae-Kazim (Twala), Ian Roberts (Sir
Henry).

ATIRADOR. Título original: Shooter. País de origem: EUA. Gênero: Ação. Duração: 125 minutos.
Ano de lançamento: 2007. Estúdio/Distribuição: Paramount Pictures. Direção: Antoine Fuqua.
206

Roteiro: Jonathan Lemkin, baseado em livro de Stephen Hunter. Elenco: Mark Wahlberg (Bob Lee
Swagger), Michel Peña (Nick Memphis), Danny Glover (Coronel Isaac Johnson).

BABEL. Título original: Babel. País de origem: EUA/México. Gênero: Drama. Duração: 143
minutos. Ano de lançamento: 2006. Estúdio/Distribuição: Paramount Pictures. Direção: Alejandro
González Iñarritu. Roteiro: Guillermo Arriaga, baseado em ideia de Guillermo Arriaga e Alejandro
González Iñarritu. Elenco: Brad Pitt (Richard), Cate Blanchett (Susan), Gael García Bernal (Santiago),
Kôji Yakusho (Yasujiro), Mohamed Akhzan (Anwar).

BAKHITA – A SANTA. Título original: Bakhita. País de origem: Itália. Gênero: Drama. Duração:
200 minutos. Ano de lançamento: 2009. Estúdio/Distribuição: Casablanca Filmes. Direção: Giacomo
Campiotti. Roteiro: Giacomo Campiotti, Dino Leonardi Gentili, Filippo Gentili, Filippo Soldi, baseado
em livro de Italo Zanini. Elenco: Fatou Kine Boye (Josefina Bakhita), Stefania Rocca, Fabio Sartor,
Francesco Salvi, Ludovico Fremont, Sonia Bergamasco, Ettori Bassi.

CAÇADOS!. Título original: Prey. País de origem: EUA/África do Sul. Gênero: Terror/Suspense.
Duração: 90 minutos. Ano de lançamento: 2007. Estúdio/Distribuição: Playarte. Direção: Darrell
Roodt. Roteiro: Beau Bauman, Darrell Roodt e Jeff Wadlow. Elenco: Bridget Moynahan (Amy
Newman), Peter Weller (Tom Newman), Carly Schoroeder (Jessica Newman), Jamie Bartlett
(Crawford), Conner Dowds (David Newman).

DARFUR – DESERTO DE SANGUE. Título original: Darfur. País de origem: Canadá/África do


Sul/Alemanha. Gênero: Drama. Duração: 98 minutos. Ano de lançamento: 2009. Estúdio/Distribuição:
Vinny Filmes. Direção: Uwe Boll. Roteiro: Uwe Boll, Chris Roland. Elenco: Kristanna Loken (Malin
Lausber), David O'Hara (Freddie Smith), Billy Zane (Bob Jones), Hakeem Kae-Kazim (Captain Jack
Tobamke), Maggie Benedict (Halima).

DESONRA. Título original: Disgrace. País de origem: Austrália/África do Sul. Gênero: Drama.
Duração: 118 minutos. Ano de lançamento: 2009. Estúdio/Distribuição: Fortissimofilms. Direção:
Steve Jacobs. Roteiro: Anna Maria Monticelli, baseado em livro de J.M. Coetzee. Elenco: John
Malkovich (David Lurie), Jessica Haines (Lucy Lurie), Antoinette Engel (Melanie Isaacs), Eriq
Ebouaney (Petrus), Charles Tertiens (Ryan).

DIAMANTE DE SANGUE. Título original: Bloody diamond. País de origem: EUA. Gênero:
Aventura. Duração: 141 minutos. Ano de lançamento: 2006. Estúdio/Distribuição: Warner Bros.
Direção: Edward Zwick. Roteiro: Charles Levitt, baseado em história de Charles Levitt e C. Gaby
Mitchell. Elenco: Leonardo DiCaprio (Danny Archer), Djimon Hounsou (Solomon Vandy), Jennifer
Connelly (Maddy Bowen), Kagiso Kuypers (Dia Vandy), Arnold Vosloo (Coronel Coetzee).

DISTRITO 9. Título original: District 9. País de origem: EUA/Nova Zelândia. Gênero: Ficção
científica. Duração: 112 minutos. Ano de lançamento: 2009. Estúdio/Distribuição: Sony Pictures.
Direção: Neill Blomkamp. Roteiro: Neill Blomkamp e Terry Tatchell. Elenco: Sharlto Copley (Wikus
Van De Merwe), Jason Cope (Grey Bradnan), Nathalie Boltt (Sarah Livinsgstone), Joe Summer (Les
Feldman).

DUMA. Título original: Duma. País de origem: EUA. Gênero: Drama. Duração: 100 minutos. Ano de
lançamento: 2005. Estúdio/Distribuição: Warner Home Video. Direção: Carrol Ballard. Roteiro:
Karen Janszen e Mark St. German, baseado no livro de Carol Cawthra Hopcraft e Xan Hopcraft.
Elenco: Alexander Michaeletos (Xan), Campbell Scott (Peter), Mary Makhato (Thandi), Nthabiseng
Kenoshi (Lucille), Hope Davis (Kristin).

EM MINHA TERRA. Título original: Country of my skull. País de origem: Inglaterra/Irlanda/África


do Sul. Gênero: Drama. Duração: 103 minutos. Ano de lançamento: 2004. Estúdio/Distribuição: Sony
Pictures. Direção: John Boorman. Roteiro: Ann Peacock, baseado em livro de Antjie Krog. Elenco:
207

Samuel L. Jackson (Langston Whitefield), Juliette Binoche (Anna Malan), Brendan Gleeson (De
Jager), Menzi Ngubane (Dumi Mkhalipi), Sam Ngakane (Anderson).

FALCÃO NEGRO EM PERIGO. Título original: Black Hawk Down. País de origem: EUA.
Gênero: Drama/Guerra. Duração: 144 minutos. Ano de lançamento: 2001. Estúdio/Distribuição:
Columbia Pictures/Sony Pictures. Direção: Ridley Scott. Roteiro: Ken Nolan, baseado em livro de
Mark Bowden. Elenco: Josh Hartnett (Sargento Matt Eversmann), Eric Bana (Sargento Norm Hooten),
Ewan McGregor (Jonh Grimes), Tom Sizemore (Tenente-coronel Danny McKnight).

FLOR DO DESERTO. Título original: Desert Flower. País de origem: Alemanha/Áustria/Reino


Unido. Gênero: Drama. Duração: 120 minutos. Ano de lançamento: 2009. Estúdio/Distribuição:
Imovision. Direção: Sherry Horman. Roteiro: Smita Bhide e Sherry Horman, baseado em romance de
Waris Dirie. Elenco: Liya Kebede (Waris Dirie), Sally Hawkins (Marylin), Craig Parkinson (Neil),
Meera Syal (Pushpa Patel), Anthony Mackie (Harold Jackson), Juliet Stevenson (Lucinda), Timothy
Spall (Terry Donaldson).

HISTÓRIA DE UM MASSACRE. Título original: Shake hands with devil. País de origem: Canadá.
Gênero: Guerra. Duração: 86 minutos. Ano de lançamento: 2007. Estúdio/Distribuição: Paramount
Pictures. Direção: Roger Spottiswoode. Roteiro: Michael Donovan, baseado em livro de Romeo
Dallaire. Elenco: Roy Dupuis (General Romeo Dallaire), Owen Sejake (General Henry Anyidoho),
John Matshikiza (Presidente Habyarimana), James Gallanders (Major Brent Beardsley).

HONRA E CORAGEM – AS QUATRO PLUMAS. Título original: The four feathers. País de
origem: EUA/Inglaterra. Gênero: Aventura/Drama/Guerra. Duração: 131 minutos. Ano de
lançamento: 2002. Estúdio/Distribuição: Imagem Filmes. Direção: Shekar Kapur. Roteiro: Michael
Schiffer e Hossein Amini, baseado em livro de A. E. Mason. Elenco: Djimon Hounsou (Abu Fatma),
Heath Ledger (Harry Faversham), Kate Hudson (Ethne Eustace), Wes Bentley (Jack Durrance),
Campbell Brown (Dervish Ansar).

HOTEL RUANDA – UMA HISTÓRIA REAL. Título original: Hotel Rwanda. País de origem:
Canadá/Reino Unido/Itália/África do Sul. Gênero: Drama. Duração: 121 minutos. Ano de lançamento:
2004. Estúdio/Distribuição: Lions Gate Films Inc./Imagem Filmes. Direção: Terry George. Roteiro:
Keir Pearson e Terry George. Elenco: Don Cheadle (Paul Rusesabagina), Desmond Dube (Dube),
Hakeem Kae-Kazim (George Rutaganda), Nick Nolte (Coronel Oliver), Fana Mokoena (General
Bizimungu), Sophie Okonedo (Tatiana Rusesabagina), Joaquin Phoenix (Jack Daglish).

INVICTUS. Título original: Invictus. País de origem: EUA. Gênero: Drama. Duração: 133 minutos.
Ano de lançamento: 2010. Estúdio/Distribuição: Warner Bros. Direção: Clint Eastwood. Roteiro:
Anthony Peckham, baseado no livro de John Carlin. Elenco: Morgan Freeman (Nelson Mandela), Matt
Damon (François Pienaar), Tony kgoroge (Jason Tshabalala), Patrick Mofokeng (Linga Moonsamy),
Matt Stern (Hendrick Booyens).

JOHNNY MAD DOG. Título original: Johnny Mad Dog. País de origem: França/Bélgica/Libéria.
Gênero: Drama. Duração: 98 minutos. Ano de lançamento: 2008. Estúdio/Distribuição: MNP
Enterprise, Explicit Films. Direção: Jean-Stéphane Sauvaire. Roteiro: Jean-Stéphane Sauvaire,
baseado em livro de Emmanuel Dongala. Elenco: Christophe Minie (Johnny Mad Dog), Daisy
Victoria Vandy (Laokole), Dagbeth Tweh (Mau Conselho), Joseph Duo (Nunca Morre), Mohammed
Sesay (Borboleta).

KIRIKOU – OS ANIMAIS SELVAGENS. Título original: Kirikou et les bêtes sauvages. País de
origem: França. Gênero: Animação. Duração: 74 minutos. Ano de Lançamento: 2005.
Estúdio/Distribuição: Europa Filmes. Direção: Michel Ocelot e Bénédict Galup. Roteiro: Bénédicte
Galup, Philippe Andrieux, Marie Locatelli, Michel Ocelot. Elenco: Pierre-Ndoffé Sarr (Kirikou - voz),
Awa Sene Sarr (Karaba - voz), Robert Liensol (Le grand-père - voz), Marie-Philomène Nga (La mère
- voz), Emile Abossolo M'bo (L'oncle - voz).
208

LÁGRIMAS DO SOL. Título original: Tears os the sun. País de origem: EUA. Gênero:
Drama/Guerra. Duração: 142 minutos. Ano de lançamento: 2003. Estúdio/Distribuição: Sony Pictures.
Direção: Antoine Fuqua. Roteiro: Alex Lasker e Patrick Cirillo. Elenco: Bruce Willis (Tenente A. K.
Waters), Monica Belucci (Dra. Lena Fiore Kendricks), Eamon Walker (Ellis „Zee‟ Pettigrew), Sammi
Rotibi (Arthur Azuka), Tom Skerrit (Capitão Bill Rhodes).

LUGAR NENHUM NA ÁFRICA. Título original: Nirgendwo in Afrika. País de origem: Alemanha.
Gênero: Drama. Duração: 141 minutos. Ano de lançamento: 2001. Estúdio/Distribuição: Zeitgeist
Films. Direção: Caroline Link. Roteiro: Caroline Link, baseado em livro de Stefanie Zweig. Elenco:
Juliane Köhler (Jettel Redlich), Sidede Onyulo (Owuor), Lea Kurka (Regina), Hildegard Schmahl
(Ina), Merab Ninidze (Walter Redlich).

MADAGASCAR. Título original: Madagascar. País de origem: EUA. Gênero: Animação. Duração:
80 minutos. Ano de lançamento: 2005. Estúdio/Distribuição: DreamWorks SKG. Direção: Eric
Darnell e Tom McGrath. Roteiro: Mark Burton e Billy Frolick. Elenco: Ben Stiller (Alex - voz), Chris
Rock (Marty - voz), David Schwimmer (Melman - voz), Jada Pinkett Smith (Gloria - voz), Sacha
Baron Cohen (Julien - voz), Cedric the Eterteiner (Maurice - voz), Andy Richter (Mort – voz).

MADAGASCAR 2. Título original: Madagascar: Escape 2 Africa. País de origem: EUA. Gênero:
Animação. Duração: 89 minutos. Ano de lançamento: 2008. Estúdio/Distribuição: DreamWorks SKG.
Direção: Eric Darnell e Tom McGrath. Roteiro: Ethan Cohen. Elenco: Ben Stiller (Alex - voz), Chris
Rock (Marty - voz), David Schwimmer (Melman - voz), Jada Pinkett Smith (Gloria - voz), Sacha
Baron Cohen (Julien - voz), Cedric the Eterteiner (Maurice - voz), Andy Richter (Mort – voz), Hernan
Almendarez (Antonio – voz), Bernie Mac (Zuba – voz), Will i Am (Moto Moto – voz).

MANDELA – LUTA PELA LIBERDADE. Título original: Goodbye Bafana. País de origem:
Alemanha/França/Bélgica/África do Sul/Itália/Inglaterra/Luxemburgo. Gênero: Drama. Duração: 140
minutos. Ano de lançamento: 2007. Estúdio/Distribuição: Europa Filmes. Direção: Billie August.
Roteiro: Greg Latter, baseado em livro de James Gregory e Bob Graham. Elenco: Dennis Haysbert
(Nelson Mandela), Joseph Fiennes (James Gregory), Diane Kruger (Gloria Gregory), Shiloh
Henderson (Brett Gregory), Faith Ndukwana (Winnie Mandela).

MINHA TERRA, ÁFRICA. Título original: Matériel blanc. País de origem: França. Gênero: Drama.
Duração: 106 minutos. Ano de lançamento: 2009. Estúdio/Distribuição: Imovision. Direção: Claire
Denis. Roteiro: Claire Denis, Marie N‟Diaye e Lucie Borleteau. Elenco: Isabelle Huppert (Maria
Vial), Christopher Lambert (André Vial), Nicolas Duvauchelle (Manuel Vial), Isaach De Bankolé
(Boxeador), William Nadylam (Chérif).

MISSÃO PERIGOSA. Título original: Critical Assignment. País de origem: Inglaterra/África do Sul.
Gênero: Ação. Duração: 110 minutos. Ano de lançamento: 2004. Estúdio/Distribuição: Visual Filmes.
Direção: Marc Gracie. Roteiro: Tunde Babalola, baseado em história de Celia Couchman, Tunde
Babalola e Bob Mahoney. Elenco: Cleveland Mitchell (Michael Power), Nick Boraine (William Le
Trois), Hakeem Kae-Kazim (Jomo), Richard Mofe-Damijo (O presidente), Thami Ngubeni (Sabina
Siko), Moshidi Motshegwa (Anita Chiama).

O ELO PERDIDO. Título original: Man to man. País de origem: França/África do Sul/Inglaterra.
Gênero: Drama. Duração: 122 minutos. Ano de lançamento: 2005. Estúdio/Distribuição: Imagem
Filmes. Direção: Régis Wargnier. Roteiro: Willian Boyd, Michel Fessler, Fred Frougea e Régis
Wargnier. Elenco: Joseph Fiennes (Jamie Dodd), Lomama Boseki (Toko), Cécile Bayiha (Likola),
Kristin Scott Thomas (Elena Van Den Ende), Iain Glen (Alexander Auchinleck), Hugh Bonneville
(Fraser McBride).

O FAZENDEIRO E DEUS. Título original: Faith like potatoes. País de origem: África do Sul.
Gênero: Drama. Duração: 116 minutos. Ano de lançamento: 2006. Estúdio/Distribuição: Sony
209

Pictures. Direção: Regardt van den Berg. Roteiro: Regardt van den Berg. Elenco: Frank Rautenbach
(Angus Buchan), Jeanne Neilson (Jill Buchan), Hamilton Dlamini (Simeon), Sean Cameron Michael
(Fergus Buchan), Casper Badenhorst (Koos).

O JARDINEIRO FIEL. Título original: The constant gardener. País de origem: EUA. Gênero:
Drama/Romance. Duração: 129 minutos. Ano de lançamento: 2005. Estúdio/Distribuição: Focus
Features. Direção: Fernando Meirelles. Roteiro: Jeffrey Caine, baseado em livro de John Le Carré.
Elenco: Ralph Fiennes (Justin Quayle), Rachel Weisz (Tessa Quayle), Hubert Koundé (Arnold
Bluhm), Danny Huston (Sandy Woodrow), Bernard Otieno Oduor (Jomo).

O QUINTO PACIENTE. Título original: The fifth patient. País de origem: EUA. Gênero:
Drama/Suspense. Duração: 95 minutos. Ano de lançamento: 2007. Estúdio/Distribuição: CasaBlanca.
Direção: Amir Mann. Roteiro: Amir Mann. Elenco: Nick Chinlund (John Reilly), Isaac de Bankolé
(Capitão Mugambe), Brendan Fehr (Vince Callow), Marley Shelton (Helen).

O REI LEÃO 3: HAKUNA MATATA. Título original: The lion King 1 ½. País de origem: EUA.
Gênero: Animação. Duração: 77 minutos. Ano de lançamento: 2004. Estúdio/Distribuição: Estúdios
Disney. Direção: Bradley Raymond. Roteiro: Tom Rogers, Roger Allers, Irene Mecchi. Elenco:
Mathew Broderick (Simba - voz), Whoopi Goldberg (Shenzi - voz), Robert Guillaume (Rafiki - voz),
Cheech Marin (Banzai – voz), Nathan Lane (Timão - voz), Ernie Sabella (Pumba – voz).

O SENHOR DAS ARMAS. Título original: Lord of War. País de origem: França/EUA/Alemanha.
Gênero: Drama/Ação. Duração: 122 minutos. Ano de lançamento: 2005. Estúdio/Distribuição: Lions
Gate Films Inc. Direção: Andrew Niccol. Roteiro: Andrew Niccol. Elenco: Nicolas Cage (Yuri Orlov),
Jared Leto (Vitaly Orlov), Bridget Moynahan (Ava Fontaine), Ethan Hawke (Jack Valentine), Eamonn
Walker (Andre Baptiste), Sammi Rotibi (Andre Baptiste Junior).

O ÚLTIMO REI DA ESCÓCIA. Título original: The last king of Scotland. País de origem:
Inglaterra. Gênero: Drama. Duração: 122 minutos. Ano de lançamento: 2006. Estúdio/Distribuição:
Fox Filmes. Direção: Kevin Macdonald. Roteiro: Jeremy Brock e Peter Morgan, baseado em livro de
Giles Forden. Elenco: Forest Whitaker (Idi Amin Dada), James McAvoy (Nicholas Garrigan), Kerry
Washington (Kay Amin), (Dr. Junju), Stephen Reangyezi (Jonah Wasswa).

PRIMITIVO. Título original: Primeval. País de origem: EUA. Gênero: Terror/Suspense. Duração: 95
minutos. Ano de lançamento: 2007. Estúdio/Distribuição: Buena Vista. Direção: Michael Katleman.
Roteiro: John D. Brancato e Michael Ferris. Elenco: Dominic Purcell (Tim Manfrey), Orlando Jones
(Steven Johnson), Brooke Langton (Aviva Masters), Jürgen Prochnow (Jacob Krieg), Gabriel Malema
(Jojo).

TENSÃO EM RUANDA. Título original: Um dimanche à Kigali. País de origem: Canadá. Gênero:
Drama. Duração: 114 minutos. Ano de lançamento: 2006. Estúdio/Distribuição: Paramount Pictures.
Direção: Robert Favreau. Roteiro: Robert Favreau, baseado em livro de Gil Courtemanche. Elenco:
Luc Picard (Bernard Valcourt), Fatou N‟Diaye (Gentille), Guy Thauvette (General Romeo Dallaire),
Céline Bonnier (Elise).

TIROS EM RUANDA. Título original: Shooting Dogs. País de origem: Inglaterra/Alemanha.


Gênero: Drama. Duração: 115 minutos. Ano de lançamento: 2006. Estúdio/Distribuição: Imagem
Filmes. Direção: Michael Caton-Jones. Roteiro: David Wolstencroft, baseado em história de Richard
Alwyn e David Belton. Elenco: Jonh Hurt (Christopher), Hugh Dancy (Joe Connor), Dominique
Horwitz (Capitão Charles Delon), Louis Mahoney (Sibomana), Claire-Hope Ashitey (Marie).

UM HERÓI DO NOSSO TEMPO. Título original: Va, vis et deviens. País de origem:
França/Bélgica/Israel/Itália. Gênero: Drama. Duração: 140 minutos. Ano de lançamento: 2005.
Estúdio/Distribuição: ArtFilms. Direção: Radu Mihaileanu. Roteiro: Alain-Michel Blanc, Radu
Mihaileanu, Rémy Chevrin e Rona Doron. Elenco: Moshe Agazai (Schlomo criança), Moshe Abebe
210

(Schlomo adulto), Meskie Shibru Sivan (mãe de Schlomo), Yaël Abecassis (Yaël Harrari), Roschdy
Zem (Yoram Harrari).

VÊNUS NEGRA. Título original: Vénus Noire. País de origem: França/Itália/Bélgica. Gênero:
Drama. Duração: 159 minutos. Ano de lançamento: 2010. Estúdio/Distribuição: Imovision. Direção:
Abdellatif Kechiche. Roteiro: Ghalia Lacroix e Abdellatif Kechiche. Elenco: Yahima Torres (Saartije
Baartman), Andre Jacobs (Hendrick Caezar), Olivier Gourmet (Réaux), Elina Löwensohn (Jeanne),
François Marthouret (Georges Cuvier).
211

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