SofiaGoncalezREVISADA PDF
SofiaGoncalezREVISADA PDF
SofiaGoncalezREVISADA PDF
Sofia Gonçalez
São Paulo
2018
Sofia Gonçalez
Versão revisada.
São Paulo
2018
Autorizo a reprodução e divulgação integral ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação
Interunidades em Museologia da
Universidade de São Paulo para
obtenção do título de Mestre em
Museologia.
Banca Examinadora
This dissertation looked for to recover the process of conception and implantation
of a long term exhibition, as well as to analyze it in order to reveal the ideas
mobilized by the strategies and exploitative resources. It is the exhibition of the
Museum of Arts and Crafts of Belo Horizonte, opened to the public in 2006.
Located in the old Central Railway Station of the city, the museum exhibits, in its
long-term exhibition, an ample collection related to the practices of production
pre-industrial in Brazil, composed of objects and instruments of work associated
with various manual crafts. This exhibition, innovative in the country due to the
theme that governs the Museum, uses expographics strategies that refer to the
French experience of ecomuseums. The objectives of this dissertation are to go
through this museum’s process of constitution, revealing its matrixes and
museological references, as well as the approach to the collection and the ideas
mobilized by its expographic speech, especially about the memory of work and
workers’ representation.
INTRODUÇÃO.....................................................................................................12
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................142
ANEXOS............................................................................................................147
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................149
12
INTRODUÇÃO
reunidos pelo empresário que dá nome ao instituto ao longo de sua vida. A partir
de então, a herdeira da coleção e responsável pelo instituto, Ângela Gutierrez,
encaminhou os processos que dariam início a implantação do Museu de Artes e
Ofícios.
Em 2002, a equipe responsável pelo planejamento museológico era
composta por consultores e profissionais da empresa paulista Expomus. Um dos
desafios dessa dissertação será o de compreender e problematizar o papel dos
agentes envolvidos nesta etapa de planejamento e verificar em que medida ela
se reproduziu na exposição inaugurada em 2005 e aberta ao público em 2006 1.
O conjunto documental que analisaremos sobre essa experiência é composto
pelo Relatório de atividades produzido pela Expomus e assinado por Maria Ignez
Mantovani Franco em 05 de julho de 2002, bem com as atas das reuniões da
equipe realizadas em 20 de março e 22 de maio de 2002 e a Proposta de
Consultoria Histórica, de Nicolau Sevcenko, anexada ao Relatório.
Durante o planejamento da implantação do museu, também foram
realizados encontros denominados Seminários de Capacitação Museológica,
que tinham como objetivo ser um espaço de apresentação e debate dos projetos
para o MAO, bem como de troca de experiências com outros museus que
passavam por experiências semelhantes. Alguns dos artigos da publicação
gerada pelos Seminários foram também tomados aqui como documentação, com
destaque para o Programa Museológico para o Museu de Artes e Ofícios, de
Maria Ignez Mantovani Franco, e Museu de Artes e Ofícios: projeto
museográfico, de Pierre Catel.
É importante registrar que, na documentação, os agentes envolvidos na
concepção do Museu optavam pelo vocábulo “museográfico”, para referir-se ao
que dizia respeito à exposição em suas dimensões estruturais. Entendemos,
entretanto, que a Museografia se refere a todos os aspectos técnicos da prática
museológica, não estando restrita à exposição. Dessa forma, utilizaremos
“expográfico”, exceção feita às citações, em que manteremos, naturalmente, o
vocábulo utilizado no original.
1 Entre meados de 2002 e o início de 2006, ano de abertura do Museu, outra equipe assumiu a
implantação da exposição. Entretanto, não tivemos acesso a fontes produzidas neste intervalo ou
aos novos agentes envolvidos, apesar das tentativas realizadas junto ao Instituto Cultural Flávio
Gutierrez em maio e dezembro de 2017.
14
CAPÍTULO 1
DESAFIOS MUSEAIS: UMA IDEIA, UMA PRAÇA E UM EDIFÍCIO EM
QUESTÃO
A coleção que deu origem ao MAO foi formada pela empresária mineira
Ângela Gutierrez, herdeira do grupo Andrade Gutierrez e uma das maiores
colecionadoras de arte do país. Ela fundou o Instituto Cultural Flávio Gutierrez
em 1998 e, a partir de segmentos de sua coleção, foram formados os acervos do
Museu do Oratório (inaugurado em 1998 em Ouro Preto) e o Museu de Sant’Ana
(situado em Tiradentes e aberto em 2014). A colecionadora também mantinha
sob sua guarda uma coleção formada por “peças originais dos séculos XVIII ao
XX”3 em galpões em sua fazenda, Morada Nova, localizada em Minas Gerais.
Tal coleção, constituída de objetos associados a diversos ofícios pré-industriais
do Brasil, especialmente instrumentos de trabalho, havia sido coletada ao longo
da vida pelo pai de Ângela, o empresário Flávio Gutierrez, de quem ela a herdou.
3 Dado apresentado no site oficial da instituição. Acesso em 25 de setembro de 2015 e em 17 de
janeiro de 2018. Nos dois acessos, percebeu-se que o conteúdo permaneceu essencialmente o
mesmo, não havendo alterações no discurso oficial do Museu. A única alteração refere-se ao fato
de que em 2015 informava-se que a coleção estava em processo de tombamento pelo IPHAN e,
em 2018, esse tombamento já ter sido efetivado, embora o texto não informe a data.
http://www.mao.org.br/conheca/historia-da-colecao/
18
4 Este e outros dados nos foram informados em entrevista concedida por Maria Ignez Mantovani
Franco, realizada em São Paulo, em 24 de maio de 2017.
5 Trecho apresentado no site oficial da instituição. Acesso em 25 de setembro de 2015 e em 17
7 Tradução livre do original : « Un miroir où cette population se regarde, pour s’y reconnaître, où
elle recherche l’explication du territoire auquel elle est attachée, jointe à celle des populations qui
l’ont précédée. Un miroir que cette population tend à ses hôtes, pour s’en faire mieux
comprendre, dans le respect de son travail, de ses comportements, de son intimité ».
MUSEOLOGIE SELON GEORGE HENRI RIVIÈRE (La), p. 142.
21
iniciado em 1991 e interrompido em 1999, que teria como título “Exposições panorâmicas sobre
o Brasil - Séc. XX”. Informações coletadas no currículo de Maria Ignez Mantovani Franco na
plataforma Lattes, em 16 de janeiro de 2018.
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8124208Z1
22
acordadas pela equipe em reunião, mantendo aspectos que deveriam ter sido
alterados:
colocar pra não ser danoso ao projeto”16. Por conta disso, entendemos que esse
descompasso de metodologias foi mais um aspecto que determinou o
afastamento da Expomus da continuidade do projeto do MAO.
Outro descaminho foi a perda de Nicolau Sevcenko como consultor em
História. Segundo o Relatório de atividades desenvolvidas pela Expomus,
assinado por Maria Ignez Franco em 2002, o historiador vinha atuando
informalmente junto ao projeto desde 2001, “participando ativamente dos
encaminhamentos conceituais referentes ao Museu de Artes e Ofícios”. Em 21
de março de 2002, teria sido convidado pelo ICFG para integrar oficialmente a
equipe, segundo a sugestão de Maria Ignez Franco. No fim de abril, Sevcenko e
sua assistente visitaram pela primeira vez a estação que abrigaria o futuro MAO
e conheceram o acervo, então acondicionado na fazenda Morada Nova.
Entretanto, devido a “dificuldades geradas pela incompatibilidade nos
cronogramas de captação de fundos para a realização da pesquisa histórica”, a
aprovação de sua proposta de trabalho aconteceu apenas em 29 de maio, e de
maneira “informal”, em reunião em que estavam presentes Maria Ignez Franco,
Ângela Gutierrez e Pierre Catel. Por fim, devido aos muitos descompassos que
temos descrito aqui, o historiador decidiu por não mais efetuar o contrato de
consultoria com o ICFG.
Também quanto aos prazos do cronograma havia uma divergência entre
Expomus e ICFG. Em reunião acontecida em 22 de maio, ficou acordado entre
os presentes que seria necessário a elaboração de um “cronograma realístico”
de trabalho, e que dependia do estado do andamento das obras de restauro dos
edifícios que abrigariam o Museu. O plano era, naquele momento, que o museu
fosse inaugurado, ainda que parcialmente, em dezembro de 2002, ou seja, dali a
seis meses.
Poucos dias depois, segundo o Relatório, Ângela Gutierrez informou a
Expomus que Pierre Catel havia tido reuniões com a equipe de obras, nas quais
se estabeleceu que, para a inauguração em dezembro, seria possível finalizar
integralmente o edifício A, parcialmente a parte interna e uma área externa do
edifício B, e que não seria possível iniciar as obras do túnel. Diante dessa
informação, a Expomus elaborou um documento denominado “Proposta
17Este documento também não está entre os anexos do Relatório, de forma que não tivemos
acesso a sua integralidade
28
Belo Horizonte não é uma cidade como as outras. Ela não é fruto
espontâneo da aglomeração de casas levantadas por uma
conjunção de interesses e posicionamento estratégico, como
quase todas as cidades. Ela foi planejada, projetada, traçada a
régua e compasso. Criada primeiro na prancheta, teve, depois,
seu plano imposto ao relevo natural à custa de enormes esforços
e grande movimento de terras. Por isso, a Cidade das Minas,
como era seu nome oficial, veio causar imenso impacto na
contida gente da montanha: era muito diferente das cidades de
ruas e vielas tortuosas da mineração, de Ouro Preto, Mariana,
Sabará e tantas outras a que o povo estava acostumado. A
cidade moderna, positivista, eugênica, veio para romper de uma
vez por todas com o passado ao inaugurar uma nova era, a da
República, e, ao mesmo tempo, coroar a tradição de Minas
Gerais, a única região das colônias ibéricas cuja base cultural
era enraizadamente urbana. Mais que uma cidade, era um
símbolo ideológico e cultural” (GOMES, 2011, p. 19)
Sendo o trem o meio de transporte mais usado no fim do século XIX, foi
construída uma estação de trem no que viria a ser a Praça da Estação, por onde
chegaram materiais e trabalhadores envolvidos na construção da Cidade de
Minas. A atual Praça, localizada no centro de Belo Horizonte, que correspondia à
área urbana do traçado de Reis, só começou a ser construída em 1904. O prédio
ali presente, em estilo eclético, “logo foi visto como insuficiente e antiquado em
relação ao progresso que a nova capital mineira apresentava” (CORRÊA, 2010,
p. 54), sendo então derrubado em 1919, dando lugar a dois novos edifícios,
também eles ecléticos: o edifício da Estação Oeste de Minas, cuja linha de trem
ligaria a capital ao interior do estado; e o edifício da Estação Central do Brasil,
em que chegariam trens vindos de outras capitais do Brasil. Nessa época, a
Avenida do Contorno, que delimitava originalmente a zona urbana, passou a
delimitar apenas a região central da cidade, em vias de expansão.
A Praça, denominada em 1923 oficialmente de Praça Rui Barbosa,
continua sendo chamada de Praça da Estação pelos habitantes. Em sua
dissertação de mestrado, Maíra Corrêa realizou larga pesquisa junto ao público
do MAO e, em suas reflexões a respeito das relações dos visitantes com a
Praça, aferiu que eles “ainda hoje não demonstram familiaridade com este nome
[Rui Barbosa]” (CORRÊA, 2010, p. 54), de forma que muitos deles sequer
sabem qual é o nome oficial da Praça. Por essa razão, iremos utilizar neste texto
a nomenclatura “Praça da Estação” para nos referirmos à localidade.
Em 1924, foi feita uma reforma paisagística na Praça, onde se
construíram jardins em estilo francês com canteiros geométricos, baixa
vegetação e espelhos d’água (JAYME; TREVISAN, 2012, p. 364), e se
instalaram quatro esculturas representativas das estações do ano, intervenções
estas orientadas pelo “bom gosto” e elegância então em vigor, de inspiração
francesa (CORRÊA, 2010, p. 54-55). Os projetos para o centro de Belo
Horizonte e para a Praça da Estação, tanto no momento de planificação de
Aarão Reis quanto nas reformas dos anos 1920, se operaram pelas referências
32
para viabilizar o deslocamento dos trabalhadores que vinham das periferias para
o centro cotidianamente. A solução proposta pelos órgãos responsáveis
(Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes, Companhia de
Transportes Urbanos na Região Metropolitana de Belo Horizonte e Empresa
Brasileira de Transportes Urbanos) foi a demolição de todo o conjunto
arquitetônico da Praça da Estação para a implantação de vários terminais de
ônibus integrados a uma grande estação de metrô (CORRÊA, 2010, p. 57).
Essa medida causou reações em setores da sociedade, de forma que em
1981 foi realizado o Primeiro Encontro pela Revitalização da Praça Rui Barbosa,
que havia se tornado, a despeito de sua desvalorização, um ponto de
concentração de manifestações políticas durante a ditadura militar. Essa
movimentação conseguiu impedir a demolição do conjunto arquitetônico. Em
1988, em razão da movimentação acontecida em 1981, o Conjunto Arquitetônico
da Praça foi tombado pelo Instituto Estadual de Patrimônio Histórico e Artístico
de Minas Gerais (IEPHA-MG) (CORRÊA, 2010, p. 59).
Em 1986, foi regulamentado em Belo Horizonte o Conselho Deliberativo
do Patrimônio Cultural, com o objetivo de organizar a proteção do patrimônio
cultural da cidade. Jayme e Trevisan enxergam de maneira positiva o
encaminhamento desta criação:
http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuP
ortal&app=politicasurbanas&tax=18409&lang=pt_BR&pg=5562&taxp=0&
Acesso em 09 de fevereiro de 2018
36
21A documentação citada e referenciada por Felipe Hoffman não está mais disponível online,
portanto não pode ser consultada diretamente. Nos valemos, então, do trecho trazido por ele
37
Em sua análise, Pio deu especial atenção às formas como o patrimônio foi
mobilizado no projeto Porto Maravilha. A respeito do Museu de Arte do Rio, uma
das instituições criadas pelo projeto, Pio informa que seriam ocupados dois
edifícios históricos da Praça Mauá para abrigá-lo, um de arquitetura modernista
e, outro, eclético. Para ele, tais escolhas para abrigar o novo museu alinham-se
a uma vertente muito em voga na revitalização de centros históricos de
reutilização de prédios preexistentes, aos quais são atribuídos usos culturais,
reintegrando-os ao contexto urbano sob uma nova lógica (2013, p. 21). O museu
seria, então, uma tentativa de releitura da cidade, numa reação à “perda da
centralidade através do que poderíamos chamar de “poder redentor” da cultura”
(2013, p. 22). Ainda sobre o MAR, ele entende que:
22
No hall de entrada do Museu, há um totem de conteúdos audiovisuais dedicado a
apresentação do museu, seus conteúdos e a ocupação do seu espaço. As figuras 2, 3 e
4 são fotografias de algumas telas deste totem.
40
23
Voltaremos a este tema no item 1.3
24
Na tela aberta pelo toque em Estação Central e Belo Horizonte: história em trilhos
paralelos, apresenta-se o texto: “A história da construção da Estação Central, que hoje
abriga o Museu de Artes e Ofícios, começa na virada do século XIX para o XX. É uma
história que se confunde com a da construção da nova capital de Minas Gerais. Durante
muito tempo, junto com a Praça da Estação, este conjunto foi chamado de “portal da
cidade”. Toque nas datas e abra gavetas que guardam um pouco dessa memória”. A
esta tela seguem-se várias outras, em que se apresentam 35 imagens da Praça e do
Edifício ao longo do século XX, e também um vídeo dos anos 1940, em que se registrou
a presença de uma multidão na praça em razão da presença de Juscelino Kubitschek
na localidade.
No item Restauração do prédio, o texto é: “estes prédios, bem ao gosto eclético dos
edifícios públicos das primeiras décadas da cidade de Belo Horizonte, têm elementos
neoclássicos e art nouveau em sua construção. Toque nos croquis da fachada e do
interior e acompanhe um pouco do processo de restauração que devolveu ao prédio
suas características originais”. A ele seguem-se 28 imagens, sendo 3 croquis e 25
fotografias das obras de restauro, em que estão sempre presentes trabalhadores em
41
Uma das hipóteses deste trabalho, que orientou a redação deste capítulo,
reside na percepção de que existe uma indissociação entre a instituição MAO, o
espaço que ela ocupa (edifícios e Praça) e o público almejado, combinação que
foi determinante na constituição da exposição em questão. Tentaremos analisar
neste item alguns aspectos da ocupação dos espaços do edifício, entendendo
que os usos da arquitetura são produtores de significado. Nessa análise,
abordaremos a relação entre o espaço arquitetônico e as estratégias de conexão
entre o presente, vivenciado pelos visitantes, e o passado, apresentado pela
exposição.
De início, vejamos a fala de Ângela Gutierrez a respeito da escolha dos
edifícios da Praça da Estação para a acolhida do MAO:
45
25
Conteúdo disponível no site da instituição, no item “Acervo” Disponível em:
http://www.mao.org.br/conheca/acervo/ Acesso em 09 de abril de 2018
46
que foram planejadas para estar logo na entrada do prédio, porém como vemos
na mancha azul clara da Figura 6, elas foram deslocadas para dentro, próximo à
galeria-plataforma. Esse deslocamento fez com que o hall não seja entendido
como parte da exposição – que “começa” ao ser ultrapassada a catraca –, ainda
que existam conteúdos muito importantes neste espaço. Além de mapas (com
sua óbvia e necessária função de orientar a localização), há o texto de parede
que apresenta a instituição e a exposição, bem como o totem também de
apresentação (aos quais já nos referimos no item anterior). Estão localizados
logo antes da catraca, à direita.
Figura 5 – Croqui do planejamento expográfico previsto para o Térreo do edifício A
Figura 6 – Mapa atual do Museu, sobre o qual destacamos, em azul escuro, a área de
acolhimento. A mancha azul clara indica a atual localização das catracas
26
Tocando nesta frase, o visitante abre uma sequência de 25 telas com a apresentação
da divisão dos temas / ofícios em função do mapa do museu, bem como indicação de
que outros espaços serão construídos, como reserva técnica e setor educativo.
49
Figura 7 – mapa atual do Museu sobre o qual destacamos, em azul, a área que
corresponderia à “Galeria Contemporânea”
31 Outros núcleos expositivos presentes nesta galeria também trazem suportes audiovisuais de
orientação semelhantes, cuja análise pormenorizada, contudo, não foi possível para esta
dissertação.
32 São 3 vídeos a respeito das mulas, 1 sobre as tropas de muares e mais um que destaca a
importante que o museu pretende mobilizar, então essa sugestão deve ficar
clara no discurso expositivo (que poderia, inclusive, pensar o trem de carga
enquanto “acervo”). Em entrevista concedida em 30 de outubro de 2002,
portanto ainda durante os planejamentos para o MAO, Pierre Catel explicitou
suas expectativas para a relação do museu com o trem de carga:
Outro espaço que entendemos que merece ser pontuado no que toca aos
usos planejados pela programação inicial é o espaço subterrâneo entre o prédio
A e o prédio B. Segundo a ata de reunião de 20 de março de 2002, estava
previsto para o túnel que liga os dois edifícios a instalação de vitrines no chão,
dedicadas à exposição de matérias primas brasileiras (Figura 10). Nas paredes
(Figura 11), as vitrines exporiam sobre três temas: as permanências nas formas
que o exercício de determinado ofício assume ao longo do tempo; o papel do
mestre de ofício, tendo Aleijadinho como referência maior; e os ofícios
ambulantes. Além do túnel, estava prevista a abertura de salas subterrâneas,
paralelas ao túnel, em que seriam projetados vídeos em telões, associados a
alguns poucos objetos expostos, visando discutir a abrangência nacional dos
diferentes aspectos de trabalho. O documento não especifica quais seriam tais
aspectos, por se tratar de uma discussão inicial. Esse complexo subterrâneo
deveria dar conta do circuito histórico descrito por Maria Ignez Franco no
Programa Museológico e, naturalmente, sua curadoria seria de responsabilidade
de Nicolau Sevcenko.
de mesmo título, que apresenta as profissões em ordem alfabética, sem citar nomes dos
trabalhadores.
58
CAPÍTULO 2
DESAFIOS CURATORIAIS: ENTRE OBJETOS E SUJEITOS, ENTRE
ESTETIZAÇÃO E HISTÓRIA
matemática de difícil solução, mas que ao final ele consegue resolver, chocando
a todos, uma vez que ele provou ter o pensamento “mais livre” do que seu
senhor, um cidadão, em tese “livre”, habituado a debates na praça pública e,
supostamente, ao exercício do pensamento (PESSANHA, 1996, p. 35 37). A
narrativa platônica trazida por Pessanha deixa-nos uma sugestão importante: o
museu não pode ser como Ménon, iludido e confundido em suas próprias
palavras e narrativas. O trabalho do museu, ao contrário, deve ser análogo ao de
Sócrates, como o que Platão acredita ser o da filosofia: saber fazer a mágica,
mas mostrar que a mágica é mágica e como ela funciona e, ainda, como pode
ser refeita. Trata-se, portanto, de uma posição institucional em que se opte por
uma necessária e ética explicitação dos discursos curatoriais, de modo que eles
sejam assim percebidos e possam ser, afinal, discutidos pelo público, que
formulará suas próprias reflexões.
37
O texto de Pessanha, transcrição de uma comunicação oral, certamente trouxe mais
beleza à narrativa. Aqui, nos detivemos aos detalhes do conteúdo trazidos por ele, que
se mostram exemplares, sem termos recorrido ao texto original de Platão.
60
38
Não foram realizadas entrevistas com Pierre Catel que atestem essa associação.
Nossa hipótese é baseada na correspondência entre algumas opções do arquiteto e as
sugestões de Rivière registradas no livro La museologie selon George Henri Rvière,
além das aproximações visuais entre as fotografias presentes no livro citado e a
exposição do MAO.
61
caindo na exposição, porém, e nem braços que estejam a erguer a jarra e fazer
o movimento. Rivière, supomos, ficaria satisfeito com tal vitrine, uma vez que,
para ele, “os modos de exposição hábeis (fios de suspensão transparentes, por
exemplo) permitem devolver aos objetos um pouco da sua vida anterior”
(MUSEOLOGIE..., 1989, p. 276).
Junto a esta “instalação”, no mesmo núcleo, temos: três fotografias, sendo
duas de uma senhora que trabalha a cerâmica a mão e uma de um senhor que
utiliza o torno; a citação de um trecho de Spix e Martius no painel principal do
núcleo (“encontramos diversas mulheres ocupadas em fabricar louças de barro.
Elas modelam cântaros e pratos, quase sempre sem torno, à mão livre, com a
maior habilidade”39); a exposição de alguns objetos, entre eles moldes e
alambiques e panelas, jarros e potes; e o texto do núcleo, sobre o uso do torno e
as habilidades do ceramista40. Ainda que um núcleo, ele precisa ser entendido
enquanto unidade com os dois núcleos ao lado, “Oleiro” e “Ceramista e Oleiro”,
que contam com a presença de diversos textos e demonstram uma preocupação
em abordar os processos produtivos nos quais a cerâmica está envolvida.
Conforme vemos na figura 12, a apresentação sugere um “congelamento”
do momento do uso dos objetos, mas não há um personagem humano
associado ao gesto e nenhuma referência textual ou a partir de outros objetos
sobre contextos de uso dos artefatos. Em consonância a proposta de Rivière, os
objetos têm total destaque. Como apontou Vinçon, a sensação que temos é que
os objetos estão apresentando a si mesmos para o observador, como se não
houvesse uma estrutura física e de pensamento atuantes ali.
Outro indício que nos parece bastante emblemático dessa tentativa de
“transparência” ou, melhor dito, de não explicitação de que a exposição é um
recorte e uma possibilidade de mobilização daquele acervo é a ausência de um
título. A exposição “é” o museu, uma vez que não foi delimitada enquanto
realidade em si. Se fizermos o exercício especulativo de imaginar uma
itinerância para a exposição, como ela seria divulgada? É impossível uma
resposta precisa, porque ela não se apresenta enquanto recorte (ainda que seja,
como toda exposição é). Nomear é delimitar, e pressupõe agentes para escolher
e batizar. Ao manter a exposição sem título, borram-se os indivíduos
39 Segundo o painel: Belém, Pará, 1819, Spix e Martius, Viagem pelo Brasil
40 Continuaremos a análise deste núcleo mais à frente.
62
seria o curador do MAO? Quem foi o “sábio” que com sua erudição conduziu os
trabalhos da exposição? No nosso entender, nessa concepção de curador, ele
não existiu.
Ressaltamos que Marília Cury criticou a figura do curador dentro deste
modelo linear porque ela implica uma supervalorização de seu papel, em
detrimento de outros, de forma que a exposição se torna, simplesmente, o
resultado de sua erudição estampada na parede (CURY, 2005a, p. 66). Nesse
sentido, não estamos propondo aqui que teria sido necessário um curador
especialista para tomar todas as decisões autoritariamente. O que apontamos é
que a não existência de um especialista, que trabalhe em conjunto com os
demais integrantes da equipe (também eles especialistas em suas funções), se
configura como um problema estrutural na formulação da exposição.
Considerando que apresentamos no capítulo 1 o historiador Nicolau
Sevcenko como o consultor em História, poderia conjecturar-se se não seria ele
o curador.
Nicolau Sevcenko formou-se historiador no Departamento de História da
Universidade de São Paulo, em que foi posteriormente professor de História
Contemporânea e da Cultura. Estudioso do século XX, dedicou-se às áreas da
literatura, do urbanismo e das relações entre História, cultura e tecnologia 42.
Como se vê, Sevcenko não era um estudioso da História do Trabalho e nem do
período a que o acervo do MAO se refere. Enquanto professor titular e
historiador experiente, evidentemente sua competência é indiscutível e suas
contribuições não foram aleatórias ou supérfluas. Ao contrário, suas colocações
em reuniões nos parecem, a partir da leitura das atas, muito inteligentes,
coerentes e pertinentes. O mesmo pode se dizer de sua Proposta de Consultoria
na área de História43. Além disso, por ser um grande nome da historiografia
brasileira contemporânea, certamente sua associação traria prestígio ao projeto.
Entretanto, é fato que havia outros historiadores no cenário nacional em
melhores condições de contribuir do que ele, por terem seguido trajetórias
acadêmicas mais próximas aos temas do museu.
que foi atribuído a ele esse sentido, então podemos dizer que houve um curador
na elaboração do MAO, a saber, o arquiteto Pierre Catel44.
Como enunciamos no capítulo 1, os desentendimentos com Catel
parecem ter sido muito significativos para a decisão da equipe da Expomus de
interromper sua participação na montagem do MAO.
Além disso, a exposição, enquanto resultado estético, é bastante
característica, como discutiremos à frente, da tradição expográfica dos
ecomuseus franceses, que o arquiteto tinha como referência. Assim, fica
fortemente sugerido que a exposição de longa-duração é, em grande medida,
resultado das opções plásticas adotadas por ele.
Outro aspecto revelador da importância atribuída a Catel pelo MAO é a
referência a seu nome em comunicações oficiais. Em três notícias da
inauguração do Museu, do site do Ministério da Cultura e dos jornais O Tempo e
Folha de S. Paulo, informa-se que o projeto “era” dele. Na notícia publicada no
site do ICFG em comemoração aos dois anos de inauguração do MAO,
novamente seu nome aparece enquanto projetista45. Entendemos que esse
reforço da participação do francês promove uma valorização do museu graças à
atuação dele enquanto museógrafo, num processo próximo ao que pontuamos
no capítulo 1: arquitetos de renome são convidados para a construção de
museus de arquitetura espetacular, especialmente em regiões às quais se
pretende dar novo uso e significado, trazendo visibilidade à cidade. O uso da
imagem de Pierre Catel no MAO parece ter efeito análogo, no âmbito da
formulação dos espaços interiores.
https://www.otempo.com.br/divers%C3%A3o/magazine/museu-de-artes-e-of%C3%ADcios-
%C3%A9-inaugurado-1.328697
Notícia publicada na Folha de S. Paulo em 08/12/2005, acesso em 26/05/2018, disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0812200509.htm
Texto publicado no site do ICFG em 27/12/2007, acesso em 26/05/2018, disponível em:
http://icfg.org.br/pt/noticias.asp%3Fopc=not&id=66&pg=4.html
68
46 Estudos de recepção são possíveis, desejáveis e necessários para que entendamos este outro
sujeito ativo na construção da exposição enquanto experiência e situação, que é o público
visitante. Não é esta nossa proposta aqui, porém, como foi explicitado na Introdução desta
dissertação.
70
47Esta percepção não está aqui ancorada em bibliografia especializada, mas na experiência da
pesquisadora no trabalho com o público de museus em diferentes instituições.
73
48
Estamos cientes de que os ecomuseus transcendem a experiência francesa, cuja
definição não basta para a compreensão deste fenômeno no Brasil. Este tema foi
abordado com vastidão e detalhe na dissertação de mestrado de Suzy da Silva Santos:
Ecomuseus e Museus Comunitários no Brasil: estudo exploratório de possibilidades
museológicas, defendida no PPGMus-USP em 2017. Ainda assim, como o referencial
de ecomuseu utilizado no MAO foi o francês, seguimos por este raciocínio.
77
49
Acesso em 15 de setembro de 2015 e em 22 de maio de 2018, disponível em:
http://www.mao.org.br/conheca/implantacao-do-museu/
50 Os Carranqueiros são na verdade parte dos Ofícios da proteção do viajante, mas
estão expostos em frente aos Tropeiros e ao lado dos Carreiros e Carpinteiros navais, e
muito distanciados dos demais núcleos de seu grupo, o que se justifica pela relação de
sua atividade com os barcos.
51
Este tema será discutido no capítulo 3.
83
Figura 31 – Botica
Figura 32 – Venda
Como vimos, não há resposta para nossa pergunta inicial, que procurava
encerrar a instituição em uma única categoria de museus. Em parte, porque
talvez ela seja uma pergunta inadequada e anacrônica. Em parte, porque a
curadoria do MAO operou segundo uma série de referenciais expográficos
90
item, ou seja, quem o havia possuído ou a que evento estava associado; por fim,
a identidade do doador do objeto, num regime de trocas simbólicas operado pela
associação da própria memória a memória do museu, e portanto da nação.
Nosso exemplo do peixinho do Coronel Buendía preencheria dois dos três os
requisitos, sendo, portanto, legítimo enquanto “objeto histórico”: era antigo e de
estilo bastante característico, e associado, na fala do oficial, ao significado que
operava no passado (“Em certa época foram uma senha de subversão”); e havia
sido produzido por um “grande personagem”.
Assim como os peixinhos, encontrados abandonados na oficina, o acervo
do Museu de Artes e Ofícios encontrava-se abandonado antes de ser coletado:
54
O depoimento de Ângela Gutierrez compõe o conteúdo audiovisual disponível no totem
localizado na entrada no museu, logo antes da catraca.
93
55Este autor foi identificado, na ficha técnica do museu, disponível no totem na entrada, como o
responsável pelo “texto base”
94
caso, teríamos tido já uma revolução socialista no Brasil56. Além disso, na fala de
Tomasi e, entendemos, no discurso do museu, a ideia de classe que unifica os
diferentes trabalhadores transfigurou-se numa noção pasteurizada,
excessivamente coesa de “trabalhador”.
Um dado que sustenta nossa interpretação é a exposição de dois aventais
de couro, nos núcleos dos Ofícios do Couro, em que temos a legenda: “Seu uso
constante moldou o objeto com a postura do trabalhador”. Como vemos na
Figura 33, o avental de couro está flutuando, assim como um facão que também
flutua em altura que sugere estar ao alcance da mão, estando ambos próximos a
uma tábua de madeira inclinada. Mais uma vez, vemos o mecanismo de
tentativa de reproduzir o momento exato dos objetos em uso, porém sem a
apresentação do trabalhador. Curiosamente, as fotografias desses núcleos
mostram homens trabalhando com o dorso nu, sem camisa ou avental. Faz-se
referência a este objeto no vídeo do totem de entrada, com o áudio “Entre este
avental de curtume e a pessoa que o usou, certamente a vida inteira, quem fez o
quê? Quem moldou e quem foi moldado? O corpo moldou o objeto, ou é o
contrário?”.
Entendemos que o avental de couro foi operado pelo museu segundo o
que Ulpiano Bezerra de Meneses denominou de “objeto metonímico”:
56 Vale registrar que o texto foi escrito num contexto de forte ascensão do Partido dos
Trabalhadores, que culminou na eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da
República.
95
Fora isso, essa confusão entre homem e ferramenta sugerida pelo áudio do
vídeo da entrada aproxima o trabalhador de uma máquina e, ao contrário do que
parece ser a intenção, não valoriza sua habilidade técnica aperfeiçoada durante
anos na profissão, mas faz parecer que é “natural” o uso do instrumento de
trabalho.
A esta definição segue-se uma explicação que separa as artes que exercem
também funções utilitárias (arquitetura, mobiliário, cerâmica) e as puramente
estéticas (música, pintura, escultura e literatura), as chamadas belas artes.
Para citarmos um exemplo mais atualizado do português corrente, o
Dicionário Houaiss traz uma definição extensa de “arte”, da qual recortamos aqui
alguns trechos que parecem mais interessantes ao nosso tema:
59Convém destacar que o MAO nada tem em comum, apesar da semelhança do nome, com o
Musée des arts et métiers, de Paris, voltado à promoção e salvaguarda de inovações
tecnológicas desde o século XIX, quando nasceu como Conservatoire des arts et métiers; Não
há aproximação, também, aos Liceus de Artes e Ofícios, inaugurados no Brasil na segunda
metade do século XIX.
105
(FRANCO, 2004, p. 40). Porém, não parecem combinar com um museu que
escolhe para si um conceito tão antigo e complexo como “artes e ofícios” como
nome. Temos então um descompasso de propostas e significados.
Um contra-argumento que talvez ocorra ao leitor é que, ampliando a ideia
de “arte” conforme alguns dos significados que trouxemos acima, e mesmos aos
usos contemporâneos menos formais, podemos dizer que havia uma “arte” na
atividade do tropeiro, tão específica e cheia de necessidades, que também
necessitava de aprendizado e experiência. O mesmo pode-se dizer de
lavradores, por exemplo, que tanto sabem sobre a terra, o plantio, os ciclos da
natureza. O que se quer chamar a atenção aqui, porém, é que o uso de “artes e
ofícios” não é gratuito, ele traz consigo a trajetória do termo que pode, por um
lado, provocar afastamento por desconhecimento do público contemporâneo e,
por outro, implica assumir a responsabilidade do que este conceito traz como
identificação, ou seja, profissões associadas a uma forma europeia de
organização e ensino profissional que não contempla essas profissões.
A isso soma-se o fato de que muitas outras profissões tradicionalmente
pertencentes às “artes e ofícios” não foram contempladas pela exposição. A
coleção reunida por Flávio Gutierrez, de fato, não possui artefatos relacionados a
muitos desses ofícios, porém os edifícios em que o museu se localiza foram
construídos e restaurados por estes profissionais, de forma que o prédio poderia
ter sido utilizado enquanto acervo para o debate sobre essas profissões.
Caso se quisesse ter proposto uma ampliação conceitual que enxerga na
atividade de um carregador uma prática com valor estético, seria necessário
problematizar os sentidos de “artes e ofícios”, além de justificar a denominação
da instituição, o que não acontece na exposição de longa-duração.
Os apagamentos e confusões se agravam, parece-nos, com a
equalização entre essas profissões (garimpeiro, lavrador, carregador) e ofícios
de maior prestígio social e que demandam conhecimento e aprendizado técnico
formal, como é o caso do ourives. Ao apresentar a todos enquanto “ofícios”, em
núcleos expográficos de mesma estrutura, mesmas cores e mobiliários, o
sentido sugerido é de que não existem diferenças entre as atividades
profissionais em termos de condições de trabalho, remuneração,
reconhecimento e valorização social, formação, perfil do trabalhador que as
executa, entre muitas outras.
107
De início, é preciso ressaltar que a fala da museóloga deixa ver que havia
uma polaridade entre o comitê curatorial e outro agente, não indicado por ela,
mas que se opunha à problematização dos recortes que ela listou. Como
sabemos, a Expomus abandonou o projeto do MAO e essa parece ter sido uma
das razões dessa decisão.
Na fala de Maria Ignez Franco, vemos uma oposição entre um projeto de
museu “do trabalho” e outro, que se efetivou, de um museu “dos ofícios”. Disso
surge um questionamento: como podem duas ideias que a princípio parecem tão
indissociáveis terem se tornado opostas? Como vimos na exposição dos
conceitos, muitas vezes utiliza-se “ofício” enquanto sinônimo de “serviço”,
108
CAPÍTULO 3
TRABALHO ESCRAVIZADO: DEBATES, REPRESENTAÇÃO E EXPOSIÇÃO
61O uso da palavra “escravo” tem sido questionado e problematizado, no entendimento de que
seria mais acertado dizer “escravizado”, palavra que sugere a relação entre dois sujeitos: quem
foi escravizado e quem escravizou. Entendendo que esta diferenciação tem forte caráter
simbólico e político, optamos aqui pelo termo “escravizado”, salvo em citações.
112
62Como pudemos verificar nas atas, sobretudo da reunião realizada em 22 de maio de 2002.
Esta ata se encontra anexa ao relatório da Expomus.
113
análise das dinâmicas de trabalho no pós-abolição, e isso tem sido notado pela
historiografia mais contemporânea, que tem progressivamente matizado a ideia
da simples “substituição” do trabalho escravizado pelo livre.
É evidente que existiram trabalhadores escravizados e não escravizados,
livres e não-livres no Brasil e não propomos que abandonemos estas categorias.
Porém, que as usemos com mais flexibilidade:
...poderíamos argumentar que construtos como liberdade
deveriam ser tratados, quando muito, como termos contrastivos
ou comparativos, e não como categorias absolutas... Em vez de
falarmos em termos dicotômicos, deveríamos discutir formas
mais ou menos livres de trabalho, conforme definidas dentro de
histórias locais, regionais e nacionais (FRENCH, 2006, p. 88)
Douglas Libby apresenta dados sobre Vila Rica em 1804 em que a maior
parte (70%) dos trabalhadores de ofícios era composta por “indivíduos de cor”
63Assumimos aqui a denominação “negro”, ainda que saibamos que no período colonial havia
outras categorias (preto, pardo, mulato..) para a referência à população afro-descendente. Tal
escolha se dá em consideração ao uso de “negro” nas pautas identitárias contemporâneas.
119
(MAC CORD, 2012, p.48), correlação que foi universalizada pela historiografia
porque comum no Sudeste
A interdição de escravizados na confraria revela o desejo de que ela fosse
bem classificada socialmente, confirmando, por contraste, suas qualificações
(MAC CORD, 2012, p. 62). Não sendo o escravizado um cidadão, os confrades
procuravam se dissociar dessa imagem, em sua luta pela cidadania. Além disso,
circulava em Recife no século XIX a ideia de que o trabalho realizado pelos
escravizados era de baixa qualidade técnica e moral, além de pouco inteligente,
de forma que a mão de obra cativa era taxada por alguns seguimentos sociais
como “indisciplinada” e tremendamente “incapaz” (MAC CORD, 2012, p. 64-65).
Assim, se é válida a afirmação do autor de que o trabalho manual não era
desvalorizado pela sociedade inteira, a desvalorização associada a esse
trabalho executado por mãos escravas permanecia, segundo os dados trazidos
por ele próprio, difundida.
Wilson Rios estudou outras localidades – Vila Rica e Salvador – e tinha
outro compromisso com seu trabalho – entender o defeito mecânico em
oposição à honra e, portanto, como impedimento do acesso aos privilégios da
nobreza. Nesse exercício, identificou que:
ideia de democracia racial que entendemos ser um mito, como frisa Emília Viotti
da Costa (2007, p. 370).
Pensar sobre a ideia de democracia racial nos leva automaticamente a
obra de Gilberto Freyre, especialmente Casa Grande e Senzala. Mas aqui nos
dedicamos sobretudo a outra obra, Interpretação do Brasil, compilação de
comunicações feitas no exterior, por se tratar do conteúdo ao qual Costa
também se debruçou e por entendermos que funciona como síntese do
pensamento de Freyre sobre as relações raciais no Brasil. O trecho seguinte,
bastante emblemático, parece ser uma síntese sobre sua interpretação:
64 Painel da esquerda: “No século XIX, os negros que viviam nas cidades carregavam tudo por
um vintém.
Apesar da crescente modernização das tecnologias de produção, algumas atividades ainda
utilizam o trabalho braçal. Nos portos, por exemplo, carregadores e estivadores continuam se
valendo da força de seus ombros e músculos.
A grande diferença é que, hoje, essa categoria está organizada em sindicatos, com capacidade
de reivindicar melhores condições de trabalho. ”
Painel da direita: “Até meados do século XIX, o transporte de carga no Brasil empregava,
principalmente, a força humana. Eram usados, para essa finalidade, escravos africanos ou
índios.
‘... nas costas, nos ombros, no pescoço e na cabeça de homens é que se arrebatavam não só
fardos e caixas de mercadorias como também viajantes, estes escanchados no cangote, ou
então, como preferiam os mais comodistas e aquinhoados, espichados em redes frescas e
acalentadas ao balanço ritmado dos carregadores’, registrou José Alípio Goulart, em seu livro
Tropas e Tropeiros na Formação do Brasil. ”
65 No painel utilizado para apresentação do ofício, que em alguns casos conta com um verso
popular ou trecho de narrativa de viajante, neste caso se lê apenas “Carregador” e “A2 Ofícios do
comércio”.
127
poucas contribuições que eles poderiam dar à sociedade. O trecho final sobre
sindicatos e luta por melhores condições de trabalho denota que anteriormente
as condições eram ruins, mas pode sugerir também que o passado era marcado
por uma atitude de submissão desses carregadores, que aceitavam tudo “por um
vintém”, sem reclamar. Tal sugestão pode corroborar a visão de passividade
atribuída à população escravizada que, entendemos, é fruto secundário do
apagamento operado pela democracia racial a respeito das tensões que
marcaram as relações entre escravizados e seus senhores.
67
Texto do painel: “Tudo indica que os primeiros mestres de ofício em metal eram em sua
maioria imigrantes, colonos portugueses. Mas o elemento forro - negro ou mulato - participava
dos ofícios, e havia também alguns artífices escravos chegados da África, com mais e maiores
habilidades do que os artesãos lusos. Dos poucos documentos que restaram dos primórdios da
Colônia, emerge a impressão de que houve tentativas de reservas a concessão de licenças aos
133
não são tão poucos os documentos que restaram desta época68 e o “ambiente
multirracial do Brasil” é uma explicação que não parece dar conta da dinâmica
entre brancos e negros quanto ao trabalho manual que, como já sugerimos,
ainda está em reflexão pela historiografia, de forma que a afirmação é
demasiado categórica. Além disso, entendemos que a menção aos negros,
enquanto africanos, escravizados ou libertos, é feita de maneira displicente,
diminuindo a importância da atuação destas pessoas. Mostrar de forma tão
escondida é quase o mesmo que não mostrar.
A não problematização sobre a escravidão é um problema também nos
núcleos dedicados aos Ofícios Ambulantes. Em Vendedores Ambulantes (Figura
41), há fotografias no primeiro nível de comunicação com o público: um homem
negro vendedor de doces; um homem branco ou mestiço vendedor de
vassouras; uma mulher negra, acompanhada de um menino negro, vendedora
de frutas. Os objetos resumem-se a tabuleiros de doces. Na legenda69 de um
dos tabuleiros, encontramos um texto meramente informativo e que não
corresponde às fotografias, visto que quem está vendendo doces é um homem.
O texto do painel70 novamente atesta o protagonismo das mulheres como
vendedoras de comida, e faz um paralelo muito interessante com os camelôs,
propondo a percepção da permanência deste tipo de serviço nas cidades
brasileiras. Porém, apesar de afirmar que os negros de ganho “tinham no balaio
das câmaras municipais. Citamos como exemplo os textos já citados aqui de Geraldo Silva Filho,
José Newton Meneses, Douglas Libby.
69 Legenda: “tipo de tabuleiro usado pelas quituteiras, ofício muito comum entre as ‘escravas de
71 Painel: “Barbeiro, dentista e cirurgião são profissões que se entrelaçam em suas origens
alimentando, por muito tempo, o imaginário popular: ‘quem lhe dói os dentes vai a casa dos
barbeiros’. Ainda no começo do século XIX, o barbeiro era identificado como o indivíduo que
fazia barbas e aparava o cabelo, arrancava dentes e aplicava sanguessugas. As técnicas eram
transmitidas, na prática e oralmente, de geração a geração.
A barbearia, ambiente predominantemente masculino, já era importante como ponto de encontro:
nela se trocavam informações e circulavam as notícias locais. Havia também barbeiros
ambulantes.
Como material de trabalho, os barbeiros utilizavam bacia de latão modelada de forma a se
adaptar ao pescoço; e o próprio dedo ou uma noz, por dentro da boca do cliente, para melhor
escanhoar – era a barba de caroço ou barba de dedo. O barbeiro ambulante usava também o
artifício de pedir ao freguês para fazer bochecha, facilitando, assim, o movimento da navalha:
“Ioiô, fazê buchichim”.
Ao final do século XIX, com o advento dos profissionais liberais de formação acadêmica, fica
mais definida a distinção entre barbeiro, dentista e cirurgião.”
136
72
No original, perfunctory, que pode significar também negligente, descuidado, por mera
formalidade. Estes significados parecem também servir ao sentido que queremos dar
aqui.
140
CONSIDERAÇÕES FINAIS
73A gratuidade de entrada, desde 2016, tem um papel importante na quebra de uma dessas
barreiras, razão pela qual louvamos o MAO. O mesmo pode-se dizer a respeito da ampliação dos
horários de funcionamento, também a partir de 2016.
147
ANEXO
148
149
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CATEL, Pierre. Museu de Artes e Ofícios: projeto museográfico. In: ICFG. Anais
dos Seminários de Capacitação Museológica. Belo Horizonte: ICFG, 2004, p.
48-51.
CORSINO, Célia. Museu de Artes e Ofícios: desafios e ações. In: ICFG. Anais
dos Seminários de Capacitação Museológica. Belo Horizonte: ICFG, 2004, p.
112-117.
COSTA, Emília Viotti da. O mito da democracia racial no Brasil. In: ______. Da
monarquia à república: momentos decisivos. 8 ed. São Paulo: Unesp, 1998,
cap. 9, p. 367-386.
MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Trad. Eliane Zagury. Rio de
Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003.