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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO INTERUNIDADES EM


MUSEOLOGIA

Sofia Gonçalez

Museu de Artes e Ofícios: o trabalho em exposição

São Paulo
2018
Sofia Gonçalez

Museu de Artes e Ofícios: o trabalho em exposição

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação Interunidades em
Museologia da Universidade de São
Paulo para obtenção do título de Mestre
em Museologia.

Área de concentração: Museologia.

Orientador: Prof. Dr. Paulo César Garcez


Marins

Linha de Pesquisa: História dos


processos museológicos, coleções e
acervos

Versão revisada.

Versão original encontra-se na biblioteca


do Museu de Arqueologia e Etnologia
(MAE-USP)

São Paulo
2018
Autorizo a reprodução e divulgação integral ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


Serviço de Biblioteca e Documentação do
Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo

G635 Gonçalez, Sofia.


Museu de Artes e Ofícios : o trabalho em exposição / Sofia
Gonçalez ; orientador Paulo Cesar Garcez Marins – São
Paulo,
2018.

Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo,


Museu de Arqueologia e Etnologia, Programa de Pós-
Graduação Interunidades em Museologia, 2018.

1. Museu de Artes e Ofícios. 2. Exposição. 3. Trabalhador.


4. Trabalho manual. 5. Escravidão. I. Garcez Marins,
Paulo Cesar. II. Universidade de São Paulo. Museu de
Arqueologia e Etnologia. Programa de Pós-Graduação
Interunidades em Museologia. III. Título.
Nome: Sofia Gonçalez
Título: Museu de Artes e Ofícios: o trabalho em exposição

Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação
Interunidades em Museologia da
Universidade de São Paulo para
obtenção do título de Mestre em
Museologia.

Aprovada em: 13 de setembro de 2018

Banca Examinadora

Profa. Dr.: Paulo César Garcez Marins


Instituição: Museu Paulista – PPGMus-USP

Profa. Dra: Cátia Rodrigues Barbosa


Instituição: Escola de Ciência da Informação – Universidade Federal de Minas
Gerais

Profa. Dra.: Profa. Dra. Flávia Brito do Nascimento


Instituição: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Universidade de São Paulo
Ao meu avô, José Sebastião, in memoriam.
Homem negro que nasceu e morreu como
branco.
AGRADECIMENTOS

Nesse momento de finalização, a mistura de sentimentos vem em


avalanche. Ainda assim, a gratidão é o maior deles, por um número tão grande
de pessoas que só posso me sentir agraciada pela vida ter me proporcionado
companhias tão fundamentais. Curiosamente, todas as pessoas citadas aqui são
excelentes trabalhadores – o que me é muito caro, não por acaso fui estudar o
trabalho – de forma que me sinto ainda mais privilegiada.
Agradeço, ciente de que nunca será suficiente, aos meus pais Rosangela
e Luís Carlos, por cada decisão tomada a respeito da minha educação. Não
tenho dúvidas de que essa dissertação é muito fruto de cada uma delas, até as
menos ortodoxas. E também pelo apoio, estrutura, sustento, mas, sobretudo,
pelo amor que protege enquanto forma para o mundo.
A minha família pelo apoio e compreensão em minhas ausências. Em
especial à Rita, pelo exemplo de amor e dedicação aos livros, e por ter me dado
a Marina, que me enche de orgulho e amor a cada dia.
À Iraci, pelo cuidado, dedicação, ensinamentos e fé de que eu teria
sucesso na vida em qualquer coisa que fizesse. Espero corresponder.
Muito obrigada a todos os professores que fizeram parte da minha
formação. Em especial, à Lúcia, da 3ª série, que carinhosamente profetizou que
eu seria “escritora”; à Silvia, de Redação no Ensino Fundamental, que lançou as
bases para que um dia fosse possível escrever esse texto; a Shirley, Sônia (in
memoriam) e Giba, professores de História que certamente influenciaram minha
escolha pela História na graduação; ao Paulo, meu orientador, pela
despretensiosa informação da existência do Museu de Artes e Ofícios, que nos
trouxe aqui, pela confiança em meu potencial e pela minúcia nas correções; à
Cristina, que cedeu a documentação base para o desenvolvimento dessa
pesquisa; à Marília, pelo apoio e valiosas sugestões no início da pesquisa, e pela
acolhida na disciplina em que realizei estágio; à Helouise, pelas sugestões e
postura generosa durante a banca de qualificação; à Cátia, pela disposição para
a banca de defesa; à Flávia, pelos ricos comentários na banca de defesa, tão
potentes de ampliação das reflexões intentadas nesta pesquisa.
Agradeço à Denise por me acolher e apresentar o mundo da educação
em museus. Muito do que está aqui começou no Museu Paulista em 2011.
Ao Hélio, funcionário da biblioteca do MAE, pela atitude sempre prestativa
e atenciosa.
À Karla, pela amizade de anos, pela acolhida nas estadias em Belo
Horizonte (a quem devo agradecer também à Elisa) e pelas sugestões ao
capítulo 1.
As minhas amoras Carolina, Carolina, Isabella e Bruna por serem seres
humanos tão excepcionais, e pelo apoio, companhia, aprendizado e, acima de
tudo, amor. À Isabella, também, pela leitura dos capítulos 1 e 2.
Muito obrigada ao meu quarteto fantástico museológico, Manuella,
Thamara e Leonardo, sem os quais, estou segura, não teria sobrevivido ao
processo seletivo do PPGMus.
Aos colegas do PPGMus, companheiros na solitária caminhada que é a
pós-graduação. Em especial, aos que vivem comigo a aventura sempre
enriquecedora de organização de eventos acadêmicos: Thamara, Leonardo,
Marjoi, Milena, Flávia, Eduardo, Letícia, Denyse e Juliana.
Ao Eduardo por tantas coisas que é preciso uma lista, como ele faria: a
parceria na representação discente; a companhia nas tardes de estudo na
biblioteca da Faculdade de Medicina; o trato sempre tão cuidadoso com todos; a
amizade.
Agradeço ao Renê por ter se permitido compartilhar a vida comigo e pelo
amor leve que colore os dias cinzas e desperta afeto até em relógios e
calendários.
RESUMO

Museu de Artes e Ofícios: o trabalho em exposição

Esta dissertação buscou recuperar o processo de concepção e implantação de


uma exposição de longa duração, bem como analisar sua expografia, a fim de
revelar as ideias mobilizadas pelas estratégias e recursos expográficos. Trata-se
da exposição do Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte, aberto ao público
em 2006. Situado na antiga Estação Ferroviária Central da cidade, o museu
expõe, em sua exposição de longa-duração, um amplo acervo relativo às
práticas de produção pré-industrial no Brasil, composto de objetos e
instrumentos de trabalho associados a diversos ofícios manuais. Essa
exposição, inovadora no país devido ao tema que rege o Museu, utiliza-se de
estratégias expográficas que remetem à experiência francesa dos ecomuseus.
Percorrer o processo de constituição deste museu, revelando suas matrizes e
referências museológicas, bem como a abordagem do acervo e as ideias
mobilizadas por seu discurso expográfico especialmente no que tange à
memória do trabalho e à representação dos trabalhadores são os objetivos desta
dissertação.

Palavras-chave: Museu de Artes e Ofícios; exposição; trabalhador; trabalho


manual; escravidão
ABSTRACT

Museum of Arts and Crafts: work on display

This dissertation looked for to recover the process of conception and implantation
of a long term exhibition, as well as to analyze it in order to reveal the ideas
mobilized by the strategies and exploitative resources. It is the exhibition of the
Museum of Arts and Crafts of Belo Horizonte, opened to the public in 2006.
Located in the old Central Railway Station of the city, the museum exhibits, in its
long-term exhibition, an ample collection related to the practices of production
pre-industrial in Brazil, composed of objects and instruments of work associated
with various manual crafts. This exhibition, innovative in the country due to the
theme that governs the Museum, uses expographics strategies that refer to the
French experience of ecomuseums. The objectives of this dissertation are to go
through this museum’s process of constitution, revealing its matrixes and
museological references, as well as the approach to the collection and the ideas
mobilized by its expographic speech, especially about the memory of work and
workers’ representation.

Keywords: Museum of Arts and Crafts; exhibition; worker; handwork; slavery


LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – mapa da região central de Belo Horizonte, em que encontramos a
Praça Rui Barbosa, a estação Central do metrô, as Avenidas do Contorno e dos
Andradas e, sinalizado em vermelho, a localização do Museu de Artes e Ofícios.
............................................................................................................................ 29
Figura 2 - Imagem da tela que apresenta as opções de conteúdo a que o
visitante, tocando em cada frase, terá acesso. ................................................... 40
Figura 3 – Imagem da fachada do futuro Museu, no início das obras de restauro
dos edifícios, em 2002. Lê-se o texto: “Início das obras para sediar o Museu de
Artes e Ofícios, mediante um acordo de cessão de uso pela CBTU,
administradora do metrô, ao Instituto Cultural Flávio Gutierrez. Toque para saber
mais” ................................................................................................................... 41
Figura 4 – Imagem diagonal da Praça da Estação em reforma, com o edifício em
segundo plano, em 2004. Lê-se o texto: “Reforma do prédio e da Praça da
Estação. Toque em seguir para ver mais fotos”. ................................................ 41
Figura 5 – Croqui do planejamento expográfico previsto para o Térreo do edifício
A ......................................................................................................................... 47
Figura 6 – Mapa atual do Museu, sobre o qual destacamos, em azul escuro, a
área de acolhimento. A mancha azul clara indica a atual localização das catracas
............................................................................................................................ 48
Figura 7 – mapa atual do Museu sobre o qual destacamos, em azul, a área que
corresponderia à “Galeria Contemporânea” ....................................................... 50
Figura 8 – Núcleos de objetos do acervo do MAO que ficam expostos na
plataforma do metrô, fotografados a partir da galeria-plataforma do prédio A. ... 52
Figura 9 – Tela do recurso multimídia em que se disponibilizam ao toque 5
caminhões, que iniciam cada um dos depoimentos............................................ 52
Figura 10 – Planejamento museológico para o túnel e salas subterrâneas ........ 55
Figura 11 – Croqui de realidade virtual para o planejamento do túnel e salas
subterrâneas ....................................................................................................... 56
Figura 12 – Ofícios da Cerâmica (B5). Núcleo do ceramista .............................. 62
Figura 13 – Ofícios ambulantes (A2), Núcleo do Mascate .................................. 75
Figura 14 – Ofícios da madeira (B4), Núcleo do Tanoeiro .................................. 75
Figura 15 – Ofícios da Madeira (B4) ................................................................... 77
Figura 16 – Ofícios da Madeira (B4) ................................................................... 77
Figura 17 – Ofícios da Madeira (B4) ................................................................... 77
Figura 18 – Vitrine dos Ofícios do Comércio (A3), Núcleo do Comerciante ....... 79
Figura 19 – Vitrine dos Ofícios do Comércio (A3), Núcleo do Comerciante ........ 79
Figura 20 – Painel dos Ofícios do Comércio (A3) ............................................... 79
Figura 21 – Ofícios da Conservação e Transformação dos alimentos ................ 81
Figura 22 – Ofícios da Conservação e Transformação dos alimentos ................ 81
Figura 23 – Ofícios do Transporte, Núcleo do Tropeiro ...................................... 84
Figura 24 – Ofícios da Terra (B9), Núcleo do Mestre-de-açúcar......................... 84
Figura 25 – Ofícios da Cerâmica, Núcleo do Ceramista e Oleiro ........................ 85
Figura 26 –Jardim das Energias (B1), Núcleo da Tração animal ........................ 85
Figura 27 – Jardim das Energias (B1), Núcleo das Engrenagens ....................... 87
Figura 28 – Jardim das Energias (B1) Núcleo das Engrenagens ........................ 87
Figura 29 – Ofícios da Lapidação e Ourivesaria (B7), Núcleo do Ourives .......... 88
Figura 30 – Ofícios da Lapidação e Ourivesaria (B7), Núcleo do Ourives .......... 88
Figura 31 – Botica ............................................................................................... 88
Figura 32 – Venda ............................................................................................... 89
Figura 33 – Exemplo de vitrine orientada por G.H. Rivière ................................. 89
Figura 34 – Exemplo de vitrine orientada por G.H. Rivière ................................. 89
Figura 35 – Ofícios do Couro (B8), Núcleo do Curtidor ...................................... 95
Figura 36 – Ofícios do Couro (B8), Núcleo do Curtidor ...................................... 95
Figura 37 – Ofícios do Comércio (A2), Núcleo do Carregador .......................... 127
Figura 38 – nicho da "Balança para pesar escravos" ........................................ 130
Figura 39 – balança de pesar escravos ............................................................ 130
Figura 40 - Ofícios do Ferro, Núcleo do Ferrador ............................................. 134
Figura 41 - Ofícios ambulantes, Núcleo do Vendedor de Rua .......................... 134
Figura 42 – Painel do núcleo Barbeiro e Dentista ............................................. 137
Figura 43 - Ofícios ambulantes, Núcleo Barbeiro e Dentista ............................. 137
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.....................................................................................................12

CAPÍTULO 1. DESAFIOS MUSEAIS: UMA IDEIA, UMA PRAÇA E UM


EDIFÍCIO EM QUESTÃO.....................................................................................17
1.1 FORMULANDO UMA EXPOSIÇÃO: IMPASSES DA CRÍTICA................17
1.2 FLUXOS: DE PASSAGEIRO A VISITANTE..............................................28
1.3 UMA ESTAÇÃO NO MEIO DO CAMINHO................................................44

CAPÍTULO 2. DESAFIOS CURATORIAIS: ENTRE OBJETOS E SUJEITOS,


ENTRE ESTETIZAÇÃO E HISTÓRIA.................................................................58
2.1 CURADORIA E EXPOGRAFIA: ENTRE TRANSPARÊNCIA E CRIAÇÃO
ARTÍSTICA......................................................................................................58
2.1.1 “Transparência” na concepção e montagem de exposições............59
2.1.2 O curador do MAO: um artista?........................................................63
2.2 CURADORIA E EXPOGRAFIA: O ESPAÇO, OS RECURSOS E AS
SOLUÇÕES EXPOGRÁFICAS NA CONSTRUÇÃO DA COMUNICAÇÃO.....68
2.3 O “TRABALHADOR” NO MAO..................................................................90
2.4 “MUSEU DE ARTES E OFÍCIOS” X “MUSEU DO TRABALHO”.............100

CAPÍTULO 3. TRABALHO ESCRAVIZADO: DEBATES, REPRESENTAÇÃO E


EXPOSIÇÃO......................................................................................................111
3.1 TRABALHO LIVRE E TRABALHO ESCRAVIZADO................................111
3.2 DEFEITO MECÂNICO.............................................................................115
3.3 REPRESENTAÇÃO DA ESCRAVIDÃO: DEMOCRACIA RACIAL E
ANIQUILAÇÃO SIMBÓLICA..........................................................................121

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................142

ANEXOS............................................................................................................147

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................149
12

INTRODUÇÃO

Esta dissertação é um estudo sobre comunicação museológica. Seu


objeto é a exposição de longa duração do Museu de Artes e Ofícios de Belo
Horizonte, a qual se pretende analisar à luz de referenciais teóricos sobre
curadoria e comunicação museológica e da historiografia sobre a escravidão e
suas representações. O Museu de Artes e Ofícios configura-se como uma
experiência pioneira no cenário museológico brasileiro, inédita no momento de
sua inauguração, pois abriga um acervo ainda pouco comum nos museus do
país, qual seja, uma expressiva coleção de instrumentos de trabalho associados
aos ofícios manuais. Além disso, sua exposição de longa duração apresenta
soluções discursivas que procuram revelar beleza em objetos comumente
entendidos como rústicos, o que o torna mais uma vez detentor de uma proposta
museológica pouco habitual no Brasil, em que as dimensões plásticas são
sobretudo associadas a abordagens realizadas nos museus de belas artes.
Apesar de seu caráter inovador, o Museu de Artes e Ofícios ainda não
tinha sido objeto de estudo pormenorizado no que concerne à sua exposição de
longa duração, razão pela qual nos pareceu um relevante tema a ser estudado,
na tentativa de contribuir para a reflexão da ciência museológica sobre a
potencialidade discursiva dessa exposição. Temos como objetivo então,
compreender e apresentar o processo de concepção e implantação da
exposição, analisar suas estratégias expográficas e recuperar a que tradições
museológicas ela se filia.
É relevante também a discussão aqui intentada sobre a representação
num espaço museológico de trabalhadores manuais, considerando que,
historicamente, as classes subalternas não ocupam papel de protagonistas nas
narrativas construídas pelos museus. Cabe ainda ressaltar a tentativa de
aproximar a ciência museológica do debate existente na historiografia a respeito
dos limites das formas livre e escravizada de trabalho praticadas na trajetória do
país.
O início dos trabalhos para a constituição do Museu de Artes e Ofícios
deu-se em outubro de 2000, quando o Instituto Cultural Flávio Gutierrez
comemorou dois anos de existência e foi anunciada a intenção de se criar um
novo museu que desse acesso público à coleção de instrumentos de trabalho
13

reunidos pelo empresário que dá nome ao instituto ao longo de sua vida. A partir
de então, a herdeira da coleção e responsável pelo instituto, Ângela Gutierrez,
encaminhou os processos que dariam início a implantação do Museu de Artes e
Ofícios.
Em 2002, a equipe responsável pelo planejamento museológico era
composta por consultores e profissionais da empresa paulista Expomus. Um dos
desafios dessa dissertação será o de compreender e problematizar o papel dos
agentes envolvidos nesta etapa de planejamento e verificar em que medida ela
se reproduziu na exposição inaugurada em 2005 e aberta ao público em 2006 1.
O conjunto documental que analisaremos sobre essa experiência é composto
pelo Relatório de atividades produzido pela Expomus e assinado por Maria Ignez
Mantovani Franco em 05 de julho de 2002, bem com as atas das reuniões da
equipe realizadas em 20 de março e 22 de maio de 2002 e a Proposta de
Consultoria Histórica, de Nicolau Sevcenko, anexada ao Relatório.
Durante o planejamento da implantação do museu, também foram
realizados encontros denominados Seminários de Capacitação Museológica,
que tinham como objetivo ser um espaço de apresentação e debate dos projetos
para o MAO, bem como de troca de experiências com outros museus que
passavam por experiências semelhantes. Alguns dos artigos da publicação
gerada pelos Seminários foram também tomados aqui como documentação, com
destaque para o Programa Museológico para o Museu de Artes e Ofícios, de
Maria Ignez Mantovani Franco, e Museu de Artes e Ofícios: projeto
museográfico, de Pierre Catel.
É importante registrar que, na documentação, os agentes envolvidos na
concepção do Museu optavam pelo vocábulo “museográfico”, para referir-se ao
que dizia respeito à exposição em suas dimensões estruturais. Entendemos,
entretanto, que a Museografia se refere a todos os aspectos técnicos da prática
museológica, não estando restrita à exposição. Dessa forma, utilizaremos
“expográfico”, exceção feita às citações, em que manteremos, naturalmente, o
vocábulo utilizado no original.

1 Entre meados de 2002 e o início de 2006, ano de abertura do Museu, outra equipe assumiu a
implantação da exposição. Entretanto, não tivemos acesso a fontes produzidas neste intervalo ou
aos novos agentes envolvidos, apesar das tentativas realizadas junto ao Instituto Cultural Flávio
Gutierrez em maio e dezembro de 2017.
14

Em 2017, foi realizada uma entrevista com a museóloga Maria Ignez


Mantovani Franco, na sede da Expomus, em São Paulo, a respeito da
participação dela no planejamento museológico do Museu. Trechos da entrevista
foram analisados aqui. Outra entrevista, concedida por Pierre Catel à Luciana
Köptcke e publicada em 2005, também foi tomada aqui como documentação.
Somam-se a elas o depoimento de Ângela Gutierrez apresentado em conteúdo
audiovisual em um totem na área de recepção do museu, bem como outros
conteúdos audiovisuais presentes na exposição e os textos e legendas
apresentados em alguns painéis expositivos.
Além disso, foram feitas consultas a publicações veiculadas pela
imprensa e documentação oficial produzida pela prefeitura de Belo Horizonte
sobre a implantação do Museu de Artes e Ofícios no centro da capital, no
contexto de um processo de requalificação urbana paralelo à restauração dos
edifícios que abrigariam o museu.
A principal fonte desta dissertação, porém, é a própria exposição, tal
como se apresentava ao público em 20172. Em se tratando de um museu
localizado em Minas Gerais, as visitas à exposição foram realizadas em duas
oportunidades, de maneira concentrada: em dezembro de 2015 e em maio de
2017. Nas duas ocasiões, a exposição foi registrada em centenas de fotografias,
que serviram de registro visual para que se tivesse acesso constante, guardadas
as limitações, à visualidade da exposição. Esse apoio será oferecido também ao
leitor, com a inclusão de algumas dessas fotografias no decorrer do texto.
Entendemos as exposições museológicas enquanto situações de
comunicação, conforme a conceituação de Jean Davallon (1999, p. 49), em que
o museu não é o único responsável pela produção de sentidos durante a visita,
sendo também o público atuante e criativo. Entretanto, nos limitaremos a análise
da parte que cabe à instituição nessa situação de comunicação, por limitações
de tempo e proposta.

A dissertação está organizada em três capítulos. Em cada um deles,


buscaremos compreender, a partir de três diferentes entradas, como a exposição
mobiliza o trabalho e a figura do trabalhador. Essas discussões serão

2 Não temos notícia de que ela tenha sido substancialmente alterada.


15

acompanhadas e sustentadas pelos debates teóricos da Museologia e da


historiografia.
No capítulo 1, recuperamos o início da trajetória do Museu de Artes e
Ofícios, por meio da discussão dos projetos museológico e museográfico, dando
especial atenção aos agentes envolvidos na concepção do museu e sua
trajetória de formação e atuação alinhadas à chamada Nova Museologia, nas
delineações que ela ganhou na França a partir dos ecomuseus e no Brasil, a
partir da obra de Waldisa Guarnieri.
Além disso, procuramos problematizar a participação do MAO no
processo de requalificação dos edifícios ocupados por ele e da área central de
Belo Horizonte, onde se encontra. Para tal, nos valemos de autores que se
dedicaram ao estudo da implantação de museus em áreas em vias de
requalificação, como Leonardo Pio, e sobre o caso de Belo Horizonte em
específico, como Maíra Corrêa, Felipe Hoffman, Juliana Jayme e Eveline
Trevisan.
Iniciamos já nesse capítulo nossa análise da exposição, observando como
a expografia se valeu de alguns dos aspectos estruturais da edificação para se
constituir, em exercício comparativo entre o que se planejou para aqueles
espaços e o que se apresenta de fato atualmente, discutindo sobre a
representação do trabalhador contemporâneo.
No capítulo 2, discutiremos os partidos curatoriais adotados, nos valendo
de uma bibliografia que versou sobre outras tipologias de museus (sobretudo de
arte). O texto de Ulpiano Bezerra de Meneses, nossa maior referência sobre
exposições históricas, é mobilizado em diferentes momentos. René Vinçon nos
ajuda na discussão sobre os limites de uma postura curatorial que se pretende
neutra. Sonia Castillo, Marília Cury e Lisbeth Gonçalves problematizam a figura
do curador enquanto “artista”, nos conduzindo a uma reflexão sobre o(s)
curador(es) do MAO.
A sugestão de Jean Davallon de que a exposição se constitui como uma
situação de comunicação, aliada às contribuições de Cury e Vinçon, serve de
ponto de partida para um exercício descritivo analítico de alguns núcleos da
exposição. Debruçamo-nos sobre formas e conteúdos dos textos e demais
elementos expográficos, bem como sobre a disposição dos objetos como
produtora de significados e reveladora de partidos curatoriais.
16

Ainda neste capítulo, promovemos uma reflexão sobre a representação


da figura do trabalhador na exposição, tratado enquanto categoria, personagem,
classe social, procurando sustentar nossa hipótese de que o trabalhador foi
apresentado de forma precária e insuficiente, visto que alheio às experiências
históricas que permitem compreendê-lo social e materialmente.
Por fim, a partir de definições dos termos que dão nome ao museu,
discutimos a questão curatorial de se fazer uma expografia a partir de
“problemas históricos” ou de “objetos históricos”, a partir das proposições de
Ulpiano Meneses.
O capítulo 3 possui um caráter de debate com a historiografia da
escravidão, visto que discutimos as premissas elencadas por Nicolau Sevcenko
em sua proposta de consultoria histórica para o Museu de Artes e Ofícios à luz
de uma bibliografia mais contemporânea. O primeiro debate gira em torno da
dicotomia entre trabalho escravizado e trabalho livre, pautado pelas reflexões
propostas por Jonh French e Silvia Lara. Em seguida, discutimos a ideia de que
o trabalho manual no Brasil foi mais estigmatizado por conta do caráter
escravista que teve durante a maior parte de sua história. Sendo uma questão
ainda em construção pela historiografia, apresentamos nossas considerações
pautadas pelo diálogo com textos de Marcelo Mac Cord, Wilson Rios e José
Newton Meneses.
Em seguida, voltamos ao exercício descritivo analítico de núcleos
expositivos, procurando refletir como o trabalhador escravizado e o tema da
escravidão foram retratados pela exposição, tendo como referencial o conceito
de “aniquilação simbólica” de Jennifer Eichstedt e Stephen Small. Como
encerramento, apresentamos a trajetória da representação da população negra
na sociedade brasileira, evidenciando a agência da ideia de “democracia racial”
presente em abordagens historiográficas tradicionais e suas repercussões na
exposição que analisamos nesta dissertação.
17

CAPÍTULO 1
DESAFIOS MUSEAIS: UMA IDEIA, UMA PRAÇA E UM EDIFÍCIO EM
QUESTÃO

Abordamos aqui a trajetória do Museu de Artes e Ofícios (MAO) de Belo


Horizonte desde a formulação de sua criação, sua primeira concepção e os
dissensos em torno dessa proposta curatorial e, por fim, a efetiva montagem da
exposição que se materializou e que atualmente se apresenta ao público desde
a abertura, em 2006. Seguiremos com o debate sobre a participação do MAO no
processo de requalificação urbana do centro de Belo Horizonte, uma vez que a
instituição ocupa edifícios do início do século XX restaurados para tal uso. Por
fim, começaremos nossa análise da exposição, observando como a curadoria se
valeu de alguns espaços da edificação no assentamento de alguns núcleos
expositivos, buscando sugerir sentidos a partir da relação entre o acervo e a
arquitetura e refletindo sobre alguns diálogos propostos entre profissões do
passado e do presente.

1.1 Formulando uma exposição: impasses da crítica

A coleção que deu origem ao MAO foi formada pela empresária mineira
Ângela Gutierrez, herdeira do grupo Andrade Gutierrez e uma das maiores
colecionadoras de arte do país. Ela fundou o Instituto Cultural Flávio Gutierrez
em 1998 e, a partir de segmentos de sua coleção, foram formados os acervos do
Museu do Oratório (inaugurado em 1998 em Ouro Preto) e o Museu de Sant’Ana
(situado em Tiradentes e aberto em 2014). A colecionadora também mantinha
sob sua guarda uma coleção formada por “peças originais dos séculos XVIII ao
XX”3 em galpões em sua fazenda, Morada Nova, localizada em Minas Gerais.
Tal coleção, constituída de objetos associados a diversos ofícios pré-industriais
do Brasil, especialmente instrumentos de trabalho, havia sido coletada ao longo
da vida pelo pai de Ângela, o empresário Flávio Gutierrez, de quem ela a herdou.
3 Dado apresentado no site oficial da instituição. Acesso em 25 de setembro de 2015 e em 17 de
janeiro de 2018. Nos dois acessos, percebeu-se que o conteúdo permaneceu essencialmente o
mesmo, não havendo alterações no discurso oficial do Museu. A única alteração refere-se ao fato
de que em 2015 informava-se que a coleção estava em processo de tombamento pelo IPHAN e,
em 2018, esse tombamento já ter sido efetivado, embora o texto não informe a data.
http://www.mao.org.br/conheca/historia-da-colecao/
18

Segundo Maria Ignez Mantovani Franco, a coleção encontrava-se “não


processada”4, sendo apenas um “material reunido” quando armazenada nos
galpões da fazenda. Segundo ela, havia uma equipe de conservação que
trabalhava já com o ICFG, o Grupo Oficina de Restauro, porém a catalogação só
teria sido feita por meio da capacitação promovida pela Expomus para a
utilização do seu formato de banco de catalogação, cedido pela empresa para o
projeto, ação sob a responsabilidade de Camila Ruggiero. Assim, essa equipe se
encarregou da catalogação, além dos trabalhos de conservação.
Segundo o site oficial do MAO,

em outubro de 2000, ao comemorar dois anos de existência, o


Instituto Cultural Flávio Gutierrez anunciou a decisão de
implantar o Museu de Artes e Ofícios, com o apoio do Ministério
da Cultura e da CBTU – Companhia Brasileira de Trens
Urbanos5.

Para compor a equipe que desenvolveria o projeto do MAO, Ângela


convidou o francês Pierre Yves Catel, arquiteto e museógrafo, que já havia
realizado outros trabalhos para o ICFG, como o Museu do Oratório, para a
realização do projeto museográfico e arquitetônico. Catel consagrou-se na
França na década de 1970 graças a uma série de exposições marcantes, como
Mari et femme dans la France rurale tradicionnelle [Marido e mulher na França
rural tradicional], no Museu das Artes e Tradições Populares (ATP). Deixando a
instituição, Pierre Catel fundou uma empresa de museografia que empreendeu
projetos em diversos países, entre eles o Brasil (POULOT, 2013, p. 30). Além do
trabalho no MAO, Catel realizou o projeto museográfico da Casa França-Brasil,
no Rio de Janeiro, e a reforma do Museu da Inconfidência, em Ouro Preto,
posterior ao MAO, além do já mencionado Museu do Oratório.
A respeito das filiações profissionais de Pierre Catel, é preciso ressaltar
que o museógrafo, segundo Dominique Poulot, “foi formado” (2013, p. 30) por
Georges Henri Rivière em finais dos anos 1960, ainda que o autor não
especifique como teria se dado essa formação. De qualquer forma, como

4 Este e outros dados nos foram informados em entrevista concedida por Maria Ignez Mantovani
Franco, realizada em São Paulo, em 24 de maio de 2017.
5 Trecho apresentado no site oficial da instituição. Acesso em 25 de setembro de 2015 e em 17

de janeiro de 2018. http://www.mao.org.br/conheca/implantacao-do-museu/


19

apontado, Catel trabalhou no MATP, instituição consagrada devido ao trabalho


de Rivière.
A formação de Pierre Catel no ambiente museológico francês se deu num
contexto internacional de transformações do entendimento sobre o que deveria
ser considerado patrimônio, que é útil recuperar aqui, para entendermos a que
tradições museológicas e expográficas o MAO se reportaria.
A segunda metade do século XX assistiu a uma significativa ampliação do
corpus patrimonial, a partir da expansão tipológica do que pode ser
compreendido como patrimônio cultural. Além dos grandes edifícios memoriais e
dos acervos ligados às belas artes ou à história política, outros registros e
referenciais passaram a ser considerados patrimônio, entre eles os artefatos
ligados à história das técnicas (CHOAY, 2006, p. 209). Essa transformação,
acompanhada de um projeto de democratização do saber (CHOAY, 2006, p.
210), fez aumentar as camadas sociais representadas pelo patrimônio cultural,
na medida em que esse novo corpus alargado passa a dar conta, também, das
classes subalternas. No espaço do museu, surgiu a preocupação com seu papel
social, não mais desejado como o templo sacralizador de objetos que fora desde
o século XIX, mas sim como um espaço de inclusão e de discussão da
sociedade a partir de seus múltiplos agentes.
É nesse contexto, situado na segunda metade do século XX, que se
consolidará na França a ideia do ecomuseu, definida por George Henri Rivière
em sua Définition évolutive de l´écomusée, compreendido como:

Um instrumento que um poder e uma população concebem,


fabricam e exploram em conjunto. Este poder, com os
especialistas, as facilidades e os recursos que fornece. Esta
população, segundo suas aspirações, seus saberes, suas
facilidades de aproximação6.

A novidade do ecomuseu reside, portanto, na inclusão de uma população


na constituição do museu, aliada ao “poder”. Este “poder”, não especificado por
Rivière, parece ser o político, tradicionalmente associado às classes dominantes
e o ator tradicional das instituições museológicas, que historicamente, operava

6 Tradução livre do original : « un instrument qu’un pouvoir et une population conçoivent,


fabriquent et exploitent ensemble. Ce pouvoir, avec les experts, les facilités, les ressources qu’il
fournit. Cette population, selon ses aspirations, ses savoirs, ses facilités d’approche »
MUSEOLOGIE SELON GEORGE HENRI RIVIÈRE (La), 1989, p. 142.
20

com a definição tradicional de patrimônio e que, aliado à população, formará


outra estrutura de instituição. O ecomuseu, cujo termo é estabelecido
oficialmente em 1971 na 9ª Conferência Geral do ICOM, se orienta a partir das
noções e valores de território, patrimônio e população, como a superação das
ideias tradicionais de edifício, coleção e público vindas do século XIX (POULOT,
2013, p. 56).
Nesse sentido, os ecomuseus procurariam refletir sobre a ocupação de
um território por uma população, bem como os modos de vida que a
caracterizam. Nos dizeres de Dominique Poulot, “a lógica comunitária do projeto
é definida pela territorialidade do campo de intervenção e pela participação da
população” (2013, p. 56), que se torna mais uma “autora” do museu. Ainda nas
palavras de Rivière, os ecomuseus são:

Um espelho onde esta população se olha para ali se reconhecer,


no qual ela procura a explicação do território ao qual está
vinculada, conectada às populações que a precederam. Um
espelho que esta população apresenta a seus convidados, para
se fazer melhor compreender, no respeito por seu trabalho, seus
comportamentos, sua intimidade 7

Heloísa Barbuy, em texto que se tornou referencial na literatura brasileira


sobre ecomuseus, apresenta uma genealogia dessa tradição, na qual constam
os museus regionais de tradições populares e as representações do mundo rural
nas exposições universais. Esses museus regionais de tradições populares, ou
de etnografia regional, revelam os interesses que se deslocam, na passagem
para o século XX, do “exótico estrangeiro” para a auto representação cultural.
Debruçam-se, entre outros temas, sobre formas de agricultura, indumentária,
artes populares, superstições. Identificam os indivíduos pelo seu oficio e as
populações pelo seu modo de vida, associado às formas de trabalho
características de cada região. Já nas exposições universais da passagem do
século XIX para o XX se divulgavam formas de tipificação de culturas e tipos
regionais, por meio das atividades de produção e dos ofícios. Para Barbuy, serão
os museus de etnografia regional e as exposições universais as matrizes de

7 Tradução livre do original : « Un miroir où cette population se regarde, pour s’y reconnaître, où
elle recherche l’explication du territoire auquel elle est attachée, jointe à celle des populations qui
l’ont précédée. Un miroir que cette population tend à ses hôtes, pour s’en faire mieux
comprendre, dans le respect de son travail, de ses comportements, de son intimité ».
MUSEOLOGIE SELON GEORGE HENRI RIVIÈRE (La), p. 142.
21

representação que serão referência para a formação dos ecomuseus (1995, p.


212-215). Como veremos a frente, essa tradição museológica serviu de
inspiração conceitual aos idealizadores do MAO.
Além do arquiteto Pierre Catel, a equipe inicial de idealização do MAO
contou com o trabalho de outros especialistas. A já mencionada empresária e
museóloga Maria Ignez Mantovani Franco, sócia diretora da empresa de
consultoria museológica Expomus, já havia realizado outros projetos com Ângela
Gutierrez, como algumas exposições internacionais do Museu do Oratório.
Ângela Gutierrez convidou Maria Ignez e sua empresa para desenvolver o
projeto do Museu de Artes e Ofícios, de forma que a coordenação técnica e
implantação museológica ficaram, inicialmente, a cargo da Expomus, sendo a
condução do projeto liderado por Maria Ignez, que propôs a montagem de uma
equipe técnica e curatorial8 composta por diversos profissionais. Entre eles,
estavam o historiador Nicolau Sevcenko, responsável pela consultoria histórica,
e a museóloga Maria Cristina Bruno, responsável pela consultoria museológica,
que havia sido colega de Maria Ignez no curso de Museologia da Fundação
Escola de Sociologia e Política.
A respeito de Nicolau Sevcenko9, especialista em história da cultura
urbana brasileira e docente da Universidade de São Paulo, Maria Ignez lembra
que a participação dele em projetos da Expomus não era incomum, como o do
Museu do Imaginário do Povo Brasileiro, que não se efetivou.
Convém ressaltar que tanto Maria Cristina Bruno quanto Maria Ignez
Mantovani Franco têm uma trajetória profissional associada à chamada
Sociomuseologia, “inaugurada” no cenário museológico brasileiro pela
museóloga Waldisa Rússio Camargo Guarnieri na década de 1980. O
pensamento de Guarnieri se inseria no contexto internacional da Nova
Museologia, do qual fez parte o surgimento e consolidação dos ecomuseus,
como apontado. De modo semelhante ao tripé proposto por Rivière na definição

8 Segundo informações divulgadas no site da Expomus, o trabalho conduzido por equipes


interdisciplinares com apoio de consultores especializados é o padrão na empresa. Consulta em
11 de janeiro de 2018.
9 Sevcenko foi orientador de um Doutorado em História Social na Universidade de São Paulo,

iniciado em 1991 e interrompido em 1999, que teria como título “Exposições panorâmicas sobre
o Brasil - Séc. XX”. Informações coletadas no currículo de Maria Ignez Mantovani Franco na
plataforma Lattes, em 16 de janeiro de 2018.
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8124208Z1
22

de ecomuseu (território, patrimônio e população, como a superação das ideias


tradicionais de edifício, coleção e público), Guarnieri propôs a ideia de fato
museal10
Em seu trabalho de doutoramento, Guarnieri apresentou um programa
museológico para um Museu de Indústria em São Paulo, defendendo que o
museu atuaria “no estímulo à consciência crítica em relação à industrialização no
Brasil e na valorização do trabalho como fruto da ação humana” (BRUNO;
FONSECA; NEVES, 2010, p. 159). O pensamento de Guarnieri foi fundamental
para a formação de uma geração de museólogos, e, como veremos a seguir,
alinhava-se também aos projetos idealizados por Maria Ignez Franco e Cristina
Bruno para o Museu de Artes e Ofícios.
O trabalho do comitê curatorial foi estruturado, então, ao que tudo indica,
a partir do entendimento de Cristina Bruno sobre a Museologia:

A Museologia entende que os processos museológicos devem


partir de conceitos geradores e precisam estar apoiados em
programas institucionais que equacionem o perfil do edifício (ou
dos espaços museais), as potencialidades de salvaguarda e
comunicação e as expectativas da sociedade. Compreende,
também, que esses conceitos e programas devem ser
sistematicamente avaliados, revitalizados ou reorganizados. As
narrativas expositivas representam, particularmente, as
expressões desses processos (BRUNO, 2002, p. 225).

Assim, buscando musealizar o trabalho, os ofícios e as técnicas dos


trabalhadores, numa perspectiva alargada de patrimônio que pretendia valorizar
o trabalho manual no Brasil, desenvolveu-se o conceito gerador do MAO,
fortemente vinculado às tendências da Nova Museologia. A esse respeito, Maria
Ignez Franco declarou que:

O conceito gerador do Museu de Artes e Ofícios objetiva abordar


o trabalho como herança patrimonial, no que se refere aos
gestos, às técnicas, à multiplicidade dos ofícios e das artes, às
formas de subsistência e de organização sociocultural, à
apropriação e transformação do território e da natureza (...)

10“entendido sempre em um processo, e constituído pela relação profunda entre o Homem,


sujeito que conhece, e o Objeto, parte da Realidade, da qual o Homem também participa, num
cenário institucionalizado, o Museu” (GUARNIERI, 2010, p. 139, grifo no original). O conceito
está presente também em diversos outros textos da autora. Peter van Mensch insere a brasileira
entre os pensadores que entendem a Museologia como o “estudo da relação específica do
homem com a realidade”, junto a Stransky, Gregorová e Gluzinski, que nomearam, no entanto,
de forma diferente o que Guarnieri chamou de fato museal. (MENSCH, 1994, p. 12-13).
23

Este conceito gerador foi inspirado em elementos constitutivos


dos museus de sociedade, ecomuseus, museus de técnica, pois
estes evidenciam diferentes diretrizes para o tratamento do
patrimônio vinculado ao trabalho, como resultado das relações
que se estabelecem entre os gestos e o domínio das técnicas, e
são, também, modelos de musealização que privilegiam os
ofícios e as artes. (FRANCO, 2004, p. 40).

A partir dele, segundo a museóloga, pretendia-se explorar enfoques


temáticos relativos às referências materiais e imateriais, às questões de gênero
e ao perfil dos lugares de memória do trabalho (FRANCO, 2004, p. 40). Algumas
das missões institucionais seriam: mobilizar o homem como elemento central do
processo histórico; agregar o contemporâneo ao histórico; e questionar o
conflituoso universo do trabalho no Brasil, numa perspectiva do trabalho como
eixo transformador da sociedade (FRANCO, 2004, p. 46-47).
Para tanto, o programa museológico previa inicialmente três circuitos
expográficos. O circuito diacrônico, de perspectiva histórica, mobilizaria os
ofícios extrativistas, rurais, urbanos, ambulantes, corporativos e os mestres de
ofício. O circuito sincrônico promoveria uma ambientação sócio antropológica
ligada aos lugares dos ofícios, às relações de trabalho, a sua organização
espacial, às questões de gênero, aos gestos do trabalho. Por fim, o circuito
argumentativo buscaria suscitar questões entre objetos e propor metáforas
sociopolíticas-culturais relativas às questões de ampla pertinência como o
controle do tempo, o trabalho infantil, as formas e marcas do trabalho (FRANCO,
2004, p. 41-42).
Como já apontamos, o projeto expográfico e arquitetônico foi executado
pelo arquiteto Pierre Catel. Esse projeto parecia estar, em certa medida, afinado
com os princípios apresentados no texto de Maria Ignez Franco. Apesar do texto
justificativo de Catel ser curto e pouco específico, ele afirma ter projetado
espaços para apresentação da “organização social do trabalho e o gestual do
trabalhador”, bem como a instalação de um “percurso temático que apresenta o
trabalho artesanal e o trabalho realizado no interior da casa” (CATEL, 2004, p.
50) e um espaço para apresentação do “trabalho artesanal e o trabalho realizado
em oficinas” (CATEL, 2004, p. 51).
24

No entanto, apesar desses discursos minimamente consonantes, uma


leitura do relatório produzido pela Expomus e de seus anexos11 revelou um
trabalho no qual houve dificuldades para o estabelecimento de consensos dentro
da equipe, o que se confirmou em entrevista realizada com Maria Ignez Franco.
Um dissenso bastante fundamental baseou-se no entendimento, de um
lado, que o museu deveria tratar de problemas históricos e, de outro, que deveria
priorizar objetos históricos. Esse debate será melhor explorado no capítulo 2.
Outro ponto importante foram os dissensos gerados em função das
sugestões do consultor em História Nicolau Sevcenko, que entendia que um
museu que tratasse do trabalho no Brasil deveria abordar a questão da tradição
escravista do trabalho manual. No entendimento de Sevcenko, na medida em
que o objetivo do museu seria valorizar o trabalho e a figura do trabalhador
manual, essa orientação história seria fundamental para a realização de partes
essenciais do projeto museológico desenvolvido pela Expomus, visto que ela
seria determinante para que a exposição pudesse promover reflexões. Pierre
Catel entendia, porém, a questão de forma diferente, tendo discordado de
Sevcenko nas reuniões12, propondo que a exposição deveria versar sobre
aspectos mais “objetivos”. Essa discordância será problematizada de forma mais
pormenorizada no capítulo 3.
Somando-se a essas questões, houve desencontros na metodologia de
trabalho propostas pelo comitê curatorial e pelo arquiteto. Nos dizeres de Maria
Ignez Franco, o arquiteto francês “trabalhava muito com um viés autoral, o que é
muito comum entre os arquitetos, e acho que ele não tinha muito apetite de
aguardar as nossas reflexões, os nossos trabalhos13”. Para Cristina Bruno,
Pierre Catel tinha “dificuldade em compartilhar”14.
Entendemos que Pierre Catel trabalhava como um “criador”, quase um
artista15, a despeito do que se havia combinado nas reuniões da equipe. Tal
entendimento se baseia em afirmações como a que segue, presente no relatório
da Expomus, em que vemos que Catel teria descumprido as determinações

11 Documentação não publicada, gentilmente cedida por Maria Cristina Bruno.


12 Como pudemos verificar nas atas, sobretudo da reunião realizada em 22 de maio de 2002.
Esta ata se encontra anexa ao relatório da Expomus.
13 Comunicação oral, 24 de maio de 2017.
14 Comunicação oral, 13 de fevereiro de 2017
15 Essa ideia será melhor desenvolvida no capítulo 2
25

acordadas pela equipe em reunião, mantendo aspectos que deveriam ter sido
alterados:

Foram acordadas, na referida reunião, algumas demandas do


projeto museológico que indicavam a necessidade de algumas
redefinições no projeto museográfico. Em decorrência, o
Arquiteto Pierre Catel produziu novo caderno
arquitetônico/museográfico, acompanhado de um texto descritivo
que foram entregues à Expomus.... Este texto do arquiteto
museógrafo já evidencia a permanência de alguns conceitos que
já haviam sido objeto de análise conjunta e que pressupunham a
assimilação dos indicadores museológicos quanto aos
desenvolvimentos priorizados para os circuitos expositivos
(FRANCO, 2002, não publicado).

Outro exemplo emblemático das dificuldades que a equipe da Expomus


encontrou em trabalhar com Pierre Catel aparece nessa narrativa encontrada no
Relatório de Atividades da Expomus:

Durante essa reunião [de 29 de maio de 2002] ficou evidenciado


que no decorrer dos trabalhos efetuados por Pierre Catel na
Fazenda, nos dias anteriores, havia sido delineada uma nova
equação expositiva, afastada de alguns eixos conceituais
desenvolvidos e apresentados sucessivamente pela Expomus ao
ICFG e aos participantes dos dois Seminários públicos
realizados pelo ICFG em Belo Horizonte – em janeiro e maio de
2002 (FRANCO, 2002, não publicado).

Esse relato sugere que o arquiteto não estava convencido da importância


dos conteúdos conceituais desenvolvidos pela equipe especializada, e nem
mesmo preocupado com o fato de que a instituição já tinha apresentado
publicamente aquelas bases conceituais, sentindo-se à vontade para
desconsiderá-las e refazer o desenho expográfico segundo sua inspiração. Ao
contrário das reuniões de 22 de maio, a ata da reunião de 29 de maio, se
produzida, não foi anexada ao Relatório, de forma que não temos outra fonte de
época para aferir essa possibilidade. Ainda assim, dadas as posturas dos
envolvidos verificadas nas atas das outras reuniões, em que havia poucos
pressupostos em comum, a narrativa do relatório parece verossímil.
Sobre o relacionamento com o arquiteto francês, ainda que demonstrando
muito respeito por Catel como profissional, Maria Ignez afirmou que “chega um
determinado momento que a gente profissionalmente também tem que se
26

colocar pra não ser danoso ao projeto”16. Por conta disso, entendemos que esse
descompasso de metodologias foi mais um aspecto que determinou o
afastamento da Expomus da continuidade do projeto do MAO.
Outro descaminho foi a perda de Nicolau Sevcenko como consultor em
História. Segundo o Relatório de atividades desenvolvidas pela Expomus,
assinado por Maria Ignez Franco em 2002, o historiador vinha atuando
informalmente junto ao projeto desde 2001, “participando ativamente dos
encaminhamentos conceituais referentes ao Museu de Artes e Ofícios”. Em 21
de março de 2002, teria sido convidado pelo ICFG para integrar oficialmente a
equipe, segundo a sugestão de Maria Ignez Franco. No fim de abril, Sevcenko e
sua assistente visitaram pela primeira vez a estação que abrigaria o futuro MAO
e conheceram o acervo, então acondicionado na fazenda Morada Nova.
Entretanto, devido a “dificuldades geradas pela incompatibilidade nos
cronogramas de captação de fundos para a realização da pesquisa histórica”, a
aprovação de sua proposta de trabalho aconteceu apenas em 29 de maio, e de
maneira “informal”, em reunião em que estavam presentes Maria Ignez Franco,
Ângela Gutierrez e Pierre Catel. Por fim, devido aos muitos descompassos que
temos descrito aqui, o historiador decidiu por não mais efetuar o contrato de
consultoria com o ICFG.
Também quanto aos prazos do cronograma havia uma divergência entre
Expomus e ICFG. Em reunião acontecida em 22 de maio, ficou acordado entre
os presentes que seria necessário a elaboração de um “cronograma realístico”
de trabalho, e que dependia do estado do andamento das obras de restauro dos
edifícios que abrigariam o Museu. O plano era, naquele momento, que o museu
fosse inaugurado, ainda que parcialmente, em dezembro de 2002, ou seja, dali a
seis meses.
Poucos dias depois, segundo o Relatório, Ângela Gutierrez informou a
Expomus que Pierre Catel havia tido reuniões com a equipe de obras, nas quais
se estabeleceu que, para a inauguração em dezembro, seria possível finalizar
integralmente o edifício A, parcialmente a parte interna e uma área externa do
edifício B, e que não seria possível iniciar as obras do túnel. Diante dessa
informação, a Expomus elaborou um documento denominado “Proposta

16 Comunicação oral, 24 de maio de 2017.


27

Emergencial para o Museu de Artes e Ofícios”17, apresentado na reunião de 29


de maio. Imediatamente na sequência do trecho citado acima, o relatório informa
quais seriam os pressupostos desta programação emergencial mas que, uma
vez mais, não estava de acordo com os desejos do ICFG:

Em decorrência dos exíguos prazos para o desenvolvimento do


projeto até dezembro do mesmo ano, para a Expomus parecia
fundamental priorizar conteúdos e circuitos expográficos que
pudessem comunicar ao grande público, no momento inaugural,
o conceito gerador, os circuitos básicos de organização do
Museu e sua força como agente transformador no eixo histórico
e urbano de Belo Horizonte. Para tanto, apresentamos a
estratégia emergencial para a inauguração, pois parecia-nos
mais importante priorizar e realizar, do que preencher todos os
espaços expositivos disponíveis para se obter um Museu
concluído até dezembro. Na visão o ICFG os compromissos
institucionais e políticos demandam uma inauguração em
dezembro que privilegie a espacialização da maior parte da
Coleção, de forma a compor todos os espaços expositivos que
venham a estar concluídos, mesmo que se tenha que só
proceder, na fase 2 – a partir de janeiro – a complementação de
conteúdos e linguagens de apoio expográfico.

Fica evidenciado novamente as divergências entre os dois lados, que


elegiam como prioridade aspectos diferentes. Para a Expomus, seria melhor
inaugurar uma pequena parte do museu, mas que guardasse o essencial das
problematizações temáticas e conceituais que a equipe museológica havia
desenvolvido. Para o ICFG, ao que tudo indica, importava mais a exposição da
maior quantidade de objetos possível. A respeito dessa questão dos prazos, já
em 2017, Maria Ignez relembrou:

[o museu] foi executado num prazo muito maior do que estava


previsto, como sempre. Tinha uma pressão de tempo que era o
grande mote pra se fazer tudo sem essa discussão maior, vamos
dizer assim. E que no fundo você vê que o tempo foi alastrado
também, como a gente sabia que seria, e que poderia ter havido
essa discussão maior.

Ainda que proceda a reflexão da museóloga quando disse que os prazos


eram curtos para se fazer “uma discussão maior”, é preciso ressaltar que as
indicações para essa discussão já estavam dadas, bem como já estavam
estabelecidos os referenciais conceituais e temáticos mínimos. Nesse sentido,

17Este documento também não está entre os anexos do Relatório, de forma que não tivemos
acesso a sua integralidade
28

entendemos que se tratou de uma escolha política do ICFG em privilegiar,


naquele momento, uma ocupação maior do espaço, em detrimento de uma
ocupação mais problematizadora, como a equipe da Expomus propunha.
Depois dessa reunião, de 22 de maio, a empresa paulista optou por não
mais ser responsável pela coordenação técnica e museológica do MAO,
desligando-se do projeto em 05 de julho de 2002, mediante o envio do Relatório
de Atividades e seus anexos ao ICFG, bem como o “Programa Museológico para
o Museu de Artes e Ofícios”. Este documento, já citado aqui, ainda que
elaborado posteriormente a essa trajetória de dissensos (entre 12 de junho e 05
de julho), guarda as preocupações e propostas teórico-metodológicas
defendidas pela equipe de consultoria desde o início.
Por fim, o adiamento aconteceu de fato e foi bastante grande, de forma
que o museu foi inaugurado três anos depois, em 14 de dezembro de 2005 e
aberto ao público em 10 de janeiro de 200618.

1.2 Fluxos: de passageiro a visitante

Belo Horizonte não é uma cidade como as outras. Ela não é fruto
espontâneo da aglomeração de casas levantadas por uma
conjunção de interesses e posicionamento estratégico, como
quase todas as cidades. Ela foi planejada, projetada, traçada a
régua e compasso. Criada primeiro na prancheta, teve, depois,
seu plano imposto ao relevo natural à custa de enormes esforços
e grande movimento de terras. Por isso, a Cidade das Minas,
como era seu nome oficial, veio causar imenso impacto na
contida gente da montanha: era muito diferente das cidades de
ruas e vielas tortuosas da mineração, de Ouro Preto, Mariana,
Sabará e tantas outras a que o povo estava acostumado. A
cidade moderna, positivista, eugênica, veio para romper de uma
vez por todas com o passado ao inaugurar uma nova era, a da
República, e, ao mesmo tempo, coroar a tradição de Minas
Gerais, a única região das colônias ibéricas cuja base cultural
era enraizadamente urbana. Mais que uma cidade, era um
símbolo ideológico e cultural” (GOMES, 2011, p. 19)

O objetivo primordial desta dissertação, como se sabe, é analisar a


exposição de longa duração do Museu de Artes e Ofícios, especialmente no que
a mesma se remete à interpretação do lugar do trabalho e do trabalhador na
curadoria dessa exposição. Um dos aspectos que entendemos como relevantes
para favorecer esse estudo é a análise e interpretação a respeito das relações

18 Segundo o site oficial do MAO.


29

que a instituição e a exposição estabelecem com a praça e o edifício onde se


encontram, visto que são ambos uma referência importante na comunicação
entre o centro da cidade e os bairros periféricos, em que habitam a maior parte
dos trabalhadores da cidade e que ali chegam por trens metropolitanos. Assim,
recuperaremos brevemente a trajetória da Praça da Estação enquanto espaço
urbano de Belo Horizonte, entendendo a ela e ao edifício como lugares
emblemáticos na história da cidade, e cuja trajetória importam à compreensão do
Museu de Artes e Ofícios enquanto processo.
Figura 1 – mapa da região central de Belo Horizonte, em que encontramos a Praça Rui Barbosa, a estação
Central do metrô, as Avenidas do Contorno e dos Andradas e, sinalizado em vermelho, a localização do Museu
de Artes e Ofícios.

Fonte: Google Maps, acesso em 02 de julho de 2018

As construções da praça e da estação inserem-se no processo de criação


de uma nova capital para Minas Gerais, planejada e construída na década de
30

1890. A fundação de Belo Horizonte deu-se num momento de transformações


políticas em nível nacional, em função da Proclamação da República em 1889, e
de transformações econômicas no âmbito de estado. A antiga capital de Minas,
Ouro Preto, vinha mostrando-se obsoleta diante das novas efervescências
econômicas em curso, de forma que sua localização não mais se via como
central, já que a atividade principal do estado não era mais a mineração.

a inadequação da localização e da estrutura urbana das cidades


da mineração aliadas ao crescimento econômico das zonas Sul,
Oeste e Sudoeste e da Mata Mineira que, com sua pujante
cultura agrícola e pecuarista, deixavam para trás a decadente
zona mineradora, núcleo inicial das Minas. Essa localização da
capital em Ouro Preto, determinada pela presença das minas de
ouro, deixava de se justificar após o esgotamento das mesmas e
do consequente deslocamento do eixo econômico do estado, e
se tornava mesmo um empecilho pelas dificuldades de
comunicação com as regiões ascendentes (GOMES, 2011, p.
22)

O engenheiro paraense Aarão Leal de Carvalho Reis foi, então, convidado


para liderar o processo de seleção da localidade que abrigaria a nova capital,
que culminou na escolha do Arraial do Bello Horizonte (GOMES, 2011, p. 42). O
vilarejo, existente há 200 anos na ocasião, havia mudado de nome
recentemente, em 1890, passando de Arraial do Curral d’El Rey para Arraial do
Bello Horizonte. A mudança explica-se pelos “novos ares” republicanos em voga,
de forma que a homenagem à monarquia presente no nome do vilarejo tornou-se
indesejada (GOMES, 2011, p. 25).
Aarão Reis realizou os planos urbanísticos, mas se desligou do projeto em
1895, antes da plena execução, devido a desacordos com o presidente da
província (GOMES, 2011, p. 42). Seu projeto para a futura Cidade de Minas,
primeiro nome da nova capital, previa uma cidade “bem equipada”, orientada
segundo os princípios da salubridade, comodidade e embelezamento (GOMES,
2011, p. 42, apud SALGUEIRO), prevendo uma zona urbana (circunscrita pela
Avenida do Contorno), uma suburbana e uma rural (JAYME; TREVISAN, 2012,
p. 360). A primeira cidade planejada da nova República deveria, e foi, projetada
para simbolizar a ideologia positivista e a modernidade, ideais da República
recém proclamada, de forma que:
31

sua arquitetura foi marcada por ruas e avenidas largas e retas.


Inspirada na Paris de Haussman e na Washington de L’Énfant,
as cidades modernas, belas e, sobretudo, higiênicas ou
saneadas de então, o mapa da zona urbana de Belo Horizonte –
que corresponde atualmente à área central – é como que traçado
com régua, com ruas na malha ortogonal e avenidas na diagonal
(JAYME; TREVISAN, 2012, p. 360-361)

Sendo o trem o meio de transporte mais usado no fim do século XIX, foi
construída uma estação de trem no que viria a ser a Praça da Estação, por onde
chegaram materiais e trabalhadores envolvidos na construção da Cidade de
Minas. A atual Praça, localizada no centro de Belo Horizonte, que correspondia à
área urbana do traçado de Reis, só começou a ser construída em 1904. O prédio
ali presente, em estilo eclético, “logo foi visto como insuficiente e antiquado em
relação ao progresso que a nova capital mineira apresentava” (CORRÊA, 2010,
p. 54), sendo então derrubado em 1919, dando lugar a dois novos edifícios,
também eles ecléticos: o edifício da Estação Oeste de Minas, cuja linha de trem
ligaria a capital ao interior do estado; e o edifício da Estação Central do Brasil,
em que chegariam trens vindos de outras capitais do Brasil. Nessa época, a
Avenida do Contorno, que delimitava originalmente a zona urbana, passou a
delimitar apenas a região central da cidade, em vias de expansão.
A Praça, denominada em 1923 oficialmente de Praça Rui Barbosa,
continua sendo chamada de Praça da Estação pelos habitantes. Em sua
dissertação de mestrado, Maíra Corrêa realizou larga pesquisa junto ao público
do MAO e, em suas reflexões a respeito das relações dos visitantes com a
Praça, aferiu que eles “ainda hoje não demonstram familiaridade com este nome
[Rui Barbosa]” (CORRÊA, 2010, p. 54), de forma que muitos deles sequer
sabem qual é o nome oficial da Praça. Por essa razão, iremos utilizar neste texto
a nomenclatura “Praça da Estação” para nos referirmos à localidade.
Em 1924, foi feita uma reforma paisagística na Praça, onde se
construíram jardins em estilo francês com canteiros geométricos, baixa
vegetação e espelhos d’água (JAYME; TREVISAN, 2012, p. 364), e se
instalaram quatro esculturas representativas das estações do ano, intervenções
estas orientadas pelo “bom gosto” e elegância então em vigor, de inspiração
francesa (CORRÊA, 2010, p. 54-55). Os projetos para o centro de Belo
Horizonte e para a Praça da Estação, tanto no momento de planificação de
Aarão Reis quanto nas reformas dos anos 1920, se operaram pelas referências
32

construtivas e urbanísticas internacionais de seu tempo, condicionadas por


conhecimentos técnicos, mas sobretudo pelas as visões de mundo
compartilhadas por seus agentes.
No período Pós-Guerra, Belo Horizonte viveu um momento de
desenvolvimento econômico e intensificação do processo de urbanização,
tornando-se, assim, a terceira maior cidade do Brasil, apesar de seus apenas
cinquenta anos de existência. Essas transformações, marcadas por demolições
e renovações, determinaram um novo ambiente urbano com uma maior
concentração demográfica, sobretudo no centro (JAYME; TREVISAN, 2012, p.
362).
A partir dos anos 1960, com a perda progressiva da importância dos trens
no transporte nacional, a Praça da Estação perdeu centralidade e importância,
mesmo situada geograficamente no centro da capital. Essa perda se fez visível
com a diminuição do espaço físico da Praça, a partir do recorte de passeios e
derrubada de árvores, de forma que a alteração do desenho da Praça
favorecesse a circulação de carros. Jayme e Trevisan oferecem um diagnóstico
a respeito dessa transformação ocorrida não só na Praça da Estação, mas em
toda a região central de Belo Horizonte:

A década de 1960 foi marcada por intervenções físicas que


responderam, basicamente, aos interesses do capital e do
automóvel. As ruas do centro, que até então abrigavam uma
sociabilidade marcada pelo andar à toa, a pé, foram tomadas
pelos carros, se tornando cada vez mais lugares de passagem. A
cidade perdeu muito de seu patrimônio edificado e redefiniu
áreas e funções descaracterizando, muitas vezes, edifícios e
áreas públicas. No caso do centro, já em 1970, predominava a
homogeneização da paisagem urbana e o aparecimento de
novas centralidades fez com que a região fosse abandonada
pelos estratos médios e altos, se tornando cada vez mais um
local de trânsito intenso de veículos e pedestres. Nessa época o
lugar já é representado como degradado e perigoso (JAYME;
TREVISAN, 2012, p. 362)

Em 1965, com a duplicação da Avenida dos Andradas, que corta a área


ao meio, a Praça perdeu parte dos jardins, um lago e as esculturas, que foram
transferidas para outros locais “mais seguros”, como a Praça da Liberdade. A
essas transformações se seguiram outras, sempre sob a justificativa de tornar a
região mais “útil” às necessidades práticas da cidade. Maíra Corrêa, a esse
respeito, entende que:
33

Embora tenha sido, desde o início da ocupação da cidade, o


principal local de chegada e saída das pessoas na nova capital
de Minas Gerais, o cartão de visitas de Belo Horizonte, pode-se
perceber que os moradores desenvolveram com ela uma relação
muito permeada pela funcionalidade cotidiana (CORRÊA, 2010,
p. 55)

No momento dessa perda de relevância da Praça da Estação, já estavam


bastante consolidadas as referências patrimoniais constituídas pelo IPHAN a
partir dos anos 1930. As políticas de preservação em nível federal, ancoradas no
instrumento do tombamento, privilegiaram os vestígios remanescentes do
período colonial, em que teria se dado a formação da identidade brasileira
segundo a doutrina modernista. Os patrimônios luso-brasileiros localizados no
Estado de Minas foram sempre protagonistas na construção dessa narrativa,
com a consagração de seu passado minerador como berço da cultura nacional.
Entretanto, tanto em Minas como em outras regiões do país, as edificações
provenientes de outros períodos da história do Brasil, que manifestam outras
plásticas arquitetônicas que não o barroco e o rococó, não eram compreendidas
como genuinamente brasileiras, porque tomadas como meras cópias do que se
fazia na Europa. Assim, edifícios neoclássicos, ecléticos, art nouveau ou art déco
não entraram na seleção realizada a partir das políticas federais de tombamento
e nem eram entendidas como patrimônio a ser preservado. É o caso da Estação
Central do Brasil e da Estação Oeste de Minas, edifícios ecléticos do início do
século XX, ocupados atualmente pelo MAO, que enfrentaram, então, um
processo de abandono.
A Praça da Estação chega aos anos 1980 sendo vista como um ambiente
degradado e tendo seus usos completamente voltados ao automóvel, de forma
que a esplanada em frente à Estação Central era então utilizada como
estacionamento de veículos durante o dia. Embora o centro ainda tivesse
alguma relevância urbana, outras regiões assumiram funções de maior
centralidade e foram ocupadas pelas camadas mais abastadas, antes moradoras
das áreas centrais. Como ocorreu em muitas grandes cidades brasileiras, “o
centro parecia ter perdido sua importância simbólica” (JAYME; TREVISAN. 2012,
p. 362), e a Praça da Estação não foi exceção.
Em razão do crescimento populacional gerado pela criação da Região
Metropolitana de Belo Horizonte, novas opções de transporte se viram urgentes,
34

para viabilizar o deslocamento dos trabalhadores que vinham das periferias para
o centro cotidianamente. A solução proposta pelos órgãos responsáveis
(Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes, Companhia de
Transportes Urbanos na Região Metropolitana de Belo Horizonte e Empresa
Brasileira de Transportes Urbanos) foi a demolição de todo o conjunto
arquitetônico da Praça da Estação para a implantação de vários terminais de
ônibus integrados a uma grande estação de metrô (CORRÊA, 2010, p. 57).
Essa medida causou reações em setores da sociedade, de forma que em
1981 foi realizado o Primeiro Encontro pela Revitalização da Praça Rui Barbosa,
que havia se tornado, a despeito de sua desvalorização, um ponto de
concentração de manifestações políticas durante a ditadura militar. Essa
movimentação conseguiu impedir a demolição do conjunto arquitetônico. Em
1988, em razão da movimentação acontecida em 1981, o Conjunto Arquitetônico
da Praça foi tombado pelo Instituto Estadual de Patrimônio Histórico e Artístico
de Minas Gerais (IEPHA-MG) (CORRÊA, 2010, p. 59).
Em 1986, foi regulamentado em Belo Horizonte o Conselho Deliberativo
do Patrimônio Cultural, com o objetivo de organizar a proteção do patrimônio
cultural da cidade. Jayme e Trevisan enxergam de maneira positiva o
encaminhamento desta criação:

No final da década [de 1980] a Prefeitura de Belo Horizonte se


mobilizou em torno de projetos urbanos voltados para a
recuperação da Área Central, quando essa perspectiva de
intervenção passou a adquirir contornos mais nítidos e maior
visibilidade, com a disseminação do discurso da importância da
região para a história e a memória da cidade e da necessidade
de melhoria das condições de seus espaços físicos,
estabelecendo-se forte confluência entre as ideias de valorização
simbólica e de recuperação física de um espaço considerado
degradado (JAYME; TREVISAN, 2012, p. 363)

Maíra Corrêa, por outro lado, faz um diagnóstico diferente, entendendo


que, apesar das movimentações e do tombamento, pouco se fez pela
conservação e valorização da Praça. Com a inauguração do metrô em 1987, as
Estações Central e Oeste de Minas tornam-se seu principal ponto de parada.
Mas, para atender essa nova função, o interior dos edifícios foi modificado,
perdendo parte das características de seu estilo eclético (CORRÊA, 2010, p. 58).
Ou seja, os edifícios foram tombados, mas o lugar não passou a ser entendido
35

efetivamente como um patrimônio, que precisa ser vivenciado, preservado e


respeitado em sua integridade física e simbólica.
Jayme e Trevisan seguem em sua leitura positiva inserindo as ações da
Prefeitura de BH na tendência internacional e nacional de revalorização de
Centros Históricos nos anos 1990, de forma que a região teria passado por uma
série de diagnósticos e se tornado objeto de projetos de intervenções físicas e
simbólicas. Eles destacam “o concurso nacional BH-Centro (1990), promovido
pela Prefeitura de Belo Horizonte, que visava à seleção de ideias para
revitalização de algumas áreas de maior valor simbólico no centro” (2012, p.
363). De fato, o tombamento do conjunto da Praça por parte da Prefeitura só
aconteceu em 1998, que havia realizados concursos para escolher um projeto
arquitetônico de requalificação, como também apontado por Jayme e Trevisan,
como vimos. Porém, segundo Corrêa, apesar de ter recebido e escolhido
propostas diversas, a administração da cidade não as implementou (2010, p.
59).
A partir dos anos 2000, as obras efetivamente começaram. No documento
“Principais ações de governo – 2003”, elaborado durante a gestão de Fernando
Pimentel na prefeitura, encontramos a informação de que a recuperação da
Praça da Estação fazia parte do Projeto Centro Vivo:

Outra obra do programa Centro Vivo, a Esplanada da Praça da


Estação pretende ser um espaço para grandes manifestações
públicas e shows. Com previsão de conclusão para julho de
2004, o projeto é uma parceria com o BNDES. Custo: R$ 5.079
milhões (BELO HORIZONTE, PREFEITURA MUNICIPAL,
Principais ações de governo, 2003, p. 15)19

Não tendo localizado o documento oficial da Prefeitura datado de 2004,


nos valemos da notícia publicada20, sem data, no site da Prefeitura, em que
consta que em agosto de 2004 (portanto com apenas um mês de atraso em
relação ao previsto) teriam sidos finalizadas as obras de requalificação da
Esplanada da Praça da Estação, agora equipada com fontes que podem ser
19 Disponível em:
https://prefeitura.pbh.gov.br/sites/default/files/estrutura-de-overno/cultura/2018/documentos/2003-
Fernando-Damata-Pimentel.pdf
Acesso em 09 de fevereiro de 2018.
20 Notícia disponível em:

http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuP
ortal&app=politicasurbanas&tax=18409&lang=pt_BR&pg=5562&taxp=0&
Acesso em 09 de fevereiro de 2018
36

desligadas para a realização de eventos; nova iluminação “especial, inclusive


para eventos, delimitando e formando o espaço público”; nova pavimentação,
“formando um grande espaço destinado aos pedestres”; implantação de projeto
paisagístico e adequação de mobiliários urbanos.
Essas intervenções visavam “a adequação do espaço público, dotando-o
de infraestrutura adequada para manifestações culturais com grande
aglomeração de pessoas” e, também, melhorar as condições de acesso à
Estação Central do Trem Metropolitano. Nesta notícia, os custos das obras
equivalem exatamente ao orçamento apresentado no documento de 2003. Como
se vê, é bastante forte no discurso da prefeitura a reforma no sentido de orientar
o uso por grandes contingentes populacionais, levando em conta a história da
Praça enquanto lugar de aglomeração de pessoas em diferentes circunstâncias.
Além de projeto da Prefeitura, a reabilitação do Centro de Belo Horizonte
apareceu como objetivo também na agenda federal, em 2007. Felipe Hoffman,
que analisou a implantação do Museu de Artes e Ofícios nos edifícios da Praça
da Estação, nos traz a documentação do Ministério das Cidades a respeito do
plano de requalificação do centro de Belo Horizonte, que teria como objetivo:

incorporar todos os agentes sociais da cidade dentro de uma


perspectiva de tornar Belo Horizonte um grande centro de
produção e consumo de cultura, resgatando uma dívida que a
capital tem com os mineiros de não ser ainda um espaço
representativo e seminal para a cultura de Minas como foi Ouro
Preto. (HOFFMAN, p. 542, apud Brasil, Ministério das Cidades,
200721, grifos meus)

Como se vê, ainda persiste, ao menos no nível do discurso em nível


federal, algum ressentimento em relação a Belo Horizonte, que não teria
proporcionado às Minas tanto destaque turístico e cultural como a antiga capital
colonial. Apesar disso, fica claro também o objetivo de fazer da cidade uma
mercadoria, qualificada por se oferecer enquanto possibilidade de consumo de
cunho cultural. Sobre a Praça da Estação nesse processo, Hoffman destaca que
o documento atribui papel fundamental ao seu processo de recuperação, na
medida em que ela seria “único espaço livre no centro da cidade, capaz de
sediar grandes eventos públicos – festas, comícios, shows, representações

21A documentação citada e referenciada por Felipe Hoffman não está mais disponível online,
portanto não pode ser consultada diretamente. Nos valemos, então, do trecho trazido por ele
37

teatrais”, sendo considerada como “área prioritária de requalificação do espaço


urbano” (HOFFMAN, p. 543, apud, Brasil, Ministério das Cidades, 2007).
A restauração dos edifícios da Praça da Estação para implantação do
MAO começou ainda antes da reforma da Praça em si. Segundo o site da
instituição, as obras teriam tido início em 2001 e a primeira etapa teria sido
concluída em dezembro de 2002, em processo concomitante ao que
acompanhamos no item anterior deste capítulo.
Hoffman analisou o processo de implantação do MAO na Praça da
Estação a partir de conceitos do urbanismo, entre eles a “mercantilização
espetacular da cidade”, que seria uma estratégia – historicamente inaugurada
pelo mercado imobiliário, mas que vem ocupando espaço nas agendas da
política urbana – de fomento a diversas intervenções com o intuito de devolver a
centros urbanos um papel hegemônico perdido. A cidade passa, então, a ser
pensada enquanto produto de consumo, uma mercadoria mobilizada pelo
marketing, potencializado por uma “arquitetura do espetáculo”, na qual arquitetos
de renome assinam a construção de obras monumentais. No entendimento de
Hoffman, a implantação do MAO não se configurou como uma espetacularização
de tal ordem. Um dos efeitos dessa mercantilização espetacular seria o
predomínio do uso turístico da região, em substituição a outros, anteriores, o que
não se verificou. Ainda que a imagem da Praça, sobretudo do edifício, seja
usada eventualmente como “propaganda turística” de Belo Horizonte, o uso
cotidiano continua prevalecendo, ou seja, a Praça não passou, para ele, a ser
vivida enquanto mercadoria.
Apesar da contribuição de Hoffman, permanece necessário pontuar
algumas questões a respeito dos processos de requalificação urbana, sobretudo
no que concerne ao patrimônio cultural e a chamada “gentrificação”.
Jaime e Trevisan narram um certo padrão de orientação verificado em
diversos processos de requalificação:

Nas últimas décadas, esses processos têm incorporado a


“cultura” como conteúdo diferenciador das várias experiências de
revitalização. Assim, o patrimônio histórico, as tradições locais, a
cultura popular e outros elementos transformaram-se em
mercadoria altamente valorizada nos debates sobre
revitalização, na busca de um diferencial naquilo que se
acreditaria ser um mercado global de cidades. O discurso sobre
as práticas de conservação patrimoniais acabou sendo
38

ressignificado e, assim, a preservação passou a ser pensada não


para evitar o desaparecimento, mas para se conferir valor ao
local, não pela ação de novas edificações, mas pelo
agenciamento, por vezes cenográfico, das antigas. Os projetos
de revitalização urbana, então, foram diretamente relacionados à
valorização e recuperação do patrimônio de valor histórico e
cultural nas cidades. (JAIME; TREVISAN, p. 2012, 367)

Leopoldo Pio, em sua análise a respeito do Porto Maravilha, recente


projeto de revitalização da área portuária do Rio de Janeiro, percebeu que, em
comparação a outros projetos semelhantes, existem “certos padrões de
intervenção, especialmente no que diz respeito ao papel das atividades culturais
na recuperação dos espaços públicos, no intuito de modernizar ou “reinventar” a
imagem das cidades” (2013, p. 9), ou seja, percebe a mesma tendência que
Jaime e Trevisan nos indicaram. Nesse sentido,

Na medida em que a patrimonialização e revitalização dos


centros urbanos tornam-se recursos cada vez mais freqüentes
na reestruturação urbana, as áreas históricas revitalizadas
tornam-se metáforas de uma nova cidade que se quer construir.
(PIO, 2013, p. 9)

Em sua análise, Pio deu especial atenção às formas como o patrimônio foi
mobilizado no projeto Porto Maravilha. A respeito do Museu de Arte do Rio, uma
das instituições criadas pelo projeto, Pio informa que seriam ocupados dois
edifícios históricos da Praça Mauá para abrigá-lo, um de arquitetura modernista
e, outro, eclético. Para ele, tais escolhas para abrigar o novo museu alinham-se
a uma vertente muito em voga na revitalização de centros históricos de
reutilização de prédios preexistentes, aos quais são atribuídos usos culturais,
reintegrando-os ao contexto urbano sob uma nova lógica (2013, p. 21). O museu
seria, então, uma tentativa de releitura da cidade, numa reação à “perda da
centralidade através do que poderíamos chamar de “poder redentor” da cultura”
(2013, p. 22). Ainda sobre o MAR, ele entende que:

A criação do MAR é um caso clássico no qual a


patrimonialização e a refuncionalização de edificações com
“valor histórico” é utilizada como forma de ressemantização de
uma área degradada. Em outras palavras, a requalificação dos
edifícios transformados em equipamento cultural teria a função
de criar não apenas um novo olhar sobre o entorno, mas
igualmente uma forma específica de intervenção sobre a região e
sobre a história local (PIO, 2013, p. 23)
39

Jayme e Trevisan apresentam diagnóstico semelhante a respeito dos


sentidos atribuídos aos conteúdos históricos das regiões centrais em vias de
requalificação:
Nas políticas de gentrificação a prática do consumo é
incorporada à tradição a partir de dois eixos. De um lado o centro
histórico é representado como lugar de convergência da
população para um suposto passado e identidades comuns,
expressão de uma memória da nação, da tradição e da cidadania
(JAYME; TREVISAN, 2012, p. 368)

Como já indicamos, os edifícios atualmente ocupados pelo MAO inserem-


se nessa tendência descrita por Pio, uma vez que se tratavam de estações de
trem de estilo eclético que foram restauradas para abrigar o Museu. A
restauração dos edifícios, inclusive, foi abordada como um dos compromissos da
futura instituição em diversas oportunidades, ainda em sua primeira fase de
concepção. Maria Ignez Franco, por exemplo, caracterizou o sítio anteriormente
às reformas como “uma praça ainda abandonada, um lugar muito ermo”,
localizada numa região que não contava com um complexo cultural forte. Assim,
o museu teria a “responsabilidade de encontrar uma conexão no circuito urbano”.
Pierre Catel, igualmente, diz ter refletido “sobre a importância de contribuir para
a recuperação de uma importante região da cidade de Belo Horizonte, hoje
bastante degradada” (CATEL, 2004, p. 48), justificando as razões pelas quais
aquela localidade havia sido escolhida para abrigar o MAO.
Atualmente, a instituição apresenta a reforma da praça e a restauração do
edifício como partes fundamentais da narrativa sobre a própria instituição, como
podemos ver nas Figuras 2, 3 e 422, em que há uma associação prática e
simbólica entre as duas reformas.
Há ainda um outro uso do espaço, o do metrô, que nunca deixou de
funcionar na estação e que acolhe todos os dias milhares de usuários que vêm
ao centro. Entretanto, os processos de restauração estiveram diretamente
ligados à implantação do museu, que chamou para si essa tarefa como uma das
missões da instituição. Não podemos atribuir apenas ao MAO o papel de criação
de um novo olhar sobre o entorno, visto que outras ações estavam já previstas e

22
No hall de entrada do Museu, há um totem de conteúdos audiovisuais dedicado a
apresentação do museu, seus conteúdos e a ocupação do seu espaço. As figuras 2, 3 e
4 são fotografias de algumas telas deste totem.
40

em curso durante a sua concepção e montagem. Ainda assim, cremos que a


implantação de um museu numa área central em vias de requalificação tem forte
potencial simbólico, sobretudo quando a instituição permanece reforçando este
vínculo23 em seu discurso oficial com o passar dos anos.

Figura 2 – Imagem da tela que apresenta as


opções de conteúdo a que o visitante, tocando em
cada frase, terá acesso.

Fonte: Fotografia da autora, maio de 201724

23
Voltaremos a este tema no item 1.3
24
Na tela aberta pelo toque em Estação Central e Belo Horizonte: história em trilhos
paralelos, apresenta-se o texto: “A história da construção da Estação Central, que hoje
abriga o Museu de Artes e Ofícios, começa na virada do século XIX para o XX. É uma
história que se confunde com a da construção da nova capital de Minas Gerais. Durante
muito tempo, junto com a Praça da Estação, este conjunto foi chamado de “portal da
cidade”. Toque nas datas e abra gavetas que guardam um pouco dessa memória”. A
esta tela seguem-se várias outras, em que se apresentam 35 imagens da Praça e do
Edifício ao longo do século XX, e também um vídeo dos anos 1940, em que se registrou
a presença de uma multidão na praça em razão da presença de Juscelino Kubitschek
na localidade.
No item Restauração do prédio, o texto é: “estes prédios, bem ao gosto eclético dos
edifícios públicos das primeiras décadas da cidade de Belo Horizonte, têm elementos
neoclássicos e art nouveau em sua construção. Toque nos croquis da fachada e do
interior e acompanhe um pouco do processo de restauração que devolveu ao prédio
suas características originais”. A ele seguem-se 28 imagens, sendo 3 croquis e 25
fotografias das obras de restauro, em que estão sempre presentes trabalhadores em
41

Figura 3 – Imagem da fachada do futuro Museu, no início das obras de


restauro dos edifícios, em 2002. Lê-se o texto: “Início das obras para sediar o
Museu de Artes e Ofícios, mediante um acordo de cessão de uso pela
CBTU, administradora do metrô, ao Instituto Cultural Flávio Gutierrez. Toque
para saber mais”

Fonte: fotografia da autora, maio de 2017.

Figura 4 – Imagem diagonal da Praça da Estação em reforma, com o edifício


em segundo plano, em 2004. Lê-se o texto: “Reforma do prédio e da Praça
da Estação. Toque em seguir para ver mais fotos”.

Fonte: fotografia da autora, maio de 2017.

atividade; há também um vídeo de 1min que apresenta trabalhadores envolvidos nas


obras de restauro durante suas atividades).
42

A tudo isso se soma a percepção no senso comum, ainda não


completamente superada, das instituições museológicas como espaços
“solenes”. Ocupando um edifício de estilo eclético que se assemelha a um
palácio, essa alusão de “nobreza” certamente se intensifica, o que poderia
contribuir ainda mais para uma ressignificação positiva de toda a região. Além
disso, como procuraremos demonstrar ao longo desta dissertação, cremos que o
MAO apresenta-se em grande medida como este lugar de convergência de um
passado pasteurizado, como descrito por Jayme e Trevisan.

A respeito da ideia da “gentrificação”, que sempre acompanha os debates


sobre requalificação urbana, tanto Jayme e Trevisan quanto Hoffman nos
oferecem uma leitura semelhante do caso de Belo Horizonte. Jayme e Trevisan
seguem explicando os processos de requalificação:

por outro lado, a intervenção é representada como uma forma de


recuperar um espaço urbano como público e de lazer,
entretenimento e consumo da população (...) se no discurso,
propõe-se a recuperação dos edifícios e das ruas, no sentido de
devolver à população um espaço heterogêneo de sociabilidade,
na prática o que se vê é a “expulsão”, simbólica ou não, do
vernacular (JAYME; TREVISAN, 2012, p. 368).

Contudo, as autoras sugerem que “o programa Centro Vivo enfatiza o


valor dos espaços públicos e o centro como ‘um local de todos’”, e que, no caso
de Belo Horizonte, essa programação não se restringiu ao texto do programa,
ainda que existam, naturalmente, ambiguidades e disputas no uso destes
espaços. (JAYME; TREVISAN, 2012, p. 369)
Felipe Hoffman pontua que houve um aumento do policiamento pela
Guarda Municipal na região da Praça da Estação, o que não se refletiu, porém,
no direito de ir e vir, de forma que um público variado permaneça circulando pela
Praça cotidianamente. Além disso, um dos aspectos trazidos pela gentrificação
seria a transformação do uso da região em residencial, o que não ocorreu. Para
ele, os processos de requalificação urbana aconteceram, mas os usos da região
não caminharam no sentido de afastamento de populações, mas de ocupações
de diversas maneiras, como o Duelo de MCs e a Praia da Estação. Ressalvando
que seria necessário colocar em questão a grande ocupação da região por
43

moradores de rua, o pesquisador acredita, portanto, que não houve um processo


claro de segregação e elitização do espaço.
Nesse sentido, tanto para Hoffman quanto para Jayme e Trevisan, os
processos de requalificação urbana do centro de Belo Horizonte não resultaram
em gentrificação, o que não significa, é claro, que não existam reflexões críticas
a serem feitas. É preciso ressaltar que podemos concordar com os autores que
essa gentrificação não ocorreu, mas em termos de efeitos. Em termos de
planejamento do poder público, usos mais voltados ao turismo e ao consumo
estiveram presentes em alguma medida. Assim, podemos dizer que a
permanência do uso heterogêneo da Praça da Estação foi uma consequência
não planejada dos processos de reforma. Tal permanência teve como maior
agente a apropriação que os diferentes grupos populacionais fizeram daquele
espaço, a despeito, muitas vezes, dos planejamentos estatais.
Os projetos da prefeitura para requalificação do centro, ainda que tenham
previsto o diálogo com a sociedade, acabaram por excluir alguns sujeitos sociais,
como os trabalhadores do centro da cidade. Segundo Jayme e Trevisan,

...apontando para um diálogo privilegiado com comerciantes e


moradores, mas excluindo, de modo geral, as pessoas que
trabalham no centro da cidade. Os planos e projetos também não
fazem referência às prostitutas que exercem suas atividades na
região, fato que chama a atenção levando-se em consideração
que a área de abrangência de suas atividades está inserida nos
limites dos planos (JAYME; TREVISAN, 2012, p. 369)

Tal postura encontrou eco nos processos de implantação do MAO.


Durante sua concepção, quando ainda se planejava inaugurá-lo em 2002, foram
realizados Seminários, que tinham como objetivo tornar públicas as discussões
que se estabeleciam para seu assentamento e promover debates a respeito das
etapas dos processos museológicos. Maria Ignez Mantovani Franco explicou
que:

(...) achamos também que a gente podia fazer uma metodologia


de implantação do projeto diferente e criamos a ideia de fazer
seminários de acompanhamento. Esses seminários eu acho que
foram muito interessantes porque a ideia era que eles se
desenvolvessem na medida em que o projeto fosse evoluindo
(...) a ideia era ir seguindo quase que um cronograma de
desenvolvimento, trazendo projetos similares que pudessem ir
dialogando com o projeto. (...). O primeiro que a gente fez, que
44

era exatamente de discussão do conceito do museu e do


assentamento do museu, nós convidamos assim museus de Belo
Horizonte, convidamos desde o departamento de trânsito.... (...)
Essa discussão pública eu acho que é muito interessante, e dá
um respaldo muito importante pro museu se assegurar numa
fase em que ele ainda é muito débil, muito frágil, política e
institucionalmente.

Para o 1º seminário, ocorrido entre 17 e 19 de maio de 2002, foram


selecionados 100 participantes entre os 295 inscritos, sob a justificativa de que
esta era a capacidade do auditório onde aconteceria o seminário, no Museu
Histórico Abílio Barreto. A seleção dos participantes foi feita em função de
análise de currículo e atuação profissional e, logo, o público do seminário foi
composto sobretudo por agentes especializados da área da cultura. A “discussão
pública” aconteceu, portanto, numa esfera restrita aos profissionais de
museologia, de forma que a sociedade civil não foi contemplada em sua
heterogeneidade. Os trabalhadores que cercam a Praça da Estação, os usuários
do metrô, os ambulantes e camelôs do Centro não estiveram presentes na
construção do museu, ainda que tenham sido elegidos como o público mais
relevante da futura instituição em diversas oportunidades, como veremos à
frente.

1.3 Uma estação no meio do caminho

Uma das hipóteses deste trabalho, que orientou a redação deste capítulo,
reside na percepção de que existe uma indissociação entre a instituição MAO, o
espaço que ela ocupa (edifícios e Praça) e o público almejado, combinação que
foi determinante na constituição da exposição em questão. Tentaremos analisar
neste item alguns aspectos da ocupação dos espaços do edifício, entendendo
que os usos da arquitetura são produtores de significado. Nessa análise,
abordaremos a relação entre o espaço arquitetônico e as estratégias de conexão
entre o presente, vivenciado pelos visitantes, e o passado, apresentado pela
exposição.
De início, vejamos a fala de Ângela Gutierrez a respeito da escolha dos
edifícios da Praça da Estação para a acolhida do MAO:
45

Sempre sonhei em fazer este museu em Belo Horizonte.


Enquanto peregrinava em busca do melhor espaço em Belo
Horizonte, recebi honrosos convites para fixar o museu em
cidades como Brasília e São Paulo. Mesmo aqui, alguns lugares
me foram oferecidos, sendo um deles em localização
privilegiada, na região Sul, em um prédio bem próximo de minha
residência. Mas eu sentia que essa coleção estava destinada a
ficar junto do povo. Bem próxima daqueles que poderiam
entendê-la melhor, e talvez até se reconhecer naqueles objetos
que muito certamente estiveram nas mãos de pais, avós e sabe-
se lá quanta gente de outros tempos.
Quando surgiu o convite da CBTU, eu tive a certeza de que
havia encontrado o lugar ideal. A Praça da Estação, lugar de
encontro e de passagem, de partidas e de chegadas, de gente.
Os prédios da estação, com sua beleza e dignidade, parecem ter
sido projetados por inspiração divina com a finalidade de um dia
receber o Museu de Artes e Ofícios.
A estação é o lugar. Ainda que carente de reparos e de bons
tratos, ela se mostra apta a cumprir a missão de ser guardiã do
único museu do gênero em todo o Brasil (GUTIERREZ, 2004, p.
36, grifos meus)

Fica evidente no discurso da empresária, sobretudo nos trechos que


destacamos, a vocação que ela atribui ao MAO de conexão imediata com “o
povo” e que a localização na Praça da Estação, por sua trajetória e atual uso
como estação de metrô, é parte essencial dessa conexão, que se daria de
maneira natural, imediata.
Pierre Catel fez coro à Ângela em seu projeto:

É verdade que aqueles prédios não são apropriados para a


criação de um museu. Museologicamente, não é um espaço
ideal, ele impõe diversos problemas, mas o que levou à decisão
foi sua situação privilegiada no que diz respeito ao público:
graças a sua localização, contamos com um público potencial de
um milhão de visitantes por ano, chegando pelo metrô. (CATEL,
2004, p. 48)

No texto de parede presente na entrada no museu, no vídeo introdutório


disponível no totem no hall de entrada e também no site da instituição 25, veicula-
se a ideia de que “O Museu de Artes e Ofícios é o lugar do encontro do
trabalhador consigo mesmo, com sua história, com seu tempo – passado,
presente e futuro”. Ao final do texto, temos:

O Museu de Artes e Ofícios está pleno de homens e mulheres


assim, ainda que a história tenha sido apenas discreta para com

25
Conteúdo disponível no site da instituição, no item “Acervo” Disponível em:
http://www.mao.org.br/conheca/acervo/ Acesso em 09 de abril de 2018
46

eles. Eles são trabalhadores, são também os visitantes do


museu, passageiros apressados rumo ao trabalho, viajantes do
trem de ferro, moradores do campo e da cidade. É preciso
apenas olhos para vê-los.

É conteúdo recorrente, presente tanto no trecho destacado e quanto no


vídeo referido acima, a referência a uma suposta visibilidade automática e óbvia
dos trabalhadores (“é preciso apenas olhos para vê-los”), que na verdade seriam
todos, não havendo diferenças ou distâncias entre os visitantes, os usuários do
metrô e os trabalhadores representados no museu, o que, logo, dispensa
mediações. Assim, fica sugerido que existe uma correlação essencial entre a
instituição, o espaço físico que ela ocupa e sua exposição, tudo isso em função
do público que ela elegeu para si própria.
Em nossa reflexão sobre a ocupação do espaço, começaremos pelo hall
de entrada, seguido da chamada “Galeria Contemporânea”.
O grupo de consultores da Expomus propunha que o museu abordasse o
trabalho como problemática ampliada ao presente e ao futuro, extrapolando a
periodicidade do acervo. Por exemplo, na reunião de 20 de março de 2002, em
que foi apresentado o projeto museológico, colocaram em discussão “a ideia de
que a entrada do público no museu se faça por um espaço que aborde o
trabalho em sua contemporaneidade, sem remetê-lo ao passado”. Pierre Catel
não via, segundo a ata, “conflitos entre a museografia proposta [até então] e a
desejada abordagem do trabalho na entrada do museu”. Por fim, definiu-se na
reunião que a entrada deveria dar conta de três aspectos: apresentar o museu;
apresentar os ofícios (passado e presente); e captar depoimentos dos passantes
em cabines, numa metodologia de História Oral.
Já em 22 de maio, as propostas para a entrada haviam mudado um
pouco, como é frequente num processo longo de trabalho envolvendo diversos
profissionais. Para a área de acolhimento, no edifício A, previram-se duas áreas
de informação: painel síntese do Museu; painel síntese do circuito de museus de
Belo Horizonte, ideia que teria sido bem aceita pelos participantes do Seminário
de maio de 2004.
Comparando as duas imagens, do croqui e da situação atual do museu
(figuras 5 e 6), percebemos uma diferença de usos do hall de entrada, a
começar pelo deslocamento do posicionamento da catraca: na figura 5, vemos
47

que foram planejadas para estar logo na entrada do prédio, porém como vemos
na mancha azul clara da Figura 6, elas foram deslocadas para dentro, próximo à
galeria-plataforma. Esse deslocamento fez com que o hall não seja entendido
como parte da exposição – que “começa” ao ser ultrapassada a catraca –, ainda
que existam conteúdos muito importantes neste espaço. Além de mapas (com
sua óbvia e necessária função de orientar a localização), há o texto de parede
que apresenta a instituição e a exposição, bem como o totem também de
apresentação (aos quais já nos referimos no item anterior). Estão localizados
logo antes da catraca, à direita.
Figura 5 – Croqui do planejamento expográfico previsto para o Térreo do edifício A

Fonte: Seminários de Capacitação museológica, 2004, p. 43


48

Os conteúdos audiovisuais presentes nesse totem são vastos e


promovem uma apresentação global da instituição: a origem do acervo (com
depoimento de Ângela Gutierrez); a organização da exposição (com mapas e a
orientação sobre a divisão do acervo em ofícios e grupos de ofícios); a ocupação
dos edifícios e a parcela de responsabilidade do museu na requalificação da
Praça da Estação. É um conteúdo importante, que revela partidos interpretativos
e expográficos da instituição. Por exemplo, na tela de abertura do item “De onde
vem este museu: o acervo”, temos o texto:

reunidas ao longo de 30 anos de andanças e pesquisas pelo


interior do Brasil, as cerca de 2000 peças aqui apresentadas
constituem coleções de utensílios e ferramentas criados no
exercício dos mais diferentes ofícios. Ao percorrer o museu, você
vai perceber que os instrumentos de trabalho foram agrupados
conforme o ofício em que são utilizados. Toque na fachada do
MAO para conhecer a organização de sua exposição26 Toque no
baú e saiba como se formou a coleção que em 2002 foi doada
por Ângela Gutierrez ao patrimônio público brasileiro e hoje é
acervo deste museu.

Figura 6 – Mapa atual do Museu, sobre o qual destacamos, em azul escuro, a área de
acolhimento. A mancha azul clara indica a atual localização das catracas

Fonte: Disponível no site da instituição. Destaques da autora

26
Tocando nesta frase, o visitante abre uma sequência de 25 telas com a apresentação
da divisão dos temas / ofícios em função do mapa do museu, bem como indicação de
que outros espaços serão construídos, como reserva técnica e setor educativo.
49

Como se vê, é uma apresentação importante do que o visitante


encontrará na exposição, bem como das origens daquele acervo. Entretanto, a
localização do totem antes da “entrada”, antes do início da exposição em si
tende, cremos, a afastar o visitante, porque fisicamente é apresentado como
“preâmbulo”, introdução, e não conteúdo próprio do discurso da exposição, e
portanto poderia ser dispensado. Além disso, a reunião deste conteúdo
extenso27 em um único totem que depende da ação do visitante para ser
acessado, torna plausível que muitas das questões – que entendemos como
fundamentais – passem completamente desapercebidas por um visitante que
não notar a presença do totem, ou que se cansar e não assistir ao conteúdo
inteiro – afinal, há ainda uma exposição inteira a ser visitada.
Outro espaço importante em que se manifesta a relação entre a
arquitetura, a localização urbana e os conceitos que se desejava mobilizar, em
função da expectativa de público é a originalmente denominada “Galeria
Contemporânea”, que se localizaria na galeria-plataforma do prédio A, como
podemos ver na Figura 5 e na parte destacada em azul na Figura 6.
Para esse espaço, estava planejada a exposição de “objetos referenciais
aos grandes objetos que estarão expostos na plataforma externa” 28, ou seja,
carro de boi, barco com carranca, objetos associados ao tropeirismo, sugerindo
uma contraposição ao trem de carga que passa na plataforma, o que reforçaria a
“ligação com estes objetos de expansão e exploração da terra” 29. Tal
planejamento expográfico se efetivou em alguns aspectos. De fato, há objetos de
grande porte instalados na plataforma do metrô, como vemos na figura 7.
Na galeria destacada em azul no mapa (Figura 7), estão expostos
atualmente os núcleos dedicados a: Canoeiro, Tropas e Tropeiros, Carpinteiro
Naval, Carranqueiro, Carpinteiro de Roda, Carreiro, temas que correspondem ao
planejamento inicial, como vimos. Porém, elas estão misturadas a outras
atividades profissionais, também presentes na área destacada em azul:
Vendedor de rua, Dentista e Barbeiro, Carregador, Comerciante, Mascate,
Fotógrafo lambe-lambe; além da exposição da Balança de pesar escravos, que
27 Nós registramos 108 telas, sendo 5 delas vídeos de duração média de 1min cada. Para que
todo o conteúdo disponível seja acessado, somando a duração dos vídeos e supondo um tempo
mínimo de leitura dos textos e observação das imagens, é demandado do visitante ação e
atenção por um período relativamente longo.
28 Trecho presente na ata da reunião realizada em 22 de maio de 2002
29 Trecho presente na ata da reunião realizada em 22 de maio de 2002
50

será analisada no capítulo 3. Dessa forma, fica diluído o conteúdo a respeito do


transporte de cargas e mercadorias. Há alguma coerência discursiva na
exposição que fica à direita de quem entra pela catraca (onde se apresentam
Canoeiro, Tropas e Tropeiros e Carpinteiro Naval), porém o Carpinteiro de roda
e o Carreiro, que se aproximam do tema do transporte, aparecem do outro lado
da plataforma, bastante distantes.

Figura 7 – mapa atual do Museu sobre o qual destacamos, em azul, a área que
corresponderia à “Galeria Contemporânea”

Fonte: Disponível no site da instituição. Destaque da autora

A referência ao trem de carga em comparação aos Tropeiros e Barqueiros


não é evidente para todo e qualquer visitante (ou, ao menos, não foi para nós
antes da escrita dessa dissertação), e não está sugerida pelos materiais de
apoio.
Nesta “Galeria Contemporânea”, previa-se também “trabalhar a relação
dos ofícios definidos historicamente com aqueles que reconhecemos hoje em
dia”30, de forma a promover um confronto de situações relacionadas ao trabalho
contemporâneo. Além disso, nesse espaço ficariam cabines de captação de

30 Trecho presente na ata da reunião realizada em 22 de maio de 2002


51

depoimentos, visando integrar o visitante com o conteúdo do acervo. Algumas


dessas ideias sobreviveram e foram implementadas parcialmente.
No núcleo expositivo dedicado a “Tropas e Tropeiros”, por exemplo, a
exposição traz, a partir do suporte de multimídia, cenas relacionadas à vida
cotidiana dos caminhoneiros, totalizando cinco depoimentos 31. No que
chamaremos de primeiro vídeo, de 20 segundos de duração, o visitante toma
contato com a voz da esposa de um caminhoneiro, que mostra fotografias e
conta de sua lua de mel realizada de caminhão no interior gaúcho. No segundo,
de 16 segundos, um caminhoneiro fala sobre sua moradia na maior parte do ano
ser o caminhão, enquanto se vê a cama dele, improvisada atrás do banco do
motorista. No terceiro, de 25 segundos, mostram-se cenas de paisagens em
movimento, através da janela do caminhão, e ao fundo escuta-se a voz do
caminhoneiro que diz que “todo o Brasil é bom” e destaca os estados e cidades
em que já esteve e gosta muito. No quarto, de 36 segundos, escuta-se ao fundo
o caminhoneiro cantando uma música relacionada à profissão, falando de suas
lutas e sacrifícios para a realização do sonho do empregado que “passa a ser
patrão”; enquanto isso, a imagem é a vista pelo caminhoneiro enquanto dirige,
da estrada a sua frente, à noite. No quinto, de 33 segundos, aparece um
caminhoneiro próximo a diversos caminhões e ao fundo, o que parece ser sua
própria voz, que destaca a atuação fundamental do transporte de comida
realizado pelo caminhão. Ele lembra uma situação de greve, em que, com três
dias de paralização, “faltou tudo”.
A reprodução dos vídeos está condicionada a ação do visitante que deve
tocar na tela, sobre os caminhões, para dar início a cada um dos depoimentos
(Figura 9)32.

31 Outros núcleos expositivos presentes nesta galeria também trazem suportes audiovisuais de
orientação semelhantes, cuja análise pormenorizada, contudo, não foi possível para esta
dissertação.
32 São 3 vídeos a respeito das mulas, 1 sobre as tropas de muares e mais um que destaca a

importância do tropeirismo em diversos aspectos, ressaltando o conhecimento empírico do


tropeiro. Há também uma série de telas que contém imagens e textos, muitas delas dedicadas
novamente às mulas.
52

Figura 8 – Núcleos de objetos do acervo do MAO que ficam expostos na


plataforma do metrô, fotografados a partir da galeria-plataforma do prédio A.

Fonte: Fotografia da autora, maio de 2017

. Figura 9 – Tela do recurso multimídia em que se disponibilizam ao toque 5


caminhões, que iniciam cada um dos depoimentos

Fonte: Fotografia da autora, maio de 201733.

Em nosso entendimento, esse conteúdo audiovisual se propõe a


estabelecer uma relação entre o trabalho do tropeiro e o do caminhoneiro, numa
33 “Cenas de hoje. Os muares resistiram à expansão das ferrovias iniciada na segunda metade
do século XIX. Os caminhos das tropas iam muito além do que o trem de ferro podia alcançar.
Nos anos 50, o melhoramento das estradas colocou em cena os caminhões, mais rápidos e
econômicos que as mulas. Hoje, praticamente todo transporte de carga no país é feito através de
rodovias. Toque nos caminhões para ver trechos do vídeo Carga Seca e saber um pouco sobre a
vida dos caminhoneiros”. É preciso registrar que, além deste conteúdo sobre os caminhoneiros,
este núcleo conta com um vasto conteúdo multimídia que concede notável protagonismo às
mulas utilizadas pelo tropeirismo.
53

conexão passado e presente que busca perceber continuidades e


transformações, conforme estabelecido na programação inicial para a “Galeria
Contemporânea”. Contudo, essa relação está colocada atualmente na exposição
em segundo plano, como questão secundária, talvez terciária, na medida em que
aparece junto a uma série de outros conteúdos adicionais34. Nesse sentido,
cremos que é bastante plausível a hipótese de que um visitante não se detenha
nesse painel audiovisual, não assista esses conteúdos e, assim, não seja
convidado a fazer essa reflexão sobre as permanências e transformações das
dinâmicas de transporte no Brasil passado e contemporâneo, sobretudo no que
diz respeito a seus principais agentes, tropeiros e caminhoneiros.
No que diz respeito ao conteúdo apresentado sobre os caminhoneiros, é
preciso ressaltar que é louvável a iniciativa de dar voz a esses trabalhadores e
que as narrativas apresentadas por eles são úteis e interessantes para a
aproximação e, assim, humanização deles e de seu trabalho. Entretanto,
algumas questões evidentes sobre a sua dinâmica de vida ficaram de fora como,
por exemplo, dilemas como roubo de carga e trabalho excessivo por longas
horas que ocasiona acidentes. As tensões vivenciadas por esses trabalhadores
aparecem de forma bastante tangencial, em rápida alusão à greve feita no quinto
depoimento e na “luta e sacrifício” cantados no quarto.
Como já indicamos, a disposição das atividades relacionadas ao
transporte naquela plataforma pretendia, originalmente, possibilitar uma conexão
com o presente por duas razões: primeiro, por estar espacialmente no início do
museu, mais próximo fisicamente do externo ao museu, e simbolicamente, do
cotidiano dos visitantes para além do museu; segundo, pela presença do trem de
carga, que seria o contraponto contemporâneo às atividade nas quais se
envolviam, no passado, tropeiros, canoeiros e outros.
Porém, na exposição em si essas questões são apresentadas de maneira
muito diluída ao visitante. Com isso, a possibilidade do espaço inicial do museu
introduzir o visitante nas discussões que a exposição levantaria – como, aliás,
era a proposta inicial realizada pela Expomus – foi perdida com essa diluição. Se
entendemos que a relação entre o tropeirismo e o trem de carga é um conteúdo

34 Há todo um conteúdo relacionado ao tropeiro, tanto no suporte audiovisual quanto na


exposição de objetos e manequins. Neste item, optamos por nos deter a reflexão sobre a
questão contemporânea do trabalho.
54

importante que o museu pretende mobilizar, então essa sugestão deve ficar
clara no discurso expositivo (que poderia, inclusive, pensar o trem de carga
enquanto “acervo”). Em entrevista concedida em 30 de outubro de 2002,
portanto ainda durante os planejamentos para o MAO, Pierre Catel explicitou
suas expectativas para a relação do museu com o trem de carga:

(...) para o público dos museus clássicos, [alguma coisa] ficará


talvez um pouco confusa, porque em vez de um audiovisual
sobre os assuntos, temos um trem que passa no meio do museu,
que se depara com os minérios, com o mármore, com o granito,
e isso vale por um audiovisual gigante, quando você tem o
barulho, quatrocentos vagões que passam pelo meio do museu.
Portanto, não estamos mais dentro daquela forma: onde está a
etiqueta, para ler a referência? A referência passa diante de
você. Ela vive diante de você. É essa noção do que é vivo,
porque fomos postos junto aos vivos! Não se procurou retirar
esse espaço museográfico do mundo cotidiano, do permanente.
(CATEL, 2004, p. 330)

Como se vê, ele entendia que a referência do trem passando (o que, é


importante sublinhar, não acontece o tempo inteiro, de forma que é possível que
um visitante percorra a galeria toda sem que um trem passe, o que tolhe a
possibilidade de relação) seria suficiente para sugerir a conexão entre os
conteúdos históricos mobilizados e o “mundo cotidiano”.
Ao contrário, acreditamos que o espaço da antiga plataforma, e o trem de
carga não foram efetivamente aproveitados enquanto conteúdo que podem
interferir na produção de significados. Os objetos relacionados ao transporte e as
comparações entre passado e presente acabam por estar ali de maneira
aleatória, uma vez que esse diálogo não foi explicitado ao visitante, seja ele
pertencente a um público habituado a frequentar museus ou não. Estamos
convencidos de que a visita consciente e crítica a uma exposição exige do
visitante muito trabalho, muita reflexão e ele não é, jamais, passivo. Entretanto
permanece ao museu a responsabilidade de explicitar as conexões que pretende
que o visitante realize. Por essas razões, fica claro que o projeto de uma Galeria
Contemporânea enquanto unidade coesa se perdeu. Ainda que conteúdos
interessantes desta possibilidade de problematização estejam presentes na
exposição, eles aparecem mesclados a outros conteúdos que estavam previstos
para outros espaços.
55

Outro espaço que entendemos que merece ser pontuado no que toca aos
usos planejados pela programação inicial é o espaço subterrâneo entre o prédio
A e o prédio B. Segundo a ata de reunião de 20 de março de 2002, estava
previsto para o túnel que liga os dois edifícios a instalação de vitrines no chão,
dedicadas à exposição de matérias primas brasileiras (Figura 10). Nas paredes
(Figura 11), as vitrines exporiam sobre três temas: as permanências nas formas
que o exercício de determinado ofício assume ao longo do tempo; o papel do
mestre de ofício, tendo Aleijadinho como referência maior; e os ofícios
ambulantes. Além do túnel, estava prevista a abertura de salas subterrâneas,
paralelas ao túnel, em que seriam projetados vídeos em telões, associados a
alguns poucos objetos expostos, visando discutir a abrangência nacional dos
diferentes aspectos de trabalho. O documento não especifica quais seriam tais
aspectos, por se tratar de uma discussão inicial. Esse complexo subterrâneo
deveria dar conta do circuito histórico descrito por Maria Ignez Franco no
Programa Museológico e, naturalmente, sua curadoria seria de responsabilidade
de Nicolau Sevcenko.

Figura 10 – Planejamento museológico para o túnel e salas subterrâneas

Fonte: FRANCO, 2004, p. 41


56

De todo o planejamento proposto pela Expomus em 2002, nada


sobreviveu, exceção feita ao núcleo dos ofícios ambulantes, deslocado para o
prédio A, na galeria que trabalhamos acima. As discussões previstas para o
circuito histórico, bem como a instalação de uma parte expositiva no
subterrâneo, não se efetivaram.

Figura 11 – Croqui de realidade virtual para o planejamento do túnel e


salas subterrâneas

Fonte: CATEL, 2004, p. 50

Atualmente, o túnel é preenchido com painéis em que se lê o nome a


atividade de diversos profissionais envolvidos na implantação e funcionamento
do MAO, sob o mote “Com quantos ofícios se faz um museu?”. A iniciativa nos
parece interessante, porque apresenta diversos trabalhadores sem hierarquizá-
los, de forma que engenheiros e museólogas aparecem listados, em ordem
alfabética, junto a serventes de pedreiro. É interessante sublinhar que é apenas
nesse espaço em que os nomes de Maria Cristina Bruno, Maria Ignez Mantovani
57

Franco e Nicolau Sevcenko aparecem associados ao museu35. Na ficha técnica


do museu, apresentada no totem de conteúdos audiovisuais localizado no hall de
entrada, não se faz menção ao trabalho da Expomus ou desses profissionais, o
que pode ser explicado, talvez, pela saída da empresa paulista do projeto de
implantação do MAO.
A instalação do túnel, todavia, tem um caráter de improviso, não há
acabamento na estrutura, a iluminação é fraca, de forma que a impressão é que
os painéis estão cobrindo paredes que aguardam reforma. Entendemos que
essa ideia, embora muito louvável, poderia ter sido trabalhada de outra forma 36 e
localizada em outro espaço do museu, uma vez que está claro que os projetos
para aquele espaço tinham muito mais fôlego para incitar reflexões.

35 As museólogas estão mencionadas também na publicação Seminários de Capacitação


Museológica, uma vez que proferiram comunicações orais durante os seminários.
36 No totem de apresentação, localizado no hall de entrada, a que já nos referimos, há material

de mesmo título, que apresenta as profissões em ordem alfabética, sem citar nomes dos
trabalhadores.
58

CAPÍTULO 2
DESAFIOS CURATORIAIS: ENTRE OBJETOS E SUJEITOS, ENTRE
ESTETIZAÇÃO E HISTÓRIA

Este capítulo é dedicado à análise dos partidos curatoriais e suas


manifestações na expografia. Vamos refletir sobre a busca por neutralidade
discursiva em exposições, em especial a que colocamos aqui em tela, e sobre o
papel atribuído ao curador, entendido muitas vezes enquanto um “artista”,
também ele responsável pela criação de uma “obra de arte” quando elabora uma
exposição.
Elegemos alguns núcleos que consideramos reveladores da convivência
entre partidos curatoriais para realizar uma descrição analítica que permita
propor uma interpretação a respeito das soluções da expografia.
Refletiremos, ainda, sobre os termos que dão nome ao Museu e sobre a
opção de se fazer um “museu de ofícios”.

2.1 Curadoria e expografia: entre transparência e criação artística

“A primeira coisa de que nós temos


que nos persuadir e persuadir o nosso
público é de que ele está sendo
persuadido”
(PESSANHA, 1996, p. 34)

O filósofo José Américo da Motta Pessanha compara a atividade do


museu com a da filosofia, especialmente a platônico-socrática. Pessanha
recupera uma narrativa de Platão sobre uma situação em que Sócrates conversa
com Ménon, um homem livre, cidadão de Atenas, sobre um assunto que ele
supostamente dominava. No decorrer do diálogo, com as perguntas de Sócrates,
fica claro que Ménon na verdade não dominava o tema, apenas reproduzia
construções verbais que faziam com que ele próprio e os outros acreditassem
que ele sabia o que estava dizendo. Como uma mágica, que aos olhos do
público desperta admiração porque não se sabe como ela foi possível, todos
acreditavam em Ménon porque ele era um bom orador. Sócrates chama então o
escravo de Ménon e estabelece um diálogo com ele sobre uma questão
59

matemática de difícil solução, mas que ao final ele consegue resolver, chocando
a todos, uma vez que ele provou ter o pensamento “mais livre” do que seu
senhor, um cidadão, em tese “livre”, habituado a debates na praça pública e,
supostamente, ao exercício do pensamento (PESSANHA, 1996, p. 35 37). A
narrativa platônica trazida por Pessanha deixa-nos uma sugestão importante: o
museu não pode ser como Ménon, iludido e confundido em suas próprias
palavras e narrativas. O trabalho do museu, ao contrário, deve ser análogo ao de
Sócrates, como o que Platão acredita ser o da filosofia: saber fazer a mágica,
mas mostrar que a mágica é mágica e como ela funciona e, ainda, como pode
ser refeita. Trata-se, portanto, de uma posição institucional em que se opte por
uma necessária e ética explicitação dos discursos curatoriais, de modo que eles
sejam assim percebidos e possam ser, afinal, discutidos pelo público, que
formulará suas próprias reflexões.

2.1.1 “Transparência” na concepção e montagem de exposições

Caminhando nesse pensamento, lembramos aqui a crítica contundente


feita por René Vinçon, que se dedica sobretudo ao universo das artes, em
relação às exposições que se pretendem “transparentes”, neutras. O autor
trabalha com o conceito de “ativação” das obras de arte, que equivaleria a sua
apresentação, sua colocação “em uso”, ou, em uma palavra, sua exposição
(VINÇON, 1999, p. 6), explicitando que não é possível fazer uma ativação neutra
de uma obra (VINÇON, 1999, p. 7).
Georges Henri Rivière, célebre museólogo francês já citado no capítulo 1,
era partidário de uma museografia orientada para a “neutralização de
ambientes”. Para ele, sendo dos objetos o direito de fala, a arquitetura e o
mobiliário deveriam executar papel de pura funcionalidade: “A sobriedade deve
reinar, a apresentação mais simples é aquela que, sendo útil e bela, se faz
esquecer” (MUSEOLOGIE..., 1989, p. 274). No entendimento de Rivière, o
objeto deve ter o destaque absoluto e os meios de exposição estão ali para fazê-
lo “sair do anonimato” (MUSEOLOGIE..., 1989, p. 274).

37
O texto de Pessanha, transcrição de uma comunicação oral, certamente trouxe mais
beleza à narrativa. Aqui, nos detivemos aos detalhes do conteúdo trazidos por ele, que
se mostram exemplares, sem termos recorrido ao texto original de Platão.
60

É justamente contra essa postura que Vinçon se coloca. Para ele,


exposições que se pretendem transparentes visam “respeitar” a historicidade do
momento de produção da obra – como claramente é o caso do pensamento de
Rivière –, mas acabam por ocultar (e, assim, fazer parecer que não existe) a
historicidade do momento presente, em que a obra foi ativada / exposta
(VINÇON, 1999, p. 11), o que pode ter por efeito, sobretudo num museu como o
que colocamos em tela aqui, uma sublimação do passado e um aniquilamento
do presente em que se formula o discurso e agência dos acervos.
Exposições que se pretendem transparentes tentam fazer parecer que
são os objetos que estão apresentando a si próprios, escondendo os meios
materiais que a exposição faz uso para ativar esses objetos (VINÇON, 1999, p.
14). Para voltarmos ao pensamento platônico trazido por Pessanha, a exposição
faz a “mágica” da ativação da obra, por meio dos meios materiais, mas tenta
negar – inclusive para si própria – que alguma mágica / interferência foi feita.
Vinçon acredita que, ao contrário, o desejável é que não se apague ou esqueça
os meios materiais de ativação, porque a tentativa de transparência,
ironicamente, cria opacidades no contato com o que está exposto (VINÇON,
1999, p. 15). Como um vidro, que ainda que transparente existe e interfere na
relação do observador com o que está sendo observado, “a transparência se vê”
(VINÇON, 1999, p. 14) e atua na produção de significados.
Convém lembrar que, como apontado no capítulo 1, o museógrafo
responsável pela montagem da exposição do MAO foi Pierre Catel, antigo
discípulo de Rivière. Tentaremos demonstrar que muitas das opções estéticas
adotadas por ele seguem os pensamentos de Rivière38.
A observação de alguns núcleos da exposição do MAO sugere que um
desses resgates da obra de Rivière está na busca por “transparência” na
montagem da exposição. Um deles é o núcleo dedicado ao Ceramista, nos
Ofícios da Cerâmica (B5), em que vemos uma jarra de barro flutuando sobre
uma bacia, sugerindo o movimento que relacionava os dois objetos antes de sua
musealização: a transferência de água da jarra para a bacia. Não há água

38
Não foram realizadas entrevistas com Pierre Catel que atestem essa associação.
Nossa hipótese é baseada na correspondência entre algumas opções do arquiteto e as
sugestões de Rivière registradas no livro La museologie selon George Henri Rvière,
além das aproximações visuais entre as fotografias presentes no livro citado e a
exposição do MAO.
61

caindo na exposição, porém, e nem braços que estejam a erguer a jarra e fazer
o movimento. Rivière, supomos, ficaria satisfeito com tal vitrine, uma vez que,
para ele, “os modos de exposição hábeis (fios de suspensão transparentes, por
exemplo) permitem devolver aos objetos um pouco da sua vida anterior”
(MUSEOLOGIE..., 1989, p. 276).
Junto a esta “instalação”, no mesmo núcleo, temos: três fotografias, sendo
duas de uma senhora que trabalha a cerâmica a mão e uma de um senhor que
utiliza o torno; a citação de um trecho de Spix e Martius no painel principal do
núcleo (“encontramos diversas mulheres ocupadas em fabricar louças de barro.
Elas modelam cântaros e pratos, quase sempre sem torno, à mão livre, com a
maior habilidade”39); a exposição de alguns objetos, entre eles moldes e
alambiques e panelas, jarros e potes; e o texto do núcleo, sobre o uso do torno e
as habilidades do ceramista40. Ainda que um núcleo, ele precisa ser entendido
enquanto unidade com os dois núcleos ao lado, “Oleiro” e “Ceramista e Oleiro”,
que contam com a presença de diversos textos e demonstram uma preocupação
em abordar os processos produtivos nos quais a cerâmica está envolvida.
Conforme vemos na figura 12, a apresentação sugere um “congelamento”
do momento do uso dos objetos, mas não há um personagem humano
associado ao gesto e nenhuma referência textual ou a partir de outros objetos
sobre contextos de uso dos artefatos. Em consonância a proposta de Rivière, os
objetos têm total destaque. Como apontou Vinçon, a sensação que temos é que
os objetos estão apresentando a si mesmos para o observador, como se não
houvesse uma estrutura física e de pensamento atuantes ali.
Outro indício que nos parece bastante emblemático dessa tentativa de
“transparência” ou, melhor dito, de não explicitação de que a exposição é um
recorte e uma possibilidade de mobilização daquele acervo é a ausência de um
título. A exposição “é” o museu, uma vez que não foi delimitada enquanto
realidade em si. Se fizermos o exercício especulativo de imaginar uma
itinerância para a exposição, como ela seria divulgada? É impossível uma
resposta precisa, porque ela não se apresenta enquanto recorte (ainda que seja,
como toda exposição é). Nomear é delimitar, e pressupõe agentes para escolher
e batizar. Ao manter a exposição sem título, borram-se os indivíduos

39 Segundo o painel: Belém, Pará, 1819, Spix e Martius, Viagem pelo Brasil
40 Continuaremos a análise deste núcleo mais à frente.
62

responsáveis pela concepção e montagem, e sugere-se subliminarmente que


aquela é a única possibilidade de exposição daquele acervo 41.

Figura 12 – Ofícios da Cerâmica (B5).


Núcleo do ceramista

Fonte: fotografia da autora, 2017

Em consonância com Vinçon, Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses


associa o trabalho do historiador a atividade do museu:

O historiador não faz o documento falar: é o historiador quem


fala e a explicitação de seus critérios e procedimentos é
fundamental para definir o alcance de sua fala. Toda operação
com documentos, portanto, é de natureza retórica. Não há
porque o museu deva escapar destas trilhas, que caracterizam
qualquer pesquisa histórica” (MENESES, 1994, p. 21)

Qualquer museu, mesmo os não declaradamente de História, atuam a


partir do mesmo procedimento: os curadores escolhem objetos e “falam” por

41 Muitos museus não nomeiam exposições de longa duração, seguindo a tradição de


ocultamento; outros, pelo contrário, as nomeiam. É o caso, para citar dois exemplos, da
Pinacoteca do Estado, cuja exposição de longa duração leva o nome de “Arte no Brasil: uma
história na Pinacoteca de São Paulo”; e do Museu Paulista, onde uma das exposições de longa
duração é denominada “Imagens recriam a História”
63

meio de sua exposição ao público. Constroem discursos, sugerem significados, a


cada escolha de mobiliário ou iluminação. Acompanhando esta argumentação,
não acreditamos que qualquer trabalho curatorial possa ser neutro. Porém, não
basta estar-se ciente dessa condição; é preciso assumir a posição de agente
que toma decisões e explicitá-las ao público, como sugerido na epígrafe deste
item.
O movimento contrário, de tentativa de apagamento deste “apresentador”,
que é o curador, acaba por aumentar ainda mais sua autoridade – e não
neutralizá-la – justamente quando opera-se visando neutralidade e
impessoalidade (VINÇON, 1999, p.18-19). O curador que, retirando-se de sua
condição de indivíduo, na manifesta intenção de impessoalidade e de fazer ver
os objetos sem interferências, acaba por ter sua ação fortalecida pela
“assinatura” que recai ao museu – que, ao contrário da desconfiança despertada
por muitas outras instituições na contemporaneidade, ainda é respeitado e
entendido pelo público enquanto um lugar de confiança e seriedade, de
conhecimento legítimo, de “verdades”. Precisamos, então, refletir sobre as ações
dos “curadores” do MAO.

2.1.2 O curador do MAO: um artista?

Sonia Salcedo Castillo narra em seu livro Cenário da arquitetura da arte,


as relações entre a arte, o espaço expositivo e a arquitetura nos séculos XIX e
XX, dedicando-se a analisar os impactos das dinâmicas da produção artística na
composição dos espaços de exposição. Discorrendo sobre a efervescência
artística dos anos 1960-70, ela afirma que teria havido uma rejeição à lógica
museal tradicional como consequência do questionamento do sistema da arte
institucionalizado. A partir disso, teriam se criado novas direções para as
concepções expositivas (CASTILLO, 2008, p. 220), porque as formas de
montagem precedentes não dariam conta de acolher essa nova produção
artística.
Como consequência, teria havido uma necessária mudança no status do
curador, agora compreendido como idealizador de um produto artístico, de forma
que “passou a assumir a responsabilidade de agenciar a compreensão do
público a respeito de uma produção” (CASTILLO, 2008, p. 219), uma vez que a
64

exposição deveria evocar “antes a ideia e não o objeto, e convocando mais a


participação do que a contemplação do espectador” (CASTILLO, 2008, p 220).
Nesse sentido, “a exposição parecia configurar-se numa forma de representação
tão artística quanto a própria arte” (CASTILLO, 2008, p. 218). Como se vê,
atribui-se ao curador um papel de protagonismo, quase uma dependência, como
se sem a sua interferência constituidora do espaço, o conteúdo das obras a
serem expostas se tornasse inacessível ou, ao menos, não totalmente
contemplado.
Em seu trabalho de doutoramento, Marília Xavier Cury discute a
comunicação museológica a partir da análise de modelos de comunicação,
começando pelo denominado condutivista ou linear, no qual “o museu é o
gerador de informação − o transmissor codifica a mensagem transmitida pelo
meio que, ao chegar ao cérebro do visitante, é compreendida” (CURY, 2005a, p.
61). Ou seja, a comunicação é linear e unidirecional, em que o museu é ativo; o
visitante, receptor passivo; e os objetos expostos, o meio de comunicação,
aliados aos recursos secundários (legendas, fotografias).
Nesse modo de operação, os curadores seriam como “sábios”,
responsáveis pela criação de narrativas, baseadas em seus conhecimentos
especializados a respeito das coleções, e que dariam origem à exposição. Se
voltarmos a realidade analisada por Castillo, os curadores seriam aqueles
capazes de criar um espaço condizente com a produção artística a ser exposta.
Por mais que Castillo tenha identificado uma inovação na forma de expor,
pelo raciocínio de Cury não teria havido uma transformação substancial, na
medida em que se concebe ainda uma comunicação linear dominada pelo
museu por meio de seu curador.
Como talvez se tenha notado até aqui, evitamos, quando da narrativa e
análise sobre o MAO, o uso da palavra “curador”, justamente por conta de seu
entendimento enquanto “sábio” especialista. Diferentemente de exposições que
são montadas em museus já existentes, que contém em seu organograma uma
série de curadores especializados, de cujas pesquisas serão escolhidos os
temas para as exposições (como acontece, por exemplo, em museus
universitários), a exposição do Museu de Artes e Ofícios nasceu com a própria
instituição. Por conta disso, não havia na gestação do museu um especialista
naquele acervo e / ou no período histórico a que ele remete. Sendo assim, quem
65

seria o curador do MAO? Quem foi o “sábio” que com sua erudição conduziu os
trabalhos da exposição? No nosso entender, nessa concepção de curador, ele
não existiu.
Ressaltamos que Marília Cury criticou a figura do curador dentro deste
modelo linear porque ela implica uma supervalorização de seu papel, em
detrimento de outros, de forma que a exposição se torna, simplesmente, o
resultado de sua erudição estampada na parede (CURY, 2005a, p. 66). Nesse
sentido, não estamos propondo aqui que teria sido necessário um curador
especialista para tomar todas as decisões autoritariamente. O que apontamos é
que a não existência de um especialista, que trabalhe em conjunto com os
demais integrantes da equipe (também eles especialistas em suas funções), se
configura como um problema estrutural na formulação da exposição.
Considerando que apresentamos no capítulo 1 o historiador Nicolau
Sevcenko como o consultor em História, poderia conjecturar-se se não seria ele
o curador.
Nicolau Sevcenko formou-se historiador no Departamento de História da
Universidade de São Paulo, em que foi posteriormente professor de História
Contemporânea e da Cultura. Estudioso do século XX, dedicou-se às áreas da
literatura, do urbanismo e das relações entre História, cultura e tecnologia 42.
Como se vê, Sevcenko não era um estudioso da História do Trabalho e nem do
período a que o acervo do MAO se refere. Enquanto professor titular e
historiador experiente, evidentemente sua competência é indiscutível e suas
contribuições não foram aleatórias ou supérfluas. Ao contrário, suas colocações
em reuniões nos parecem, a partir da leitura das atas, muito inteligentes,
coerentes e pertinentes. O mesmo pode se dizer de sua Proposta de Consultoria
na área de História43. Além disso, por ser um grande nome da historiografia
brasileira contemporânea, certamente sua associação traria prestígio ao projeto.
Entretanto, é fato que havia outros historiadores no cenário nacional em
melhores condições de contribuir do que ele, por terem seguido trajetórias
acadêmicas mais próximas aos temas do museu.

42 Informações coletadas na Plataforma Lattes, acesso em 05 de fevereiro de 2018, e na


entrevista concedida à José Geraldo Vinci de Moraes (MORAES, 2002, p. 335- 362)
43 Documentação não publicada, anexada ao Relatório de atividades da Expomus, gentilmente

cedido por Maria Cristina Bruno para esta pesquisa


66

De qualquer forma, ainda que o historiador escolhido fosse especialista na


área, não poderíamos considerá-lo o curador que concentra as decisões
legitimadas pela sua erudição, como descreveu Cury, porque o MAO nunca se
apresentou como um museu de História. Assim sendo, acreditamos que, neste
sentido que associa a ideia de curador à erudição, o MAO não teve um curador
em sua gestação.
Não sendo Sevcenko, quem seria? A contribuição de Castillo se mostra
interessante em nossa busca por essa resposta porque nos recupera o momento
da história das exposições em que se passou a considerar o curador um artista
criador. Castillo ambientou essa atribuição de sentido como tendo surgido nos
anos 1960-70 no campo das artes, entretanto acreditamos que essa ideia se
expandiu para os demais campos, e é válida para a compreensão do processo
que aqui analisamos.
Lisbeth Gonçalves fornece diagnóstico semelhante. Nos últimos 30 anos
do século XX, segundo ela, “nasce uma nova estética da exposição, em cuja
construção o curador assume um papel que vai muito além da reunião de um
conjunto de telas, esculturas, objetos ou instalações” (2004, p. 41). Ela observa
que a exposição, enquanto “forma artística”, “converte-se em uma criação
artística em si mesma por meio da sua eloquência estética” (2004, p. 41). Nesse
sentido, o curador passa então a ser entendido como também ele um artista.
Cury, indo além, compreende que houve um processo de “transformação”
do designer (e não só do curador) em um artista, enquanto uma consequência
do modelo conducionista de comunicação, num movimento que estende a
autoridade do curador (“sábio”) ao designer. Ela traz a percepção de um destes
designers, Belcher, convencido de que recai sobre ele todo o poder de
determinar o uso que os visitantes farão da exposição:

As exibições, ainda que planejadas para um propósito,


permanecem apesar disso uma forma de arte plástica. Como tal,
elas podem ser talhadas por seus criadores para obtenção de
certas respostas da parte dos visitantes (BELCHER, 1992, p.
654-655 apud CURYa, p. 67, apud)

Se entendermos o curador e/ou o designer como um artista que cria um


produto visual quando elabora uma exposição, ou, melhor dito, se percebemos
67

que foi atribuído a ele esse sentido, então podemos dizer que houve um curador
na elaboração do MAO, a saber, o arquiteto Pierre Catel44.
Como enunciamos no capítulo 1, os desentendimentos com Catel
parecem ter sido muito significativos para a decisão da equipe da Expomus de
interromper sua participação na montagem do MAO.
Além disso, a exposição, enquanto resultado estético, é bastante
característica, como discutiremos à frente, da tradição expográfica dos
ecomuseus franceses, que o arquiteto tinha como referência. Assim, fica
fortemente sugerido que a exposição de longa-duração é, em grande medida,
resultado das opções plásticas adotadas por ele.
Outro aspecto revelador da importância atribuída a Catel pelo MAO é a
referência a seu nome em comunicações oficiais. Em três notícias da
inauguração do Museu, do site do Ministério da Cultura e dos jornais O Tempo e
Folha de S. Paulo, informa-se que o projeto “era” dele. Na notícia publicada no
site do ICFG em comemoração aos dois anos de inauguração do MAO,
novamente seu nome aparece enquanto projetista45. Entendemos que esse
reforço da participação do francês promove uma valorização do museu graças à
atuação dele enquanto museógrafo, num processo próximo ao que pontuamos
no capítulo 1: arquitetos de renome são convidados para a construção de
museus de arquitetura espetacular, especialmente em regiões às quais se
pretende dar novo uso e significado, trazendo visibilidade à cidade. O uso da
imagem de Pierre Catel no MAO parece ter efeito análogo, no âmbito da
formulação dos espaços interiores.

44 Como anunciamos na Introdução, uma grande parcela temporal do processo de implantação


do MAO não foi contemplada nesta dissertação, em que recuperamos os projetos originais do
período em que a Expomus encabeçou o projeto e a exposição tal como estava em 2017. Assim,
ainda que saibamos da participação de outros profissionais em processos curatoriais do MAO,
não temos documentação suficiente para inclui-los em nossa análise.
45 Notícia do jornal O tempo em 13/12/2005, acesso em 26/05/2018, disponível em:

https://www.otempo.com.br/divers%C3%A3o/magazine/museu-de-artes-e-of%C3%ADcios-
%C3%A9-inaugurado-1.328697
Notícia publicada na Folha de S. Paulo em 08/12/2005, acesso em 26/05/2018, disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0812200509.htm
Texto publicado no site do ICFG em 27/12/2007, acesso em 26/05/2018, disponível em:
http://icfg.org.br/pt/noticias.asp%3Fopc=not&id=66&pg=4.html
68

2.2 Curadoria e expografia: o espaço, os recursos e as soluções


expográficas na construção da comunicação

Jean Davallon entende a exposição museológica como uma “situação de


comunicação” e propõe a comparação com o cinema para explicar esse
conceito:

Assim como no cinema, todos os elementos materiais que


percebemos, lemos, reconhecemos, decupamos e combinamos
nos permitem aproveitar e reconstituir o conteúdo do filme, da
mesma maneira a materialidade própria da exposição, na medida
em que esta materialidade está formalmente organizada, nos
leva a aproveitar o “conteúdo” da exposição: o que ela nos diz
(DAVALLON, 1999, p. 49, tradução nossa)

Há uma definição corrente de comunicação que a entende como o envio


de uma mensagem, produzida por um emissor, transmitida por um meio e
decodificada por um receptor, o que Marília Cury denominou de modelo linear
condutivista, como vimos. Não entendendo essa compreensão como suficiente,
Davallon propõe que é preciso uma definição que considere a comunicação
como um processo muito mais aberto, que priorize os momentos de produção e
recepção mais do que a mensagem em si. Uma compreensão de comunicação
deve levar em conta, portanto, que o visitante participa na produção de
significados, e ultrapassa a ideia de que a exposição se reduz ao uso de um
código. A comunicação é pensada, então, enquanto uma situação que coloca em
relação esses dois atores, um que produz e o outro que interpreta, operação
mais complexa do que codificar e decodificar. (DAVALLON, 1999, p. 120)
Pensamos, em concordância, a exposição como uma situação, o que
amplia nossa percepção, pois implica que ela se componha pela materialidade
dos objetos, mas igualmente pela forma como foram expostos, os recursos de
apoio que estão próximos, as cores que foram utilizadas; significa ainda ter em
mente – sobretudo no museu de que tratamos aqui, alocado em antigas
plataformas e fortemente sujeito a variação da luz natural –, que a exposição
será diferente num dia ensolarado ou chuvoso, que a experiência do visitante
pode ser interferida (ou não) pela passagem do trem de carga. Enquanto
situação de comunicação, a exposição acontece de fato quando está sendo
69

visitada, ainda que materialmente permaneça lá quando os funcionários apagam


as luzes e fecham as portas no fim do dia.
Esta dissertação, como se sabe, pretende analisar uma exposição.
Porém, observá-la verdadeiramente enquanto situação demandaria conhecer a
participação dos diferentes públicos, agentes que são na constituição da
exposição como situação, o que não fizemos aqui por limitação de tempo e
proposta. Para Davallon, “o significado da exposição depende da integração da
dinâmica de visita no programa de atividade do visitante”, entendendo “programa
de atividade” não como um “projeto consciente por parte do visitante, mas
somente a lógica de ação em que ele está engajado” (2010, p. 27). Ou seja, a
postura do visitante perante a exposição está associada a uma enormidade de
variáveis que dependem de sua experiência, mas também de suas vontades e
expectativas em relação àquela visita naquele dia em específico, o que nos
demandaria uma metodologia diferente de trabalho46.
Sendo possível aqui, então, apenas supor a parte que cabe ao visitante
na construção dessa situação de comunicação, nos dedicamos até agora a
observar, sobretudo, os conteúdos mobilizados pelo museu. Tentaremos seguir
analisando os elementos relativos à forma e ao espaço, que se constituem como
importantes variáveis na construção da exposição enquanto materialidade e
situação, no que cabe à instituição.
Os aspectos físicos da apresentação das obras ou objetos numa
exposição tem também sua agência. O tamanho do espaço entre um objeto e
outro, a ordem de apresentação deles segundo o percurso, a existência de
diversas obras próximas ou grandes espaços vazios entre uma e outra, enfim,
essas condições se configuram enquanto conjunto de apresentação e instauram
um “sentido pré-determinado” (VINÇON, 1999, p. 25), ou, ao menos, sugerem
aberturas possíveis na apreensão da exposição. E esses sentidos que cada
espaço sugere por sua configuração implicam em responsabilidades por parte de
seus idealizadores. Como apontado por Vinçon:

Não apenas os meios de apresentação não são nunca neutros,


como eles têm ainda uma espessura material: o espaço

46 Estudos de recepção são possíveis, desejáveis e necessários para que entendamos este outro
sujeito ativo na construção da exposição enquanto experiência e situação, que é o público
visitante. Não é esta nossa proposta aqui, porém, como foi explicitado na Introdução desta
dissertação.
70

(intervalo entre as obras, determinação das distâncias e das


alturas etc), o fundo (sua natureza sólida ou móvel, sua cor, sua
matéria, sua textura, sua luminosidade relativa a iluminação da
obra), os elementos transicionais através da obra, do quadro
tradicional a função de contextualização imanente, do
enquadramento com o objetivo estético ou protetivo (vidro ou
outro), o tempo (incitar discretamente a permanecer longamente
ou não diante de uma obra), o lugar (seu prestígio ou sua
estranheza, o acesso em função de sua localização geográfica,
etc), sua espetacularização (inevitável). Para cada um desses
estados da apresentação efetiva, escolhas se impõem. E cada
escolha é decisão. A responsabilidade na implementação de
uma obra se realiza nas decisões sempre em relação com certas
características estéticas e materiais da obra. (VINÇON,1999, p.
29, tradução e grifo nosso).

Marília Xavier Cury trabalha sob perspectiva semelhante. Fortemente


convencida da autonomia do público em fazer uso do espaço da exposição, não
retira do museu a responsabilidade na construção da exposição enquanto
“situação de comunicação” (para falarmos com Davallon):

Dois outros elementos fundamentais da construção da


experiência do público são a apropriação do espaço físico e o
desenho da exposição (sua visualidade) associados ao uso de
outros recursos sensoriais. A elaboração espacial associada a
visualidade da exposição são momentos chaves no processo de
concepção, pois são questões fundamentais da experiência do
visitante. A maneira como dispomos os objetos no espaço é uma
das determinantes da interação. A maneira como visitante circula
– caminha – no espaço expositivo é pré-definida (mas não
impositiva) – mesmo quando o circuito é de livre escolha - pelo
museu e corresponde a uma forma de apropriação do
conhecimento. (...) O desenho (design) da exposição é um forte
elemento de atratividade e assim como a escolha do tema, dos
objetos e da organização espacial, é variável que influencia a
experiência do público” (CURY, 2005b, p. 46-47, grifo nosso)

Como Cury e Vinçon, compreendemos que todo e qualquer detalhe que


componha uma exposição é fruto de uma decisão e é produtor de significados,
portanto a produção discursiva com que os visitantes irão se relacionar é de
responsabilidade de quem tomou tais decisões. Não se trata de um “sequestro”
de sentidos, em que a exposição envia uma mensagem com um significado
absoluto que caberá ao visitante simplesmente absorver; trata-se de
reconhecermos que é com as escolhas feitas pela equipe de curadoria que os
visitantes irão se relacionar e “negociar” a produção de sentidos.
71

Nesse sentido, entendemos que a comunicação museal deve pautar-se


por equilíbrio entre seus polos. O museu e seus curadores-pesquisadores
precisam apresentar ao público exposições baseadas em conhecimentos
produzidos e que informem, problematizem, suscitem reflexões, questionem os
sensos comuns e, assim, contribuam para uma reflexão a respeito da
materialidade e das relações humanas. Porém, deve-se levar sempre em conta
que não é possível dominar completamente, nem mesmo com a mais pirotécnica
expografia, a recepção e os usos que cada visitante fará daquele conjunto
apresentado. Em resumo, defender que o público é ativo na significação de uma
exposição não implica retirar o papel do museu enquanto produtor de
conhecimentos, nem assumir que o público “faz o que quer”.
Um aspecto importante da constituição das exposições atualmente, ao
qual nos detemos aqui muitas vezes com detalhamento, é a produção textual
que a exposição disponibiliza aos visitantes.
Para Jean Davallon, os textos atuam na exposição como componentes
cuja tarefa é realizar uma parte do programa, ou seja, se configuram como uma
parte do conteúdo, que se articula aos outros componentes, constituindo o
conteúdo geral da exposição. Dessa forma, a produção do sentido geral da
exposição se dá na articulação dos sentidos de tudo que está escrito nos textos,
legendas e painéis aos sentidos dos objetos expostos e aos da organização
espacial (DAVALLON, 1999, p. 49-53). Para ele, a forma de um painel, sua
localização ou sua tipografia impactam na informação transmitida pelo texto
(DAVALLON, 1999, p. 51), com o que estamos plenamente de acordo.
Como se sabe, as sociedades ocidentais atribuem uma grande
importância à palavra – e por extensão ao texto – como criadora e
comunicadora, o que parece ter se intensificado com a expectativa de
universalização da alfabetização desde o século XIX. A participação da palavra
escrita em exposições contemporâneas se mostra, portanto, imprescindível,
sobretudo se levarmos em conta que a observação crítica da cultura material
como fonte de informação e objeto de estudo e reflexão é algo ainda bastante
restrito aos eruditos ou aos pesquisadores acadêmicos. Ainda assim, observa-
72

se47 alguma resistência do público em relação a textos longos e numerosos,


porque há alguma percepção, cremos, de que a visita ao museu é uma
experiência para o olhar, e não necessariamente para o ler. Nesse sentido, a
forma como cada texto é apresentado ao público de fato interferirá em suas
“chances” de ser lido e de, assim, atuar junto aos objetos na produção de
significados.
Não se pode perder de vista, contudo, que a exposição museológica é por
excelência um lugar de observação e, com sorte, da reflexão sobre a
materialidade dos objetos. Então, o papel do texto pode ser de apoio,
informação, orientação, complementação, problematização; mas é inigualável ao
papel dos objetos, eles sim protagonistas como desencadeadores da
possibilidade de reflexão. Nesta perspectiva, as produções textuais podem atuar,
inclusive, no direcionamento do olhar do visitante para os objetos e devem evitar
abordar realidades externas às problemáticas trazidas pelos objetos, porque não
se pode constituir uma competição entre texto e objeto.
Davallon contribui nessa reflexão:

a reunião de objetos em um lugar aberto ao público não é o


bastante para tornar esses objetos compreensíveis. É preciso
uma apresentação e um ambiente que façam sentido. Por outro
lado, a capacidade de fazer sentido não é diretamente
proporcional a quantidade de textos presentes nos painéis e
catálogos, ou nos discursos de animação. O sentido advém
também pela disposição, a mise en scène, o recurso a
esquemas, a fotografias e outros modos visuais ou espaciais
(DAVALLON, 1999, p. 87).

Acompanhamos o sociólogo na argumentação de que não é uma grande


quantidade de recursos de apoio que irá garantir a produção de sentidos, e
também de que a simples reunião de objetos não se constitui como proposta
expositiva satisfatória. Porém, temos leve discordância quanto a “tornar esses
objetos compreensíveis”, porque a relação com um objeto não se dá numa
polaridade “entendeu versus não entendeu”, visto que há algumas entradas
possíveis de compreensão e relação. Concordamos com a consideração de
Véron e Levasseur sobre o ato de expor:

47Esta percepção não está aqui ancorada em bibliografia especializada, mas na experiência da
pesquisadora no trabalho com o público de museus em diferentes instituições.
73

Expor não é simplesmente dar acesso a um sentido que seria


próprio, de maneira autônoma, ao que expomos; expor é,
sempre e inevitavelmente, propor, sobre o que mostramos, um
sentido particular (VÉRON; LEVASSEUR, p. 21, grifo dos
autores, tradução nossa).

Entendemos, então, que a mise en scène dá forma à interpretação proposta pela


curadoria e, neste sentido, vai ser constitutiva da relação que o visitante fará
com aquele conteúdo, mas há outras propostas possíveis, de forma que se
reforça a necessidade de seguir a sugestão da nossa epígrafe e explicitar ao
público que foram feitas escolhas.
Davallon afirma que “quando uma exposição pretende atender a uma
estratégia de comunicação, é a sua organização interna que vai justamente
antecipar o comportamento do visitante” (1999, p. 28). Damos um passo à frente,
porque acreditamos que toda exposição atende a uma estratégia de
comunicação, correspondente à interpretação e proposta que se fez para
aqueles objetos e conteúdos; mas sem dúvida sua organização interna sugere
comportamentos ao visitante.
Se tomarmos os textos do MAO no âmbito dessa discussão, é possível
perceber que a sua forma de apresentação é muito determinante na sua
possibilidade de ser lido ou não e, assim, atuar no seu papel de coautor na
produção de significados. De forma geral, os textos são apresentados em
painéis de mesmo formato, seguindo também o mesmo padrão de cores. Em
muitos casos, a disposição do painel também é muito semelhante: colocado de
forma horizontal, paralelo ao chão, cobertos por vidro, como vemos na figura 13
Essa posição do texto, a depender da altura do visitante, exigirá que ele projete
o corpo levemente para frente, sobre o texto, para conseguir ler, o que não é
possível, por exemplo, para um visitante cadeirante ou de baixa estatura.
Na figura 14, vemos um painel do núcleo do Tanoeiro, em que fica
explícito o problema criado pela refletância que o vidro promove. Os conteúdos
desse texto poderiam ser transformadores para algum visitante, lançando luz
sobre algum aspecto dos objetos expostos ou do tema em questão. Porém, por
esta disposição, o texto se coloca inacessível, ainda que o visitante tenha
interesse e disposição em lê-lo. Citamos aqui um exemplo, mas a situação da
refletância acontece em diversos núcleos, comprometendo a participação dos
74

textos na composição daqueles conteúdos. Dada a circunstância de que muitos


núcleos estão localizados nas plataformas, que se separaram do trilho (portanto
da área externa) por um vidro levemente escurecido, a luminosidade nestas
áreas é muito alta, de forma que era evidente que isso iria acontecer. Somado a
isso, em se tratando de painéis plotados e não de objetos do acervo, sujeitos às
determinações dos procedimentos técnicos de conservação, a opção por cobri-
los com vidros não tem justificativa.
A exposição se organiza na forma de núcleos de uma mesma estrutura
base, em que uma série de mobiliários é utilizada a depender da especificidade
de cada ofício, mas de forma que se cria a sensação de um conjunto. Há
também uma paleta de cores utilizada em todos os recursos textuais da
exposição, composta por branco, preto, verde, cinza claro; detalhes em laranja
no prédio A e em verde no prédio B. A paleta de cores oferece contraste muito
baixo, dificultando a leitura, já comprometida pelo posicionamento dos painéis.
Os textos são escritos em branco, em fundo cinza esverdeado, como já vimos
em algumas figuras. Como Waldisa Guarnieri, não entendemos o porquê dessa
insistência dos museus brasileiros em cores neutras – que além de tudo se
mostram nada acessíveis – e acreditamos que cores mais vivas proporcionariam
experiências mais agradáveis aos visitantes. A museóloga afirma, e
concordamos, que:

Dizemos, gritamos e cantamos que somos um país tropical;


vemos, nas pinturas das casas e nos trajes do povo, o gosto
pelas cores vivas... Sabemos que os tons vermelhos, os verdes e
os azuis fortes são os que a retina humana guarda por mais
tempo e insistimos em cores neutras, falsamente nobres e
dignas (GUARNIERI, 2010, p. 141).

Um museu que pretende ser “um lugar de encontro do trabalhador


consigo mesmo” poderia levar em conta todo o colorido da cultura popular.
Rivière, porém, acreditava que a modificação de cores induz o sentimento de
que se mudou de tema, e portanto deveríamos evitar mudanças de cor por
razões puramente decorativas (MUSEOLOGIE…, 1989, p. 276). Em se tratando
de uma grande quantidade de profissões representadas, entendemos que há,
sim, mudanças de tema que justificariam a mudança na paleta segundo os
critérios de Rivière. Entretanto, se admitirmos como válida nossa hipótese que o
trabalho de Catel é muito inspirado nas sugestões de Rivière, a não mudança de
75

cores atua como um elemento uniformizador entre os temas, criando uma


linearidade na narrativa visual que não tem mudanças, portanto não sugere
diferenças.

Figura 13 – Ofícios ambulantes (A2), Núcleo do Mascate

Fonte: fotografia da autora, 2017

Figura 14 – Ofícios da madeira (B4), Núcleo do Tanoeiro

Fonte: fotografia da autora, 2017

A sensação de conjunto visual proporcionada pela repetição do mobiliário


e da estética da exposição promovem efeito semelhante. Essa opção curatorial
nos lembra a interferência de um curador do MoMA, William Rubin, que retirou
as molduras originais das pinturas e as substituiu por outras porque,

sendo conservadas as antigas molduras ornamentadas, teria sido


impossível para os quadros estarem dispostos uns diante dos
outros, estabelecendo-se boa relação formal. As antigas molduras
eram muito diferentes entre si e teriam impedido um diálogo
76

formal que, com a troca, foi valorizado (GONÇALVES, 2004, p.


55)

Com a modificação das molduras, negou-se toda circunstância ou


qualidade particular de cada uma em relação a sua obra, relação esta que era
constitutiva da trajetória e da própria visualidade da pintura diante do
observador.
A criação da estrutura para os núcleos do MAO atua de forma parecida:
expondo da mesma forma diferentes profissões, cria-se uma identidade visual
harmônica, um perfeito diálogo formal. Para Rivière, as palavras chave para a
definição dos mobiliários expositivos deveriam ser “modularidade e flexibilidade”,
de forma que “a definição de uma norma modular facilitará a fabricação de um
mobiliário uniforme e harmonioso: ela diminuirá os custos e permitirá uma
reiteração simplificada” (MUSEOLOGIE.. 1989, p. 276). No caso do MAO,
todavia, acaba-se por igualar sob a mesma lógica de apresentação plástica, e
sob termo “ofício”, uma enormidade de atividades vivenciadas de formas
estruturalmente muito diversas, como temos procurado demonstrar nesta
dissertação.

Outra questão a respeito das escolhas curatoriais do MAO que se impõe


na reflexão museológica sobre a instituição é: a que tipologia de museu ela
pertence? Elencamos, ao longo da pesquisa, algumas possibilidades de
resposta para essa pergunta, que discutiremos a seguir a partir da análise de
alguns núcleos expográficos que se mostraram emblemáticos.
A documentação e as muitas referências dos profissionais envolvidos na
concepção do MAO à nova Museologia e, especialmente, aos ecomuseus,
poderia sugerir que a instituição se aproximaria dessa tipologia de museu. Essa
possibilidade, porém, foi descartada logo de início, visto que o MAO
definitivamente não é um museu que se construiu com ou por uma comunidade
para representar a si própria48.

48
Estamos cientes de que os ecomuseus transcendem a experiência francesa, cuja
definição não basta para a compreensão deste fenômeno no Brasil. Este tema foi
abordado com vastidão e detalhe na dissertação de mestrado de Suzy da Silva Santos:
Ecomuseus e Museus Comunitários no Brasil: estudo exploratório de possibilidades
museológicas, defendida no PPGMus-USP em 2017. Ainda assim, como o referencial
de ecomuseu utilizado no MAO foi o francês, seguimos por este raciocínio.
77

Figura 15 – Ofícios da Madeira (B4)

Fonte: fotografia da autora, 2017

Figura 17 – Ofícios da Madeira (B4)


Figura 16 – Ofícios da Madeira (B4)

Fotografia da autora, 2017

Fotografia da autora, 2017

Descartada essa ideia, chegamos a hipótese de se tratar de um museu


tipológico. Não são poucos os núcleos em que a opção curatorial foi pela
78

exposição de diversos objetos de um mesmo tipo. De início, citamos como o


exemplo a sala em que estão expostos objetos relacionados aos Ofícios da
Madeira (Figura 15). Em uma das vitrines, verificamos a presença de quatorze
cepos que não apresentam grandes diferenças formais entre si e, ao lado, um
grande baú em que está mais uma porção deles (Figuras 16 e 17). A sugestão
que fica a partir do baú é de que estariam representados como se estivessem
em uso pelo marceneiro. Vale acrescentar que esse núcleo (Figura 15)
apresenta-se de forma caótica, com muitos objetos grandes, afastados de suas
legendas, criando a sensação de um antiquário. Apesar de algumas vitrines
tipológicas, há, portanto, outra proposta curatorial agente ali também.
Outro núcleo exemplar da opção pela apresentação tipológica é o
dedicado ao Comerciante, nos Ofícios do Comércio, em que foram expostas,
basicamente, balanças, como vemos nas Figuras 18 e 19. São balanças de
tamanhos e usos bastante distintos, mas pertencem a uma mesma categoria de
objetos. Há, inclusive, uma balança de pesar escravos, posicionada próxima às
demais, mobilização que abordaremos no capítulo 3. Os textos que
acompanham esse núcleo apresentam tabelas de equivalências de medidas e o
estabelecimento de padrões ao longo da história, junto a uma fotografia de uma
criança sendo pesada por uma médica. O texto de um dos painéis principais é
uma citação da obra Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, em que o autor se
refere a um peixeiro manipulando a balança de pesar seu pescado. No outro
painel, a transcrição de uma cantiga de remeiro do rio São Francisco, em que se
fala sobre a barca de um marinheiro, é acompanhada da fotografia de um jovem
que carrega um grande peso num balaio sobre a cabeça. Há ainda outro painel
(Figura 20), em que vemos a fotografia de uma senhora sorridente que pesa um
produto, acompanhada de um texto sobre a balança, sua história desde os
egípcios e seus predicados, e a importância que ela tem no exercício de
profissões como a do farmacêutico.
Fica evidente a partir desta descrição que o protagonismo desse núcleo
foi completamente atribuído à balança, e não ao comerciante, suposto
homenageado. Além da exposição de diversas unidades, todo recurso de apoio
foi desenvolvido em função da balança, o que acaba por ser um refinamento da
proposta tipológica. O sujeito comerciante foi esquecido, assunto a que
voltaremos em breve.
Figura 18 – Vitrine dos Ofícios do 79
Comércio (A3), Núcleo do
Comerciante

Figura 19 – Vitrine dos Ofícios do Comércio (A3),


Núcleo do Comerciante

Fonte: fotografia da autora,


2017

Fonte: fotografia da autora, 2017

Figura 20 – Painel dos Ofícios do Comércio (A3)

Fonte: fotografia da autora, 2017


80

Um último exemplo emblemático da opção pela apresentação dos objetos


em função de suas categorias é a exposição de uma ostensiva quantidade de
fôrmas de queijo, como vemos nas Figuras 21 e 22. Localizado no setor dos
Ofícios da conservação e transformação dos alimentos, há um grande núcleo
dedicado às transformações do leite, em que encontramos objetos como
batedores de manteiga, além de manequins, mas, sobretudo, formas de queijo.
O material audiovisual apresentado neste núcleo é extenso, dedicado a
apresentação dos processos produtivos contemporâneos de queijos artesanais,
as diferenças entre queijos de diferentes regiões.
Sendo o estado das Minas Gerais um tradicional e respeitado produtor de
queijo, louvamos a iniciativa de fazer desse tema uma preocupação do museu.
Sabemos, também, graças à visita à reserva técnica que realizamos em 2015,
que a coleção de formas de queijo é ainda maior do que a exposta. Porém,
questionamos a necessidade da exposição de tantos exemplares semelhantes,
em detrimento de outros objetos e, sobretudo, de uma problematização destes
artefatos segundo outras inspirações que não sua exposição massiva para
explorar variações formais. Cláudia Martinez fez leitura semelhante ao visitar o
MAO e coloca questionamentos relevantes:

A museóloga que nos acompanhou na visita declarou que


praticamente toda a coleção pertencente ao acervo do Museu
estava em exposição. Isso, em si, não seria uma questão a ser
pensada pela instituição? Por que tudo tem que estar em
evidência em um só tempo e lugar? Ao evidenciar toda a coleção
− e ela é imensa − o Museu não estaria sobrecarregando os
corredores e salas, que, como o próprio Pierre Catel salientou,
não são os de um edifício próprio para a instalação museológica,
daí as adaptações necessárias e realizadas? (MARTINEZ, 2014,
p. 128)

Apesar destes exemplos em que a opção curatorial foi pela apresentação


tipológica, eles não bastam para encaixarmos o MAO na categoria dos museus
tipológicos. Afinal, são muitos os “tipos” representados e, mais importante, eles
vêm acompanhados de muitos outros objetos e propostas expositivas.
81
Figura 21 – Ofícios da Conservação e Transformação dos
alimentos

Fonte: fotografia da autora, 2017

Figura 22 – Ofícios da Conservação e Transformação dos


alimentos

Fonte: fotografia da autora, 2017

Avançando em nossas possíveis respostas para o questionamento sobre


a qual tipologia de museus pertenceria o MAO, seria ele, então, um museu
histórico? Para Ulpiano Bezerra de Meneses,

rigorosamente, todos os museus são históricos, é claro. Dito de


outra forma, o museu tanto pode operar as dimensões de espaço
como de tempo. No entanto, do tempo jamais poderá escapar,
ao menos na sua ação característica, a exposição” (MENESES,
1994, p. 14)
82

O MAO é, claramente, um museu que se refere ao passado por meio da


apresentação de objetos antigos. Segundo o site da instituição49, a coleção foi
iniciada há cerca de 50 anos pelo empresário Flávio Gutierrez, o que já
demonstra certo grau de antiguidade. Porém, não basta a um museu histórico
apresentar “objetos históricos” ou “antigos”. Há que se por em questão, cremos,
a passagem do tempo e as transformações e continuidades vivenciadas pela
sociedade no decorrer desse trânsito temporal. E é preciso, sobretudo, explicitar
recortes, identificando a que passado o museu se refere.
O MAO, todavia, refere-se ao passado de maneira generalista. A
instituição veicula oficialmente que seu acervo contempla objetos oriundos dos
séculos XVIII a XX, recorte bastante alargado. Nas legendas, há sempre o
referencial do século de cada objeto, mas por diversas vezes a aproximação é
também ampla, com a informação “século XVIII / XIX” ou “século XIX / XX”
(Figura 23). Faz-se referência a temporalidades antigas (como a atividade dos
tropeiros no período colonial) e a outras mais recentes (como as atividades de
carpinteiros navais e carranqueiros, que chegaram ao século XX) lado a lado,
reunidas num mesmo grupo de ofícios (no caso, Ofícios do transporte50) sem
qualquer ruído. A escravidão está representada em alguns núcleos 51, mas não
há demarcação temporal de seu início e fim. O tempo, assim, aparece de forma
congelada e genérica: há o “passado”, representado pela exposição, e o
“presente”, vivenciado pelos visitantes e presente em alguns conteúdos
audiovisuais. A passagem do tempo e suas decorrentes transformações não são
a força motriz que guia a narrativa da exposição, de forma que não parece
adequado considerar o MAO um museu histórico.

Buscando ainda categorizar o museu, observamos na exposição uma


tendência em representar processos produtivos. Apesar de assumir para si a
identidade de ser o local “de encontro do trabalhador consigo mesmo”, veiculado
em diversos suportes, o MAO representa em diversos núcleos diferentes

49
Acesso em 15 de setembro de 2015 e em 22 de maio de 2018, disponível em:
http://www.mao.org.br/conheca/implantacao-do-museu/
50 Os Carranqueiros são na verdade parte dos Ofícios da proteção do viajante, mas

estão expostos em frente aos Tropeiros e ao lado dos Carreiros e Carpinteiros navais, e
muito distanciados dos demais núcleos de seu grupo, o que se justifica pela relação de
sua atividade com os barcos.
51
Este tema será discutido no capítulo 3.
83

processos produtivos. Um bom exemplo é o núcleo dedicado ao Mestre de


açúcar, dos Ofícios da Terra (B9). Em exposição temos objetos relacionados às
diferentes etapas da produção do açúcar (Figura 24): tachos, conchas,
escumadeiras, formas de rapadura e formas de pão de açúcar (uma delas
exposta de maneira “flutuante”, conforme vemos na Figura 24). Há também duas
fotografias das formas de rapadura, uma sendo preenchida em que se vê uma
mão inclinando o tacho com o melado, e outra com o melado já seco. Há ainda o
texto que se inicia com a frase: “tirar o doce da cana tem ciência, e muita”, a qual
se segue uma descrição pormenorizada das etapas da produção do açúcar
mascavo e da rapadura, apontando as diferenças. Neste mesmo ambiente, na
parede oposta, há uma televisão que executa repetidamente um pequeno vídeo
em que se narra o processo de plantio e colheita da cana, e posteriormente a
produção da rapadura. Não há vozes humanas no vídeo, apenas cenas das
atividades acontecendo.
Ao lado do Mestre de Açúcar, ainda nos Ofícios da Terra, há o núcleo do
Alambiqueiro, composto basicamente pela exposição de alambiques e por um
texto que inicia relembrando a importância que a cachaça ganhou nas Minas
Gerais devido à dificuldade no acesso a vinhos e licores durante o século XIX, e
segue fazendo uma descrição das etapas de produção da cachaça.
Como se vê, se analisamos a exposição de objetos somada aos
conteúdos dos textos, a grande protagonista neste núcleo é na verdade a cana-
de-açúcar e os processos de seu beneficiamento. Estamos cientes de que nem
todos os visitantes leem todos os textos, e a narrativa sobre o processo é
bastante forte neles. Ainda assim, o módulo conta com o vídeo, que se constitui
como uma sequência de etapas de um processo, e com o núcleo dedicado ao
Lavrador, em frente ao Alambiqueiro e ao lado do Mestre de açúcar. Dessa
forma, a exposição dos objetos e a organização do espaço em função destas
três atividades sugere uma ideia de sequência, de ordem das coisas e
possibilidades que se podem ser feitas a partir da cana-de-açúcar, de forma que
mesmo sem a leitura dos textos, há uma forte sugestão a respeito do processo
produtivo, e não propriamente dos trabalhadores.
84

Figura 23 – Ofícios do Transporte, Núcleo do Tropeiro (A1)

Fonte: Fotografia da autora, 2017

Figura 24 – Ofícios da Terra, Núcleo do Mestre-de-açúcar (B9)

Fonte: Fotografia da autora, 2017

Outro exemplo dessa opção por protagonizar os processos produtivos é,


novamente, o módulo dos Ofícios da cerâmica. O núcleo dedicado ao Oleiro
conta com a fotografia de uma senhora que retira tijolos da forma e os coloca
sobre o chão para secagem ao sol. Há também um painel com a fotografia de
um homem agachado trabalhando o barro, ao lado de um texto explicativo sobre
o processo de produção de telhas. Há outro painel, de conteúdo diferente, em
que se explicita que as técnicas de habitação que utilizam barro ainda são muito
utilizadas no Brasil, não tendo desaparecido graças ao “progresso” (que aparece
entre aspas no texto), seguindo pela descrição do caráter familiar que o trabalho
nas olarias possui em muitos casos; o texto vem acompanhado no painel pela
85

fotografia de uma grande quantidade de tijolos secando ao sol. Os objetos


expostos são: diferentes tipos de telhas, tijolos e molde de tijolos.
No núcleo do Ceramista, analisado acima, há um texto sobre o torno,
como apontamos, ainda que não haja torno exposto ali. Ao lado, porém, há outro
núcleo dedicado aos dois ofícios, em que há torno, formas, prensas para telhas,
as próprias telhas (Figura 25). Ou seja, objetos relacionados ao processo de
produção de objetos de cerâmica. Diferentemente do módulo dos Ofícios da
terra que analisamos, em que as figuras dos trabalhadores desapareceram, os
profissionais estão presentes nos núcleos, mas o maior destaque é dado ao
processo de produção das cerâmicas.

Figura 25 – Ofícios da Cerâmica, Núcleo do Ceramista e Oleiro

Fonte: fotografia da autora, 2017

Figura 26 –Jardim das Energias (B1), Núcleo da Tração animal

Fonte: fotografia da autora, 2017


86

Um último dado dessa atenção aos processos produtivos é a própria


existência do Jardim das Energias (B1), composto por diversos núcleos, muitos
deles alocados dentro do prédio B (e não apenas no Jardim) O Jardim expõe
objetos relacionados a geração de força motriz, organizados em núcleos
denominados Tração animal (Figura 26), Engrenagens (Figuras 27 e 28),
Energia hidráulica, e até Energia humana. Há, pertencente ao grupo Ofícios da
Terra, uma niveladora de solo exposta no jardim e uma debulhadora, exposta na
plataforma do metrô52. Como se vê, é grande a atenção dedicada na exposição a
processos produtivos. Nos casos da energia hidráulica, da tração animal e das
engrenagens, o trabalhador desaparece completamente.
Essa tendência que observamos tem entrado no discurso oficial do
Museu. Sob a gestão do SESI-MG, entidade do Sistema FIEMG (Federação das
Indústrias do Estado de Minas Gerais) desde julho de 2016, recentemente 53, o
museu passou a veicular em seu site oficial uma associação bastante forte à
indústria:

O MAO conta a história de dezenas de atividades profissionais


que deram origem à indústria de transformação em Minas
Gerais. (...) Os objetos e a própria história narrada pelo Museu
remontam às origens dos processos fabris, em sua confluência
com as artes manuais, artesanato, manufatura.

Há, ainda, outra opção curatorial presente no MAO: a reconstituição de


ambientes, a que Rivière chamou de “unidades ecológicas” (1989, p. 278). Por
exemplo, o núcleo dedicado ao Ourives constitui-se como uma oficina, com a
exposição de mesas, materiais de trabalho, estantes, um manequim, que
representaria o trabalhador no exercício de sua atividade. Cria-se como que um
congelamento de um momento, como um flagrante do ourives trabalhando
(Figuras 29 e 30).
Há também a reconstituição de unidades comerciais, como uma botica
(Figura 31) e uma venda de secos e molhados (Figura 32). Porém, apesar de se
tratar de uma atividade comercial, essas reproduções de lojas foram colocadas
no prédio B, enquanto os Ofícios do comércio estão no prédio A. Não há
52 Há outros objetos de enormes proporções também expostos na plataforma, referentes ao
Carpinteiro Naval e ao Carreiro
53 O conteúdo acessado no site em maio de 2018 estava diferente daquele disponível nas visitas

anteriores. O trecho citado aqui estava disponível no acesso de 28/05/2018, em


http://www.mao.org.br/conheca/acervo/
87

contradição, a priori, nessa separação. Entretanto, ela seria melhor


compreendida caso houvesse uma justificativa curatorial visível, o que não
ocorre. Como vimos, no núcleo do comerciante o foco foi dado à balança. Aqui
nas reproduções das lojas não há menção aos trabalhadores, não há conteúdos
de apoio. Há tão somente a rigorosa reconstituição dos ambientes, adequadas à
prescrição de Rivière de que as unidades ecológicas devem ser “reconstituições
onde os objetos serão recolocados escrupulosamente segundo sua organização
original” (MUSEOLOGIE..., 1989, p. 278). Encontramos, então, mais um indício
das filiações teórico-metodológicas de Pierre Catel a seu antigo mestre.

Figura 27 – Jardim das Energias (B1), Núcleo das Engrenagens

Fonte: fotografia da autora, 2017

Figura 28 – Jardim das Energias (B1) Núcleo das Engrenagens

Fonte: fotografia da autora, 2017


88

Figura 29 – Ofícios da Lapidação e


Ourivesaria (B7), Núcleo do Ourives

Figura 30 – Ofícios da Lapidação e Ourivesaria (B7),


Núcleo do Ourives

Fonte: fotografia da autora, 2017

Fonte: fotografia da autora, 2017

Figura 31 – Botica

Fonte: fotografia da autora, 2017


89

Figura 32 – Venda

Fonte: fotografia da autora, 2017

Figura 33 – Exemplo de vitrine Figura 34 – Exemplo de vitrine


orientada por G.H. Rivière orientada por G.H. Rivière

Acompanha a legenda “Vitrine da exposição Acompanhada da legenda: “Parte


La terre et les femmes, em sua organização de uma série tipológica da Galeria
original, datando de 1969, e organizada em de Estudo: os garfos de chifre na
concordância com G. H. Rivière” vitrine dos transportes rurais. Os
objetos são classificados não
segundo critérios geográficos ou
cronológicos, mas morfológicos”

Como vimos, não há resposta para nossa pergunta inicial, que procurava
encerrar a instituição em uma única categoria de museus. Em parte, porque
talvez ela seja uma pergunta inadequada e anacrônica. Em parte, porque a
curadoria do MAO operou segundo uma série de referenciais expográficos
90

criando um formato híbrido. Plasticamente, a exposição do MAO se assemelha


fortemente, nos parece, à tradição inaugurada por Rivière, o “mago das vitrines”,
que:

adota uma museografia do fio de náilon e do fundo preto,


segundo um puritanismo que rejeita absolutamente o manequim,
mas pretende restituir da melhor forma possível, com seus
movimentos no espaço, os usos do objeto (POULOT, 2013, p.
48)

Essa interpretação se constituiu a partir da visível “aplicação” de


orientações dele que encontramos no MAO, e a partir da comparação de
fotografias de trabalhos de Rivière ou de outros profissionais inspirados em suas
práticas, como vemos nas figuras, encontráveis no livro La museologie selon
George Henri Rivière (Figuras 33 e 34).
Todavia, a filiação à tradição dos ecomuseus se valeu na produção do
conceito gerador, como vimos no capítulo 1, e na forma estética de
apresentação dos objetos, mas se perdeu em outros aspectos fundamentais,
como seguiremos tentando demonstrar.

2.3 O “trabalhador” no MAO

“Neste momento estavam revistando a oficina de ourivesaria. O oficial


(...) tinha visto a mesa de trabalho e a prateleira com os frascos de
ácidos e os instrumentos que continuavam no mesmo lugar em que os
deixaram seu dono (...). perguntou astutamente a Aureliano Segundo
se era ourives e ele lhe explicou que aquela tinha sido a oficina do
Coronel Aureliano Buendía. “Ahã”, fez oficial e acendeu a luz e
ordenou uma revista tão minuciosa que não lhes escaparam os dezoito
peixinhos de ouro que tinham ficado sem fundir e que estavam
escondidos atrás dos frascos na vasilha de lata. O oficial os examinou
um por um na mesa de trabalho e então se humanizou por completo.
“Eu gostaria de levar um para mim, se o senhor permite”, disse. “Em
certa época foram uma senha de subversão, mas agora são uma
relíquia”.”
(MÁRQUEZ, 2003 [1967], p. 285)

Os peixinhos de ouro produzidos pelo ourives e revolucionário Coronel


Aureliano Buendía – personagem criado por García Márquez em Cem anos de
solidão – que permaneceram esquecidos na antiga oficina, tornaram-se
“relíquia”. Análogos ao que Pomian (1985, p.71-72) denomina como um
91

semióforo, eles, quando expostos ao olhar do oficial, conectam o mundo do


visível, da materialidade, com o invisível, da memória do artesão que o produziu.
Se não foi por seu trabalho como ourives que Aureliano se tornou célebre, foi
este o vestígio tangível que ele deixou para os pósteros, de forma que sua
produção artesanal é o que, na narrativa de García Márquez, nos lembrava – ao
leitor e ao oficial – de sua condição humana por trás da figura lendária.
A cultura material, então, é vestígio, funcional, memorial ou afetivo que os
homens e mulheres deixam para o futuro, mas ela só possui significado histórico
quando entendida enquanto produto e vetor de relações sociais (MENESES,
1994, p.12) – passadas e/ou presentes. O oficial que se apropria de um peixinho
do Coronel Buendía constrói mais uma camada no artefato, atribuindo a ele mais
um significado, porque os usos contemporâneos que damos aos objetos também
se tornam parte da trajetória deles. Da mesma forma, quando um objeto é
musealizado e exposto, se inaugura um novo capítulo em sua trajetória de
apropriação
O peixinho de Buendía tornou-se relíquia sobretudo por ter pertencido ao
célebre revolucionário. Tal procedimento é, ou foi, recorrente nos acervos de
museus. Como se sabe, a História, enquanto disciplina, no século XIX, era
fortemente marcada pela narrativa de grandes homens, feitos e acontecimentos.
Os vestígios associados a essas personalidades tornaram-se relíquias, pela
referência feita a eles, e foram armazenados nos acervos dos museus,
sobretudo a partir da delineação dos museus enquanto depositários da história
nacional, também no século XIX, e muitas vezes expostas em tom de
homenagem.
José Neves Bittencourt recupera esse processo, identificando que os
objetos presentes num museu histórico são percebidos enquanto “históricos”, o
que cria por oposição a ideia de que há objetos “não-históricos”, e estes seriam
aqueles ausentes do museu. O autor prossegue “por conseguinte, a existência
de objetos históricos e não históricos qualifica o possuidor do objeto, por denotar
a existência de vultos históricos que os objetos rememoram” (2003, p. 160).
Nesse sentido, a entrada de um objeto para uma coleção de museu estava
condicionada a três fatores: primeiro, a antiguidade do objeto, de forma que sua
legitimação estaria dada pelo tempo, mas também por outras dimensões
intrínsecas a ele (como materiais nobres, ornamentação); segundo, a origem do
92

item, ou seja, quem o havia possuído ou a que evento estava associado; por fim,
a identidade do doador do objeto, num regime de trocas simbólicas operado pela
associação da própria memória a memória do museu, e portanto da nação.
Nosso exemplo do peixinho do Coronel Buendía preencheria dois dos três os
requisitos, sendo, portanto, legítimo enquanto “objeto histórico”: era antigo e de
estilo bastante característico, e associado, na fala do oficial, ao significado que
operava no passado (“Em certa época foram uma senha de subversão”); e havia
sido produzido por um “grande personagem”.
Assim como os peixinhos, encontrados abandonados na oficina, o acervo
do Museu de Artes e Ofícios encontrava-se abandonado antes de ser coletado:

Meu pai foi colecionador de arte antiga brasileira. Eu o


acompanhava nas viagens pelo interior do Brasil e nessas
viagens ele sempre me dizia que era preciso preservar,
restaurar, guardar as peças que ficavam nas cozinhas e nos
quintais porque elas eram tão importantes quanto as peças que
ficavam na sala de visitas. Nós viajávamos pelo interior,
chegávamos nas fazendas de pequenas cidades e ele sempre
procurava saber onde é que um córrego, uma árvore mais
antiga, uma jabuticabeira velha, uma mangueira, e realmente ali
sempre tinha o resto de uma construção, uma pedra de mó, uma
parte do que um dia foi uma moenda. E ele ficava muito feliz,
juntava aquilo, punha em cima de um caminhão e levava com
ele. E me dizia que aquilo era uma parte importante da nossa
história, que ele estava conseguindo preservar. Sem saber, ele
estava plantando a semente do que vem a ser o primeiro Museu
de Artes e Ofícios desse país (GUTIERREZ, em vídeo)54

Também todo ele produzido por trabalhadores manuais, o acervo do


MAO, porém, não está associado a nenhuma autoria, menos ainda uma autoria
célebre e lendária; ao contrário, é de produção anônima. Entretanto, assim como
o Coronel Aureliano já era naquela altura da história uma figura distante, sobre a
qual pairavam muitas narrativas, temos a interpretação de que paira no MAO
uma figura igualmente etérea, pouco corporificada e, não obstante ser em muitos
sentidos oposta ao do lendário coronel, guarda com ele uma aproximação: é o
“trabalhador”, anônimo mas unificado num personagem unitário, quase sendo
esse o “nome” de um personagem.
Um primeiro indício que sugere ser o “trabalhador” uma figura que paira é
a recorrência de uma busca por representar o “gesto do trabalhador” em

54
O depoimento de Ângela Gutierrez compõe o conteúdo audiovisual disponível no totem
localizado na entrada no museu, logo antes da catraca.
93

diferentes oportunidades. Em alguma medida, o esforço por tornar a


gestualidade dos trabalhadores um acervo do museu se alinha a uma tendência
nacional e internacional de ampliação das noções de patrimônio, que passa a
abarcar técnicas e saberes populares dentro da alcunha do patrimônio imaterial.
Por outro lado, esse gesto do trabalhador aparece na exposição, em
alguns núcleos, de maneira despersonificada, com a exibição dos manequins,
todos eles num mesmo padrão de apresentação: sem rosto, de roupas de cor
crua. À exceção do tropeiro, caracterizado de forma específica, todos os
manequins seguem basicamente o mesmo padrão. Nas profissões ditas
femininas, ao invés de calça, usa saia e lenço amarrado na cabeça.
Encontramos também a busca pelo gesto do trabalhador na publicação
dos Seminários de Capacitação Museológica. Por exemplo, no conceito gerador
apresentado por Maria Ignez Mantovani Franco (2004, p. 40), debatido no
capítulo 1, e no capítulo de Antônio Tomasi, O Museu de Artes e Ofícios e o
Gesto do Trabalhador55, em que ele explica:

Assim, por trás de cada objeto esconde-se o gesto que identifica


o trabalhador. Gestos e ofícios distintos não são, entretanto,
obstáculos a que ele se identifique com o outro na sua condição
de trabalhador. É a consciência desta condição, da inserção
num determinado modo de produção, que o torna um igual, um
trabalhador coletivo, solidário (...). Ele agora é coletivo, é classe,
é organização em busca de justiça e transformação social. Ele
pensa coletivamente, ele sente coletivamente, ele constrói
coletivamente suas estratégias e sua história (TOMASI, 2004, p.
129)

A noção marxista que concebe os trabalhadores enquanto classe é,


claramente, a que orienta o pensamento de Tomasi e não nos opomos a ela
enquanto matriz de pensamento, e nem entendemos que essa orientação
político-filosófica não possa ser o norte na concepção de museus, sobretudo de
museus que se dedicam ao trabalho e ao trabalhador, como é o caso. Porém, é
ponto de partida perigoso na construção de um museu supor que todo
trabalhador está imbuído de consciência de classe, inclusive porque se fosse o

55Este autor foi identificado, na ficha técnica do museu, disponível no totem na entrada, como o
responsável pelo “texto base”
94

caso, teríamos tido já uma revolução socialista no Brasil56. Além disso, na fala de
Tomasi e, entendemos, no discurso do museu, a ideia de classe que unifica os
diferentes trabalhadores transfigurou-se numa noção pasteurizada,
excessivamente coesa de “trabalhador”.
Um dado que sustenta nossa interpretação é a exposição de dois aventais
de couro, nos núcleos dos Ofícios do Couro, em que temos a legenda: “Seu uso
constante moldou o objeto com a postura do trabalhador”. Como vemos na
Figura 33, o avental de couro está flutuando, assim como um facão que também
flutua em altura que sugere estar ao alcance da mão, estando ambos próximos a
uma tábua de madeira inclinada. Mais uma vez, vemos o mecanismo de
tentativa de reproduzir o momento exato dos objetos em uso, porém sem a
apresentação do trabalhador. Curiosamente, as fotografias desses núcleos
mostram homens trabalhando com o dorso nu, sem camisa ou avental. Faz-se
referência a este objeto no vídeo do totem de entrada, com o áudio “Entre este
avental de curtume e a pessoa que o usou, certamente a vida inteira, quem fez o
quê? Quem moldou e quem foi moldado? O corpo moldou o objeto, ou é o
contrário?”.
Entendemos que o avental de couro foi operado pelo museu segundo o
que Ulpiano Bezerra de Meneses denominou de “objeto metonímico”:

com a metonímia, o objeto perde seu valor documental,


transmuta-se num ícone cultural, de valor, agora, puramente
emblemático. É o que ocorre quando objetos (…) são
mobilizados para afirmação ou reforço de identidades (...). O
emprego do ‘típico’ (fácil de descambar para o estereótipo),
constitui simplificação que inelutavelmente mascara a
complexidade, o conflito, as mudanças e funciona como
mecanismo de diferenciação e exclusão” (MENESES, 1994, p.
28)

Apresentado como emblemático desse enlace que o museu fez entre o


corpo do trabalhador e a materialidade dos seus instrumentos de trabalho –
proposta esta essencialmente interpretativa, mas que não é apresentada
enquanto tal, problema que já discutimos – o avental recebe o destaque e o
trabalhador aparece enquanto ideia, um “trabalhador típico”, despersonificado.

56 Vale registrar que o texto foi escrito num contexto de forte ascensão do Partido dos
Trabalhadores, que culminou na eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da
República.
95

Fora isso, essa confusão entre homem e ferramenta sugerida pelo áudio do
vídeo da entrada aproxima o trabalhador de uma máquina e, ao contrário do que
parece ser a intenção, não valoriza sua habilidade técnica aperfeiçoada durante
anos na profissão, mas faz parecer que é “natural” o uso do instrumento de
trabalho.

Figura 36 – Ofícios do Couro (B8), Figura 35 – Ofícios do Couro (B8),


Núcleo do Curtidor Núcleo do Curtidor

Fonte: fotografia da autora, 2017 Fonte: fotografia da autora, 2017

Os textos novamente dão bastante destaque ao processo de produção do


couro. Um pequeno trecho poderia ter orientado toda uma outra lógica
expositiva:
Por isso que a transformação da pecuária em negócio estável
produziu, além do gado, uma cadeia de ofícios derivados –
seleiros, curtidores e remendões – que se especializaram em
abastecer as fazendas e tropas, com um subproduto do próprio
rebanho: o couro
96

A conexão temática em torno da fazenda poderia ter unido os Ofícios da


Terra, o Jardim das Energias, os Ofícios do Couro e até mesmo o Tropeiro
expondo o dinamismo e as conexões entre estes trabalhadores em função de
uma problemática. A opção da curadoria do MAO foi, ao contrário, uma
aproximação às propostas tipológicas, como já abordamos, e a apresentação
dos objetos num procedimento metonímico de ver o todo vendo-se a parte. O
trabalhador, supostamente, estaria visível a partir dos objetos utilizados e
produzidos por ele.
Essa reflexão se aproxima do que Ulpiano Bezerra de Meneses observou
a respeito de um material produzido por um living museum:

(...) os ‘living museums’ se vangloriarem da introdução de temas


democráticos no reduto aristocrata do museu histórico: povo e
cotidiano. O povo é um conjunto de estereótipos, necessários
para o funcionamento do modelo, heroicizado, idilizado (...). O
cotidiano, por sua vez, é apenas uma enciclopédia de “ações
típicas”, atemporais, a-historicizadas, liberadas de qualquer
estrutura ou sistema. Parece até que o cotidiano deixou de ser o
locus de instituição e produção efetiva das relações sociais. Não
há conflito, tensão, apenas “vida”, que se concebe, é claro, de
maneira puramente cinética: “it lives!”. Ao inverso, uma
exposição sobre o cotidiano seria histórica quando, além de
“mostrar como se vivia”, fosse capaz de explicar porque se vivia
assim. Não é o caso, aqui” (MENESES, 1994, p. 35, grifo nosso)

Nos parece que a eleição do “trabalhador” como público e como


personagem representado no MAO se aproxima dessa leitura que Meneses fez
sobre a representação do “povo” no living museum em questão: ela se opera
segundo um modelo idílico, em que não se colocam as disputas, contradições,
tensões.
O trecho grifado nos traz também uma sugestão importante: o museu,
tradicionalmente local de ocupação, representação e memória das elites,
“democratizou-se” com um acervo relacionado ao trabalho manual. Para falar
com José Bittencourt, o MAO tornou “histórico” os objetos geralmente entendidos
como “não históricos”, já que “as peças que ficavam nas cozinhas e nos quintais
(...) eram tão importantes quanto as peças que ficavam na sala de visitas”
(GUTIERREZ, em vídeo). Ou seja, ao invés de romper com a lógica ancestral de
tratamento dos objetos enquanto relíquias associadas a grandes homens, o
97

MAO “eleva” os objetos dos quintais e cria um grande personagem, na ausência


de um Coronel Buendía.
José Bittencourt analisou o Museu Histórico Nacional da primeira metade
do século XX e o lugar reservado aos soldados na instituição. Segundo ele, a
análise da coleção de armas revelou que:

no conjunto, a reunião de objetos parece indicar que os homens


sem histórias extraordinárias são, no museu, substituídos pelos
objetos. Mas estes, por sua vez, não têm nenhuma obrigação
imediata de os conotar, mas somente à instituição de que faziam
parte (BITTENCOURT, 2003, p. 168)

A instituição no caso do MHN era o exército, e os homens sem histórias


extraordinárias, os soldados rasos, geralmente oriundos das camadas populares.
Não estamos sugerindo que devêssemos criar novos heróis nacionais incluindo
soldados rasos no panteão do exército brasileiro, numa simples expansão do
procedimento de criação de memórias nacionais ufanistas. O que pretendemos
observar é que a inclusão das camadas populares nos anos 1930 no Museu
Histórico Nacional se deu a partir de uma categoria, de sua associação a uma
instituição. Um procedimento semelhante parece ter acontecido no MAO: a
inclusão dos trabalhadores se deu a partir da representação destes enquanto
pertencentes à uma identidade supostamente compartilhada. Ulpiano Meneses,
no prosseguimento da argumentação sobre o uso metonímico dos objetos,
afirma:

imaginar-se que é possível, por intermédio de exposições


museológicas, expressar a “significação” de determinado grupo
ou cultura, “povo”, nação ou segmento social é ingenuidade em
que os museólogos profissionais não poderiam cair. Não é
possível, decididamente, exibir culturas (e as categorias
correlatas que se acabou de apontar) (MENESES, 1994, p. 28)

Entendemos que o papel do museu contemporâneo não é mais o de


exaltar identidades, mas de tratá-las enquanto problemática. No caso do MAO, o
movimento foi precisamente o contrário: partindo do pressuposto de que o
museu seria compreensível numa “escala 1:1” (CATEL, 2005, p. 330), ou seja,
de que há uma identidade compartilhada entre os trabalhadores que precisa ser
valorizada, a exposição procurou exaltar o ser “trabalhador” e seus gestos. Nos
dizeres de Pierre Catel, o “objetivo era ter um público bem popular, uma vez que
98

íamos trabalhar num terreno para difundir um conhecimento popular, e era


preciso restituir uma identidade, um interesse ao trabalho manual e ao trabalho
técnico” (CATEL, 2005, p. 336, grifo meu).
José Neves Bittencourt, em sua análise sobre o MHN, seguiu explicitando
que, não existindo exército sem o contingente de soldados, eles não poderiam
ser ignorados no museu de história. Porém, há um certo jeito de fazê-los
presentes: “O jeito encontrado parece ter sido substituí-los pelos itens que os
caracterizavam na instituição. Uma operação de metáfora, quer dizer, que institui
uma analogia, substituindo um termo pelo outro” (2003, p. 168). Assim, uma
espada que talvez tenha pertencido a um soldado (desaparecido dos registros
do Museu), era identificada por um número e indústria de produção, ao que se
seguia uma tentativa de “historiar a evolução deste modelo de arma desde o
período colonial” (BITTENCOURT, 2003, p. 168).
Como vimos, a preocupação com a trajetória das tecnologias dos
instrumentos expostos no MAO é recorrente, remetendo por vezes a tempos e
espaços remotos da antiguidade. Esse conteúdo aparece nos textos, porém, e
não na exposição de uma mesma categoria de objeto em tempos diferentes,
para que fosse visível a mudança de tecnologia. De qualquer forma, o
protagonismo é dado ao objeto, e não às relações sociais engendradas por ele.
Assim, a eleição do público alvo do museu como sendo os trabalhadores
que chegam ao centro de Belo Horizonte pelo metrô (CATEL, 2005, p. 326) é
sintomática: concebe-se o trabalhador como uma classe homogênea que mora
distante do centro, que anda de metrô, que não tem acesso à cultura, que seria
automaticamente atraída pelo MAO pelo fato de ele estar contíguo à estação. Se
isso é procedente, trata-se de uma série de generalizações que não contempla a
complexidade de qualquer público. A pesquisa de Cláudia Martinez junto aos
usuários do metrô é reveladora: 54% dos entrevistados realizavam os chamados
“serviços gerais” (domésticas, operários da construção civil, cozinheiros,
diaristas etc); 26% eram profissionais liberais; 8% estudantes; 1,7%
aposentados; além de 6 desempregados (MARTINEZ, 2014, p. 136-137). Além
de amostragem quantitativa, a pesquisadora coletou dados que permitem
análises qualitativas:
99

Ao perguntar aos usuários do metrô se eles sabiam da existência


do Museu de Artes e Ofícios, 80% disseram que “sim”. No
entanto, quando se perguntou se já tinham tido a oportunidade
de visitá-lo, apenas 25% deram uma resposta afirmativa. (...) Dos
que visitaram a instituição, procuramos identificar o aspecto de
que eles mais gostaram. A coleção, como era de esperar,
representou 46% da preferência do público, mas quase 10%
apontaram a arquitetura do prédio como principal atrativo. Um
dado interessante a ser observado é que 20% das pessoas não
se lembravam mais do que tinham visto no museu. Analisando o
público de museus de arte em cinco países europeus, Pierre
Bourdieu menciona que tais esquecimentos constituem um
fenômeno comum entre aqueles que frequentam esse tipo de
instituições, e não só as de arte, mas essa espécie de instituição
de modo geral (BOURDIEU; DARBEL, 2007). (MARTINEZ,
2014, p. 137, grifo meu)

Como se revelou na pesquisa de Martinez, a presença do MAO junto ao


metrô promove alguma percepção de sua existência, mas não garante que o
usuário do metrô seja também um visitante do museu. Além disso, o dado
grifado é notório e emblemático: 20% das pessoas que já haviam visitado o
museu não se lembravam do que haviam visto lá – e podemos inferir que o
nome do Museu não as refrescou a memória –, fenômeno recorrente em outras
instituições museológicas (como apontado por Bourdieu, citado por Martinez).
Podemos, não sem risco, inferir a partir desse dado numérico que a relação que
o público estabelece com o MAO é semelhante com aquela estabelecida com
outros museus, que possuem acervos completamente diferentes e, geralmente,
não associados às profissões manuais e à classe trabalhadora. Ainda assim, o
acervo chama a atenção e agrada os entrevistados que deles se lembram,
segundo a estatística de Claudia Martinez.
Como já apontamos, o MAO reinvindica para si mesmo o compromisso de
ser o lugar de “encontro do trabalhador consigo mesmo” em diversos suportes:
no site, no texto de abertura, no vídeo da entrada. Além dos exemplos já citados,
Célia Corsino, em seu capítulo na publicação dos Seminários de Capacitação
Museológica, Museu de Artes e Ofícios: desafios e ações, ainda que visse como
desafio do museu cativar esse público não frequentador de museus, afirmou que
“são trabalhadores que devem entrar no museu que tem o trabalho como eixo de
seu discurso” (CORSINO, 2004, p. 114).
Essa construção veiculada pelo MAO tem como pressuposto uma ideia
sublimada de “trabalhador” que se explica, cremos, pela leitura romantizada do
100

conceito de classe trabalhadora, como já apontamos. Com isso não


pretendemos sugerir que a curadoria do MAO é marxista. Ao contrário, ela se
vale de uma idealização da classe trabalhadora que enxerga o trabalhador
enquanto personagem sem temporalidade, inserção social ou conflito.

2.4 “Museu de Artes e Ofícios” x “Museu do Trabalho”

Na publicação Seminários de Capacitação Museológica, encontramos um


texto sem assinatura que registrou as discussões do encontro de trabalho
promovido pelo ICFG, realizado em 29 e 30 de janeiro de 2002, no início dos
planejamentos para o MAO. Neste texto, há uma referência ao nome do museu:

a denominação “Museu de Artes e Ofícios” como uma questão


ainda em aberto, e a ideia de que este museu se comporte,
desde seu início (o que pode ser atestado pela própria realização
deste encontro), também como uma obra aberta, em processo,
acolhendo conexões propostas pelos diversos atores sociais
(ICFG, 2004, p. 18-19)

Na ata da reunião da equipe realizada em 22 de maio de 2002, está


registrado um diálogo entre Nicolau Sevcenko e Cristina Bruno, com algumas
participações de Maria Ignez Mantovani Franco e Pierre Catel sobre o mesmo
assunto. O historiador perguntou: “está previsto algum lugar que explique a
exposição de um material sobre o que é arte, o que é ofício?”, ao que Cristina
responde:

A ideia é que na entrada haja o espaço com apresentação


multimídia (painel) que inclua as plantas do circuito expositivo, a
própria definição do museu, uma síntese do que é o Museu de
Artes e Ofícios (peças / imagens / vídeos passando as gravações
– depoimento – e textos). Espaço para as definições do que é o
Museu

Segundo a ata, a museóloga discorreu sobre a explicação a respeito da


conceituação do museu, mas não havia sido exatamente essa a pergunta do
histoirador, e então Sevcenko insistiu: “parece pouco para alguém entender o
que é “Artes e Ofícios”. Ele explica, logo após, seu entendimento de que “quanto
mais na introdução do percurso melhor, para fixar o conceito, para que as
pessoas entrem sabendo as diferenças cruciais entre o trabalho escravo, o
trabalho livre, o trabalho artesanal e artístico / trabalho assalariado”. Como
101

vemos, Sevcenko se orienta a partir de conceitos bastante fechados, e entende


que a compreensão das diferenças entre os regimes de trabalho é acompanhada
pelo entendimento do que é “arte” e “ofício”.
Pierre Catel entrou na discussão afirmando que “um olhar objetivo é tratar
a adaptação do trabalho à técnica”, ao que Sevcenko responde “contudo é
importante lembrar que trabalho no Brasil é de tradição essencialmente
escravista (hoje isso é um estigma)”.57. Mais à frente, Cristina Bruno retoma o
tema: “a relação “Arte” e “Ofício” se dá, na verdade, por meio do conceito de
trabalho – daí a importância de utilizarmos outros tipos de documentos (textos)
além dos objetos e imagens”. A essa fala segue-se mais uma discussão entre o
historiador e o arquiteto sem consenso final.
Com esses trechos, percebemos que o tema dos conceitos de “arte” e
“ofício” foi discutido nesta reunião de forma confusa, porque misturado a outros
assuntos que foram tratados como a mesma questão, mas não são.
A questão da formação e organização profissional em torno de “artes e
ofícios” sempre foi, no Brasil, muito mais complexa do que na Europa, onde o
termo foi cunhado. De maneira geral, o termo referia-se aos chamados ofícios
mecânicos, organizados em corporações de ofícios ou guildas, em atuação
desde meados da Idade Média58. Porém, partimos do princípio de que não há
um único significado para este conceito, o que torna questionável a escolha dele
para a denominação do museu sem a devida problematização.
Citaremos alguns exemplos a respeito da significação de “artes e ofícios”
para sustentar nosso argumento. Em vasto trabalho sobre a organização do
trabalho mecânico em Portugal e nas Minas Gerais, José Newton Meneses
afirma em nota de rodapé que, para o caso das Minas coloniais,

É comum na documentação a utilização da palavra “ofício” para


designar “bandeira”. Assim, quando vemos, por exemplo, “ofício
de São Jorge” deve-se entender como uma referência à
“bandeira de São Jorge, que congregava vários ofícios
(MENESES, 2013, p. 81)

57Voltaremos a esta questão no capítulo 3.


58A historiografia sobre este tema é vasta, mas não entraremos neste debate, uma vez que este
texto não é um trabalho essencialmente historiográfico nem uma pesquisa de conteúdos para o
Museu de Artes e Ofícios
102

Antes, tendo conceituado “bandeira” em Portugal no século XVI, o


historiador explicou que “uma bandeira integrava vários ofícios de acordo com a
proximidade deles no arruamento, a afinidade profissional ou, simplesmente, as
boas relações entre seus mestres” (MENESES, 2013, p. 80). Ou seja, sob uma
mesma bandeira – que conferia prestígio social aos ofícios “embandeirados” –
poderiam estar organizadas atividades profissionais não necessariamente
semelhantes. Ainda assim, nas Minas Gerais, “bandeira” e “ofício” eram
utilizados como sinônimos, segundo a pesquisa documental do historiador, o que
nos sugere fluidez na ideia de “ofício”.
Outra documentação trazida pelo mesmo autor, referente a um senhor
estrangeiro que pedia autorização ao senado português para exercer mais de
uma profissão, traz uma associação entre “ofício” e “arte”, dizendo que o senhor:

se devia naturalizar primeiro, em fórma devida, e depois escolher


um dos officios que lhe parecesse e em que fosse mais perfeito,
para nelle ser examinado e admitido a essa corporação, como se
praticava com os outros extrangeiros, para por esta fórma não
poder exercitar mais de um só officio, porque ainda aos nacionaes
se não admittia o exercício em mais de uma arte (Livro de registro,
Tomo III, Casa dos Vinte e Quatro, f. 87. MENESES, 2013, p. 100)

Vemos então que as palavras “officio” e “arte” foram utilizadas enquanto


sinônimo e associadas à exame e filiação a uma corporação organizada.
Para buscarmos referências mais longínquas, na Enciclopédia Britânica
publicada em 1958, encontramos a seguinte definição para a palavra “ofício”
(“craft”):

uma palavra confinada em inglês ao poder intelectual e usada


como sinônimo de arte (força germinativa de Kraft, poder).
Também significa habilidade ou engenhosidade, especialmente
nas artes manuais, daí seu uso na expressão “artes e ofícios”
(tradução nossa)

Já “arte” (“art”), na mesma publicação, associa arte a uma capacidade e


organiza as diferentes artes segundo sua função:

em seu significado mais básico, significa habilidade ou destreza.


Essa definição vale para o seu ancestral latino, assim como seu
equivalente alemão Kunst (derivado de können, "ser capaz de").
Aquele que adquiriu uma habilidade pode ser designado como
artesão ou artista de acordo com o fato de suas habilidades
103

serem direcionadas principalmente para um propósito utilitário ou


estético. Enquanto a arte continua a ser associada a habilidades
básicas (por exemplo, a arte da jardinagem, a arte da guerra), o
termo geralmente carrega a conotação de atividades não
utilitárias: a arte da pintura, a arte da poesia e a arte da música.
(tradução nossa)

Para tomarmos um exemplo francês, “ofício” (“métier”) seria “toda


profissão, gênero de trabalho, ocupação da qual tira-se os meios de existência
(...) experiência adquirida que se manifesta por uma grande habilidade técnica”
(Petit Larousse ilustré, 1987, p. 632), ou ainda “exercício de uma arte manual (...)
profissão qualquer (...) aquilo para o que trabalhamos, o que nos esforçamos
para realizar” (Grand dictionnaire universel du XIX siécle, tome 11, 1874 (p. 159).
Esse último dicionário indica que a palavra vem do latim ministerium, sendo
sinônimo de “serviço”, e indica um subverbete: “Artes e ofícios, conjunto das
artes mecânicas” (Grand dictionnaire universel du XIX siécle, tome 11, 1874, p.
159).
Se voltarmos a nossa língua portuguesa, encontramos para “ofício”:
“ocupação; cargo; profissão; Arte; Obrigação” (Dicionário Enciclopédico
Brasileiro Ilustrado, 1954, 4ed, p. 1188). E, para “arte”:

conjunto de regras e princípios para a consecução de uma


finalidade. Livro ou tratado que encerra tais regras. Habilidade
adquirida pela experiência, estudo ou observação. Princípios
gerais de um ramo dos conhecimentos humanos ou de uma
atividade, como: arte da guerra, arte da navegação, etc.
Habilidade, destreza. Profissão, ofício. Astúcia, engenho.
Aptidão. (Dicionário Enciclopédico Brasileiro Ilustrado, 1954, 4ed,
p. 158)

A esta definição segue-se uma explicação que separa as artes que exercem
também funções utilitárias (arquitetura, mobiliário, cerâmica) e as puramente
estéticas (música, pintura, escultura e literatura), as chamadas belas artes.
Para citarmos um exemplo mais atualizado do português corrente, o
Dicionário Houaiss traz uma definição extensa de “arte”, da qual recortamos aqui
alguns trechos que parecem mais interessantes ao nosso tema:

1. Habilidade ou disposição dirigida para execução de uma


finalidade prática ou teórica, realizada de forma consciente,
controlada e racional. 2. conjunto de meios e procedimentos
através dos quais é possível a obtenção de finalidades práticas
ou a produção de objetos; técnica (...). 5. acervo de normas e
104

conhecimentos indispensáveis ao exercício correto de uma


atividade, ofício ou profissão. 6. ofício, profissão, especialmente
quando se trata de trabalho manual (...). 8. perfeição, esmero
técnico na elaboração (por oposição a espontaneidade natural);
requinte. 9. capacidade especial; aptidão, jeito, dom (...). 15. obra
humana, funções práticas ou mágicas, e posteriormente
considerada bela, sugestiva. (Dicionário Houaiss, 2009)

Já para “ofício”, temos algo mais enxuto: “1. Qualquer atividade de


trabalho que requer técnica e habilidade específicas. 2. ocupação, profissão,
emprego. 3. tarefa a que uma pessoa se compromete; incumbência, missão”
(Dicionário Houaiss, 2009, p. 1379).
De maneira geral, percebemos que à ideia de “arte” está associada uma
dimensão estética, mas ela é também colocada como sinônimo de “ofício”. Já
este último é associado a trabalho e obrigação. E os dois caminham juntos
enquanto conceito em algumas definições, constituindo outro significado.
Nosso objetivo com esta sondagem preliminar não é, evidentemente,
esgotar a questão, mas, ao contrário, demonstrar que ela é enorme. Há
aproximações entre as ideias de “ofício” e “arte”, mas há também especificidades
que tornam possível utilizá-los como sinônimo e, ao mesmo tempo, como par
que tem significado específico. O debate ficaria ainda mais amplo se levássemos
em consideração a afirmação de Cristina Bruno de que “a relação “Arte” e
“Ofício” se dá, na verdade, por meio do conceito de trabalho”, de forma que seria
necessário adicionar uma reflexão sobre outros termos relacionados: “artesão”,
“artífice”, “trabalho”, “trabalhador”, “profissão”, “emprego”...
Temos a suspeita de que o conceito “artes e ofícios”59 não é claro ao
público brasileiro contemporâneo, visto que o ensino profissional já não é mais
identificado dessa forma. Essa suspeita cresce com o dado trazido pela pesquisa
de Cláudia Martinez, já citado, de que uma grande parte dos usuários do metrô
entrevistados que já havia visitado o museu não se lembrou de seu acervo
apesar de ter ouvido a pesquisadora dizer “Museu de Artes e Ofícios”, ou seja, o

59Convém destacar que o MAO nada tem em comum, apesar da semelhança do nome, com o
Musée des arts et métiers, de Paris, voltado à promoção e salvaguarda de inovações
tecnológicas desde o século XIX, quando nasceu como Conservatoire des arts et métiers; Não
há aproximação, também, aos Liceus de Artes e Ofícios, inaugurados no Brasil na segunda
metade do século XIX.
105

nome não foi um indicativo automático do tema do museu60. Tendo-se decidido


pela permanência desse nome para o Museu, entendemos que teria sido
necessária, conforme a sugestão de Nicolau Sevcenko (mas não exatamente
pelas razões elencadas por ele), fornecer explicações e possibilidades de
reflexão sobre o conceito de “artes e ofícios”. Qual a trajetória desses termos e
suas imbricações desde suas origens até o entendimento contemporâneo? Qual
o significado individual de “ofício” e “arte” e quais camadas de sentido se
adicionam com a reunião deles em um só conceito historicamente constituído?
São questionamentos importantes, que não encerrariam o debate, mas situariam
o visitante na temática.
Entretanto, nossa interpretação a respeito da organização do museu em
grupos de “ofícios”, todos guardados dentro de uma exposição sem título, no
museu que leva “artes e ofícios” no nome, é de que ela provocou apagamentos e
confusões. O texto de entrada, denominado “O trabalho como expressão”,
possui o trecho:

Cada peça exposta mal separa a arte do trabalho. O homem,


mesmo condicionado por suas necessidades, insiste em fazer
uso da sua capacidade de criar, de se expressar, de transmitir
sensações e sentimentos, de expor suas aptidões.

Primeiro, a ideia de “insistência” sugere que um ceramista, por exemplo,


ao produzir uma telha, está sempre expressando sentimentos e produzindo
obras de arte deliberadamente, o que não tem nada de evidente e necessitaria
de um enorme debate da bibliografia sobre arte a respeito do que é e como é
produzida uma obra de arte.
Em segundo lugar, foram incluídos enquanto “ofícios” garimpeiros,
carregadores, comerciantes, vendedores, mascates, lavradores, tropeiros. Essas
atividades profissionais não estão contempladas entre as tradicionais “artes e
ofícios” enquanto artes mecânicas ou manuais, que necessitam de aprendizado
e prática de conhecimentos técnicos, que foram ensinadas em Liceus de Artes e
Ofícios, que se organizaram em corporações. Elas certamente têm lugar no
museu, porque o acervo as contempla, mas sobretudo se ele assume para si
como conceito gerador “abordar o trabalho como herança patrimonial”
60 Trata-se realmente de apenas uma suspeita, da qual não temos como ter certeza sem a
realização de pesquisa de público, o que não foi intentado nesta pesquisa por limitações de
tempo e proposta
106

(FRANCO, 2004, p. 40). Porém, não parecem combinar com um museu que
escolhe para si um conceito tão antigo e complexo como “artes e ofícios” como
nome. Temos então um descompasso de propostas e significados.
Um contra-argumento que talvez ocorra ao leitor é que, ampliando a ideia
de “arte” conforme alguns dos significados que trouxemos acima, e mesmos aos
usos contemporâneos menos formais, podemos dizer que havia uma “arte” na
atividade do tropeiro, tão específica e cheia de necessidades, que também
necessitava de aprendizado e experiência. O mesmo pode-se dizer de
lavradores, por exemplo, que tanto sabem sobre a terra, o plantio, os ciclos da
natureza. O que se quer chamar a atenção aqui, porém, é que o uso de “artes e
ofícios” não é gratuito, ele traz consigo a trajetória do termo que pode, por um
lado, provocar afastamento por desconhecimento do público contemporâneo e,
por outro, implica assumir a responsabilidade do que este conceito traz como
identificação, ou seja, profissões associadas a uma forma europeia de
organização e ensino profissional que não contempla essas profissões.
A isso soma-se o fato de que muitas outras profissões tradicionalmente
pertencentes às “artes e ofícios” não foram contempladas pela exposição. A
coleção reunida por Flávio Gutierrez, de fato, não possui artefatos relacionados a
muitos desses ofícios, porém os edifícios em que o museu se localiza foram
construídos e restaurados por estes profissionais, de forma que o prédio poderia
ter sido utilizado enquanto acervo para o debate sobre essas profissões.
Caso se quisesse ter proposto uma ampliação conceitual que enxerga na
atividade de um carregador uma prática com valor estético, seria necessário
problematizar os sentidos de “artes e ofícios”, além de justificar a denominação
da instituição, o que não acontece na exposição de longa-duração.
Os apagamentos e confusões se agravam, parece-nos, com a
equalização entre essas profissões (garimpeiro, lavrador, carregador) e ofícios
de maior prestígio social e que demandam conhecimento e aprendizado técnico
formal, como é o caso do ourives. Ao apresentar a todos enquanto “ofícios”, em
núcleos expográficos de mesma estrutura, mesmas cores e mobiliários, o
sentido sugerido é de que não existem diferenças entre as atividades
profissionais em termos de condições de trabalho, remuneração,
reconhecimento e valorização social, formação, perfil do trabalhador que as
executa, entre muitas outras.
107

Em entrevista que nos foi concedida quinze anos após o planejamento do


museu, a museóloga Maria Ignez Franco explicou um pensamento do comitê
curatorial a respeito do partido curatorial que se deveria tomar, orientado por
uma problemática em torno do trabalho:

Do ponto de vista conceitual, tinha uma questão que eu nunca


concordei bem, mas que eu acho que são decisões, são
partidos. O comitê curatorial tinha muito essa vontade de que
fosse um museu dentro de uma temática mais do trabalho. Nós
tínhamos esse olhar de que fosse aquele acervo sendo dos
ofícios, mas que a gente pudesse chegar a uma discussão muito
mais contemporânea sobre o trabalho hoje, sobre o trabalho no
futuro, sobre as relações do trabalho, sobre esta enormidade,
quer dizer, eu particularmente via como um museu do trabalho, e
que isso pudesse ser uma alavanca muito forte do museu para o
futuro. Acho que pela excelência do acervo, o acervo se impunha
um pouco dentro de uma visão mais de artes e ofícios mesmo,
os fazeres antigos... quer dizer, ele é realmente expressivo e
muito forte. Eu me lembro de coisas que às vezes eu trazia até
pra estimular a reflexão. Eu me lembro de um objeto uma vez
que eu comprei na saída aqui do escritório e levei como um
estímulo para pensar. Eu comprei uma flanelinha aqui na
esquina que dizia “eu não sou um ladrão, eu sou um
trabalhador”. Eu achava que aquilo, por exemplo, seria uma peça
futura pro museu. Ou seja, numa perspectiva de discussão da
questão do trabalho formal não formal, a questão do trabalho
escravo não escravo, a questão do gênero no trabalho, ou seja,
muitos recortes (...). Eu gostaria de ter ido mais para este lado.
Não só eu, acho que tinha uma coisa do comitê curatorial, do
Nicolau, da Cristina, nós éramos mais voltados pra essa questão.
A gente concordava perfeitamente com a trajetória do museu,
com tudo, e acho muito interessante, mas a gente achava que
nós tínhamos que dar esse passo além. Então essa era uma
questão (FRANCO, comunicação oral, 2017, grifo nosso)

De início, é preciso ressaltar que a fala da museóloga deixa ver que havia
uma polaridade entre o comitê curatorial e outro agente, não indicado por ela,
mas que se opunha à problematização dos recortes que ela listou. Como
sabemos, a Expomus abandonou o projeto do MAO e essa parece ter sido uma
das razões dessa decisão.
Na fala de Maria Ignez Franco, vemos uma oposição entre um projeto de
museu “do trabalho” e outro, que se efetivou, de um museu “dos ofícios”. Disso
surge um questionamento: como podem duas ideias que a princípio parecem tão
indissociáveis terem se tornado opostas? Como vimos na exposição dos
conceitos, muitas vezes utiliza-se “ofício” enquanto sinônimo de “serviço”,
108

“profissão” e, além disso, é evidente que todo praticante de um ofício é um


trabalhador exercendo e executando um trabalho.
A própria Maria Ignez Franco nos sugere um caminho para uma resposta,
quando justifica a opção pelo “museu de ofícios” no trecho que destacamos: “o
acervo se impunha”.
Refletiremos sobre essa questão à luz das proposições de Ulpiano
Bezerra de Meneses a respeito da exposição em museus históricos. Para ele, o
dilema “objetos x ideias” é uma variante do dilema “templo x fórum”, presente
nos debates da Museologia desde meados do século XX, mas é na exposição
que ele ganha contornos mais explícitos (MENESES, 1994, p. 24), ou seja, é na
exposição que fica evidente a partir de qual orientação o museu opera. Ele ainda
se indaga:

O que é a exposição: uma exibição que oferece ao olhar objetos,


ou ideias? A exposição museológica somente poderia exibir
objetos circunscritos em sua própria concretude como um ritual
de idolatria (...) o objeto aparece fundamentalmente como
suporte de significações que a própria exposição propõe”
(MENESES, 1994, p. 24)

Novamente voltamos a ideia de que não são os artefatos que falam ou


possuem significação imanente, mas os agentes responsáveis pela exposição
que propõem questões, portanto uma exposição sempre é um oferecimento de
ideias, não apenas de objetos.
Outra questão levantada por Ulpiano Bezerra de Meneses versa sobre a
tendência a uma compartimentação dos museus. Como já abordamos, o MAO
tem forte orientação tipológica em sua expografia. Tendo origens no século
XVIII, verificamos uma progressiva fragmentação dos museus em
especialidades, gerando museus temáticos e até micro temáticos, por vezes
associados a uma empresa. Para Meneses

essa fragmentação toda milita contra o reconhecimento de uma


sociedade complexa e tem repousado na referência que se
tornou exclusiva: o objeto e sua natureza, que, em última
instância, determinaria a natureza do museu. Assim, essa
taxonomia dos museus baseia-se menos em campos do
conhecimento ou problemas humanos, do que em categorias de
objetos, isolados ou agrupados, sempre, portanto, tendendo à
reificação. Por isso, o conceito vigente é o de que museu
109

histórico seria aquele que opera com “objetos históricos”


(MENESES, 1994, p. 15-16)

A compartimentação é útil e necessária, visto que o modelo de produção


de conhecimento ocidental tende a uma especialização. Entretanto, para ele,
“tomar um referencial exclusivamente documental, recortando tipos de objetos é
procedimento insuficiente” (MENESES, 1994, p. 16), ou seja, um museu não
pode se contentar em ser, digamos, o “museu da xícara”, sem o cuidado de
trazer conhecimentos e reflexões a respeito da xícara enquanto problemática
histórica porque

é, antes, de uma problemática que se deve partir. Mas já que se


trata de museu, de uma problemática que possa ser montada (ou
melhor montada) com objetos materiais. Portanto, instaura-se
uma dialética, sem exclusão, em que a problemática define um
horizonte de documentação potencial desejável e em que, por
sua vez, categorias documentais permitem delinear territórios de
problemas a serem formulados e explorados (MENESES, 1994,
p. 17)

Para continuarmos em nosso singelo exemplo, o “museu da xícara” seria


tanto mais útil quanto pudesse promover reflexões a respeito, por exemplo, do
hábito de tomar chá a partir de sua coleção de xícaras, a que conviria adicionar
coleções de pires, bules e colheres, bem como poderia levantar questões sobre
decoração doméstica a partir da ornamentação de suas xícaras, num processo
constante de retroalimentação, em que se entende a xícara enquanto produto e
vetor de relações sociais.
Voltando ao MAO, entendemos que a polaridade criada, que opôs um
“museu do trabalho” a um “museu dos ofícios”, corresponde à oposição que
Meneses coloca entre a constituição de museus a partir de “objetos históricos”
ao invés “problemáticas históricas”. Se entendemos, conforme a já citada
sugestão de Véron e Levasseur (1991, p. 21), que as exposições são sempre
propostas de um sentido particular a respeito dos objetos que escolhemos expor,
e não simplesmente para dar acesso a um significado “natural” que esses
trariam consigo autonomamente, a “imposição do acervo”, a que Maria Ignez
Franco se referia, a rigor, não existe. O que se verifica é a opção pela exposição
dos objetos enquanto protagonistas, em detrimento das dinâmicas sociais nas
quais eles se envolveram por ação dos homens e mulheres. Como a pesquisa
110

de Cláudia Martinez revelou, o acervo do MAO é muito encantador e envolvente


aos olhos do público, mas acreditamos que isso não significa que a atuação dos
curadores se resume a “servir” os objetos “revelando” sua beleza ou força
simbólica imanente.
A coleção do MAO é bastante diferente do que geralmente encontramos
em museus, que historicamente não salvaguardam artefatos associados às
classes subalternas. Tal diferença promove uma potencialidade enorme de
levantar discussões incomuns nos espaços museológicos brasileiros. Porém, a
opção da expografia em tratá-los de forma contemplativa e estetizada,
sublimando sujeitos históricos e, assim, os obliterando de suas narrativas e
linguagens expositivas, afasta o MAO de seu possível alinhamento com uma
nova lógica expográfica e museológica e o aproxima de um museu tradicional.
111

CAPÍTULO 3
TRABALHO ESCRAVIZADO: DEBATES, REPRESENTAÇÃO E EXPOSIÇÃO

Nesse último capítulo, elegemos como tema uma das questões


fundamentais na história do trabalho no Brasil: a escravidão. De início,
debateremos as premissas defendidas por Nicolau Sevceko em suas sugestões
de consultoria a respeito da polaridade entre trabalho escravizado e trabalho
livre, e da estigmatização do trabalho manual enquanto consequência da
tradição escravista do trabalho no Brasil.
Em seguida, refletiremos sobre formas de representação do trabalhador
escravizado no MAO e em outros contextos culturais, entendidas como
consequências da ideia de democracia racial, ainda atuante no senso comum e
em muitas interpretações sobre o Brasil.

3.1 Trabalho livre e trabalho escravizado


O historiador Nicolau Sevcenko, convidado para integrar a equipe do MAO
ainda na primeira fase do projeto, apresentou uma proposta de consultoria
histórica orientada pelo entendimento de que um museu que tratasse do trabalho
no Brasil deveria abordar a questão da tradição escravista do trabalho manual,
como mencionamos anteriormente. As distinções entre as diversas formas de
trabalho eram importantíssimas para esse historiador, devendo estar já no início
da exposição, para que a apreensão do visitante fosse orientada por essas
diferenças. E tal distinção deveria, no entendimento dele, assinalar as
reverberações que a dimensão escravista do trabalho no Brasil ainda provoca na
contemporaneidade.
Sevcenko afirma, em seu texto de consultoria, que a opção dos
colonizadores portugueses pelo trabalho cativo e a consequente relação entre
colonizadores e escravizados61 se tornaram o padrão fundamental a partir do
qual se processou a formação histórica da sociedade brasileira. Nesse sentido, o
MAO poderia promover uma privilegiada reflexão sobre a singularidade da

61O uso da palavra “escravo” tem sido questionado e problematizado, no entendimento de que
seria mais acertado dizer “escravizado”, palavra que sugere a relação entre dois sujeitos: quem
foi escravizado e quem escravizou. Entendendo que esta diferenciação tem forte caráter
simbólico e político, optamos aqui pelo termo “escravizado”, salvo em citações.
112

evolução socioeconômica do Brasil, marcada pelas heranças da escravidão e


pelos entraves que ela impôs (SEVCENKO, 2002, não publicado). Ele explica:

Uma das consequências perversas dessa situação [trabalho


compulsório] foi a inevitável estigmatização do trabalho e do
trabalhador que ela consolidou, na medida em que todo esforço
físico era identificado com a condição servil e com a
característica étnica das gentes cativas. Assim, paradoxalmente,
o trabalho, fonte de toda riqueza e prosperidade, passou a ser
percebido como uma prática infamante e o trabalhador como
uma criatura vil e inferior (SEVCENKO, 2002, não publicado).

A historiografia tem discutido, porém, os limites do tratamento da questão


do trabalho no Brasil a partir da polaridade entre trabalho livre e trabalho
escravizado, e qualificado essa reflexão sobre a estigmatização do trabalho
manual. Na dicotomia entre livre e não livre, o trabalho escravizado seria
marcado por coerção e violência, ausência de liberdade e de remuneração, além
do status jurídico de “não-livre”; ao contrário, o trabalho livre seria constituído
pela dinâmica do mercado, remunerado e livre também em termos legais. Jonh
French chama a atenção de que,

para resolver as falsas dicotomias entre escravidão e liberdade,


temos que compreender os postulados estruturantes mais
amplos que envolvem essas alternativas: escravidão versus
capitalismo e, mais importante ainda, o contraste entre reações
de trabalho escravistas como “atraso” e relações de trabalho
assalariadas entendidas como “modernidade”. (FRENCH, 2006,
p. 77)

A polaridade traz um entendimento perigoso de que haveria uma


“evolução” entre trabalho escravizado e trabalho livre, associada a um progresso
tecnológico. O museógrafo Pierre Catel, inclusive, partilhou sua leitura orientada
por essa dicotomia reducionista. Tendo discordado de Sevcenko nas reuniões62,
propôs que a exposição deveria versar sobre aspectos mais “objetivos”. Algum
tempo depois, em entrevista posterior já a inauguração do Museu, o francês
revelou, infelizmente, seu pouco conhecimento sobre a história da escravidão no
Brasil:
temos um museu que se construiu sobre demonstrações da
evolução das técnicas, efetivamente: energias humana, animal,

62Como pudemos verificar nas atas, sobretudo da reunião realizada em 22 de maio de 2002.
Esta ata se encontra anexa ao relatório da Expomus.
113

hidráulica, elétrica – e em cada uma delas, historicamente, talvez


possamos explicar melhor por que a escravidão desapareceu.
Não foi apenas uma forma de pensar, mas foram também as
origens da evolução técnica que permitiu descobrir que não
tínhamos mais necessidades de escravos (CATEL, 2005, p. 329)

Nessa leitura, a escravidão era uma “necessidade”, superada com o


progresso técnico, o que ignora o tráfico negreiro enquanto o enorme sistema de
acumulação de capital que foi e a intensa conexão entre a exploração escravista
agrícola nas Américas e a acumulação de capitais para a indústria na Europa
Ocidental. Além disso, associa o trabalho escravizado ao atraso tecnológico que,
extrapolado, fomentaria o trabalho livre.
Para French, a dicotomia surge da percepção de que existe uma diferença
jurídica entre o livre e o não-livre, “embora tal definição legal possa
frequentemente mostrar-se de relevância duvidosa”, uma vez que eram várias as
possibilidades de uma pessoa ser “re-escravizada”, por meio de, para citar um
exemplo, cláusulas que tornavam a liberdade condicional e até revogável. Dessa
forma, “livre e não-livre são categorias ambíguas na sociedade brasileira, na qual
as delimitações não são fixas e os pequenos retrocessos em direção ao
estigmatizado status de não-livre são constantes” (FRENCH, 2006, p. 81), ou
seja, tomar essa dicotomia, ainda que útil, não é o suficiente para compreender
as dinâmicas de trabalho no Brasil escravista.
Silvia Lara argumenta no mesmo caminho, destacando que as ações das
pessoas escravizadas e livres ao longo dos séculos de escravismo revelam que
muitos significados de liberdade estavam operantes. Em algumas situações, ser
livre significava poder constituir laços familiares sem o risco de um membro da
família ser comercializado; em outras, significava a conquista de não servir mais
a ninguém; em outras, ainda, significava poder viver longe da tutela do senhor.
Ou seja, há muitas outras experiências de liberdade e estamos longe de
entendê-la somente enquanto “possibilidade de vender ‘livremente’ a força de
trabalho em troca de um salário” (LARA, 1998, p. 28).
A polaridade entre trabalho livre e escravizado é marcada pelo
pressuposto conceitual de um trabalho livre constituído na lógica do mercado de
trabalho capitalista, que, porém, não é adequada para a compreensão da
dinâmica da escravidão no Brasil, seja no tocante ao branco livre pobre, seja
quanto ao negro liberto ou mesmo nascido livre. Também não é suficiente para a
114

análise das dinâmicas de trabalho no pós-abolição, e isso tem sido notado pela
historiografia mais contemporânea, que tem progressivamente matizado a ideia
da simples “substituição” do trabalho escravizado pelo livre.
É evidente que existiram trabalhadores escravizados e não escravizados,
livres e não-livres no Brasil e não propomos que abandonemos estas categorias.
Porém, que as usemos com mais flexibilidade:
...poderíamos argumentar que construtos como liberdade
deveriam ser tratados, quando muito, como termos contrastivos
ou comparativos, e não como categorias absolutas... Em vez de
falarmos em termos dicotômicos, deveríamos discutir formas
mais ou menos livres de trabalho, conforme definidas dentro de
histórias locais, regionais e nacionais (FRENCH, 2006, p. 88)

Assim, as tais “diferenças cruciais” a que Sevcenko se refere talvez não


se verifiquem de maneira assim tão evidente, de forma que esse pressuposto
para a orientação da proposta histórica do museu seria questionável. Seja como
for, como vimos, a consultoria do historiador não foi efetivada, então a
montagem da exposição não seguiu fielmente essa orientação.
Muito ao contrário dessa perspectiva, Célia Maria Corsino, a museóloga
que assumiu o projeto após a saída da equipe da Expomus afirmou:

O Museu de Artes e Ofícios deve promover a inserção social e


cultural. Está situado no centro da cidade, bem perto de
potenciais visitantes, sujeitos de sua coleção, de profissões, de
fazeres, de ofícios que hoje em dia estão em baixa. O trabalho
manual, no Brasil, sempre esteve muito associado ao trabalho
escravo. O trabalho de classes que não tem grande
representação em outros espaços de memória encontram aqui
seu lugar com dignidade. (CORSINO, 2004, p. 114)

O texto sugere uma leitura a respeito da questão do trabalho a partir da


dicotomia que procuramos relativizar aqui, de forma que o MAO seria, então, um
lugar para este outro trabalho encontrar seu lugar de “dignidade”. Ainda assim,
uma vez que seria impossível fugir do tema da escravidão em se tratando de
trabalho no Brasil, houve representações a esse respeito, que seguiremos
discutindo.
115

3.2 Defeito mecânico


O pensamento apresentado por Nicolau Sevcenko se orienta a partir da
ideia de que o trabalho manual no Brasil, por sua condição de realizado por
trabalhadores escravizados, ganhou mais camadas de estigmatização, como
vimos. É ancestral e bastante difundida a ideia de uma diferenciação entre
trabalhos manuais e intelectuais, estes últimos sendo superiores. Marcelo Mac
Cord traz a referência de um dicionário português do século XVIII, em que
aparece uma separação bastante categórica entre as artes “mecânicas”,
associadas à indignidade e reservadas a homens baixos e humildes, e as artes
“liberais”, que exigem exercício do pensamento e não das mãos, sendo própria
de homens nobres e livres (MAC CORD, 2012, p. 27).
O historiador sugere que a esta tradição de origem grega se somou
complexidade quando do uso de mão de obra escravizada, tornando ainda mais
complexo o sentido da vilania dos ofícios manuais (MAC CORD, 2012, p. 27-28).
Esta foi a defesa de Sevcenko em sua consultoria ao projeto do MAO. Como
vimos, ele entendia que era preciso problematizar essa estigmatização do
trabalho manual na exposição.
Mac Cord segue explicando que na ótica do catolicismo, o trabalho
compulsório dos não-cristãos tinha um papel pedagógico, sendo uma forma de
purgarem o pecado original. Então, como o trabalho físico era associado a
escravidão e questões morais, as artes mecânicas ficaram ainda mais
estigmatizadas. Dessa forma, o ócio se valorizou enquanto valor cultural que
distancia o homem livre do cativo, já que havia uma ideia de relação entre
trabalho forçado e punição (MAC CORD, 2012, p. 28).
Já Wilson Rios foi buscar na Idade Média as origens da ideia de “defeito
mecânico”, entendido como um produto fortemente urbano, forjado fora do
espaço do feudalismo clássico, e juridicamente estigma social negativo.
Segundo ele, com as transformações ocorridas no século XII que deram novo
protagonismo ao espaço urbano, marcado por uma crescente especialização e
divisão do trabalho, a partir de antigas ou novas ocupações, não havia condições
de estabelecimento da mesma composição e das mesmas relações sociais que
haviam servido de base para a idealização do papel de cada ordem, no início do
período medieval. Ainda assim, as matrizes de pensamento cristãs ainda eram a
referência, de forma que:
116

O defeito mecânico, como marca social negativa, decorreu desse


conjunto de mudanças. Da emergência de novas e diferentes
formas de identidade social ou ofícios, sem que houvesse
substituição nas matrizes – entenda-se a igreja cristã, ou a
nobreza, representada pela cavalaria ou pelas cortes reais – que
deram origem e sustentação ao ordenamento anterior (RIOS,
2000, p. 21-22)

Teria acontecido, então, uma reelaboração dos sentidos atribuídos ao


trabalho, de forma que as ocupações adquiriram um significado próprio,
“passando à condição de ofícios, isto é, trabalho especializado” (RIOS, 2000,
p.21), criando uma identidade social urbana. Além disso, em interpretação um
pouco diferente da de Mac Cord, ele afirma que:

os ofícios enquanto trabalho especializado, aos olhos de Deus,


perdiam o caráter de estigma que impedia aos seus executores,
o acesso a salvação das suas almas. Entretanto, nesse espaço
urbano e revelador de diferentes identidades sociais, a situação
dos ofícios tendeu para que fossem ajustados a tradição greco-
romana. Nela (...) a classificação dos ofícios serviu de base para
uma distinção social, ainda que, no conjunto, todos fossem
reconhecidos como imprescindíveis para o bom funcionamento
da cidade (RIOS, 2000, p. 35)

Ou seja, ainda que compreendidos como indispensáveis para a


construção do cotidiano nessa nova lógica urbana que se inaugurava,
permanecia atuante a distinção grega entre as formas de trabalho, mesmo se
afrouxando a percepção do trabalho braçal enquanto entrave para a salvação da
alma. Wilson Rios entende que a constituição da ideia de defeito mecânico no
contexto europeu, em especial o português, relaciona-se por oposição a ideia de
“honra”, associada à nobreza que não depende do trabalho de suas mãos para
seu sustento:

os ofícios mecânicos nas sociedades europeias como um todo


tornaram-se atividades distintas do conjunto das atividades
agrárias, durante a Baixa Idade Média. Eles tipificaram, dentro
das suas respectivas especializações, a emergência de novos e
diferentes grupos ou categorias sociais, identificados por um
denominador comum. A natureza manual das suas ocupações
sobre a qual incidia remuneração pelo trabalho, ou seja,
mesteres ou ofícios, base para a caracterização do defeito
mecânico. Essa classificação os distinguia tanto da nobreza,
como grupo ou categoria social dominante, como dos servos e
escravos. Portanto, uma identidade social própria definida pela
ocupação e pela forma de prover a sustentação. Dessa maneira,
117

não é possível dissociar, enquanto grupo ou categoria social, os


oficiais mecânicos do espaço urbano, do defeito mecânico e do
tipo de sociedade que os engendrou (RIOS, 2000, p. 97)

Como vemos, a desvalorização do trabalho manual estaria presente entre


as elites, “proibidas” pelos costumes de executar afazeres manuais vis
(HOLANDA, 1982, [1937], p. 28), mas também entre os livres pobres, cuja vida
cotidiana se assemelhava muito da levada pelos escravizados. Alinhado a
historiografia mais tradicional da formação da sociedade brasileira, Kowarick,
afirma que:

os livres, na medida em que o cativeiro fosse o referencial do


processo produtivo, só poderiam conceber o trabalhador
organizado como a forma mais degradada de existência (...) O
importante nesse processo de rejeição causado pela ordem
escravocrata é que qualquer trabalho manual passa a ser
considerado como coisa de escravo e, portanto, aviltante e
repugnante (KOWARICK, 1987, p. 47-48).

Este pensamento é coerente com a proposta de Rios, uma vez que


aponta que a condição negativa do “defeito mecânico” era um dado da
sociedade portuguesa de forma ampla. A diferença, para os livres pobres,
residiria em sua condição de livre, manifestada pela possibilidade de não realizar
tais serviços compulsórios e estigmatizados, nem que para isso fosse necessário
submeter-se a uma subsistência muito básica e até ameaçada.
Geraldo Silva Filho entra neste debate explicitando que no caso das
Minas Gerais esta atribuição de significado negativo dado ao trabalho manual
ganha outras dimensões, uma vez que a natureza da atividade mineradora era,
ao menos no início, sazonal, efêmera e flutuante.

as perspectivas e sonhos de enriquecimento rápido atraíram


para a região os indivíduos pautados nesse sonho de acúmulo
de riqueza fácil, que pudesse fazê-los retornar, o mais rápido
possível, para as suas regiões de origem. Este aspecto pode
indicar que muitos homens livres e brancos não se importavam
em lidar com atividades manuais, porque o que valia para eles
era o acúmulo imediato de um bom cabedal e fortuna; feito isto,
voltariam lépidos para suas casas. Pelo menos no início da
sociedade mineradora, esta realidade contribuiu para que o
estigma do branco em relação às atividades manuais fosse
momentaneamente relativizado. (SILVA FILHO, 2008 p. 68)
118

O historiador segue sugerindo que, com a normatização vivida pela


sociedade mineira, é possível que o estigma em relação às atividades e
trabalhos manuais tenha se recrudescido, como era comum no âmbito da
sociedade portuguesa (SILVA FILHO, 2008, p. 68).
Sérgio Buarque de Holanda entende que na sociedade que se formou no
Brasil, herdeira da portuguesa, se verificava uma tendência a não discriminação
por cor, citando exemplos de altos funcionários da Coroa que eram mulatos,
admitindo, porém, que “tais liberalidades não constituíam lei geral” (1982, [1937],
p. 25). Por outro lado, se eram permitidos aos afro-descendentes alguns cargos
altos, haveria também alguns serviços que só a eles seriam relegados, na
condição de escravizados:

Muito mais decisivo do que semelhante exclusivismo [“racista”]


teria sido o labéu tradicionalmente associado aos trabalhos vis a
que obriga a escravidão e que não infamava apenas quem os
praticava, mas igualmente seus descendentes. (HOLANDA,
1982, [1937], p. 25)

No mesmo sentido, alguns ofícios eram proibidos aos negros63 e


permitidos aos índios e mamelucos, cujo reconhecimento da liberdade civil
“tendia distanciá-los do estigma social ligado à escravidão” (HOLANDA, 1982,
[1937], p. 25).
José Newton Meneses apresenta a situação de alguns homens livres,
oficiais mecânicos que, ainda que brancos, não eram nobres ou próximos às
elites, mas eram “senhores comuns de escravos em uma sociedade escravista
em que a posse de negros é utilidade e distinção” (2013, p. 288). Ele expõe,
então, uma contradição:

se o trabalho braçal é para a sociedade escravista ato de


escravo e se o senhor de escravo, normalmente, não utiliza as
mãos para o trabalho, como seria a relação desse senhor de
escravo que trabalha como oficial mecânico? E que estatuto
teria, nessa relação, o escravo artesão semi-especializado, ou
mesmo, especializado? (MENESES, 2013, p. 290)

Douglas Libby apresenta dados sobre Vila Rica em 1804 em que a maior
parte (70%) dos trabalhadores de ofícios era composta por “indivíduos de cor”

63Assumimos aqui a denominação “negro”, ainda que saibamos que no período colonial havia
outras categorias (preto, pardo, mulato..) para a referência à população afro-descendente. Tal
escolha se dá em consideração ao uso de “negro” nas pautas identitárias contemporâneas.
119

(miscigenados, crioulos e africanos); sendo um quarto deste total composto por


escravizados. Os brancos correspondem a um quinto dos trabalhadores, de
forma equivalente à sua proporção na população. Para o historiador,

a sugestão que fica é a de que, entre os brancos, não haveria


uma instrínseca aversão à participação em atividades
envolvendo a habilidade manual, ou seja, aquilo que a
historiografia tradicional chama de “trabalho de escravo”. Com
efeito, virtualmente todos os homens brancos arrolados como
artesãos eram também proprietários de escravos e alguns de
seus cativos praticavam o mesmo ofício que seus senhores
(LIBBY, 2006, p. 67)

Indicando que este dilema merece pesquisa historiográfica de fôlego,


Meneses sugere preliminarmente que

a relação entre estes homens, artesãos de mesmo ofício ou de


ofícios distintos, localizados em estratos sociais tendentes a se
oporem um ao outro e, por fim, unidos por laços da relação
escravista, era menos desnivelada e mais solidária, quando
comparada à de outros senhores e escravos sem especialização
(MENESES, 2013, p. 290)

Mac Cord segue afirmando que no século XIX o trabalho mecânico


permanecia desvalorizado, mas não pela sociedade inteira e em todo o Brasil .
Em seu livro, narra a trajetória de artífices negros livres que acreditavam no
trabalho como fator de distinção social e em valores como orgulho, dignidade,
precisão e inteligência. Por meio de sua associação, procuraram mostrar à
sociedade recifense que o trabalho mecânico também era conduzido pelo
intelecto e pela sistematização teórica do conhecimento (MAC CORD, 2012, p.
27-29). O historiador questiona a ideia que se consagrou na historiografia sobre
a impossibilidade de mobilidade social para os descentes de escravizados,
afirmando que peritos da associação estudada conquistaram prestígio junto às
elites, ainda que reconheça que enfrentaram enormes desafios (MAC CORD,
2012, p. 33-34).
Porém, mais à frente no mesmo texto, Mac Cord narra a transformação
ocorrida no regimento da associação de profissionais da madeira em 1838, que
proibiu a filiação de escravizados, permitida até então (MAC CORD, 2012, p. 57-
58). Como vemos, enquanto homens negros, os membros da coletividade
procuraram com esta ação se distanciar do estigma associado à escravidão,
visto que, segundo Mac Cord, em Recife ser negro era diferente de ser escravo
120

(MAC CORD, 2012, p.48), correlação que foi universalizada pela historiografia
porque comum no Sudeste
A interdição de escravizados na confraria revela o desejo de que ela fosse
bem classificada socialmente, confirmando, por contraste, suas qualificações
(MAC CORD, 2012, p. 62). Não sendo o escravizado um cidadão, os confrades
procuravam se dissociar dessa imagem, em sua luta pela cidadania. Além disso,
circulava em Recife no século XIX a ideia de que o trabalho realizado pelos
escravizados era de baixa qualidade técnica e moral, além de pouco inteligente,
de forma que a mão de obra cativa era taxada por alguns seguimentos sociais
como “indisciplinada” e tremendamente “incapaz” (MAC CORD, 2012, p. 64-65).
Assim, se é válida a afirmação do autor de que o trabalho manual não era
desvalorizado pela sociedade inteira, a desvalorização associada a esse
trabalho executado por mãos escravas permanecia, segundo os dados trazidos
por ele próprio, difundida.
Wilson Rios estudou outras localidades – Vila Rica e Salvador – e tinha
outro compromisso com seu trabalho – entender o defeito mecânico em
oposição à honra e, portanto, como impedimento do acesso aos privilégios da
nobreza. Nesse exercício, identificou que:

O defeito mecânico como estigma ou marca social negativa


continuou, ao longo de toda a colonização, como definidor de
identidades sociais e delimitador ao acesso à condição de nobre
e às prerrogativas a ela inerentes (RIOS, 2000, p. 104)

A respeito da condição do trabalhador negro, ele afirma que:

na ausência de uma legislação específica, a cor ou a situação de


ter sido escravo, equivaleram como estigma social negativo,
aproximando-os estatutariamente aos portadores do defeito
mecânico (RIOS, 2000, p. 125).

José Newton Meneses informa que os escravizados que eram peritos em


algum ofício – sendo inclusive submetidos aos exames – tinham seu valor
acrescido pela especialização e pela qualidade de seu desempenho.
Geralmente, trabalhavam na oficina de seu senhor, muitas vezes com quem
havia aprendido o ofício, ou enquanto negro de ganho. Para o oficial livre, ter um
escravizado apto era uma chance de aumentar seus lucros, diversificando seu
atendimento.
121

Para o escravo especializado em ofício artesanal vigorava a


mesma desgastante labuta dos escravos do eito, a mesma
condição de trabalhador compulsório, mas, provavelmente, uma
diferenciada relação com o senhor e uma maior possibilidade de
adquirir recursos para sua liberdade futura, muito embora seu
valor fosse acrescido pela condição de ter luzes de ofício ou de
possuir saberes especiais demandados socialmente (MENESES,
2013, p. 291)

Como tentamos demonstrar, a questão do “defeito mecânico” no mundo


português de forma geral, e na sociedade engendrada na América a partir dele,
é complexa e cheia de camadas. Concordamos com Nicolau Sevcenko de que
existe uma estigmatização do trabalho manual e ela precisaria, forçosamente, ter
sido trabalhada enquanto dinâmica social e não de forma a-histórica pelo MAO,
que optou por veicular uma imagem de si como o “redentor” dos trabalhadores,
comumente esquecidos pela História e pelos museus. Porém, essa
estigmatização não se deve tão somente à tradição escravista do trabalho no
Brasil, mas a uma imbricação de fatores que a historiografia ainda está
buscando compreender.

3.3 Representação da escravidão: democracia racial e aniquilação


simbólica

Ainda que tenhamos relativizado alguns pressupostos de Sevcenko em


sua proposta de consultoria, seguimos de acordo com ele sobre a necessidade,
em se tratando do trabalho no Brasil, de se colocar em tela a questão do sistema
escravista, operante por séculos na história brasileira.
A partir disso, entendemos e tentaremos demonstrar que a exposição do
MAO, tal como se apresenta atualmente, é reflexo, em certa medida, da ideia de
democracia racial, e também um instrumento de sua atualização. Os
profissionais responsáveis pelo assentamento da exposição tornaram-se vetores
e resultado – inconscientemente, cremos – dessa interpretação sobre o Brasil e
o brasileiro, atestando que a ideia de democracia racial ainda está em forte
circulação no país.
Falar sobre trabalho escravizado no Brasil passa forçosamente por refletir
sobre a cor dos homens e mulheres escravizados. E assim, é preciso discutir a
122

ideia de democracia racial que entendemos ser um mito, como frisa Emília Viotti
da Costa (2007, p. 370).
Pensar sobre a ideia de democracia racial nos leva automaticamente a
obra de Gilberto Freyre, especialmente Casa Grande e Senzala. Mas aqui nos
dedicamos sobretudo a outra obra, Interpretação do Brasil, compilação de
comunicações feitas no exterior, por se tratar do conteúdo ao qual Costa
também se debruçou e por entendermos que funciona como síntese do
pensamento de Freyre sobre as relações raciais no Brasil. O trecho seguinte,
bastante emblemático, parece ser uma síntese sobre sua interpretação:

A experiência de biocontinentalismo étnico e cultural começada


há séculos em Portugal tomou nova dimensão no Brasil: três
raças e três culturas se fundem em condições que, de modo
geral, são socialmente democráticas, ainda que até agora
permitindo apenas um tipo ainda imperfeito de democracia
social; imperfeito tanto na sua base econômica como nas suas
formas políticas de expressão. Mas com todas as suas
imperfeições, de base econômica e de formas políticas de
convivência democrática, o Brasil impõe-se hoje como uma
comunidade cuja experiência social pode servir de exemplo ou
estímulo a outras comunidades modernas. Decerto não existe
nenhuma outra comunidade moderna da complexidade étnica da
brasileira onde os problemas das relações sociais entre os
homens de origens étnicas diversas estejam recebendo solução
mais democrática ou mais cristã que na América Portuguesa. E a
experiência brasileira não indica que a miscigenação conduza à
degeneração (FREYRE, 2001,[1947], p. 198-199, grifo nosso)

Como vemos, Freyre entendia que em termos raciais, havia uma


convivência democrática entre as “três raças e três culturas” que “se fundiram”. A
ideia de democracia denota igualdade e isonomia de expressão e manifestação
no espaço público, o que significa dizer que, na leitura de Freyre, as três
tradições étnico-culturais (o que já é um reducionismo grave, dada a variedade
de grupos indígenas e africanos que aqui se relacionaram desde o período
colonial, bem como aquela existente também entre os ibéricos) interagiram de
forma equânime na constituição da sociedade brasileira e que, se existem
diferenças, elas são diferenças de classe social, e não raciais. O autor atenua,
então, o caráter de dominação e resistência que pautou – e ainda pauta, em
grande medida – as relações entre esses grupos. Freyre reconhece, no entanto,
que a democracia brasileira tem imperfeições, mas devido a questões de base
econômica, segundo ele, e não devido a preconceitos raciais. Notamos também
123

que Freyre demonstra confiança na miscigenação, colocando-se contrário às


ideias, então consideradas por ele ultrapassadas, mas sempre em cena, de
existirem efeitos negativos do amalgama étnico.
Em seu texto “O mito da democracia racial no Brasil”, Emília Viotti da
Costa recupera o surgimento e o declínio desta ideia. Completando nossa leitura
sobre Freyre, Costa adicionaria que para ele os negros brasileiros desfrutariam
de mobilidade social e oportunidades de expressão cultural, não tendo
desenvolvido a consciência de serem negros, como ocorreu com os negros nos
EUA (COSTA, 1998, p.367-368). Assim, o Brasil poderia ser um exemplo para a
resolução de problemas raciais em outros países, como os EUA.
Para a historiadora, a chave para compreender o padrão racial, a
formação do mito e sua crítica encontra-se no sistema de clientela e patronagem
e no seu desmoronamento. Nesse sistema, brancos pobres, negros livres e
mulatos seriam a clientela de uma elite branca que controlaria a mobilidade
social, negando ou permitindo ascensões conforme seus próprios interesses.
Não havia, portanto, um racismo oficial ou discriminações legais, como
encontramos nas experiências de outros países. Essa aparente possibilidade de
mobilidade criava a sensação de que as diferenças reais eram as sociais, não as
raciais.
Esse sistema, no entanto, teria perdido forças na passagem do século XIX
para o XX, com as transformações sociais ocorridas inclusive no interior da elite,
acompanhadas das ondas de imigrantes e das possibilidades de ascensão que o
desenvolvimento capitalista e a explosão urbanizadora apresentavam,
dissociada dos antigos patrões e padrões. Na interpretação de Viotti da Costa, a
geração de Freyre se ressentiu ao ver a negação de tradições e apologias ao
progresso que marcaram os anos 1920. Nesse contexto, Freyre escreve sua
epopeia Casa Grande e Senzala buscando fugir do que entendia como
rompimento com o passado, tentando revelar aspectos positivos da tradição
senhorial brasileira, entre eles a tal harmonia entre as raças.
Para a historiadora, a geração seguinte à Freyre, compostas por
revisionistas oriundos dos ambientes universitários da década de 1950 e 1960,
vai questionar o mito da democracia racial, entendendo que questionamentos
como esse eram necessários ao avanço da civilização brasileira, refletindo a luta
política contra as oligarquias tradicionais (COSTA, 1998, p. 380-385). Tais
124

questionamentos, entretanto, pouco conseguiram transbordar esse ambiente


universitário e erudito, sendo, obviamente, pouco interessantes às formulações
identitárias corroboradas pelo regime militar instaurado em 1964.
A interpretação de Freyre e seus contemporâneos capilarizou-se
profundamente entre brancos e negros, de forma que o trabalho dos
revisionistas foi recebido com suspeita e ressentimento, como se eles
estivessem inventando um problema racial que não existia no Brasil (COSTA,
1998, p. 369), discurso que vemos ecoar fortemente até o presente. Como a
própria autora indica no final do texto, “no Brasil, o mito da democracia racial não
está completamente morto” (COSTA, 1998, p. 386), mesmo atualmente, tantos
anos depois da publicação original.
Dentro desta ideia de mestiçagem, no entanto, prevalece a parte
“civilizada” do tripé, branca e europeia, sobre as demais, que acabam por se
dissolverem. Indígenas e africanos não são representados enquanto
protagonistas, ou mesmo sujeitos, das construções dinâmicas da vida política.
Acontece um mascaramento de que tais encontros culturais entre as raças eram
marcados por opressão e resistência (esta última, reveladora de atuação
política), de forma que as práticas “mestiças” se consolidam sem expor sua
tendência para a branquitude e o embranquecimento e sem que se observe a
contribuição de índios e negros enquanto tais, e não apenas como “matrizes” ou
afluentes na formação da cultura brasileira.
A permanência desta interpretação sobre o Brasil no senso comum
manifesta-se, também, em exposições museológicas e escolhas curatoriais em
diferentes museus. Myriam Sepúlveda dos Santos analisou o acervo e a
proposta curatorial do Museu da República. Segundo ela, a população negra é
representada de forma estereotipada, sempre associada à cultura popular e
jamais ao poder constituído. Além disso, verifica-se na exposição o
enaltecimento do negro em práticas populares como o samba, carnaval e
futebol, o que acaba por construir um discurso que restringe o negro a esses
lugares e atuações sociais (SANTOS, 2005, p. 51). Santos coloca provocações
importantes:

lemos (...) a seguinte frase de Gilberto Freyre: ‘O brasileiro é


negro nas suas expressões mais sinceras” (...) [a frase] é
ambivalente, pois atribui ao negro brasileiro a emoção, a
125

sensibilidade e os sentimentos. (...) [o brasileiro] seria branco em


que? Na razão, no cálculo, na tomada de decisões, na
construção política e econômica do país? Seria esta uma divisão
de papeis legítima e justa para os brasileiros, brancos e negros?
(SANTOS, 2005, p.52).

Essa divisão de papéis sugere que os negros seriam uma espécie de


subcategoria de cidadãos, sempre entregues aos sentimentos, que precisariam
ser constantemente tutelados pelos brancos, estes sim dotados de razão. Tal
visão, bastante míope, é pouco reveladora das dinâmicas sociais e também
pouco construtiva, já que furta a ambos os grupos a possibilidade de ocupação
com êxito dos espaços tanto de produção cultural quanto política.
Analisando a Coleção Perseverança, incorporada ao acervo do Instituto
Histórico e Geográfico de Alagoas, Raul Lody identifica o mesmo fenômeno de
associação do negro a aspectos tão somente religiosos e questiona o que ele
chama de “suficiência de representação”, ou seja, expõe que este hábito de
caracterizar o negro apenas a partir de suas práticas religiosas não é suficiente
para representá-lo: “retifica o âmbito da religião como campo possível de
manifestação. Uma espécie de território esperado e permitido de revelação
etnocultural do negro brasileiro” (LODY, 2005, p. 32). Além de insuficiente, tal
hábito transforma-se em vício e promove o estigma do negro como relevante
apenas no que tange às manifestações sensíveis, aprisionando-o fora das
construções intelectuais e políticas, assim como da memória do trabalho e das
formas de exploração e acumulação econômicas.
Como vemos, então, quando o negro brasileiro é representado nos
museus brasileiros, ele é comumente associado a tudo que se distancia das
faculdades da razão: a tangibilidade do corpo físico, o gingado para a música, a
sensibilidade religiosa. Ainda que seja uma representação que se pretende
positiva, ela é reducionista e insuficiente para dar conta de toda a complexidade
da participação deste grupo na sociedade brasileira.
No MAO, não há proposições de questões a respeito de religiosidade,
uma vez que o acervo tem outra orientação. Ainda assim, a sugestão de Lody de
que existe uma insuficiência de representação, que encapsula a população
negra dentro de uma série de estereótipos, se faz útil para compreender alguns
núcleos.
126

No prédio A, em frente ao nicho onde se encontra uma “balança para


pesar escravos” (que analisaremos à frente), há um módulo dedicado ao
Carregador (Figura 37), em que encontramos em um deque um grande objeto
sobre o qual está um saco rústico. Ao lado, um manequim carrega outro saco
rústico nos ombros e pesos de referência encontram-se dispostos pelo chão.
Há dois painéis que contam com imagens, por exemplo de Debret, e
textos64. Neles, há referência ao trabalho dos africanos escravizados como
carregadores, mas a associação dos carregadores ou dos comerciantes com a
balança logo em frente dependerá de uma elaboração demasiado grande por
parte do visitante, que nós mesmos só fomos capazes de realizar na redação
deste texto.
Além disso, como vemos na Figura 37, não há referência na primeira
camada de comunicação – a dos objetos, figuras e texto principal65 – ao fato de
que aquele serviço foi bastante comum entre os negros escravizados. O texto
traz informações interessantes, mas também se mostra insuficiente: explica
bastante pouco com a primeira afirmação (transcrita na nota 57), e já parte para
o presente trabalho de carregadores nos portos sem especificar se este serviço
continua sendo executado por negros majoritariamente, mas pode dar a
entender que sim.
A referência à “força de seus ombros e músculos” parece ser uma
manifestação do recorrente fenômeno recorrente nos museus brasileiros, como
nos trazidos por Myriam Sepúlveda do Santos e Raul Lody, no qual se verifica
uma tendência em se destacar os atributos físicos dos negros como uma das

64 Painel da esquerda: “No século XIX, os negros que viviam nas cidades carregavam tudo por
um vintém.
Apesar da crescente modernização das tecnologias de produção, algumas atividades ainda
utilizam o trabalho braçal. Nos portos, por exemplo, carregadores e estivadores continuam se
valendo da força de seus ombros e músculos.
A grande diferença é que, hoje, essa categoria está organizada em sindicatos, com capacidade
de reivindicar melhores condições de trabalho. ”
Painel da direita: “Até meados do século XIX, o transporte de carga no Brasil empregava,
principalmente, a força humana. Eram usados, para essa finalidade, escravos africanos ou
índios.
‘... nas costas, nos ombros, no pescoço e na cabeça de homens é que se arrebatavam não só
fardos e caixas de mercadorias como também viajantes, estes escanchados no cangote, ou
então, como preferiam os mais comodistas e aquinhoados, espichados em redes frescas e
acalentadas ao balanço ritmado dos carregadores’, registrou José Alípio Goulart, em seu livro
Tropas e Tropeiros na Formação do Brasil. ”
65 No painel utilizado para apresentação do ofício, que em alguns casos conta com um verso

popular ou trecho de narrativa de viajante, neste caso se lê apenas “Carregador” e “A2 Ofícios do
comércio”.
127

poucas contribuições que eles poderiam dar à sociedade. O trecho final sobre
sindicatos e luta por melhores condições de trabalho denota que anteriormente
as condições eram ruins, mas pode sugerir também que o passado era marcado
por uma atitude de submissão desses carregadores, que aceitavam tudo “por um
vintém”, sem reclamar. Tal sugestão pode corroborar a visão de passividade
atribuída à população escravizada que, entendemos, é fruto secundário do
apagamento operado pela democracia racial a respeito das tensões que
marcaram as relações entre escravizados e seus senhores.

Figura 37 – Ofícios do Comércio (A2), Núcleo do Carregador

Fonte: fotografia da autora, 2017

Talvez mais grave do que a insuficiência na apresentação de aspectos


positivos, seja a quase onipresente representação da escravidão, e da
associação do negro enquanto “escravo”, e tão somente “escravo” submisso,
promovendo mais um reducionismo baseado quase sempre na hiper exploração
visual dos instrumentos de castigo e tortura.
Myriam Sepúlveda dos Santos entende que a escravidão não se trata de
um episódio distante, mas que ainda está presente na medida em que é narrada
(2008, p. 185). Ela entende que “as imagens que reiteram situações de
aniquilamento do ser humano escravo têm o poder de reproduzir a dominação
perpetrada no passado” (SANTOS, 2008, p. 185), reiterando este passado e
reproduzindo a violência no presente, o que se comprova pela presença e
exposição de tantos instrumentos de tortura em museus.
128

Esse fenômeno, contudo, transcende os museus. Para citar um exemplo,


tomamos a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos Rio 2016, em que a
história do Brasil teve seu início representado pelo encontro das três raças.
Primeiramente, uma representação da narrativa indígena sobre Pindorama,
seguida dos próprios indígenas e da alusão a ocas, ao som de uma música
“tipicamente” indígena. Em seguida, a chegada dos portugueses em suas
caravelas, acompanhada por música “de aventura”. Por fim, a chegada dos
africanos, também com sua sonoridade “típica”: vários homens e mulheres
atados a grilhões estilizados, e alguns outros em rodas gigantes giratórias,
assustadoramente parecidas com as utilizadas para ratos em laboratórios. Se
houve algum contato entre portugueses e indígenas, breve e marcado por leve
estranhamento, os africanos surgem na cena sozinhos representados
unicamente como “escravos” – sem que se sugira por quem foram escravizados,
na medida em que não há nenhuma relação estabelecida ali, nenhum outro
personagem. Não se faz referência a práticas culturais ou de resistência, nem
mesmo ao trabalho executado por eles. São apenas pessoas acorrentadas.
Sugere-se com essa apresentação que a condição de escravidão do negro
depende dele mesmo, que “escravo” é uma característica inata que independe
de uma relação de desumanização de um homem por outro, numa história, como
diria Myrian Sepúlveda dos Santos, em que “não há culpados, somente vítimas”
(2008, p. 184).
Como aponta Santos, imagens como essa sobre a escravidão foram
naturalizadas e fazem parte da memória coletiva (SANTOS, 2008, p. 180), de
forma que não parece inadequado ao grande público representar a população
negra da forma como foi feita na abertura dos Jogos Olímpicos do Rio.
Entretanto, tal representação geraria desconforto em homens e mulheres negros
que se colocam diante de exposições, seja em museus, seja na abertura das
Olimpíadas, em que os únicos negros presentes aparecem como vítimas em
situações de humilhação e subordinação.
A autora nos fornece uma descrição interessante para compreensão desta
produção de sentido negativo da participação do negro na história brasileira:

O Museu Histórico Nacional ... traz imagens do negro que fazem


com que ninguém queira com ele se identificar. ...Quando
chegamos no trecho relativo às plantações de cana de açúcar
129

encontramos uma grande maquete de um engenho, onde vemos


negros escravos trabalhando e ao lado a figura de um negro com
uma gargalheira. Em frente às vitrines dois troncos imensos
sinalizam que negros eram colocados ali por castigo. No ambiente
neutro em que são mostrados estes objetos, eles tendem a
cumprir a função de banalizar os açoites ... o aviltamento a que
foram submetidos os escravos” (SANTOS, 2007, p. 331, grifo
nosso).

A expografia descrita por Santos, que neutraliza os objetos e banaliza a


barbárie que foi praticada com eles, opera como discurso que torna “normal”,
previsto, aceito, “natural” que aos negros seja relegada tal participação enquanto
escravizados somente. Se foi um espaço de subordinação no passado, é
aceitável que ainda seja no presente.
Não acompanhamos Santos em sua abordagem psicanalítica que defende
que a escravidão ainda se configura como trauma nos indivíduos do presente.
Representações do passado podem, de fato, ter efeitos negativos sobre a auto
estima de indivíduos do presente, levando em conta que a representatividade
pública de quem vemos como semelhante é fundante em nossa construção
como sujeitos. Contudo, entendemos que o problema criado pela perpetuação
destas formas de caracterização do negro é de ordem social e operadora no
âmbito das memórias e identidades coletivas.
O acervo do MAO não contém grilhões ou outros objetos de castigo.
Porém, possui e optou por expor uma “Balança para pesar escravos” no prédio
A, próxima aos núcleos dos Ofícios do Comércio, em que há a exposição de
uma expressiva coleção de balanças, como abordamos no capítulo 2. A
“Balança para pesar escravos” (Figura 38), juntamente aos pesos usados como
referência, foi colocada em um nicho dentro da parede do edifício (Figura 39), à
parte do restante dos objetos da exposição. Na legenda dessa parte da
exposição, consta um texto informativo, de caráter quase anedótico:

No Brasil a compra de escravos por peso não era prática


comum. As referências históricas encontradas são provenientes
da América do Norte onde, segundo documentos encontrados na
Biblioteca Pública de Nova York, crianças e mulheres eram
comercializadas pelo peso.
130

Figura 39 – balança de pesar escravos Figura 38 – nicho da "Balança para


pesar escravos"

Fonte: fotografia da autora, 2017 Fonte: fotografia da autora, 2017

Trata-se de uma legenda informativa e não problematizadora.


Considerando que a forma como expomos interfere na forma como aquele
conteúdo será apropriado pelo visitante, colocar em separado um objeto tão
emblemático, e ainda com menos iluminação que o restante da exposição, dá a
ele o caráter de exceção, de exótico, corroborado pelo conteúdo da legenda. A
balança está exposta, mas está quase escondida. Caso passe desapercebida
por algum visitante, sua ausência não será sentida no discurso da exposição.
Ainda que possa sugerir uma ideia de humilhação e desumanização, a
balança não se configura como um objeto de tortura, não é o óbvio grilhão
presente em tantos museus brasileiros para a representação da escravidão.
Seria então um objeto interessante para se pôr o tema em questão, associando-
o ao ofício do comerciante. Seria possível promover uma discussão sobre a
131

prática de comercializar seres humanos, informando ao visitante como era feito


esse comércio no Brasil, já que a venda por peso não era comum, como
apontado na legenda. E, talvez numa camada mais profunda de apreensão,
incitar uma reflexão sobre o comércio de escravos como forma de circulação e
acúmulo de capital. Porém, a balança de pesar escravos é apenas apresentada
ao visitante.
Ao que parece, o local foi escolhido para abrigá-la devido a uma
aproximação tipológica com as outras balanças presentes naquela área do
museu, como apontamos no capítulo 2. Contudo, não entendemos que esteja
construído efetivamente um diálogo, visto que a balança não foi associada ao
ofício do comerciante e está deslocada dentro da parede. Não foi feita nenhuma
alusão a quem comercializava e quem comprava escravizados, e não se referiu
a cor de cada um desses personagens.
A associação da população escravizada à desumanização e passividade
tem como resultado a perpetuação da visão a respeito do trabalho realizado por
essas pessoas como de baixa qualidade66 . A ela, somam-se os errôneos
entendimentos a respeito da especialização e conhecimento técnico dos
escravizados, supostamente inexistentes. Quando se fala do trabalho
escravizado, pensa-se em entrave tecnológico e pouco conhecimento técnico
sobretudo pelos trabalhadores, a quem, consequentemente, associa-se pouca
inteligência. Esta ideia, porém, é reflexo de um desconhecimento a respeito da
atuação dos negros escravizados enquanto oficiais mecânicos e do
conhecimento técnico e científico que os africanos trouxeram consigo a respeito
de muitas das atividades realizadas na colônia. Flávia Reis afirma:

se a contribuição de indígenas no espaço das lavras minerais


encontra-se em grande parte sub-registrada, o mesmo se pode
dizer sobre a atuação dos escravos africanos, vistos muitas
vezes simplesmente como força de trabalho empregada na
mineração. (REIS, 2008, p. 284).

Após relatar a participação de europeus e indígenas na aplicação de seus


conhecimentos no empreendimento da mineração, a autora chega aos africanos,
destacando que sua participação transcende a atuação mecânica enquanto
mão-de-obra. Seu artigo é em alguma medida orientado no subtexto pela leitura

66 aliada à questão do defeito mecânico que discutimos no item 3.2


132

da formação do Brasil a partir do encontro entre europeus, indígenas e africanos


em que ao europeu cabe a parte intelectual e, ao africano, a dimensão do
simbólico, uma vez que insere na discussão sobre mineração um debate sobre
os encontros religiosos entre o culto católico e o muçulmano. Ainda assim, traz
conteúdos sobre os conhecimentos dos africanos sobre mineração e metalurgia,
sobretudo de ferro e ouro, qualificando-os – no amálgama com os europeus -
como indispensáveis à consolidação da atividade mineradora (REIS, 2008, p.
284-288).
Douglas Libby denuncia esse desconhecimento a respeito das
contribuições aos métodos produtivos trazido pelos africanos para o Novo
Mundo, muito mais comuns do que se julga. Para ele, por exemplo, as
características africanas da culinária brasileira sugerem que houve influências
também nas técnicas agrícolas, uma vez que os conhecimentos africanos
superavam os europeus no domínio da agricultura tropical. (2006, p. 57-58).
Assim como Flávia Reis, Libby destaca o conhecimento dos africanos a
respeito da mineração e da metalurgia no domínio do ferro e do ouro, utilizados
há séculos na África Ocidental, de forma que seu conhecimento superava o dos
portugueses em diversos aspectos neste âmbito. Em outro exemplo, ele destaca
o emprego de mão de obra africana na construção naval, devido a seu
reconhecido domínio no manejo das madeiras tropicais. Assim, é preciso
reconhecer que “um bom número de atividades produtivas provavelmente lucrou
com o conhecimento de escravos africanos e seus descendentes” (2006, p. 58-
59).
O acervo do MAO contém um grande número de artefatos associados às
atividades dos ferreiros e ferradores, de forma que há alguns núcleos dedicados
a eles. Em um deles, há um painel cujo texto destaca a importância das
atividades dos oficiais do ferro para a estruturação de uma grande parcela da
produção de outras áreas, dando bastante ênfase, mais uma vez, aos processos
produtivos, como analisamos no capítulo 2. Em outro, há menção ao exercício
deste ofício por pessoas negras67 e à qualificação dos artífices africanos. Porém,

67
Texto do painel: “Tudo indica que os primeiros mestres de ofício em metal eram em sua
maioria imigrantes, colonos portugueses. Mas o elemento forro - negro ou mulato - participava
dos ofícios, e havia também alguns artífices escravos chegados da África, com mais e maiores
habilidades do que os artesãos lusos. Dos poucos documentos que restaram dos primórdios da
Colônia, emerge a impressão de que houve tentativas de reservas a concessão de licenças aos
133

não são tão poucos os documentos que restaram desta época68 e o “ambiente
multirracial do Brasil” é uma explicação que não parece dar conta da dinâmica
entre brancos e negros quanto ao trabalho manual que, como já sugerimos,
ainda está em reflexão pela historiografia, de forma que a afirmação é
demasiado categórica. Além disso, entendemos que a menção aos negros,
enquanto africanos, escravizados ou libertos, é feita de maneira displicente,
diminuindo a importância da atuação destas pessoas. Mostrar de forma tão
escondida é quase o mesmo que não mostrar.
A não problematização sobre a escravidão é um problema também nos
núcleos dedicados aos Ofícios Ambulantes. Em Vendedores Ambulantes (Figura
41), há fotografias no primeiro nível de comunicação com o público: um homem
negro vendedor de doces; um homem branco ou mestiço vendedor de
vassouras; uma mulher negra, acompanhada de um menino negro, vendedora
de frutas. Os objetos resumem-se a tabuleiros de doces. Na legenda69 de um
dos tabuleiros, encontramos um texto meramente informativo e que não
corresponde às fotografias, visto que quem está vendendo doces é um homem.
O texto do painel70 novamente atesta o protagonismo das mulheres como
vendedoras de comida, e faz um paralelo muito interessante com os camelôs,
propondo a percepção da permanência deste tipo de serviço nas cidades
brasileiras. Porém, apesar de afirmar que os negros de ganho “tinham no balaio

mestres brancos. No ambiente multirracial do Brasil, essa e outras tentativas do gênero


costumavam fracassar”
68 Alguns trabalhos têm sido publicados tendo como documentação, por exemplo, a produção

das câmaras municipais. Citamos como exemplo os textos já citados aqui de Geraldo Silva Filho,
José Newton Meneses, Douglas Libby.
69 Legenda: “tipo de tabuleiro usado pelas quituteiras, ofício muito comum entre as ‘escravas de

ganho’ no Brasil Império”


70 Painel: “Os ambulantes têm uma longa tradição na paisagem urbana do Brasil. Como

vendedores ou prestadores de pequenos serviços, são personagens que resistem à passagem


do tempo. No século XIX, os ambulantes eram componentes típicos das ruas das grandes
cidades. Pessoas pobres que participavam de feiras livres e mercados públicos, exibindo as
mercadorias em baús pendurados no ombro ou em caixas de madeira abertas.
Os negros de ganho (escravos) estavam por toda parte no Rio de Janeiro e tinham no balaio o
seu maior instrumento de trabalho. Vendia-se de tudo: frutas, verduras, utensílios e adornos.
As mulheres negras, escravas ou libertas, ocupavam os mercados e monopolizavam o comércio
de comidas preparadas, doces ou salgadas, vendidas na rua, em tabuleiros. Entre os ambulantes
havia músicos que animavam festas religiosas ou profanas e também aqueles que, com seu
realejo, vendiam a sorte nas ruas.
Atualmente, os camelôs são a face mais visível da economia informal, ocupando as ruas das
grandes cidades. Nas praias e nos eventos populares, são os ambulantes que matam a sede e a
fome do público, vendendo seus produtos em carrinhos ou em pesadas caixas de isopor. ”
134

o seu maior instrumento de trabalho”, não há balaios em exposição, o que


configura um discurso conflitante entre o texto de apoio e os objetos.

Figura 40 - Ofícios do Ferro, Núcleo do Ferrador

Fonte: fotografia da autora, 2017

Figura 41 - Ofícios ambulantes, Núcleo do Vendedor de Rua

Fonte: fotografia da autora, 2017

Entendemos que seria interessante uma discussão sobre as


especificidades do trabalho do escravizado de ganho em comparação, por
exemplo, ao lavrador, condicionadas pelo espaço urbano e pelo fato de
trabalharem com vendas e, portanto, dinheiro. A menção ao negro de ganho e
135

ao trabalho na cidade poderia funcionar como disparador para uma discussão


sobre as formas de resistência e negociação inventadas por ele no espaço
urbano, de forma que o museu se colocaria no cenário da representação do
negro superando o modelo da submissão e dos atributos sentimentais, e
ressaltando sua participação ativa na dinâmica político-social, para além de sua
condição de vítimas de exploração.
Outra possibilidade seria o questionamento sobre as diferenças entre ser
mulher e ser homem e trabalhar na rua, já que discussões sobre gênero estavam
previstas no programa museológico. Entretanto, a exposição se furtou a
possibilidade de mobilizar a escravidão e questões paralelas, abordando tais
temas de forma secundária, em legendas e textos pouco legíveis e de maneira
informativa.
Em outro núcleo sobre os Ofícios Ambulantes, temos um módulo
dedicado ao Dentista e ao Barbeiro. Nele encontra-se um painel vertical71 (Figura
42) colocado de forma perpendicular ao corredor, contendo duas reproduções de
imagens de Jean-Baptiste Debret sobre escravos urbanos, entre as quais se
encontra um texto sobre barbeiros, dentistas e cirurgiões. Nessas imagens,
vemos homens negros escravizados exercendo o ofício de barbeiro, tratando de
outros homens negros.
Atrás do painel (Figura 43), sobre um deque, há um manequim vestido
como Barbeiro próximo a uma cadeira, como quem convida o freguês a sentar.
Logo atrás, há uma fotografia de Christiano Jr. de dois homens negros, na qual
se vê que o assento usado por eles é bastante diferente da cadeira exposta, mas
tal diferença não é explorada.

71 Painel: “Barbeiro, dentista e cirurgião são profissões que se entrelaçam em suas origens
alimentando, por muito tempo, o imaginário popular: ‘quem lhe dói os dentes vai a casa dos
barbeiros’. Ainda no começo do século XIX, o barbeiro era identificado como o indivíduo que
fazia barbas e aparava o cabelo, arrancava dentes e aplicava sanguessugas. As técnicas eram
transmitidas, na prática e oralmente, de geração a geração.
A barbearia, ambiente predominantemente masculino, já era importante como ponto de encontro:
nela se trocavam informações e circulavam as notícias locais. Havia também barbeiros
ambulantes.
Como material de trabalho, os barbeiros utilizavam bacia de latão modelada de forma a se
adaptar ao pescoço; e o próprio dedo ou uma noz, por dentro da boca do cliente, para melhor
escanhoar – era a barba de caroço ou barba de dedo. O barbeiro ambulante usava também o
artifício de pedir ao freguês para fazer bochecha, facilitando, assim, o movimento da navalha:
“Ioiô, fazê buchichim”.
Ao final do século XIX, com o advento dos profissionais liberais de formação acadêmica, fica
mais definida a distinção entre barbeiro, dentista e cirurgião.”
136

Maria Eliza Borges analisou imagens produzidas no século XIX que


procuraram representar a escravidão, propondo uma interpretação que aproxima
pinturas do francês Jean-Baptiste Debret e fotografias de Christiano Jr. a partir
do referencial do “pitoresco”. Segundo ela,

Os adeptos da Teoria do Pitoresco voltaram-se para as


irregularidades e a desordem da natureza, ressaltaram os efeitos
mutantes da luz sobre a visão humana e criaram paisagens em
volta sem nervos e tons esfumaçados. O Romantismo e/ou a
nostalgia de suas representações também incluíram figuras
humanas, sobretudo aquelas que remetiam observador à vida
pré-industrial, à cultura dos ofícios. (BORGES, 2008, p. 323)

A autora destaca em sua análise duas imagens particularmente


importantes aqui, porque escolhidas pela curadoria do MAO para compor o
núcleo do Barbeiro. Primeiro, sobre a produção de Debret, ela analisa:

A prancha Barbeiros ambulantes é um dos tantos exemplos de


como a cidade negra funciona como vitrine para leitura do
pitoresco. Estamos diante de tipos sociais. Nem barbeiros, nem
clientes têm individualidade. São figuras desprovidas de um
“moi”. São negros, simplesmente. Ao se decidir a representá-los
absortos em seus papéis, Debret definiu o que o observador
deveria extrair da cena produzida. Nem mesmo o cliente que
está sendo barbeado, representado de frente para o observador,
é dotado de individualidade. Sua fisionomia quase que
totalmente encoberta pela espuma de barbear, somada a
dimensão dada ao branco de seus olhos, não nos sugere
perguntas sobre sujeito, mas sobre ofícios, sobre hábitos sociais.
(BORGES, 2008, p. 330)

É sabido, como a própria autora indica, que a referência de Debret era a


estética neoclássica, consagrada por seu primo Jacques-Louis David na França.
A tese da autora é que, em território americano, essas orientações estéticas
incompatíveis na Europa – pitoresco e neoclassicismo – encontram-se e
produzem novas imagens. Este parece ser o caso dos Barbeiros ambulantes de
Debret.
A curadoria do MAO não registrou nenhuma menção a qualquer
contextualização de Debret ou da obra apresentada ali. Nesse movimento, fez
reproduzir sem filtro, crítica ou adição de camadas de significado o sentido que
Borges nos revela. A imagem não foi tratada como documento, mas como
ilustração.
137

Figura 42 – Painel do núcleo Barbeiro


e Dentista (A2)

Fonte: fotografia da autora, 2017

Figura 43 - Ofícios ambulantes, Núcleo Barbeiro e Dentista (A2)

Fonte: fotografia da autora, 2017


138

Outra imagem analisada por Borges é a fotografia realizada por Christiano


Jr., quem, segundo ela:

tinha os olhos postos no outro lado do Atlântico. Seus timbre-


poste destinavam-se primordialmente ao público europeu
interessado em fragmentos pitorescos, ou seja, nos exorcismos
étnicos e no mundo dos ofícios que nesse momento do século
XIX já começaram a viver seu o caso nas cidades industriais
europeias (BORGES, 2008, p. 334)

Sobre o conteúdo da fotografia, Borges afirma:

O fundo neutro indica a intenção do fotógrafo: reter a vista do


observador na dupla fotografada, ou, se se preferir na relação
artífice/ cliente. A nitidez da imagem remete a tese, assentada no
senso comum, sobre a “verdade” do discurso fotográfico.
(BORGES, 2008, p. 336)

Como se vê, a fotografia tem composição muito diferente da executada


por Debret. Porém, se aproximam pelo pitoresco, por um lado, e pela utilização
como “registro” da realidade, que é o que acontece quando apresentamos
imagens sem problematizá-las.
Convém adicionar que a grande maioria da produção do fotógrafo no Rio
de Janeiro foi feita em estúdio, como é o caso desta que analisamos. Ainda
assim, foi utilizada no núcleo do Barbeiro, vinculada aos Ofícios ambulantes,
sem que se colocasse em questão o fato de que a fotografia foi realizada em
ambiente artificial e não no seu local e condição de realização – a rua, de forma
ambulante. Se esta artificialidade fazia sentido ao observador do século XIX, que
ainda assim via a fotografia como registro “científico” da realidade, no século XXI
se fazem necessárias problematizações sobre as condições de produção das
imagens para se fazer uso delas, o que não aconteceu na exposição do MAO.
Além disso, associar uma fotografia a uma gravura, sem tais mediações, reforça
o empréstimo de “realidade” entre elas, desestimulando completamente o
visitante a compreendê-las como representação, que poderiam ser contrastadas
com os próprios objetos expostos.
Ao lado desse último bloco, há o painel sobre o Dentista, com a
especificidade de não se expor uma fotografia, mas um diploma do século XIX. A
possibilidade – e a necessidade – de pôr em questão a formação dos
profissionais no Brasil não foi aproveitada com a exposição desse diploma, tendo
139

apenas sido sugerida pelo texto do painel. Entendemos que caberia a


problematização sobre o prestígio que se dedica no Brasil às profissões
diplomadas em comparação aos ofícios manuais e qual a colocação dos negros
– já que se optou por iniciar o módulo com as pinturas de Debret – nessa
condição de diplomados ou não, no XIX ou atualmente.
Outra reflexão interessante neste sentido seria sobre o fato de que
cirurgiões e dentistas não são atualmente considerados trabalhadores manuais,
enquanto o barbeiro o é. A formação acadêmica exigida dos profissionais de
saúde e o prestígio associado a elas apaga sua condição de trabalho manual
que carrega, como vimos, algumas camadas de estigmas. Outro dado a respeito
dessa questão é a baixa porcentagem de pessoas negras que exercem
atualmente as profissões da área da saúde. As diferenças são apagadas em
função daquilo que há de comum no passado, o trabalho no espaço urbano.
Tudo que seria diferente – livres ou escravizados, diplomados ou não, brancos
ou negros – não precisa, no entendimento da curadoria, ser posto em discussão.
Jennifer Eichstedt e Stephen Small, analisando as falas oficiais de antigas
fazendas escravistas do sul dos Estados Unidos, hoje abertas à visitação,
perceberam existir um padrão discursivo de apagamento da instituição da
escravidão e das pessoas escravizadas. Segundo eles, a promoção do
apagamento e da marginalização se dá na combinação entre o que está
presente e o que não está (EICHSTEDT; SMALL, 2002, p. 105), das informações
que são incluídas e das que não são (EICHSTEDT; SMALL, 2002, p. 107).
Os autores propõem o conceito de aniquilação simbólica, como uma
poderosa estratégia retórica e representacional para obscurecer a instituição da
escravidão (EICHSTEDT; SMALL, 2002, p. 106). Essa estratégia se opera,
segundo eles, a partir de diversos mecanismos. Entre eles, dois nos interessam
particularmente: primeiro, a menção dos escravizados ou negros de forma
superficial72 e fugaz, geralmente numa afirmação descartável dos fatos, sem
detalhes ou elaboração, e geralmente com pouco ou nenhum contexto; segundo,
a ausência de menção, reconhecimento ou discussão sobre a escravidão e os
escravizados (EICHSTEDT; SMALL, 2002, p. 107).

72
No original, perfunctory, que pode significar também negligente, descuidado, por mera
formalidade. Estes significados parecem também servir ao sentido que queremos dar
aqui.
140

Identificamos nos núcleos analisados aqui a presença desses


mecanismos – ou, pelo menos, de seus efeitos –, na medida em que a
escravidão é apresentada de forma apenas informacional e por vezes marginal,
até anedótica. Eles se verificam, por exemplo, no núcleo do Trabalhador de rua,
em que nem ao menos havia uma relação direta entre o texto e os objetos
expostos. Também é notável na “Balança para pesar escravos”, em que o foco
nem ao menos foi dado ao contexto brasileiro, e no uso ilustrativo das imagens
no núcleo Dentista e Barbeiro. E, ainda, na menção tangencial ao especializado
trabalho metalúrgico dos africanos.
Como os autores acima mencionados, entendemos que o silêncio e a
superficialidade no tratamento são bastante operantes e responsáveis pela
produção de sentido que a exposição promove. Quando ela não discute a
escravidão, pois apenas a menciona tangencialmente, ela contribui para o
ofuscamento da importância da escravidão numa reflexão sobre a história do
trabalho no Brasil. Os artefatos expostos ficam, portanto, ou reduzidos à
exploração sua aparência material, de sua beleza, ou agem como confirmadores
de uma iconografia que, descontextualizada, apenas reifica preconceitos há
muito arraigados na sociedade brasileira.
O tratamento dado ao trabalhador negro escravizado não é exclusividade
do MAO. Ao contrário, o museu se insere num contexto cultural de
representação desses sujeitos. Não cremos que o silenciamento promovido na
exposição do MAO tenha acontecido de forma planejada, visando
deliberadamente ofuscar a população negra e a trajetória escravista do trabalho
no Brasil. O MAO foi executado por homens e mulheres que foram guiados por
ideias ainda muito fortes no imaginário brasileiro e adaptadas a uma certa
representação do negro e da escravidão em oposição a uma ideia de trabalho
livre. Dada a disseminação da ideia de democracia racial, continua parecendo
desnecessário colocar em evidência a negritude dos atores sociais, a memória
do escravismo ou das formas de resistência a ele associados, ou, ainda, a
utilização de conhecimentos africanos nos processos produtivos. A escravidão
continua, por um lado, sendo representada sem algozes e, por outro, sem a
revelação da participação das pessoas escravizadas enquanto sujeitos atuantes.
Os artefatos, por sua vez, permanecem sem ser compreendidos como
141

mediadores dessas condições sociais, já que se deu protagonismo aos objetos


enquanto materialidade e não aos problemas históricos e relações humanas.
Todavia, a força da democracia racial no imaginário brasileiro não tira a
responsabilidade que os curadores da exposição, na condição de propositores
de um sentido particular, tinham, justamente, de confrontá-la. Assumir completa
e deliberadamente uma nova posição seria procurar ressaltar a importância dos
africanos escravizados e seus descendentes na trajetória do trabalho brasileiro,
explicitando em que medida ser negro e / ou ser escravizado condicionava o
acesso de homens e mulheres a determinados ofícios, bem como explicitar e
valorizar o conhecimento dessas pessoas, comumente entendidas como menos
capazes.
142

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O projeto que deu origem a esta dissertação apresentava a audaciosa


frase “a história do Museu de Artes e Ofícios ainda está por ser contada”,
assumindo para si o compromisso de cumprir tal tarefa, de narrar o processo de
constituição de um museu desde sua implantação até sua apresentação
contemporânea.
Logo se percebeu que contar a história toda não seria possível.
Primeiramente, porque o tempo passa depressa e a história era mais longa do
que se supôs. Em segundo lugar, porque para se narrar histórias, é preciso
documentação – ou, ao menos, foi o que ensinou a graduação em História. E
não nos foi dado acesso à documentação produzida pela instituição após a saída
da Expomus do projeto.
Com isso, o trabalho teve mais fôlego nas questões que, no fim, se
mostraram mais interessantes e mais formadoras: entender como se constitui
um discurso expositivo, em termos de forma e conteúdo. Ainda assim, muitos
foram os recortes. O segundo andar do chamado prédio B terminou por estar
presente apenas na discussão sobre a opção tipológica de expor muitas formas
de queijo. Foi excluído o debate sobre trabalho e gênero, previsto e desejado,
por limitação de tempo e em função do aprendizado de que a pesquisa
acadêmica contemporânea exige, cada vez mais, que se façam escolhas. Muitos
conteúdos audiovisuais de teor interessante foram deixados de lado, porque
abririam um novo leque temático de discussão que se mostrou além da nossa
alçada.
Mesmo dentro dos espaços em que tentamos transitar foram deixadas
lacunas. Por exemplo, o entendimento das dimensões semióticas das
exposições, conforme a metodologia proposta por Jean Davallon não foi
alcançado aqui, ainda que muitíssimo instigante, porque significaria a abertura
de um novo caminho que não teríamos condições de transitar com a atenção
merecida.
O trabalho teve, cremos, ainda assim, seus alcances. Assumiu aqui um
caráter amplo em termos de temática: falamos sobre requalificação urbana,
pensamos o espaço como produtor de significado, refletimos sobre a curadoria e
o tratamento dado aos curadores; lemos textos e analisamos imagens,
143

discutimos soluções expositivas; refletimos sobre a propalada cultura brasileira.


Essa multiplicidade de entradas teve compromisso de tentar acessar a
exposição, entendida enquanto documento, revelando suas limitações e
potencialidades em muitos aspectos, sempre na tentativa de problematizar a
forma como o “trabalhador” estava sendo pensado, mobilizado e representado.
A apresentação e reflexão do papel do Museu de Artes e Ofícios no
processo de requalificação urbana de Belo Horizonte se mostrou necessária e
relevante uma vez que, de forma geral, essa tendência mundial de qualificação
dos centros urbanos a partir da implantação de museus é marcada por museus
de arte. O MAO não é um museu de arte, colocando-se como ponto fora da
curva nesta tendência; mas, por outro lado, como refletimos ao longo do
trabalho, ele leva Arte no nome e optou por uma estetização dos artefatos, além
de ocupar edifícios históricos, colocando-se então nem tão fora da curva,
inclusive no que toca às possibilidades estreitas de ampliação de um público já
acostumado a frequentar museus.
Nas buscas por bibliografia que nos desse subsídio para a análise formal
da exposição, percebemos que essas reflexões são mais frequentes quando se
trata de museus e exposições de arte, por conta da aproximação com os
debates a respeito de curadoria e arquitetura de museus. Essas leituras
qualificaram nossa análise, porque são muito úteis para se pensar a forma e o
espaço da exposição enquanto agentes na sugestão de relações que o visitante
irá estabelecer, e mesmo enquanto produtoras de significados. Entendemos,
assim, que elas não devem ficar restritas às reflexões sobre os museus de arte,
de que surge nossa tentativa de trazê-las para a análise de uma exposição de
outro caráter.
A opção pela discussão sobre democracia racial e as formas de
representação do negro na cultura brasileira para qualificar a reflexão sobre a
forma de mobilização do tema da escravidão e do trabalhador escravizado
justifica-se pela necessidade de ampliar esse debate dentro do campo da
Museologia. A análise dos núcleos a partir deste tema qualificou nossa reflexão
sobre a maneira como a exposição foi pensada e construída. Se no capítulo 1 e
2 nos debruçamos a partir de diversos aspectos, no 3 elegemos um tema, que
nos pareceu o mais importante, para aprofundar a reflexão.
144

A escolha justifica-se, também, por nosso entendimento de que falar da


história do trabalho no Brasil passa, forçosamente, por falar de trabalho
escravizado. Primeiramente porque, como vimos, a polaridade entre trabalho
livre e escravizado tem muitas nuances e precisa ser utilizada com cautela.
Segundo porque, a despeito dos séculos de utilização compulsória da mão de
obra de mulheres e homens oriundos da África, ainda é atuante no senso
comum a associação da população negra a falta de capacidade para o trabalho.
Também é ainda usual a associação da população negra à escravidão,
entendida como uma circunstância de tão somente trabalho braçal e castigo,
portanto (paradoxalmente) submissão. Ainda é recorrente, paralelamente,
enquanto produto da democracia racial, o apagamento da existência das
pessoas enquanto negras.
Não propomos, com isso, que se faça um discurso apologético a respeito
das capacidades intelectuais e manuais da população negra porque, como
sabemos, os espaços museológicos não podem mais se sustentar enquanto
instrumentos para produção de memórias ou reforço de identidades.
Entendemos, ao contrário, que o museu deve ser espaço de refletir sobre como
memórias e sensos comuns são construídos. Por que temos essa imagem
associada à indolência quando falamos da população negra?
Se nos deslocarmos para as discussões do capítulo 2, por que os
trabalhadores manuais são vistos de forma romantizada? Por que damos mais
valor a algumas profissões do que a outras, em termos de reconhecimento social
e remuneração?
A pesquisa teve, então, sobretudo, a intenção de se fazer um processo
formativo, constituindo-se como um exercício de aguçar o olhar e pensar nas
camadas que estão sendo construídas quando se faz uma exposição, bem como
quais outras estão se revelando a respeito de seus agentes e dinâmicas
institucionais. Guiou nossas análises e reflexões o compromisso de que é
preciso revelar os sujeitos e suas escolhas por trás das siglas, não para que
“desconfiemos”, a priori, dos conteúdos presentes nas exposições, mas para
que, humanizados, possamos explicitar para e com o público que os museus,
ainda que científicos e produtores de conhecimentos relevantes, não são lugares
de verdades absolutas, até porque eles talvez não existam.
145

Temos consciência de que parte da bibliografia mobilizada é posterior à


inauguração do MAO, de forma que seria desonesto exigirmos que ela tivesse
sido contemplada pela exposição naquele momento. Além disso, não
acreditamos que a exposição museológica deva ser um resumo da historiografia
mais contemporânea estampada na parede. Fizemos este exercício porque ele é
pertinente ao compromisso que a pesquisa acadêmica deve ter. Ainda assim, é
preciso notar que a compreensão por detrás da exposição, ou seja, o
entendimento sobre o Brasil e sua história do trabalho que guiou os processos é
uma visão muito tradicional e já ultrapassada em 2002, se considerarmos que já
naquele momento havia um grande acúmulo de novas interpretações sobre a
escravidão iniciadas no contexto do centenário da abolição.
Assim, se inovador porque elegeu como tema principal o trabalho e o
trabalhador manual, o MAO permanece dentro de uma lógica ancestral de
interpretação do Brasil. Além disso, podemos dizer que o MAO é um museu
plasticamente e tematicamente inspirado nos ecomuseus e nas renovações
trazidas pela Nova Museologia e pela ampliação da ideia de patrimônio que
marcaram a segunda metade do século XX. Porém, em termos de metodologia
de implantação e desenvolvimento, o MAO apresenta-se de forma mais
tradicional, e muitas das escolhas expográficas que “neutralizam” o que é
exposto acabam por reforçar uma abordagem da história sem sujeitos, sem
conflitos, sem agências de resistência e de negociação social e política.
Não negamos que a exposição de instrumentos de trabalho tem um
significado importante. Tratar como patrimônio esses objetos tão distantes do
que se cristalizou como sendo “objeto de museu” – e com isso estamos nos
referindo à lógica de “objetos históricos” trazida por José Bittencourt – é uma
iniciativa que tem que ser louvada e valorizada, porque rompe com padrões e
expectativas. É possível e provável que marceneiros ou filhas de rendeiras se
encantem, se sintam representados e socialmente importantes por suas
profissões estarem ali presentes num museu. Isso não é banal, de forma que a
publicização daquele acervo já opera de maneira socialmente importante por si
só. Nesse sentido, a experiência do MAO enquanto proposta museológica é
muito importante, relevante e digna de consideração. Inclusive, o encantamento
que ela provoca conquistou também a nós, sendo a primeira motivação para sua
escolha enquanto objeto de pesquisa.
146

Todavia, é igualmente possível que, talvez, as barreiras simbólicas que


historicamente afastam a “classe trabalhadora” dos museus estejam ainda
atuantes73, a começar pela arquitetura imponente. Segundo a pesquisa realizada
por Maíra Corrêa em 2006, o público do MAO não é diferente do da maioria dos
museus brasileiros: classe média com ensino superior completo ou não, além de
grupos escolares (CORRÊA, 2010, p. 91-94). Sendo assim, como podemos
sustentar a ideia de que o museu é o lugar de “encontro do trabalhador consigo
mesmo”? De qual trabalhador estamos falando? Ele se entende enquanto tal? O
museu atua na discussão da existência de uma identidade, do que é “ser
trabalhador”?
Como já dissemos conforme sugestão de Ulpiano Bezerra de Meneses, o
museu não deve ser o lugar de reforço ou construção de identidades, mas de
problematização delas. O MAO, ao contrário, parte de uma suposta identidade
compartilhada pelos “trabalhadores” e, sublimando-a, paradoxalmente torna
secundários os sujeitos, e protagonistas e belos, os objetos.
A história do Museu de Artes e Ofícios talvez esteja ainda por ser
contada. Contudo, temos a esperança de que os capítulos narrados aqui tenham
sua validade no âmbito dos sempre diversos conhecimentos produzidos pela
Museologia, sobretudo sobre a construção de exposições e a memória do
trabalho no Brasil.

73A gratuidade de entrada, desde 2016, tem um papel importante na quebra de uma dessas
barreiras, razão pela qual louvamos o MAO. O mesmo pode-se dizer a respeito da ampliação dos
horários de funcionamento, também a partir de 2016.
147

ANEXO
148
149

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