PES e Mario Testa

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ANÁLISE

Planejamento Estratégico em Saúde:


Uma Discussão da Abordagem de Mário Testa

Ligia Giovanella * * Professora Assistente do De-


partamento de Administração e
Planejamento em Saúde,
ENSP / Fiocruz.

A partir de um estudo da produção teórica recente


de Mário Testa (1983-7), é feita uma caracterização
de sua proposta atual para o planejamento em saúde.
Essa caracterização» porém, não leva à conformação
de um método de planejamento, pois Testa propõe
um modo de entender os problemas de saúde e os
processos de planejamento, apresentando apenas
alguns elementos para esse processo. Ao compreender
os problemas de saúde como socialmente
determinados, Testa interessa-se pelo comportamento
dos atores sociais, e põe ênfase na analise das relações
de Poder e na consideração das práticas de saúde,
enquanto práticas ideológicas, conformadoras de seus
sujeitos. Testa, assim, avança de uma proposta de
planejamento estratégico em saúde para um pensar
a ação política em saúde.
Poder e Ideologia são categorias que fundamentam
esse pensar,, sendo escolhidas para a análise de sua
proposta. É realizado um estudo sobre Poder e
Ideologia, discutindo-se as compreensões de Testa a
respeito. Dessa discussão, conclui-se que as práticas
de saúde, enquanto práticas sociais, são práticas
ideológicas e afetam as concepções de mundo de seus
sujeitos, sendo difícil, porém, garantir a
direcionalidade da mudança dessas concepções.E
argumenta-se favoravelmente ao conteúdo
transformador da proposta de Testa para o
planejamento em saúde, por desvendar os conteúdos
de Poder nas ações em saúde, não escamoteando as
bases reais da dominação, e por ser transparente nos
deslocamentos de Poder que objetiva.

O enfoque estratégico de planejamento em saúde


pode ser entendido como formulações que rompem com
a normatividade de um "deve ser" que se impõe sobre
a realidade. Nestas, propõem-se processos de planeja-
mento que objetivam alcançar o máximo de liberdade
de ação a cada ação realizada. Para tanto, considera-se
o problema do poder, admitindo-se o conflito entre
forças sociais com diferentes interesses e com uma
visão particular sobre a situação-problema na qual se
planeja, fazendo parte do processo de planejamento
a análise e a construção da viabilidade política.
Tendo essa compreensão, postulo a existência de
três vertentes desse enfoque, elaboradas por autores
latino-americanos: o "planejamento situacional", for-
mulação de Carlos Matus para a planificação econômi-
co-social global, que vem sendo adaptada para a saúde
(Matus 1981, 1982-1987); a "proposta de Medellin",
uma linha desenvolvida a partir de discussões promovi-
das pela OPAS e na Faculdade Nacional de Saúde
Pública de Medellin, divulgada em documento da auto-
ria de Juan José Barrenechea e Emiro Trujillo Uribe
"STP 2000: Implicaciones para la Planificación y Ad-
ministración de los Sistemas de Salud" (Barrenechea
e Trujillo — 1987); e "as propostas programático-es-
tratégicas" de Mário Testa.
Dessas vertentes, escolho a produção de Testa
para estudo. Testa é ator importante do planejamento
de saúde na América Latina: participa da elaboração
e difusão do método Cendes/OPAS e, a partir da críti-
ca a esse método e sua autocrítica, faz suas proposi-
ções. Como resultado de suas reflexões, propõe para
o planejamento de saúde "integrar o cálculo tradicio-
nal — referente ao diagnóstico e à proposta adminis-
trativa — com a análise estratégica da estrutura de
poder setorial, e a análise das repercussões das ações
propostas sobre esta estrutura, na tentativa de dese-
nhar uma maneira de aproximar-se da posição de Ha-
bermas: criar uma estrutura comunicativa que devolva
ao povo as ferramentas científicas necessárias para
sua liberação" (Testa — 1986).
Testa não apresenta essa proposta ordenada em
texto único. Para conhecê-la e discuti-la, inicialmente,
realizei um estudo de sua produção recente (1983 —
1987), identificando os fundamentos e elementos de
suas propostas pro gramático-estratégicas.
OS FUNDAMENTOS DA PROPOSTA DE MÁRIO
TESTA
Considero como fundamentos dessa proposição
de Testa para o planejamento: sua compreensão do
planejamento como prática histórica, o postulado de
coerência que apresenta sua interpretação dos proble-
mas de saúde enquanto problemas sociais e sua com-
preensão e análise do Poder, na sociedade e no setor
(Testa, 1985 - 1986/1987).
Para Testa, o propósito do processo de planeja-
mento em saúde é de mudança social. Pensar na trans-
formação social significa pensar na construção de uma
nova sociedade. Intervir na construção da história.
Pensar o planejamento como prática histórica. Discute,
então, as estratégias de transformação social historica-
mente gestadas, utilizando conceituação gramsciana.
Considera que a análise desses processos históricos
mostra uma combinação de estratégias de "ocupação
de espaços" e de "enfrentamento" ("guerra de trin-
cheiras" e "assalto ao poder").
O propósito de mudança determina um diferente
método, pois considera o método necessariamente rela-
cionado aos propósitos perseguidos. Método e propósi-
tos, por sua vez, relacionam-se com a organização
das instituições encarregadas de executar as ações per-
tinentes ao alcance dos propósitos. Postula, então,
a existência de relações de determinação e condiciona-
mento entre propósitos, método e organização. Rela-
ções essas que devem ser analisadas nas condições
particulares de cada formação econômico-social, quan-
do se discute um método de planejamento. Testa pro-
põe um modo geral de análise dessas relações para
sociedades capitalistas e dependentes, diferenciando-
as dos países capitalistas desenvolvidos. São estas ne-
cessárias relações entre propósitos, método e organiza-
ção que Testa apresenta em seu "Postulado de Coerên-
cia" (Testa, 1987).
Testa entende saúde como "o jeito de andar a
vida" e os problemas de saúde, tanto de situação de
saúde como de organização setorial, como problemas
sociais complexos nos quais intervém inúmeras variá-
veis relacionadas de formas muitas vezes desconhe-
cidas.
Considera que, para os problemas de situação de
saúde, a análise que mais tem conseguido aproximar-se
dessas complexas relações é a realizada pela epidemio-
logia social. Na epidemiologiasocial, o processo saú-
de-doença é entendido como expressão particular do
processo social, sendo as desigualdades, no sofrer e
adoecer entre grupos de pessoas, consideradas como
decorrentes de diferenças de classe social.
Os problemas de organização setorial, represen-
tados, em grandes termos, pela alocação social de re-
cursos para a atenção à saúde, são também problemas
sociais. Fazem parte das questões relacionadas à repro-
dução da força de trabalho, e estão determinados eco-
nomicamente por necessidades da acumulação e, politi-
camente, pelas lutas dos trabalhadores por sua condi-
ção de vida atual, e acerca do futuro ordenamento
social (Testa, 1985).
No entender de Testa, proposições em Saúde so-
mente serão eficazes a longo prazo, quer dizer, levarão
à resolução dos problemas de saúde, se fundamentadas
na interpretação da determinação social do processo
de produção desses problemas, pois esta interpretação
é que mais dá conta da sua complexa determinação.
Os problemas de saúde, enquanto problemas so-
ciais, só podem ser resolvidos a partir do social mesmo.
Pois a totalidade social não é divisível, não pode ser
separada em partes. Não e possível modificar o social
com propostas setoriais, diz Testa. As propostas seto-
riais podem, apenas, criar condições que abram o cami-
nho para a modificação do social (Testa, 1986).
Para mudar o social, é necessário pensar na ques-
tão do Poder, pois o Poder é categoria central na
análise da dinâmica social. Significa pensar em como
a forma de implementar uma ação de saúde — a estraté-
gia — leva a alcançar um certo deslocamento de poder
— uma política — favorável à resolução do problema.
Assim, as estratégias em saúde extrapolam o setorial,
abarcando o conjunto social, e dão eficácia às propos-
tas a longo prazo. Para isso é necessário conhecer
o Poder: o que é, suas determinações, suas relações,
seus recursos, e encontrar formas para analisá-lo em
sua distribuição setorial (Testa, 1986).

A PROPOSTA
Identificados esses fundamentos das suas proposi-
ções, seguindo a proposta de Testa para o planeja-
mento de saúde inicialmente referida, podemos, assim,
ordenar os conteúdos de seus trabalhos: o diagnóstico
de saúde, constituído pelos diagnósticos administra-
tivo, estratégico e ideológico e pela síntese diagnósti-
ca; e as suas propostas programático-estratégicas: a
consideração dessas propostas, enquanto processos,
pela análise de seus tempos técnicos e políticos, os
programas de abertura, avanço e consolidação, e suas
estratégias de formas organizativas, democráticas e
participativas (Testa, 1986).
Através do diagnóstico, é feita a análise da reali-
dade de saúde. Essa análise não é neutra e está determi-
nada pelo propósito que se tenha. O propósito, para
Testa, é de transformação das relações do poder, atra-
vés da realização de ações em saúde. Esse propósito
produz um viés particular no diagnóstico: enfatiza-se
a análise das relações de Poder em Saúde.
Para um melhor conhecimento dos problemas de
saúde, Testa propõe três tipos de diagnóstico: adminis-
trativo, estratégico e ideológico. O diagnóstico admi-
nistrativo é parte da análise e cálculo tradicionais do
planejamento de saúde. Através desse diagnóstico, po-
pulação, doenças, mortes, recursos disponíveis e ativi-
dades realizadas em saúde são enumerados e quantifi-
cados. Cadeias epidemiológicas e nós técnicos críticos
são identificados. A partir de critérios técnicos e de
eficácia e eficiência, recursos e atividades necessários
são calculados.
O diagnóstico estratégico é a análise das relações
de poder no setor. Neste diagnóstico, são identificadas
e analisadas as desigualdades, na situação de saúde
e na atenção à saúde, entre grupos sociais, determi-
nadas por diferenças de classe social. Internamente
aos serviços, analisam-se as relações de poder que
aí ocorrem, e identifica-se a distribuição dos três tipos
de poder em saúde: o técnico, o administrativo e o
político. Na composição setorial analisa-se o poder
administrativo concretizado pelo manejo de recursos
e mediado pelo financiamento, diagnosticando os gru-
pos sociais relacionados aos processo de financiamen-
to.
O diagnóstico ideológico é o diagnóstico da ideo-
logia dos grupos sociais com interesses em saúde. É
o diagnóstico de suas compreensões sobre a saúde
e a sociedade — consciência sanitária e social — e
suas práticas correspondentes.
Após esse esmiuçamento da realidade, através dos
três diagnósticos, é realizada a síntese diagnóstica:
um momento integrador que reconstrói a realidade de
saúde analisada. Através da síntese, identifica-se o
espaço social setorial, enquanto sua estrutura de Po-
der. São identificados todos os atores e possíveis ato-
res sociais de saúde e seus interesses, e analisadas
sua força, suas relações e participação no debate da
saúde.
A síntese diagnóstica é momento de início da
formulação das propostas programático-estratégicas.
Propostas cuja intenção é realizar ações de saúde, obje-
tivando mudanças. É pensadas desde a análise de sua
viabilidade e de suas repercussões sobre a estrutura
de poder na sociedade: as relações de poder entre
os grupos sociais, dentro e fora do setor saúde. A
ação em saúde é a parte programática da proposta.
A estratégia é a forma de implementar essa ação, é
o comportamento dos atores, objetivando adquirir li-
berdade de ação para alcançar o objetivo buscado de
transformação das relações de poder.
As propostas programático-estratégicas são pen-
sadas enquanto processos que se realizam ao longo
do tempo. Tempos técnicos e políticos, desencadeados
pelas ações propostas, são avaliados.
Testa propõe três tipos de programas: de abertura,
de avanço e de consolidação. A partir do diagnóstico,
programas de avanço, contendo as mudanças conside-
radas necessárias, são elaborados. Com o intuito de
criar viabilidade para as mudanças, através da constru-
ção de uma base social de apoio e pela negociação
entre as forças sociais, programas de abertura são
formulados. Pela institucionalização das mudanças e
através da realização de medidas materiais que demons-
trem concretamente a positividade das mudanças, estas
são consolidadas adquirindo permanência. Estes são
os programas de consolidação. O conjunto de progra-
mas, com suas formas organizativas correspondentes,
conforma o processo de mudança.
As propostas programático-estratégicas objetivam
acumular poder para os dominados e mudar as relações
de poder, através da formação de uma consciência
sanitária social e de classe. A implementação dos pro-
gramas de avanço, através de formas organizativas
das práticas propostas, democráticas e participativas,
dão aos programas essa direcionalidade. Formas orga-
nizativas internas democráticas, com a criação de uma
equipe de saúde solidária e colaborativa, são propostas
como mecanismo para a construção da igualdade: a
mudança das relações de poder. Formas organizativas
internas democráticas são inseparáveis da abertura do
setor saúde à participação direta da população. Esta
é uma proposta de redistribuição de poder, objetivando
constituir a população em ator social. A participação
da população, através de suas organizações, no debate
de saúde, amplia esse debate e torna-a ator social
em saúde.
Nesse ordenamento, como já disse, sigo a acima
referida proposta de Testa para o Planejamento em
Saúde. Em síntese, pode-se dizer que seu diagnóstico
administrativo faz referência ao cálculo tradicional:
contabilização e análise do rendimento dos recursos
existentes, relação do contabilizado com um ótimo
convertido em norma e cálculo dos recursos necessários
para a execução das ações propostas. Os diagnósticos
ideológico e estratégico, juntamente com a síntese
diagnóstica, põem ênfase na análise da estrutura de
poder setorial. Os programas de abertura, avanço e
consolidação, elaborados a partir desta análise, consi-
deram as repercussões das ações propostas sobre essa
estrutura de poder. As formas organizativas democrá-
ticas e participativas pretendem dar direcionalidade
aos processos desencadeados, acumulando poder para
as classes dominadas/subordinadas. Internamente aos
serviços, alterando a distribuição de poder em seu
favor, e externamente, através da mudança na cons-
ciência que podem provocar, influenciando na disputa
de poder na sociedade e constituindo grupos de popula-
ção como atores em saúde.
DISCUSSÃO
Mário Testa faz uma proposta acerca do planeja-
mento de saúde, porém, não propõe um método de
planejamento. Propõe um modo de entender o processo
de planejamento e dá uma direcionalidade a esse pro-
cesso, mas não instrumentaliza o processo. Não propõe
um conjunto ordenado de procedimentos e técnicas
de intervenção em complexas situações de conflito:
um método de planejamento estratégico.
Considero que planejar em situações de conflito
requereria uma série de técnicas e procedimentos que
pudessem ser seguidos, seqüencialmente, ou realizados
em momentos simultâneos e que dessem conta: da
abordagem da complexidade social, em sua totalidade,
expressada, com especificidade, em relação à saúde;
da interação entre as diversas forças sociais; e da varia-
bilidade e incerteza que significa tratar com o futuro,
possibilitando a realização do "deve ser".
Ora, a realidade social não é regida por leis que
se repetem. Na realidade social é possível, a partir
de sua estruturação econômica, delinearem-se tendên-
cias: possibilidades com diferentes probabilidades para
os acontecimentos. Tendências, mas não leis, porque
há uma interação entre o econômico e o político. Por-
que uma suposta dinâmica social necessária, determi-
nada objetivamente, a partir das relações econômicas
atuais, é inseparável das iniciativas subjetivas das pes-
soas, das ações humanas livres (Konder, 1988). É inse-
parável da ação e luta de homens e mulheres reunidos
segundo interesses comuns em classes/grupos sociais.
A ação das classes/forças sociais em disputa e luta
não pode ser previamente determinada pelo estabeleci-
mento de leis. O resultado de enfrentamentos e alian-
ças não é previsível. Querer fazê-lo significa instituir
uma normatividade da política, uma normatividade pa-
ra as relações de poder.
"Tendência não é destino" (Ansoff, 1983). "As
circunstâncias fazem os homens, assim como os homens
fazem as circunstâncias" (Marx, 1986), e aí está
a possibilidade do planejamento, possibilidade de im-
primir direção à ação futura, tanto maior quanto mais
ampla, mais coletiva, a vontade da modificação. O
que não é possível é dar conta de toda a complexidade
que é a sociedade e o tratar com o futuro — principal-
mente em situações de conflitos de vontades advindos
de interesses antagônicos — através de uma série de
técnicas e procedimentos. É possível, apenas, aproxi-
mar-se dessa complexidade, e Testa propõe alguns ele-
mentos para o planejamento em saúde.
Um dos principais elementos que Testa apresenta
para um processo de planejamento é o diagnóstico.
Nos diagnósticos propostos por Testa, são apresen-
tadas algumas técnicas para cálculo de indicadores e
análises de problemas, mas essas, no conjunto, não
conformam um roteiro a ser seguido para a identifi-
cação e explicação dos problemas de saúde. Mais do
que uma série de procedimentos, os diagnósticos cons-
tituem um quadro de análise para se pensarem os pro-
blemas de saúde, um modelo explicativo orientador
do esmiuçamento da realidade, necessário para o levan-
tamento e compreensão dos problemas de saúde.
Os programas de abertura, avanço e consolidação
também não podem ser considerados, enquanto técni-
cas ou procedimentos, partes de um método, pois não
contêm instrumental para a sua elaboração. São orien-
tações para se pensarem processos de planejamento
estratégico e não metodologia de elaboração de progra-
mas ou técnicas de análise de viabilidade: são orienta-
ções para um pensamento estratégico.
A apresentação de três tipos de programas põe
ênfase na necessidade da construção ativa da viabili-
dade e na importância da permanência da viabilidade
para a consolidação das mudanças implementadas. Os
programas de abertura põem ênfase nas relações de
poder, os de consolidação, na ideologia e os de avanço
correspondem ao "deve ser". Programas de abertura
e consolidação têm conteúdos diferentes, mas ambos
referem-se à questão da base de apoio. Os de abertura,
apoio para a decisão sobre o avanço, e os de consoli-
dação, apoio para garantir a permanência do avanço.
Em ambos, Testa afirma a importância do poder, en-
quanto ideologia nesse processo de mudança. E, por
entender a ideologia como relação dialética entre saber
e prática, Testa propõe formas organizativas democrá-
ticas e participativas que, no seu entender, contribuem
para a formação de uma nova ética de solidariedade
e transparência que oriente novas práticas sociais
transformadoras, pois, ao compreender os problemas
de saúde, enquanto determinados socialmente, e o se-
tor como parte inseparável da totalidade social, para
Testa, somente práticas sociais globais transformado-
ras poderão levar a, e consolidar, mudanças em saúde.
Sua proposição deixa de ter, assim, uma especifi-
cidade setorial para tratar de influenciar na construção
da história, imprimir direção aos processos sociais.
Pensar a ação de homens e mulheres na construção
da história, na construção da realidade social, é pensar
a ação política: pensar as relações de poder na socieda-
de. Imprimir direção aos processos sociais é pensar
na ampliação de uma vontade, tornando-a coletiva.
Pensar uma vontade que é ação transformadora signi-
fica pensar a relação de Poder não apenas como repres-
são, mas também como Ideologia.
Este é o caminho de Testa e, por isso, avança
de uma proposta de planejamento estratégico em saúde
para um pensamento estratégico, um pensar a ação
política em saúde. E, neste pensar a ação política,
Poder e Ideologia são as categorias fundamentais e,
por isso, as escolho para a análise que realizo de suas
proposições.
Testa está interessado no comportamento dos ato-
res sociais, pois é no comportamento dos atores que
está a possibilidade de intervenção na construção da
história direcionada à transformação das relações de
Poder na sociedade. Comportamento e consciência —
prática e concepção de mundo — são, para Testa, inse-
paráveis. Transformando-se as práticas, transforma-se
a consciência, transformando-se a consciência, trans-
formam-se os comportamentos, por isso, sua ênfase
na consideração do Poder como Ideologia, e a impor-
tância dessas categorias para analisá-lo.

PODER
Para discutir o Poder em Testa, é necessário estu-
dar o Poder. Na relação entre pessoas e coisas, ou
coisas e coisas, o Poder tem um significado de capaci-
dade que, aplicada sobre um objeto, produz um efeito
nesse objeto, modifica esse objeto (Stoppino, 1986).
Na relação entre pessoas, uma a uma ou entre
grupos, ainda de forma descritiva, o Poder não é uma
capacidade que se detenha, é uma relação de comporta-
mentos, onde o comportamento de uma pessoa ou gru-
po, de forma intencional e interessada, modifica o
comportamento de outra pessoa ou grupo (Weber,
1974). É relação desigual, onde um é sujeito e outro
objeto do Poder e que subentende sempre conflito.
Esta, porém, e apenas uma descrição da relação
de Poder. É através da discussão da Política e do
Estado que podemos aproximar-nos da essência do Po-
der, das suas reais determinações. Política pode ser
considerada como tudo o que está relacionado com
a distribuição, deslocamento ou conservação de Poder,
e o Estado entendido como a maior organização políti-
ca. Poder, Política e Estado muitas vezes confundem-
se. Bom exemplo dessa confusão, deste ser a mesma
coisa, é quando considera-se a ciência política, por
vezes, como a ciência do Poder, por vezes como a
ciência do Estado.
Desde a origem do Estado Moderno, sua análise
é inseparável da discussão do poder. O Estado é Poder
absoluto, mantido pelo temor, em Maquiavel. Estado-
Leviatã, em Hobbes: Poder imanente à natureza huma-
na, que é cedido em contrato ao soberano, fundando
o Estado, para garantir a propriedade e acabar com
a guerra permanente do "estado de natureza", pois
"o homem é o lobo do homem". Estado: Poder absolu-
to e irresistível do soberano, garantido pela força.
Em Locke, o contrato funda o Estado e a socieda-
de. Estado que garante a propriedade, mas também
a igualdade e a liberdade do "estado de natureza".
Acordo garantido agora pelo consentimento. Homens
livres que se acordam entre si e instituem um governo
legítimo.
Na mesma linha de contrato entre homens livres
e iguais, Rousseau: "Todos nascem livres e iguais
e são iguais perante a lei". A lei expressa a vontade
geral. A vontade geral é soberana. O Poder funda-se
na vontade geral, e o Estado representa a vontade
geral (Chevallier, 1980).
Marx e Engels rompem com a teoria do Estado,
do Poder fundado no contrato, deixando de lado o
"deveria ser" e o "parece que é", ao analisarem as
sociedades capitalistas européias de sua época. Na aná-
lise histórica da sociedade e do Estado realizada por
Marx e Engels, o Estado é produto da divisão da
sociedade em classes, e resulta de um processo através
do qual a classe economicamente dominante torna-se
politicamente dominante afirmando seu Poder sobre
a sociedade inteira. Poder organizado de uma classe
para a opressão de outra, que garante a reprodução
da divisão da sociedade em classes. A sociedade que
analisam Marx e Engels não é um imaginário estado
de natureza, onde todos seriam, intrinsecamente, bons
ou maus, mas a sociedade de seu tempo, onde a igual-
dade e a liberdade preconizadas pelos liberais burgue-
ses são a liberdade do cidadão, não mais servo em
vender a sua força de trabalho, e a livre concorrência
no mercado; igualdade entre trabalhadores livres e ca-
pitalistas, quando se encontram no mercado trabalha-
dores que vendem a sua força de trabalho e proprie-
tários dos meios de produção que a compram e os
expropriam da riqueza que produzem. É sociedade divi-
dida em classes, onde o Estado é poder organizado
de uma classe para opressão de outra. Estado de inte-
resses particulares de uma classe, e não da vontade
geral (Marx e Engels, 1975), (Gruppi, 1986). E, refor-
ça Lenin, todo o Estado é ditadura de classe: órgão
de opressão de uma classe sobre outra (Lenin, 1974).
É na análise marxista que encontramos, então,
a determinação fundamental do Poder: o Estado nasce
com as classes e com a luta de classes. Não estamos
mais frente a justificativas do Poder, mas, sim, frente
aos fundamentos do Poder: a divisão da sociedade
em classes. Divisão da sociedade, em classes, pela
apropriação privada dos meios de produção. Classes
definidas pelos diferentes lugares ocupados pelas pes-
soas nas relações de produção.
Considerar apenas esta determinação econômica
significa, para Carlos Nelson Coutinho, ter uma com-
preensão restrita sobre o Estado. Esta compreensão
que, enquanto conhecimento, situa-se no nível de abs-
tração do modo de produção, onde contrapõem-se bi-
polarmente duas classes fundamentais, diz ele, deve
ser articulada com as determinações mais concretas
que resultam da análise de cada formação econômico-
-social atual, cada vez mais complexas. Deste modo,
amplia-se o conceito de Estado e aproxima-se mais
de sua realidade concreta, síntese de múltiplas determi-
nações, introduzndo-se novas determinações "... não
apenas na esfera econômica (articulação hierarquiza-
da de diferentes modos de produção) e na social (com-
plexificação da estrutura e dos conflitos de classe),
mas também na esfera do político (novas característi-
cas do fenômeno estatal e maior especificação de seu
papel na reprodução global da sociedade" (Coutinho,
1987).
A sociedade e o Estado tornam-se mais comple-
xos. Mais complexas, também, tornam-se as análises
marxistas sobre o Estado e o Poder. Gramsci trata
de um período histórico onde já ocorreu uma maior
socialização da política, os direitos políticos estão mais
desenvolvidos, e é na Política a sua ênfase. Sociali-
zação da política que amplia o Estado, fazendo-o avan-
çar sobre a sociedade civil, e que é presença das massas
na política, pré-condição para sua autonomia (Couti-
nho, 1987).
Em Gramsci, o Poder de Estado é Poder de classe,
mas não se mantém apenas pela violência, mantém-se
também pela Ideologia. Gramsci nos mostra a amplia-
ção do Estado, juntando nele Sociedade Política e
Sociedade Civil, repressão e ideologia, domínio e dire-
ção, coerção e hegemonia.
Em Gramsci, é Poder ainda de classe, fundado
na relação de produção, mas que se mantém não mais
apenas pela coerção. A dominação mantém-se pela
aceitação por parte dos dominados de uma concepção
de mundo que pertence aos seus dominadores. Visão
do mundo da classe dominante que se transforma em
senso comum, em filosofia das massas, que aceitam
a moral, os costumes e o comportamento institucio-
nalizado da sociedade em que vivem. O Estado promo-
ve esse conceito único de realidade, impedindo o de-
senvolvimento da consciência da classe trabalhadora,
ampliando o seu papel na perpetuação das classes
(Coutinho, 1981, Gramsci, 1980).
Gramsci retoma os conteúdos sobre o Estado dos
escritos de Marx e Engels e avança, encontrando as
bases materiais da ideologia no interior da sociedade
civil, num conjunto de organizações privadas que con-
formam a mediação necessária entre a infra-estrutura
econômica e o Estado-coerção, a Sociedade Política.
Aparelhos privados de hegemonia — escola, partidos,
sindicatos, associações, toda organização material da
cultura e meios de comunicação — portadores materiais
de diferentes visões de mundo, diferentes valores em
disputa.
Gramsci, preocupado em como as classes domi-
nantes capitalistas, a despeito da atuação de organiza-
ções operárias revolucionárias, conseguem ter a aceita-
ção de grandes parcelas das classes trabalhadoras, e
tentando entender esse consentimento, encontra, por-
tanto, suas bases na concepção de mundo, no sistema
de crenças e valores morais, nas raízes culturais. En-
contra a base da aceitação no controle sobre o pensa-
mento, sobre a consciência das pessoas, controle que
se exerce em todos os lugares, não só nos, mas através
dos aparelhos de Estado.
Poulantzas, constatando o avanço nas sociedades
contemporâneas do que denomina de "Estatismo Auto-
ritário" — o avanço cada vez maior do Estado em
todos os setores da vida social nos países capitalistas,
e do autoritarismo e burocratismo nos países de socia-
lismo real — preocupa-se em estudar e esclarecer as
bases dessa situação para que, compreendidas e identi-
ficadas as estruturas que devem ser transformadas,
seja possível traçar trajetórias para um socialismo de-
mocrático (Poulantzas, 1985).
Em Poulantzas o fundamento do Estado (não a
origem) está lá onde está a relação de produção. A
base material do Poder está na relação de produção
e na divisão social do trabalho. Na relação de produ-
ção, fundam-se as classes e suas lutas: as relações
de Poder. O Estado funda-se nas lutas e é condensação
material de uma relação de forças entre classes domi-
nantes — o bloco no poder. Relações entre os integran-
tes deste bloco e as classes dominadas. Lutas que
perpassam o Estado. Relação de forças que adquire
materialidade nos aparelhos/instituições do Estado,
conformando um conjunto contraditório e fissurado.
Classes dominadas inscritas na materialidade institu-
cional do Estado como focos de oposição. Em Poulant-
zas as lutas populares inscrevem-se na própria materia-
lidade da sociedade política.
Estado não acima das classes, mas com uma auto-
nomia relativa, frente ao bloco no poder, que lhe per-
mite a organização deste bloco e do consenso das
classes dominadas em relação às dominantes.
Foucault estuda a "Microfísica do Poder". Não
mais o que é o Poder e suas determinações, mas os
dispositivos de exercício do Poder, a tecnologia atra-
vés da qual obtém-se a sujeição: mecanismos de Poder
que controlam o corpo minuciosamente: gestos, atitu-
des, discursos. Rede de dispositivos de Poder à qual
ninguém escapa.
Não existe Poder fora de seu exercício, afirma
Foucault, pois, Poder não é coisa que se possua: não
se possui Poder — exerce-se Poder. O Poder em Fou-
cault é também relação: relação Poder-Resistência. Re-
lações de Poder que incidem sobre os corpos, tornan-
do-os úteis: corpo produtivo e submisso, dócil e lucra-
tivo. Relações de Poder presentes em toda parte. Exer-
cício de micropoderes em redes mais ou menos hierár-
quicas, onde cada um é centro de transmissão de Poder.
Poder que se exerce através de mecanismos disci-
plinares. Tecnologiade controle sobre os corpos que
reparte, fixa e distribui espacialmente os indivíduos,
classifica-os, tira deles o máximo do tempo e o máximo
de forças, treina os corpos e codifica os comporta-
mentos. Mantém os corpos sob visibilidade plena, vigi-
lância contínua e permanente, e constitui um aparelho
completo de observações e registros, produzindo um
saber.
Dispositivos de Poder que tornam o seu exercício
mais rápido e útil: gasto mínimo e eficiência máxima.
Mecanismos do exercício cotidiano e físico de micropo-
deres: relações inigualitárias e assimétricas.
O Poder é também positivo no sentido produtivo.
Ele não é só negativo: pune, recalca, reprime, pelo
esquadrinhamento disciplinar adestra o corpo, produz
o indivíduo (Foucault, 1977, 1982).
Concluindo, podemos dizer que o Poder é relação
social que, na sociedade dividida em classes, tem os
seus fundamentos nas relações de produção e na divi-
são social do trabalho. Exerce-se na sociedade política/
aparelhos de Estado e na sociedade civil/aparelhos
privados de hegemonia, conformando um Estado am-
pliado, resultado da condensação material de uma rela-
ção de forças entre classes e frações de classes.
Poder sustentado pela repressão e pelo consenti-
mento, pela coerção e pela persuasão. Repressão que
suplicia os corpos, sempre pronta para ser deflagrada.
Consentimento alcançado pela difusão de uma concep-
ção de mundo, de valores morais, normas de conduta,
ascendência intelectual. Consentimento alcançado
através do controle sobre o pensamento e o controle
e adestramento dos corpos, através das disciplinas.
O Poder é relação, é luta. Poder macroexercido
nas relações entre classes e frações, entre grupos so-
ciais: luta de classes. Poder microexercido nas relações
entre as pessoas, nos processos de trabalho, em todas
as atividades humanas. Exercício de micropoderes que
controla, adestra, pune. Relação de controle e sujei-
ção, mas sempre luta: Poder-Resistência.
O Poder social não é só Poder fundado na divisão
da sociedade em classes — nas relações de produção
e na divisão social do trabalho — não é só Poder
de Estado, mas articula-se sempre ao Estado.
Poder é, então, relação sempre desigual, presente
em todas as relações sociais. Relação de forças que
possui bases materiais. Controle sobre os corpos, con-
trole sobre a consciência.
Temos que tomar cuidado para que, na tentativa
de encontrarmos as múltiplas determinações, não caia-
mos novamente na causa única: poder econômico de
classe. Grande tentação, sem dúvida, as relações de
Poder fundam-se nas relações de produção e na divisão
social do trabalho, mas são, ao mesmo tempo, relações
instituídas em todos os âmbitos da vida social, susten-
tadas por inúmeros mecanismos.
No capitalismo, o Poder Social funda-se nas rela-
ções de produção, mas sustenta-se de inúmeras e varia-
das maneiras, não estando nem personificado em pou-
cos indivíduos, nem materializado apenas nos apare-
lhos de Estado. É relação desigual que se sustenta
pela repressão, pelo consentimento, pela persuasão,
por valores morais e raízes culturais, normas de condu-
ta, pela organização material da cultura, pelos meios
de comunicação de massa, pelo carisma, através da
crença, do afeto, pela lei, saber, conhecimento científi-
co, pela competência funcional da autoridade, pelas
disciplinas (o adestramento e controle dos corpos),
por medidas materiais positivas às classes trabalha-
doras, pela ampliação de direitos sociais.
Não vamos também reconstruir um novo Leviatã:
o monstro Poder, presente em toda a parte. Essas
são formas de sustentação e, ao mesmo tempo, lugares/
espaços de oposição, pois, Poder é sempre relação,
é sempre luta. Ali onde está o Poder está a Resistência:
subordinação-insubordinação, sujeição-rebeldia, re-
pressão-subversão. Do mesmo modo, não há um deter-
minismo econômico inelutável, no qual se funda o
Poder. As relações de produção e a divisão social
do trabalho determinam Poder e, ao mesmo tempo,
fundam a contradição que produz o conflito, luta: von-
tade de transformar essas relações.
Através desse processo de pesquisa e aprendi-
zagem que buscou conhecer o que é o Poder, suas
determinações e formas de exercício, com o intuito
de discutir as noções de Poder que fundamentam as
proposições de Mario Testa para a ação em saúde,
encontrei grande parte dos autores que informam as
reflexões de Testa.
Posso dizer, assim, que, mais que discutir as no-
ções de Poder em Testa, acabo por fundamentá-las,
o que, sem dúvida, também é uma forma de discussão.
Em Mário Testa, o Poder é uma categoria explica-
tiva da realidade, e o seu pensamento estratégico obje-
tiva afetar as relações de Poder. De forma abstrata,
diz Testa: Poder é, capacidade possuída por alguém,
pessoa, ou grupo. É capacidade de um indivíduo lograr
que outro faça algo que este não faria, se aquele não
tivesse poder. Submetido às suas múltiplas determina-
ções, Poder é a capacidade de uma classe social reali-
zar seus objetivos históricos. (Testa, 1981)
Testa aceita o conceito de Poder-relação mas tor-
na sempre a reafirmar o Poder como capacidade que
se possui. Na literatura consultada, há também uma
grande confusão entre considerar o Poder como capaci-
dade e como relação. Poulantzas, às vezes, refere-se
ao Poder como uma capacidade e Foucault, por vezes,
institui um Senhor-Poder afastando-se da relação.
O Poder só existe em exercício e não é separável
da relação. O Poder não pode ser considerado como
na teoria da soma-zero, onde o que um ganha de Poder
o outro perde, pois não tem substância própria. A
relação de poder, a relação política, é uma relação
produtiva cujo resultado é algo novo, diferente dos
interesses estritos de cada participante.
Mario Testa, no seu diagnóstico estratégico, tenta
encontrar formas precisas de quantificar o Poder, ela-
borando indicadores de Poder. Por não poder ser consi-
derado como tendo substância própria, separável da
relação, é que é tão difícil, para não dizer impossível,
a construção de indicadores de poder.
Mas o Poder em Testa não é só capacidade, é
também relação que constrói a sociedade e é indissolu-
velmente ligado ao Estado. Testa discute o Estado
em vários momentos de seu trabalho e de várias formas.
Apresenta-o como monopólio do uso legítimo da força
física (Weber). Discute a concepção marxista estrita
de Estado, em contraposição a uma teoria liberal do
Estado, afirmando-o enquanto Estado de classe que
mantém a desigualdade. Refere-se também à teoria
relacional do Poder de Poulantzas (Testa, 1986).
Setorialmente o Poder é tipificado por Testa em
técnico, administrativo e político. Capacidades em re-
lação a: informações, recursos e mobilização de grupos
sociais; formas de análise e estudo desses tipos de
poder são apresentadas; propõe o conhecimento da
distribuição do Poder técnico pela análise dos grupos
sociais que manejam cada tipo de informação em cada
espaço; a aproximação à distribuição do Poder adminis-
trativo é feita através da análise dos grupos sociais
relacionados às várias fases do financiamento, pois
considera o dinheiro como equivalente universal a to-
dos recursos. Para a análise do Poder Político, diz
Testa, esse deve ser considerado enquanto ideologia
(Testa, 1987-1).
Em variada literatura, e no senso comum, o Poder
enquanto capacidade é tipificado das mais variadas
formas — econômico, administrativo, aquisitivo, marí-
timo, médico, ideológico etc, — o que sugere a perti-
nência de uma tipificação. Como vimos, porém, o po-
der não é capacidade que se detenha, é sempre relação.
Poder-Capacidade é relação pessoa-coisa, pessoa-
objeto. A relação pessoa-coisa na relação de Poder
é a relação com recursos para o exercício do Poder.
Poderíamos, então, considerar, por exemplo, os conhe-
cimentos e os variados recursos utilizados na organiza-
ção e administração dos serviços de saúde, mediados
pelos recursos financeiros, como recursos do exercício
do Poder. É mais correto, portanto, quando Testa afir-
ma serem estes tipos de Poder referidos a diferentes
espaços, do que a diferentes capacidades, ao qual po-
deremos agregar formas de exercício de Poder com
diferentes conteúdos, em cujo exercício são utilizados
diferentes recursos.
Quanto ao Poder-Técnico, o conhecimento não
só determina um espaço de exercício do Poder, como
também, freqüentemente, justifica o exercício dessa
relação desigual. O Poder-Técnico é fundamentado na
relação Poder-Saber. Em Foucault, todo saber tem sua
gênese numa relação de Poder, e todo saber assegura
o exercício de um Poder. O saber só é saber dotado
de Poder: saber é verdade, e verdade é Poder (Fou-
cault, 1982). Em Poulantzas, a relação Poder-Saber
funda-se na divisão entre trabalho manual e trabalho
intelectual, sendo o Estado capitalista o lugar onde
a relação orgânica entre Saber e Poder, trabalho inte-
lectual e dominação política, efetua-se de maneira mais
acabada. O Estado capitalista cristaliza o trabalho inte-
lectual através da sua organização burocrática, diz ele.
A relação Saber-Poder expressa-se, também, muito cla-
ramente, na relação médico-paciente, onde o médico,
em nome de um Saber, tem o Poder e o direito legal
de manipular, física e moralmente, o doente.
Essa relação entre Poder e Saber é tão forte que
Foucault afirma ser impossível separar o saber do Po-
der, e, nas análises e propostas de tendências marxis-
tas, o saber — o conhecimento sobre a realidade, o
intelectual, a vanguarda, consciência, a verdade — con-
tém a potencialidade da transformação social. Testa
tem, portanto, toda razão ao referir-se a um Poder
técnico em exercício no espaço social da saúde.
A tipificação de um poder administrativo tem co-
mo pressuposto um "poder econômico", onde o dinhei-
ro e equivalente universal. Recursos financeiros, po-
rém, não podem ser mecanicamente considerados como
equivalentes de todos os recursos, de todas as capaci-
dades. Uma capacidade administrativa não compreende
apenas uma disponibilidade de recursos financeiros,
mas, também, a organização e gestão dos chamados
"recursos-humanos", a força de trabalho — habilidades
adquiridas que transcendem, sem dúvida, à questão
financeira. Esses outros recursos são capacidades que
só podem ser colocadas em ação a partir da disponibi-
lidade dos recursos financeiros, mas que não se confun-
dem com estes.
Considerar o poder político como uma capacidade
é uma questão mais complicada. Considerar o Poder
Político como capacidade, detida por uma pessoa ou
grupo social, de desencadear uma mobilização — capa-
cidade de manejo de interesses — coloca as pessoas
mobilizadas como coisas manipuladas, o que não é
admissível quando a proposta é de criação de uma
sociedade solidária e transparente: verdadeira socie-
dade democrática. Mário Testa, porém, ao considerar
o Poder político enquanto ideologia, supera essa defi-
nição de capacidade, adquirindo grande importância
as concepções de Gramsci para sua análise. O Poder
Político, em seu exercício, e relação e não mais capaci-
dade que se detém.
Mesmo com essas objeções, considero, portanto,
que essa tipificação para o exercício do Poder no setor
saúde proposta por Testa tem um valor analítico, ao
ajudar a identificar a disponibilidade de certos recursos
de exercício do Poder, por parte de cada um dos atores
sociais em disputa no debate sobre saúde, e ao identifi-
car cenários/espaços onde se exerce o Poder.
O poder é ainda analisado por Testa, quanto aos
resultados de seu exercício. Diz ele que, em relação
aos resultados do exercício do Poder, existe um Poder
cotidiano e um Poder societário, um implicando o ou-
tro. Um poder cotidiano que se refere ao que fazer
e como fazer, a cada dia, e que implica a construção
da sociedade futura, o Poder societário, estabelecen-
do-se, assim, dentro das instituições, a relação entre
o fazer de cada dia, e a construção da história (Testa,
1987).
Sua proposição de formas organizativas democrá-
ticas e participativas decorre da compreensão dessa
relação entre Poder Cotidiano e Poder Societário, pois
uma sociedade verdadeiramente democrática constrói-
se no ato de fazer de cada dia. Diz Mário Testa que,
na situação de desigualdade em que vivemos, a prática
democrática é mecanismo para construção da igualdade
desejada.
Vimos, assim, que a análise do Poder, em Testa,
é informada por concepções de diversos autores, A
noção do poder que orienta suas proposições tem ele-
mentos dos micropoderes de Foucault: micropoderes
que se exercem nos 'como fazeres' e 'que fazeres'
de cada dia; da teoria relacionai do Poder, em Poulant-
zas; o espaço social global é o conjunto dos campos
de força gerados pelas relações entre os atores sociais,
em debate a cada momento; e da concepção de Grams-
ci: sujeitos sociais tornados atores sociais pela sua
participação no Estado, nos organismos da Sociedade
Civil e/ou da Sociedade Política, e pela ênfase dada
à consideração do Poder como Ideologia.

IDEOLOGIA
Mário Testa apresenta o que entende por Ideolo-
gia em vários momentos e com diferentes nuances.
Em geral, uma compreensão de Ideologia inclui um
saber e uma prática: um saber que é uma concepção
da realidade e uma prática que constrói os seus sujeitos
(Testa, 1987).
Diz Testa que Ideololgia geralmente e entendida,
apenas, como sistema de idéias, no sentido de uma
concepção de mundo, mas que, mesmo não explicita-
mente definido como tal, esse sistema é também norma
de conduta. E que, nos Estados complexos, pela mu-
dança do caráter desses Estados, Ideologia é a forma
em que todas as práticas sociais, ao mesmo tempo
que realizam uma produção específica de seus 'que
fazeres', constróem os sujeitos que delas participam
(Testa, 1986).
O sujeito social forma-se quando da realização
de seu trabalho abstrato, pela sua situação na relação
de produção, mas o processo de ideologização — pro-
cesso que consolida ou transforma a consciência/con-
cepção de mundo/uma ética/conjunto de valores —
ocorre em todas as práticas sociais perpassadas pelas
relações de Poder, principalmente através das formas
organizativas dessas práticas, as formas organizativas
das relações de Poder, diz Testa.
Para discutir essa concepção de Ideologia, em
Testa, é preciso conhecer como outros autores enten-
dem Ideologia, e desvendar um pouco (pelo menos)
o complexo processo de formação de uma concepção
de mundo e de produção da tomada de consciência.
Ideologia, em sua concepção moderna, é um termo
utilizado com diferentes significados. Em 1801, teve
um sentido primeiro na acepção literal da palavra:
"ciência das idéias". Destutt de Tracy — um dos ideó-
logos, "grupo de sábios" que, em 1795, pós-revolução
francesa, fora encarregado de fundar um centro do
pensamento revolucionário no "Institut de France" —,
em seu "Elementos de Ideologia", pretendeu elaborar
uma ciência da gênese das idéias: uma história natural,
onde as idéias exprimiam a relação do corpo humano,
enquanto organismo vivo, e o meio ambiente (Hall,
1983).
Desse primeiro sentido, Ideologia, atualmente,
apresenta uma ampla gama de significados. O mais
comum e difundido é de um sistema de idéias, ora
com sentido de visão de mundo, ora com sentido de
crenças políticas. Nesse último significado, é conjunto
de idéias em relação ao sistema social que visa a orien-
tar os comportamentos políticos coletivos. "Sistemas
de idéias conexas com a ação" (que compreende) "um
programa e uma estratégia para a atuação" e "objeti-
vam defender ou mudar a ordem política existente"
(Bobbio et all, 1986).
Outro significado de Ideologia é o de pré-noções,
pré-científico, idéias vulgares contrapostas ao que é
científico. Esta é a noção em Dürkheim. Segundo esse
autor, ideologia é todo conhecimento não-objetivo da
realidade, isto é, toda forma de conhecimento onde
não ocorre a separação entre o sujeito do conhecimento
e o objeto do conhecimento. No entender de Dürk-
heim, para estudar a sociedade, o indivíduo deve enca-
rá-la como não fazendo parte dela (Hall, 1982). Fou-
cault, por sua vez, opõe-se completamente a essa idéia.
Para ele, nem a ciência é um conhecimento produzido
por um sujeito que supera as suas condições particu-
lares de existência e coloca-se na posição de neutrali-
dade objetiva do universal; nem a Ideologia é um co-
nhecimento onde o sujeito tem a sua relação com a
verdade perturbada pela sua condição de existência.
Como vimos, Foucault mostra que as relações de Poder
constituem o saber, não existindo sober neutro: "todo
saber é político" (Foucault, 1982).
Outras vezes, Ideologia constitui-se da totalidade
das formas de consciência social em referência às supe-
restruturas ideológicas. Outras vezes, ainda, Ideologia
é considerada como o conjunto de idéias políticas rela-
cionado aos interesses de uma classe.
Diferente dos significados anteriores é o que con-
sidera a Ideologia como o pensamento teórico que
pretende desenvolver-se sobre seus próprios princípios
abstratos, mas que, na verdade, é a expressão da reali-
dade econômica e social, que não é considerada deter-
minante deste pensamento. Nesse sentido, Ideologia
é forma invertida do pensamento sobre a realidade
social, que nasce das contradições sociais e as oculta.
Nessa acepção, considera-se que as representações que
os homens fazem da situação social são determinadas
pelo processo real da sua vida, mas, como nas socieda-
des capitalistas os processos e produtos resultantes
da ação dos homens são dele alienados, aparecem como
independentes da sua ação, o mesmo ocorrendo com
as idéias, aparecendo como autônomas e separadas
da realidade social concreta, representando-a falsamen-
te. Esse último significado de Ideologia é o empregado
por Marx e Engels em sua crítica aos neo-hegelianos
alemães, em texto de 1845-6 intitulado "Ideologia Ale-
mã" (Marx e Engels, 1986).
À compreensão de Ideologia, em Testa, é dife-
rente da de Marx na Ideologia Alemã. Em Marx, Ideo-
logia é compreensão invertida da realidade que nasce
das contradições sociais e oculta estas contradições,
objetivando manter a dominação: idéias da classe do-
minante tomadas como universais. Testa não nega a
existência de uma Ideologia dominante, mas argumenta
que, na sociedade de Estado complexo, o processo
de ideologização dá-se nas condições do acordo de
classes que é o Estado, tornando-se a Ideologia domi-
nante não mais Ideologia de uma só classe. Em Testa
Ideologia não é, necessariamente, inversão da realida-
de, nem se contrapõe ou é critério de Verdade.
Mas há também semelhanças. A concepção de
Ideologia, em Testa, aproxima-se do conceito de Ideo-
logia de Marx, ao afirmar a base material de produção
das idéias e distancia-se, ao não conceber Testa a
Ideologia como inversão da realidade. Aproxima-se,
ainda, pois o conceito de Ideologia, em Marx, também
sugere o conteúdo de um saber e uma prática, pois
é um conjunto de interpretações (uma concepção de
mundo), acompanhado de normas e regras sociais (nor-
mas de conduta, formas de agir).
Com Lenin, há uma ampliação do significado de
Ideologia. Numa situação de confronto de classes, diz
ele, a Ideologia aparece ligada aos interesses da classe
dominante e a crítica a essa Ideologia ligada aos inte-
resses das classes dominadas (Bottomore, 1988). A
Ideologia adquire, então, um novo conteúdo: idéias/
consciência política, ligadas aos interesses de cada
classe, concepção esta compartilhada por Testa.
Em Gramsci, Ideologia tem um primeiro significa-
do de sistema de idéias orgânico: superestrutura neces-
sária a determinada estrutura. No bloco histórico, diz
ele, as forças materiais são o conteúdo e as ideologias,
a forma. Distinção meramente didática, afirma, pois
não se podem conceber historicamente forças materiais
sem forma, e as ideologias seriam apenas caprichos
pessoais, sem as formas materiais (Gramsci, 1972).
Em Gramsci, Ideologia não significa falsa cons-
ciência em contraposição a uma consciência verda-
deira. Em Gramsci, todo conhecimento tem um conteú-
do ideológico e toda a concepção de mundo orienta
a prática dos homens. Consciência/concepção de mun-
do e prática política são, para ele, inseparáveis. Ideolo-
gia em Gramsci tem, assim, um sentido geral de "uni-
dade entre uma concepção do mundo e uma norma
de conduta adequada a ela"(Coutinho, 1981). Con-
cepção de mundo que transcende o mero conhecimen-
to, articulando-se diretamente com a prática. A concei-
tuação de Testa de Ideologia é próxima, portanto,
à concepção gramsciana. As duas compreendem um
conhecimento e uma prática. Em ambos, um saber
que é uma concepção de mundo inseparável da prática.
Em Testa, uma prática cuja forma em que se realiza
constrói seus sujeitos, quer dizer, uma prática cujo
conteúdo ideológico encontra-se nas suas formas orga-
nizativas e que se transforma ao construir a consciência
de seus sujeitos.
A concepção de Ideologia em Testa é, portanto,
próxima da de Gramsci, porém não está claro ainda
como se forma e se muda uma concepção de mundo.
Essa compreensão é necessária para poder discutir com
Testa sua consideração de que são as formas organiza-
tivas, como se realizam as práticas, que constroem
a consciência de seus sujeitos.
Bourdieu afirma e demonstra, através de suas in-
vestigações, que a transformação do sistema de valores
culturais (incluída aí a concepção de mundo) é, ao
mesmo tempo, conseqüência e condição das transfor-
mações econômicas, mas não reflexo imediato dessas
transformações (Bourdieu, 1979).
Bourdieu comprova que a consciência é determi-
nada pelas condições materiais de existência. Porém,
essa relação não é mecânica, é mediada por um "siste-
ma de disposições", uma maneira de ser e represen-
tações geradas pelas experiências vividas. Sistema ins-
crito, por sua vez, na sua condição objetiva de exis-
tência.
Bourdieu relaciona a consciência com a condição
material de existência, e mostra o campo e as condições
de desenvolvimento de uma consciência revolucionária
— os trabalhadores permanentes submetidos ao cálculo
e à previsibilidade — mas não diz por que, entre inte-
grantes de uma mesma classe, compartilhando seme-
lhantes condições de existência, uns adquirem uma
consciência objetiva dessa situação e participam da
construção de um projeto coletivo de transformação
social, e outros não.
Indica-nos que, através de todas as práticas reali-
zadas e experiências vividas, os sujeitos sociais cons-
tróem sua concepção de mundo que, por sua vez, im-
pulsiona suas práticas — o que fundamenta positiva-
mente as proposições de Testa — mas não discute
quais são os tipos de práticas que têm potencial trans-
formador da concepção de mundo. Questão fundamen-
tal na discussão de Testa.
Em Lukács, as práticas consideradas como poten-
cial transformador da consciência são práticas de parti-
cipação na luta coletiva por interesses econômicos co-
letivos, e pela ação educativa do partido revolucio-
nário, organização construída a partir dessa consciên-
cia. Essas práticas constróem uma concepção de mundo
que inclui a "consciência de classe para si", a partir
de um processo de reflexão de cada pessoa sobre essas
suas experiências (Lukács, 1977).
Gramsci dá grande importância à formação das
concepções de mundo, pois encontra, aí, as bases para
o consentimento e aceitação da dominação por grandes
parcelas da classe trabalhadora, sendo a arena da luta
pela consciência, para ele, arena fundamental da luta
política.
Em Gramsci, as práticas com potencialidade trans-
formadora das concepções de mundo são ampliadas
e não se dão mais, como em Lukács, apenas no âmbito
da luta reivindicatória e da ação do partido. Essas
práticas estendem-se para o amplo terreno dos apare-
lhos privados de hegemonia: todas as organizações
políticas da sociedade civil (partidos, sindicatos, asso-
ciações), os meios de comunicação e toda a organiza-
ção material da cultura, incluída aí a escola. Em
Gramsci, cada um é um pouco filósofo, é portador
de uma concepção de mundo e pode, portanto, contri-
buir na formação de novas maneiras de pensar (Grams-
ci, 1982). Toda pessoa exerce alguma atividade inte-
lectual, e é impossível separar o homo sapiens do
homo faber, ou produzir um gorila amestrado, como
queria Taylor, diz Gramsci. A transformação da con-
cepção de mundo está, então, na possibilidade de ela-
boração de maneira crítica da atividade intelectual que
cada um exerce. Através da elaboração crítica do con-
teúdo intelectual do trabalho de cada um, formam-se
intelectuais orgânicos que dão homogeneidade e cons-
ciência à classe trabalhadora. Esses intelectuais, por
sua vez, impulsionam a transformação da consciência
pela promoção da discussão das práticas de trabalho
de cada um, fazendo com que essas práticas tornem-se
o fundamento de uma nova e integral concepção de
mundo.
Encontramos, aqui, a base gramsciana da proposi-
ção de Mário Testa de formas organizativas democrá-
ticas e participativas para o trabalho em saúde. Testa
propõe a formação de uma equipe de saúde organizada
democraticamente, que discuta suas práticas e deci-
sões, e a abertura das instituições de saúde à participa-
ção das organizações populares, para a discussão das
práticas aí realizadas, objetivando a transformação das
concepções de mundo desses sujeitos. Testa, portanto,
propõe o mesmo que Gramsci: um trabalho consciente,
que tome a prática de trabalho de cada um base de
uma nova concepção de mundo, cimento da hegemonia
da classe trabalhadora.
Isso não significa, porém, que tenhamos esgotado
a discussão da formação e transformação das concep-
ções de mundo. Abordar essa questão exaustivamente
significaria, ainda, pelo menos, conhecer como tem
sido tratada no estudo da formação das representações,
através da linguagem no processo de comunicação,
na semiologia, no estudo dos processos educativos,
na discussão sobre a socialização, na psicologia social.
Essas possibilidades de ampliação do campo de estudo
mostram bem a complexidade dessa discussão e indi-
cam a existência de inúmeras mediações entre a cons-
ciência e a condição de existência.
Se podemos, portanto, concordar que a pertinên-
cia de classe, pelo lugar ocupado na produção, estru-
tura possibilidades de concepções de mundo, possibili-
tando uma certa forma de socialização e acesso a dife-
rentes compreensões de realidade, não podemos enten-
der essa determinação, mecanicamente, pois isso seria
linearizar o complexo processo que é a produção da
formação de uma concepção de mundo. Processo frag-
mentado, que compreende rupturas, originalidade e
criatividade da sistematização de cada pessoa.
O que, sem dúvida, podemos concluir desse estu-
do parcial é que a formação de uma concepção de
mundo é um longo processo de elaboração das expe-
riências pessoais que têm sua base material na condição
de existência, condição esta entendida não apenas co-
mo constituída pelo seu processo de produção material,
mas pelo conjunto das relações sociais vividas por
cada um. E que, nesse complexo processo, difícil de
apreender, de formação e transformação das concep-
ções de mundo, as formas organizativas democráticas
e participativas são práticas que afetam a concepção
de mundo de seus sujeitos e podem contribuir para
a transformação dessas concepções de mundo, e impul-
sionar novas práticas, pela elaboração crítica dos con-
teúdos das práticas realizadas que possibilitam. É im-
possível, porém, afirmar em que medida isso ocorre.
Mário Testa, ao propor formas organizativas de-
mocráticas e participativas — visando a construção
de um nova ética, de solidariedade e transparência
—, está propondo a formação de sujeitos sociais demo-
cráticos imbuídos de uma nova ética integrante de
sua própria personalidade, transformada, portanto, em
força material. Testa sugere, assim, que a construção
de uma sociedade realmente não-autoritária (um socia-
lismo democrático) está na possibilidade da formação
de sujeitos sociais conscientes não-autoritários e autô-
nomos que direcionem suas práticas a esta construção.
A construção da sociedade democrática está na possibi-
lidade de transformação dos sujeitos sociais pelo esta-
belecimento de novas relações, e pela sua participação
em práticas sociais diferenciadas.
Argumentamos, assim, favoravelmente ao conteú-
do transformador da proposta de Testa para o planeja-
mento e a ação em saúde. Podemos concluir que a
proposição de estabelecimento de novas formas organi-
zativas das práticas tende a mudar a relação de poder
exercida naquela prática e a transformar as concepções
de mundo de seus sujeitos, contribuindo para uma
mudança nas relações de força, pela potencialidade
de realização de novas práticas coletivas impulsionadas
por essa nova concepção de mundo. E que a proposta
de Mário Testa para o planejamento de saúde tem
uma potencialidade intrínseca transformadora, ao des-
vendar os conteúdos de Poder nas ações em saúde,
não escamoteando as bases reais da dominação, e por
ser transparente em seus próprios conteúdos de Poder:
explícita nos deslocamentos de poder que objetiva.
This article characterizes Mario Testa's propositions
regarding health planning, on the basis of his recent
theorethical analysis. The characterization doesn't
imply the construction of a planning method, as Testa
only presents some elements for the understanding of
health problems and planning processes. Testa
consideres health problems as socially determined, and
therefore he emphasizes the analysis of social actor
behaviour, power relationships and health practices
taken as ideological practices giving orientation to
actors. Testa goes beyond the strategical health
planning proposition and proposes a reflection on
political action in health.
Testa's thinking is based on such categories as power
and ideology. This article discusses how he
understands these categories. This discussion
concludes that health practices are social practices
and also are ideological practices influencing actor's
view so, it is difficult to know how these world's views
are going to change, Testa's propositions are inovating
within the field of health planning, as they show that
health actions have a power basis.
The theses of Mario Testa regarding health planning
are defended in light of their potential to transform
reality, by revealing the role of social power in health
related actions, and rendering explicit objectives
regarding power relationships.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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