A Escuta - Roland Barthes
A Escuta - Roland Barthes
A Escuta - Roland Barthes
In
Roland Barthes (1984). “A escuta”, O Óbvio e o Obtuso. Lx: Edições 70, pp. 217-230.
DA ESCUTA
Não há sentido que o homem não partilhe com o animal. Contudo, é bem evidente
que o desenvolvimento filogenético, eno próprio interior da história humana, o
desenvolvimento técnico modificaram (e modificarão ainda) a hierarquia dos cinco
sentidos. Os antropólogos notam que os comportamentos nutritivos do ser vivo
estão ligados ao tacto, ao gosto, ao olfacto, e os comportamentos afectivos, ao tacto,
ao olfacto e à visão; a audição, essa, parece essencialmente ligada à avaliação da
situação espacio-temporal (o homem acrescenta-lhe a visão, o animal, o olfacto).
Construída a partir da audição, a escuta, de um ponto de vista antropológico, é o
próprio sentido do espaço e do tempo, pela captura dos graus de afastamento e dos
regressos regulares da excitação sonora. Para o mamífero, o seu território está esca-
lonado de odores e de sons; para o homem - coisa muitas vezes subestimada - a
apropriação do espaço é ela também sonora: o espaço caseiro, o da casa, do
apartamento (equivalente aproximativo do território animal) é um espaço de ruídos
familiares, reconhecidos, cujo conjunto forma uma espécie de sinfonia doméstica:
bater diferenciado das portas, clamores, ruídos de cozinha, de canos, rumores
exteriores: Kafka descreveu com exactidão (não será a literatura uma reserva
incomparável de saber?) esta sinfonia familiar, numa página do seu diário: «Estou
sentado no meu quarto, isto é no quartel general do ruído de todo o apartamento;
oiço bater todas as portas, etc.»; e é conhecida a angústia da criança hospitalizada
que já não ouve os ruídos familiares do abrigo materno. É sobre este fundo auditivo
que a escuta se levanta, como o exercício de uma função de inteligência, isto é, de
selecção. Se o fundo auditivo invade todo o espaço sonoro (se o ruído ambiente é
demasiado forte), a selecção, a inteligência do espaço já não é possível, a escuta é
lesada; o fenómeno ecológico a que se chama hoje a poluição - e que está em vias de
se tornar um mito negro da nossa civilização técnica - não é mais do que a alteração
insuportável do espaço humano, enquanto o homem lhe pede para nele se
reconhecer: a poluição fere os sentidos pelos quais o ser vivo, do animal ao homem,
reconhece o seu território, o seu habitat: vista, olfacto, audição. Há, em relação ao
que nos interessa aqui, uma poluição sonora, que toda. a gente percebe (através dos
mitos naturalistas), do hippy ao reformado, ser um atentado à própria inteligência
do ser vivo, que, stricto sensu, não é outra coisa senão o seu poder de comunicar
bem com o seu Umwelt: a poluição impede que se escute.
É sem dúvida a partir desta noção de território (ou de espaço apropriado, familiar,
arrumado - caseiro), que nos apercebemos melhor da função da escuta, na medida
em que o território pode definir-se essencialmente como o espaço da segurança (e
como tal, votado a ser defendido): a escuta é esta atenção prévia que permite captar
tudo o que pode vir perturbar o sistema territorial; é um modo de defesa contra a
surpresa;. o seu objecto (isso para que ela se orienta) é a ameaça, ou inversamente
a necessidade; o material da escuta é o indício, quer revele o perigo, quer prometa
a satisfação da necessidade. Desta dupla função, defensiva e predadora, restam
vestígios na escuta civilizada; quantos filmes de terror, cuja mola é a escuta do
estranho, a espera desvairada do ruído irregular que virá transtornar o conforto
sonoro, a segurança da casa: a escuta, neste estádio, tem por comparsa essencial o
insólito, isto é, o perigo ou o ganho inesperado; e, ao invés, quando a escuta se dirige
para o apaziguamento do fantasma, torna-se muito rapidamente alucinada: julgo
realmente ouvir o que me daria prazer ouvir como promessa do prazer.
Morfologicamente, isto é, o mais perto possível da espécie, a orelha parece ser feita
para essa captura do indício que passa: ela está imóvel, fixa, erguida, como um
animal numa emboscada, como um funil orientado do exterior para o interior,
recebe o maior número possível de impressões e canaliza-as para um centro de
vigilância, de selecção e de decisão; as pregas, as curvas do seu pavilhão parecem
querer multiplicar o contacto do indivíduo com o mundo, e contudo reduzir esta
multiplicidade submetendo-a a um percurso de triagem: porque é preciso - é esse o
papel dessa primeira escuta - que o que era confuso e indiferenciado se torne
distinto e pertinente, e que toda a natureza tome a forma particular de um perigo ou
de uma presa: a escuta é a própria operação desta metamorfose.
2
Muito antes que a escrita tivesse sido inventada, muito antes mesmo que a figuração
parietal fosse praticada, algo foi produzido que talvez distinga fundamentalmente o
homem do animal: a reprodução intencional de um ritmo: encontram-se sobre
certos tabiques da época musteriana, incisões rítmicas - e tudo leva a pensar que
estas primeiras representações rítmicas coincidem com a aparição das primeiras
habitações humanas. Evidentemente, nada se sabe, senão miticamente, sobre o
nascimento do ritmo sonoro; mas seria lógico imaginar (não recusemos o delírio das
origens) que ritmar (incisões ou golpes) e construir casas são actividades
contemporâneas: a característica operatória da humanidade é precisamente a
percussão rítmica longamente repetida, como são disso testemunha os topos de
calhau lascado, e as bolas poliédricas marteladas: pelo ritmo, a criatura pré-
antrópica entra na humanidade dos Australopitecos.
Também pelo ritmo, a escuta deixa de ser pura vigilância para se tornar criação. Sem
o ritmo, nenhuma linguagem é possível: o signo é fundado sobre um ir e vir, o do
acentuado e do não-acentuado, a que se chama paradigma. A melhor fábula que dá
conta do nascimento da linguagem é a história da criança
freudiana, que mima a ausência e a presença da mãe sob a forma de um jogo no
decurso do qual lança e retoma uma bobine ligada a uma guita: cria assim o primeiro
jogo simbólico, mas cria também o ritmo. Imaginemos esta criança vigilante,
escutando os ruídos que podem anunciar-lhe o regresso desejado da mãe: está então
na primeira escuta, a dos indícios; mas quando deixa de vigiar directamente a
aparição do indício e se põe ela própria a mimar o seu regresso regular, faz do indício
esperado um signo: passa à segunda escuta, que é a do sentido: o que é escutado, já
não é o possível (a presa, a ameaça ou o objecto do desejo que passa sem prevenir),
é o segredo: aquilo que enterrado na realidade, não pode vir à consciência humana
senão através de um código, que serve ao mesmo tempo para cifrar essa realidade e
para decifrá-la.
A escuta está desde então ligada (sob mil formas variadas, indirectas) a uma
hermenêutica: escutar é pôr-se em postura de descodificar o que é obscuro, confuso
ou mudo, para fazer aparecer na consciência o «abaixo» do sentido (o que é vivido,
postulado, intencionalizado como escondido). A comunicação que é implicada por
esta segunda escuta é religiosa: liga o sujeito que escuta ao mundo escondido dos
deuses, que, como cada um sabe, falam uma língua da qual apenas alguns estilhaços
enigmáticos chegam aos homens, apesar de, cruel situação, ser vital para eles
compreender esta língua. Escutar é o verbo evangélico por excelência: é na escuta
da palavra divina que a fé se restabelece, pois é por esta escuta que o homem está
ligado, a Deus: a Reforma (por Lutero) fez-se em grande parte em nome da escuta: o
templo protestante é exclusivamente um lugar de escuta, e a própria contra-
reforma, para não ficar atrás, colocou a cadeira do orador no centro da igreja (nos
edifícios jesuítas) e fez dos fiéis «os que escutam» (um discurso que ressuscita, ele
próprio, a antiga retórica como arte de «força», a escuta).
Com um único movimento, esta segunda escuta é religiosa e descodificadora:
intencionaliza ao mesmo tempo o sagrado e o secreto (escutar para decifrar
cientificamente: a história, a sociedade, o corpo, é ainda, sob ali bis laicos, uma
atitude religiosa). Então, o que é que a escuta procura decifrar? Essencialmente,
segundo parece, duas coisas: o futuro (enquanto este pertence aos deuses) ou o erro
(enquanto este nasce do olhar de Deus).
Pelos seus ruídos, a natureza vibra de sentido: pelo menos era assim, no dizer de
Hegel, que os antigos Gregos a escutavam. Os carvalhos de Dodona, pelo rumor da
sua folhagem, transmitiam profecias, e noutras civilizações também (que dependem
mais directamente da etnografia), os ruídos foram os materiais directos de uma
mântica, a cledonomancia: escutar é, de um modo institucional, procurar saber o que
se vai passar (inútil fazer o levantamento de todos os vestígios desta finalidade
arcaica na nossa vida secular).
Mas também, a escuta é o que sonda. A partir do momento em que a religião se
interioriza, o que é sondado pela escuta .é a intimidade, o segredo do coração: o Erro.
Uma história e uma fenomenologia da interioridade (que talvez nos falte) devia unir-
se aqui a uma história e a uma fenomenologia da escuta. Porque no próprio interior
da civilização do Erro (a nossa civilização, judaico-cristã, diferente das civilizações
da Vergonha), a interioridade desenvolveu-se constantemente. Aquilo que os
primeiros cristãos escutam, são ainda vozes exteriores, as dos demónios ou a dos
anjos; não é senão pouco a pouco que o objecto da escuta se interioriza a ponto de
se tornar pura consciência. Durante séculos, não se exigia ao culpado, cuja
penitência devia passar pela confissão dos seus erros, senão uma confissão pública:
a escuta privada por um único padre era considerada um abuso, vivamente
condenado pelos bispos. A confissão auricular, da boca para a orelha, no segredo do
confessionário, não existia na época patrística; nasceu (por volta do século VII) dos
excessos da confissão pública e dos progressos da consciência individualista: «para
erro público, confissão pública, para erro privado, confissão privada»: a escuta
limitada, murada e como que clandestina (<
Assim formada pela própria história da religião cristã, a escuta põe em relação dois
sujeitos; mesmo quando é toda uma multidão (uma assembleia política, por
exemplo) a quem se pede que se ponha em situação de escuta «Escutai», é para
receber a mensagem de uma única pessoa, que quer fazer ouvir a singularidade (a
ênfase) dessa mensagem. A injunção de escutar é a interpelação total de um sujeito
por um outro: coloca, acima de tudo, o contacto quase físico desses dois sujeitos
(pela voz e a orelha): cria a transferência: «escute-me» quer dizer: toque-me, saiba
que existo; na terminologia de Jakobson, «escute-me» é um fático, um operador de
comunicação individual; o instrumento arquétipo da escuta moderna, o telefone,
reúne os dois comparsas numa intersubjectividade ideal (até mesmo intolerável, de
tal modo é pura), porque este instrumento abole todos os sentidos, à excepção da
audição: a ordem de escuta que inaugura toda a comunicação telefónica convida o
outro a concentrar todo o corpo na voz e anuncia que eu próprio me encontro por
completo na minha orelha. Assim como a primeira escuta transforma o ruído em
indício, esta segunda escuta metamorfoseia o homem em sujeito dual: a
interpelação conduz a uma interlocução, na qual o silêncio do que escuta será tão
activo como a palavra do locutor: a escuta fala, poder-se-ia dizer: é neste estádio (ou
histórico ou estrutural) que a escuta psicanalítica intervém.
Era necessário fazer este breve trajecto na companhia da psicanálise, sem o qual não
compreenderíamos em que é que a escuta moderna não se assemelha
completamente àquilo a que se chamou aqui a escuta dos indícios e a escuta de
signos (mesmo se estas escutas subsistem concorrentemente). Pois a psicanálise,
pelo menos no seu desenvolvimento recente, que a afasta tanto de uma simples
hermenêutica como da determinação de um trauma original, substituto fácil do Erro,
modifica a ideia que podemos ter da escuta.
Em primeiro lugar, enquanto durante séculos, a escuta pôde definir-se como um acto
intencional de audição (escutar é querer ouvir, conscientemente), reconhece-se-lhe
hoje o poder (e quase a função) de varrer espaços desconhecidos: a escuta inclui no
seu campo, não só o inconsciente, no sentido tópico do termo, mas também, se assim
se pode dizer, as suas formas laicas: o implícito, o indirecto, o suplementar, o
retardado: há abertura da escuta a todas as formas de polissemia, de
sobredeterminações, de sobreposições, há esboroamento da Lei que prescreve a
escuta recta, única; por definição, a escuta era aplicada; hoje, aquilo que se lhe pede
de bom grado, é que deixe surgir; deste modo volta-se, mas num outro ponto da
espiral histórica, à concepção de uma escuta pânica, como os Gregos, pelo menos os
Dionisíacos, tiveram a ideia.
Em segundo lugar, os papéis implicados pelo acto de escuta não têm a mesma fixidez
que antigamente; já hão há de um lado aquele que fala, se abandona, confessa, e de
outro aquele que escuta, se cala, julga e sanciona; isto não quer dizer que o analista,
por exemplo, fale tanto como o seu paciente; é que, como se disse, a sua escuta é
activa, ela assume tomar o seu lugar no jogo do desejo, de que toda a linguagem é o
teatro: é preciso repeti-lo, a escuta fala. Desse facto esboça-se um movimento: os
lugares de fala são cada vez menos protegidos pela instituição. As sociedades
tradicionais conheciam dois lugares de escuta, ambos alienados: a escuta arrogante
do superior, a escuta servil do inferior (ou dos seus substitutos); este paradigma é
contestado hoje, de uma maneira, é verdade, ainda grosseira e talvez inadequada:
julga-se
que para libertar a escuta basta que cada um tome a palavra, enquanto uma escuta
livre é essencialmente uma escuta que circula, que permuta, que desagrega, pela sua
mobilidade, a rede fixa dos papéis da palavra: não é possível imaginar uma socie-
dade livre, se aceitarmos antecipadamente preservar nela os antigos lugares de
escuta: os do crente, do discípulo e do paciente.
Em terceiro lugar, o que é escutado aqui e acolá (principalmente no campo da arte,
cuja função é muitas vezes utopista), não é a vinda de um significado, objecto de um
reconhecimento ou de uma decifração, é a própria dispersão, a cintilação dos sig-
nificantes, incessantemente introduzidos na corrida de uma escuta que produz
incessantemente novos significantes, sem nunca parar o sentido: a este fenómeno
de cintilação chama-se a significância (distinta da significação): ao «escutar» um
trecho de música clássica, o auditor é chamado a «decifrar» esse trecho, isto é, a
reconhecer-lhe (pela sua cultura, aplicação, sensibilidade) a construção, tão bem
codificada (predeterminada) como a de um palácio numa certa época; mas ao
«escutar» uma composição (é preciso tomar a palavra no seu sentido etimológico)
de Cage, é cada som, um após outro, que escuto, não na sua extensão sintagmática,
mas na sua significância bruta e como que vertical: ao desconstruir-se, a escuta
exterioriza-se, obriga o sujeito a renunciar à sua «intimidade». Isto vale, mutatis
mutandis, para muitas outras formas da arte contemporânea, da «pintura» ao
«texto»; e isto, bem entendido, não acontece sem dilaceramento; porque nenhuma
lei pode obrigar o sujeito a tomar o seu prazer lá onde ele não quer ir (sejam quais
forem as razões da sua resistência), nenhuma lei está em condições de coagir a nossa
escuta: a liberdade de escuta é tão necessária como a liberdade de palavra. É por
isso que esta noção aparentemente modesta (a escuta não figura nas enciclopédias
passadas, não pertence a nenhuma disciplina reconhecida) é finalmente como um
pequeno teatro onde se confrontam essas duas deidades modernas, uma má e outra
boa: o poder e o desejo.