Contos de Almas em Chamas - Karyu Densetsu

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Felipe Pereira Borges garuwars@gmail.

com
CONTOS DE ALMAS EM CHAMAS

Baseado no RPG - KARYU DENSETSU

Organização: Nina Bichara


Autores:
Allana Dilene

Glauco Lessa

Nina Bichara

Thiago Rosa

Jéssica Reinaldo

2019

Felipe Pereira Borges [email protected]


Todos direitos reservados à Nina Bichara e Thiago Rosa,
2019. Publicado de maneira independente por Nina
Bichara pela Amazon.

Autores: Allana Dilene, Glauco Lessa, Jéssica


Reinaldo, Nina Bichara e Thiago Rosa
Edição: Nina Bichara
Revisor: Jéssica Reinaldo
Capa: Mariana Petrovana
Diagramação: Nina Bichara

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens,


organizações, lugares e situações são fruto da
imaginação deste autor ou usados como ficção. Qualquer
semelhança com fatos reais é mera coincidência.

Proibida a reprodução total ou em partes, através de


quaisquer meios. Os direitos autorais e morais do autor
foram contemplados.

Registro ASIN - B07PVCQX93


1. Contos 2. Ação
3. Aventura

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

CHASSI RISCADO

NEGOCIAÇÕES ESCUSAS

A PRINCESA DO ASFALTO

VIGILANTE

ESTRANHOS

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APRESENTAÇÃO
O mundo de Karyu Densetsu é similar à
nossa Terra, mas existem pequenas diferenças.
Este mundo foi marcado pelo Desastre de 1999,
onde um grande monstro surgiu e destruiu
parte do mundo. Mostrando também que havia
um Outro Mundo, cheio de seres sobrenaturais.
Somado ao incrível poder da alma humana de
servir de combustível para poderes fantásticos,
o resultado é um universo dinâmico e
empolgante.
Nestas histórias você vai encontrar lugares
familiares tocados pelo sobrenatural.
Impressionantes lutas e mistérios instigantes
que deixam suas marcas em nossas almas em
chamas. Este mundo nos chama a agir e ter
nossas próprias histórias nele. O que é possível,
já que Karyu Densetsu é um jogo.
Esta é a receita para despertar a sua alma,
incendiar o seu espírito de luta, e construir
laços efetivos com você.
Boa jornada ao mundo do dragão de fogo!
Nina Bichara

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Chassi Riscado
Jéssica Reinaldo

Cassandra acordou aquele dia prometendo


não se meter em encrencas. Suas articulações
rangiam conforme se movimentava para se
levantar. Até que desistiu. Ficou uns vinte
minutos olhando para o teto prometendo a si
mesma não se meter em nenhuma outra briga
de bar.
Na noite anterior ela havia pego de jeito um
brutamontes que insistiu em distribuir elogios
para as indústrias Tolwyn. E se havia algo que
ela não aguentava mais, era ouvir elogios a essa
indústria bélica que a tinha transformado no
que era. Especialmente depois de beber
algumas doses. Acabou distribuindo socos e
sendo expulsa novamente do bar. A sorte era
que Tim já estava acostumado com o seu
comportamento, e ela acabava sempre
voltando, e ele sempre servia suas doses.
Cassandra era uma ciborgue. Era isso que as
Tolwyn tinham feito com ela.

Certo dia, ao sair com seus pais de carro, sua


mãe, que estava na direção, viu algo

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atravessando a rua e jogou o veículo para o
poste por impulso ou instinto. Ao ser
questionada pela polícia, Madalena, mãe de
Cassandra, afirmou ter visto uma enorme
forma humanoide correndo em direção ao
carro. Josan, pai de Cassandra, que estava no
banco do carona, afirmou não ter visto nada e
ter se assustado com a reação da esposa. Ambos
saíram ilesos do acidente. Cassandra, porém,
estava sem o cinto, deitada no banco de trás
enquanto descansava um pouco os olhos. Seu
corpo foi jogado com força contra os bancos.

Cassandra ainda era muito jovem quando o


acidente aconteceu, e acabou se machucando
demais. Acharam que ela teria sequelas
irreversíveis. A salvação, porém, veio das
indústrias Tolwyn, que estavam começando a
desenvolver os exoesqueletos e poderosas
próteses mecânicas e ansiavam por encontrar
pessoas para testes. Claro, não foi barato, e os
pais de Cassandra se mudaram de onde viviam
no México para morar em São Paulo, próximos
a uma das sedes da companhia.
Josan e Madalena trabalhavam dia e noite na
indústria para conseguir pagar as cirurgias de
Cassandra. Nas entrevistas a empresa dizia
estar fazendo aquilo “pelo bem maior” e que

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estavam proporcionando uma nova era à
humanidade.

Cassandra cresceu e não gostava de ser


tratada como alguém especial por sua “lataria”.
Madalena pedia que ela fosse grata, fazia o
possível para que a filha se mantivesse na linha,
mas a operação e as novas partes mecânicas
afetaram Cassandra.
Tudo piorou depois que o experimento foi
concluído. Seus pais foram “afastados” das
indústrias e pararam de trabalhar. Os dois
estavam definhando lentamente. Tinham
dificuldade de se movimentar, a respiração
falhava, e após a morte de Josan, Madalena não
demorou a morrer também. Aparentemente,
para juntar dinheiro rápido, eles toparam
trabalhar nas piores áreas das indústrias. Com
químicos pesados e perigosos. Mas eles
procuraram por Cassandra, assim que os pais
morreram. Queriam lhe propor um ‘estágio’.
No contrato, ela assinava um vínculo
empregatício vitalício. Prometiam abrigo e
estudo, desde que trabalhasse exclusivamente
para eles. Trouxeram até uma repórter para
tirar fotos da ‘trágica história de uma das
primeiras ciborgues’. Obviamente Cassandra
fugiu.

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Cassandra já era adulta por lei, acima dos 18
anos, e já trabalhava como mecânica nesse
período. Seu temperamento fazia recorrer a
brigas para resolver seus problemas, além de
sempre culpar as indústrias Tolwyn sobre
todas as desgraças que tinham lhe acontecido.
Ela permaneceu morando sozinha em São
Paulo, depois que os pais morreram, em um
bairro periférico. Lá ela conseguia trabalhar e
não era obrigada a ter contato com toda a
propaganda enganosa da indústria que ela
tanto odiava.
E como ela odiava.

Naquela manhã, depois de escovar os


dentes, tomar um banho gelado e limpar com
cuidado seus membros metálicos, Cassandra
estava pronta para ir trabalhar. Apesar da
promessa feita quando acordou, ela sentia que
ia se meter em alguma encrenca de novo. O ar
tinha cheiro de problemas. O café estava
amargo, a torrada tinha passado do ponto, o

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ovo para o mexido estava podre, o leite tinha
acabado, mas a caixa estava na geladeira.
Apesar de tudo isso ser culpa do desleixo de
Cassandra, ela sabia interpretar sinais que a
vida dava.
— É, hoje é dia de problema. Eu não devia
nem sair de casa, mas quem disse que eu fujo
de problemas?
— Pois deveria fugir, Cassandra. Uma hora
seus membros não vão ter conserto e você não
vai poder trabalhar e não vamos mais ter um
teto pra morar.
— Por favor, Chico. Não é como se você não
pudesse arrumar outro lugar para ficar. E, não
é como se você estivesse realmente
preocupado.
Chico era um shen.
Shens, criaturas que vagam por aí, vindos do
Outro Mundo e podem ser vistos por uma
parcela da população. Foi um shen que
Madalena viu naquele fatídico dia.
Cassandra havia encontrado Chico em sua
casa quando a alugou. Os dois viraram alguma
coisa parecida com amigos, quase uma família
torta. Pode se pensar que, pela forma de Chico,
ele era uma criatura amigável e contente, mas a
verdade era bastante longe disso: Chico era um

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enorme e pesado gato preto, ranzinza,
sarcástico, e que não era dos mais felizes de
estar entre os humanos. De certa forma, o
humor de ambos combinava. Cassandra era a
única que ele tolerava, afinal, ele não sabia
como voltar.
Cassandra chegou até o grande galpão onde
trabalhava e ficou assustada. Já eram 9:30 da
manhã e ainda estava tudo fechado. Onde
estaria Lopes? Seu chefe não havia deixado de
abrir a loja nem nos feriados mais importantes
na capital. Cassandra sentiu o cheiro do
problema se aproximando novamente.
Lopes compartilhava do ódio de Cassandra.
Apesar de não ser um ciborgue, ele
compreendia a dor dela. Apesar de ser um
homem que trabalhava com máquinas, Lopes
não conseguia compreender e muito menos
gostar de pessoas de ternos que utilizavam
maquinário para explorar outras pessoas.
— Eu não acredito que o Lopes se meteu em
confusão. E eu acredito menos ainda que ele
tenha se metido em confusão com essas
pessoas.
Cassandra tinha seus motivos de
preocupação. Não era novidade que as
Indústrias Tolwyn tinham uma incrível gama
de adoradores e pessoas dispostas a morrer e

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matar por eles. Gratidão, orgulho, os mais
variados sentimentos de amor e satisfação.
Muitos ficaram presos à ideia de que as
indústrias haviam salvo suas vidas. De certa
forma sim, mas Cassandra acreditava que foi
uma troca muito injusta ter sua vida salva para
sobreviver a partir de uma espécie de
subserviência, e não aceitava essas condições.
Quando o grande incidente de 1999
aconteceu e a ascensão das indústrias se tornou
uma realidade, era necessário que ela fosse bem
vista. Qualquer pessoa com alguma doença ou
com algum acidente era muito bem-vindo a
testar seus exotrajes, suas alterações mecânicas,
e diversos países começaram a investir de
forma agressiva nessa indústria. Cassandra
estava entre esses primeiros experimentos, mas
desde sempre sabia que as coisas não
funcionavam no mundo somente por bondade,
e sabia que, em algum momento, isso teria que
ser pago.
As Indústrias Tolwyn acreditavam que nem
precisariam pedir para que as pessoas
“beneficiadas” fossem gratas às indústrias, às
melhorias de suas vidas. Mas Cassandra não
era.
Ao longo dos anos, então, pode perceber
que, exceto alguns poucos ciborgues que

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retornaram das experiências, todos eram gratos
demais, e entravam em brigas violentas para
defender a honra das indústrias, mesmo que
não trabalhassem para eles, mesmo que não
fossem pagos para isso. “Eu fico envergonhado
por esses humanos que resolvem simplesmente
sair por aí brigando por pessoas que eles nem
conhecem. ” Chico dizia com aquela voz que
parecia um ronronado nas várias vezes em que
os dois discutiram essas questões.

Virando a esquina, Cassandra viu três


homens enormes discutindo e assustando
Lopes, ameaçando-o; e um quarto, magro e
pequeno, de terno, que estava afastado e
observava tudo.
— Posso saber o que vocês querem? Estão
nos fundos do meu local de trabalho, e
precisamos abrir o estabelecimento.
— Com você não queremos nada não,
estamos com problemas mesmo é com esse
velhote aqui. Descobrimos que seu amigo
andou espalhando bobagens sobre as
indústrias, de novo, e viemos adverti-lo mais
uma vez.
— As Indústrias dos Robôs agora contratam
monstros para assustar pessoas comuns e

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retirarem a liberdade de expressão? O medo é
tanto assim?
Cassandra observou bem os rostos dos
homens altos e largos, que ficavam cada vez
mais tensos e rígidos, enquanto avaliava qual
deles conseguiria derrubar primeiro.
— Minha jovem, nosso problema não é com
você. Por que não se afasta e deixa que adultos
resolvam seus problemas? — Disse o homem
que estava afastado, com aquele olhar de quem
é bastante perigoso, mesmo tendo um corpo
mais raquítico do que os outros três e mesmo
que o de Cassandra.
— Três homens enormes contra um velho?
Só se forem homens muito covardes. — O corpo
de Cassandra estava tenso. Ela já estava se
preparando para retirar as correntes que
carregava nas costas para partir para a agressão
contra aqueles três. Jamais deixaria que Lopes
se machucasse. Faria o possível para livrá-lo
disso.
Enquanto ela desviou o olhar, ouviu o golpe
seco que Lopes recebeu no estômago. Um dos
brutamontes havia desferido o golpe e outro
segurava o homem. Cassandra pode sentir o
cheiro das engrenagens do braço esquentando.
Correu, deu um impulso no chão e acertou um
murro no rosto de um. Ele recuou tonto. O

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outro aproveitou para prender o braço de
Cassandra, que não receou em desferir um
chute poderoso e lançá-lo longe em resposta. O
terceiro foi menos burro. Retirou uma arma do
cinto e apontou na sua direção, acionando o
gatilho. O tiro acionou um gancho ligado à
fiação do aparelho, que fincou na barriga de
Cassandra. Ela sentiu um choque percorrer
todo seu corpo. O braço mecânico parecia que
ia derreter.

Ela juntou forças e desferiu outro chute no


homem, desarmando-o. Ele já estava
apontando outra arma para a ciborgue, mas foi
interrompido. Ao comando do homem de
terno, os outros três recuaram.
— Cassandra, não pense que não sabemos
quem é você. As Indústrias Tolwyn te
conhecem e te observam. Você precisa tomar
mais cuidado com os inimigos que faz e com
quem você anda odiando por aí. É o único aviso
que te dou. Você ainda vai pagar a sua dívida.
Isso não é uma vitória.
Os quatro saíram pelo beco, até sumirem de
vista. Cassandra conseguiu levar Lopes para
dentro, mas não deixou de pensar naquelas
palavras ao longo do dia. Chico ficou boa parte

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do tempo sentado em seu colo. O shen tinha
propriedades curativas.

Cassandra já havia passado por muita coisa


na vida e não se incomodava com essas
ameaças. Ela sabia que de forma ou de outra,
em algum momento, deveria confrontar
aqueles que haviam alterado sua vida de forma
irreversível para sempre, e ainda sim achavam
que ela deveria ser grata. Mas uma coisa que
Cassandra não tinha era medo. Eles que
viessem, ela mostraria para todos do que era
feita.

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Negociações escusas
Por Allana Dilene

Com suor escorrendo pela sobrancelha


vasta, Julia alternava a atenção entre as câmeras
de segurança e os processos em segundo plano,
responsáveis por decriptar o acesso aos
arquivos. Lembrou-se da primeira vez que viu
aquela sala, a mesa longa e sinuosa, ela
deslumbrada com as ideias de inovação e
melhoria; era o futuro dos filmes que assistia
quando criança se materializando diante de
seus olhos. Jamais poderia imaginar que estaria
de volta àquele lugar naquelas circunstâncias.
Tsc. Foco, Julia, foco! Se demorasse demais,
seria pega, e só deus sabe o que poderia
acontecer. Não lhe saía da cabeça o telefonema
do professor Marcos Vilela, a voz rouca pelo
cigarro: “tome cuidado. Não sei o que pode
acontecer comigo. Copie os dados das
pesquisas e procure ajuda”. No dia seguinte, o
homem aparece morto. Nem um pouco
suspeito.
Quando finalmente conseguiu acessar os
arquivos, fez uma rápida busca e começou a
cópia. O volume de dados era imenso, e
qualquer minuto era a diferença entre escapar e

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ser pega. Todos os pesquisadores receberam o
comunicado informando que as atividades
estavam suspensas, aquele era o único dia que
poderia fazer isso. A Tolwyn estava “em
completa colaboração com as investigações
deste lamentável incidente”. Ainda assim tinha
medo, se fosse descoberta na sala do chefe...
Mordeu o próprio lábio, procurando se
concentrar. Enquanto fazia uma triagem do
acervo, não resistiu à curiosidade quando
encontrou vários arquivos em áudio. Como se
não bastasse invadir a rede das Indústrias
Tolwyn, Julia estava chafurdando os arquivos
pessoais de Evan Wilson, principal responsável
por trazer a megacorporação ao Brasil, o
garoto-propaganda da empresa. Refletiu por
um momento, avaliou suas escolhas e logo deu
de ombros para o bom-senso. Ali ela poderia ter
algo que poderia mantê-la segura na base da
chantagem, ao menos. Sacando os fones de
ouvido da mochila, começou a ouvir.

Primeiro registro. Nunca tive problemas


para ter o que queria. O céu é o limite para

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aqueles que nascem com a influência e o
dinheiro como aliados, e também recai sobre
nossos ombros a responsabilidade de sermos
superiores à maioria medíocre das pessoas.
Desta forma, não me foi uma exata surpresa
quando fui admitido no Círculo do Dragão. Era
o que eu buscava. Estudei as técnicas de Cinder
com cuidado e afinco, mas não pela glória em
si. Via o verdadeiro poder onde ele reside, e a
ordem do Círculo do Dragão poderia me
oferecer tal acesso, ou assim eu erroneamente
julgara.
O Círculo sabia do “Outro Mundo” muito
antes do que esses movimentos pseudomísticos
alimentados por alucinógenos, e o manteve
escondido intencionalmente. Esse gesto, sob a
bandeira de “nos proteger de um perigo
maior”, apenas repete a mesma estrutura
presente na história da civilização humana:
muito poder na mão de poucos.
O Círculo agiu com correção — o poder não
deve ser de fácil acesso a todos. Mas manter a
humanidade na ignorância certamente trouxe
seus custos, como pudemos atestar com o
aparecimento do Ifrit. A criatura trouxe em seu
encalço destruição e mortandade e poderia ter
sido contida se não fôssemos tão pífios, tão...
pequenos.

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Não demorou, porém, para que a hierarquia
do Círculo se mostrasse pequena para mim.
Sempre secretivos, mantiveram-me preso em
seus vários níveis, buscando me distrair com
migalhas de conhecimento, mesmo eu tendo
exibido mais de uma vez minhas capacidades.
Passei nos testes com louvor, provei-me mais
hábil que vários outros aprendizes que vieram
antes de mim e ainda assim, fui menosprezado.
Afiliei-me à ordem porque buscava desvendar
os mistérios da realidade, e não porque
precisava de guias tacanhos que buscavam
impedir meu crescimento.
À medida que estudava e treinava, fui
limitado por meus superiores e os confrontei.
Demandei explicações plausíveis. Fui afastado
de minhas atividades sob a acusação de
insubordinação. Um bando de velhos
incapazes de enxergar o verdadeiro futuro.
O que os movia decerto era o medo: temor
da superação, de ver suas posturas retrógradas
ultrapassadas por alguém mais jovem e mais
habilitado. O poder verdadeiro tem esta faceta
— aqueles que o possuem farão o possível para
mantê-lo nas próprias mãos. Que eles arquem
com os custos de suas consequências.

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Um forte barulho metálico obrigou Julia a
sufocar um grito de susto, por muito pouco não
entregando sua posição. As câmeras de
segurança exibiam a grande porta de vidro
sendo aberta, e por ela a figura esbelta e bem
vestida do presidente adentrava o lugar. A
analista amaldiçoou mentalmente até a terceira
geração do homem, mas a verdade é que tinha
perdido muito tempo. Não terminou de copiar
todos os dados, mas garantiu que ao menos os
áudios estivessem consigo. Aquilo certamente
poderia lhe conceder alguma garantia, caso
resolvessem ir atrás dela.
Desconectou tudo no desespero, enfiou seu
equipamento na mochila e se arrastou para a
saída de emergência. Julia sentia as narinas
dilatadas pelo medo. Nos corredores, podia
ouvir a movimentação.
“Vai ter que dar tempo, vai ter que...”
Com a graciosidade de um elefante na feira,
Julia saiu correndo da sala.
Prendendo o cabelo crespo no alto, a analista
se meteu no jaleco, uniforme para quem

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trabalhasse nos laboratórios da IT. Caso alguém
aparecesse, aquele era o plano: ela tinha
recebido a nota de interdição do prédio, mas
precisava de alguns dados para um artigo.
Enquanto descia as escadas correndo, Julia
rememorava a história ensaiada e marcava
mentalmente as câmeras, que seriam religadas
em alguns minutos.
Vai ter que dar tempo, vai ter que...
Sentiu o metal frio da porta corta fogo e
ouviu passos pesados do lado de fora. Droga. Se
saísse agora, certamente seria interrogada pelos
brutamontes que cercavam o senhor Wilson. Se
ficasse muito tempo, sua imagem estaria
estampada nas câmeras de segurança assim
que o loop que programou acabasse.
Contou até três e abriu a porta. Disfarçado a
tremedeira, saiu com o celular na mão e colocou
o segundo áudio para tocar.

Terceiro registro. De posse do práxis, uma


magia haustiana, pude abrir uma Ponte para o
Outro Mundo a muito custo. Estava exausto e
não sabia se meu comparsa sobreviveria. Ao

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menos sua colaboração já havia sido negociada.
Se ele viesse a perecer, seus familiares estariam
bem guarnecidos.
Saí em meio a um bosque fechado, as árvores
com torções familiares, mas ao mesmo tempo
estranhas. Parecia ter chegado ao entardecer,
pelas cores alaranjadas do céu que conseguia
entrever. Vestindo sapatos e calças de grife,
sentia-me deslocado.
Um arrepio desceu-me pela espinha quando
ouvi passadas leves remexendo folhas secas.
Deparei-me com uma criatura delgada, de
focinho alongado e estreito. Olhos negros como
fendas cortavam a pelugem branca e pude me
ver refletido naquelas superfícies reluzentes.
Ao fim de seu corpo alongado, oito felpudas
caudas se moviam em direções diferentes, em
uma dança que eu era incapaz de compreender.
“Quem és e o que queres aqui, mortal? ”
Difícil descrever aquela voz, aveludada e
profunda, grasnada e fluida, soando de
qualquer lugar que não a boca da criatura.
— Meu nome não tem importância, mas sim
o que busco: saber. Meu povo ficou por muito
tempo nas trevas, e quero lhes levar a luz.
“Mesmo nas trevas há conhecimento, ser do
mundo irmão. Vosso povo caminha há milênios

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com suas próprias patas. Desejas salvar os
outros ou a si? ”
— Desejo liderá-los para uma nova era.
“Por acaso sabes tu se teu povo deseja ser
liderado? ”
Pude sentir que o espírito ria. Enquanto eu
pesava bem minhas palavras, ela me
circundava. Por instinto, recuei, sentindo meus
pés deslizarem pela folhagem pesada do
outono. Então naquele lugar havia estações?
“Sou a raposa, o corvo, a coruja e tantos
outros. Já caminhei sobre patas, pés e planei sob
o teu sol, mortal. Já fui caolho, cega e fiandeira,
já aleijei deuses, provei oferendas e vesti
regalias. Tenho agora oito caudas pois ofertei
uma em um jogo, e não tardarei a recuperá-la.
Não tentes ocultar de mim teus intentos,
mortal. Diz-me, o que deseja tua alma? ”
A voz incorpórea ribombava em meus
ouvidos, desnorteava-me. Refiz meu espírito,
buscando equilíbrio, e só então devolvi o olhar
da criatura. Em minha volta, minha aura
brilhava, e embora exausto da passagem,
pensei que estava seguro o bastante.
— Fui sincero em minha proposição. Busco o
saber, aquilo que já foi negado há tempo

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demais a meu povo. Busco o que me foi negado
e me é de direito.
“Os saberes têm um preço. O que tens para
oferecer em troca? ”
— Metade do meu tempo de vida. Que serve
o tempo se não para fazer algo relevante?
“Nem tua vida inteira e a dos teus
descendentes bastariam, mortal. Podes receber
o conhecimento que desejas, mantendo tua
sanidade e a integridade de teu espírito. Ao
selar este pacto, deixarás, porém, a chama de
tua alma, a sombra que te move. ”
— Terei a compreensão que anseio?
“Toda a compreensão do sábio que vê a flor
e não pode retirá-la do jardim. ”
Assenti, incapaz de compreender os
aforismas. A criatura pareceu me analisar por
longos segundos, os olhos indecifráveis. As
patas almofadadas roçavam com graciosidade
no chão enquanto eu a acompanhava em
silêncio. Por aqueles breves momentos, todos
os outros sons pareciam menores e distantes.
De sua garganta, um rosnar inquietante crescia,
eu divisava suas presas de seus lábios
entreabertos.

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De ímpeto, saltou, atravessando meu peito,
não senti sequer o impacto de seu peso. Passou
como um fantasma fugaz, e calafrios me
fizeram cair de joelhos.
“Está selado nosso pacto, mortal. Agora,
retorne para tua casa. ”
Ao despertar, estava de volta ao armazém.
Não muito longe, meu comparsa jazia
inconsciente. Um vislumbre de compreensão
me atingiu, e quase pude tocar as energias que
cercavam seu corpo inerte, as partículas de
nagen fluindo com suavidade para a ponte
ainda aberta. Soube com precisão em quanto
tempo ele morreria, e não conseguia parar de
sorrir, o triunfo transbordando de mim.
Quando me movi para selar a ponte, senti como
se todo o ar fosse retirado de mim de uma única
vez. Fraquejei e caí.
Incapacitado pela dor lancinante, gritei. Meu
sangue fervia, minha energia se esvaía e a ponte
se transformara em um buraco negro de
energia. Compreendi então o que havia
acontecido: em troca de todo o conhecimento,
havia cedido a capacidade de utilizá-lo. E saber
exatamente o que me ocorria só tornava todo o
processo ainda pior. Quando a dor finalmente
parou, depois de excruciantes minutos, eu
estava completamente vazio.

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Fiquei parado mirando o teto pelo que
devem ter sido horas, fazendo crescer dentro de
mim um ódio profundo. Quando consegui me
levantar, meus passos eram débeis, e minha
vontade, férrea. Aquilo não passaria em branco.
Com a sorte de não ter enlouquecido de dor,
utilizaria todo o conhecimento de que
dispunha contra toda aquela espécie
deplorável.
Não seria difícil oferecer meu conjunto
específico de habilidades para uma companhia
em particular, extremamente interessada em
questões envolvendo os shen. E como o espírito
que me aleijou, eu também iria recuperar a
parte de mim que me foi tirada.

Passar pelos seguranças na saída foi uma


tarefa mais fácil do que Julia havia imaginado,
mas ao invés de tranquilizá-la, aquelas
informações só a deixaram ainda mais
preocupada. Sem os dados, ela não podia
entender exatamente o que estava acontecendo
nos laboratórios - e, mais importante, provar
qualquer coisa.

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Agarrando-se à mochila, Julia caminhava
apressada por entre as ruas, voltando para seu
apartamento minúsculo. Por precaução, fechou
as janelas, baixou todas as cortinas e enquanto
sentia o coração acelerar. Se a situação era
temerária antes, parecia ainda pior. Ele tinha
mesmo deixado um homem morrer? Tinha
silenciado o seu professor?
Se já haviam dado um jeito de calar o
professor Vilela, que era um pesquisador
conhecido, imagine o que seriam capazes de
fazer com ela? Como se o Universo lesse seus
pensamentos, a campainha tocou estridente.
Pelo visor da porta, era possível ver uma
mulher pequena e de cabelo alaranjado
exibindo um cartão onde se podia ler as iniciais
A.B.I.N. Atrás dela, um sujeito de barba de dois
dias apagava um cigarro.
— Julia? Precisamos falar com você.
Trêmula, Julia abriu a porta. Com o coração
descompassado dentro do peito, começou sua
própria jornada.

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A Princesa do Asfalto
Thiago Rosa

— Vou ter que te deixar aqui mesmo.


O motorista do Uber parou na rua Visconde
de Niterói, diante de uma enorme distribuidora
de alimentos. Do outro lado da rua, um
patamar abaixo do asfalto, a linha do trem.
Leona respirou fundo.
— O GPS não consegue guiar pela rua
Poteri?
— É subida de morro, dona. Não faço não.
Leona meneou a cabeça negativamente. Esse
era um dos principais motivos que a fazia
voltar a subir a rua Poteri. Embora a imensa
maioria das comunidades do Rio de Janeiro
tivesse passado por processos de integração e
urbanização, alguns preconceitos permaneciam
fortemente enraizados na mente de algumas
pessoas.

Enfrentar preconceitos era a razão de ser de


Leona Santos. Filha de uma senadora brasileira
e um artista marcial chinês, ela cresceu em um
ambiente extremamente privilegiado e ainda
assim sofreu preconceito pela nacionalidade do

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pai, pela cor da própria pele, pelo
posicionamento político da mãe e por ter
nascido em um corpo feminino. Claro, as coisas
tinham melhorado muito nos últimos anos,
mas ainda havia muito a ser aprimorado. Desde
adolescente Leona se engajou no ativismo
social. Embora fosse conhecida mundialmente
como uma atleta profissional, uma lutadora do
Circuito Mundial de Lutas, ela só via essa
posição como uma plataforma para atrair
visibilidade para as causas sociais que lhe eram
tão caras.
Saindo do carro, Leona aproveitou o
momento para olhar ao seu redor e correr seus
olhos cor-de-mel pela rua, absorvendo a nova
versão de uma visão frequente de sua infância.
Embora não tivesse crescido na Mangueira, a
lutadora frequentava o bairro para ver seus
amigos e fazer suas aulas de capoeira. Mais que
Vila Isabel, onde de fato havia morado durante
a maior parte da vida, ela tinha a Mangueira
como casa.
Fazia anos que Leona não visitava o lugar e
as pequenas diferenças tornavam a situação
surreal. A fachada restaurada da distribuidora
de alimentos. Os canteiros arborizados. As
casas pintadas, numeradas, com carros na
garagem. Ela se lembrava da rua como uma
série de paredes cinzas cobertas de pichações.

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Hoje em dia, ela teria dificuldade de diferenciá-
la de uma rua de Vila Isabel.
Tudo isso devia ser bom. A urbanização, o
aumento da renda média, a melhora da
qualidade de vida. Racionalmente, Leona sabia
que as mudanças eram boas. Entretanto,
conforme subia a rua e não via crianças
descendo correndo pelas escadas estreitas nem
vizinhos conversando das janelas de suas casas,
ela não conseguia evitar pensar que alguma
coisa havia se perdido. Havia alguma coisa de
puro na vida na favela, algo que ela não via
mais no bairro no qual a Mangueira havia se
transformado.
— Esqueceu o caminho, Princesa?
A voz rouca soou à esquerda da ativista,
afastando-a de seus pensamentos. Era uma voz
que lhe trazia lembranças. Muitas boas.
Algumas ruins.
Mestre Marcelo “Martelo” acenou para ela,
recostado em um carro velho. O primeiro
professor de capoeira de Leona, Martelo estava
perto dos 60 anos. Ele se mantinha em excelente
forma, aparentando ser bem mais novo. O
branco na barba rala e no cabelo cortado curto
a máquina, porém, entregavam a idade. Ele se
vestia de forma informal, com uma camisa do
América FC, uma bermuda branca de brim e

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chinelos. Uma de suas pernas era uma prótese
biônica, toda em aço, destoando da sua figura
tipicamente carioca.
— Só estava pensando, mestre. — Ela se
aproximou com um sorriso e estendeu sua mão
para que ele apertasse.
— Ainda com as luvas?
Fazia alguns anos que Leona usava luvas de
ópera sempre que saía em público. Por alguns
instantes Leona temeu que seu mestre soubesse
o motivo.
Martelo ignorou a mão estendida da aluna e
a abraçou com força. Leona ficou surpresa por
um momento, depois relaxou e o abraçou de
volta. Apesar do último encontro dos dois não
ter terminado de forma amigável, parecia que
eram águas passadas. Os lábios de Leona se
curvaram num sorriso involuntário.
— Bem-vinda de volta. Agora aqui também
é asfalto, então você é mesmo nossa princesa.
O sorriso desapareceu imediatamente.

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O som de palmas e cantoria preenchia o ar.
Aos catorze anos, Leona gingava para os lados.
O sol do verão carioca a cozinhava contra o
chão da quadra de esportes. A camiseta
amarela, grudada ao corpo pelo suor, a
incomodava mais que as calças largas de
capoeira. Diante dela, sua oponente não
mostrava nenhum desconforto, apesar da
vermelhidão na pele clara. Ela era um pouco
mais velha que Leona, mais alta, mais forte. Os
olhos violeta não escondiam o desprezo.
— Sentindo falta do ar-condicionado,
Princesa?
Um estudante de capoeira recebe um apelido
para se integrar à roda. Leona odiava seu
apelido com todas as forças, mas nunca se
sentiu confortável para falar a respeito. Eles a
chamavam de Princesa. Pelas costas, a
chamavam de “princesa do asfalto”. Afinal de
contas, ela não havia crescido na favela. Era
uma menina rica que aparecia três vezes por
semana e achava que sabia mais do que todo
mundo.
Sua oponente, Maria Eduarda, era nascida e
criada na Mangueira. Albina, quase havia
recebido o apelido “sarará”. Leona intercedeu
contra isso na época, indicando que não era
justo definir alguém apenas por características

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pelas quais não tinha controle nenhum. Seu
apelido acabou sendo Marfim, mas raramente
era usado; todos chamavam-na apenas de
Duda. Desde então, a menina mais velha não
perdia uma oportunidade de implicar com a
mais nova.

A perna de Duda passou perigosamente


perto da cabeça de Leona. O jogo estava ficando
perigoso. Leona telegrafou uma rasteira,
permitindo que Duda saltasse por cima da
perna. Por sua vez, a oponente girou numa
estrela sem aviso e acertou um chute na testa da
dita Princesa.
Leona caiu de costas no chão. A cantoria foi
substituída por risos.
— O calor está te deixando mole. — Ela
ouviu enquanto tentava se levantar.
Mestre Martelo observava a situação, atento,
braços cruzados. Leona arriscou um olhar para
o professor, esperando que ele intervisse. Duda
avançou com uma benção, um chute forte na
direção do peito, enquanto Leona levantava.
Por puro instinto, Leona agarrou o pé da colega
com as duas mãos, numa defesa típica do wing-
chun que aprendeu com o pai. Depois, ela girou
as mãos com força, numa exibição de raiva e

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crueldade típica de crianças. Um estalo ecoou
pela roda.
Duda gritou de dor e caiu no chão,
segurando o tornozelo, o pé torcido num
ângulo obtuso. As palmas pararam.
— Mole está o seu pé.
Enquanto Duda gemia, os olhos cheios de
lágrimas e o tornozelo torcido, Leona foi
embora. Mestre Martelo manteve os braços
cruzados.

A sala de recepção era pequena. Leona se


sentou em uma cadeira de plástico enquanto
Mestre Martelo se encostou na escrivaninha de
mogno descascado.
— Eles não cedem de jeito nenhum, menina.
Tentamos de tudo.
Era difícil prestar atenção. Leona já sabia do
que o mestre estava falando ー por isso ela
estava ali. — Mas aquele lugar despertava
muitas lembranças. Parecia uma outra vida,
quando ela era apenas uma menina tentando

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encontrar seu lugar no mundo. As paredes
haviam sido pintadas recentemente, numa cor
gelo sem graça. Elas eram verdes no passado.
— Você consegue nos ajudar?
Leona suspirou. Ela queria muito ajudar,
mas sempre a incomodava como Mestre
Martelo só lembrava dela quando precisava de
dinheiro.
— Conversei com alguns amigos, expliquei a
situação...— A lutadora começou enrolando
um dedo no cabelo. — Deixei a papelada nas
mãos da Braços Abertos. Acho que até amanhã
tudo deve estar resolvido, como disse ao
telefone.
O professor grunhiu, se levantou, estalou o
pescoço. Andou até a cadeira oposta à Leona,
atrás da mesa. Se sentou com enfado e um
suspiro.
— Amanhã pode ser tarde demais.
— Bom… — a jovem sorriu. — É por isso que
estou aqui.
Com a urbanização, o metro quadrado na
Mangueira havia disparado. Isso tornava
alguns prédios alvos de forte especulação
imobiliária. O número 34 da rua Poteri era um
exemplo disso. Um prédio de quatro andares,

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era a casa de Mestre Martelo e também onde ele
fazia suas aulas de capoeira. Dezesseis famílias
moravam lá, todas de aluguel. O proprietário
estava vendendo o prédio para uma grande
corporação. Todos sabiam que isso causaria um
aumento excessivo de aluguel, o que podia
fazer com que todas aquelas pessoas perdessem
suas casas. Leona havia conseguido juntar
fundos para fazer uma contraproposta através
de sua ONG, mas seu antigo professor temia
retaliação através da força.
— Essas pessoas são perigosas, princesa.
Apesar do apelido que odiava, Leona sorriu.
— Não se preocupe, mestre. Eu tenho
algumas cartas na manga. Só precisamos
esperar.

Uma batida tímida soou contra a madeira da


porta. Leona ficou tensa por um momento e
logo depois relaxou. Mestre Martelo havia
avisado que talvez os compradores tentassem
intimidá-los para evitar o negócio com a Braços
Abertos. Mas que espécie de mercenário bateria
timidamente numa porta antes de entrar?
— Pode entrar! — Gritou o mestre, animado.
Ele parecia saber quem era pela batida.

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Um menino em seus doze anos abriu a porta.
Tinha o cabelo cacheado bem cheio, olhos de
um castanho intenso e algumas marcas de
vitiligo na pele negra. Calçava chinelos, shorts
e ー claro ー uma camiseta do América FC.
— Sua mãe sabe que você está aqui, Carlos?
— Perguntou Martelo, se levantando.
— Eu vim ajudar a defender o prédio,
mestre!
Leona percebeu que o menino tinha os
punhos cerrados. Ele parecia mesmo decidido.
A ativista se aproximou dele e pousou a mão no
seu ombro.
— Oi, Carlos. Eu sou a Leona. Mestre
Martelo me chamou pra ajudar. Pode deixar
que eu cuido das coisas aqui. Mas eu vou
precisar da sua ajuda pra garantir que a sua
família está bem. Você pode fazer isso por
mim?
O menino olhou para Leona, parecendo
ligeiramente confuso. Sua expressão passou
depois para a indignação e, por fim, para a
raiva.
— Você acha que eu sou um idiota que vai
cair nesse papo furado, tia? O bicho vai pegar
aqui e vocês não têm nenhum estrategista. As
janelas estão todas abertas e visíveis. Nenhuma

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das entradas está vigiada. Se quisessem invadir
esse prédio já tinham invadido!
Leona continuou incrédula olhando para o
menino. Mestre Martelo bagunçou o cabelo de
Carlos, que continuava olhando fixamente para
a ativista, emburrado.
— Carlos é um especialista em jogos battle
royale, ou pelo menos é assim que ele explica de
onde tira isso. Inclusive, ele é mais cabeça dura
do que até você era quando criança. Se ele
decidiu que vai ajudar, é melhor aceitar.
Carlos sorriu para Martelo e correu para a
cadeira atrás da escrivaninha. Ele saltou no
assento, fazendo a cadeira girar em seu eixo.
Com um floreio, ele colocou na mesa um papel
ofício com um mapa das entradas do prédio,
desenhado à mão. Leona ergueu uma
sobrancelha e arriscou um olhar na direção do
mestre. Ela não via um sorriso tão sincero no
rosto do mentor desde quando era criança.
— Então, é isso que nós vamos fazer…—
disse Carlos, apontando para seu mapa.

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Usar um sobretudo no calor do Rio de
Janeiro costuma atrair olhares. Apesar disso,
quando Duda usava um sobretudo era para
evitar chamar atenção. Ela não era uma pessoa
muito discreta. Negra e albina, os cabelos
cacheados loiros, as feições fortes e os olhos
violeta chamavam atenção por si só. O fato de
boa parte de seu corpo ter sido substituída por
próteses cibernéticas não ajudava. Das pernas
até o ventre ela era puro aço. Um reforço
metálico subia por sua coluna vertebral e se
espalhava como uma rede por seus braços e
crânio. Não era bonito nem agradável, mas era
necessário para operar um exotraje. Com o
passar dos anos, Duda não recebia mais tantos
olhares indiscretos nas ruas, mas ainda assim se
sentia mais confortável coberta. Era difícil se
livrar de velhos hábitos.
O empregador havia marcado o encontro
num cinema de rua na Cinelândia. Duda não
entendia muito bem a necessidade daquilo. Ela
sabia que estava sendo contratada para um
serviço de legalidade questionável, mas
costumava encontrar seus empregadores em
locais mais privados. O tal “senhor Oito”
parecia ter assistido filmes demais.
Com um suspiro, a mercenária ciborgue
passou pela sala quase vazia e se sentou na
fileira combinada. Poucos minutos depois,

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enquanto os trailers mostravam os próximos
lançamentos de Bollywood, uma voz soou ao
lado dela.
— Você veio sozinha?
— É claro.
Ambos sussurravam. Duda conseguia ouvir
o empregador devido a seus implantes. Ela não
tinha certeza sobre como o empregador
conseguia ouvi-la. Ele não parecia ter nenhum
aprimoramento cibernético.
— O que eu temia aconteceu. Você vai ter
que agir. Leve seus rapazes para lá ainda hoje.
A ciborgue não conseguiu evitar que um
sorriso se formasse no seu rosto. Ela tentava ser
profissional, mas ia gostar muito desse
trabalho.
— A princesa está na área?
— Eu preciso que você a tire de lá. Inteira, de
preferência.
— Não posso prometer nada.
Duda se levantou e saiu do cinema,
enquanto na tela os atores começavam a cantar
em outro trailer. Era hora de trabalhar.

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— Carlos, vem jantar!
A porta abriu de supetão e Carlos arregalou
os olhos. Letícia Araújo era uma mulher alta,
com o corpo esguio num vestido estampado
simples. Dava pra ouvir o som da sandália
antes mesmo da porta abrir.
— Ah, mãe, preciso mesmo? — Resmungou
o menino.
— Se eu preciso você também precisa! —
Disse uma menina mais nova que Carlos,
trajando camiseta e calças de capoeira.
— Você tá encrencado, cara. — Leona
sussurrou para o menino.
— Pô, me ajuda aí…— ele respondeu sem
perder a compostura.
Leona já sabia que a família Araújo morava
no prédio. Letícia tinha dois filhos: a mais nova,
Vitória, que já fazia capoeira com Mestre
Martelo e Carlos, o mais velho, que gostava
mais de videogames que de jogar capoeira.
A ativista se aproximou da família. Letícia a
cumprimentou com um sorriso.

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— Votei na tua mãe. — Ela disse. — Gosto
dela. Tomara que ela dê uma força.
— Estamos fazendo o possível. — Na
verdade Leona queria evitar envolver a mãe na
situação o máximo possível, mas não ajudaria
nada comentar isso agora.
A ativista abaixou para ficar da altura da
pequena Vitória e apertou sua mão. A menina
acenou com a cabeça, balançando o afro que
estava cultivando.
— Cabelo bonito! ー disse Leona.
— É pra ficar igual era o do meu pai...—
respondeu a menina, sorrindo tristemente.
Leona sabia que o pai da menina estava
internado no hospital. Na semana passada,
mercenários ciborgues haviam invadido o
prédio para intimidar Mestre Martelo e os
demais moradores. Quando o pai de Carlos e
Vitória tentou resistir, foi brutalmente
espancado. Como parte dos cuidados médicos,
ele teve a cabeça raspada.
— Tenho certeza que ele vai adorar!
Isso era uma coisa que Leona não conseguia
entender. Comprar o prédio e aumentar o
aluguel era cruel, mas fazia sentido. Uma
postura tão flagrantemente ilegal não

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justificava isso. Não era garantido que
conseguissem ligar o crime ao comprador, mas
para que correr o risco? O aluguel de 16 famílias
de classe média simplesmente não valia esse
esforço.
Mestre Martelo conversava com Letícia. A
matriarca dos Araújo tinha o cabelo preso num
coque alto. Vitória se voltou para a mãe,
pedindo colo. A menina estava com sono.
Vendo o olhar de Leona, Letícia fez sinal para
que falasse baixo.
— Faz tempo que ela não dorme direito. Vive
dizendo que tá cansada porque fica brincando
com Beto, o amigo imaginário dela. Diz que ele
anda preocupado. Que tem medo de perder a
própria casa.
Leona assentiu. A menina parecia cansada
mesmo. Talvez fosse preocupação com o pai.
— Vocês têm certeza que Duda está com
eles?
Mestre Martelo acenou com a cabeça. Leona
ainda não entendia como isso tinha acontecido.
— Ela atende por Marfim agora. — Disse
Martelo, incisivo. Um quê de acusação em suas
palavras.

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Leona arregalou os olhos e se aproximou do
antigo professor. Letícia percebeu o clima
pesado e se afastou com a filha. Falando baixo
para não incomodar a criança prestes a dormir,
a ativista interpelou seu antigo mestre.
— Você está implicando que isso é culpa
minha?
— Você sabe que é. Especialmente depois do
acidente.
— Foi você quem colocou uma adolescente
com o tornozelo quebrado para dirigir!
— E quem quebrou o tornozelo dela,
princesa?
— Isso não é justo! Eu organizei a campanha
que pagou pelas próteses!
— A campanha pagou pelas nossas próteses
ou pela sua culpa?
Leona socou a parede atrás do mestre. Ele
nem piscou. O barulho acordou Vitória, que se
assustou e olhou para todos os lados. Letícia
afagou o cabelo da menina e sussurrou que
estava tudo bem. Carlos tirou os olhos do mapa
para recriminar a lutadora com o olhar.
— Desculpe! — Ela disse, surpresa com o
que tinha feito. — Isso… isso foi um erro. Vir
aqui.

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Ela correu para fora do prédio, arrependida.
Na saída, teve um forte sentimento de estar
sendo observada. Ainda assim, era mais
agradável ser espionada que continuar sendo
culpada daquela forma.

Sentada no banco do carona de uma van


branca, Marfim viu Leona sair do prédio. Seu
primeiro impulso foi provocá-la. Seu segundo
impulso foi sair do veículo e desafiá-la. Mas se
segurou, isso não era pessoal. Era um serviço.
Na van, a equipe de Marfim esperava suas
ordens. No banco de motorista estava sua
assistente e braço direito, uma mulher séria e
silenciosa. No banco de trás, dois rapazes
armados com canhões sônicos. Armas não-
letais eram mais efetivas para mandar recados,
afinal de contas.
Leona passou do lado da van, sem nem
percebê-la. Os anos passavam, mas Marfim via
que ela não perdia o ar de superioridade.
Andava na rua com graça de bailarina, olhando

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para frente, desafiadora só de existir. O sangue
da mercenária ferveu.
— Esperem aqui.
Talvez fosse pessoal, no final das contas.
Ela saiu da van e bateu a porta. O barulho fez
Leona se virar. Antes que ela pudesse reagir,
Marfim jogou seu sobretudo no chão,
mostrando seu corpo mecânico.
— Duda! — Leona arregalou os olhos. — O
que… o que aconteceu com você?!
— Eu só consertei o que você me fez!
Anos atrás, Leona havia quebrado o
tornozelo de Duda numa roda de capoeira.
Poucas semanas depois, com o tornozelo
imobilizado, a menina albina estava dirigindo
o carro do professor e perdeu o controle. Mestre
Martelo perdeu uma perna. Duda partiu a
coluna. Leona, ainda se sentindo culpada,
organizou uma vaquinha online para pagar por
próteses para ambos. Martelo ainda usava a
mesma prótese. Já Duda havia se transformado
completamente.
Além dos implantes internos e reforço de
coluna, ela tinha substituído tudo abaixo do
ventre por aço. As pernas metálicas
terminavam em dois tripés. Todo o chassi havia

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sido pintado de um branco perolado. A única
roupa que ela usava era um suporte esportivo.
Nos braços, fios passavam por dentro da sua
pele clara. Os punhos estavam envoltos por
manoplas enormes, ligados a uma bateria nas
costas. Um modelo de exotraje muito comum
em laboratórios experimentais.
— Duda, eu sinto muito, você não devia…
A ciborgue avançou contra Leona. Com um
salto para trás, a capoeirista desviou do
primeiro golpe. A manopla gigantesca faiscou
com uma luz azulada e rachou o asfalto quando
acertou o chão. Elas pareciam vibrar.
Enquanto Leona tentava decidir o que fazer
em seguida, uma onda de choque disparou do
punho no chão, indo na direção dela. Ela
conseguiu gingar para um lugar seguro, mas o
ataque deixou uma rachadura enorme no chão.
O terreno estava ficando instável e logo ela não
poderia se mover com a mesma estabilidade.
Isso tinha que acabar.
Leona se lançou para a frente, usando as
mãos como apoio, dando um mortal e caindo
com os pés num chute descendente. Marfim
moveu um dos braços biônicos num arco,
desviando o ataque e redirecionando a perna
de Leona. Com a outra mão, ela tentou eliminar
a capoeirista com um golpe direto.

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Percebendo que não poderia esquivar, Leona
grunhiu e fechou a mão esquerda num punho.
Ela concentrou toda a sua energia naquele
ponto, que começou a brilhar com uma luz
dourada. Sem distância ou tempo para os
golpes de capoeira, ela recorreu ao wing-chun.
A manopla vibratória de Marfim se chocou
contra o punho dourado de Leona. O impacto
violento produziu uma onda de choque que
afastou as duas. Leona deslizou pelo chão,
graciosa, parando com a guarda erguida.
Marfim cravou os tripés que lhe serviam de pés
no asfalto, se estabilizando.
O braço de Leona latejava, mas era melhor
que ter virado pasta no asfalto. Ela reparou que
sua luva esquerda tinha se esfiapado
completamente, provavelmente devido às
vibrações. Alguns anos antes, isso a teria
incomodado. Ela começara a usar as luvas
depois de fazer treinamento avançado de wing-
chun, cobrindo mãos e antebraços de cicatrizes.
Atualmente ela gostava das luvas mais como
uma marca registrada do que como qualquer
outra coisa.
Leona não teve muito tempo para pensar. A
oponente corria na direção dela, o som dos
tripés ecoando pelo quarteirão. Uniu ambas as

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manoplas num grande punho, o ar ao redor
delas distorcido pelas vibrações. Todos os
instintos de Leona gritavam para ela correr
dali, mas a ativista esperou até o último
segundo.
Se jogando para a frente numa cambalhota,
Leona passou por baixo dos tripés de Marfim e
se levantou de um pulo. Como ela esperava, a
bateria do exotraje ficava nas costas. Bastava
eliminá-la para se livrar do problema das
vibrações. Colocando tudo de si em um chute,
Leona afundou o pé na bateria, que começou a
faiscar e soltar fumaça. Marfim se girou e a
acertou com um golpe com as costas da
manopla. Leona ainda conseguiu se encolher
para se proteger, sendo jogada longe pela força
do golpe, mas aterrissando de pé.
Leona já tinha pensado em como finalizar a
luta. Ela o teria feito, se um disparo sônico não
a tivesse atingido pelas costas. Assim que caiu
no chão, desorientada, ela foi alvejada por mais
dois tiros. Totalmente sem senso de equilíbrio,
a capoeirista não conseguia se levantar. Sua
cabeça parecia girar. Era difícil manter a visão
fixa em algum ponto. Ela tinha quase certeza de
que seus ouvidos estavam sangrando.

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— Vamos logo, chefe! Se não consertar essa
bateria, vai explodir o traje!
Enquanto seu mundo rodava, Leona pôde
ver Duda indo na direção da van. Antes de
acelerar rua abaixo, a ativista ouviu a voz da
antiga colega por cima do zumbido que
preenchia sua audição.
— Teu erro foi achar que podia comigo
sozinha! Volto logo para terminar de acabar
com você!

A primeira coisa que Leona viu ao acordar


foi Carlos. O menino estava passando algodão
nas orelhas dela.
— Você precisava mesmo da minha ajuda, tá
vendo.
O primeiro impulso de Leona foi acenar
afirmativamente com a cabeça, mas a menor
menção de movimento fez seu mundo voltar a
girar.
— Calma. Ela ouviu da voz de Mestre
Martelo. — Fora do seu campo de visão.

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— Onde…? — A voz de Leona soava alta
demais em seus próprios ouvidos.
— No escritório. Você apagou por algumas
horas. Carlos e a família cuidaram de você.
Descanse.
— Não tenho tempo para descansar. Duda
vai...

Como se fosse uma resposta à fala da


capoeirista, a porta tremeu com um golpe
estrondoso que quase a arrancou das
dobradiças. No canto do apartamento, Letícia
abraçou Vitória. A menina tentava dizer
alguma coisa, mas Leona não conseguia ouvir.
Parado ao seu lado, Carlos cerrava as pequenas
mãos em punhos. Seus olhos castanhos se
enchiam de lágrimas enquanto ele tentava se
manter firme. Com muito esforço, Leona se
levantou do colchonete e se ajoelhou. Mesmo
ajoelhada, ela era mais alta que o menino.
Ela queria ter mais tempo. Queria tentar
conversar com Duda ー ou Marfim ー desde o
ataque. Queria resolver as coisas de forma
legal. Mas uma coisa que Leona havia
aprendido rápido crescendo no Brasil, porém,
era que as leis nem sempre são justas. Entre um

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pedaço de papel e sua própria bússola moral,
ela sabia no que confiar.
Um novo golpe estremeceu a porta mais
ainda. Rachaduras começaram a se espalhar
por sua extensão, até mesmo na tábua
horizontal colocada como barreira improvisada
ー iniciativa de Carlos. A cabeça de Leona
latejava. Ela tinha quase certeza de que seu
ouvido esquerdo estava sangrando de novo.
Não tinha certeza se conseguiria ficar em pé.
Carlos a olhou dentro de seus olhos.
ーEu não posso fazer isso sozinho.
A voz do menino saiu com um filete de água
escapando de uma represa furada. Ela soou
baixa, fraca, embargada. Carlos mal conseguia
falar naquele momento, assustado e
preocupado com questões complicadas demais
para um menino da sua idade.
Ouvindo aquela voz, Leona soube que tinha
que ficar de pé. Primeiro veio a náusea, mas ela
já havia tido piores. Ela respirou fundo uma
vez. Outro golpe soou contra a porta, uma lasca
de madeira voou pelo ar. Duas. Carlos recuou
para perto da mãe, sempre com os olhos na
porta. Três. Uma aura dourada envolveu
Leona, como se ela fosse uma lâmpada se
acendendo.

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Letícia tentou falar mais uma vez. Dessa vez
Leona conseguiu ouvir. Sua audição estava
começando a voltar. O próximo golpe estourou
a porta completamente.
Mas ele veio de dentro em vez de vir de fora.

Estilhaços da porta voaram para todos os


lados. Dessa vez, os três capangas estavam
usando exotrajes robustos. Blindados por
placas nas pernas, tronco e braços, só os rostos
ficavam expostos. Marfim estava mais atrás
deles, segurando um canhão sônico. Ela não
disfarçou a surpresa ao ver Leona de pé.
— Você é mais durona que eu pensava. Mas
continua exibida e convencida. Você acha
mesmo que pode nos encarar sozinha, princesa?
Leona cruzou os braços, sorrindo.
— Seu erro é achar que eu estou sozinha.

Um som de rugido irrompeu da escadaria.


Um borrão passou perto de um dos
mercenários, deixando um rastro de sangue.

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Um lampejo de luz saindo do borrão acertou
outro dos mercenários no peito, lançando-o
através da janela.
Quando Marfim conseguiu entender o que
estava acontecendo, notou uma criatura
parecida com um furão de quase um metro de
comprimento, mas com pelos dourados rajados
de preto. Se movia como um pequeno raio.
ー Esse é o Beto, amigo da Vitória. É por
causa disso que vocês querem o lugar, não é?
Não tem nada a ver com mercado imobiliário.
Tem uma brecha no tecido das dimensões, um
pequeno portal para o Outro Mundo aqui.
Beto era um mon, um tipo de habitante do
Outro Mundo. Nessa dimensão paralela,
existem animais como ele, parecidos com os da
Terra, mas diferentes em vários sentidos.

Os mercenários olharam preocupados. Eles


não estavam preparados para enfrentar aquilo.
Esse mon era maior, mais forte, mais ágil e mais
inteligente que um furão normal. Era também o
mais poderoso com quem já tinham esbarrado.
Além disso, ele disparava rajadas de luz. Não
iam se arriscar tanto por alguns trocados.
Você esperava um grande confronto final,
não é? — Leona disse.

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Da porta, a aura dourada a iluminando,
tentando de todas as formas evitar mostrar que
mal podia ficar de pé.
— Uma chance de vingança contra quem
você culpa por tudo que houve de ruim na sua
vida. Arruinar o professor que nunca te deu o
valor que você merecia seria um bônus. Você
deve estar vibrando de animação.

— Você se acha muito sabichona. Devia era


calar essa matraca! — As últimas palavras
saíram num grito irritado.
— Realmente eu não te conheço. Mas quero
que você pare para pensar nas suas chances. —
Ela pegou o celular no bolso e acenou com ele
para a antiga colega.
— A transação foi concluída, o prédio
pertence ao Mestre Martelo agora. — Era uma
mentira, mas era por uma boa causa. — Isso é
invasão de privacidade. Você quer mesmo ferir
uma das melhores lutadoras do mundo só por
uma rixa pessoal?
Os mercenários olharam para Marfim,
confusos. Nada de bom poderia vir dessa
situação.
— Quero!

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Marfim disparou na direção de Leona. O
dano na bateria já havia sido corrigido. A
manopla gigantesca vinha de novo na direção
da capoeirista, vibrando e distorcendo o ar.
Sem espaço (ou mesmo forças) para desviar,
Leona cruzou os braços diante do corpo,
tentando amortecer o impacto com a aura que a
envolvia. Ela voou para trás, caindo dentro do
escritório. Carlos, Letícia e Mestre Martelo
estavam abrigados como podiam atrás da
escrivaninha. Vitória, porém, subira no móvel
para ver melhor.
— Beto! Pega! — Gritou a menina.
Um feixe de luz acertou Marfim pelas costas,
desequilibrando a ciborgue antes que ela
pudesse se aproximar de Leona.
Aparentemente a pontaria do mon havia
também acertado a bateria, já que as manoplas
pararam de vibrar.
Olhando para trás, Marfim viu seus
mercenários fugindo. Beto bloqueava a
passagem. Do outro lado, Leona já havia se
levantado.

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— Isso não precisa acabar assim, Duda. Você
cometeu erros para se proteger da própria dor,
mas não precisa deixar isso te definir.
Marfim notou Mestre Martelo atrás da
escrivaninha. Os mesmos braços cruzados,
aquela nojenta neutralidade. Ela se lembrou do
acidente, de quantas vezes ouviu que tudo
havia sido culpa dela. A ira se acendeu em seus
olhos, e ele notou desta vez.
— Duda! — A voz do mestre soou dura como
não soava há anos. — Sei que não fui perfeito,
mas você é quem faz suas próprias escolhas.
Leona pode ajudar você. Pode nos ajudar.
Deixa disso!
Maria Eduarda baixou os punhos pesados.
Ela olhou para aquelas pessoas assustadas,
para o bicho sobrenatural protegendo a amiga,
para o mestre que ela havia abandonado. Ela
pensou em desistir. Pensou que estava errada e
que devia pagar pelos seus erros. Mas Marfim
olhou de novo para aquela princesinha metida
a heroína e seu sangue ferveu.

O exotraje caiu no chão. Marfim soltou todas


as amarras e girou os braços, testando-os. Os
fios visíveis por baixo da pele não eram uma

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visão agradável, mesmo depois de todos esses
anos.
— Vamos resolver isso na roda de capoeira.
Eu sempre fui melhor que você lá! Desde que
você não trapaceie, como da outra vez!
Se Marfim ainda fosse uma artista marcial
em vez de uma mercenária, talvez ela tivesse
percebido Leona acumulando energia
enquanto se desfazia do exotraje. Como não
percebeu, ela mal teve chance de defesa. Com
um rugido digno de uma leoa, Leona estendeu
sua mão esquerda na direção da ciborgue. Toda
a aura dourada ao redor da capoeirista se
acumulou ali e se transformou num feixe
contínuo de energia, atingindo Marfim em
cheio, lançando-a através da parede e direto
para a inconsciência.
Tendo usado suas últimas forças, Leona
desmaiou.

ーVou ter que te deixar aqui mesmo.


Leona sorriu para o motorista de Uber.

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— Não é como se você tivesse um carro pra
poder chegar mais perto, né? Obrigada.
A rua Poteri estava cheia de gente. Crianças
com calças de capoeira acompanhadas de seus
pais, repórteres, adultos voltando do trabalho e
ー claro ー torcedores fiéis do América FC.
O número 34 havia sido reformado e
pintado. Leona preferia o verde nas paredes
internas, mas não tinha do que reclamar vendo-
o do lado de fora. Carlos e Vitória estavam mais
altos. Era impressionante como crianças
cresciam rápido. Parece que Beto, o mon,
continuava tímido ー Leona não o viu, mas
tinha certeza que ele estava por lá. Letícia e o
marido observavam as crianças jogando
capoeira. Os Araújo pareciam felizes.
Mestre Martelo observava Carlos e Vitória
na roda com a atenção devida. Ele não era uma
pessoa perfeita, mas estava tentando. Havia
cometido muitos erros ao longo da vida. Ainda
assim, a capoeira que ele ensinava seria uma
ferramenta importante para todos os alunos
que chegavam ali.
ーGostando da festa?
Duda estava recostada num carro. Suas
próteses das pernas agora eram mais
tradicionais, parecidas com as de Mestre

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Martelo. Ela vestia jeans e camiseta, sumindo
na multidão. As marcas dos cabos em seus
braços eram enfeitadas com tatuagens.
Leona também se recostou no carro e
respirou fundo antes de responder com um
sorriso.
ーNão vou poder ficar. Só queria garantir
que estava dando tudo certo. Como está o
emprego novo?
ーMuito puxado. Sabe, eu ainda fico
surpresa que tenham me passado para o regime
semiaberto tão rápido.
Leona apenas sorriu.

ーEu queria me desculpar. De quando te


machuquei quando éramos crianças. Foi de
propósito e foi por motivos que nem eram
culpa sua. Eu fui uma idiota.
ーAh, tudo bem, você já falou isso mil vezes.
Olha… eu sei que você quer carregar o mundo
nas costas, mas isso não foi tudo culpa sua.
Minha família me tratou mal, Martelo me
tratou mal. Você me tratou mal só uma vez. Eu
errei. E estou pagando por esses erros. Mas
aceito as desculpas se você aceitar meu desafio.

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Colocando as mãos nos bolsos, Leona se
levantou.
ー Talvez da próxima vez, Duda.

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Vigilante
Nina Bichara

Peônia é um bairro dinâmico, a China dentro


das cidades. Quase toda cidade tem um bairro
ou uma avenida chamada Peônia onde se
encontram vários comércios chineses. É um
bairro importante, que concentra também
enormes prédios de multinacionais, escolas
milenares de artes marciais, empresários
variados e ótimos restaurantes. Meiwei era um
deles, um tradicional self service com variados
pratos que enchia suas cadeiras de gente com
camisas brancas e saias sociais. Samya ajudava
um pouco no caixa depois do colégio, já que o
estabelecimento ficava aberto até às 14h, a
promessa, além de algum dinheiro, era poder
comer pãezinhos de batata doce sem ninguém
reclamar da quantidade que ela iria comer.

Samya gostava de ser meio chinesa, meio


brasileira, tinha o melhor dos dois mundos. As
comidas, as tradições e as artes marciais. Ela
fazia kung fu desde os dez anos e, como uma
secundarista, já tinha participado de alguns
campeonatos e ficando em segundo ou terceiro
lugar. Sua mãe também a colocava para

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fortalecer seu espírito num templo local. O
sonho de criança era entrar nas academias
Cinder, mas o pai, que também era seu
treinador, achava uma besteira. Segundo ele a
academia era só propaganda e baboseira. Então
ela levava seus dias entre estudar, ajudar no
restaurante, treinar com o pai e ir a aulas no
cursinho preparatório a noite. Isso já seria o
suficiente para manter cansada qualquer
adolescente, mas, ainda assim, naquela semana
Samya resolveu se esgueirar pela janela.

Tudo começou por causa de um boato. Uma


garota da escola, conhecida por ser muito
competitiva, porém nada forte, havia
desaparecido. A família disse para a escola não
se preocupar pois a menina andava numa fase
rebelde, mas Samya estranhou quando Kaleen
não apareceu para o campeonato de queda de
braço da semana.
Ela não participava da competição que
acontecia na lanchonete em frente à escola, mas
gostava de ir assistir e tomar sorvete. Kaleen
não ganhava, mas nunca deixou de

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competir. Samya ficou apreensiva. As fofocas
no cursinho aumentaram a suspeita. Um garoto
do terceiro ano também tinha sumido. O
menino frequentava as academias Cinder, não
era nenhum pupilo, mas era aplicado. Samya
sentiu que aquilo era o suficiente para indicar
algum problema. Alguém estava raptando seus
colegas e ela precisava ajudar. Havia uma pista.
O homem que cuidava da lanchonete lhe
estendeu um panfleto na última sexta-feira, era
um papel simples escrito: TORNE-SE FORTE E
VOCÊ IRÁ NOS REPRESENTAR! Junto havia
apenas um número para contato.

Naquela noite, se equilibrando sob os


telhados vermelhos, Samya tentou ignorar a
vozinha dentro dela que dizia:
“Sério mesmo que você vai começar a sua
SUPER investigação por um papelzinho? ”
Pegou o telefone e enviou uma mensagem.
Não demorou muito para aparecer “digitando”
na parte superior da tela. E uma resposta surgir.

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Olá. Sim, nós podemos te tornar forte! E temos
uma vaga esperando por você no campeonato da
Cobra Rubra. Nos encontre na Rua das Cerejeiras,
nº 283. Temos descontos especiais para estudantes
na taxa de inscrição.
Ao que ela respondeu:
Obrigada! Infelizmente não posso ir hoje, mas fica
combinado para o próximo campeonato. Vai ser
irado participar! #ocinturãoémeu
Houveram algumas notificações de resposta,
mas ela só colocou o celular para não dar
notificações.
— Aparentemente eles têm um
estabelecimento, então... Boa, vou me esgueirar
e pego eles desprevenidos.
Novamente a voz dentro de sua cabeça
ecoou. “Sério mesmo que você acha que porque
você disse que ia amanhã foi o suficiente para
despistar? ”
Ela balançou a cabeça para tirar os
pensamentos do lugar e continuou andando. Se
esgueirou entre carros e árvores. Ao chegar no
local, seus planos foram logo por água abaixo.
Tinha uma pequena aglomeração de pessoas
ali. Entre pessoas querendo entrar e outras
conversando entre si em cantos, Samya não

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fazia ideia do que estava acontecendo. Ainda
assim resolveu checar.
Ela notou uma placa de patrocinadores e o
preço para assistir a “luta mais esperada da
noite”. Puma Selvagem contra Demônio Roxo.
“É patrocinado pelas IT. Bom, tudo é
patrocinado por eles. ”
Ela achou que ficaria tudo bem ir assistir,
tinha gente o suficiente fazendo o mesmo.
Puxou o cachecol do rosto, pegou umas notas e
comprou uma entrada. O lugar era um porão
com um ringue e várias cadeiras de alumínio
meio enferrujadas, mas estava cheio. Logo
chamaram as competidoras, duas meninas que
não pareciam muito mais velhas que Samya,
mas tinham os músculos do ombro e das pernas
inchados e um olhar animalesco.

O primeiro round empatou. As duas


pareciam cansadas, Puma ganhou uma garrafa
de água levemente esverdeada e logo foi
anunciado o segundo round. Não demorou
muito. Puma voltou com uma energia
explosiva e renovada, uma enorme veia saltava
em sua testa. Ela desferiu socos fortes e rápidos,
a outra menina já pendia e chacoalhava a
cabeça para se manter acordada.

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Depois de alguns socos trocados Demônio
Roxo foi lançada para o outro lado do ringue
com um grito explosivo da Puma. Um jato roxo
a acompanhou. A menina com o collant de
estampa animal deu mais uns gritos ferozes,
comemorou com o juiz e caiu. Pessoas com
jalecos brancos entraram para pegar a menina e
ajudar a perdedora a sair do ringue. Samya
aproveitou a deixa - e as pessoas que se
irritavam por terem perdido as apostas - e
seguiu o caminho que fizeram com a maca.

Samya se assustou, aquele tipo de poder era


do nível do Circuito Mundial de Lutas, onde os
grandes lutadores usavam seu nagen para
gerar poderes incríveis. Não era coisa de uma
colegial que disputava quedas de braço. Algo
definitivamente estava errado com aquele
frasco que ela tomou no intervalo. Enquanto o
público gritava e comemorava levaram a
menina para uma sala nos fundos. Samya os
seguiu e se escondeu numa pilha de cadeiras. A
jogaram de mal jeito numa maca e saíram. Um
homem com uma barba cheia e um blazer roxo
entrou fumando um charuto.

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— Eu achei que ela ia durar duas lutas com
o tônico. Que bosta. Agora quem vai lutar
contra o Carateca Jovem?

Samya olhava atrás de umas cadeiras


empilhadas, a sala tinha sofás e fantasias
penduradas numa arara. Ela reconheceu
facilmente o garoto do terceiro ano vestido com
roupas de caratê, um lenço na cabeça e um tapa
olho.
Ele parecia nervoso e segurava um frasco de
água colorida igual à de Kaleen. Enquanto ela
franzia a testa analisando o barbudo notou ela
e tirou a menina de trás das cadeiras.
— Oi! Você. Garota! Aposto que você quer
lutar né? Tem uma queda pelo bonitinho aqui?
Sua oportunidade hein! Vai ficar bem pertinho
dele.
Samya fez uma cara de confusão e aversão
tentando dar passos para trás. A vergonha de
ter sido pega esquentando suas orelhas. Mas só
conseguiu gaguejar enquanto o ‘empresário’ a
oferecia uma oportunidade de entrar no ringue
escuso.

— Você nem precisa ser forte, a gente vai te


dar um chá pra você ficar bem resistente, é tipo

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bebida. Você poderia entrar no circuito de
lutas! Poderia criar sua própria alcunha e
golpes especiais e ter poderes nunca
imaginados.
Samya olhou desconfiada para a maca que
estava no canto da sala, Kaleen permanecia
deitada, mal se movimentava para respirar, os
hematomas começando a brotar no rosto.

— Isso é só um efeito colateral querida, só


dura uma semana e depois passa.
— Vocês estão malucos!! Eu nunca entraria
nessa bosta! A Kaleen tá desmaiada, os ossos
dela parecem macarrão! Ela vai ficar uma
semana assim?

— Claro e vai ficar feliz! Ela venceu.


— Vocês são uns bostas, eles nem são maiores
de idade, isso deve ser crime!

Enquanto ela ficava irritada com o


empresário não notou outro homem se
aproximando em suas costas. Provavelmente
atraído pela gritaria na sala de preparação dos
lutadores. Ele não teve dúvidas quando ela

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falou sobre crime. A pegou pelos cabelos e
apontou uma faca para as bochechas redondas.

— Escuta aqui sua idiota, você vai ficar


caladinha daqui pra frente. E vai entrar no
circuito querendo ou não, porque eu não tenho
saco pra adolescente. Diferente desse
hipsterzinho de empresário ali.

Ele tirou uma ampola grande do bolso,


quebrou o lacre de vidro com o polegar e
apertou a boca da menina tentando fazendo-a
abrir. Uma gota de sangue escorreu no pescoço
dela, um corte que veio da faca mal posicionada
na bochecha.
Nesse momento os olhos de Samya piscaram
brancos, uma pequena luz emitia deles.
— NINGUÉM MAIS CHAMA A IDIOTA
DE IDIOTA! SÓ EU!
Junto com a voz rouca e alta se materializou
um pequeno tigre, do tamanho de um gato
comum. Samya de repente se sentiu revigorada
e enérgica. Agarrou o braço do capanga,
o torcendo pelo avesso. Ele urrou de dor e
voltou em disparada, balançando a faca na
frente dela.

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“GARRA DE GATINHO! ”
A menina pegou o homem pela roupa com
as duas mãos girou e atirou num armário de
metal no canto da sala. Ela ainda respirava
como uma louca e se atirou sobre o empresário.
Ele nem se moveu, embasbacado com a ação da
menina. Samya correu pela sala, pulou num
banco no canto e se alavancou pra cima do
inimigo. Dedos cerrados e uma chuva de golpes
com a mão alcançaram um homem
completamente estupefato que logo caiu no
chão batendo a cabeça. O pequeno tigre
acompanhou todos os movimentos da menina,
depois subiu no capanga e limpou os pés na
barriga dele.
— Garra de gatinho? Que nome horrível é
esse, Samy? — A menina tentava respirar com
mais calma e limpava o suor do pescoço.
— Sabe como é! Tipo um gatinho brincando
com uma pluma! NYA, NYA. Eu não costumo
fazer essas coisas estilosas com o estilo louva-a-
deus do meu pai.
O pequeno tigre rolou os olhos e voltou
pulando no ar para se juntar a Samya
novamente. Nessa hora o garoto da escola já
estava encolhido num canto com medo. Ele
talvez era o único que tinha visto o pequeno
tigre lutando em sincronia com os movimentos

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de Samya. Ele tremia um pouco e tinha
derrubado sua garrafa. Mas parecia mais
aliviado agora que tinha dois caras desmaiados
no chão.
— Ei! Você não é a menina que sempre leva
bolinhos de chá pra escola?
— Sou eu sim.
— Ufa.
— Nós temos que ir embora daqui. Você nem
devia participar dessas lutas e a Kaleen tá
desacordada parecendo um miojo.
O garoto não entendeu nada mas ajudou a
levantar Kaleen e saiu pelos fundos com
Samya. Ele não entendia nada do que estava
acontecendo, mas estava com medo demais de
participar da luta, então resolveu não
discordar.

Eles deixaram Kaleen em casa e explicaram


para os pais dela o que aconteceu. A mãe da
menina começou a chorar enquanto colocava a
filha desacordada num sofá e chamava uma
ambulância. Samya e o garoto passaram o resto
da noite depondo. A polícia encontrou no local
apenas os dois homens que Samya derrotou.
Todo o resto tinha sumido, documentos,
roupas, pessoal. Até o ringue foi retirado de

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alguma forma. Mas identificaram os colares
que simbolizavam os fraternos da Chanku nos
homens desmaiados. Eles eram conhecidos por
aplicar diversos golpes e organizar lutas
clandestinas com apostas altíssimas. Ainda
assim o líquido que os estudantes beberam era
novidade e foram levados para análises em
laboratório.

O bairro dormiu tranquilo nas próximas


semanas, mais nenhum aluno sumiu e Samya
se sentia totalmente renovada. Uma heroína
silenciosa, salvando a cidade sob disfarce. O
único ‘porém’ era que James tinha visto ela em
ação. No entanto, ela precisou ameaçar apenas
uma vez para que ele jurasse não contar a
ninguém. Até com uma certa admiração no
olhar. O pessoal da escola falava mesmo que ele
só participava das academias Cinder para
admirar os outros lutadores e sempre cabulava
as aulas.

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Samya ainda patrulhava a cidade nas
semanas seguintes. Sentada num muro
olhando para a rua. Ela tomava riscos maiores
do que devia, mas era divertido ativar seu
espírito guardião. As vezes ela passava horas
meditando na laje só para poder conversar com
o pequeno tigre e planejar aventuras loucas
pela cidade como uma vigilante.

— As pessoas repousam tranquilamente em


suas casas, calmas, desavisadas do perigo que
correm. O mal espreita numa rua sem saída,
entre um condomínio e um restaurante, traça
seus planos malignos… NADA TEMAM! Eu,
sua vigilante, manterei as ruas seguras!
— Nya! Samy, tenha a santa paciência, é só
um gato rasgando um saco de lixo!
— Shh! Estou cumprindo meu trabalho!
HYA! — E num pulo performático, ela sumiu
na noite.

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Estranhos
Glauco Lessa

— Não devíamos ter saído da trilha... — uma voz


jovem e masculina, um tanto arrependida, ecoou
pelo meio da mata.
— Não se preocupa tanto, Leo! — Uma outra
bem mais infantil e feminina respondeu. — Daqui a
pouco aparece algum tio que seja guia da floresta!
Em meio ao mato e à escuridão da noite nublada,
a criatura pôde ver: eram duas crianças. O menino
mais velho trazia um semblante de preocupação e
claro desacordo com as palavras da menina. Ela, por
sua vez, talvez tivesse metade do tempo de vida
dele e trazia para junto da floresta um largo sorriso
despreocupado. Humanos são seres muito
perigosos; tão perigosos que a criatura gelou de
medo mesmo diante de duas crianças. Nunca se
sabe que tipo de crueldade eles podem cometer.
Seu medo não era sem razão. Desde que havia se
perdido neste mundo estranho de estradas cinzas,
perigosíssimas carruagens metálicas e construções
mais altas que o céu, a pobre criatura fugia de um
terrível algoz de múltiplas espadas malignas. Não o
entendia, mas havia percebido que era uma intrusa
neste lugar e precisava urgentemente voltar para o
Outro Mundo. Ao mesmo tempo não queria voltar
para lá.

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Enquanto a criatura se perdia em seus medos e
inseguranças, as crianças avançaram mais um
pouco. Leo, que tinha quinze anos, usava a lanterna
do celular para iluminar o caminho e sabia que ela
não duraria muito tempo. O aparelho só servia para
isso, já que estava sem sinal algum.
— Laura, espere um instante. Vamos fazer uma
tocha. Não tenho mais muito tempo de bateria. —
Ele disse, já se abaixando para procurar algum
galho mais resistente.
A menina ficou parada um instante, como que a
estudar seus arredores em busca de madeira. Em
seguida, sugeriu:
— Que tal um galho daquela moita grande ali?
A criatura estremeceu. A menina olhava dentro
de seus olhos sem que tivesse percebido. No
entanto, não gritava nem o ameaçava. Sugeria algo
de forma curiosa ao menino. A criatura estava
muito bem escondida, até mesmo seus chifres, mas
a menina ainda o encarava através das folhas e
galhos. Seriam amigáveis? De susto, moveu uma de
suas patas para trás, que causou um barulho
estranho no silêncio da floresta.
— Boa, Laurinha! — Leo respondeu. Há muitos
barulhos estranhos na floresta aparentemente, e o
menino estava compenetrado demais em sua busca
para dar a devida atenção. Veio em direção ao
arbusto completamente desavisado do perigo que o
esperava. A garota não dizia mais nada, apenas

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sorria. A criatura já não sabia o que fazer, se atacava
ou permanecia imóvel.
O arbusto era largo e denso, cercado por outras
árvores e mata alta, de forma que o garoto começou
a enfiar a mão por baixo até encontrar algum dos
galhos mais grossos. Então, puxou com força, e a
criatura poderia jurar ter ouvido um rápido e
preciso golpe. Um grande galho veio ao chão, e
depois foi puxado.
A criatura continuou encarando a menina por
trás de seu esconderijo, mas ela já havia deixado
isso de lado como se não fosse importante. Estava
ao lado do menino e o ajudava, trouxe folhas e um
lenço que tinha no bolso, colocando fogo no galho
maior.
— Sabe, Laura, o seu otimismo é muito bonito,
mas você precisa levar mais a sério as coisas. Nos
perdemos já faz um tempo, e eu acho difícil que
algum “guia da floresta” vá aparecer para nos
ajudar. Mesmo se aparecesse, seria um completo
estranho. Temos que desconfiar de estranhos.
— Ué, você não se lembra do que a vó disse? —
Laura perguntou em tom professoral. — “Não
desconfie de estranhos. Eles não são estranhos. São
como você. ”
— A vó é uma pessoa muito sábia, mas você
ainda é criança. Certas coisas que ela diz são
bonitas, mas não passam disso. Ela mima você
demais.

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Laura não falou mais nada, mas seu silêncio
guardava a convicção nas palavras da vó. Depois da
fumaça, uma tímida chama surgiu. Leo assoprou
por mais um tempo e pronto! Agora tinham uma
tocha improvisada. Isso pouparia mais algum
tempo da bateria do celular.
A criatura já não sabia mais como agir. As
crianças pareciam tão perdidas quanto ela, e por
causa disso, ela já criara uma empatia por elas. Não
pareciam ser maldosas, e a menina já até havia
notado sua presença. Talvez pudesse se revelar,
expor a fraqueza e tristeza que vivia naquele
momento difícil. Havia decidido.
Quando as crianças se preparavam para
continuar floresta adentro, um vulto sinistro surgiu
da mata. Em sua cabeça, carregava um enorme par
de chifres, e agora sua respiração forte podia ser
ouvida. Leo só teve tempo de ficar na frente de
Laura, de punhos em riste para a criatura.
— Laura, cuidado! Sai, sai daqui! — Vociferou,
amedrontado.
A criatura era um enorme bovino, do tamanho
de um touro. Seus pelos eram pretos na parte de
cima, mas brancos na de baixo. Não havia transição
de uma cor para outra: parecia um desenho
dividido no meio, pintado com duas cores. Ao ouvir
o jovem, a criatura percebeu que talvez seu esforço
tivesse sido em vão, e teria que fugir novamente, até
que Laura disse:
— Para com isso, Leo! Ele é do bem!

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— Tá doida? Ele é claramente um monstro! Eu
tenho que proteger você, não importa o que
aconteça!
Laura, então, gritou bem alto:
— Eu já tinha visto! Ele estava atrás da moita que
eu apontei. Ele não fez nada contra você, mesmo
estando do seu lado! Eu sei ele está triste e com
medo.
O boi não entendia as palavras, apesar de já ter
entendido os nomes de cada um pela repetição. No
entanto, tinha certeza que a menina gritava em sua
defesa, e continuou parado onde estava. Leo
reparou, passada a adrenalina, que o boi de fato
estava calmo, ainda que com um olhar sofrível.
Tinha diversas marcas pelo corpo robusto; alguém
havia lhe maltratado. Começou a se aproximar com
cautela para verificar a extensão dos ferimentos,
mas Laura passou à sua frente e abraçou o boi.
— “Eles não são estranhos”... — ela repetiu,
compadecida do sofrimento do animal, chorosa. —
“Eles são como você...”
Leo estava para dar uma bronca na prima, mas
se conteve. A vó, para variar, tinha razão, e Laura
também.
— Eu acho que ele é um shen. Um mon. — ele
soltou naturalmente as palavras conforme concluía
seus pensamentos. Claramente, aquele não era um
boi comum, e sim de origem sobrenatural.

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— Não importa! — Ela respondeu, olhando para
cima com um sorriso para o boi. — Vou chamar
você de Mu! O que acha? Você muge, né? — E deu
uma gargalhada.
— Laura, acho que não podemos ficar com um
bicho tão grande. Aliás, ele não pertence ao nosso
mundo. Devíamos ajudá-lo a voltar para o dele.
Seguido das palavras de Leo, Mu deu um grave
e sonoro rugido de protesto. Não foi ameaçador e
nem para intimidar; é que Mu havia entendido o
raciocínio de Leo pelo tom de suas palavras. Mu não
queria voltar para o Outro Mundo nunca mais. Veio
a este mundo diferente em busca de paz e sossego e
não desistiria agora. Laura pareceu entender tudo
isso, porque logo em seguida concluiu:
— Ele não quer voltar para lá. Essas marcas
devem ser de quando ele estava no Outro Mundo.
Leo, ainda impressionado com o rugido, não
conseguiu deixar de comentar:
— Ele rugiu. Como um leão! Ele não muge!

Distraídos com a natureza fantástica de Mu, as


crianças não perceberam a presença de um homem
que se aproximou. Ele não fizera muita questão de

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se esconder, mas aproveitara para manter a
discrição.
— Então você estava aqui — ele disse, como se
aquele fosse um encontro amigável. Seu rosto dizia
o contrário.
Mu rugiu alto mais uma vez, dessa vez com raiva
e temor, em direção ao homem. Apesar dos cabelos
cinzentos, era jovem, abaixo dos trinta anos.
Escondia seu olho direito com um tapa-olho e trazia
um cajado à mão e diversas espadas à cintura. Laura
percebeu que Mu não rugia apenas para o homem,
mas também para as espadas, como se elas
guardassem algo sombrio. Leo se preparou
rapidamente, com um ligeiro salto na direção do
oponente e um forte chute contra a mão que
carregava o cajado. Não estava disposto a esperar
para ver no que ia dar; Mu já tinha deixado claro
que aquele era um inimigo, e definitivamente era
também um mago. Pedaços do cajado rolaram pelo
chão, despedaçados pelo ataque do rapaz.
— Temos um lutador do Circuito Mundial de
Lutas aqui!? Ou você é só um garoto
esquentadinho? — O homem retrucou de forma
debochada. Logo em seguida, estalou o pulso
deslocado pelo chute de Leo de volta a seu devido
lugar e, com a outra mão, soltou uma rajada de fogo
na direção do menino. Leo desviou agilmente e se
afastou alguns passos para trás. O homem
aproveitou para ativar sua aura de proteção.
— Quem é você? O que quer? — Interrogou.

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— Estou atrás daquele monstro perigoso ali.
Vocês deveriam me deixar cuidar dele.
— Você pretende devolvê-lo ao Outro Mundo?
— Leo perguntou, mais calmo. Talvez tivesse se
deixado levar pelo momento.
— Ele não quer voltar, Leo! — O grito de Laura
veio detrás dele, seguido de um rugido ainda mais
beligerante de Mu.
— Não — o mago respondeu. — Tenho outros
planos para ele.
Quando foi lançar mais uma rajada de fogo de
sua mão, agora em direção à Laura e a Mu, Leo já
estava esperando. Segurou-o pelo braço estendido e
o derrubou no chão, se embrenhando na mata
próxima. Assim, fogo não seria mais um problema.
— Moleque...! Você está começando a me irritar!
— Após o resmungo, rajadas de ar começaram a
empurrá-los pelo mato. Ele estava por cima de Leo
quando sacou rapidamente uma de suas espadas e
a apontou para o menino. O garoto podia ouvir um
sussurro desesperado vindo dela, mas não
compreendia.
— Não quero ter que machucar crianças. Meu
trabalho não é esse. Você ainda nem consegue ativar
sua aura, não é? Senão já teria ativado...
As coisas estavam péssimas. O oponente era
mais treinado que ele. Ele também estava certo
quanto à sua aura; Leo não sabia controlar o seu
focus. Além disso, seus disparos elementais não

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eram restritos apenas ao fogo, como ele havia
imaginado. A luta os empurrou por alguns metros,
chegando a um precipício. Leo não conseguia
precisar a altura, mas podia sentir o vento.
— Nós encontramos aquele monstro perdido na
floresta! Não temos intenção de ficar com ele. Isso
nem seria possível! Só queria proteger a minha
prima. Pode levar aquele boi! — Leo confessou,
ofegante.
— Ah, mais fácil assim. Não se preocupe. Desse
mundo ou de outro, é apenas um boi. No mercado
negro, dizem que a língua de um boi-bumbá é
valiosíssima pelo seu gosto diferenciado. Depois de
abatido, ele revive, e a carne nunca acaba — o
assassino sorriu, seguro de que havia intimidado o
garoto o suficiente.
Ocorreu a Leo que, talvez por isso, Mu tivesse
tantas marcas pelo corpo. Talvez no Outro Mundo
essa também fosse uma prática comum, e por isso
ele escapou para a terra. Uma vida inteira apenas de
mortes sanguinolentas, de novo e de novo. Sentiu
pena, mas estava decidido a defende-o.
Agora era o momento mais difícil de sua vida,
momento pelo qual vinha treinando há muito
tempo: precisava ativar sua aura no instante
perfeito ou morreria.
Leo deu um preciso e certeiro toque de pressão
no braço livre do inimigo. O membro cedeu sem
peso, com toda a sua energia vital bloqueada,
incapaz de soltar rajadas de qualquer elemento que

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fosse. Em seguida, partiria para cima e o
imobilizaria no chão, mas sabia que antes precisava
ativar sua aura, do contrário, a espada sinistra
ceifaria sua vida.
— Seu idiota!
A espada ricocheteou na aura de Leo, mantendo
seu pescoço intacto. Um forte impulso foi dado em
favor do pequeno lutador. Era Mu, que viera em
investida contra o inimigo. O assassino olhou
surpreso, o menino o encarou triunfante. Derrubou
o inimigo no chão e o arrastou até o precipício antes
que fosse capaz de reagir com sua mão boa.
Estavam a poucos passos da beirada escorregadia.
— Pretende mesmo me matar por causa de um
monstro?! — Ele apelou covardemente.
— Você está com sua aura de proteção ativada.
Acho que aguenta — e sorriu.
Em um gesto desesperado, o assassino pôs sua
mão contra o chão do precipício e usou um disparo
de terra para fazer o terreno ceder. Leo lhe deu um
soco no canto da boca e saltou para trás enquanto
dava tempo.
O homem caiu, incapaz de se levantar, com
espada e tudo. Sua aura o protegeria da morte certa,
mas provavelmente ficaria inconsciente por várias
horas.

Felipe Pereira Borges [email protected]


Leo olhou para trás, preocupado com sua prima
e Mu, apenas para encontrá-los ali próximos, mas a
cena não era feliz.
— Mu... obrigado. Você é um herói. — Laura
lamentava entre lágrimas e soluços. Ao lado dela,
um Mu deitado e ensanguentado agonizava mais
uma vida.
Também triste e com lágrimas nos olhos, Leo se
aproximou da prima em silêncio, a abraçou e
acariciou a cabeça do pobre animal. Mu havia
corrido para salvá-lo. O preço por isso fora um corte
profundo na base do pescoço. Por todo o momento,
as crianças juntaram as palmas da mão e velaram
pelo mon. Leo murmurou, colocando as mãos no
tronco de Mu:
— Mu, eu lhe prometo. Você nunca mais terá que
morrer novamente. Nós vamos protegê-lo.
Laura olhou confusa, afinal ainda não sabia. Um
suspiro profundo e depois uma pausa. Mu morria
mais uma vez. Outra respiração profunda, a ferida
já era cicatriz e o boi abria os olhos. O sorriso
cresceu no rosto da menina, e Leo completou com
uma risada gostosa:
— Fiquem de olho um no outro! Vocês são
idênticos, só sabem aprontar!

Felipe Pereira Borges [email protected]


Mu assentiu com um gemido e começou a dançar
de felicidade, pulava como um cabrito e fazia a terra
tremer de leve. O céu se abriu, e as estrelas
cintilavam com mais força na direção da trilha que
as crianças haviam perdido. A lua cheia iluminava
o caminho. O som mágico de percussões e
acordeões acompanhou o passo do boi-bumbá.
Chegara junho à Floresta da Tijuca.

Felipe Pereira Borges [email protected]


ESTES CONTOS SÃO PARTE DO MUNDO DE
KARYU DENSETSU RPG
VENHA JOGAR E VIVA SUAS PRÓPRIAS
HISTÓRIAS CHEIAS DE EMOÇÃO E AÇÃO.

Responsável: Editora Pensamento Coletivo

Felipe Pereira Borges [email protected]

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