Onde Foi Parar o Senso Crítico

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ABMS - Tradução No 4

Onde Foi Parar o Senso Crítico?


Where Has All the Judgment Gone?
5ª Laurits Bjerrum Lecture, Oslo.
Apresentada em 5/5/1980, por Ralph Brazelton Peck.
Tradução: Guido Guidicini, Junho de 1982.
Atualização: Geraldo Magela Pereira, Outubro de 2017.
Onde Foi Parar o Senso Crítico? (Where Has All the Judgment Gone?)
5ª Laurits Bjerrum Lecture, Oslo, 5/5/1980. Ralph Brazelton Peck.

Em engenharia, o senso crítico e o projeto de barragens de terra andam de mãos dadas. Laurits
Bjerrum e eu discutimos esse relacionamento estreito muitas vezes, entre 1964 e 1973, enquanto
atuávamos juntos, como consultores, em cinco projetos. Nossa primeira tarefa, para o U. S. Army
Corps of Engineers, foi a de tomar parte nas investigações do terremoto no Alaska da Sexta Feira
Santa de 1964. Os outros quatro projetos envolviam barragens: rupturas de ensecadeiras nas
barragens de Cannelton e Uniontown, no rio Ohio; investigações no núcleo dos diques do Mar Morto
e, finalmente, como membros da junta de consultores do aproveitamento hidrelétrico de James Bay.
Muitos dos que estão presentes nesta audiência cooperaram com Laurits nestas tarefas.
Laurits e eu estávamos juntos em Seattle, entre 9 e 13 de agosto de 1964, participando de
uma reunião sobre o terremoto do Alaska, quando uma chamada telefônica urgente, de Oslo, trouxe
a má notícia que a fuga d´água através da barragem de Hyttejuvet havia aumentado subitamente
de forma dramática, de um ou dois litros por segundo para mais do que dez vezes isso, sem mostrar
sinais de estabilização. Laurits estava preocupado e nossas discussões foram desviadas do
terremoto para o comportamento e segurança da barragem. Era nosso primeiro contato com o
fraturamento hidráulico sob carga do reservatório, com possível mecanismo para um
comportamento inesperado da barragem, embora nós, na hora, não percebêssemos isso. Na
verdade, grande parte do significado deste aspecto da barragem de Hyttejuvet passou despercebido
até 1966, quando Laurits e alguns de vocês, colegas dele no NGI, perceberam que as nossas
centenas de ensaios de permeabilidade nos diques do Mar Morto estavam sistematicamente
fraturando o núcleo.
Estes nove anos constituíram um período estimulante, que eu tive a sorte de compartilhar
com Laurits, época em que a segurança de barragens de terra era o ponto central do nosso
pensamento, quando discutíamos com frequência e examinávamos o papel da teoria, da
experiência prévia e do senso crítico no projeto de barragens. O assunto continua, ainda hoje, em
debate no meio técnico. Os projetistas e o órgãos normativos tendem a atribuir importância
crescente a métodos analíticos cada vez mais complexos e diminuir o valor do senso crítico
por ser um elemento do projeto não quantificável e inseguro. Em minha opinião, que eu creio
compartilhada por Laurits, o senso crítico deveria ser cultivado, aceito e usado, na perspectiva de
aumentar a segurança das barragens de terra. Vou procurar defender este ponto de vista em minhas
considerações.
Quando um engenheiro de minha idade discorre sobre senso crítico, induz a crítica de que
é demasiadamente idoso para estar ao par dos mais recentes avanços na teoria e nos métodos de
cálculo e que, portanto, uma vez que se tornou ultrapassado, precisa depender de algum atributo
vago chamado senso crítico. No meu caso, pode haver um bocado de verdade nesta crítica. Eu
não sei equacionar, ou resolver, um problema por meio de elementos finitos. Não falo a linguagem
dos computadores. Eu me apoio no senso crítico até para saber se devo, ou não, acreditar nos
resultados de um estudo por elementos finitos, ou um cálculo por computador.
Aqueles de vocês que me conhecem sabem que não sou um teórico de modo algum.
Terzaghi tampouco era, embora tenha escrito o texto clássico “Mecânica dos Solos Teórica”. Sem
levar em conta a teoria do adensamento, que Terzaghi adaptou da teoria da propagação do calor,
quase todas as teorias contidas no livro foram desenvolvidas por outros. Ele escreveu o livro não
por uma tendência pessoal por exercícios teóricos, mas porque, no começo dos anos 40, já existia
um significativo conjunto de teorias que poderiam ser aplicadas a problemas geotécnicos. Foi
intenção de Terzaghi, e nisso ele foi admiravelmente bem-sucedido, selecionar, na vasta literatura,
aqueles conceitos teóricos que seriam úteis na prática e que se baseavam em premissas
razoavelmente compatíveis com o comportamento efetivo dos solos.
Enquanto Terzaghi trabalhava sobre a “Mecânica dos Solos Teórica”, o projeto do Metrô de
Chicago estava em fase construtiva e eu tive o privilégio de ser seu assistente. Um dos mais
chegados a Terzaghi era Albert E. Cummings, gerente da Raymond Concrete Pile Company para o
Distrito de Chicago. Ele me admitiu quando cheguei a Chicago, me introduziu na comunidade de
engenheiros e compartilhou comigo seu entusiasmo pela Mecânica dos Solos. Ele estava muito
atualizado com os desenvolvimentos teóricos, principalmente no campo de elasticidade, que
pudessem ser aplicados à Mecânica dos Solos e mantinha uma correspondência contínua com os
especialistas em elasticidade e mecanicistas de solos do mundo inteiro. Dificilmente ele teria que
achar soluções para problemas novos, mas consultava a literatura na expectativa de que a solução
já existisse em algum lugar. Desta forma, conhecia tanto a literatura de época, quanto os que as
produziam.
Terzaghi apreciava a formação, fora do comum, de Al e o tinha em grande respeito por sua
competência. Assim sendo, pediu que a Al que lesse e criticasse os vários capítulos da “Mecânica
dos Solos Teórica”, na forma de manuscritos. Por sorte minha, Al os compartilhava comigo e, pouco
mais tarde, Terzaghi estava usando os dois como cobaias. Embora minha contribuição à tarefa
fosse modesta, o impacto daqueles dois anos, no quais Cummings e eu discutíamos e debatíamos
os manuscritos entre nós e com o próprio Terzaghi, iria afetar meu desenvolvimento mais
profundamente do que poderia crer. Eu me achava imerso na teoria, numa apreciação crítica das
hipóteses envolvidas e no esforço de reduzir as teorias úteis da época a formas de aplicação
simplificadas. No subconsciente, eu me familiarizava com as relações entre variáveis consideradas
nas teorias e adquiria, como consequência do esforço despendido, um senso crítico com base na
teoria. Esta formação acompanhou-me ao longo dos anos e me foi de grande valia. Não é algo que
eu use com frequência, de maneira formal; ela simplesmente existe. Ela me guia em meu raciocínio
e em meu sentido das proporções.
Estou contando para vocês um pouco da minha história somente por que, às vezes, sou
considerado contrário ao desenvolvimento teórico. Espero ter deixado claro que não sou contra a
teoria, mas sim contra seu mau uso ou excessivo emprego. Na verdade, a engenharia geotécnica,
assim como toda a engenharia, tem raízes na ciência, na teoria, nas experiências e na capacidade
de calcular. A competência dos engenheiros geotécnicos e a complexidade dos problemas que eles
podem resolver têm aumentado, quase exclusivamente graças ao desenvolvimento da ciência da
engenharia. Mas o crescimento da ciência da engenharia não reduziu a necessidade do senso
crítico. Este é necessário para determinar os rumos da investigação científica, selecionar os
parâmetros adequados aos cálculos e verificar a coerência dos resultados. O que podemos calcular
estimula nosso senso crítico, possibilita melhores avaliações e permite que se chegue a melhores
soluções de engenharia.
Além disso, embora a teoria possa aumentar nosso senso crítico, ela pode também inibir o
julgamento se usada sem discernimento e sem avaliação adequada. O mesmo pode-se dizer de
muitos outros avanços na ciência e na prática de engenharia.
Quer a gente goste ou não, existem alguns aspectos de engenharia geotécnica em geral, e
de projeto de barragens em particular, que não estão ainda sujeitos a uma análise teórica e talvez
jamais estarão. Isto não quer dizer que não tenhamos capacidade de lidar de forma eficaz com
estes aspectos. Implica, entretanto, no fato que não deveríamos negligenciar os aspectos para os
quais não possuímos uma teoria, ao mesmo tempo que superestimamos o significado daqueles
para os quais possuímos. Existe considerável evidência de que a maioria das rupturas de barragens
de terra modernas, exceção feita a aqueles por galgamento, têm sido o resultado desta ênfase mal
aplicada.
Desde meu tempo de estudante de Mecânica dos Solos, certamente refletindo o entusiasmo
de meu professor Arthur Casagrande, sempre acreditei que a mais alta expressão da arte da
Mecânica dos Solos Aplicada reside no projeto e construção de barragens de terra (embora deva
admitir quase igual predileção para os túneis). A perda potencial de vida e propriedades,
particularmente em áreas densamente povoadas, requer que as considerações de segurança
sejam colocadas acima de todas as demais. A construção das grandes barragens dos dias atuais
tornou-se possível graças a avanços simultâneos em dois campos: passos de gigante nos
equipamentos de manuseio de terras e a compreensão, que a Mecânica dos Solos trouxe, dos
materiais terrosos. Como consequência do desenvolvimento da Mecânica dos Solos, podemos
executar análise razoáveis de engenharia sobre a estabilidade de taludes de barragens, sob várias
condições de operação, podemos escolher especificar os materiais para a barragem de tal forma
que a percolação e a erosão no corpo da mesma sejam controlados e podemos nos aproximar de
avaliações lógicas e adequadas para efeitos dinâmicos.
Diversas barragens de terra sofreram ruptura por galgamento em consequência de
capacidade inadequada do vertedouro. A vulnerabilidade das barragens de terra sob essas
condições é um fato conhecido há muito tempo. Essas rupturas não foram consideradas como uma
consequência da estabilidade inerente das barragens de terra de per si, mas, antes, como uma
limitação hidrológica que podia ser acomodada por um projeto de vertedouro maior. A ruptura
do reservatório Baldwin Hills, em Los Angeles, 1963, um acontecimento que polarizou a atenção do
mundo inteiro, foi atribuída a movimentos lentos de falhas, natural ou induzido, que romperam os
frágeis elementos de drenagem que revestiam o reservatório. O fato do reservatório ter sido
completado em 1951, em plena era da Mecânica dos Solos, não foi considerado uma acusação à
própria Mecânica dos Solos, ou às barragens de terra porque a probabilidade de ocorrência desses
movimentos de falha ainda não havia se tornado objeto de considerações normais em projetos de
barragens. No meio técnico de engenharia e na população em geral ainda persistia a crença que,
caso não ocorressem circunstâncias inesperadas muito desfavoráveis, as barragens projetadas por
engenheiros competentes seriam seguras.
A ruptura da barragem de Teton, em 5 de junho de 1976, desfez essa convicção. A barragem
havia sido projetada e construída sob a supervisão de uma organização considerada, no meio
técnico e pela opinião pública, como uma das mais competentes e experientes do mundo. A
população agora podia, com toda razão, perguntar-se se alguma barragem poderia ser
considerada segura.
Diversas reanálises, na história de ruptura de barragens de terra, levaram à conclusão
que a probabilidade de ocorrência de uma ruptura catastrófica em uma barragem, durante
um período de um ano, é de cerca de 1 em 10.000, o que quer dizer que, a cada cem barragens
de terra, uma sofrerá ruptura num período de vida de 100 anos. Existem propostas de que a relação
benefício/custo, em projetos que envolvam barragens, seja determinada com base nessa
probabilidade (Baecher et al. 1980a e b). Além disso, essa probabilidade é considerada como nível
básico, ou nível padrão, ao qual se deveria acrescentar uma outra probabilidade de ruptura em caso
de construção em área sísmica, ou que por outras razões que envolvam risco mais elevado. Por
outro lado, não deveria se permitir a redução do risco devido às características excepcionalmente
boas de um sítio ou em consideração à grande experiência de projetistas e construtores.
Se esse pressuposto estatístico parece ser muito desfavorável, basta lembrar que as três
principais entidades construtoras de barragens nos Estados Unidos, o Corps of Engineers, o Bureau
of Reclamation e o Tennessee Valley Authority, foram responsáveis por cerca de 500 novas
barragens nos últimos vinte anos. Uma dessas barragens, Teton, sofreu ruptura. Isso só já
representa uma taxa de ruptura de 1 em 10.000 por ano. Por isso, é difícil argumentar com as
conclusões estatísticas. De mais a mais, como profissional que sou, não estou convencido de que
uma probabilidade de falha de uma barragem em 10.000 por ano seja o melhor que possamos
alcançar até agora.
Pesquisadores do risco de ruptura de barragens apontaram que a maioria das rupturas de
barragens esteve associada a circunstâncias ou mecanismos que fogem do domínio das atuais
análises teóricas. Elas têm sido atribuídas a fatos “imprevistos” ou a mecanismos de ruptura não
quantificáveis e mal compreendidos. Vem daí que o crescente emprego de análises e a contínua
sofisticação dos métodos analíticos não possam garantir que, para uma determinada barragem, a
probabilidade de ruptura seja inferior ao valor histórico de 10-4. Essa conclusão deveria nos
encorajar a concentrarmos em identificar e lidar com as causas reais das rupturas de barragens, e
não em mais e melhores análises das formas de ruptura, já empregadas de forma rotineira e bem-
sucedida.
Se uma barragem de terra moderna rompe, isso acontece ou porque o significado de
condições conhecidas foi mal avaliado, ou porque defeitos desconhecidos e talvez
insuspeitos, geralmente na fundação ou nas ombreiras, não foram percebidos. Por isso, as
investigações e o projeto deveriam concentrar nos melhores meios de revelar e lidar com tais
aspectos. Até o momento, ainda há poucos trabalhos voltados para estes problemas. Dos oito
trabalhos sobre barragens publicados em 1979 no Journal of the Geotechnical Division da ASCE,
por exemplo, sete eram estritamente analíticos, relacionados principalmente com o comportamento
das estruturas perante terremotos. Apenas um lidava com outros aspectos do projeto e construção
de barragens de terra.
A ênfase presente na melhoria dos processos analíticos não é, obviamente, responsável,
por si só, pelas rupturas de barragens projetadas recentemente. Melhorias recentes nos processos
de análise e uma maior sofisticação nos ensaios de laboratório são plausíveis e podem até ser
benéfico. É também provável, no entanto, que a concentração de esforços ao longo destas linhas
possa diluir o esforço que poderia ser despendido na investigação dos fatores que intervêm em
outras causas de ruptura.
Vamos voltar à ideia que a probabilidade de ruptura de barragens possa ser reduzida, de
maneira significativa, somente se houver uma redução das causas de ruptura que, no momento,
não estão sujeitas a procedimentos analíticos. Será que é possível reduzir a incidência de rupturas
em barragens de um fator, digamos dez? Temos alguma razão para esperar que a probabilidade
histórica de ruptura não precise ser adotada como nível básico de probabilidade? Quero crer que
sim. Eu me arriscaria a dizer que nove entre dez rupturas recentes ocorreram não por inadequação
do nível de conhecimento, mas por descuidos que poderiam e deveriam ter sidos evitados, ou
por falta de comunicação entre os que participavam do projeto e da construção das barragens, ou
por interpretações demasiadamente otimistas das condições geológicas. O nível de conhecimento
necessários existia; ele não foi usado.
Nos últimos quinze anos travei conhecimento pessoal com três casos de ruptura, em
barragens recém-construídas, onde o maior problema consistia nas descontinuidades da fundação
tratadas de maneira inadequada. A natureza dos materiais colocados contra as descontinuidades,
incluindo a graduação das zonas de transição, também teve um papel decisivo. Estas rupturas
ilustram a função dos fatores não quantificáveis de segurança de uma barragem. Esta lista inclui a
barragem de Teton (Rexburg, Idaho), o dique CJ-11A no sistema de Churchill Falls e o dique circular
do aproveitamento hidrelétrico Sir Adam Beck II, em Niagara Falls, Ontario. Eles ilustram a função
de elementos não quantificáveis em determinação do fator de segurança da barragem.
Teton – Mapa de Localização.

Teton – Vista de Jusante da Barragem Rompida.


Vista das Escavações na Margem Esquerda para Testes - USGS.
Embora a ruptura da barragem de Teton tenha sido extensivamente estudado e descrito
(Chadwick, W. L. et al. 1976, Eikenberry, F. W. et al. 1977, 1980), a maneira como começou não
é bem conhecida, pois as evidências decisivas foram destruídas pelo transbordamento de
água. Não há discordância, entretanto, a respeito dos seguintes fatos: a ruptura começou na
ombreira direita, onde havia sido escavada, na rocha da encosta do canyon, uma trincheira de
paredes abruptas, conhecida com trincheira-chave. A rocha estava fortemente diaclasada e as
descontinuidades em ambos os lados da trincheira se encontravam abertas e sem tratamentos. O
material impermeável usado no núcleo e trincheira da barragem, um silte argiloso de origem eólica,
foi lançado diretamente sobre a rocha, sem colocação de qualquer zona de transição. Uma cortina
de injeção de uma única linha, flanqueada, dos dois lados, por uma fileira de furos mais rasos, se
aprofundava a partir do centro da trincheira chave. A cortina foi construída pela injeção de calda em
furos abertos a partira de uma capa de concreto, moldada num pequeno encaixe na rocha, ao longo
do eixo da trincheira chave. A ruptura ocorreu durante o primeiro enchimento do reservatório, por
entubamento (“piping”), que abriu uma brecha na parte inferior do aterro impermeável, na trincheira-
chave da ombreira direita. Se seguiram duas investigações técnicas oficiais.

Teton – Vista de Jusante da Ruptura (USGS).

O relato do “Independent Panel” (Chadwick et al. 1976), do qual eu fui membro, concluiu que
o caminho inicial da água, que desencadeou a formação de um túnel de erosão através do núcleo,
poderia ter sido uma descontinuidade aberta e não tratada no fundo da trincheira-chave e passando
por baixo do capeamento de argamassa, ou uma fenda que atravessava o núcleo associada a
recalques diferenciais ou arqueamento devido a trincheira-chave de paredes abruptas, ou a uma
fenda devido ao fraturamento hidráulico associado ao arqueamento.
O “IRG-Interagency Review Group” (Eikenberry, F. W. et al. 1980), no curso de seu estudo
mais estendido, recomendou a escavação de uma larga porção da metade esquerda da
barragem que permaneceu intacta, e descobriu um extenso e fino estrato horizontal úmido
se estendendo entre as faces montante e jusante do amplo núcleo. Foram também detectados
alguns outros estratos menores. Embora não houvesse evidência direta, o IRG levantou a hipótese
que a fenda poderia estar presente na trincheira do núcleo da ombreira direita, numa posição crítica
e que, sendo mais facilmente erodível do que a massa do núcleo, poderia ter representado um fator
determinante da ruptura.
Entretanto, ambos os grupos de investigação concluíram que, independentemente de
qual tenha sido o ponto fraco que existiu no local de concentração inicial de fluxo, o projeto era
falho, pois permitia a conjugação de diversos fatores desfavoráveis: materiais de núcleo
altamente erodíveis, rocha fortemente diaclasada sem concreto dental ou tratamento superficial,
ausência de zonas de transição entre núcleo e rocha, condições desfavoráveis de tensões
associadas à estreiteza da trincheira-chave de paredes abruptas e a condição potencial de fugas
d´água através da cortina de injeções abaixo do capeamento de argamassa. A justaposição do
material fino e erodível do núcleo à fundação diaclasada foi fatal.

Teton – Seção da Barragem na Ombreira (Chadwick, W. L. et al. 1976).


Teton – Fotos da Sequência da Ruptura (NGI, Rock Fill Dams, Vol.10, 1992).
(After Independent Panel, 1976).
No dique GJ-11A (Boivin e Seemel, 1973), a extremidade montante de uma junta de alívio
sub-horizontal, injetada de forma inadequada possivelmente por conter gelo não derretido na época
da injeção, se comunicava diretamente com o reservatório. A extremidade de jusante da junta de
alívio terminava de encontro a um bloco de rocha intacto, que provocava uma deflexão das águas
do reservatório para cima, através de juntas verticais, de encontro do núcleo de argila e ao filtro de
jusante. A força do jorro de água foi tão grande que a porção inferior do núcleo de argila glacial foi
desintegrada e os finos lavados para dentro do filtro. Por sua vez, o material do filtro foi arrastado
para dentro da zona de enrocamento de transição. Assim que a porção do núcleo foi removida,
formou-se um túnel embaixo da porção superior do núcleo, ainda intacta, ligando as abas de
montante e jusante.

Churchill Falls Hydroelectric Project.

O dique circular da central Sir Adam Beck II (Taylor, 1963) foi construído sobre um
embasamento calcário diaclasado e recoberto com solo que foi usado como tapete natural. O tapete
foi reforçado nos locais onde ele parecia estar inadequado. Num ponto, entretanto, uma simples
estaca usada na construção havia sido cravada numa depressão rasa, obtida por escavação do
calcário. Por coincidência, esta depressão se localizava bem em cima de uma diaclase importante,
que passava diretamente por baixo do dique. O solo que preenchia a diaclase foi sendo
gradualmente erodido; após alguns anos, verificou-se uma ruptura a partir da depressão preenchida
e a água escoou através da diaclase por baixo do núcleo. A água ressurgiu através de um filtro
invertido delgado, embaixo do enrocamento lançado de jusante, fazendo migrar o material do filtro
para dentro do enrocamento. Como consequência, o enrocamento assentou por baixo do núcleo e
provocou sua ruptura local, formando um sumidouro abaixo do nível do reservatório. Felizmente,
foi possível esvaziar o reservatório rapidamente. A extensão dos danos verificados no dique foi
limitada, mas a obra ficou fora de serviço por vários meses. O filtro invertido de materiais finos,
situado abaixo do enrocamento de jusante, tinha a função de proteger o enchimento de solo nas
diaclases de calcário, evitando sua migração para dentro do enrocamento, caso algum fluxo d´água
ocorresse por baixo do núcleo. Os projetistas não previram a grande concentração de fluxo
que realmente ocorreu.

Sir Adam Beck II – Mapa de Localização.


Sir Adam Beck II – Vista de Jusante.
Essas três rupturas têm, pelo menos, dois aspectos em comum. O primeiro foi a presença
de diaclases na interface entre barragem e fundação, ou abertas (Teton e GJ-11A) ou preenchidas
com material erodível (Sir Adam Beck II). O segundo foi a ocorrência de, pelo menos, um outro fator
contribuinte, no ponto em que a ruptura acabou ocorrendo. Em Teton foram diversos os fatores: um
material de núcleo altamente erodível, a ausência de zonas de transição entre núcleo e rocha, a
ausência de tratamento superficial nas juntas abertas, e a geometria da fundação, na trincheira-
chave, favorecendo o arqueamento do núcleo. No dique GJ-11A, esses fatores incluíram o encontro,
fora do comum, da junta de alívio com uma massa rochosa impermeável, que desviou o fluxo d´água
para cima, contra a base do aterro, a presença de gelo na junta por ocasião das injeções e um grau
de segregação maior do que o usual na transição e materiais filtrantes a jusante do núcleo, de modo
que os finos foram removidos do núcleo e do filtro em serem efetivamente impedidos de migrar
(embora houvesse evidências de que o filtro e a transição estavam controlando a situação, uma vez
que o gradiente hidráulico através do dique havia sido efetivamente diminuído pela elevação do
nível d´água de jusante).
Podemos inferir desses três exemplos, bem como de muitos outros, que uma ruptura
raramente é consequência de apenas uma única deficiência. Geralmente, há, pelo menos, uma
outra deficiência, ou falha, e a ruptura ocorre pela conjugação de dois ou mais defeitos. Esta
conclusão apoia o princípio de se projetar precavendo-se com profundas defesas, o que
corresponde ao princípio do “cinto e suspensórios” por longo tempo defendido por Arthur
Casagrande. O princípio postula que se algum elemento de defesa, na barragem ou em sua
fundação, falhar no desempenho de sua função, deverão existir uma ou mais formas de defesa para
tomar o seu lugar. A barragem de Teton é um claro exemplo de desrespeito a este princípio. A única
linha de defesa era representada pelo núcleo e cortina de injeções. Nestas condições é quase
irrelevante definir a maneira exata com que a ruptura teve início ou se, durante a construção, teriam
ocorrido deficiências quais um estrato demasiadamente úmido atravessando o núcleo. O projeto
deveria ter fornecido formas adequadas de defesa contra essas falhas.
Adequar o tratamento da fundação às condições geológicas é uma questão de projeto. Não
é, entretanto, aspecto de projeto sujeito a análise numérica. Ao contrário, requer o exercício
do senso crítico e o sentido das proporções. Quando uma superfície de fundação está sendo
tratada e recoberta com a primeira camada de aterro, uma condição crítica com relação ao futuro
desempenho da barragem, engenheiros que estivessem perfeitamente ao par das exigências do
projeto deveria estar presentes, com autoridade suficiente para tomar decisões imediatas, e não
deveriam delegar esta autoridade a menos e até que tenham toda a certeza que seu pensamento,
a respeito daquele particular projeto, tenha sido plenamente compreendido por seus subordinados.
Eu duvido que recomendações, regulamentos, ou mesmo as melhores especificações
possam substituir a interação pessoal entre os projetistas e o pessoal de campo nesta fase
da obra. Muitas vezes, na qualidade de consultor ou como membro de uma junta de consultores,
eu percorri uma fundação recém exposta ou uma ombreira, junto com o pessoal de campo,
discutindo em cada local que tipo de tratamento seria mais adequado. Juntos analisamos detalhes
das condições da fundação, observamos o tratamento em andamento, concordando ou
modificando-o. Desta forma, os consultores avaliavam os problemas em potencial e suas soluções
e o pessoal de campo recebia os esclarecimentos necessários sobre o que se pretendia.
O tipo de tratamento de fundação não é assunto a ser determinado por um geólogo, a
menos que se trate realmente de um geólogo de engenharia. O geólogo deve investigar as
características geológicas da fundação e sua interface com a barragem e transmitir isso ao
engenheiro para que este possa formar uma opinião sobre o tratamento. As consequências do fluxo
d´água nas proximidades da interface, incluindo seus efeitos nos vários materiais da barragem,
estão dentro do escopo do engenheiro e as decisões sobre o tratamento são decisões de
engenharia. Os três casos de ruptura que discuti com algum detalhe se originaram na interface entre
barragem e fundação. Outros, que poderiam também ter sido escolhidos como exemplo, surgiram
por não se ter percebido, ou por se ter julgado de maneira inadequada, feições geológicas na
fundação. Poucos tiveram origem em deficiências construtivas na barragem. Em comum tinham o
fato de estar fora do campo das análises numéricas. Teriam sido evitados se, no projeto e
construção, tivesse se lançado mão do senso crítico que advém da longa experiência e se o
projeto tivesse incluído diversas linhas de defesa. Assim sendo, creio que é bem possível que
a incidência de rupturas em grandes barragens possa ser reduzida de uma ordem de
grandeza, dando-se especial atenção a detalhes de projeto e construção que não podem, pelo
menos no momento, ser cobertos por análises, que talvez não possam ser conhecidos até que a
construção esteja em andamento, mas que requerem uma especial atenção por parte de
engenheiros experientes. A investigação deveria ser orientada para aqueles aspectos do projeto
e construção com maior necessidade de aperfeiçoamento: definição de condições de fundação;
condições que propiciam erosão interna e os meios de controlá-la; critérios de filtros e sua
realização prática na construção; prevenção e tratamento de fissuras. A meta da investigação
deveria ser o incremento da capacidade de compreender, preferencialmente, mas não
necessariamente, com cunho quantitativo.
A literatura já tem muita coisa a dizer sobre aparecimento de fissuras em barragens de terra.
A ênfase, entretanto, é dada à mecânica da iniciação das fissuras, um aspecto que recentemente
tem-se tornado, pelo menos em parte, sujeito a análises. Os resultados analíticos servem uma
causa útil: a redução da fissuração pode, sem dúvida, ser alcançada com maior êxito se as causas
de fissuração forem compreendidas e evitadas. Entretanto, em obediência ao princípio de defesa
efetiva, toda barragem deveria ser projetada partindo-se do pressuposto que o núcleo pode fissurar
e que a barragem deverá estar segura mesmo se isso acontecer.
Assim, devemos admitir a conclusão que as barragens raramente rompem, ou nunca
rompem, por causa de análises numéricas incorretas ou inadequadas. Elas rompem por causa de
avaliações inadequadas na análise de problemas que, percebidos antecipadamente ou não,
surgem na fundação ou na interface da fundação com o corpo da barragem. Às vezes eles
aparecem de formas sutis, no desenvolvimento do processo de observação. Independentemente
de especificações, arranjos contratuais, possibilidades de reclamação por serviços adicionais e
atrasos, esses problemas devem ser identificados e resolvidos de maneira satisfatória. Se
olharmos para eles como problemas de segunda classe sujeitos à aplicação de decisões de
segunda classe, as rupturas em barragens deverão continuar com uma probabilidade de 10-4
por barragem por ano. Enquanto persistir o mito que somente aquilo que pode ser calculado é que
constitui engenharia, os engenheiros continuarão perdendo incentivo e oportunidades de aplicar
seu melhor senso crítico a problemas cruciais, que não podem ser resolvidos através de
cálculos.
Onde foi parar o senso crítico? Tem ido para onde a recompensa pela qualificação
profissional e as promoções são maiores, para os escritórios de projeto onde a beleza pura das
análises é frequentemente divorciada da realidade. Tem ido para as instituições de pesquisa, para
o fascinante esforço de idealizar as propriedades dos materiais reais, para fins de análises e para
a resolução de intrincados problemas de distribuição de tensões e deformações dos materiais
idealizados. O incentivo de obter uma reputação profissional melhor orienta o melhor pessoal nestas
direções.
Sob o ponto de vista probabilístico, é lógico admitir a probabilidade de ruptura de 10-4 por
barragem por ano. Não há razões, porém, para que os engenheiros se deem por satisfeitos ao
considerar este índice de ruptura como norma. As barragens deveriam ser projetadas para não
romper, mesmo se uma certa probabilidade de ruptura está incorporada nas análises de custo
versus benefício. Uma vez que sabemos onde se localizam os pontos mais fracos, deveríamos ser
capazes de achar os meios de aplicar nosso senso crítico para evita-los. Se tivermos sucesso,
deveríamos conseguir atingir uma probabilidade básica de ruptura não maior que, talvez, 10-
5
por barragem por ano. Esta melhora se situa dentro do nível de conhecimento atual. Sua
realização não depende da aquisição de novos conhecimentos. Depende de nossa habilidade em
aplicar melhor o senso crítico a problemas essencialmente não quantitativos, com soluções
essencialmente numéricas. Desenvolver esse senso crítico e aplicá-lo requer uma reavaliação
de nossas opiniões sobre o que venha a ser mais alta forma de prática em engenharia. Sem
desvalorizar a necessidade de razoáveis e significativos cálculos de engenharia e sem tirar o mérito
daqueles que os fazem, pelo menos o mesmo prestígio profissional e igual responsabilidade
deveriam ser concedidos aos que empregam o senso crítico, mesmo se este não se expressa
de forma numérica.
Uma conferência em honra da memória de Laurits Bjerrum, um amigo tão próximo que a
distância de 10.000 km entre nossas casas não queria dizer nada, não teria sentido para mim, se
eu não a tivesse preparado sob a sua própria influência. Na época em que morreu, éramos ambos
membros da junta de consultores de James Bay, o maior aproveitamento energético isolado na
América do Norte. Na verdade, Laurits foi o responsável pelo convite que me foi feito para tornar-
se membro da junta. O projeto se encontrava em sua fase inicial e a pressão econômica
prescrevia que não podia haver lugar para o ultraconservadorismo. Nós avaliamos muitas
formas de reduzir os custos de construção no Northland, incluindo aquelas que vocês introduziram
aqui na Noruega. Mas o tratamento da fundação, como Laurits defendia vigorosamente desde o
começo, foi conservador em sua concepção e exemplar na execução. Acho que Laurits o teria
aprovado. Quero crer que as mais de 220 barragens e diques deste projeto, perfazendo mais de
140 km de extensão, contribuirão materialmente para a eventual redução da probabilidade histórica
de ruptura, de 10-4 para 10-5 por barragem por ano ou até menos.

BIBLIOGRAFIA
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