Individuação e Subjetividade
Individuação e Subjetividade
Individuação e Subjetividade
Resumo
O presente artigo inicia com uma breve contextualização da Psicologia Analítica indicando as
condições históricas de seu surgimento e desenvolvimento, as diferentes terminologias e perspectivas
adotadas no seu estudo e os desafios impostos pela sociedade e ciência contemporâneas. Apresenta os
conceitos de arquétipo e individuação evidenciando a sua transformação ao longo do processo de
construção teórica de Jung. A partir desses conceitos, busca identificar as constelações arquetípicas
atuais e problematizar a relação entre as condições histórico-culturais contemporâneas e o sofrimento
humano. Recorre a duas categorias da Sociologia Histórica, a modernidade e a pós-modernidade, para
compreender a relação EU-OUTRO nos contextos intra e intersubjetivos e evidenciar padrões
coletivos compensatórios nas patologias, nos fenômenos políticos e nas manifestações artísticas da
contemporaneidade. Analisa subprocessos de diferenciação e integração evidenciando a importância
da intersubjetividade no processo de individuação. Finaliza com prospecções sobre o desenvolvimento
do indivíduo e da sociedade nas próximas gerações.
Abstract
The present article begins with a brief contextualization of Analytical Psychology indicating the
historical conditions of its emergence and development, the different terminologies and perspectives
adopted in its study and the challenges imposed by contemporary society and science. It presents the
concepts of archetype and individuation evidencing its transformation throughout the process of
theoretical construction of Jung. From these concepts, it seeks to identify the current archetypal
constellations and to problematize the relation between contemporary historical-cultural conditions
and human suffering. It resorts to two categories of Historical Sociology, modernity and
postmodernity, to understand the I-OTHERS relationship in the intra and intersubjective levels and to
demonstrate compensatory collective patterns in pathologies, political phenomena and contemporary
artistic manifestations. It analyzes processes of differentiation and integration evidencing the
importance of intersubjectivity in the process of individuation. It ends by exploring the development
of the individual and of society in the next generations.
Resumen
1
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).
Pesquisas e Práticas Psicossociais 14(4), São João del-Rei, outubro-dezembro de 2019. e3353
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El presente artículo comienza con una breve contextualización de la Psicología Analítica indicando las
condiciones históricas de su surgimiento y desarrollo, las diferentes terminologías y perspectivas
adoptadas en su estudio y los desafíos impuestos por la sociedad y la ciencia contemporáneas. Presenta
los conceptos de arquetipo e individuación evidenciando su transformación a lo largo del proceso de
construcción teórica de Jung. A partir de estos conceptos busca identificar las constelaciones
arquetípicas actuales y problematizar la relación entre las condiciones histórico-culturales
contemporáneas y el sufrimiento humano. Recurre a categorías de la sociología histórica, la
modernidad y la posmodernidad, para comprender la relación YO-OTRO en los contextos intra e
intersubjetivos y evidenciar patrones colectivos compensatorios en las patologías, los fenómenos
políticos y las manifestaciones artísticas de la contemporaneidad. Analiza subprocesos de
diferenciación e integración evidenciando la importancia de la intersubjetividad en el proceso de
individuación. Finaliza haciendo prospecciones sobre el desarrollo del individuo y de la sociedad en
las próximas generaciones.
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potencial da teoria para atualizar e abarcar o fim de uma época. De modo mais
fenômenos emergentes. pessimista, Freud (2010) anunciou o
A Psicologia Analítica nasce na fracasso da civilização. Jung, por sua vez,
Europa, no fim do século XIX e início do pôde vislumbrar o nascimento de um novo
XX, período marcado pelos ideais momento histórico e de uma nova ciência.
iluministas, pelo crescente processo de O desenvolvimento da ciência e,
industrialização e ascensão de uma nova mais especificamente da Psicologia,
classe social, pelo fortalecimento dos decorre de processos históricos que, ao
Estados-Nações e seu decorrente longo do tempo, promovem mudanças na
nacionalismo. Momento em que a sociedade e na cultura. Na década de 1960
Psicologia está se estruturando como eclodem movimentos revolucionários na
ciência sob forte influência, por um lado, arte, na política, no comportamento, na
do positivismo e dos métodos das ciências ciência etc., que afetarão todas as
naturais e, de outro, das várias correntes dimensões da vida humana. As teorias
filosóficas aliadas às emergentes ciências psicológicas passam a questionar as
sociais. grandes narrativas com pretensões
Assim como a Psicanálise, a universalistas e a incorporar, de forma
Psicologia Analítica tem sua gênese na mais expressiva, as categorias
prática clínica, tanto como campo teórico socioculturais. As teorias da personalidade
quanto como método de investigação e passam a conviver com as teorias da
intervenção psicológica. Insere-se no subjetividade, que se preocupam menos
conjunto das teorias da personalidade que, com a organização interna da
na primeira metade do século passado, personalidade, dando mais importância aos
buscaram, a partir de diferentes processos de constituição da subjetividade
perspectivas, identificar e descrever o na interação do sujeito com a cultura e com
desenvolvimento e a organização interna a sociedade.
do indivíduo. Em consonância com a As novas formas de sociabilidade
ciência da época, essas teorias partiram de que surgem com o desenvolvimento da
premissas universalistas, com bases tecnologia, com a globalização, com o
biológicas ou estruturalistas, deixando em afloramento da lógica do consumo, entre
segundo plano as dinâmicas sociais e outros, demandam novas teorias
culturais na constituição da personalidade. explicativas. Nesse contexto, impõe-se o
Também como a Psicanálise e desafio de revisar os campos teóricos
outras teorias que se estruturaram no existentes, visando identificar o seu
contexto clínico, a Psicologia Analítica se potencial explicativo diante dos fenômenos
expande como modelo explicativo para psicossociais contemporâneos, o que
outras dimensões da vida humana, entre também se aplica à Psicologia Analítica.
elas o estudo da cultura e das sociedades.
Tanto Freud quanto Jung foram Arquétipo e individuação
profundamente marcados pelo seu tempo,
particularmente pelas duas grandes guerras No âmbito deste artigo, pretende-se
que colocaram em xeque a cultura e a colocar em perspectiva dois conceitos
sociedade europeia do século XIX. Freud centrais da Psicologia Analítica: arquétipo
morre no início da segunda guerra, depois e processo de individuação. Com isso,
de ter sido duramente atingido por ela. E objetiva-se construir possibilidades
Jung morre16 anos após o seu término, teóricas para a compreensão das relações
quando o processo de revolução cultural, entre as condições histórico-culturais da
iniciado no pós-guerra, começava a ganhar contemporaneidade e o sofrimento
dimensões mundiais. Ambos pressentiram humano.
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criação de um cenário hiper-real que leva o ser assimilado e sustentado pelo indivíduo,
indivíduo a crer que a realidade criada que, literalmente, se esvazia e acaba
virtualmente é real (Braudrillard, 1991). perdendo a sua forma no mundo.
Esta lhe oferece a ilusão de uma liberdade Na dimensão interpsíquica, o
absoluta e da satisfação ilimitada e confronto com o OUTRO-MUNDO
imediata dos seus desejos. mediado pela tecnologia aprisiona o sujeito
No plano intrapsíquico, observa-se a uma realidade virtual que fomenta a sua
a exacerbação do narcisismo, resultante de onipotência e individualismo. Na falta de
uma relação EU-OUTRO frágil e fluida, OUTROS bem definidos que ofereçam
que não produz o tensionamento contornos e limites ao EU, o EU se impõe
necessário à diferenciação. A ausência da fazendo crer que o mundo é a expressão de
alteridade indica que nossa época é pobre seu universo interior. Na ausência do
em produzir a diferença (Han, 2015). OUTRO, o indivíduo crê produzir a si
Nesse caso, prevalece o estado de mesmo, mas permanece identificado
identidade que mantém o ego refém do inconscientemente com tendências
inconsciente e, por consequência, dos coletivas (Han, 2015). A liberdade
fenômenos de massa. Um espectro de individual, a autodeterminação, a
patologias contemporâneas está autonomia do indivíduo e a soberania do
relacionado à falta de fronteiras decorrente desejo, veiculadas pela cultura
da fragilidade da construção do EU e do contemporânea, na realidade se revelam
OUTRO. Entre elas, a psicopatia e o armadilhas, que promovem um estado de
transtorno de personalidade boderline, alienação necessário à manutenção da
quadros clínicos em que a configuração lógica de consumo (Bauman, 1998).
egoica não se estabelece por meio de uma No ciberespaço, é possível assumir
relação de alteridade. Na psicopatia, há diferentes identidades, agredir ou seduzir
uma cisão emocional que impede a impunemente, declarar amizades ou
percepção empática do OUTRO como “deletar” amigos, fazer revoluções sem
sujeito, ou seja, o que prevalece é a confrontar pessoas. Nesse universo, o
perspectiva do EU que se impõe ao indivíduo visualiza continuamente aquilo
OUTRO que é reduzido a um objeto. No com o que se identifica, multiplicando,
transtorno bordeline, as fronteiras entre o assim, o igual, nunca o diferente ou o
EU e o OUTRO não estão bem OUTRO.
estabelecidas, prevalecendo um estado de
indiscriminação, de identidade e de baixa Sem a presença do outro, a comunicação
adaptação social. degenera em um intercâmbio de
informação: as relações são substituídas
Os transtornos alimentares, como a pelas conexões, e assim só se conecta com
bulimia e a anorexia, são também o igual; a comunicação digital é somente
expressões de uma relação mal visual, perdemos todos os sentidos;
estabelecida com o OUTRO-MUNDO. vivemos uma fase em que a comunicação
Nesses quadros clínicos, parece ocorrer está debilitada como nunca: a
comunicação global e dos likes só tolera os
uma rejeição absoluta do mundo como mais iguais; o igual não dói! (Han citado
expressão radical do individualismo e da por Geli, 2018, par. 6)
autossuficiência.4 Nada que está fora pode
Enquanto na era moderna, retratada
4
Ao discutir a sociedade da informação por George Orwell em seu livro 1984, a
contemporânea, Han (2015, p. 15) afirma: “Em
tempos de carestia, a preocupação está voltada para
sociedade era consciente de que estava
a absorção e assimilação. Em épocas de sendo dominada, hoje não temos nem essa
superabundância, o problema volta-se mais para a consciência de dominação (Geli, 2018). O
rejeição e expulsão”.
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cenário político vem se tornando uma mera Na mitologia, tanto Eco como
fachada para interesses invisíveis. No lugar Narciso representam aspectos que
de disputas ideológicas entre sujeitos e interrompem o processo de individuação.
grupos socialmente reconhecíveis, temos Condenada a repetir incessantemente a fala
os interesses impessoais ditados pelo do outro, Eco esvazia-se de sentido ao
mercado. A consequência disso é que não perder a possibilidade de se expressar, de
há mais contra quem direcionar a construir uma narrativa sobre si e ser
revolução e demarcar novos territórios. reconhecida como sujeito. Na outra
Na arte contemporânea, a vida polaridade, ao enxergar e refletir somente a
comum ganha relevância. As instalações, a si mesmo, Narciso acaba se afogando na
arte de rua, a arte popular, a obra própria imagem. Ambos não estabelecem
interativa, entre outras manifestações uma relação de alteridade com o OUTRO,
artísticas, colocam o espectador de volta à o que os mantém em um estado de
cena cotidiana, o que inclui toda a sua indiferenciação e inconsciência. Ambos se
imprevisibilidade, limitação e desumanizam, transformando-se em
complexidade de relações e significados. O elementos da natureza, ela em pedra, ele
indivíduo é convidado a refletir de modo em flor.
vivencial e subjetivo sobre a obra de arte e No mundo contemporâneo, as
não apenas a contemplá-la a partir de uma interações humanas mediadas por
perspectiva estética distanciada. Nesse máquinas e aparatos tecnológicos têm
sentido, a arte contemporânea parece substituído as interações interpessoais.
indicar um movimento compensatório que Entretanto, a máquina está programada
visa reconectar as pessoas à sua realidade para nos silenciar, pois a ela não cabe
social, ao tecido afetivo e simbólico das reconhecer e dar voz a nossa singularidade.
relações e das trocas humanas no dia a dia. O seu objetivo é fazer que assimilemos a
No plano político, observa-se o informação de forma passiva e acrítica.
ressurgimento de projetos conservadores, Quando ligamos para um amigo, para uma
neonacionalistas, neofacistas, que empresa ou setor público e somos
pressupõem a existência de governantes atendidos por uma máquina, resta-nos
autoritários capazes de impor a ordem por aceitar o conjunto de possibilidades que ela
meio da força e da hegemonia – de classe, nos oferece. Nessa situação, não há como
raça, credo e gênero –, excluindo da esfera manifestar aspectos particulares da nossa
política a noção de diversidade e diferença. experiência, que são inviabilizados pela
Vivemos um momento histórico de falta de interação humana. Somos
tamanha incerteza que as pessoas parecem reduzidos a máquinas, sem pensamento,
estar impelidas, inconscientemente, a sem história, sem sentimentos, restando-
buscar fora de si uma ordem salvadora, nos apenas, a exemplo de Eco, aceitar e
uma referência que favoreça o reproduzir mecanicamente a informação
tensionamento EU-OUTRO e, por ofertada.
consequência, o processo de individuação. Esse mecanismo está presente em
Entretanto, a constelação de um padrão todos os sistemas de comunicação de
arquetípico dessa natureza pode ter massa que adotam uma lógica unilateral de
consequências devastadoras para a emissão de informação. Nesse sentido,
sociedade, resultando em estados de com a sua imensa capilaridade social e
dissolução da consciência na psique poder de persuasão, a televisão tem sido
coletiva (Jung, 1993). utilizada como meio de manipulação e
alienação. Os telespectadores recebem
Eco e Narciso passivamente um conjunto de informações
que passam a ser incorporadas à sua
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