Cantigas e Brincadeiras
Cantigas e Brincadeiras
Cantigas e Brincadeiras
Musicoterapia
1.INTRODUO
Pode parecer curioso para alguns falar-se em Brincadeiras-de-roda nos dias de hoje. Em
tempos, em que estas manifestaes da cultura popular espontnea esto com o seu
espao to diminudo. Nas ruas, nas praas, nos quintais est mais raro de se ver ou
ouvir-se das bocas infantis aquelas canes que, na simplicidade das suas melodias
ritmos e palavras, guardam sculos de sabedoria e a riqueza condensada do imaginrio
popular .
Porm, sem estarem em alta, tambm no esto extintas. E configurando uma situao
contrastante e quase contraditria - certo que muitas vezes tendo partes omitidas ou
formas esquecidas e transformadas, elas sobrevivem a era do computador. Talvez como
um reflexo da busca do contato com a expresso genuna e ancestral que , em ltima
instncia, insubstituvel.
O fato , que toda esta conjuntura no altera em nada o teor valoroso intrnseco s
Cantigas e Brincadeiras-de-roda. Elas continuam contendo smbolos fecundadores de
toda a vida subjetiva, e continuam funcionando como pretextos maravilhosos para a
criana experimentar o seu corpo, a linguagem, e para descobrir-se a si prpria ao
mesmo tempo se revelando ao outro e inserindo-se no convvio social.
Em sua obra, C. G. Jung j chamava ateno para a enorme importncia das
manifestaes do folclore tradicional, apontando para a `perda irreparvel' que sofrem
aqueles que descartam ou desprezam as suas imagens. (Jung, apud. Fregtman, 1989, p.
29 ) Em tempos em que o folclore muitas vezes - mais do que injustamente- relegado
a um plano inferior, ou esquecido, pela prpria gente a qual ele pertence, pincei um
elemento do seu conjunto a ser discutido aqui nesta monografia.
Observando um grupo de crianas brincando espontaneamente com estas canes, ou,
mergulhando no tempo e nos recordando das Brincadeiras-de-roda vivenciadas na
prpria infncia, percebemos que algo precioso se processa. Trata-se de um movimento
de entrega, de alegria e de intensidade vital.
apesar de serem cantadas uma dentro das outras e com as mais curiosas deformaes
das letras, pela prpria inconscincia com que so proferidas pelas bocas infantis."
(ibid., p 676 ) Elas so transmitidas oralmente abandonadas em cada gerao e
reerguidas pela outra "numa sucesso ininterrupta de movimento e de canto quase
independente da deciso pessoal ou do arbtrio administrativo." (ibid., p. 146 )
As manifestaes folclricas nascem dos impulsos criadores, tanto individuais como
coletivos. O folclore adversrio do nmero em srie, do produto estampado e do
padro patenteado. De mo-em-mo, de boca-em-boca ele se faz: cada um improvisa,
recria, deixa a sua marca, introduz novos padres.
Assim, a msica folclrica aquela que se transmite e se preserva oralmente,
expandindo-se por isso com toda a naturalidade, e possuindo uma aceitao coletiva.
Ela diferencia-se da msica chamada erudita por nela no ser procurado o rebuscamento
ou o aperfeioamento de forma intencional, e, da msica chamada popular, por no ser
produzida em srie ou ter destinao comercial. Em sua simplicidade, a msica
folclrica torna-se mais autntica e espontnea, e assume um poder de comunicao e
uma ressonncia imediata no esprito do povo que a pratica. (Lamas, 1992, p.p. 15, 16)
Enquanto criao artesanal e comunitria, a msica folclrica est condicionada a
padres aceitos por todos, sendo-lhe uma caracterstica peculiar a adaptao s
circunstncias. Assim, comum por exemplo, que uma mesma melodia sofra as mais
variadas deformaes, e apresente diversas verses, podendo tambm ser encontrada ao
mesmo tempo numa Cantiga -de-roda infantil e numa dana de adultos num terreiro
fetichista. Em geral, pode-se dizer que a msica folclrica no executada
independentemente, ela se condiciona a algum fim, pois atende s necessidades do
ambiente onde se propaga. (ibid.)
Segundo Camera Cascudo, "O folclore inclui nos objetos e frmulas uma quarta
dimenso sensvel ao seu ambiente" (Cascudo,1988, p.334 ) . O seu valor ultrapassa
largamente o ngulo do funcionamento racional, compreendendo muito mais, uma
afirmao ou ampliao do emocional. Assim, as suas manifestaes conformam a
"fisionomia espiritual das gentes" (Brando e Milleco, 1992, p.21) e, se esquecidas ou
desprezadas, "(...) os povos acabam perdendo a conscincia do seu prprio destino."
(ibid.).
Em contrapartida, a oportunidade de reviver, experimentar, ou lembrar as manifestaes
do folclore, implica em entrar em contato com foras vitais ancestrais e tambm em
reviver contedos arquetpicos que esto na base da construo da identidade dos povos.
Segundo Menezes,
"(...)A identidade quer pessoal, quer social, sempre socialmente atribuda, mantida e
transformada (...).O processo de identificao um processo de construo de imagem.
e o suporte fundamental a memria, atravs da qual se obtm informaes,
conhecimentos, experincia e, por isso mesmo, a possibilidade de dar lgica, sentido e
inteligibilidade aos vrios aspectos da realidade." (Menezes, apud. Garcia, Souza e
Silva e Ferrari,1989,p. 14)
filho eu tambm sou da famlia tambm quero rebolar..."; sambar: "...samba, samba,
samba Lel, pisa na barra da saia Lel..."; remexer: "...d um remelexo no corpo...";
requebrar: "...Como ele vem todo requebrado, parece um boneco desengonado!...";
mover a cabea e o pescoo: "... Olhai pro cu, olhai pro cho, pro cho, pro cho..."; se
ajoelhar: "...Para todos se ajoelharem..."; se deitar: "...Para todos se deitarem..."; e a se
levantar novamente: "...Para todos se levantarem!..." ; bater palmas e ps: "...palma,
palma, palma fulana, p, p, p, Fulana...", pular: "Ora vai pulando, ora vai pulando,
ora vai pulando at parar!..."; correr: "...O tempo passou a correr, a correr, a correr..."; e
ainda a se agachar e a gritar: "...do berr, do berr que o gato deu: MIAU!!!!!!!" e
outras variaes mobilizadoras do corpo todo, e, por conseqncia, tambm da emoo.
Muitas cantigas apresentam em sua dinmica convites - implcitos ou explcitos - para
que os participantes se abracem: "... e abraais a quem quiser..."; " ai me d um abrao
que eu desembarao esta pombinha que caiu no lao..."; beijem: "...da morena mais
bonita quero um beijo e um abrao..." ou puxem a orelha uma das outras: "...puxa
lagarta no p da orelha!..."; se toquem com os ps: "...tira tira o seu pzinho bota aqui
no p do meu, e depois no v dizer que voc se arrependeu...". O contato corporal e a
troca de afetos - to necessrios ao pleno desenvolvimento infantil - ocorrem de forma
natural e prazeirosa dentro da segurana dos limites das prprias brincadeiras.
So vrias as Brincadeiras que tambm tm em sua dinmica um espao especial para a
manifestao da singularidade de cada criana. Este destaque se d: ao escolher uma
outra criana para ser o seu par: "sozinha eu no fico, no hei de ficar, porque tenho a
fulana para ser meu par!..."; ou para mostrar afetos e desafetos: "..entrai entrai linda
roseira, fazei careta pra quem no gostais e abraais quem gostas mais... " esta no me
serve, esta no me agrada, esta hei de amar, hei de amar at morrer..."; seja ao fazer o
som de um bicho ou com a tarefa de reconhecer o outro atravs da sua voz apenas:
"Senhor caador preste bem ateno, no v se enganar quando o gato miar: MIAU!!!";
seja ao aceitar ou ao negar algo para si prprio (exercer o poder de escolha): "...Este
ofcio no me agrada, de marr, marr, marr, este ofcio no me agrada de marr de
si !..."; seja ao recitar ou improvisar um verso: "...Por isso dona fulana entre dentro
desta roda diga um verso bem bonito diga adeus e v se embora...". Diversas vezes este
destaque tambm fica patente pela prpria coreografia, pois a criana convidada a se
colocar no centro da roda: "... dona fulana, dona fulana, entrars na roda e ficars
sozinha!..."; "...Entrai na roda, linda princesa..." ; "O pinho entrou na roda
pinho...amostra a tua figura pinho!" ;"...Pai Francisco entrou na roda..."
Por todos os aspectos corporais j citados, as Brincadeiras-de-roda tornam se excelentes
pretextos para a realizao do "grounding" - termo da psicoterapia corporal e que denota
uma funo teraputica que "permite o rebalanceamento do tnus muscular, o
enraizamento da postura e a auto-segurana." ( Boadella apud. Chagas 1997, p.19 )
A emisso vocal (o cantar, assim como o gritar e o recitar em alguns casos) uma
constante nas Brincadeiras-de-roda. Ela pode ser considerada como parte da catarse
fsica.
"A emisso da voz provoca, necessariamente, uma vibrao corporal (...) O trabalho
com a vibrao da voz traz interessantes possibilidades de desbloqueio dos anis de
tenso corporal, na medida em que uma massagem vibratria de dentro para fora, a
partir do prprio som do sujeito." ( Chagas,1990, p.587)
A voz est diretamente relacionada a emoo. O trabalho com esta forma expressiva
possibilita a mobilizao de um a infinidade de processos subjetivos e que no podem
ser resumidos apenas ao processo catrtico. Consideremos com um pouco mais de
ateno as suas relaes com o processo teraputico.
A voz um meio expressivo que nos acompanha desde as mais remotas origens
individuais e coletivas, numa longa estrada que vai do choro at o canto cultural.
Em sua maleabilidade e dinmica, as transformaes timbrsticas, tonais, de intensidade,
assim como os ritmos e melodias intrnsecos voz guardam as mais ntimas relaes
com o desenvolvimento emocional. Assim a voz se modifica acompanhando as fases e
momentos diferentes da vida de um mesmo sujeito, corporificando o seu mundo
interior.
Lowen, discpulo de Wilhelm Reich, destacou mais enfaticamente a importncia da voz.
Segundo ele, o bloqueio de qualquer sentimento vai afetar a expresso vocal. Ao mesmo
tempo, o recobrar de um pleno potencial de auto-expresso requer um uso da voz em
todos os seus registros e todos os seus matizes de sentimento. Tambm emisses tais
como o choro e o soluo so descritas como altamente mobilizadoras e eficazes no
processo de desbloqueio dos anis de tenso. Lowen d particular ateno ao grito, por
ele descrito como: "Uma exploso que sacode momentaneamente a rigidez criada pela
tenso muscular crnica e que tem um forte efeito catrtico na personalidade."
( Prazeres, 1996, p. 3 )
Utilizando a observao das nuances vocais como importante recurso para uma plena
compreenso do estado emocional dos seus clientes, Lowen concluiu que - em geral "uma voz alta (tom agudo) indica um bloqueio das notas mais graves e expressivas da
tristeza, e uma voz peitoral profunda (tom grave) indica uma negao do sentimento de
medo e uma inibio da sua expresso pelo grito." Wolfsohn vai ao encontro desta
forma de compreenso ao afirmar que, enquanto o sonho reflete os diferentes aspectos
da psique em imagens, a voz reflete imagens psicolgicas em sons. (ibid.,p.3)
Paul Moses, foi buscar na voz as causas psicolgicas ocultas das desordens fisiolgicas.
Sua participao para a instaurao do mtodo do canto como abordagem teraputica foi
fundamental. Moses pesquisou largamente a fonao no nascimento e o conjunto dos
rudos pr-verbais nos quais a expressividade vocal se expressa livremente. Concluiu
que a aquisio da fala representa a submisso de instintos e sentimentos a jurisdio da
palavra, acarretando numa grande perda dessa expressividade assim como em vivncias
traumticas. Ele via no trabalho teraputico com a emisso espontnea de sons vocais
no verbais, a chave para ir ao encontro das dificuldades relativas a estes traumas, sendo
que, para ele o cantar era a atividade que mais respondia s necessidades subseqentes.
(ibid.)
"A extenso vocal a linguagem das emoes em oposio articulao, linguagem
das idias... Cantar como um compromisso. Uma recordao voluntria de um eco de
satisfao pura da vocalizao primitiva. uma atividade auto-ertica, liberadora das
tenses construdas pela nossa represso." (Moses, apud Prazeres, 1996 p.5 )
Penso que, o cantar nasce da necessidade e da urgncia do ser humano em expressar o
seu mundo interno, com todas as suas nuances e movimentos numa conexo profunda
com o seu prprio corpo. Este funciona como caixa de ressonncia, instrumento vivo
que se transforma no momento mesmo do ato de cantar, e que ao mesmo tempo, permite
que interfiramos na vida coletiva com a nossa singularidade.
Nas Brincadeiras-de-roda, o convite ao canto ocorre de maneira natural. Canta-se, em
geral em coro, havendo algumas cantigas com espao para `solos'. H margem para as
mais variadas exploraes de dinmica, timbre, e registros vocais, e, logo para a autoexpresso pessoal e grupal. Msica, corpo e emoo se integram impulsionando-se entre
si.
3.2. Aspecto Musical
" Sapo jururu, na beira do rio.
Quando o sapo canta, maninha,
porque tem frio..."
As Cantigas-de-roda possuem caractersticas musicais particulares. A pesquisadora
Henriquieta Braga (1950), selecionou vrios aspectos que se destacam na sua
caracterizao geral. Vejamos, a seguir, alguns deles de acordo com os parmetros
musicais - ritmo, melodia e harmonia.
Ritmo - A grande maioria das nossas cantigas infantis, apresenta-se em compasso
binrio simples, ritmo anacrstico e terminao masculina, havendo presena expressiva
de sncopes muito peculiares, como as formadas por antecipaes de sons finais,
deslocamento das slabas tnicas, acentuaes nas partes fracas dos tempos, e
interrupes por pausas. Apesar do predomnio do compasso binrio simples, podemos
tambm encontrar canes em ternrio simples, quaternrio, e at mesmo em quinrio,
como se pode examinar em "Na mo direita tem".
Melodia - O modo predominante o maior, geralmente abrangem mbito de oitava,
destacando-se os intervalos de segunda e tera, assim como os sons rebatidos. Tambm
apresentam-se freqentemente melodias com repetio insistente ou imitao de
desenhos, movimento inicial ascendente dominante-tnica, movimento meldico
terminal descendente sobre a tnica por graus conjuntos. Modulaes tonais so
atpicas, ocorrendo de forma rara.
Como exemplos para as melodias com repetio de desenhos, poderamos citar:
"Cai, cai balo
Aqui na minha mo.
No vou l!
No vou l !
No vou l!
Tenho medo de apanhar."
"Bam-ba-la-lo
Senhor capito
Espada na cinta
Sinete na mo."
"(...) a criana quer no s ouvir as mesmas histrias como tambm repetir as mesmas
experincias e isto lhe d um grande prazer. Essa satisfao est relacionada com a
busca da primeira experincia, que pode ser o primeiro terror ou a primeira alegria.
Assim, a repetio no s um caminho para tornar-se senhor das `terrveis
experincias' como tambm de saborear sempre com renovada intensidade os triunfos e
vitrias." ( Benjamin, 1984 apud. Garcia, Silva e Ferrari, 1989, p.15)
A fantasia se faz presente em todo o contexto das Brincadeiras-de-roda, at pelos
personagens que geralmente so representados pelos participantes - numa utilizao de
um recurso transferencial - assim como pelas imagens propiciadas pelas letras e climas
musicais. Mrio de Andrade (1980) afirma que a voz cantada atinge necessariamente a
nossa psique pelo dinamismo que nos desperta no corpo. Numa perspectiva
musicoterpica, penso que , com a associao dos contedos poticos experincia de
auto expresso musical e corporal, ambos os processos ocorrem simultaneamente, se
influenciando e intensificando-se um ao outro.
4.1. Uma Abordagem Psicanaltica
Bouth (1989), ao fazer uma anlise das Cantigas-de-roda, se utiliza da abordagem
psicanaltica. O seu objeto de estudo atende a demanda de etapas do desenvolvimento
psicossexual infantil. Assim, de acordo com a sua interpretao, atravs da Cantiga-deroda, a criana pode manifestar a sua entrada na relao triangular, ou seja, na trama
edpica, como em:
"O meu chapu tem trs pontas
tem trs pontas o meu chapu;
se no tivesse trs pontas,
no seria o meu chapu."
Observando a estrutura rtmica desta cano, nota-se que o compasso binrio
composto, ou seja, cada compasso pode ser subdividido em dois grupos de trs tempos.
A criana pode manifestar suas "ansiedades no resolvidas diante de separaes e
tentativas de elaborao do luto pela perda da relao me beb" (ibid., p.75 ) como em:
"...O anel que tu me deste
era vidro e se quebrou.
o amor que tu me tinhas
era pouco e se acabou..."
Ou ainda em:
"Nesta rua, nessa rua
Tem um bosque
Que se chama
Que se chama solido.
Dentro dele
Dentro dele mora um anjo
Que roubou
Que roubou meu corao..."
Olhando musicalmente para esta cano, observamos que clima mais melanclico fica
patente a partir do tom na qual ela se encontra, menor. Na melodia dominam arpejos
menores descendentes, havendo duas passagens pela 7 da sensvel, caracterstica como
nota de tenso. O legato caracterstico assim como o andamento lento contribuem para
proporcionar um clima nostlgico.
A agressividade tambm um tema freqente, sendo muitas vezes associado a
mecanismos de defesa (ibid. 1989), como em:
"A carrocinha pegou
Trs cachorros de uma vez
Tra l l
Que gente essa?
Tra l l
Que gente m!"
Aqui o tom maior, e, ritmicamente, predominam as notas curtas, quase em stacato, o
andamento em geral acelerado criando-se assim um clima alegre .
Ainda segundo a anlise de Bouth, a criana pode tambm "expressar o receio de
punio por brincadeiras sexuais, que pode ir de castigos corporais loucura"
(ibid.1989, p.77) como em:
"Samba Lel est doente
Est com a cabea quebrada
Samba Lel precisava
De umas dezoito lambadas
Samba, samba, samba o Lel
Pisa na barra da saia, o Lel!
morena bonita,
Como que se namora
Pe o lencinho no bolso,
Deixa a pontinha de fora"
Como se verifica musicalmente, "Samba Lel" tem na linha meldica todas as
caractersticas da rtmica brasileira. Seu ritmo pode ser considerado como o do samba.
(Lamas, 1992)
O receio pela punio tambm pode estar associado a contedos edpicos (ibid., 1989),
como em:
"Pai Francisco entrou na roda
Tocando seu violo
Dararo, do, do !
Vem de l seu delegado,
E pai Francisco
Vai para a priso.
Como ele vem
Todo requebrado
Parece um boneco
Desengonado!"
As preocupaes com a cena primria, que tem o seu lugar entre as mais vvidas
preocupaes infantis (ibid.1989)
" meu senhor, eu fui passando
Por de traz da bananeira,
Diz o preto para a preta:
h! que linda brincadeira!"
"Pirulito que bate, bate,
Pirulito que j bateu
Quem gosta de mim ela;
Quem gosta dela sou eu.
Pirulito que bate bate,
Pirulito que j bateu,
A menina que eu amava,
Coitadinha j morreu..."
As ansiedades do perodo da latncia com relao ao desejo de ter coisas e corpo de
mulher aparecem, como nesta cantiga num clima de humor, indicando o trabalho de
elaborao da fantasia narcsica para abrir espao para a puberdade (ibid.1989) :
"A barata diz que tem
Sete saias de fil
mentira da barata
Ela tem uma s
Ah! Ah! Ah!
Oh! Oh! Oh!
Ela tem uma s!
A barata diz que tem
Um anel de formatura
mentira da barata
Ela tem casca dura.
A barata diz que tem
Uma cama de marfim
mentira da barata
Ela tem de capim.
A barata diz que tem
Um sapato de fivela
mentira da barata
O sapato da me dela.
A barata diz que tem
O cabelo cacheado
mentira da barata
Ela tem coco raspado"
A chegada da puberdade e da adolescncia desperta fantasias nas quais figura a
ansiedade crescente em relao a perda do mundo infantil. Tambm a tarefa de assumir
uma vida nova e desconhecida, a busca de um novo parceiro fora do ambiente familiar,
implicam em uma srie de riscos , expectativas e escolhas com as quais preciso lidar.
(ibid. 1989)
"Ai eu entrei na roda
Ai eu no sei como se dana
Ai eu entrei na roda dana
Ai eu no sei danar
Sete e sete so quatorze
Trs vez sete vinte-e-um
Tenho sete namorados
S posso casar com um"
Em "A linda rosa juvenil", em que o tema central se refere "ao acolhimento da me ao
surgimento da sexualidade na filha" , Bouth (1989) sugere a aplicao de boa parte da
interpretao de Bruno Bettelheim dada para "A bela adormecida" . Tanto o conto
quanto a cantiga, tratam da fase de amadurecimento sexual , quase constitui como um
perodo delicado tanto para os pais como para os filhos.
A cantiga mostra que, a puberdade um tempo de espera, "o mato cresce ao redor"
(numa referncia clara aos pelos pubianos ) e que a me feiticeira - m, mas ao mesmo
tempo boa - garante esta espera s findada com o surgimento de um belo rei-namorado
possibilitando a filha um novo tipo de relao objetal. ( Bouth, 1989 )
"A linda Rosa juvenil, juvenil, juvenil,
A linda rosa juvenil, juvenil
Vivia alegre no seu lar, no seu lar, no seu lar
Vivia alegre no seu lar, no seu lar.
Mas uma feiticeira m, muito m, muito m
mas uma feiticeira muito m, muito m
Adormeceu a Rosa assim, bem assim, bem assim...
Adormeceu a Rosa assim, bem assim...
No h de acordar jamais, nunca mais, nunca mais
No h de acordar jamais, nunca mais.
(Aqui todas saem na carreira e o Lobo atrs, at pegar uma que ser o Lobo seguinte.)
A possibilidade de um novo tipo de relao traz anseios e medos. Assim a elaborao
objetal do luto pelo corpo, papel e pais da infncia permeado tambm por um desejo
de retorno a uma poca anterior. "Mas o movimento predominante em um
desenvolvimento emocional satisfatrio para frente, na direo do crescimento" como
fica patente em canes alegres e maliciosas (ibid. 1989) :
"L vem seu Juca-ca
Da perna torta-ta
Danando a valsa-sa
Com a maricota-ta
L vem seu Pedro-do
Da Perna dura-ra
Danando valsa-sa
Com a rapadura-ra"
4.2 Uma Abordagem Junguiana
A reflexo relativa a dimenso e aos contedos simblicos essencial prtica
musicoterpica. De acordo com Jung (Jung, apud. Silveira 1990), o smbolo uma
forma extremamente complexa. Nela se renem opostos numa sntese que no pode ser
formulada dentro de conceitos, mas sim, de imagens. Assim, a linguagem simblica
constitui-se como uma linguagem universal de infinita riqueza, capaz de exprimir
muitas coisas que transcendem as problemticas especficas dos indivduos.
De uma parte, o smbolo acessvel a razo, de outra porm lhe escapa para "vir fazer
vibrar cordas ocultas no inconsciente" "Um smbolo no traz explicaes, impulsiona
para alm de si mesmo na direo de um sentido ainda distante, inapreenssvel, e que
nenhuma palavra da lngua falada poderia exprimir de maneira satisfatria." (Jung, apud
Silveira p.80)
Segundo Mendona (1996, apud. Langer), Formulando a experincia como algo
imaginvel, os smbolos fixam identidades e do forma s nossas fantasias,
apresentando-as para a nossa contemplao, intuio, lgica, reconhecimento e
entendimento.
"A explorao do contedo simblico pode conduzir para alm dos limites dos
territrios j conhecidos e estabelecidos.(...) O smbolo aponta para algo inatingvel e
distante, alguma coisa que est simultaneamente perto e longe ( Chevalier, 1988)
existindo de modo sincrnico em diferentes nveis de conscincia, numa nova ordem de
mltiplas dimenses.'' ( Mendona 1996, p.26 )
A atividade formadora de smbolos para Jung - segundo Silveira 1990 - uma ao
mediadora, uma tentativa de encontro entre opostos movida pela tendncia inconsciente
totalizao.
Em seu estudo sobre o folclore brasileiro, o musicoterapeuta Lus Antnio Milleco
(1987) faz uma anlise do lado oculto da cultura popular, chamando ateno para o
simbolismo revelador da sabedoria latente da alma do povo. Ele cita como diversos e
valiosos os smbolos contidos nas entranhas das melodias, versos e formas em
movimento dos Cnticos e Brincadeiras-de-Roda.
Tendo como influncia principal o pensamento de Jung , Milleco (1987) em seu livro
"O Lado Oculto do Folclore", sugere uma outra interpretao para as Cantigas e
Brincadeiras-de-roda.
Vejamos alguns exemplos a seguir:
"A Margarida"
Uma criana vai para o centro da roda , ficando geralmente de ccoras - A Margarida
- e outra criana fica do lado de fora da roda - O Cavaleiro . Esta ltima dana e
canta:
"Onde est a Margarida?
O l, l l;
Onde est a Margarida?
O l, seus cavaleiros.
Respondem as da roda:
Ela est em seu castelo,
O l, l, l;
Ela est em seu castelo,
O l seus cavaleiros.
A menina do lado de fora:
Mas eu queria v-la,
Ol, l, l;
Mas eu queria v-la,
l, seus cavaleiros.
A roda:
Mas o muro muito alto,
l, l, l
Mas o muro muito alto,
l, seus cavaleiros.
A menina de fora, tira uma outra e canta:
Tirando uma pedra,
l, l, l;
Tirando uma pedra,
l, seus cavaleiros.
A roda:
A roda um smbolo universal. A sua fora consiste no fato de ser ela uma
representao viva da Mandala. "Enquanto figuras arquetpicas, as Mandalas so dadas
com cada novo indivduo que nasce e pertencem a existncia inalienvel do conjunto de
propriedades que caracterizam uma espcie" (Jung, 1977,p.116) , Jung fez um estudo
profundo sobre este smbolo. Para ele a Mandala a expresso geomtrica do self.
( Milleco, 1987 )
"A palavra do snscrito `Mandala' significa crculo, roda no sentido geral. No campo
de utilizao da religio e da psicologia, ela se refere a figuras circulares que podem
ser desenhadas, pintadas, esculpidas ou danadas(...). Como fenmeno psicolgico elas
aparecem espontaneamente em sonhos, em certas condies de conflito e na
esquizofrenia." (Jung,1977, p.115)
" O crculo estrutura ritualmente qualquer coisa que acontece na psique, fazendo dela
uma imagem que acontece na prpria totalidade." ( Jung , apud. Larsen 1990, p.52 )
Ainda de acordo com Jung (1977), no budismo tibetano, as Mandalas num sentido
geral, correspondem ao que l se denomina "Yantra" ou seja: a um instrumento de culto
o qual deve apoiar a meditao e a concentrao, assim como auxiliar na realizao de
experincias interiores. Na alquimia, a juno de quatro elementos opostos
freqentemente representada por uma figura mandalar. Quando em sries de quadros,
so freqentemente encontradas aps condies de caos e desordem, conflito e
medo."(...) Elas expressam assim a idia de refgio seguro, de reconciliao interior e
de totalidade(...)" (ibid., p.110 )
Em relao a apario desta figura entre os indivduos modernos e pesquisa da
psicologia quanto ao seu sentido funcional, Jung (1977) tambm d a sua palavra. Ele
aponta para o fato de que, em geral ocorre que a Mandala surge em estados de
dissociao psquica ou de desorientao. Como por exemplo, entre crianas de 8 a 11
anos de idade cujos pais esto se separando, ou em casos de adultos os quais, em
conseqncia da sua neurose e do tratamento mesmo, se encontram confrontados com a
problemtica contraditria da natureza humana, em estado de desorientao. Ou ainda
em esquizofrnicos que esto com a sua viso do mundo abalada e confusa.
"Nestes casos, pode-se ver claramente como a ordem severa deste tipo de figura
circular, compensa a desordem e a confuso psquicas. Isto, porque existe um ponto
central em torno do qual tudo se ordena, ou uma estrutura concntrica da
multiplicidade no organizada dos opostos e disparidades. Fica visvel que se trata de
uma tentativa de auto-cura da natureza, que corresponde no a um pensamento
racional, mas sim a um impulso instintivo." ( ibid. p. 115 )
Jung fala a respeito da comprovao emprica do poder e do efeito teraputico das
Mandalas sobre os seus `feitores'. "(...)J uma mera tentativa nesse sentido costuma ter
um efeito curativo (...)" (ibid. p. 117) O que, ainda segundo ele, facilmente
compreensvel no que elas representam freqentemente "(...)tentativas bastante
audaciosas da juno e reunio de opostos aparentemente incompatveis e da religao a primeira vista inconcebvel - de partes separadas" (ibid.) Por outro lado ele chama
ateno para um aspecto fundamental na ocorrncia deste fenmeno, o qual `a
espontaneidade' : "Nada se pode esperar de uma repetio artificial ou de uma imitao
intencional deste tipo de figura." ( ibid. )
Alm de Jung, diversas outras fontes tambm iluminam o estudo que aponta para o
valor arquetpico deste smbolo e as suas diversas formas de se manifestar.
Segundo Cmera Cascudo (1988), a marcha descrevendo um crculo, de alta expresso
simblica e participa, h milnios da liturgia popular de quase todo o mundo. Como
exemplo, cita as procisses religiosas ao redor de uma praa, volteando capela ou igreja,
as voltas fogueira nas festas de S. Joo, as caminhadas circulares em torno do bero ou
cama do enfermo no exorcismo das velhas rezadeiras s crianas doentes.
E, se referindo especificamente s rodas danadas:
"(...)A primeira dana humana, expresso religiosa instintiva, a orao inicial pelo
ritmo deve ter sido em roda, bailando ao redor de um dolo, Desde o paleoltico vivem
os vestgios das pegadas em crculo em cavernas francesas e espanholas. O movimento
seria simples e uniforme, possivelmente com o sacerdote no centro dirigindo o culto e
animando o compasso(...)" ( ibid p.676 )
4.2.2. As Brincadeiras-de-roda como Mandalas
luz destes acontecimentos ocorridos nos primrdios do nosso desenvolvimento
filogentico, assim como das investigaes de Jung em seu trabalho teraputico,
poderamos buscar relaes com as Cantigas e Brincadeiras-de-roda.
Trao a hiptese de que, por traz do momento espontneo do encontro em que crianas
se do as mos e se movimentam expressando vocalmente as canes j por muitos
antes expressadas, estaria tambm havendo uma busca instintiva de uma harmonizao
pessoal e grupal . E de que, as brincadeiras-de-roda seriam um re-vivenciar de um ritual
ancestral, em que o mito estaria representado rtmica-meldica e poeticamente, sempre
novamente ressignificado, a cada vez que apropriado pelos participantes dos grupos de
brincadeiras.
O dar-se as mos possibilita um contato, uma experimentao ttil do outro numa
interao corporal "que promove a permuta de energias e ameniza a solido" entre os
participantes. Estes esto naquele momento, mesmo que inconscientemente "(...)
mentalizando juntos o advento de um estado mandalar(...)" (Milleco, 1987, p. 81)
Qual seria o significado deste "estado mandalar" destacado por Milleco (1987) em
relao s Brincadeiras-de-roda?
Como vimos anteriormente, Jung afirma que as mandalas podem ser danadas. Ora, se
as mandalas, num sentido geral, "estruturam o que ocorre na psique"; "representam a
juno de opostos aparentemente incompatveis"; propiciam a "concentrao e a
meditao"; "expressam a idia de refgio seguro e de reconciliao interior";
"compensam a desordem e a confuso psquicas"; estas caractersticas tambm se
aplicam s rodas danadas (e cantadas). Desta maneira, cada participante da roda,
estaria compartilhando com os demais do estado proporcionado pela "mandala-viva"
(ibid.,1987) da qual ele prprio parte integrante.
No caso das Brincadeiras-de-roda, devemos destacar que estas se constituem por rodas
com determinadas variaes coreogrficas e por canes especficas associadas a elas,
Aps cerca de um ano tendo estas canes como enfoque, Brando comeou um
trabalho no sentido de adicionar um outro tipo de atividade sesso. A sua inteno era
a de resgatar experincias e sentimentos da infncia de cada um, apartir da incluso de
um repertrio infantil (Acalantos e Brincadeiras-de-roda) nas sesses.
Com o passar do tempo, a nova proposta se revelou bastante frutfera, conduzindo a
ricas experincias para o crescimento do grupo como um todo e para as pessoas
individualmente.
De acordo com Regina Brando, o ponto de mudana se deu mais especificamente
quando se iniciaram as Brincadeiras-de-roda.
Elas possibilitaram uma mudana na dinmica que vinha predominando at ento, a
qual consistia na atuao sempre `brilhante' de Maria em contraste com as deficincias
dos demais. Ocorreu que, na hora da formao da roda e da dana, por sua hemiplegia e
pelas eventuais ausncias, era ela quem realmente necessitava da ajuda e do apoio dos
seus colegas. Prontamente, eles iam ao seu encontro nestas ocasies, numa atitude de
retribuio sua solidariedade inicial. Pela primeira vez, conformou-se uma situao
em que a sua fragilidade podia vir a tona com mais clareza, e, por isso mesmo, tambm
ser melhor trabalhada teraputicamente. Inverteram-se os papis: quem at ento
sempre tinha sido `ajudado' passou a ser `ajudante' e vice-versa. .
Por outro lado, Brando destaca que, de uma maneira geral as Brincadeiras-de-roda
abriram caminho para a formao de novos laos afetivos entre os participantes "O
contato corporal - antes quase um tabu entre eles - passou a acontecer de forma
descontrada e saudvel. (...) Um clima especial, de maior emotividade, se instaurou no
grupo. Acredito que as Cantigas-de-roda tiveram um papel decisivo neste processo. As
suas melodias singelas davam continente para o vir a tona de emoes mais arcaicas, ao
mesmo tempo as suas letras ora agressivas, ora engraadas e alegres, ou at mesmo
trgicas permitiram a expresso e o compartilhar de questes fundamentais da histria
de cada um."
5.4. M. e o "atireio"
Este caso tambm se refere a um atendimento feito pela musicoterapeuta Regina
Brando, em seu consultrio particular.
M. nasceu no Cear, filha de me brasileira e pai francs. Quando ela estava com oito
meses de idade, seus pais se separaram, e ela passou a morar somente com a me, no
Cear. O pai passou a morar no Rio, visitando-a esporadicamente. At que foi morar na
Frana por dois anos seguidos no a encontrando nenhuma vez neste perodo. Ao
retornar ao Brasil, ele observou que a me no estava investindo devidamente no
desenvolvimento da filha, a qual, a esta altura, j apresentava pronunciados sinais de
atraso psicomotor. Nenhuma iniciativa (busca de tratamento) havia sido tomada pela
me. O pai ento, com a autorizao da prpria me, trouxe M. para morar consigo no
Rio.
M., ento com quatro anos de idade, iniciou pela primeira vez um tratamento, sendo
acompanhada por mdico-psiquiatra e psiclogo. Exames genticos tambm foram
feitos. No se chegou porm, a nenhuma concluso sobre o tipo de sndrome por ela
apresentada.
Aos cinco anos de idade, M. foi encaminhada para a Musicoterapia, iniciando
tratamento com Regina Brando.
Chega o momento da primeira sesso de Musicoterapia. Logo ao entrar na sala,
dispensando grandes apresentaes ou convites, ela comea a cantar. Canta quatro
cantigas, emendadas umas nas outras. So elas: "Ciranda, cirandinha", "Terezinha de
Jesus", "O Cravo brigou com a Rosa" e "Nesta rua". Ela canta muito enfaticamente,
com energia. Por outro lado porm, algo de estereotipado perceptvel em sua voz e em
sua expresso corporal. Como se a sua emoo estivesse de alguma forma aprisionada.
A atitude inicial da musicoterapeuta a de receber a expresso de M. , e, ao mesmo
tempo, lhe proporcionar um continente. Assim, Regina a acompanha, ora cantando, ora
ao piano - enquanto M. marca o ritmo com instrumentos de percusso - ora ao violo,
ora as duas sentam-se no cho, cantando e marcando o ritmo... Alm de juntas
brincarem tradicionalmente com as cantigas.
Outras sesses se seguem. Em todas elas, M. volta a trazer aquelas cantigas da mesma
forma enftica. Nestas ocasies, Regina vai a cada vez acrescentando novas propostas,
tais quais variaes no modo de cantar ( ora mais agudo, ora mais grave, variaes de
dinmica e de andamento...)e improvisos de movimentos na roda. At um ponto em que,
a repetio quase obsessiva e a permanncia da expresso estereotipada ( entonao
repetitiva na voz, olhar apenas no instrumento, expresso corporal retrada) torna-se
motivo de preocupao para a terapeuta. Esta, mantm a atitude receptiva, mas
paralelamente esfora-se em introduzir outras canes - inclusive outras Canes-deroda - com a inteno de abrir campo para outras possibilidades e experincias. M. as
aceita em parte, porm, de uma forma ou de outra, acaba sempre retornando para as
"suas canes".
Importante destacar aqui, que um aspecto sempre reincidente na vida de M. foram as
rupturas. Inicialmente a separao dos pais. Depois o afastamento do pai. Passado um
tempo, este retorna, porm M. afastada bruscamente de sua me e, do que fora at
ento, o seu ambiente de vida. Para completar, a rotina de trabalho do seu pai exigia que
este passasse sempre seis meses por ano na Frana. E ele o fazia levando M. consigo.
Resultado: tornava-se impossvel para ela completar um ano letivo sequer na escola
especial que freqentava. Sempre novas readaptaes tinham que ser feitas em seu
cotidiano e, o prprio processo teraputico era regularmente interrompido.
Em conversa com o pai, a musicoterapeuta lhe alertou para as conseqncias negativas
que este tipo de rotina trazia a M. E, de fato, conseguiu convenc-lo a mudar este
esquema: desde ento, M. passou a acompanh-lo somente em suas frias escolares,
Pela primeira vez ela podia completar um ano letivo e as sesses de Musicoterapia se
seguiram sem a habitual interrupo de um semestre.
Mudanas significativas se fizeram notar em M. desde ento. De um modo geral, ela
passou a se mostrar mais equilibrada e concentrada. A sua atitude obsessiva em relao
as Cantigas-de-roda se diluiu consideravelmente. Ou seja; no necessariamente todas as
`suas cantigas' precisavam ser cantadas a cada encontro e de forma repetida - como
M. no s mostra-se satisfeita com a figura, como faz questo de lev-la para casa .
Em sesses seguintes ela volta a pedir para a co-terapeuta fazer o mesmo desenho. S
que, a cada vez com novas variaes, todas determinadas exatamente por ela.
Como exemplo, M. pede para que ela desenhe: a 'Terezinha', `o gato', `o pau no gato', `a
mame do Cear', `o papai', `a M. ` . Em combinaes variadas, todos eles devendo
estar contidos no interior do `atireio' .
Estes desenhos eram sempre intercalados por momentos em que as cantigas voltavam a
ser cantadas e danadas. Nestes momentos M. mostrava-se sempre muito compenetrada,
as vezes sria, pensativa. Sempre uma ntida mudana ocorria agora em sua expresso.
A musicoterapeuta Regina Brando passou a aproveitar estes momentos tambm para
conversar com ela verbalmente sobre sua me, sua histria.
Regina Brando observou que comeou a se desencadear um processo novo. M. passou
a se mostrar mais livre na sua forma de se expressar: o contato corporal ganhou novas
dimenses dando margem inclusive a diferentes brincadeiras improvisadas na sesso e
das quais ela participava com alegria; o contato `olho no olho' passou a ocorrer
naturalmente; M. mostra-se mais relaxada, com um sorriso mais aberto, dando boas
gargalhadas de vez em quando; apurando o seu humor cada vez mais, ela passou a fazer
piadas e caretas nas sesses, sempre com muito charme. Outra novidade que ela
comeou a desenvolver uma relao muito interessante de explorao do teclado.
Vrias observaes podem ser feitas a partir deste caso.
De acordo com a interpretao de Bouth (1989)*3, atravs das Cantigas "Ciranda,
cirandinha" e "Nesta rua" a criana pode expressar "...a ansiedade diante de separaes
e tentativas da elaborao do luto pela perda da relao me-beb". As separaes eram
de fato uma constante na vida de M., assim como o seu afastamento artificial para longe
de sua me. Ou seja, para ela a "perda da relao me-beb" ocorreu de forma
especialmente traumtica.
Tomemos agora a colocao de Ferro*4. Referindo-se aos contos, ela afirma que estes
valeriam "como uma proposta de simbolizao, podendo ser utilizados de forma
diferente por cada criana". A certa altura do processo teraputico, a paciente comunica
verbalmente o fato das Cantigas serem dadas por sua me. Ou seja para ela, trazer as
antigas para dentro da sesso de Musicoterapia, poderia ser uma forma de trazer
tambm a sua me, e todos os aspectos da sua relao com ela e os da sua histria de
vida como um todo. A cada vez isto lhe d nova nova chance de entrar em contato com
os seus contedos mais profundos e de elabor-los.
O aspecto musical foi de grande importncia neste processo de elaborao. Desde o
incio, M. demonstrou ter uma relao intensa com a msica como canal expressivo.
Atravs das melodias das Cantigas por ela trazidas, de seus ritmos, tenses e cadncias,
ela podia compartilhar "sentimentos, sensaes e idias, numa comunicao
multidirecionada e multinivelada" ( Kenny apud. Mendona, 1996,p.37) Ora cantando,
ora tocando, ora ouvindo , ela se envolvia sensorial-afetiva e mentalmente num processo
que pouco a pouco permitiu transformaes significativas em seu modo de ser e de agir
e a ajudou a abrir novas e positivas perspectivas em sua vida. Afinal "Som move, som
forma, som muda." ( Kenny. apud. Mendona 1996,p.p. 37,38 )
Por fim, observamos o aspecto mandalar que neste caso aparece de modo bastante
explcito. Jung afirma serem as Mandalas freqentemente encontradas em condies de
"dissociao psquica e desorientao"*5. Ele chega a se referir explicitamente a casos
de crianas com pais separados.
Se considerarmos a seqncia de rupturas na histria de M. , e ao fato dela ter trazido as
Cantigas-de-roda espontaneamente, estas colocaes tornam-se ainda mais pertinentes.
Ao trazer as Cantigas, muito possivelmente ela estava correspondendo a um impulso
instintivo, numa procura por um "refgio seguro , de reconciliao interior e de
totalidade" e numa tentativa de "organizar opostos e disparidades"*6 O fato dela
solicitar a representao grfica do que j vinha fazendo musical e dramaticamente, s
veio a reinterar a sua necessidade de entrar em contato com o prprio self e de explorar
as suas formas de representao (Mandalas).
"O crculo estrutura ritualmente qualquer coisa que acontece na psique fazendo dela
uma imagem do que acontece na prpria totalidade."*7
5.5. Laboratrio vivencial na faculdade
A descrio da vivncia que se segue, refere-se a experincia de uma turma de primeiro
ano do Curso de Musicoterapia no contexto das aulas da Cadeira de " Msica em
Musicoterapia", utilizando o relato dos prprios alunos.
Cabe a esta disciplina elucidar as relaes entre a msica, os seus elementos estruturais
e os efeitos produzidos pelos mesmos nos seres humanos. Desta forma desenvolve-se e
aprofunda-se a prtica da anlise musical - importante recurso para uma atuao mais
consciente do musicoterapeuta. ( Turma do 1. ano de Musicoterapia 96, 1996)
Esta tarefa, no entanto despertou algumas dvidas entre os alunos. No intuito de
esclarec-las, foi proposto que eles fizessem anlises musicais de temas infantis, por
terem estes estruturas simples. Cada aluno escolheria uma msica de sua particular
preferncia para ento trabalhar em cima dela. (ibid.)
Esta proposta inicialmente de cunho didtico, no contexto de uma aula a priori terica,
terminou por se ampliar modificando o prprio formato da aula . Assim, da anlise
formal passo-se para as vivncias , as quais - apesar de no terem visado objetivos
teraputicos - constituram-se como experincias especialmente significativas para os
alunos. (ibid.)
"...Nos surpreendemos com o ritmo que tomamos: rumo a uma grande mobilizao
gerada por vrios processos individuais que foram desencadeados por tais msicas."
(ibid.)
Relato individual:
"No tive dvida. Quando foi pedido que trouxssemos uma Cantiga-de-roda qualquer,
no mesmo momento j sabia: `A canoa virou' . Esta sempre foi a minha preferida. (...)
Enquanto preparava a anlise musical para apresentar turma, percebi como aquele
tema traduzia a minha histria pessoal. Particularmente na poca estava bastante
preocupada com os meus familiares, e, como eu queria `remar' a vida ou `desafog-los'
. Treinava a melodia em casa no teclado e quanto mais eu tocava, mais flashes vinham
memria: como eu adorava quando eu era criana e ouvia `...foi por causa da (nome)
...' . Aquela situao de ter deixado a canoa virar por no t-la remado direito era
tima! (...) Houve tambm uma fase em que eu me dediquei a canoagem e tinha um
caiaque ao qual eu , curiosamente, chamava de canoa . Adoro remar at hoje. Embalei
o meu sobrinho vrias vezes para dormir ao som de ` a canoa... ` (...)
Chegou o dia de apresentar o trabalho. Estava agitada.(...) Era o dia da `minha canoa
` ! Comecei a falar sobre a melodia e j me emocionava. chorando bastante. Queria
muito contar todas as analogias que fiz. A professora pediu que eu tocasse ao piano. Eu
sabia que tremia muito, mas queria e precisava tocar. Pela primeira vez na vida toquei
uma msica ao piano (na presena de outras pessoas). Foi gratificante.
A professora me orientou para que no fim da melodia eu tocasse o acorde de D maior
no estado fundamental, e no como eu estava fazendo, invertido. A tudo ficou melhor.
A msica `resolveu' e `desvirou a minha canoa'. Eu sorria e chorava alternadamente e
fomos fazer a roda. Pedi a uma colega que tocasse no violo, porque eu queria brincar
com os meus amigos e com a professora.
E como ainda era gostoso ouvir o meu nome na roda... Como tudo estava mais claro...
Como eu compreendia que precisava deixar as pessoas um pouco de lado, remando
sozinhas e viver a minha vida tambm.
A `canoa virou' sempre foi , e ser a minha cantiga-de-roda mais querida e
significativa. De vez em quando, me pego cantarolando "ah, se eu fosse um peixinho..."
H uns cinco anos atrs, estava em frente ao maior lago que j vi e repentinamente
pedi a quem me acompanhava: `um dia voc faz uma canoa para mim?' `Ele s
respondeu: `Fao' . Ficamos anos sem nos ver e hoje preparamos juntos uma pequena
canoa que servir de bero ao nosso primeiro filho."
Destaquemos aqui alguns aspectos mencionados no depoimento acima.
"...esta sempre foi a minha preferida..."
A ligao afetiva da estudante com a cano data de pocas anteriores, mais
especificamente da infncia ("...como eu adorava quando eu era criana e ouvia...")
"...quanto mais eu tocava, mais flashes vinham a memria..."
O tocar e o recriar da msica rtmica, meldica e harmnicamente causou uma
mobilizao emocional que permitiu o trazer a tona de imagens e sensaes
significativas da infncia e de outras pocas anteriores, assim como, lhe permitiu trazer
aspectos de si mesma e de sua vida para a sua conscincia.
"...A msica resolveu e desvirou a canoa..."
Fica visvel como, atravs de um procedimento puramente musical (inverso do
acorde), foi obtida uma transformao emocional.
"...Pedi a uma colega que tocasse o violo, porque eu queria brincar com os meus
amigos e com a professora..."
Fica evidente a sua necessidade de compartilhar a sua experincia com os outros, e
como a brincadeira se presta perfeitamente a esta necessidade, j que o ritual ldico
ocorre a partir da formao da roda ( que uma "mandala viva" ).
Por fim , a estudante afirma:
"...Como estava tudo mais claro... Como eu compreendia que precisava deixar as
pessoas um pouco de lado, remando sozinhas e viver a minha vida tambm..."
Notamos a, como a Brincadeira-de-roda funcionou como um recurso construtivo,
ajudando-a na reintegrao de elementos da sua psique, e logo, contribuindo no seu
processo de viver a sua vida de maneira mais satisfatria.
6. CONCLUSO
Cantar, danar,sentir,pensar,compartilhar,transformar.... Quantos no so os movimentos
vitais contidos nas Cirandas infantis? E logo: quantos no so os motivos que as tornam
valiosos elementos teraputicos tambm? Ao chegar ao final deste trabalho - em que me
debrucei sobre as Cantigas e Brincadeiras-de-roda com um olhar musicoterpico- posso,
no mnimo, afirmar que so diversas as razes que justificam a sua fora e reincidncia
na Musicoterapia.
Primeiramente, devemos ressaltar que elas integram o conjunto das manifestaes
musicais do folclore - o que por si s j lhes confere um carter de autenticidade e
Por fim, gostaria de lembrar, que como facilitadores destes legados culturais, estamos
tambm contribuindo para a recostura de um processo a nvel social. Fazendo pontes e
replantando sementes que, em forma de som, movimentos e smbolos, religam geraes
e , sempre novamente, fecundam a vida subjetiva.
7. BIBLIOGRAFIA
1. ANDRADE, Mario de - Pequena Histria da Msica.
Editora Itatiaia.Belo Horizonte, MG 1980.
2. BARCELLOS, Lia Rejane M. - Cadernos de Musicoterapia vol.1.
Enelivros Editora. Rio de Janeiro, RJ, 1992.
3. BENENZON, Rolando O. - Manual de Musicoterapia.
Enelivros Editora. Rio de Janeiro, RJ,1985.
4. BRANDO E MILLECO, Regina e Ronaldo - O Cantar Humano e a Musicoterapia.
Monografia de Graduao apresentada ao CBM em 1992, Rio de Janeiro, RJ, 1992.
5. BRAGA, Henriqueta - Peculiaridades Rtmicas e Meldicas do Cancioneiro Infantil
Brasileiro.
Rio de Janeiro, RJ, 1950.
6. BOUTH, Angela M. - A Senhora Dona Sancha Descubra o Seu Rosto.
in Boletim Cientfico da Soc. Psicanalista do Rio de Janeiro - n.3 e 4: 68-89, 1989.9.
7. CAMPBELL, Joseph - The Masks of God. Primitiv Mythology.
Arkana. USA, 1987
8. CASCUDO, Camara - Dicionrio do Folclore Brasileiro.
Editora Itatiaia. Belo Horizonte, MG, 1988.
9. CERQUEIRA, Claudete M. - A Avaliao Musicoterpica como processo de triagem
da Equipe
Multidisciplinar Arte-de-viver. Monografia de Graduao apresentada ao Curso de
Musicoterapia do CBM no Rio de Janeiro em 1990.
10. CHAGAS, Marly - Musicoterapia e Psicoterapia Corporal.
in Revista Brasileira de Musicoterapia., ano II n.3, 1997.
11. CHAGAS, Marly - Ritmo, som, vida. in Energia e Cura
Revista de Cultura Vozes, ano 1984, vol.84, n. 5. Setembro-outubro de 1990.
12. DIAS, Rosa M. - Nietzsche e a Msica.
Imago Editora, Rio de Janeiro, RJ, 1994
13. FERRO, Ana - A Tcnica na Psicanlise Infantil.
Imago Editora, Rio de Janeiro, RJ, 1995.
22.Nesta rua*
23. O Ba**
24. O meu chapu
25. O Pinho**
26. O trem de ferro
27. Pai Francisco**
28. Passarinho da lagoa**
29. Periquito Maracan**
30. Piaba
31. Pirulito que bate bate**
32. Por de trz da bananeira
33. R, r,r minha machadinha**
34. Rebola chuchu
35. Samba Lel**
36. Sapo Jururu*
37. Seu Juca
38. Seu Lobo**
39. Senhora Dona Arcnjila**
40. Senhor Caador
41.Tengo, tengo, tengo**
42. Terezinha de Jesus**
43. Vamos menina, vamos**
44. Voc gosta de mim ?**
*Bibliografia item 5 **Bibliografia item 21
AGRADECIMENTOS