Terceiro Abc Da Vida Espiritual
Terceiro Abc Da Vida Espiritual
Terceiro Abc Da Vida Espiritual
INTRODUÇÃO 5
Oração Vocal 10
Analogias 13
Do conhecimento de Deus 18
Sobre a mansidão 19
Acalmar o espírito 21
O Mergulho em Deus 34
As águas da graça 41
A prisão do amor 43
A oliveira 46
Casulo e borboleta 47
O que é humildade? 49
Louvor da humildade 56
Deus 58
As criaturas 59
Alegria e dor 59
Amante e amado 60
Seguimento de Cristo 61
Oração permanente 62
Da perseverança 64
INTRODUÇÃO
Adolfo Temme
5
1° Capítulo: CAMINHO E META DA ORAÇÃO
CONTEMPLATIVA
7
Sobre os nomes do dito exercício
Este exercício, por ser tão especial, tem muitos nomes, tanto
na Sagrada Escritura, como nos livros dos Santos e Doutores.
Alguns lhe dão o nome de “Teologia mística”, isto é, teologia
misteriosa, porque nosso bom Mestre Jesus Cristo a ensina no
oculto esconderijo do coração. Este magistério, Ele o reservou em
grande parte para si mesmo e, neste campo, deu aos servos menos
poderes do que em todas as outras áreas do saber.
Acontece que existem dois tipos de teologia: uma é a teórica e
pesquisadora, o que é a mesma coisa, e a outra é oculta: é desta
que este livro trata. Não é que eu me atrevesse a ensiná-la, porque
nenhum mortal é capaz. Cristo reservou para si o encargo de
revelar a teologia misteriosa desta ciência divina para aqueles
corações que Ele habita. A teologia mística, da qual falamos, não se
alcança por raciocínios e argumentos e, sim, pelo amor dedicado e
pelo exercício das virtudes que purificam as almas e as preparam
para Deus. Ela necessita das virtudes teologais e dos dons do
Espírito para alcançar os três degraus, a saber, a purificação, a
iluminação e a perfeição. O que vale para animais, tanto mais se vê
no homem: Quando o saber é pouco, o amor e a afeição são tanto
maiores. Isto se vê nas crianças que mostram mais amor aos pais
quando ainda não usam a razão. A mesma coisa acontece com os
noviços que, no primeiro ano, na sua singeleza, têm mais fervor do
que quando se tornam doutores.
Disto resulta que este tipo de alta teologia não carece de
ciência, embora não dispense o saber divino infuso, que na verdade
não falta àqueles que se aplicam a ele. Eles sabem pela fé que
Deus é sumamente amável e que Ele é a perfeição do amor. Se a
nossa afeição for purificada, provada e pronta, nada impede que ela
se transforme Nele, que se inflame Nele e se eleve a Ele, que é o
fundamento e o solo, ou melhor, a fonte do amor.
Este tipo de oração também é chamado arte de amar, porque
sem amor não se realiza, e ela faz crescer o amor mais do que
todas as outras artes. Cristo, Deus de amor, ensina-a àqueles que
têm um coração cheio de amor. Às vezes, nós vencemos pela arte,
quando pela força não poderíamos vencer, como aconteceu com
Davi, que venceu Golias não pela força e sim pela sua arte. A
mesma coisa se vê no caçador que vence o elefante pela arte. É
por isso que o nosso exercício se chama arte, porque com suas
poucas forças vence o Onipotente, leva-o preso ao seu interior e
prende-o com algemas, como diz a noiva dos Cantares “Eu o
segurei e não soltei mais”.
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Esta oração também se chama arte de amar, porque ela é
forte como a morte que a todos vence. Nisto se vê que o exercício
da contemplação contém arte e força ao mesmo tempo, as duas
coisas indispensáveis para dominar qualquer dificuldade.
Também lhe é dado o nome de União, porque o homem,
quando se une a Deus, com Ele se torna um só Espírito pela
permuta da vontade. Nem o homem quer outra coisa do que Deus
quer, nem Deus se separa do querer do homem. São unânimes em
tudo como criaturas que se unem a tal ponto que, de certo modo, se
anulam para formar um terceiro ser. É assim que acontece neste
processo em que, de início, Deus e o homem têm um querer
distinto, mas, no fim, as vontades consentem em tudo, de modo que
já não há o menor descontentamento. Esta união faz com que o
homem também se una ao seu próximo. De modo que, se todos
nós estivéssemos neste estado, a multidão dos fiéis seria um só
coração e uma só alma no Espírito Santo, que procede do Pai e do
Filho. Assim, o Espírito Santo nos une no amor para nos encher de
graça e para nos entregar a Deus como um todo, de modo que não
precisa conduzir um por um a Deus.
Este exercício também é chamado de submersão, porque ele
entra na escuridão e na profundidade. Sua base está no fundo e na
interioridade do coração humano, que por natureza é obscuro. Quer
dizer: quando estiver privado do saber humano e, portanto, estiver
totalmente no escuro, o Espírito de Deus há de pairar sobre suas
águas e dizer: Faça-se a Luz!
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2° Capítulo: TRÊS MODOS DE ORAR
Oração Vocal
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em poucas palavras ela prova a boa vontade do Senhor de atender-
nos. Em breve, nos será dado o que em breves palavras pedimos.
Se Ele não quisesse atender-nos logo, iria entreter-nos com mais
palavras. Mas, sabendo que nosso bom Pai tem mais cuidado com
seus filhos queridos do que eles próprios, Ele encurta o pedido para
estender logo a mão que nos presenteia.
11
afastar-nos das coisas mais elevadas. Por isso, não estranhe, se no
primeiro ano quase não surge devoção na meditação. Mas depois
ela vem com tanta força que preenche nosso coração quase o dia
todo, e a pessoa vai ver que um dia assim vivido vale mais do que
um ano cheio de oração vocal.
Analogias
13
Como devemos lidar com o sono
15
Isto vale também para a mais alta percepção espiritual. O
clarão, que procede da capacidade natural do nosso espírito, junta-
se com a luz divina e celeste, e, assim, somos capazes de
reconhecer coisas que nunca vimos. Com Davi podemos dizer:
“Com tua luz vemos a luz” (Sl 36,10). É a fé que ilumina o ser
humano, sua luz se junta com a luz de nossa alma pelo
consentimento e pela entrega com que a recebemos. E, nesta luz
dobrada, reconhecemos, na fé, as coisas eternas que são desejo
natural da alma pois ela sempre busca o melhor.
Quem medita sobre isto fortifica sua fé na nova luz das
verdades e ganha santos pensamentos, tanto da Escritura, como
das coisas criadas. Ele aproveita a Luz dos sentidos da alma e abre
os olhos do coração, i.é, ele presta atenção nas mensagens dos
objetos e das suas alegorias. E assim ganha conhecimentos mais
profundos.
Outros não vão pela via da meditação, porque são
conscientes de como é fraca a sua luz natural, em comparação com
a luz de Deus. Eles desistem de servir-se da luz própria que, na
verdade, é importante diante da glória e da grandeza da divina
majestade e lembram o primeiro capítulo do Apocalipse, onde São
João relata sua visão de Cristo: "Sua face era como sol. Ao vê-lo,
caí morto a seus pés” (Ap 1, 16-17).
João caiu como morto, porque, como diz o filósofo Aristóteles,
a percepção destrói o órgão perceptivo, quando esta for forte
demais. Sabemos, por experiência; um som muito alto ensurdece o
ouvinte e, quando miramos diretamente o sol, ficamos cegos pelo
seu esplendor. Se tocamos um ferro em brasa, queimamos a mão e
já não podemos pegar em nada. Portanto: quando o objeto da
percepção ultrapassa a nossa medida, ele destrói o sentido que
para ele se volta.
Nas almas dos santos, acontecem revelações que poderiam
destruir a inteligência. Mas, como esta é indestrutível, elas
anestesiam, por assim dizer, para que pare seu funcionamento. É
por isso que S. João diz que caiu como morto aos pés do Senhor,
quando viu o seu rosto que brilhava como o sol. Os olhos de nossa
alma se turvam, quando queremos ver o que é de Deus, enquanto
ainda vivemos no exílio terrestre. A alma sofre a sorte do mosquito,
que de noite vê a luz da chama: voa no seu rumo e queima-se.
Por isso, dizemos aos que procuram a Deus: Seja cego, surdo
e mudo com toda a mansidão. Moisés no monte abrigou-se no
escuro da nuvem que encobria o cume. Ele não viu a Deus, mas
falou com Ele diretamente. Nos Cantares, o Senhor diz para a alma
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que o ama: “Afasta de mim teus olhos, senão vou ter que fugir” (Ct
6,5).
Acontece, muitas vezes, que uma alma torna a perder uma
graça, porque queria conhecer e saber demais. Deus gostaria que
abraçássemos a Ele e seus dons, com os braços e com as asas do
coração, com tanta paixão que a curiosidade nem se desperta. O
cego pega nas mãos o que recebe, sem conhecê-lo com a visão.
Sua afeição se apoia mais no sentimento do que no
reconhecimento.
A comparação com Moisés mostra ao contemplativo: Retira o
fraco olhar de tua alma de minha majestade, porque não podes
conhecê-la. O exemplo do cego quer indicar: Não desista da
vontade de contemplar-me mas desista da arrogância de querer
reconhecer-me. “Devemos ser cegos”: isto não quer dizer que nada
reconhecemos, e, sim, que reconhecemos mais e melhor. Quem
usa óculos não é porque não enxerga nada, mas é para que
enxergue melhor. Portanto: Sê cego, para que vejas melhor. Isaac,
na sua cegueira, profetizou ao seu filho Jacó coisas mais
importantes do que no tempo em que enxergava. A cegueira fê-lo
conhecer mistérios mais elevados. Porque, quando se assustou
com o que havia feito na sua cegueira, Deus lhe revelou que era
nisto que a vontade divina se realizava e que a (aparente) injustiça
tinha que acontecer (Gn 27, 1-29).
Bem-aventurado aquele que não tem olhos, porque Deus lhe
serve de olho. Feliz aquele que perdeu os dois pés, porque Deus o
carrega, como diz o livro de Jó (29,15): “Eu era olhos para o cego e
pés para o coxo!” Aqueles que se tornam cegos para enxergar a
Deus, Ele mesmo os conduz, para que não se percam. Até vão com
mais sucesso, porque Deus os conduz em veredas desconhecidas
para uma meta que, de olho aberto, não teriam achado. É por isso
que o Senhor fala por Isaías: “Conduzirei os cegos por um caminho
que não conhecem, fa-los-ei andar por veredas que não conhecem:
na sua frente mudarei as trevas em luz” (Is 42,16).
O caminho mais distante e desconhecido é esta “via negativa”
da qual este abecedário trata. Ela tem vários ramais, exercícios
difíceis, tão desconhecidos como a via principal. Tudo isto é
obscuro para os principiantes na contemplação. Mas, quando eles
se tornam voluntariamente cegos, confiando fielmente naquele que
os conduz, o Senhor há de guiá-los da maneira que o profeta
prometeu.
Foi assim que Deus conduziu São Paulo e o elevou – assim
que cegou – até o terceiro céu, para que ali enxergasse a Deus com
os anjos e através da maneira de ver dos anjos, como disse Santo
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Agostinho. E eu afirmo que naquele dia cegaram não somente os
seus olhos, mas também cegou sua alma, porque tudo estava
desligado: os sentidos externos e internos e até sua inteligência.
Durante o êxtase, tudo estava suspenso e parou de trabalhar.
Normalmente, ninguém pode ver a Deus na condição de sua vida
terrestre. Santo Agostinho cite nesse ponto: “O homem não pode
ver-me e continuar vivendo” (Ex 33,20).
Do conhecimento de Deus
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Além disso, devemos ser mudos. Não é bom falar sobre a
réstia de luz e sobre revelações que tivermos recebido. Quem fala
assim procura a admiração dos outros. Uma coisa á agradecer a
Deus por uma graça e outra coisa é fazer os outros entenderem.
Quem não tem este dom se contente em sentir o gozo e fique
calado. Quem falou asneira se arrepende depois. Também
devemos ser mudos na oração: nenhuma palavra, nem que seja a
mais espiritualizada. Deus é doutor em todas as ciências, e Ele
gostaria que o adorássemos calados, em espírito e verdade, mas
não com palavras. Quanto maior o silêncio na oração, tanto melhor
Deus nos escuta e atende nosso pedido. Isto vemos na história de
Moisés (Ex 14,15): Embora ele orasse no maior silêncio, Deus lhe
respondeu impaciente: Porque gritas tanto? Deus dá com presteza
a quem se cala na sua presença.
Quem é mudo em geral também é surdo. Devemos ser mudos
no espírito, calando os pensamentos, e devemos ser surdos para
tudo o que vem de fora e que possa inquietar-nos. O primeiro
homem deixou-se inquietar, quando ouviu o convite do tentador.
Dali nasceu um grande mal. Nosso tentador é o prazer dos
sentidos, ao qual a inteligência não deve dar ouvidos.
Assim, podemos aplicar as três palavras “cego, surdo, mudo”:
a inteligência seja cega, a vontade seja surda para o amor das
criaturas que desvia de Deus, a memória seja muda e não traga
nenhum assunto que nos seduza falar. Assim Jesus pode entrar em
nós, não segundo a carne e, sim, segundo o espírito. Quando o
Ressuscitado veio ver os discípulos, encontrou as três portas
fechadas. Deus entra na alma pela porta do consentimento interior.
Ele só vem, se a alma se fecha para tudo, menos para Ele, e o
procura com sede ardente, conduzida por um saber intuitivo que
não liga para as coisas criadas, porque supera tudo isto.
Sobre a mansidão
19
falsidade. Não escondem o que pensam e o que sentem. São
cheios de paciência, doçura e de ânimo nobre, sem perseguir a
própria vantagem. Portanto, os mansos são mais humanos. O
homem por sua natureza é um ser manso, como se vê no
semblante. Pessoas irascíveis parecem-se mais com animais
selvagens, sem misericórdia e sem humanidade.
Os mansos, de fato, possuem os bens desta terra, porque, ao
perdê-los, não perdem a mansidão. Deixam partir em paz o que
perderam e assim mostram que não são possuídos por aquilo (Mt
5,4).
Felizes os mansos. Nas guerras deste mundo, estão
protegidos como por fardos de algodão que os defendem dos tiros
da artilharia inimiga e dos golpes de espada da perseguição deste
mundo. São como vasos de vidro envoltos em palha e feno, que
não se quebram com as batidas. A mansidão é um escudo forte que
rebate as flechas da ira e as despedaça.
Felizes os mansos. Parecem com o ímã que atrai o ferro.
Nada melhor do que a brandura para amansar corações
endurecidos. Davi, na sua mansidão, sempre de novo amolecia o
coração do seu inimigo Saul e lhe provocava lágrimas de
misericórdia.
Felizes os mansos. O Senhor não lhes fecha o seu ouvido.
Está escrito em Jt 9,16: “Sempre vos foram aceitas as preces dos
mansos e humildes”.
Felizes os mansos. Deus é seu defensor e vingador, quando
são injustiçados. Isto se mostra em Moisés: Quando Deus ouviu o
que Miriam e Aarão falavam a seu respeito, ficou encolerizado,
porque Moisés era o homem mais manso do mundo. E ele, na sua
grande mansidão, alcançou de Deus mais graça e favor do que
todos os contemporâneos. A sua santidade e brandura eram, na
frente dos outros, como a verdade comparada com o sonho e o
corpo comparado com a sombra.
Contemplação e mansidão se favorecem uma a outra e
crescem uma com a outra. Se uma faltar, a outra desaparece
também; não se deixam separar; só se encontram juntas. São como
as irmãs Marta e Maria que se amam muito e que recebem o
Senhor em casa. Elas se ajudam para servir o Senhor da melhor
maneira.
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3° Capítulo: PÕE TUA MENTE EM ESTADO DE PROFUNDO
REPOUSO E SILÊNCIO
Acalmar o espírito
21
com a consciência acusadora. Quem segue este conselho no seu
agir, em breve, terá pacificado o seu espírito, porque o seu coração
não o acusa de nada.
O homem sente-se bem numa casa boa e, ainda mais, numa
consciência tranquila. Os que temem o Senhor aqui vão entrar,
quando em silêncio avaliam o seu agir. Aqui vão achar um lar e boa
companhia. O diálogo com a boa consciência é sem amargura,
porque não há acusação. Antes, como diz o Apóstolo, lhe serve de
glória, e o homem se alegra dos bons frutos que procedem de sua
vida, como os filhos nascem de um matrimônio abençoado.
Mas o repouso do espírito vai além da serenidade da
consciência. É precisar guardar os mandamentos da vida. S.
Gregório Magno ensina: Para o homem alcançar o prêmio da vida
eterna, é preciso que ele guarde já na terra a regra básica da
salvação futura. Isto vale para a boa consciência de qualquer um,
mas de modo especial para o contemplativo que não pode onerar o
seu pensar com preocupações nem deve dar ênfase aos
acontecimentos do cotidiano e assustar-se com eles. Que ele viva o
momento e não chame os cuidados de amanhã para hoje.
Já dizia Sêneca: Não antecipes tua miséria e não andes ao
encontro do teu azar, imaginando o mal, antes que aconteça. É
melhor que digas: talvez terei sorte. Não faças conjeturas, criando
fantasmas. Abandona os negócios que se podem evitar. Não
procures o que é teu, e, sim, o que é de Jesus Cristo. Imagina que
es um espargo que bota a cabeça para fora da terra: como é
modesto.
Ocupa-te pouco com a tua pessoa para te ocupar totalmente
com Deus. Considera-te inferior, para te livrar da busca de sucesso
e para achar a verdadeira paz na humildade, que não teme a queda
nem espera subir. Não te importes com eventos mundanos, se
quiseres alcançar o repouso. Não interessa conquistar conhecidos e
amigos. Se procuras a paz profunda, não perguntes se outros te
apoiam ou rejeitam. Confia plenamente que nosso Deus e Senhor,
se entrares no silêncio, vai assumir tua causa. Não temas o prejuízo
nem ames o lucro: Não te faltará o necessário para viver. Não há
lucro que te deixe sem outro desejo. O lucro material pode ser
perda espiritual. Reconheça para o bem do teu descanso interior:
Ninguém pode roubar tuas virtudes, e teu vícios nada podem contra
a tua vontade decidida.
22
De como fazemos a nossa mente silenciar
24
viva que é o Senhor; quando cessam as palavras e as obras
começam; quando a alma se cala, porque não tem mais o que
pedir, satisfeita em todos os desejos; quando o Senhor se cala,
porque já não encontra defeito naquele que tanto amor lhe
demonstra: na verdade, é inefável este silêncio.
Quando a alma se encontra toda casta e provada pelo amor,
toda entregue ao Criador; quando sua pureza abriga o Senhor que
lhe perdoa todo pecado e deixa branca como a pomba, lavada com
o leite imaculado de sua graça; então ela dorme, porque o pensar já
não a perturba. Mas o seu coração vigia, porque o amor jamais
adormece naquele que ama. É só o intelecto que dorme, e a
vontade descansa, porque está com Deus e se tornou um só
espírito com Ele. Assim ela vive o Domingo dos Domingos, o
repouso do Senhor, porque o descanso de sua imaginação produz
a paz da vontade, que, incendiada e absorvida pelo fogo que não se
acaba, já não precisa da lenha da meditação para manter viva a
chama do amor.
A rainha de Sabá e o rei Salomão, em silêncio reservado,
trocavam maravilhosos presentes de amor. Deus fala ao coração,
não com palavras e sim com angélicas batidas de asa. Tais sinais
falam mais alto do que todas as palavras. Deus e a alma dormem
juntos, como amigos íntimos no albergue. E o amor os tornou de tal
maneira semelhantes que já não são distintos: tanto assim que se
atribui a um o que o outro faz.
25
é passageiro. Eles não se apegam ao que é terrestre e gozam de
grande paz na sua alma.
O segundo tipo de silêncio é como aquele repouso espiritual
no qual Maria se pôs aos pés do Senhor e (com o salmista) falou:
“Quero ouvir o que diz meu Senhor e Deus dentro de mim”. Para ela
se destinavam as palavras do Senhor: “Escuta, minha filha, olha
para mim e inclina para mim teu ouvido, esquece o teu povo e a
casa do teu pai”.
Este segundo tipo de silêncio é como o ato de ouvir, porque o
ouvinte não somente cala sua boca e, sim, faz calar tudo em si; só
assim poderá atender realmente ao que fala para ele; ainda mais
quando não sabe onde este se encontra, como é o caso, neste
segundo tipo de silêncio. Porque o Evangelho nos diz: Ouvimos a
voz de Deus e seu apelo, mas não sabemos de onde vem nem para
onde vai. É por isso que devemos manter o máximo silêncio e a
maior atenção. Resumindo, temos dois tipos de silêncio: o primeiro,
quando pensamentos e imagens param de circular na nossa
cabeça, e o segundo, quando nos esquecemos de nós mesmos, em
total atenção do homem interior a Deus somente.
No primeiro silêncio, as coisas emudecem para nós. No
segundo, nós mesmo emudecemos em profundo repouso e nos
abrimos para Deus em humilde entrega. Esta se parece com os
santos seres alados que Ezequiel descreve; “Ficavam parados e
erguidos, baixando as asas, como se ouvissem uma voz vinda do
firmamento acima de suas cabeças”. Esta voz é a divina inspiração,
que o ouvido de nossa alma só capta, quando sente a presença de
Deus. É por isso que Elifas (no livro de Jó) diz que lhe foi
confidenciada uma palavra oculta e ele só percebeu o sopro de um
sussurro. Esta voz da inspiração aparece acima do firmamento, na
parte superior de nosso espírito que se une diretamente com Deus
no amor. Os santos seres alados são os contemplativos. Eles estão
parados, porque, quando a voz ressoa na alma, esta se levanta
para grandes obras e entra em Deus como aconteceu aos
apóstolos, quando viram o Senhor subir ao céu. Também Ezequiel
recebeu a ordem de colocar-se de pé, porque Deus estava falando.
Estar de pé diante de Deus é adoração silenciosa, em total
dependência de Deus. As forças da alma quase paralisam sua
atividade, porque a alma tem que ser calma e humilde, para que
possa receber sabedoria. O rebaixar de asas significa que outras
forças superiores da alma se ativam para captar a divina inspiração
que ela recebeu. Orantes contemplativos sabem que suas próprias
forças não são adequadas para isto. Em silêncio, entregam a Deus
o que é seu, para receber dele o que lhes faltar. O salmista diz:
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“Minh’alma não se consolou. Lembrei-me do Senhor e me alegrei.
Não me apartei dele, e o meu espírito foi suspenso”.
O terceiro tipo de silêncio realiza-se em Deus, quando toda a
alma está transformada em Deus e em plenitude goza de
amabilidade. Nela adormece, como a noiva dos Cantares
adormeceu na adega, e ela se cala, porque já não tem nada a
desejar. Até de si mesma a alma está suspensa, porque se esquece
da fraqueza da natureza e se vê toda divinizada: unida a Deus,
revestida do seu esplendor como um segundo Moisés, que sai da
nuvem que circunda o monte. O apóstolo São João experimentou
coisa ainda mais profunda: faltavam-lhe todos os sentidos, quando
depois da ceia repousou junto ao peito do Senhor.
Neste terceiro tipo de silêncio pode acontecer que a nossa
mente emudece tanto, ou melhor, tanto mergulha que não entende
nada do que se fala ao redor e não pode apreciar o que acontece
em volta dela, porque não compreende o que ouve. Um homem
experimentado me falou entre outros segredos: Acontece durante
uma pregação que eu não entendo uma única palavra, e nenhuma
criatura consegue tomar forma em mim. Quando falei que seria
melhor procurar a solidão, ele respondeu que o falar ressoa para
ele como a música polifônica, e a alma se alegra apesar de não
entender nada. Ele tem a impressão de estar cantando o
contraponto, louvando o Senhor de um modo que se sente e não se
pode explicar.
Não afirmamos que a consciência deve se calar e, sim, a
mente. Ricardo de S. Victor diz: O entendimento das coisas
invisíveis pertence à consciência pura. E esta consciência pura se
manifesta, quando o espírito permanece na mais alta verdade sem
mistura de pensamentos figurado. Para chegar até lá, tu deves
aprender a recolher os “filhos dispersos de Israel” e acabar com o
vagar das lembranças e imaginações. Acostuma-te a permanecer
na tua profundidade e de esquecer tudo o que vem de fora, se é
que queres a contemplação das coisas celestes e a experiência de
Deus. Ricardo de S. Victor diz ainda: A consciência pura não
percebe as coisas invisíveis de Deus com a inteligência, que
reconhece coisas ocultas e ausentes, partindo de causa e efeito. A
consciência pura reconhece as coisas sobrenaturais na imediatez
de nossa visão corporal, com a qual enxergamos coisas materiais
presentes. Só que ela reconhece na visão o seu conteúdo espiritual,
sabendo que este não depende de figuras externas nem se prende
a elas.
Assim, acontece que o contemplativo não usa sua imaginação
que projeta coisas materiais nem usa o intelecto que procura captar
27
objetos espirituais e corporais pela lei de causa e efeito. Antes, o
contemplativo tem Deus diante dos olhos, o espírito puro, livre de
toda a projeção. Se o orante permanecer nesta atenção depurada
sem pensar em outras coisas, pode-se dizer que ele está no estado
de consciência pura, espiritual.
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O não-pensar é mais do que parece. No fundo não dá para
explicar o que é, assim como Deus, que é seu alvo, não é
explicável. Pensando em nada, pensamos na verdade em tudo,
porque, sem sequência de pensamentos, pensamos naquele que é
Tudo por sua glória maravilhosa. Ao menor sinal deste não-pensar
surge no contemplativo uma atenção simples e fina, voltada
unicamente para Deus. Gerson chama atenção para o seguinte:
“Aqui o diabo não pode fazer nada, porque ele sempre utiliza os
sentidos”. O não-pensar é uma entrega a Deus. O homem solta-se
e liberta-se para voar com seu coração até Deus, que o deseja
inteiro e sem divisão.
Este modo de rezar pode-se encontrar num antigo filósofo ou
num judeu. Uma coisa boa não perde sua força pelo fato de servir
também para não cristãos. Ele age conforme a índole de cada um e
conserva o seu valor.
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assim sentes vários toques que não sei descrever. Tu sentes uma
coisa, mas não sabes quem tocou em ti. Ouves palavras ocultas no
intimo, que são fora de dúvida, mas que não sabes repetir. É desta
forma que Ele está contigo e dentro de ti, Ele que pede pela tua
mão.
O mesmo monge explica também o que acontece no fundo do
recolhimento: as palavras percebidas são inefáveis, porque são
antes moções do que palavras; por elas o Espírito Santo se
comunica conosco e atesta ao nosso espírito, como diz o Apóstolo,
que somos filhos de Deus e nele confiamos como filhos. Ele é
nosso Pai que nos trata bem e tudo providencia.
Esta é a vantagem deste exercício que não dá valor a
revelações ou mensagens, mas unicamente à verdadeira
experiência espiritual que – como diz Gerson – te dá um
conhecimento imediato; não pelo pensamento lógico e, sim, pela
percepção daquele que está presente na alma. Com isto, a mente
se acalma de tal maneira que desiste de investigar.
No mundo exterior existem palavras e ações. No mundo
interior é a mesma coisa. No lugar das palavras surgem
pensamentos e argumentos. No lugar das ações, entra a atenção
intensa e viva que voltamos unicamente a Deus com o amor, a
afeição e a moção interior que a alma a Deus oferece por nossa
vontade. Nosso exercício tem aqui seu fundamento. Por isso, o
Senhor não nos responde com palavras, e sim com ação ou moção.
Ele sabe que o contemplativo só reage assim, porque pôs sua
mente no silêncio a tal ponto que balbucia como o profeta e se
extasia como a rainha de Sabá que admirava a glória de Salomão.
Quem silenciou a mente completamente, chega a ponto de
não saber mais o que está rezando. Ele vai receber graças que
superam o entendimento. Hugo de S. Victor faz a alma falar como
se fosse a esposa de Deus: “Quem é que me toca de vez em
quando e me encanta com doçura apaixonada? Já começo a ficar
arrebatada e não sei aonde sou conduzida. Meu espírito se enche
de felicidade, esqueci toda a dor, meu coração se inflama, todos os
meus desejos se cumpriram. Sinto no meu interior o abraço do
amor. Não compreendo o que acontece comigo, mas me esforço
para não perdê-lo jamais. Minha alma luta para que não fuja aquilo
que ela gostaria de abraçar para sempre. Será que é o meu
Amado? Diga-me, por favor, para que eu saiba. E se ele voltar, vou
suplicar que ele não saia, que Ele fique para sempre. Na verdade,
minh’alma, este é teu amado que te visita. Ele vem de maneira
invisível, ele vem ocultamente para te tocar”.
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Com estas palavras, Hugo mostra que a mente não volta os
olhos de sua percepção para Deus, por causa da claridade que
brilha do seu rosto, quando desce do Monte da Glória para se
comunicar com os vivos no vale das lágrimas. A mente não pode
voltar seus olhos para Deus. Só a morte tira de nossa face o véu da
fé que esconde o Divino. Enquanto isto, o nosso exercício é este
que Gerson recomenda: “De maneira inefável, une a tua alma com
aquele que é inefável e irreconhecível”. É isto que treinamos: Entrar
no silêncio! E fechar o espírito dentro de nós! Esta é nossa tarefa.
Esforcemo-nos com toda a nossa paixão para alcançar. Entra na
solidão e supera-te a ti mesmo, se puderes. Se não o conseguires,
apesar do esforço, não fujas para o alívio da leitura ou da conversa.
Se o silêncio se tornar um peso e o repouso ficar aparentemente
sem fruto, vence o desânimo com perseverança esperançosa,
porque Deus não vai desprezar tua alma. Certamente, há de
mostrar sua misericórdia, se o procuras cheio de confiança e se
invocas o seu nome.
31
Este tipo de recolhimento não é para principiantes. É uma graça,
porque a alma sente grande bem-estar, embora a experiência seja
somente de algo agradável. Há outro tipo de recolhimento, onde a
mente colabora ativamente. A pessoa vigia com cuidado sobre a
manutenção do recolhimento, prestando atenção no que acontece e
se esforça para não sair fora. Os avançados adquirem grandes
experiências. Pode acontecer que o recolhimento contemplativo
leve ao total esquecimento de si mesmo. Os que rezam deste modo
não sabem mais onde estão. Quando voltam a si, por acaso,
perguntam à sua consciência de onde veio, o que fez e o que
experimentou. Mas não recebem resposta. Este tipo de
contemplação pode tornar-se normal para os avançados. Mas eles
devem evitar interesses e tumultos mundanos.
Finalmente, há outro tipo de recolhimento, onde a alma se
tranca dentro do corpo como numa caixa segura e se alegra com o
próprio calor espiritual, livre dos cinco sentidos, como se estes não
existissem. Ela não entende nada que se possa explicar, mas se
deleita como uma criança no seio da mãe e não quer saber de nada
que a possa distrair: nem olhos nem ouvidos nem uma porta para
sair.
Em todas estas modalidades de contemplação, a mente não
silencia a ponto de ser passiva de urna vez. Sempre resta urna
faísca, o suficiente para o orante perceber que experimenta algo, a
saber, Deus. A mente registra calmamente o que acontece, de
modo que a inatividade é aparente. Mas, na verdade, a alma
gostaria de morrer e perder-se total mente em Deus. Assim, há
momentos em que a mente parece que não existe, como se a alma
não fosse um ser espiritual. Depois, ela descobre de novo a faísca
viva do saber simples e se maravilha das grandes graças que
recebeu pela parada total do pensamento. Ela se dá conta disto,
quando volta para a vida comum e sai da neblina, mas não sabe de
onde e como recebeu a graça. Para receber ainda mais, ela
gostaria de recolher-se de novo e desligar todo entendimento. Por
isso, mergulha nas águas profundas e volta com o desejado. A alma
não sente o tempo passar, e uma hora é como um respiro. às
vezes, a experiência quer escapar do coração. Aí, só há um jeito
para segurá-la: recolher-se de novo na profundidade.
Às vezes, acontece ao contemplativo avançado que ele
recebe a graça de, ao mesmo tempo, poder pensar algo. Mas, se
ele se distrai demais com isto, a graça se desfaz e o abandona no
meio dos pensamentos. É melhor receber a Deus no oculto, como
que no escuro. Ele é amante da solidão e se esconde no escuro.
Tua imaginação e tua mente têm que repousar. Não permitas lhe
32
nenhuma atividade, seja o que for. Mesmo quando percebes que o
Senhor quer se comunicar contigo, não digas palavras de amor
para Ele; a alma alegra-se com isto, mas é melhor recolher-se e
mergulhar cada vez mais. O coração que se orienta para Deus quer
abraçá-lo. E isto se faz melhor pelo amor calado. Muitas vezes, Ele
quer que o deixemos agir sozinho em silêncio. Só que pode
acontecer que nos encontremos em tamanha fraqueza que é
preciso recorrer a toda ajuda de fora e de dentro para alcançar a
adoração silenciosa. Melhor é renunciar a todo esforço e
permanecer na veneração. Porque então é Deus quem age, e teu
ardor humilde e receptivo alcança mais do que pensas, porque este
se une mais intensamente com Ele que é sua salvação.
33
migalhas que caem da mesa dos senhores (Mt 15,27). Observa
bem como o cachorro, ao lado da mesa, é atenção total, tanto
assim que só falta pular em cima. Além da atenção total, ele dá
gemidos que indicam o que ele quer. Portanto, se tu vieres à mesa
da oração que São Francisco chamava de “távola dos seus irmãos
espirituais”; se te aproximares desta mesa na qual o Senhor vai
cear com os seus, esquece de tudo, como faz o cachorrinho, e não
tenhas outros anseios e desejos. Orienta o homem interior e
exterior totalmente para aquele que está à mesa, a saber, Deus. E
guarda o silêncio, como convém na ceia.
Se ainda não receberes o que desejas, a esperança no teu
coração solte gemidos com a voz, sem palavras, para que no
silêncio da palavra a obra interior comece a orar, porque está
escrito: “Deus não deixa morrer de fome as almas dos justos” (Sb
10,3).
Além disso, Davi diz que se exercitava, porque esta oração
exige exercício. E varria o seu espírito, o que indica a purificação da
alma. O ato de varrer tem que ser bem feito, de modo que não fique
nenhuma poeira de pensamentos humanos que não seja expulsa
pela santa vontade, que se faz de vassoura, enfaixada e amarrada.
O que foi dito aqui é confirmado pelo abade Isaac
(Cisterciense inglês que atuou na França pelos anos 1100) que
explicou como Jesus deseja que rezemos: No quarto silencioso
devemos suplicar a Deus, logo que tivermos expulsado do coração
todo o barulho de pensamentos e preocupações. De maneira oculta
e confiante, expressamos a Deus nossos pedidos. Oramos com a
porta fechada, se fecharmos os lábios e em silêncio suplicarmos o
perscrutador do nosso interior, não com a voz, e, sim, do fundo do
coração. Nós rezamos no oculto, se expressarmos nossos pedidos
unicamente com o coração e com a alma totalmente voltada para
Deus. Se rezarmos assim, os poderes inimigos não podem saber o
que estamos pedindo. É por isso que devemos rezar em silêncio
absoluto.
O Mergulho em Deus
34
silêncio, antes acrescenta um olhar atento sobre o homem
silencioso, como é o caso de alguém que se cala de propósito,
consciente e teimoso. O ser humano tem que aplicar todas as
forças para conquistar o Reino dos céus.
Há gente que faz tanto esforço que fica com grande dor de
cabeça, e os olhos começam a lacrimejar, seja pelo cansaço da
mente, seja pela repressão das forças vitais.
Isto não dá para aguentar muito tempo. Aplica com
moderação o que foi dito, porque se a dor de cabeça aumentar, a
pessoa vai relaxar na contemplação e vai ter que contentar-se com
o puro e simples recolhimento. Este tipo de cansaço não pode ser
remediado nem pelas forças da alma nem pelos sentidos, nem por
uma atenção orientada. Permanece em calma tranquilidade que
deixa o coração como que dormindo. Assim vai passar a dor
causada pela oração.
O que podemos dizer sobre a graça que se recebe neste
duplo exercício? Ela inflama a vontade, como se ardesse no peito
um fogo manso, que não se deixa expressar em palavras. A mente
é tão clara e lúcida, como se tivesse achado a chave de todo o
saber. Mas este saber parece reduzido a uma única frase ou a uma
única palavra, cheia de sentido. E porque este saber não é prolixo,
e o coração não se derrama nele. Ele não vem nem por via de
revelações nem por visões alucinantes: a inteligência espiritual é
tão iluminada que os agraciados, quando pensam em Deus, quando
falam ou escrevem sobre ele, rapidamente e com leveza expressam
grandes verdades. A memória é serena, e ela não procura isto ou
aquilo: com facilidade lembra o que visa no momento. No peito, e às
vezes no corpo todo, surge um sentimento como se o espírito vital e
as forças humanas se recolhessem para dentro. E o que é mais
importante, a pessoa sente um crescimento maravilhoso, no qual o
espírito se alarga como uma luva no qual se sopra. O peito cresce e
alarga-se além do seu tamanho natural para dar lugar à graça. Este
crescimento não causa dor, antes é assim: quanto maior a
extensão, tanto maior a felicidade, porque a unção recebida faz o
corpo ceder mansamente. Estas graças não se alcançam com
facilidade nem rapidamente. Primeiramente, temos que passar
muitos anos com a oração interior. Este livro, que ensina o
mergulho, pode servir para isto.
35
4° capítulo: FORMAS E IMAGENS DA GRAÇA
36
criaturas prejudicassem a contemplação, a escritura não poderia
dizer que elas lutarão no dia do juízo contra os maus, colocando-se
do lado do Senhor que os criou (Sb 5,20-23). Se for assim, é claro
que não é para nos impedir e sim para nos ajudar. O que é corporal
foi feito para ajudar o espiritual, de modo especial para ajudar a
alma, que precisa partir do corporal para elevar-se às coisas
invisíveis de Deus.
As criaturas não somente ajudam aos homens, mas também
aos anjos que, conforme Agostinho, quando foram criados,
cresceram no conhecimento de Deus, enquanto contemplavam,
uma após a outra, as obras dos seis dias. Do mesmo modo, nós
subimos e descemos a escada, cada um de sua maneira, que é
feita da ordem das coisas criadas. A gente sobe para o
conhecimento do criador e desce para o conhecimento de si
mesmo. Somente Deus permanece imóvel no topo da escada,
porque ele está cheio da luz de si mesmo. Ele não desce, porque
contém todas as coisas em si; nem Ele sobe, porque o seu
conhecimento próprio não pode aumentar: Se é que as coisas
criadas formam uma escada na qual os pés dos sábios sobem até
Deus, muito mais nos faz subir a Santa Humanidade de Cristo, que
é caminho, verdade e vida. Ele veio para que tivéssemos a vida em
plenitude: para que, aproximando-nos da sua Divindade e tornando-
nos semelhantes à sua Humanidade, pudéssemos alcançar a nossa
vocação.
A lgreja canta este mistério: Pelas coisas visíveis conhecemos
a Deus, para sermos atraídos ao amor das coisas invisíveis, se as
outras coisas visíveis nos elevam para o amor de Deus, a Santa
Humanidade nos arrebata de uma vez. É por isso que o profeta
Ezequiel comparou a Face de Cristo com a beleza de um diamante
luminoso e com a pedra de fogo, da qual a contemplação tira, com
um leve toque, a forte faísca do amor que incendeia os corações
inflamáveis e preparados.
Disto nos dá testemunho o apóstolo Tomé que achou cura
nas chagas de sua alma ao tocar as chagas do Senhor. Ele chegou
ao conhecimento da Divindade de Cristo que desde então começou
a proclamar.
Embora as coisas criadas contenham em si a verdade plena,
achamos nos escritos a advertência que é melhor para os
contemplativos distanciar-se de tudo que é criado e da Santa
Humanidade de Cristo, para alcançar as coisas puramente
espirituais, de um modo mais perfeito. Bonneval diz: “A plenitude da
presença divina não podia entrar em ação, enquanto Cristo estava
presente aos apóstolos de forma corporal”. Bernardo, Gregório,
37
Agostinho e Gerson e outros escreveram que o Senhor subiu ao
céu para poder mandar o Espírito Santo. Eles dizem também: Os
apóstolos estavam limitados no seu amor pela Santa Humanidade.
Tinham que separar-se dela para alcançar as coisas mais sublimes.
Só assim podiam esperar a vinda do Espírito Santo que os
ensinaria a reconhecer Cristo de modo verdadeiro, não
corporalmente e sim no espírito.
Mas realmente não foi a Humanidade de Cristo, formada pelo
Espírito Santo, que impedia a vinda deste Espírito. O mundo pode
certamente abrigar aquilo que no pequenino ventre da Virgem
entrou, sob a sombra do Espírito. Mas podemos afirmar: foi pela
imperfeição dos apóstolos que a Humanidade de Cristo constituía
uma dificuldade. Se o Senhor afirma que precisa partir, é por causa
deles, que ainda não podiam receber toda a plenitude com coração
agradecido.
Se para os apóstolos era melhor abster-se por um pouco da
contemplação da Humanidade do Senhor para dedicar-se ao
Divino, a mesma coisa vale para outros que gostariam de elevar-se
a uma vida espiritual mais intensa. Porque em geral não se passa
de um estado imperfeito a outro perfeito sem que tenha um estado
intermediário que prepara um degrau.
Por isso, é bom deixar temporariamente o bom pelo melhor,
para possui-lo no fim de modo perfeito. Com isto nos apartamos de
nossa imperfeição. O rico separa-se da riqueza, não porque ela
fosse ruim em si, e sim por causa da avareza e das preocupações
que se ligam a ela, devido à imperfeição dele mesmo.
É assim que faz também o gavião: ele deixa sua caça para
não cansar no voo. A criança de colo é privada do leite, para que
aprenda a comer alimento sólido. O homem, porém, que
desenvolveu critério espiritual, pode comer de tudo, já que não vai
comer além da medida. Os verdadeiros contemplativos podem
abraçar tudo de um modo bem ordenado, porque para eles favorece
o que para outros é empecilho. Bernardo diz: Há dois tipos de amor:
um é corporal, e outro espiritual.
Dali se deduzem quatro modos de amar:
38
que os homens já não amassem o visível de um modo carnal, mas
que nisto pudessem crescer, até saber amar a Deus de um modo
espiritual. Quando Ele viveu com os homens e com eles falava,
estes o amavam primeiro de maneira carnal, Mas, quando quis
entregar sua vida pelos amigos, já amavam o seu espírito, se bem
que ainda de um modo carnal. Foi por isso que Pedro respondeu ao
Senhor, quando este falava de sua paixão: “Deus o livre, Senhor!
Não aconteça tal coisa!” Mas quando viram que nesta Paixão se
cumpria o mistério da redenção, amavam na paixão a carne de um
modo espiritual. Depois da ressurreição e ascensão aprenderam a
amar o espiritual de um modo espiritual e confessaram alegres:
“Nós conhecíamos o Cristo segundo a carne, mas agora já não o
conhecemos assim”.
Portanto, devemos reconhecer que o amor chamado carnal
não é ruim e que não devemos entendê-lo neste sentido pejorativo,
que em geral lhe é dado. Os quatro modos de amar são distintos
apenas por menor ou maior intimidade. Assim, aprendemos a amar
nosso Senhor de um modo cada vez mais puro e imediato, como
mostra o exemplo dos Apóstolos.
39
qualquer outra pessoa. Tu foste criado à sua semelhança como os
outros, e eu creio que tua sede de felicidade não é menor do que a
deles. Mas, se o teu progresso foi por vontade própria e não por
Deus, talvez dirás que tua idade ou tua profissão, tua constituição
ou doença ou até teu gênio te escusam ou distanciam de tal
amizade. O que posso te responder, a não ser o que falou Salomão:
“Quem tem vontade de separar-se do seu amigo procura conflitos e
sempre achará algo para acusá-lo”. Eu não sei se as tuas
desculpas te deixam tranquilo. A mim me irritam, e eu te digo, com
Agostinho, que não acredito em ti de jeito nenhum, porque não há
desculpa, quando a coisa só depende de ti. Se tu me dissesses:
não posso jejuar, não posso me flagelar, não posso usar roupas
grosseiras, nem trabalhar, nem fazer peregrinação: tudo isto posso
admitir. Mas se disseres: Não posso amar, eu não acredito nisto.
Em terceiro lugar, devemos assegurar que, seja qual for o
meio de procurar esta união com Deus, na alma se encontra uma
profunda inquietação, que nos leva a buscar unicamente a Deus:
sem esta busca e procura, ninguém alcança a Deus, sejam quais
forem os caminhos andados. Também é certo que a pessoa não
pode determinar como vai achar e o que vai alcançar.
Existem duas maneiras de buscar a Deus: uma provém do
próprio Deus, e a outra nasce do nosso esforço. Se a busca for
dada por Deus, a pessoa nem dorme nem come nem vive
sossegada. Quem é movido por Deus cuide de aproveitar o
presente, porque este ardor e esta sede costumam durar pouco.
Por isso, escolhe os melhores meios e apressa-te: com o favor de
Deus, em um ano farás maiores progressos do que farias sem ele
em três anos. É como se recebesses um animal de carga
emprestado por certo tempo para fazer trabalhos necessários e tu
deixasses este animal sem fazer nada. Virá o tempo em que o
pedem de volta, e o teu serviço não foi feito.
Não aconteça tal coisa! Deus quer que seus dons sejam
aproveitados e que lucres ainda mais com os talentos que Ele te dá.
Não deixes morrer tua sede. Senão a vela se apaga, e tu estarás no
escuro. Se a graça te for retirada, estarás mais relaxado do que se
nunca a tivesses possuído.
Alguns não souberam corresponder com a graça, já que
pensavam que bastava fazer penitências corporais. Estas têm
pouco proveito, como diz São Paulo, se o nosso interior não tem
parte nelas. Outros respondem só com palavras e com leitura, sem
entrar na vida interior. Então tudo se desfaz em fumaça, como o
mercúrio que evapora, se não estiver protegido. Por isso, irmão, se
quiseres tirar o maior proveito, procura a Deus no teu coração. Não
40
te afastes de ti mesmo, porque Ele é mais íntimo de ti do que tu
mesmo (Agostinho diz: Tu intimior intimo meo!).
As águas da graça
41
Ela só faz juntar a chuva e não tem água por si mesma. O
coração humano, no entanto, tem uma tendência natural de abrir-se
para a graça e para a adoração divina.
É verdade que nada se faz, se o Senhor não manda primeiro
a chuva de sua graça generosa, porque sem ela o coração é só
como terra seca que se pode cavar e que, como cisterna, pode
receber o orvalho e as gotas de chuva que lhe forem enviadas. Mas
o coração tem a capacidade de acolher e guardar estas gotas da
graça com tanta eficiência que se torna um poço jorrante, logo que
tiver juntado o suficiente. O desejo natural de Deus pode crescer
muito no coração, e com isto cresce a sede de devoção interior,
sem a qual ele fica como antes, totalmente morto e seco.
A mesma coisa se pode observar no gelo que, se não for
tocado pelo sol ou pela água, é duro como cristal, e nele se pode
cavar uma cisterna. Mas, se vierem sol e chuva, o gelo tem que
derreter-se, e a cisterna se torna um poço ou mesmo uma fonte que
jorra, depois que tiver juntado água em sua cavidade. Do mesmo
modo, a alma, a não ser que esteja muito endurecida e
desesperada, pode receber a água pura e a corrente que o Senhor
lhe manda, se bem que antes parecia mais nada que uma cisterna
vazia e seca. Mas, se nesta alma, havendo um coração profundo,
cair uma grande graça, ela se tornará um poço, logo que o natural
desejo de Deus estiver acordado e vitalizado. Sim, ela se
transforma num poço tão receptivo que jorra, e do seu interior
nascerá amor de Deus e adoração sincera. Esta cresce cada vez
mais, até que se torne uma água viva de íntima veneração de Deus,
que, crescendo e pulando, alcança a vida eterna.
Com isto a alma volta àquela origem da qual lhe adveio a
graça. Isto só é possível, se a pessoa entrar em si mesma para de
lá subir até Deus. Porque ninguém pode subir até Ele, se não tiver
descido primeiro até a sua própria interioridade. Quanto mais
intensa e profunda for a sua entrada interior, tanto mais ele vai subir
porque quem se humilha será exaltado. Acontece com ele como se
vê na bola: quanto mais forte for arremessada contra a terra, tanto
mais alto vai pular. Na água se vê a mesma coisa: é na queda que
ela ganha força para subir. E o esportista que pula se abaixa, para
alcançar um pulo maior.
É por isso que os principiantes devem entrar em si, muitas
vezes, e doer-se com a má vida do passado: em silêncio, na
paciência e na esperança de emendar-se. Os avançados também
precisam interiorizar-se, para vencer, em silenciosa quietude, todas
as distrações do coração, na expectativa fiel da graça, que em
breve esperam receber do seu generoso Senhor. Também os
42
quase perfeitos precisam entrar no seu interior para manterem, no
recolhimento interior, a vigilância do coração voltada para Deus. Por
isso, permanecem em profundo silêncio diante de todas as coisas
criadas e alimentam uma esperança tão forte e imperturbável que
um leve desejo já basta para elevá-los às coisas celestes.
A prisão do amor
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Então já não poderás deixá-la. Antes te acharás
maravilhosamente cativo na prisão do amor, da qual nunca mais
pedirás soltura.
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tem medo de três coisas: do engano, da violência e da fome. São
estes os três perigos para o coração.
Por isso, devemos seguir o conselho dos sábios, chamando
os ditos três vigias. Quem nos defende do engano é a inteligência
que avalia. Isto se vê no exemplo da Santa Virgem que ponderou as
palavras do anjo da Luz, para ver se não tinha algum engano atrás
das palavras boas ou algo escuro atrás do clarão. Assim não entrou
nada no seu coração que não fosse examinado com afinco, O
segundo portão do castelo, pelo qual costumam invadir violência e
medo, seja vigiado pela força da coragem, que expulsa todos os
temores da noite. O terceiro portão, que é ameaçado pela fome, ou
melhor, pela ganância e inúmeros desejos, seja munido pela
saudade das coisas celestes. É por isso que o anjo diz no livro de
Daniel: “Eu vim para te ensinar, porque tu és o homem do reto
desejo”. As coisas da terra não atingem aquele que tem sede das
coisas do céu.
É importante saber que basta um portão sem vigia, para que o
diabo penetre no castelo do coração. Ele usa ora esta, ora aquela
tática, nunca todas as três na mesma pessoa. Basta uma, para que
o homem se perca. Portanto, se quisermos ter certeza, devemos
colocar vigias de todos os lados ao redor do coração, porque ele é a
sede da vida. Esta vigilância deve ser absoluta: diante do paraíso
Deus colocou os Querubins com espada de fogo, para proteger o
caminho da árvore da vida.
O coração dos fiéis é um paraíso terrestre, no qual o Senhor
entra para descansar. Ele diz: Meu prazer é estar com os filhos dos
homens. Também para nós ele é um paraíso de gozo, porque nele
começamos a sentir a bem-aventurança, quando Deus nele habita.
Esta felicidade que o coração sente vale mais do que todas as
alegrias do mundo. Grandes senhores costumam possuir castelos
no campo, os quais eles procuram para a alegria do descanso.
Salomão e Xerxes tinham casas assim, na sua floresta ou no seu
jardim. Também Deus, nosso Senhor, que não se satisfez com o
paraíso celeste, mandou construir na terra um castelo para a sua
alegria: o coração humano. Deus o chama “paraíso terrestre”,
porque “o coração do justo é um paraíso”. Sim, paraíso, porque
qualquer lugar em que Ele se encontre é um paraíso. Ele o chama
“terrestre”, porque tem lugar no nosso corpo que vem da terra.
Deste paraíso está escrito: “A graça é como um jardim que ecoa de
louvores, e a misericórdia permanece na terra”.
Salomão fala mais da graça do que do coração, pois este só
se tornou um paraíso pela graça de Deus, que nele veio morar. Ela
é como uma fonte que rega o paraíso do coração. Diz a escritura
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que esta fonte se divide em quatro rios, que alimentam em nosso
coração: as quatro virtudes cardeais, a saber: a justiça, a
temperança, a força e a prudência. Com estes dons, o coração
consegue realizar inúmeras boas obras.
O sábio fala de um paraíso cheio de louvores, porque o
coração nunca pára de louvar a Deus, já que tudo é presente de
Deus, não adquirido por esforço humano. Por que ele diz que a
misericórdia permanece no mundo? E porque Deus não para de ter
misericórdia deste mundo, de modo especial quando um coração,
que era paraíso terrestre, alcança a eternidade, onde, para sempre,
será um paraíso celeste. E isto que Deus promete pelo profeta
Isaías, quando diz: Glorificarei a casa da minha majestade!
A oliveira
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mestre na sua arte ou mão de obra, ele não faz nada sem o seu
instrumento. Capacidades e dotes não bastam para adquirir a vida
eterna, se a graça divina não se juntar ao esforço. É ela quem
molda a livre vontade e faz as obras renderem; só assim elas
podem se tornar merecedoras da vida eterna.
O óleo também nos livra da morte, como vemos em Jr 4,8:
Ismael, disposto para matar, deixou escapar com vida aqueles que
tinham guardado sua reserva de óleo. Isto quer dizer que o demônio
é impotente contra aqueles que na batalha da vida conduzem a
graça consigo. Ó alma, se quiseres receber dignamente o teu
esposo, enche primeiro a vasilha do teu coração com óleo, para que
possas sair com segurança da tua morada terrestre junto com as
virgens prudentes e ser recebida nas núpcias celestes, onde sem
óleo não terás acesso. Mas, se achares difícil obter este óleo, faze
como o doente que pede os santos óleos, quando sabe que vai
morrer. Basta pedir para receber a força do sacramento. Pensa
bem: todo dia morremos, porque todo dia pecamos. Por isso,
persevera em pedir com lágrimas o óleo da graça. Então a pomba
do Espírito Santo não vai demorar em vir a ti e trazer não somente o
ramo da graça, mas a própria oliveira frondosa que é o Cristo.
Planta as raízes desta árvore com carinho no teu coração, então ela
crescerá em ti. Rega o seu pé com lágrimas puras, para que ele se
torne cada vez mais viçoso. Se vier o demônio para te dar de beber
o veneno da tentação e do pecado, só precisas pedir a Deus com
lágrimas o óleo da graça. Imediatamente ele te protege e liberta de
tudo que é nocivo e perigoso.
Casulo e borboleta
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do primeiro, que não pergunta pela altura, porque este só
contempla o que está na sua frente e o que falta alcançar.
Não deixes que teu amor se prenda às virtudes. Procura
unicamente o Deus altíssimo, para onde voamos. Para o filósofo, a
virtude é a meta e fim. Para o cristão, ela é somente um meio para
chegar ao perfeito amor de Deus. Ele não procura as virtudes pela
satisfação que proporcionam, e, sim, porque sem elas não pode
alcançar o amor de Deus que é o fim e a meta de nossa vida.
48
5° Capítulo: A HUMILDADE COMO CONDIÇÃO DE
CRESCIMENTO ESPIRITUAL
O que é humildade?
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Porque, pensando bem, esta fortaleza da alma é a humildade. Nela
se acha seguro quem vive do espírito, com as portas trancadas
para todas as vaidades mundanas, de modo que nem louvor nem
glorificação têm entrada.
Há gente que diz: o coração do pecador é um vaso com
rachadura, que não segura a plenitude de Deus. Mas o coração do
puro é um vaso sem defeito, formado pela humildade que é
indestrutível e inteiriça. Dele não se perde uma gota, porque ele não
anda contando vantagens. Este vaso do coração, corrigido pela
humildade, capaz de segurar o que colhe, tem uma propriedade
especial: ele pode crescer sem rachar-se, para caber ainda mais
graças divinas. É por isso que o titulo diz: A humildade é a condição
indispensável para o crescimento espiritual.
Alguns acham que humildade é coração estreito, natureza
desprezível e pouco enérgica de uma pessoa que não luta por
grandes coisas. Outros pensam que humildade é aspecto doentio e
espírito pequeno, que se manifestam no porte, no modo de vestir e
no comportamento. Alguns identificam humildade com covardia e
medo. Outros ainda acham que é prova de humildade o fato de não
dispor de nenhuma capacidade ou de esconder os dons. Todas
estas opiniões estão erradas e não têm nada a ver com humildade.
Para entendermos a majestade da humildade, temos que
saber que ela tem uma irmã que é a nobreza da alma. As duas são
companheiras que se amam muito, de tal maneira que uma não vai
sem a outra. Elas são as duas asas com as quais a noiva, ou
melhor, a alma, levanta voo para Deus e vai para a solidão da
contemplação. Assim como a pobreza do espírito não se reduz ao
desprezo das coisas temporais, mas conquista a riqueza do
sobrenatural, do mesmo modo a humildade não pára na recusa de
honrarias, mas progride para a sublimidade dos bens espirituais.
Levanta teus olhos para reconhecer esta grande virtude da
humildade. Olha esta semente de mostarda que deves plantar no
jardim de tua consciência. É pequena aos olhos dos homens, corno
diz a escritura, mas aos olhos de Deus é maior do que todas as
plantas e todos os exercícios espirituais. Anima-te a subir pelos
galhos desta árvore, embora seja difícil alcançar o seu topo. Ela é
muito alta, e entre todas as criaturas só houve uma que alcançou o
topo, aquela que em sua humildade falou: Sou a serva do Senhor.
Ela teve a grandeza de espírito de querer dar à luz o filho eterno de
Deus na condição humana. São Bernardo assustou-se com isto e
exclamou: “Que humildade tão elevada que despreza a honra e não
dispensa a glória”.
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É assim o crescimento da humildade: de um lado, é
diminuição e, de outro, se for verdadeira, é uma enorme elevação.
Diz Santo Agostinho: Ela cresce na mesma medida em que se
rebaixa. Quanto mais ela desce, tanto mais se eleva. Altura e
profundidade são iguais, as duas crescem juntas para poderem
convencer. O crescimento da tua humildade mostra-se na
diminuição do Ego. Progresso em geral é aumento, por isso, não te
admires se o teu progresso seja chamado de atraso. Porque
humildade é um candeeiro com facho que consome. Quando tiveres
alcançado a perfeição, todo orgulho estará queimado.
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mesmos são tão bons que naturalmente tornam humilde a pessoa
dotada, a não ser que esteja enfraquecida por algum vício. É o que
acontece com o vinho bom que chega a fermentar num barril
perfeito. Mas, se o barril tem defeito, o vinho também se arruína.
Humildade provada enfrenta o perigo com calma e tira mel até
de um grão de fuligem, como a abelha, da qual se conta o seguinte:
Na hora de grandes tempestades que poderiam esmagá-la, a
pequena criatura segura uma pedrinha entre os pés e, com ela, voa
para baixo. Se o vento aumentar, ela simplesmente se deixa cair,
puxada pela pedrinha da humildade, de modo que a alma chega ao
chão com segurança: o peso que a faz descer é a consciência de
que por si mesma ela não é nada.
A comparação da árvore, da qual falei acima, mostra: Quando
achamos numa pessoa o dom e a humildade ao mesmo tempo,
podemos concluir que este dom provêm do Espírito Santo. Parece
que Isabel possuiu este tipo de reconhecimento frente à mãe de
Deus. Quando esta veio até ela cheia de benção, Isabel exclamou:
“Bendita és tu entre as mulheres, e bendito é o fruto do teu ventre”.
Ela quis dizer: Tu és tão bendita que eu não sou digna de que
venhas visitar-me e me saúdes com tanta humildade. Deve ser o
fruto do teu ventre que age em ti e te conduz a mim em tamanha
simplicidade. Disto podemos concluir: basta a menor pretensão de
grandeza para mostrar quais são os dons que não provêm de Deus;
porque, quando o fruto é leve e sacode dentro da casca, ele não
vale nada.
Todas as dúvidas sobre nossos sentimentos para com Deus e
todos os medos que nos atacam encontram o seu remédio no título
deste tratado: Humildade é condição indispensável de todo
progresso espiritual. Se em tua vida a humildade crescer junto com
a graça recebida, acredita-me que estás progredindo. Aqui, não há
perigo de engano, e esta palavra te leva à verdade.
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macrocosmo foi criado do nada, como sabemos. Esta profunda
humildade, esta consciência de aniquilamento, deve abranger até
os méritos éticos, fazendo-nos entender que estes por si não
adiantam nada. Como diz Beda: “A fé dos homens é perfeita,
quando eles, depois de terem cumprido o que lhes foi ordenado, se
consideram imperfeitos”. E São Paulo acrescenta: “Os sofrimentos
deste mundo, (ou os atos sofridos), não são dignos de ser
mencionados”.
Portanto, o Espírito Santo faz o que todos os méritos não
alcançam. Se nossas boas obras, mesmo feitas sem pecado e
nascidas da livre vontade, não podem salvar-nos e no fundo não
constituem méritos, fica evidente que um grão de trigo alcança o
seu destino com mais facilidade do que o homem. Porque, ao grão
de trigo bastam as circunstâncias naturais, para que cresça e
produza fruto. Mas a pessoa humana precisa mais do que isto, para
que produza frutos dignos da plenitude almejada. Apesar disto,
ninguém diga que nosso esforço é em vão. Mesmo que nossas
boas obras não sejam suficientes para nos justificar, elas, no
entanto, nos preparam para a justificação que Deus previu para a
nossa salvação. Assim como pelo sol vem a luz e o calor, do
mesmo modo por Deus vem a justificação e a vida eterna. Mas,
para receber a luz do sol, a gente tem que abrir os olhos. E, no
entanto, só recebemos esta luz, se o sol envia os seus raios. Em
abrir os olhos, possibilitamos o recebimento da luz. Assim também
nossas boas obras nos tornam hábeis para a justificação.
Se a pessoa estiver em pleno sol sem querer abrir os olhos, a
culpa é dela, se não enxergar nada.
Por isso, também é culpa tua, se não te preparas
humildemente com boas obras para receber a justificação pelo sol
da justiça, isto é, o Cristo, que conduz os humildes à salvação,
ainda mais ligeiro do que o sol envia os seus raios.
Quem cresce interiormente em boas qualidades se prepara
para Deus, mas esta preparação não serve, se faltar a humildade.
Tudo é em vão, se não reconhecermos humildemente que nosso
esforço não pode alcançar a salvação.
Nossas boas obras não somente são insuficientes para
chegar até Deus, mas até lhe desagradam e se tornam ruins, sem a
humildade. E isto que Gregório diz: “Mesmo a obra mais importante
não nos eleva, mas nos deprime, se ela for realizada com soberba.
Quem pratica virtudes sem humildade semeia poeira contra o vento
e colhe cegueira”.
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Sobre a importância de crescer na humildade
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Pode acontecer contigo o que Gerson contou sobre uma
monja reclusa: Ela tinha costume de falar coisas desagradáveis
sobre si mesma aos visitantes no locutório. Um dia aconteceu que
uma menina, sua criada, atendeu uma dama junto à grade, e esta
perguntou como era o jeito de sua patroa. A menina respondeu
exatamente com as palavras que sempre ouvia a monja dizer: “Ela
é uma velha ordinária, dorminhoca e sem qualquer piedade, que
não merece o bocado que come”. Ouvindo isto, a velha monja
correu e gritou com raiva: “O que estás dizendo? Ó minha Senhora,
não acredites na mentira dela, porque sempre madrugo e faço tudo
que está no meu poder”.
Assim, há muitos que se humilham de aparência e não
querem que alguém leve a sério o que eles mesmos afirmam a seu
respeito. Nisto se vê que carecem da humildade e também da
verdade, porque não querem que alguém confirme o que disseram.
E se alguém disser: Falaste bem!, o repelem e mostram assim que
faltaram com a sinceridade. Quem é humilde de verdade aceita que
lancem no seu rosto o seus defeitos.
Ele gosta de ouvir aquilo, mesmo que apontem para ele com o
dedo. Porque ele faz questão de conhecer os seus defeitos e pede
para que os outros lhe mostrem seus erros para poder corrigi-los.
Quem quer viver na humildade olhe em primeiro lugar suas
fraquezas e peça ajuda dos outros para que possa reconhecê-las.
Ele implore a Deus para abrir os seus olhos para que veja os seus
erros e nada mais, como diz Davi: “Meu coração fica ardendo, e
meus rins se contorceram dentro de mim. Fui reduzido ao nada e
não o sabia. Estou diante de ti qual um animal e sempre estarei
contigo”.
Com estas palavras, Davi cai de um extremo ao outro, porque,
de um lado fala do coração em chamas, o que por Dionísio
Areopagita é atribuído aos Serafins, e do outro lado se considera
um ser irracional, de modo que se comporta como alguém que de
grande altura se precipita para baixo. É assim que age a mais
profunda humildade, que arde de amor divino. E é justamente por
isso que o humilde não se detém muito com seus tesouros. Ele não
perde de vista os seus defeitos e frente a Deus se comporta como o
pobre que na porta da Igreja pede esmola, escondendo os seus
membros sadios, sabendo que assim o povo tem pena dele mais
facilmente.
Com grande confiança, o humilde se senta na porta da
misericórdia. Ele não ousa entrar com os grandes, porque não se
considera digno de ser ouvido. Em vez disto, manifesta a Deus e
aos Santos na sua oração todos os seus defeitos, que são as
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chagas de sua alma, e esconde a bondade, como se não a tivesse,
porque exige cada vez mais de si mesmo. É por isso que Salomão
diz: “Humilha-te diante de Deus e espera por suas mãos”. O
humilde sabe que as mãos auxiliadoras de Deus sempre se
estendem ao pobre que se rebaixa. Por isso, não pára de inclinar-se
diante de Deus e somente diante dele, sem se importar com os
homens, aos quais se sujeita só por amor de Deus, contemplando
neles o próprio Deus.
Não é assim que agem os soberbos. Como vendedores de
legume, colocam em cima o repolho fresco e escondem o que há de
podre, isto é, escondem seus defeitos e mostram o que consideram
suas qualidades. É por isso que diz o Salmista: “Com sua boca
tocam o céu e não põem freio à sua língua”. Pessoas assim não
vão receber esmola de Deus, que atenta para o pobre e do
orgulhoso desvia seus olhos. Isto se vê na parábola do publicano e
do fariseu: Ao que colocou a boca no trombone, exaltando suas
boas obras, não lhe foi dado nada. O outro confessou suas faltas e
voltou para casa justificado. O fariseu ficou suspenso no alto do seu
orgulho, onde se tinha exaltado (cf. o caso do Absalão que ficou
suspenso no galho da árvore. Nota do tradutor).
Louvor da humildade
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e mandando os primeiros para o fim. Só tu sabes quanto a criatura
precisa de Deus e sabes que todo serviço a ele prestado, na
verdade, é outra graça que dele recebemos sem o perceber. Tu te
sentes feliz em ser devedora do Senhor que nunca te retira o seu
favor.
Tendo recebido muito, reparas a grandeza daquele que te
cumulou com sua graça e o dever que nasce daí. Se não receberes
nada, olhas para tua pequenez e te reconheces indigna, dando
razão a quem cortou para ti o fio da graça. Em seguida, tentas fazer
reparação do teu erro.
De muitos que caíram em tentação tu desvias a ira
castigadora de Deus, se eles aceitam o bom conselho. A alma que
te ama, tu a fortaleces tanto que ela vence o orgulho do mundo, que
nos quer privar de todos os bens. E assim a tornas agradável aos
olhos de Deus, os quais se voltam para os humildes para fazê-los
crescer no progresso espiritual, até que recebam em felicidade
quanto possuíam em humildade.
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6° Capítulo: DE TUDO DEVEMOS TIRAR AMOR
Deus
As criaturas
Alegria e dor
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parece com o cavaleiro: É na luta que ele prova o que é, muito mais
do que quando corteja as damas.
O amor é uma abelha: De qualquer flor tira mel para sua
colméia. Por isso, ele se alegra com o bem que há no próximo,
aproveita como lição e leva a Deus como oferta. Todos nós somos
membros de Cristo, e Ele é também a tua cabeça.
Nós ganhamos amor da direita e da esquerda, se
entendermos que Deus usa favores e contrariedades como esporas
para que corramos mais velozes na pista do seu amor. Reconhece,
pois, que usaste mal o passado, para não desperdiçar a vida curta e
incerta que te sobra. Então, há amor a esperar-te na frente e por
trás. Dos vales e dos montes, das profundezas e das alturas, de
tudo saberás tirar amor, se te deixares provar por ele na vida ativa e
contemplativa; se te exemplares pela sorte dos pecadores e te
espelhares pela vida dos justos.
Amante e amado
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7° Capítulo: A COROA DA VIDA
Seguimento de Cristo
Oração permanente
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e tentam ignorá-lo como algo irreal, dizendo que é coisa da fantasia
ou ilusão.
Esta tristeza imensa, implantada no coração, eu a aprecio
mais do que a primeira, dependendo do grau de crescimento
espiritual dos que fazem esta experiência. E tu, se tiveres um
encontro com ela no decorrer da tua busca contemplativa, faze
amizade com ela, que é parte deste caminho. Entrega-lhe o teu
coração e acolhe-a de boa vontade e sem condição. Mas eu te
aconselho: Não tentes segurá-la nem afastá-la, mas deixa que ela
siga o seu caminho. Em recusá-la, tu perdes um grande bem. Mas
se a acentuas, está tirando algo do seu próprio valor. Portanto,
deixa que ela trabalhe em ti e não atrapalhes a sua obra. É isto que
os Provérbios querem dizer: “O coração do sábio permanece com a
tristeza”. Não quer dizer que a gente deva procurá-la. Esta tristeza,
não podemos nem procurá-la nem achá-la; ela vem sozinha. Não
devemos nem aumentá-la nem fugir dela e, sim, perseverar e
acompanhá-la interiormente enquanto durar.
Mesmo que haja grande diferença entre os dois tipos de
tristeza espiritual, a pessoa inexperiente quase não sabe distinguir.
A tristeza sobre uma oração estéril e seca é cansativa e cruel. É
como a tristeza do garimpeiro que não pega ouro. Mas esta outra
tristeza do caminho contemplativo é uma melancolia sem tormento
que traz uma certa passividade e que procura a solidão. Ela é
também bondosa e conformada.
Sobre este tipo de melancolia que eu aprecio mais do que
todas as tristezas, nunca li coisa nenhuma a respeito. Mas quero
mencioná-la para consolo de todos os que a experimentam, ou
melhor, que a recebem, porque Deus a faz descer na alma de tal
jeito que suas raízes profundas nos ficam ocultas.
Na vida contemplativa, há três tipos de tristeza espiritual. O
primeiro tipo é próprio dos iniciantes e é causado por uma ofensa a
Deus. O segundo é dos avançados. Ele vem quando falta a
experiência de Deus. O terceiro tipo, que há pouco foi explicado, é
dos quase perfeitos. Ele é tão oculto que não se sabe de onde vem.
Mas eu o considero uma espécie de dom espiritual de Deus que só
Ele entende.
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contemplação, já que estamos vendo como Deus dá vida a tudo e o
mantém vivo.
Do mesmo modo, envolves a Deus em tudo, se o deixas
participar em tudo o que fazes. Presta honra a ele nas tuas honras,
alegra-te com ele nas tuas alegrias. Chama por ele em dificuldades
e sofrimentos, porque é para isto que ele fica conosco até o fim do
mundo. Tem Deus contigo, não somente como companheiro, a
exemplo dos israelitas no deserto, mas volta teus olhos para ele
como meta do agir e do desejo, assim como a flecha procura o
ponto preto no alvo. Elevando em tudo o teu coração a Deus, tê-lo-
ás sempre contigo, como os reis magos tiveram sua estrela, e como
os navegantes têm sua bússola.
Terás Deus em tudo, se consideras que tudo recebeste de
sua mão, exceto o pecado. Teu coração achará repouso tranquilo,
se acreditares firmemente que tudo, alegria e dor, só acontece com
seu consentimento. Então, podes dizer com Jó: “O Senhor deu, o
Senhor tirou. Louvado seja o nome do Senhor”.
Tudo o que nos acontece é pelo desígnio de Deus que nos
acontece. Ele sabe o que faz, mas nós não o entendemos, porque
não conhecemos o fim. Devemos satisfazer-nos em saber que tudo
está previsto em sua sabedoria. E que de todos os males que ele
permite nos pode advir ganho não imaginado. Por isso, envolve a
Deus até com teus contratempos, reconhecendo que ele quer
provar o teu amor: será que ele para ti não vale mais do que todas
as alegrias e tentações do mundo? Tudo podes vencer com ele que
te guarda com o santo zelo do seu amor, para que, por amor a ele,
te livres até da menor mancha do pecado. Louvado seja ele para
sempre.
Da perseverança
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é preciso perseverar e não desistir. Quem se aborrecer com isto,
acrescente mais meia hora e espere a graça divina na consciência
de sua indignidade. Tendo passado assim uma hora, prolongue o
exercício por outra hora. Aí pode acontecer que a última meia hora
lhe aproveite mais do que todo o tempo anterior.
Feliz és tu, se seguires este chamado e permaneceres firme
no exercício da contemplação, em vez de levantar-te, andando por
aí com ânimo inconstante. Se mudares muitas vezes, serás como a
planta que não prospera, porque é replantada de vez em quando.
Portanto, não sejas negligente e completa o que começaste. Cuida
de correr a tua estrada de um jeito que o teu zelo incansável
alcance o prêmio, porque só o perseverante se alegrará de ver a
meta do caminho. Persevera no bem, na unção do princípio, como
diz São João, então receberás a coroa da vida.
Afasta-te de tudo o que atrapalha e zela pela tua oração não
menos como zelas pelo teu sono. Assim como afastas todo barulho
e toda agitação e te retiras para dormir, do mesmo modo deves
deixar as preocupações do mundo, quando queres orar,
entregando-te unicamente ao recolhimento espiritual. Se desde o
começo exercitares o teu coração na oração contemplativa com
toda a perseverança, o exercício te fará muitas vezes entrar em ti
mesmo como era o teu desejo. Porque o amor, uma vez aceso,
estimula o teu coração e não se aquieta até que se una diretamente
a Deus que procura com imenso desejo. A Ele a glória e a honra
por todo tempo e pela eternidade. Amém.
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