O Brasil Nas Copas, Tempo Suspenso e História
O Brasil Nas Copas, Tempo Suspenso e História
O Brasil Nas Copas, Tempo Suspenso e História
Uma sociedade não pode criar-se nem recriar-se sem criar, ao mesmo tempo, alguma coisa
de ideal. Essa criação não é para ela uma espécie de ato suplementar com o qual ela se
completaria a si mesma uma vez constituída; é o ato pelo qual ela se faz e se refaz
periodicamente. (Durkheim, [1912]1989, p. 500)
Seleção tá no coração
(Refrão do jingle da TvGlobo para a seleção brasileira, 2002)
Resumo:
As Copas do Mundo constituem-se, para os brasileiros, em verdadeiros rituais
nacionais, ocasiões em que se celebra a brasilidade, construção simbólica da
unidade nacional, “suspendendo-se”, de certo modo, as diferenças e desigualdades
que permeiam a estrutura social. Para que tal processo se efetive, é necessário que
nestes períodos constitua-se um tempo próprio e uma história própria. Este
processo supõe a “suspensão” do tempo cotidiano, estabelecendo feriados
prolongados e acionando a memória da participação dos selecionados brasileiros
nas copas do mundo. Contudo, isto não significa que tais eventos sejam imunes às
conjunturas históricas nas quais se realizam, o que se evidencia, em especial, nas
discussões sobre as derrotas brasileiras. As avaliações da derrota brasileira na
Copa de 1998, na França, são um importante exemplo de como a história penetra
neste tempo “suspenso”. Pretende-se refletir, nessa direção, acerca do surgimento
da categoria de “estrangeiros” ou “europeus”, que, aplicada a jogadores brasileiros
que jogam no exterior, elabora a questão dos mercados transnacionais através do
futebol.
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Doutora em Antropologia Social, Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência
Política, Universidade Federal Fluminense.
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acentuar que este processo apóia-se fortemente em uma forma específica produção da
que unem e separam as sociedades. Na modernidade, um dos aspectos que esta dialética
Entretanto, são complexos e paradoxais os efeitos deste processo que, em muitos casos,
fundamentalismo” (cf. Hall, 1999, p. 92, passim). As formas modernas assumidas pelas
2
Esta comunicação resulta de uma série de reflexões que já realizei anteriormente (cf. Guedes, 1977,
1998 e 2000a) e, mais especificamente, conjuga os argumentos desenvolvidos em duas comunicações
apresentadas, respectivamente no encontro da ANPUH Regional (Guedes, 2000b) e da ANPUH Nacional
(Guedes, 2001).
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ritos, que dramatizam valores básicos das sociedades atuais. Mais adiante, voltarei a
Talvez pela mesma razão – seu lugar como ritos que recriam a diversidade e a
Archetti (1999), em “zonas livres” nas sociedades modernas, espaços para a “liberdade
e criatividade cultural”. Sob tal perspectiva, uma das formas mais importantes de
culturas nacionais como “comunidades imaginadas”, proposta que nos faz Benedict
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Anderson, é um caminho proveitoso nessa direção3. É também nessa direção que Stuart
Hall afirmará que “uma cultura nacional é um discurso, um modo de construir sentidos
que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós
mesmos” (1999, p. 50). Do mesmo modo, argumentará que tal construção de sentidos
brasileiro”. Seria nossa “zona livre” mais prenhe de significados, uma “instituição zero”
cercamos do mais deslavado patriotismo, como diria Nelson Rodrigues, permitem que
tempo das nação brasileira. Na verdade, mais do que ritos, seriam o que Augé denomina
3
“In na anthropological spirit, then, I propose the following definition of the nation: it is na imagined
community – and imagined as both inherently limited and sovereign. It is imagined because the members
of even the smallest nation will never know most of their fellow-members, meet them, or even hear of
them, yet in the minds of each lives the image of their communion.” (Anderson, 1991, p. 6, grifo do
autor). Seria interessante confrontar tal proposta com as alternações do processo ritual (estrutura e
communitas), tal como lido por Victor Turner (1974).
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Venho observando, há alguns anos, nos trabalhos que tenho feito sobre esta
temática, que há uma característica que me parece decisiva para uma sociologia dos
qualquer esporte, desde que ele seja vitorioso no confronto com outras nações, mesmo
mesma rapidez e facilidade nas derrotas. Os nossos inúmeros fracassos em quase todos
competições internacionais. Para nós, estes outros esportes só têm heróis, pois só
existem quando eles existem. Isto não ocorre com o futebol brasileiro: incorporamos
heróis mas anti-heróis e vilões, lemos e discutimos o que entendemos como qualidades
e jogadores brasileiros nos outros esportes. Sob tal perspectiva, pode-se dizer que
construímos, com relação aos esportes como terreno e arena para a produção da nação,
(cf. Moura, 1998). A grande derrota que não foi possível ignorar e esquecer marca, de
avaliamos e julgamos.
pode ser recuperado através de uma das mais importantes implicações da argumentação
de Roberto DaMatta (1979) sobre rituais nacionais. Tais rituais, para acionar a
vida cotidiana, necessitam, de certo modo, negar a história. Dito de outro modo,
simbolicamente situados sobre todos os outros. Assim é que, “mesmo numa sociedade
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ideologias que pretendem estar ao lado e acima do tempo” (DaMatta, 1979, p. 22).
para que tenham significado, é a oposição de unidades da mesma ordem, é apenas nas
o futebol como ritual nacional. Na forma como, no Brasil, esta memória é construída,
estes momentos são ainda mais selecionados: ocorrem de quatro em quatro anos nas
mesmo processo e intensidade com que o foco é colocado sobre o nível nacional.
Mundo. Para a construção deste tempo, de certo modo ahistórico, em que o “valor
que vamos sendo desligados das questões que atravessam nosso cotidiano, vamos
enfocando com mais vigor tudo que cerca o nosso selecionado durante a Copa,
interessando-nos por detalhes que, passado o período ritual, nos parecem absurdos. Eu
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A participação nas Olimpíadas, por exemplo, por diversas razões, não assumiu, até o momento, no
Brasil, o mesmo significado das Copas do Mundo quadrienais promovidas pela FIFA.
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tempo histórico, para reinaugurar o período ritual festivo em que a nação entra em
campo, culmina com os verdadeiros feriados – tempo vazio – que ocorrem nestes jogos
do selecionado. Mas é nesse tempo suspenso que uma outra história se escreve: a
história na qual nós inscrevemos o modo como queremos nos compreender como nação,
como povo, como totalidade. E se, para atualizar e fazer operar este nível da nossa
identidade social é preciso, num primeiro momento, que nos “alienemos” da nossa vida
facilidade mas jamais de modo linear ou simplesmente especular, nas avaliações que
campos de futebol6. Este processo fica bastante claro na Copa do Mundo de 1998,
ocorrida na França: as questões incorporadas pela discussão desta copa são as que
Para a minha argumentação, é relevante recordar que o futebol é uma prática que
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Este processo foi facilmente verificável em 2002, quando inúmeras emissoras de televisão (abertas e a
cabo), de rádio e boa parte da imprensa escrita, criaram programas e seções específicas de rememoração
das participações brasileiras em Copas anteriores.
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Já afirmava Huizinga, em seu livro clássico, que uma das características fundamentais do jogo é uma
espécie de “evasão da vida real” que, entretanto, pode ser a qualquer momento penetrada pela “vida
quotidiana” (Huizinga, 1971 [1938], p. 24).
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identidade.
Isto porque o futebol e os esportes em geral, arautos que são das corporalidades,
ícones de uma linguagem cada vez mais mundializada, reproduzem esta dialética não
nacional”.
tudo, uma forma de jogar designada, muitas vezes, como futebol-arte. Ensinamos e
driblar, fintar, enganar o adversário, ter jogo de cintura, ter toque de bola, ter domínio
produzimos uma mercadoria específica que, de modo geral, alcança alto valor na
país.
representados por seus mais valiosos jogadores quando eles jogam pelo selecionado
brasileiro. Se, por um lado, isso é motivo de orgulho nacional, pois produzimos craques
reverenciados no mundo todo, por outro lado é também um signo da pobreza de um país
que não pode manter em seu solo seus produtos mais valiosos.
trouxeram, do ponto de vista dos significados que atualizaram e recriaram, uma grande
Mundo (e isso mais especialmente a partir de 1950), são ocasiões plenas de significado
técnicas e táticas, discute-se e negocia-se uma série de valores e idéias que atravessam a
modo, há uma história do Brasil que pode ser recuperada e contada através da história
Sob tal ponto de vista, a Copa do Mundo de 1998 é bastante interessante pois,
nos debates que se seguiram à derrota brasileira, aparece, sob duas formas interligadas,
seleções e dos evento, nas decisões tomadas pela equipe técnica do selecionado. Ou
seja, dito de outro modo, tematiza-se e discute-se, o valor pátria ou nação versus o
poder misterioso e apátrida do mercado. Discute-se, por esta via transversa, esta nova
abertura dos portos às nações estrangeiras. Na verdade, não importam muito, sob tal
ponto de vista, as conclusões (ou indefinições) deste debate: o que importa é que tomou
se apresenta, neste momento, sob uma outra forma, correlata a esta primeira,
craques. Uma categoria assume, a partir daí, importância central nas avaliações do
concentra-se no paradoxo de que nossos principais heróis nacionais, neste rito, são os
estrangeiros ou europeus. Devo lembrar, aqui, que utilizamos uma categoria muito
para a seleção brasileira de futebol tal como convocamos os jovens para o serviço
futebol é, ao mesmo tempo, uma honraria e um dever mas, sem dúvida, representa
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pela derrota na Copa do Mundo envolve, com bastante clareza, uma avaliação moral
que passa pela trajetória da maioria dos jogadores. Em geral, pobres que enriqueceram,
sentido mais amplo: sua gente, seu país, seus valores. Acusados, direta ou
lutarem, são acusados, de fato, como traidores da pátria, vendidos que foram pelos
valores monetários.
Esta avaliação toma uma forma cada vez mais clara, sendo o eixo posterior da
Copa de 2002.
agosto de 2000:
O treinador até já passou da hora de dar uma guinada decisiva que será uma
dólares.
13
E conclui:
Mais vale um atleta com o coração nos pés do que três com a cabeça nas cifras.
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