Kcosta, 3 Entrevista

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Edição n.

1 | 2017

ENTREVISTA COM MARINA TUNERÊ GENAN

Marina Tunerê Genan (Marina de Ogum) é uma personalidade importante


no movimento negro de Foz do Iguaçu. Ela é uma das mães de santo mais
antigas da cidade, da casa de candomblé Ile Asé Oju Ogúm Funmilaiyó, do
iorubá “a casa de axé dos olhos de Ogum traz a alegria”. Seu trabalho de
valorização da cultura afro-brasileira também está no grupo de afoxé, que
mantém ensaios regulares e apresentações em diversas datas comemora-
tivas do candomblé ou do movimento negro iguaçuense. Mãe Marina foi a
responsável pelo gérmen da ação de extensão Curso de Aperfeiçoamento
em Educação para as Relações Étnico-Raciais, hoje atividade institucional
da Pró-Reitoria de Extensão da UNILA.
A entrevista a seguir foi feita na casa de Marina Tunerê Genan com a
presença de uma de suas filhas, Cristiane Galdino.

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entrevista com marina tunerê genan

equipe proex: Como foi o início de sua aproximação com a religião?


marina tunerê genan: Toda minha família — pelo menos a que eu tenho
notícia, minha tataravó, minha bisavó, a minha vó — benzia. Mas não atingia o
espiritismo em si. Mas a minha tataravó, que foi escrava, e minha bisavó eram
tidas como excelentes curadoras, né?! Que na época falavam curadoras. Elas
faziam o trabalho de cura de doenças que existiam na época, resolvendo-as
com benzimentos e trabalhos com folhas e essas coisas assim. E eu venho
dessa família. E a minha mãe... Ela já era espírita, filha de Oxalufã1, mas não deu
sequência por causa do casamento com meu pai, que era uma pessoa muito
ignorante. E por ela não ter dado sequência, quem herdou fui eu. Essa herança,
segundo as pessoas da família, já veio desde o ventre. Porque antes de eu nascer,
no Hospital São Paulo, lá em São Paulo, os médicos falaram que eu não ia sobre-
viver. Foi com muita dificuldade. Minha mãe sofreu muito e diz que eu nasci
praticamente morta. Eles tiveram que fazer ressuscitação, toda uma série de
coisas. Quando eu tinha cinco anos, minha mãe e minha vó se viram forçadas a
me levar pros lugares onde benziam ou faziam trabalhos, porque eu era muito
doente. Tinha epilepsia e me dava convulsão... Eram os espíritos negativos
que assumiam meu corpo. Mas eu era muito criança e isso só foi resolvido a
partir dos oito anos de idade, com um senhor conhecido, na verdade a esposa
dele, que falou para minha mãe me levar no Rio de Janeiro, que lá resolveria.
Foi lá onde eu comecei. Foi na casa do pai Eduardo, na Vila Rosali, no
Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense. Lá no Rio, foi onde foi eu recebi a
primeira orientação espiritual. Eles fizeram um bori2. Eu fiquei recolhida
durante três dias num pátio escuro. Hoje é que eu tenho consciência disso,
porque na época eu era muito criança e levava tudo na brincadeira.
Depois, eu dei continuidade na religião, e não porque eu quis, mas
porque os espíritos começaram a vir em lugares impróprios. Eu estava
na rua, viravam. Eles ficaram sem domínio porque não tinha uma pessoa
pra cuidar de mim. Minha tia Nina — que a gente chamava de tia, mas não
era tia — um dia falou assim: “Não, isso tem que mudar”. Ela foi conver-
sando com eles e graças a Deus parou. Por isso, falo que fui praticamente
forçada a aceitar, porque na minha época de 14, 15 anos, eu queria namorar.
Modéstia à parte, eu era uma mulata bonita, chamava a atenção e vinha
aqueles negros lá da Vai-Vai, cada um mais lindo que o outro... E não dava
pra namorar sabendo que poderia vir um espírito, né? Nossa, imagine?!
E eu só tinha olho pros negros bonitos. Mas eu fiquei muito insegura nessa época.
Então, com 16 anos eu resolvi aceitar. E depois que eu passei a aceitar, foi
normal. O ruim era na época falar “Ah, eu sou espírita3”. Só de falar que você
era kardecista já era um tabu, né?

1
  Nas religiões afro-brasileiras a expressão “ser filho ou filha” indica que a pessoa possui um
determinado orixá como seu patrono pessoal. Oxalufã é o orixá Oxalá na sua versão mais
velha. É associado à autoridade patriarcal, por ser o pai de todos os outros orixás.
2
  Bori é um ritual na religião afro-brasileira que consiste em “dar alimento” à cabeça (Ori).
Destina-se a “acalmar” o orixá e proteger o filho de santo.
3
  O termo espírita muitas vezes é utilizado pelos integrantes das religiões afro-brasileiras
para se referir a sua experiência, seja na umbanda ou no candomblé. Cabe ressaltar que
muitos integrantes não utilizam essa terminologia, buscando se diferenciar da denomi-
nação kardecista.

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Fonte: Waldemir Rosa, 2015.
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equipe proex: E quanto tempo a senhora ficou no Rio de


Janeiro?
marina tunerê genan: Eu não me lembro. Sei que fui a
primeira vez, fiquei dez ou doze dias e fiquei estudando.
Depois, quando tinha 12 anos, eu voltei porque eu tinha
que tomar uma outra obrigação4. Mas, aí, aconteceu uns
problemas muito sérios na minha família e eu fiquei no Rio
por mais uns dois ou três anos.

equipe proex: Quem vivia com a senhora no Rio de Janeiro?


marina tunerê genan: Eu ficava na casa da filha do
pai Eduardo, da filha carnal dele. Mas ela não cuidava de
mim. Fez de mim uma empregadinha dela. Eu era obri-
gada a cuidar dos filhos dela, a fazer todas as tarefas
da casa e só podia comer quando todos eles saíam da
mesa. Essa é a realidade que eu passei, entendeu? Eu
passei muita fome. Cheguei a pegar comida de lixo pra
poder me manter em pé. Era extremamente magra. Eu
era cadavérica. Mas, sempre a gente encontra uma alma
bondosa. Eu conheci uma pessoa chamada Rute. Dona
Rute. Ela era madrinha de batismo da Dolores Duran5,
a cantora. E essa senhora — que onde o espírito dela estiver,
que esteja muito iluminado — quando viu o que eu passava
na casa da Alaíde, falou assim: “Eu vou dar um jeito de levar
você pra São Paulo e fazer você reencontrar sua família”.
Ela foi e falou com o pai Eduardo e disse a ele: “‘Tire ela’
da casa da Alaíde”. E ela me tirou mesmo de lá, chamou o
filho dela e me tirou. Ela falou: “Você sai com a roupa do
corpo, vai até lá embaixo, pega o bonde, desce na Praça
Mauá e o ‘Bastinho’ vai estar te esperando”. A gente pegou
o trem e veio pra São Paulo. Quando você sofre muito, tem
coisas que você apaga. E a única coisa que eu me lembrava
nitidamente era onde eu morava, na rua Rocha, lá na Bela
Vista, e a casa da tia Ci. Mas eu não sabia o nome da rua
da casa dela. A única coisa que eu tinha na mente é que eu
tinha que chegar na Igreja Santa Cecília e descer. Era uma
casa de esquina que tinha porão, e que o portão dela era
uma figa. Nós fomos pra Santa Cecília e levamos tempo para
achar a igreja... e subimos tudo a pé. Quando achamos a casa
certa, ele me deixou na porta, chegou pra ela e falou assim:
“Fala pra pra mãe dela ou pra alguma família dela que ela tá
bem ‘tá’?! ‘Tá’ viva”. E a minha tia Ci me acolheu. E quando
avisaram minha mãe... de início, ela não me reconheceu.

4
  “Tomar obrigação” ou “dar obrigação” é o termo utilizado para se
referir ao processo de iniciação nos cultos afro-brasileiros.
5
  Dolores Duran (1930-1959) foi uma cantora e compositora brasileira.

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Primeiro, eu tinha um cabelo muito comprido. E lá a Alaíde me obrigou a


deixar o cabelo curtíssimo. Tipo de homem mesmo, como é agora. Por isso,
minha mãe não me reconheceu, a princípio.

equipe proex: E como era visto o candomblé quando a senhora era criança?
marina tunerê genan: Na época, o candomblé em si era uma coisa que
tinha que ser muito escondida. O que se fazia era disfarçar. Os atabaques,
por exemplo, eram tocados com tábuas na mão, para abafar o som. Porque
se a polícia escutasse... vinha e chutava as coisas, né? Existia esse tipo
de preconceito. Quem conseguiu, na Baixada Fluminense, fazer com que
houvesse um respeito foi o Joãozinho da Gomeia6. Sabe, o João conseguiu
fazer com que esse preconceito acabasse, porque fundou o terreiro da
Gomeia — que infelizmente não foi tombado e hoje não existe mais em
São Paulo. Mas foi através da Gomeia que ele conseguiu, por conhecer
pessoas muito influentes, como o governador, que naquela época era o
Carlos Lacerda7. E também conhecia o Tenório Cavalcanti8. São pessoas da
ditadura. Eram todos anti-Getúlio, que na época já tinha se matado. Então
era... era aquela máfia na Baixada Fluminense. Ser político naquela época
era morrer. Era assim: o Carlos Lacerda e o Tenório Cavalcanti. O homem
da capa preta (Cavalcanti) e o homem que falava que não tinha medo de
nada (Lacerda) mas só saía com vinte, trinta pessoas, né? Senão, ele não
saía. E o Joãozinho da Gomeia sabia comandar o negócio, porque fazia eles
frequentarem a casa em dias totalmente diferentes. Protegia os dois, mas
eles não se encontravam. E ele foi conseguindo, conseguindo, pagando a tal
da polícia da Baixada Fluminense, né, Duque de Caxias, Nilópolis, tudo...
foi assim que o Joãozinho da Gomeia trouxe o candomblé realmente como é.
Começou na Baixada Fluminense e se estendeu a tudo.

equipe proex: Sua religião sempre foi o candomblé?


marina tunerê genan: Não. Já fui da umbanda. Quero dizer, fiz o bori
no candomblé, depois passei pra umbanda. Porque o candomblé, como
eu te disse, era uma religião estritamente fechada. Ninguém tinha acesso.
O acesso era para os filhos de santo da pessoa da casa. A porta não se abria
pra ninguém entrar, porque a polícia perseguia. Por isso se tinha medo,
porque eles chegavam e chutavam os igbá, quebravam os alguidares9,
levavam as ferramentas de santo. Era um uma tragédia. Tinha de ser tudo
escondido. Por isso que os grandes do candomblé, onde começou, come-
çaram tudo do nada, no meio do mato. E hoje a gente tem de voltar pra esses
lugares. Por exemplo, eu pretendo ficar aqui mais um tempo, mas quero
achar uma chácara. Porque os orixás se sentem sufocados por eu não ter
todas as árvores necessárias. E eu não posso ter todas. Querendo ou não, eu

6
  Joãozinho da Gomeia (1914-1971) foi um sacerdote do candomblé que viveu na Bahia, em
São Paulo e no Rio de Janeiro.
7
  Carlos Lacerda (1914-1977) foi jornalista e político brasileiro pela UDN.
8
  Tenório Cavalcanti (1906-1987) foi um advogado e político brasileiro do Rio de Janeiro.
9
  Igbás e alguidares são utensílios do candomblé. O igbá é um conjunto de louças e alguidar
é uma vasilha de barro.

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não tenho aonde esticar mais o barracão10. Eu não tenho como trazer ele pra
frente. Não tem como sair da casa e morar lá no barracão e mudar lá e fazer
tudo aqui um barracão. Não tem espaço lá (onde atualmente é o barracão),
eu não vou ter terra. O pedaço de terra que eu tenho é este aqui, onde
está a família Jê, né, que é a família Jê que é a família dos filhos de Nanã11.
E lá atrás eu tenho uma pequena horta de umas plantas de fundamento12.
Que é necessário. Mas eu preciso ter árvores. Eu não posso ficar sem árvores.
Porque todas as árvores, quando tem festa a gente põe um laço e dedica
ao orixá Iroko13, que é o dono das árvores. Porque Iroko só se faz quando
plantar uma árvore. Mas ao contrário, se você não planta uma árvore, você
não pode ter Iroko na sua casa.

equipe proex: Já que a senhora está falando da sua casa, como é que foi essa
vinda para Foz do Iguaçu?
marina tunerê genan: Em Foz foi sempre neste bairro. Eu cheguei
aqui em 1992, quando a Roberta (filha mais nova da mãe de santo) tinha
dois anos. Mas eu comecei em São Paulo, no Jardim Ibirapuera. E a minha
vinda pra cá foi por meio de um espírito que vem em mim, o boiadeiro
Sete Laços (algumas vezes, Marina Tunerê Genan se refere ao boiadeiro
como “caboclo”). Ele fez um trabalho com um senhor, aliás, uma família.
E essa família falou que o dia que desse tudo certo na vida deles, iam dar um
presente pra ele. Só que nem eu imaginei que seria alguma coisa relacionada
ao terreno, não. Eu morava de aluguel. Um dia, ele (o senhor para quem o
boiadeiro fez um trabalho) chegou lá e falou assim: “Eu precisava muito
falar com o boiadeiro”. Nossa, eu me lembro que tava hiperocupada e esse
homem ficou lá embaixo, esperando. O boiadeiro virou (a mãe de santo
incorporou) e ele perguntou: “Agora, eu tenho condições de dar uma casa
pra sua filha e pro senhor. Onde o senhor quer morar? Onde o senhor quer
que construa a casa pro senhor?”, ele (o boiadeiro) falou: “Foz do Iguaçu”.
E eu fiquei perguntando a Deus o que é que eu vim fazer aqui.

equipe proex: E como é que foi pra senhora a entrada aqui no bairro? Enfrentou
algum problema?
marina tunerê genan: Deus o livre! Jesus do céu! Todos aqui evangé-
licos. Era um tal de ‘rezar Bíblia’ no portão, pôr mensagem... Eu perguntava a
Deus e ao mundo, todos os dias, o que é que o caboclo tinha inventado de eu
vir parar nesse fim de mundo. Hoje, meus vizinhos, todos eles, conversam

10
  O barracão é o espaço onde ocorrem as atividades religiosas do candomblé. No caso de
mãe Marina, o barracão está no mesmo terreno que a casa e, por isso, não há espaço.
11
  Nanã é uma orixá feminina identificada como a matriarca da família Jeje, ou Jê, e a primeira
esposa de Oxalufã.
12
  “Plantas de fundamento” são as plantas de grande importância na ritualística das religiões
afro-brasileiras.
13
  Iroko é um orixá de origem Jê e um dos filhos de Nanã. É associado a uma árvore de
mesmo nome e ao culto dos ancestrais.

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comigo e não tenho inimizade. Não sou de ir na casa deles, nem eles de ir na
minha casa. Mas eles me respeitam. Me tratam superbem.

cristiane: Colocavam faixas... Já colocaram no muro aqui: “Jesus tem poder”.

equipe proex [para Cristiane]: Você já entendia que sofria preconceito na escola?
cristiane: Eu não. Minha tia que me ensinou a responder. E eu respondia
e xingavam mais, e eu voltava chorando. Ai, que ódio. Mas eu não sabia. Eu
não entendia que isso era preconceito, não. Achava que era implicância.

marina tunerê genan: É, chega um tempo que você começa a se cansar.


Mas a única coisa que eu nunca pus em prova foi a minha fé. Eu nunca
duvidei disso. Mas foi muito difícil, porque, acostumada com São Paulo, eu
morava num bairro que tinha candomblé pra tudo quanto era lado. E nós
já tínhamos todo mundo ido na casa de um e de outro. Aqui, chegaram a
proibir outros terreiros de virem aqui. Porque eu tinha vindo de São Paulo.
E também porque inaugurou aqui já com esse barracão. E ninguém tinha um.

equipe proex: E com o boiadeiro Sete Laços... Como é a relação com ele?
cristiane: O boiadeiro Sete Laços faz mais de 300 anos que incorpora nas
pessoas.

marina tunerê genan: E hoje... é engraçado, mas ele já foi um espírito


muito, muito violento. Ele ia embora, me jogava no chão... E se eu fizesse
alguma coisa que ele não gostasse, ele já me ‘encacetava’, sabe? E foi muito
ruim. Até ele receber essa doutrina, demorou. Mas ele foi mudando, foi
mudando, foi mudando e hoje, pode-se dizer assim, de vez em quando dá uns
repentes nele e ele xinga, fica bravo, desafia os outros pra brigar, sabe. Mas
depois ele volta ao normal. Mas há coisas que me fazem reforçar a minha fé.
E aqui em Foz do Iguaçu outra vez, na festa do ano passado, ou foi neste ano?...
veio um rapaz de Londrina aqui e ele chorou quando viu... Ele me falou que
era o mesmo caboclo que vinha na vó dele. Quer dizer, tem uma coisa que
é verdadeira. Então, esse espírito existiu. Ele pertenceu a esse mundo e foi
embora desse mundo. E o que ele deixou... ele produziu sementes.

equipe proex: Então, as pessoas o acompanham?


marina tunerê genan: Exatamente. Ele tá na fase da evolução, e um dia
vai ter que parar. E chega uma época que tem que parar. Aí, vêm outros, que
ele vai doutrinando... Ele doutrina para outros virem. Quando isso acon-
tecer, ele já pega um posto mais alto. Vira orientador.

cristiane: É, é igual a Exu. A gente tem aquela impressão ruim, porque o


que a gente vê é o começo da passagem dele, é o começo da missão. Ele não
tem doutrina ainda. As pessoas acham que é o diabo, mas a gente entende
que é a evolução dele (de Exu). E a gente acha que daqui a uns 100 anos ele
vai ser um espírito mais educado.

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Fonte: Waldemir Rosa, 2015.


equipe proex: E isso não tem um tempo determinado, é o quanto for necessário?
Pois, segundo o que vocês disseram, o caboclo está há 300 anos incorporando...
marina tunerê genan: O caboclo sempre frisa que agradece a Deus de
ter tido o privilégio de escolher se ele viria como um mentor espiritual — e
daí ele teria que aprender a doutrina, a respeitar e tudo o mais — ou se ele
voltava como ser humano. E apagaria tudo, e ele voltaria. Mas, ele preferiu
cumprir a missão dele como espírito.

equipe proex: Marina Tunerê Genan, como a senhora acha que as religiões de
matriz africana, que a senhora representa, podem contribuir pra resistência
da população negra?
marina tunerê genan: Dando orientações. Fazendo o social, que é
ajudar o próximo. Fazendo doações. Trazendo essas pessoas pra dentro da
casa... Não pra dentro da religião, mas fazendo eles entenderem o que é a
religião, o que é o princípio. [Entenderem] o porquê de nós não termos
Bíblia; o porquê de nós não termos pastores; de nós não termos bases...
coisa nenhuma! As nossas bases, o nosso alicerce, é a mente. Porque os
negros que aqui vieram... ninguém ‘ensinou eles’, ninguém ‘alfabetizou
eles’. As histórias foram apagadas. Eles foram obrigados a aceitar a Bíblia.
A grande realidade é essa. Porque naquele tempo era protestante e católico.
Mas a maioria era protestante. Principalmente nos Estados Unidos. E eles
liam a Bíblia e aumentavam... Diziam que Jesus disse que negro não tem
alma, que vocês (os negros) vieram pra servir os brancos, porque vocês
(os negros) são seres inferiores. Por isso, o negro já veio com essa ideia...
de que não era nada. Só que tanto os Estados Unidos quanto a própria África,
o que fizeram? A própria África deixou que eles viessem e fossem escravi-
zados. Porque eles podiam lutar. Mas o próprio negro pegava outros negros,

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ganhava o dinheiro e fazia deles escravos. Entregava pros capitães, aqueles


que faziam o comércio dos negros. Hoje o que eu acredito é que se todos se
unirem, fizerem um social, primeiramente com as crianças, não adianta ir
no adulto. O adulto de hoje... está com uma malformação sobre a religião.
Pra eles, nós adoramos o diabo. Para eles, o sacrifício que existe é coisa do
demônio, que isso e aquilo. Só que tudo que nós fazemos é rezado. Antes,
durante e depois. E daí depois nós comemos. E esses que vão no matadouro,
rezam o quê? Por que agora nós vamos ser proibidos de sacrificar animais?

cristiane: Como é que vão querer proibir a religião, se tem o tiozinho que
vive lá no meio do mato que também mata o bicho. Que caça, mata e come.
Então vai ter que proibir todo mundo, ou ninguém né?

marina tunerê genan: O Brasil vai ter que virar vegetariano. Ué...
também tem que proibir os frigoríficos.

cristiane: Sim, porque tem frigorífico que, passou uma reportagem no


Fantástico, eles iam arrancando as partes do bicho, e o bicho vivo... E iam arran-
cando as partes... Você acha que isso aí é pessoa de bem? E vem falar de nós?...

marina tunerê genan: Nós não fazemos isso. Nenhum bicho fica sofrendo
na faca ou durante o sacrifício. A gente faz de uma maneira que o bicho não
sente, é uma morte instantânea. E é rezando. É rezando, é rezando, os outros
acompanhando, sabe... A gente tá rezando aquela carne que tá alimentando
não só nós, mas vai alimentar a comunidade. Porque tudo o que sobra a
gente doa. Doa pras pessoas que frequentam, pras pessoas muito humildes
que não têm... A gente faz o social, nós doamos roupas, calçados...

equipe proex: A senhora participou do curso de Educação para as Relações


Étnico-Raciais junto com os membros do Núcleo Regional de Educação. Como
é que a senhora vê a realização do curso? A senhora acha que foi importante
para trabalhar essas questões?
marina tunerê genan: Sim, muito importante. Nossa, essa oportunidade
que a UNILA tá dando é de suma importância. Porque isso vai se passando,
e a gente vai convidando, vai falando pras pessoas: “Olha, vocês têm que
conhecer”. Porque existe um preconceito, infelizmente. Todos me falam:
“Ai, você fica aí metida com os unileiros”...
[risos]
marina tunerê genan: Difícil. Só que eles não participam. Então, fazem
uma crítica baseados em quê? Na aparência do pessoal que estuda. Porque
na UNILA, a oportunidade que apareceu não foi uma oportunidade única:
só aquele dia e acabou. Ali nós estamos tendo apoio. Estamos podendo falar,
temos direito a palavra, sabe. E tudo que tá sendo falado, tá sendo aprovei-
tado. Nós estamos pondo o que nós pretendemos e a UNILA, de uma certa
forma, também tá absorvendo esse conhecimento.

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equipe proex: É uma troca...


marina tunerê genan: É uma troca. É só assim que a gente caminha. Mas
é uma parceria mil. Eu falo com maior orgulho.

cristiane: E olha, eu vou falar uma coisa, quem veio nos visitar teve total
acesso aqui. Fica sabendo as coisas desde o início. Desde o banho, antes de
começar as coisas, até o final. Tipo livre acesso mesmo, desde o início.

marina tunerê genan: Pra eles verem também que o candomblé não é
aquele bicho de sete cabeças, entendeu? Não é um bicho de sete cabeças.
Quando estive lá em São Paulo agora, com uma filha de santo minha que
tomou as bodas de prata, eu falei isso pra ela. Eu falei assim: “Tenho muito
orgulho da UNILA me convidar pras palestras que tem. Pras mesas que
tem, eu ser convidada. Eu tenho orgulho disso porque é uma universidade
que tá abrindo portas”. Independentemente de vocês que estão aqui hoje,
tá abrindo portas. E é uma porta que tá se abrindo que futuramente eu posso
fazer uma palestra no Chile, no Uruguai... e a gente expandir. Eles passarem
o conhecimento deles pra mim que vai ser importante, muito importante.
E eu passar o pouco que eu sei pra eles. Vai ser uma troca, né? Uma coisa
básica. É o que eu falo aqui pra Roberta e pra Cristiane (filhas biológicas
de Marina Tunerê Genan), que são minhas sucessoras. Eu pretendo conti-
nuar só esse ano (2015). Vou tomar minha obrigação de 40 anos de santo...
Meus filhos de santo vão continuar sendo meus filhos... Mas eu quero que
elas assumam essa parte. Sabe, por quê?... eu já tô com 67 anos e isso cansa.
Você tem que ser psicólogo, você tem que ser analista... Cada um com seu
problema, né? Você tem que ser tudo: analista, psicólogo, psiquiatra, assis-
tente social. Tem que ser tudo ali. A pessoa entrou naquele quarto, falou os
seus problemas e você viu que existe aquele problema e tem que ajudar e
pôr na cabeça das pessoas que nem tudo é do jeito que elas pensam.

equipe proex: Depois que começaram essas ações em parceria com a universi-
dade e o trabalho com o Núcleo Regional, deu pra perceber alguma diferença?
Alguma escola da região se aproximou?
marina tunerê genan: Os pedagogos que participaram das reuniões
foram orientando as escolas pra pedir palestras. É onde eu faço palestra nas
escolas e apresento o afoxé. E aumentou a solicitação das escolas, porque
antes não tinha praticamente nada.

cristiane: Porque antes acontecia muito de a gente começar a tocar e as


pessoas se levantavam. Agora não, é difícil acontecer isso. Mas, por exemplo,
o carro do afoxé, uma pessoa ignorante ainda acha que é macumba.

equipe proex: Vocês já receberam convites pra ir pra Puerto Iguazú (Argentina)
ou pra Ciudad del Este (Paraguai)?
marina tunerê genan: Olha, Ciudad del Este, não. Puerto Iguazú teve
um convite, só que da maneira que eles queriam, que a gente arcasse com
todas as despesas, não dá. Porque o fundo que o afoxé tem é muito pouco.
Porque a gente não faz eventos, né?

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equipe proex: Quando vêm pessoas novas aqui, como funciona? Há algum tipo
de preparo?
marina tunerê genan: Primeiro você (a pessoa que pretende se iniciar)
vai assistir, porque não adianta só eu falar pra você. Se você não vir, você não
aprende. Só o oral não vai funcionar. Você primeiro tem de ver, pra depois eu te
explicar. Olha, você viu, nós cantamos pra Exu. Mas nós cantamos pra Exu pra
quê? Pra que ele olhe a nossa porta, o nosso portão, o caminho. Não deixar que
nada de mau aconteça, nem com quem está aqui, nem com nossos familiares.
Foi por isso que nós alegramos Exu, fazendo o ipadê14. O ipadê na rua fazendo
as coisas que Exu gosta. Por que que cantamos pra Ogum? Ogum é o primeiro
orixá, que vem depois de Exu. Mas por quê? Porque são dois irmãos e Exu foi o
único que acompanhou Ogum. Porque Ogum foi um orixá que cometeu atro-
cidades. Ele não foi perfeito. Cometeu erros, sabe? Ele pagou muito caro por
isso. Aguentou o desprezo de uma nação inteira. E quando ele foi expulso de Irê
(Irê é uma cidade que faz parte dos reinos africanos da etnia nagô e, na história
mítica, foi tomada por Ogum em determinado período), quem acompanhou
foi só Exu, como o único amigo que ele tinha. Foi então que foi determinado
por ele, porque o respeito que tem por Exu é tão grande, que antes de qualquer
orixá, antes mesmo de Ogum comer, primeiro come Exu. Exu na frente de todos.
Por isso que Exu pra nós não é essa coisa satânica que vem pra destruir, que
vem pra fazer acontecer. Não! Exus são...

cristiane: Exu é o mensageiro.

marina tunerê genan: Mensageiro alegre. Eles querem tomar sua


cachaça, o seu conhaque, mas se divertir e essas coisas. É linda a religião.
É linda a religião. Jamais deixaria o candomblé por qualquer outra religião.
Tradição da nossa reza é a coisa mais maravilhosa. Pena que as pessoas
deturpam o negócio. Mas têm pessoas também que fazem da nossa religião
uma barbaridade que dá vergonha.

cristiane: Comércio. Quer dizer, se minha mãe fosse fazer comércio da


religião ela já tava rica. Já veio gente aqui que estava com muita dificul-
dade... E minha mãe disse assim: “Não, você dá o que você puder”, porque
tem gente que já tá numa situação ruim.

equipe proex: Mas, então, qualquer pessoa tem a oportunidade de vir aqui e
aprender com vocês?
marina tunerê genan: Sim, tem. Tem a oportunidade.

  Ipadê, ou padê, é um rito que consiste fazer uma oferenda de alimentos e bebidas preferidas
14

do orixá Exu, que é guardião da casa de culto e o mensageiro entre os humanos e os orixás.

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