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Corpo, Cultura

e Educação Física
Vol. 1
Marcel Alves Franco
Aguinaldo Cesar Surdi
Organizadores
Sobre o livro
Nesta coletânea, o leitor irá se deparar com temas que insti-
garam os estudos de pesquisadores, docentes e discentes do
Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte e colaboradores convidados
de outras instituições. Os temas que compõem esta obra estão
relacionados ao brincar e ao jogo no processo educativo, ao
lazer para idosos e a extensão universitária, à prática do futsal
e as interfaces da dor e do sacrifício por mulheres, à cultura
expressa no corpo na ginástica rítmica, ao futebol a partir do
povo indígena Karipura, ao corpo e à epistemologia e sua contri-
buição para o âmbito escolar e às compreensões de corpo no
programa “medida certa”, no cinema de Pedro Almodóvar, no
ideal hedonista e a perspectiva libertina e na prática docente a
partir do aporte fenomenológico de Merleau-Ponty.
Como fruto do esforço de todos do programa e dos
preciosos debates com pesquisadores de outras instituições
na construção do conhecimento no âmbito da Educação Física,
convidamos, assim, os leitores a transitarem pela coletânea
Corpo, Cultura e Educação Física a fim de promover um diálogo
aberto à pluralidade epistemológica.
Corpo, Cultura
e Educação Física
Vol. 1

Marcel Alves Franco


Aguinaldo Cesar Surdi
Organizadores

Natal/RN
2018
Reitora
Ângela Maria Paiva Cruz
Vice-Reitor
José Daniel Diniz Melo

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Luis Álvaro Sgadari Passeggi (Diretor)
Wilson Fernandes de Araújo Filho (Diretor Adjunto)
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Francisco Welson Lima da Silva Samuel Anderson de Oliveira Lima
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Coordenadora de Revisão Diagramação


Maria da Penha Casado Alves Luiza Fonseca de Souza

Coordenador Editorial Capa


José Correia Torres Neto Luiza Fonseca de Souza
Revisão Tipográfica
Letícia Torres
Catalogação da publicação na fonte. UFRN/Secretaria de Educação a Distância.

Corpo, Cultura e Educação Física / Organizado por Marcel Alves Franco e


Aguinaldo Cesar Surdi. – Natal: SEDIS-UFRN, 2018.
239 p. : PDF ; v 1.

Modo de acesso: https://repositorio.ufrn.br


ISBN 978-85-7064-048-2

1. Educação física. 2. Corpo. 3. Cultura. I. Franco, Marcel Alves. II. Surdi,


Aguinaldo Cesar.

CDU 796
C822

Elaborado por Verônica Pinheiro da Silva – CRB-15/692.

Todos os direitos desta edição reservados à EDUFRN – Editora da UFRN


Av. Senador Salgado Filho, 3000 | Campus Universitário
Lagoa Nova | 59.078-970 | Natal/RN | Brasil
e-mail: [email protected] | www.editora.ufrn.br
Telefone: 84 3342 2221
PREFÁCIO
É com muita alegria que prefacio este livro que trata do corpo
humano e de seus movimentos, considerado numa perspec-
tiva sociofilosófica e educativa. As elaborações discursivas
deste livro são frutos dos intensos debates dos grupos GEPEC
e ESTESIA, que contribuem com a produção de conhecimen-
tos no âmbito da Educação Física enquanto área de conheci-
mento. Esses grupos, pertencentes à Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, amparam-se nas Ciências Humanas para
pensar o humano enquanto expressão do corpo que cria movi-
mentos intencionais e não apenas repete movimentos mecâ-
nicos, derivados de reações fisiológicas que respondem aos
estímulos do ambiente natural.
Os corpos humanos se deslocam no espaço físico, ficam
suados e desidratam, mas também jogam e brincam; inventam
espaços próprios. Os movimentos desses corpos não produzem
apenas reações já previsíveis, eles também produzem o inespe-
rado, o estranho e o absurdo, criando fenômenos que carecem
de tradução e interpretação. Os movimentos dos corpos huma-
nos não seguem apenas esquemas motores rígidos, que formam
padrões de comportamento controlados por procedimentos de
modulações de condutas, imprimem marcas pessoais e criam
histórias de vida com a produção de movimentos expressivos.
O pesquisador em Educação Física não pode conside-
rar o corpo apenas reduzido ao seu funcionamento biológico
desprovido de expressividade. A Universidade deve abrigar
pesquisas na direção do “corpo objetivo” como organismo
vivo, bem como considerar o “corpo sujeito” como inventor
de variadas formas de viver.
O ser humano não apenas realiza movimentos, mas
também se movimenta. Esse “se” expressa o caráter subjeti-
vo ou intencional dos movimentos corporais. Evidentemente,
que esse caráter é sempre encarnado no mundo da existência
e nos contextos das instituições sócias em que o corpo está
situado. O corpo humano não apenas “é”, ele precisa criar uma
forma de “existir”. A liberdade de criar é a marca singular dos
corpos humanos.
Valorizar as ações humanas enquanto atos criadores não
significa apenas indicar um modo de pesquisar, mas também
uma maneira de educar ou de formar pessoas. Como fazer com
que os estudantes se encantem com o conhecimento e dese-
jem se tornar sujeitos desejantes de saber? Uma questão dessa
natureza exige do pesquisador uma postura que transcende a
mera repetição de práticas pedagógicas para se aventurar no
mundo lúdico da criação ou das constantes transfigurações do
corpo que brinca.
O corpo não apenas trabalha para transformar a nature-
za em bens para satisfazer as necessidades biológicas do orga-
nismo. O corpo vive do desejo ou de uma abertura para mundos
possíveis e criados socialmente. O corpo humano trabalha,
mas também inventa um tempo livre para o lazer. Corpos que
amadurecem ao logo da vida até se tornarem idosos buscam
meios para se divertir e continuar aprendendo. Práticas corpo-
rais orientandas por professores de educação física podem criar
espaços de convivências para pessoas que inventam formas de
continuar sonhando e desejando ampliar seus horizontes de
experiências de aprendizagens.
As pessoas praticam atividades corporais não apenas para
atender padrões normativos dos discursos da saúde enquanto
área de conhecimento. Elas sacrificam seus corpos produzindo
dores para construir uma identidade social. Elaborar sentidos
para existência é uma forma de se fazer corpo no horizonte
simbólico, assim corpo não é apenas disciplinado e controlado
pelas normas vigentes. Ele também se rebela e subverte a ordem
social predominante.
O corpo produz cultura e é produzido por ela. Não há
corpo sem um útero cultural. Aquilo que é da ordem do dado
(natural) e do criado (cultural) se entrelaçam para formar o
humano. Nessa perspectiva, o esporte não é apenas a realização
de movimentos performáticos, mas gestualidades com possibi-
lidades infinitas de interpretações. O esporte é a expressão do
corpo que entrelaça em seus movimentos aspectos biológicos,
tecnológicos e culturais.
Uma prática esportiva estranha, que uma determina-
da comunidade se apropria, recebe as significações culturais
dessa etnia. Até mesmo o futebol com todas suas regras esta-
belecidas, por exemplo, ganha uma nova roupagem quando
praticado por uma comunidade indígena. A linguagem não é
apenas um meio para descrever o futebol. Essa prática espor-
tiva ela mesma é uma forma de linguagem na medida em que
é uma prática cultural que instaura comunicações entre dife-
rentes cosmovisões.
É por meio do corpo que a educação física enquanto jogo,
esporte, ginástica, dança e luta se configura como linguagem.
Todas essas práticas corporais são produções da vida sensível,
que produz elaborações simbólicas que significam e ressignifi-
cam a existência. O corpo se torna historicidade, logo se revela
enigmático e carente de traduções. As explicações da ciência
que segue o paradigma objetivista não consegue eliminar os
mistérios do corpo.
O corpo pode ser visto como estrutura fechada enquanto
organismo biológico, bem como pode ser compreendido como
estrutura aberta que nos transforma em seres de possibilidades.
Uma leitura determinista e linear do corpo é limitada, pois não
oferece a possibilidade de considerar o corpo em constantes
elaborações simbólicas. Como diz Merleau-Ponty, o corpo é obra
de arte. Todas as condutas humanas que se entrelaçam no corpo
são encontradas na obra de arte, assim como o próprio corpo
se constitui numa obra de arte enquanto criação de estilos de
vidas diversificadas. Se tomarmos o cinema como exemplo, o
corpo faz o filme e o filme faz o corpo.
É inconcebível desprezar o corpo quando desejamos
compreender o ser humano do ponto de vista das configura-
ções subjetivas na existência. Nesse sentido, o corpo se constitui
sujeito nas relações intercorpóreas com o outro. Desprovido de
alteridade, o corpo não consegue tornar-se sujeito. É pelo limite
do outro que o corpo se reconhece como unidade interativa.
A intercorporeidade instaura uma reciprocidade marca-
da por familiaridades e estranhamentos. Nascem, nesse contex-
to, exigências éticas que se entrecruzam com as experiências
estéticas do corpo. O prazer sensível e o respeito ao outro
encontram morada no corpo, que vive a experiência de felici-
dade na finitude como abertura para o infinito.
Ao considerar a experiência de sentir exige novos cami-
nhos para a prática educativa, educar não se reduz ao exercício
de apropriação de conhecimentos. Antes de tudo, educar exige
a formação de pessoas que desejem saber. Sujeitos desejantes
de saber são os que se reconhecem como atados a um certo
mundo pelo corpo e que passam a inventar traduções para os
enigmas desse mundo.
Todas essas palavras são para provocar e convidar os
desejantes de saber para apreciar os belos e instigantes textos
que inventaram esse livro. Saber é saborear. Desejo que todos
os leitores possam saborear essa apetitosa obra.

Iraquitan de Oliveira Caminha


Professor Doutor da Universidade Federal da Paraíba


Sumário

14 APRESENTAÇÃO
Marcel Alves Franco
Aguinaldo Cesar Surdi

16 O BRINCAR E O JOGO COMO PROCESSO


EDUCATIVO NA EDUCAÇÃO FÍSICA
Aguinaldo César Surdi
Mackson Luiz Fernandes da Costa

40 LAZER, IDOSOS E EXTENSÃO


UNIVERSITÁRIA: UMA CONFLUÊNCIA
Angela Brêtas Gomes dos Santos
Maria Aparecida Dias
José Pereira de Melo

61 AS INTERFACES DA DOR E DO SACRIFÍCIO


NA PRÁTICA DO FUTSAL POR MULHERES
Antônio de Pádua dos Santos
Mayara Cristina Mendes Maia
83 GINÁSTICA RÍTMICA: A CULTURA
EXPRESSA NO CORPO GINÁSTICO
Hosana Claudia Matias
Rosie Marie Nascimento de Medeiros

102 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O FUTEBOL


ENTRE OS POVOS INDÍGENAS KARIPUNA
Marcio Romeu Ribas de Oliveira

120 CORPO E EPISTEMOLOGIA: CONTRIBUIÇÕES


PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR
Mackson Luiz F. da Costa
Aguinaldo César Surdi
Judson Cavalcante Bezerra
Moaldecir Freire Domingos Júnior

140 O CORPO NA “MEDIDA CERTA”:


COMPREENSÕES, SABERES E PRÁTICAS
Hudson Pablo de Oliveira Bezerra
Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

163 O CORPO NO CINEMA DE PEDRO


ALMODÓVAR: PERCEPÇÃO
E EXPERIÊNCIA NA EDUCAÇÃO FÍSICA
Terezinha Petrucia da Nóbrega
Paula Nunes Chaves
193 CORPO LIBERTINO:
POR UM IDEAL HEDONISTA
Rayane Monaliza da Nóbrega Oliveira
Rosie Marie Nascimento de Medeiros

208 O CORPO NA EDUCAÇÃO FÍSICA:


REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA
DOCENTE A PARTIR DA FENOMENOLOGIA
DE MERLEAU-PONTY
Marcel Alves Franco
Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

228 SOBRE OS AUTORES E OS ORGANIZADORES


APRESENTAÇÃO
O presente livro nasce de diversas temáticas que perpassam as
discussões do Departamento de Educação Física da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte e de pessoas pertencentes a
outras instituições que, de maneira oportuna ao convite dos
autores, colaboraram para sua elaboração.
Nesse sentido, a finalidade da obra corresponde, essen-
cialmente, à divulgação dos estudos e das intervenções promo-
vidos por docentes e discentes ligados ao Grupo de Pesquisa
Corpo e Cultura de Movimento (GEPEC), Grupo de Pesquisa
Corpo, Fenomenologia e Movimento (ESTESIA) e de pessoas
convidadas diretamente pelos autores participantes dos grupos
referidos.
Além desse movimento entre grupos, podemos citar que
esta obra também é fruto dos professores que cursam mestrado,
doutorado e pós-doutorado no âmbito da Educação Física e da
Educação, cujas linhas de pesquisa e intervenção remetem-se
aos aspectos sociofilosófico, pedagógico ou sociocultural sobre
o corpo e movimento humano.
Vale-se enfatizar que esta obra representa uma parcela
do que a Educação Física significa e representa para cada um
dos pesquisadores que auxiliou em sua construção. Não obstan-
te, os capítulos desta obra reforçam a perspectiva de uma plura-
lidade epistemológica da área, tendo em vista que este fator é
como uma sala que possui várias portas e janelas abertas, ou
seja, novas possibilidades de conhecimento acerca de corpo,
saúde, escola, sociedade, cinema, cultura e uma infinidade de
conteúdos que não se encerram em si mesmos.
Apresentação

Desse modo, a Educação Física aqui abordada refere-se


a uma construção conceitual, atitudinal e procedimental que
sempre se renova. Desde suas raízes orgânicas com a nature-
za até a mais pura filosofia que o corpo em movimento possa
criar. Uma Educação Física que se apropria dos fenômenos do
mundo – e os interroga –, debruçando-se sobre as possibilidades
criativas e a infinidade de relações que o ser humano vive e tem
potencial para promover a cada instante.

Marcel Alves Franco


Aguinaldo Cesar Surdi

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O BRINCAR E O JOGO COMO
PROCESSO EDUCATIVO NA
EDUCAÇÃO FÍSICA
Aguinaldo César Surdi
Mackson Luiz Fernandes da Costa

Introdução

O jogo enquanto conteúdo das aulas de Educação Física tem


sido usado, geralmente, como meio para aprendizado de outros
conteúdos, normalmente o esporte. As práticas que envolvem
jogos e brincadeiras como conteúdos das aulas de Educação
Física compõem um conjunto de possibilidades que ampliam a
percepção e a interpretação da realidade. É por meio do jogo que
se abrem possibilidades de discutir regras, organização coletiva
e valorização dos aspectos lúdicos. A ludicidade é a concretiza-
ção corporal da espontaneidade, do senso de humor, da alegria
e do prazer, expressados por movimentos e ações do sujeito.
Santin (1992, p. 104), comentando sobre a esportivização das
práticas corporais, salienta que “brincar tornou-se uma ativi-
dade dependente dos conhecimentos científicos, dos segredos
técnicos e dos interesses econômicos”, valendo mais a vitória
que o prazer de jogar. Frisa, também, que “os comportamentos
lúdicos são tão importantes quanto o comer e o beber”. O autor
comenta, ainda, que o jogo, apesar de não ser a única, é uma
excelente forma de compreender as estruturas sociais, estando
presente a ideia de liberdade e de espontaneidade, de acaso
Aguinaldo César Surdi / Mackson Luiz Fernandes da Costa

sem predeterminismos. Segundo Coletivo de Autores (1992,


p. 64), o homem inventou o brincar por ser “um ato em que sua
intencionalidade e curiosidade resultam num processo criativo
para modificar, imaginariamente, a realidade e o presente”.
Atualmente, a escola vem passando por grandes questio-
namentos, no que se refere às suas funções, intenções e organi-
zação. Todos eles implicam no processo formativo das pessoas,
que iniciam suas primeiras experiências na infância, portanto é
de extrema importância refletir como a escola tem contribuído
nessa fase do desenvolvimento humano.
Este ensaio busca apresentar o brincar como núcleo
estruturante para um processo formativo, tendo o jogo como
conteúdo da Educação Física escolar que se apropria do aspecto
lúdico para a aprendizagem. Compreendendo que:

A observação de crianças, uma vez reduzida


às categorias do entendimento, torna-se um
pouco mais pobre, um pouco menos vibrante.
Por essa razão, percebe-se o desafio da pesqui-
sa e do ensino em geral e, por consequência,
a educação de crianças em compreender as
relações teoria e prática como jogo, cujas
peças – conceitos, noções e estratégias – são
brinquedos de armar, são pedrinha sérias de
rir (NÓBREGA, 2008, p. 17)

Muitos estudos sobre o comportamento e a psicologia da


criança foram produzidos. Eles influenciaram e influenciam
as práticas pedagógicas na escola. Neste artigo, apresentamos
alguns desses pensadores, porém convergiremos para uma
perspectiva que leva em consideração as experiências das crian-
ças, que se manifestam por meio da corporeidade.

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O Brincar e o Jogo como Processo Educativo na Educação Física

A Educação Física se apresenta como campo de possibi-


lidades, pois tem o corpo como enfoque de suas intervenções
pedagógicas. No entanto, na tentativa de se enquadrar no atual
modelo de escola, despe-se de suas potencialidades de trans-
formação de um modelo, que vem se mostrando insuficiente
para a sociedade atual.

O brincar em questão

O brincar vem motivando um grande número de estudiosos a


pesquisar essa temática, diante da sua importância no proces-
so formativo, principalmente, na infância. Piaget enfatizava a
ideia da criança pesquisadora/exploradora, que se utiliza da
experiência para construir o seu conhecimento. Nesse proces-
so de construção do conhecimento, as atividades lúdicas são
fundamentais, por oportunizar o prazer. É por meio da diversão
que as atividades se tornam interessantes, despertando a curio-
sidade e o prazer na interação com o meio físico e social. Esse
processo de interação indivíduo-ambiente é fundamental para
se compreender os mecanismos mentais que o indivíduo utiliza
para captar o mundo. O desenvolvimento cognitivo individual
se dá por constantes desequilíbrios e equilibrações causadas
por mudanças internas do indivíduo ou do ambiente. O autor
comenta que a criança é entendida como “sujeito” do seu desen-
volvimento (PIAGET, 1994).
Froebel (2001) dá grande importância às atividades livres,
valorizando a liberdade de expressão da criança, que pode
acontecer por meio de brincadeiras espontâneas. Conforme
o autor, essas atividades devem ser realizadas em cooperação
com os outros, possibilitando a participação de todos. Defende

18
Aguinaldo César Surdi / Mackson Luiz Fernandes da Costa

o brinquedo como meio fundamental para que a criança tenha


sua primeira representação do mundo.
Wallon (1979) comenta que tanto o brincar quanto o brin-
quedo são imprescindíveis para a estruturação do Eu, bem como
na aprendizagem da própria vida. Eles adquirem uma impor-
tância capital no desenvolvimento afetivo, motor, intelectual
e social. Por meio do brinquedo, a criança constrói sua perso-
nalidade, pela forma como conhece e analisa o mundo. O autor
salienta a importância da organização e da disponibilidade de
materiais e de espaço para que a criança consiga se expressar
à sua maneira e, assim, desenvolver-se.
Para Vygotsky (1987), o brincar também é fundamental
no desenvolvimento do comportamento infantil, por possibili-
tar a criação de situações imaginárias e simbólicas que predo-
minam na primeira infância. Essas situações oportunizam o
desenvolvimento dos processos psicológicos e a inserção social
e cultural da criança. Outro fator importante é que o que passa
despercebido na vida da criança se torna regra de comporta-
mento na brincadeira.
Conforme Erikson (1950), é pelo brincar que a criança
conquista o ambiente. Investe nesse processo porque está reves-
tido de alegria e proporciona prazer. No brincar, a criança faz
um pouco de tudo e, por isso, é necessário possibilitar a ela
tempo para expressar ludicamente seus pensamentos e suas
emoções, de forma espontânea. Como consequência da organi-
zação do pensamento pelo ato de brincar, o desenvolvimento
da linguagem oral e escrita é facilitado. Logo, pelo brincar, essa
exploração concreta e direta do ambiente onde a criança vive
estabelece os fundamentos para o pensamento abstrato.
Já Winnicott (1975, p. 63) considera que:

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O Brincar e o Jogo como Processo Educativo na Educação Física

[...] o ato de brincar é mais que a simples


satisfação de desejos. O brincar é o fazer
em si, um fazer que requer tempo e espaço
próprios; um fazer que se constitui de expe-
riências culturais, que é universal e próprio
da saúde, porque facilita o crescimento,
conduz aos relacionamentos grupais, poden-
do ser uma forma de comunicação consigo
mesmo (a  criança) e com os outros.

Nessa perspectiva, o brincar caracteriza-se pela possibi-


lidade de desenvolver capacidades importantes, como atenção,
memória, imitação, imaginação e, ainda, formas de explorar
e de refletir sobre a realidade e a cultura nas quais estamos
inseridos. Nesse contexto, somos capazes de questionar as
regras e os papéis sociais aos quais somos direcionados. Por
meio do brincar, a curiosidade, a autoconfiança e a autono-
mia são estimuladas, o que proporciona o desenvolvimento da
linguagem, do pensamento e da concentração.

A brincadeira permite aos bebês e às crian-


ças pequenas aprenderem sobre si mesmas
e o mundo ao seu redor; elas não separam
o momento de brincar do de aprender ou
qualquer momento. Sua brincadeira é sua
aprendizagem e vice-versa (DORHERTY et
al., 2011, p. 130).

A criança, quando brinca, imagina, e assim consegue ultra-


passar e transformar a realidade. Ela consegue se expressar
por meio de uma percepção global da realidade, o que possibi-
lita que essa percepção seja sempre nova, criadora e cheia de
aprendizagem, na qual a realidade é reinventada constante-
mente. Barbosa (2009, p. 31) afirma que “as crianças brincam
porque gostam de brincar, e é precisamente no divertimento

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Aguinaldo César Surdi / Mackson Luiz Fernandes da Costa

que reside sua liberdade e seu caráter profundamente esté-


tico”. Neste sentido, Dorherty et al. (2011, p. 127) reforçam a
importância da brincadeira para crianças pequenas no seu
processo de aprendizagem:

A brincadeira, para crianças mais jovens,


é uma atividade importante na qual eles
compreendem o mundo ao redor, se expres-
sam e estabelecem relacionamentos com os
outros. Quando as crianças estão brincando,
elas estão construindo as fundações de toda
a sua futura aprendizagem.

Esses autores defendem que as brincadeiras das crian-


ças são os momentos de aprendizagem. As crianças exploram
o mundo pelo brinquedo, em constantes momentos de apren-
dizagem por ter um potencial perceptivo muito aguçado. Tudo
para elas gera curiosidade, esse desejo de saber e de aprender
se faz pelo brincar. O que levou o homem a brincar foi, segundo
Santin (1994, p. 16), “o impulso lúdico”. É na dinâmica da ludici-
dade que surge o ato criador. No âmbito da alegria e do prazer
é que as crianças ficam mais propensas a serem elas próprias e
reinventam o mundo a cada momento, aguçando sua imagina-
ção e, com isso, sua sensibilidade expressiva.
Conforme Tunes e Tunes (2001, p. 80), a brincadeira
infantil ocorre, fundamentalmente, entre os mamíferos, pelos
seguintes motivos:

Primeiro, porque entre os grupos animais


somente eles apresentam infância propria-
mente dita: aves, répteis, invertebrados e
outros não dependem de indivíduos adul-
tos quando nascem e, quando dependem, é
por um curto período de tempo. Segundo,

21
O Brincar e o Jogo como Processo Educativo na Educação Física

porque os mamíferos não nascem com o


sistema sensório-motor plenamente desen-
volvido. Terceiro, porque são, essencialmen-
te, animais sociais. [...] um pequeno leão
quando brinca com um inseto, por exemplo,
está exercitando sua visão tridimensional,
seu olfato, sua audição e sua coordenação
motora. Estudos mostram que o cérebro dos
mamíferos cresce mais em relação ao seu
corpo durante sua infância, e que os estí-
mulos sensoriais são extremamente impor-
tantes para o seu desenvolvimento. Desta
forma, o brincar tem um papel fundamental
no desenvolvimento das capacidades que
tornarão o adulto capaz de sobreviver.

Conforme Santin (1994), o impulso lúdico huma-


no distancia-se das brincadeiras dos animais. Enquanto os
animais só brincam na presença de objetos, nós, humanos,
conseguimos lidar com as aparências, ou seja, com a ausência
de objetos; conseguimos imaginar e fantasiar. Essa possibi-
lidade de transcendência, conquistada pelo impulso lúdico,
“faz surgir o mundo do brinquedo, isto é, o primeiro mundo
humano” (SANTIN, 1994, p. 18). É na manifestação da ludicida-
de que iniciamos nosso percurso histórico pela vida. Criamos
nosso mundo e essa criação tem sua raiz na dimensão lúdica.
Dimensão esta que fornece as bases para uma contemplação
livre da realidade, permeada por contextos de alegria e de
satisfação, em que construímos cultura e, assim, acrescenta-
mos vida ao nosso mundo. Barbosa (2009) comenta que a cultu-
ra da infância é a brincadeira, por possibilitar um ambiente
vivo de relações, interações e transformações. Salienta a
importância da construção de contextos lúdicos:

22
Aguinaldo César Surdi / Mackson Luiz Fernandes da Costa

Brincando com tintas, cores, sons, palavras,


pincéis, imagens, rolos, água, exploram não
apenas o mundo material e cultural à sua
volta, mas também expressam e comparti-
lham imaginários, sensações, sentimentos,
fantasias, sonhos, ideias, através de imagens
e palavras. A compreensão do mundo da
criança pequena se faz por meio de relações
que estabelece com as pessoas, os objetos, as
situações que vivencia, pelo uso de diferentes
linguagens expressivas (BARBOSA, 2009, p. 31).

Tunes e Tunes (2001, p. 83) salientam que o brincar, consi-


derada atividade tipicamente infantil, era desenvolvido tanto
por adultos como por crianças, “que constituíam, indistinta-
mente, um único corpo social”. No mundo contemporâneo,
percebe-se uma gradativa mudança na conceituação de infân-
cia, então surgiram suas formas específicas de brincadeiras,
que se tornaram diferentes das dos adultos. Dessa maneira,
as autoras enfatizam que o brincar nos permite ter alguma
compreensão sobre a transição do biológico para o cultural e
também contribuir para o “entendimento sobre os processos
de mudança e transformação das nossas formas culturais de
comportamento” (TUNES; TUNES, 2001, p. 83). A importância do
brincar nos remete aos primórdios de nossa existência. Somos
seres que brincam e se divertem, independentemente da idade,
todavia, na idade adulta, o aspecto lúdico deixa de se manifes-
tar, dando lugar à “realidade” do cotidiano.
É no brincar que se revelam algumas características
fundamentais da nossa essência. Porém, qual motivo leva as
crianças a brincar? Por que a criança brinca? As crianças peque-
nas têm a necessidade de que suas vontades sejam satisfeitas
imediatamente. A não ocorrência dessa satisfação não é aceita
pela criança. Quando ela deseja algo que não pode ser realizado,

23
O Brincar e o Jogo como Processo Educativo na Educação Física

tratamos de distraí-la com objetos que possam de imediato


remediar a situação ou, ainda, chamar sua atenção para que
seu desejo seja satisfeito de outra maneira. Conforme Tunes
e Tunes (2001, p. 83), parece que, quando “a criança pequena
começa a não ter suas vontades atendidas, imediatamente defi-
ne o início de seu engajamento na brincadeira do faz de conta”.
Ela busca, por meio da criação de uma situação imaginária,
atingir o que não está conseguindo na sua realidade concreta.
“A situação imaginária é, por força disso, a característica bási-
ca de estruturação e, portanto, de definição da atividade de
brincar” (TUNES; TUNES, 2001, p. 83). Percebemos, assim, que a
criança pequena tem o poder de transitar entre o real e o imagi-
nário, dependendo de suas necessidades – o que é fundamental
para o seu desenvolvimento. Enquanto o mundo real implica
obediência a certas regras de conduta, uma situação imagi-
nária lhe oferece um mundo mais aberto – mas semelhante ao
real – para satisfazer seus desejos e anseios não realizáveis na
realidade concreta. São dois movimentos opostos, “o de adesão
e o de deslocamento da realidade” (TUNES; TUNES, 2001 p. 84).
Rocha (1997) chama esses movimentos opostos de “imersão” e
de “libertação do real”, que as crianças conseguem executar ao
mesmo tempo e de formas bastante in teressantes.
Os objetos são o que inicialmente comandam as ações das
crianças. Baseadas nos objetos, as crianças têm suas ideias. Eles,
de certa forma, governam o comportamento da criança pequena
em suas relações com o mundo, entre o real e o imaginário. “Por
exemplo, o ato de alimentar uma boneca requer um prato e uma
colher, ainda que de miniatura, que sejam próximos da realida-
de” (TUNES; TUNES, 2001, p. 84). Gradativamente, esse processo
vai sendo alterado e a ação vai determinando o significado atri-
buído ao objeto. Em seguida, as ideias definem os objetos e as

24
Aguinaldo César Surdi / Mackson Luiz Fernandes da Costa

ações, e a criança chega até mesmo a dispensar o objeto. Como


no exemplo citado, ela pode executar apenas os gestos referentes
ao ato de alimentar a boneca ou, ainda, falar sobre o ato. “Este é
o momento em que o comportamento da criança na brincadeira
começa a ser regulado pelas regras que, agora, também, come-
çam a ser explicitadas” (TUNES; TUNES, 2001, p. 84). O brincar
possibilita essa transformação no comportamento da criança.
O pensamento vai se separando dos objetos, e é nesse processo
que o faz de conta contribui para o desenvolvimento do pensa-
mento abstrato da criança e se desenvolve a capacidade de fazer
escolhas que vão ficando mais conscientes. Nesse processo, a
aquisição da fala é fundamental. Como exemplo, ela pode dizer,
no faz de conta, que vai pegar um bolo na cozinha e, sem utilizar
qualquer objeto que represente o bolo, ela imagina e diz o que
tem nas mãos. Assim, surge a capacidade imaginativa em que
“a linguagem garante que os objetos e ações em que a criança se
apoia, transitoriamente, no seu movimento de se distanciar da
realidade, tornam-se dispensáveis” (TUNES; TUNES, 2001, p. 85).
A brincadeira tem outra transformação fundamental,
quando exige a participação do outro. Assim, surge a forma cultu-
ral da atividade de brincar.

É no jogo das relações da criança com os adul-


tos e com as outras crianças, dado o lugar social
que ocupa na rede cultural que a envolve, que
emerge, evolui e se transforma a brincadeira
infantil do faz de conta, dando lugar ao jogo
com regras (TUNES; TUNES, 2001, p. 85).

Nesse processo de desenvolvimento e mudanças que acontece


com as crianças, o brincar é extremamente importante. É brin-
cando que ela conhece a realidade e as relações que lhe são
importantes para viver.

25
O Brincar e o Jogo como Processo Educativo na Educação Física

Dentro de um processo pedagógico e de estruturação de


planos de atuação na educação infantil, manter a relação com
o contexto social e familiar é fundamental para o desenvolvi-
mento da criança, pois ela tem forte interesse pelo adulto como
fonte de inspiração e de imitação. “O que os adultos fazem se
reflete nas brincadeiras das crianças” (TUNES; TUNES, 2001,
p. 87). Portanto, as autoras defendem certas ações na prática
pedagógica no ensino infantil, que devem atender a três eixos:

1. Aquele que diz respeito às oportunidades e


aos incentivos para a participação da crian-
ça em atividades do adulto: que atividades
tipicamente suas os adultos podem fazer na
instituição e, ao mesmo tempo, permitir que
a criança, à sua moda, faça com eles, e por
eles regida?
2. O que se refere às atividades tipicamente
infantis, das quais o adulto deve participar,
porém, regido pela criança: que ativida-
des a criança gosta de fazer com os adultos,
regendo-os?
3. Finalmente, o que se liga às atividades
tipicamente infantis, sem a participação dos
adultos: o que as crianças gostam de fazer
sozinhas e o que gostam de fazer apenas com
seus pares (TUNES; TUNES, 2001, p. 87).

Essa relação de reciprocidade entre a criança e o adulto,


muito significativa para a criança, está cada vez mais distante.
O mundo do adulto está muito diferente do mundo da crian-
ça, ou, como nos diz Santin (1994), entre o mundo do trabalho
(adulto) e o mundo do brinquedo (criança). O mundo do adulto
comanda a nossa sociedade, com isso dita as regras do mundo
da criança. A relação de equilíbrio entre o adulto e a criança
está pendendo apenas para um lado, o do adulto. Dessa forma, o

26
Aguinaldo César Surdi / Mackson Luiz Fernandes da Costa

desenvolvimento das crianças também fica comprometido. Elas


não têm mais o tempo natural para serem crianças, têm que ser
adultas o mais rápido possível, pois as imposições do mundo do
trabalho são fundamentais. Nesse processo de adultificação da
criança, o brincar fica de lado, na periferia dos acontecimentos
mais importantes, ou seja, aqueles que possibilitam produção
e rendimentos quantificáveis. Como o brincar não tem essa
funcionalidade, ele passa a não ter importância nem signifi-
cado nesse mundo ditado pelas leis do adulto. Nessa dimensão,
desaparece o humano do ser humano, pelo fato de que o valor
dado ao homem está fora dele, no que ele produz, e não no que
ele é ou no que sente. O valor humano do ser humano é o sentido
por si próprio, quando somos nós mesmos.
As crianças conseguem chegar a essa dimensão por
intermédio do brincar, que possibilita que o lúdico aconteça.
“Brincar significa gerar a ludicidade para criar o universo do
brinquedo. [...] ela somente se manifesta como forma viva e vivi-
da” (SANTIN, 1994, p. 28). Nesse sentido, a ludicidade, como ação
vivida e sentida, escapa das palavras e atinge outra dimensão,
a da fruição. Torna-se fantasia, imaginação e sonhos.

Brincar, acima de tudo, é exercer o poder


criativo do imaginário humano, construindo
um universo no qual o criador ocupa o lugar
central, através de simbologias originais e
inspiradas no universo real de quem brinca.
Os mundos fantasiosos do brinquedo reve-
lam a fertilidade inesgotável de simbolizar
do impulso lúdico que habita o imaginário
humano (SANTIN, 1994, p. 29).

O brincar revela o modo de ser da criança. Toda a simbo-


logia usada pela criança no ato de brincar é global. Winnicott

27
O Brincar e o Jogo como Processo Educativo na Educação Física

(1975, p. 80) diz que “é no brincar, e somente no brincar, que


o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua
personalidade integral”. A criança consegue organizar seu
mundo por meio do poder simbólico da criação, assim tudo se
torna possível no brincar.
As dimensões sensíveis ficam interligadas com tudo o
que acontece à sua volta, construído na perspectiva que nada
é perdido, por conseguinte tudo tem sentido e significado. No
brinquedo, a sensibilidade lúdica da criança possibilita que ela
fantasie suas criaturas e seus nomes e que, a qualquer momen-
to, tudo possa mudar e ter outro significado. Não existe o errar,
apenas são vivenciadas possibilidades diferentes de brincar, com
as quais a criança altera momentaneamente seu mundo para
que ele tenha significados diferentes. Com isso, ela intensifica
seu poder imaginativo e criativo diante do seu mundo, organi-
zando-o corporalmente com a devida calma e segurança. Santin
(1994, p. 33) comenta que a corporeidade da atividade lúdica é:

[...] como a sonoridade de um instrumen-


to musical. O som é inseparável do próprio
instrumento, e o som não se desvincula da
melodia. O corpo melódico é formado pelas
vozes de um coral ou pelos sons de uma
orquestra. Vozes e sons não são separáveis
das pessoas e dos instrumentos musicais.
Vozes, sons, pessoas e instrumentos musicais
formam um todo com a melodia. A brincadei-
ra forma uma sensibilidade corporal unívoca
e indivisível, e a melodia da corporeidade do
brinquedo chama-se alegria.

Esse corpo que brinca também se movimenta. Esse se


movimentar humano, conforme Kunz (1994), possibilita que

28
Aguinaldo César Surdi / Mackson Luiz Fernandes da Costa

homem e mundo constituam uma intencionalidade, construin-


do uma unidade indivisível e de interdependência.

O jogo e a Educação Física

O jogo inclui o lúdico, que engloba o brincar. No brincar, a


intencionalidade do ser humano é maximizada, pelo fato
de ele ser o ator de sua ação. Desta forma, o jogo engloba o
movimento humano e é englobado por ele, ambos se tornam
coesos, com objetivos comuns. No jogo também são explora-
das as formas de criação e invenção. As condutas partem do
sujeito, que buscam construir regras, brincadeiras e ativida-
des condizentes com os participantes. Existe um respeito com
as diferenças, no sentido de que os papéis não são impostos
externamente, mas discutidos no grupo. Neste sentido, todo
ser humano tem o poder de mudar o mundo e a si mesmo. O jogo
proporciona às pessoas se entregarem totalmente à atividade
proposta. A ludicidade fornece um impulso para que esse ato
seja intrínseco e cheio de significações.
Huizinga (1971) comenta que a essência do jogo reside
em sua intensidade, fascinação e capacidade de excitar, expres-
sando-se por meio do ritmo e da harmonia, evidenciando o
elemento lúdico em toda a sua análise e interpretação. Esse
conceito mostra o jogo como um fenômeno cultural, fixado em
nossa tradição, com raízes em todo o processo de humanização
do homem, valorizado pela ludicidade e pela estética.
Para Huizinga (1971, p. 9), “A vivacidade e a graça estão
originalmente ligadas às formas mais primitivas do jogo.
É neste que a beleza do corpo humano em movimento atinge seu
apogeu”. Salienta, ainda, que os laços entre beleza e jogo sejam

29
O Brincar e o Jogo como Processo Educativo na Educação Física

bastante íntimos, o que mostra a importância da expressão


corporal, da beleza do movimento como vivência e experiência,
que são construídos subjetivamente. Deste modo, o lúdico se faz
presente no jogo, o que possibilita que o jogo seja “suspenso da
realidade corrente, de uma lógica racionalista e utilitarista, [...]
impregnado de desejos individuais e de significações culturais,
ou seja, coletivas e sociais” (MELO; DIAS, 2010, p. 3).
Segundo Caillois (1990), o jogo apresenta quatro atitudes
psicológicas que o governa, agôn, alea, mimicry e ilinx, tornan-
do-o uma atividade à parte da vida corrente. O agôn está liga-
do a jogos de competição, a alea de sorte, mimicry a jogos de
simulacro e a ilinx enquadra-se nos jogos de vertigem. Quando
um jogador rompe as barreiras das regras que regem o jogo,
levando para a vida corrente, ele se torna corrompido para esse
jogador, visto que o universo do jogo não se modifica.
O jogo ainda apresenta seis características formais, como
uma atitude livre, delimitada, incerta, improdutiva, regulamen-
tada e fictícia (CAILLOIS, 1990, p. 11). Caillois diz que:

O jogo aparece novamente como uma noção


particularmente complexa que associa um
estado de facto, uma carta favorável ou deplo-
rável, onde o acaso é soberano e onde o jogador
recebe, por fortuna ou por desgraça, sem nada
poder fazer, a uma aptidão para tirar o melhor
dos seus desiguais recursos. [...]. Todo jogo é um
sistema de regras que definem o que é e o que
não é do jogo, ou seja, o permitido e o proibido.

Partindo dessas características, vislumbramos o jogo


como dimensão humana que se enquadra como um conteúdo
da Educação Física, fazendo parte da Cultura de Movimento.

30
Aguinaldo César Surdi / Mackson Luiz Fernandes da Costa

Por Cultura de Movimento compreendemos a


conceituação integral de objetivações cultu-
rais, no qual o movimento não se restringe
ao deslocamento do corpo no espaço, mas é
intermediador simbólico das diferentes cultu-
ras, expressando-se nos jogos, lutas, artes e
outras manifestações históricas e culturais
(MELO; DIAS, 2010, p. 7).

Para uma melhor compreensão, partimos do conceito de cultu-


ra, que:

[...] é constituída pelo conjunto de textos produ-


zidos pelo ser humano, não apenas constru-
ções da linguagem verbal, mas também mitos,
rituais, gestos, ritmos, jogos, entre outros. [...]
nosso corpo guarda e cria a história que nos
concebe como indivíduos da espécie humana,
desde que nascemos. Dando continuidade à
historicidade do corpo, vamos construindo
outra história mediante nossas experiências
de vida (MENDES; NÉBREGA, 2009, p. 4-5).

Tendo a cultura como produção humana que promove


a construção da história mediante as experiências de vida, o
jogo se insere como ferramenta nesse processo de historicidade,
repleto de significado. Huizinga (1971) enfatiza, em sua análi-
se do jogo nos aspectos das ações sociais, como no direito, na
guerra, na filosofia, na poesia e na relação com o conhecimento:

No que diz respeito às características formais


do jogo, todos os observadores dão grande
ênfase ao fato de ser ele desinteressado. Visto
que não pertence à vida “comum”, ele se situa
fora do mecanismo de satisfação imediata
das necessidades e dos desejos e, pelo contrá-
rio, interrompe este mecanismo. Ele se insi-
nua como atividade temporária, que tem

31
O Brincar e o Jogo como Processo Educativo na Educação Física

uma finalidade autônoma e se realiza, tendo


em vista uma satisfação que consiste nessa
própria realização. É pelo menos assim que,
em primeira instância, ele se nos apresenta:
como um intervalo em nossa vida quotidia-
na. Todavia, em sua qualidade de distensão
regularmente verificada, ele se torna um
acompanhamento, um complemento e, em
última análise, uma parte integrante da vida
em geral. Ornamenta a vida, ampliando-a,
e nessa medida torna-se uma necessidade
tanto para o indivíduo, como função vital,
quanto para a sociedade, devido ao sentido
que encerra, à sua significação, a seu valor
expressivo, a suas associações espirituais e
sociais, em resumo, como função cultural
(HUIZINGA, 1971, p. 11).

Exemplificando a integração do jogo na vida em geral,


destacamos a relação do jogo com o direito que, mesmo sendo
uma atividade de caráter de seriedade que abrange interesses
individuais e sociais, tem em sua origem um aspecto lúdico.
Os filósofos sofistas utilizavam de sua eloquência na oratória
para promover competições de argumentação. Os juízes que
utilizavam perucas ao entrarem na corte para julgar, traves-
tiam a realidade. Essas representações lúdicas dentro do direito
fizeram parte de um momento histórico que se modificaram
com o tempo, mostrando que o lúdico não é uma essência, como
dizia Platão, mas um estado, segundo Schiller.
O lúdico, como estado, é compreendido a partir de um
conhecimento sensível que se dá por intermédio da expe-
riência estética. O objeto do impulso lúdico é o conjunto das
relações do impulso sensível que, num conceito geral, chama-
-se de vida, abrangendo um conceito que significa todo o ser
material e toda a presença imediata nos sentindo, com o objeto
do impulso formal que, num conceito geral se chama forma,

32
Aguinaldo César Surdi / Mackson Luiz Fernandes da Costa

compreendendo todas as disposições formais dos objetos e


todas as suas relações com as faculdades de pensamento. Nesse
sentido, o impulso lúdico poderá ser chamado de forma viva, um
conceito que serve para designar todas as qualidades estéticas
dos fenômenos, tudo o que, em resumo, entendemos no sentido
mais amplo por beleza (SCHILLER, 1990).
O belo é a capacidade de unir o sensível e o inteligível.
“A razão, entretanto, diz: o belo não deve ser mera vida ou mera
forma, mas forma viva”, isto é, deve ser beleza à medida que dita
ao homem a dupla lei da formalidade e da realidade absolutas.
Com isso, ela afirma também: o homem deve somente jogar com a
beleza, e somente com a beleza deve jogar (SCHILLER, 1990, p. 84).
Não podemos deixar de enfatizar que em todos esses
processos de jogo, das construções sociais e da existência do
belo, em todos eles o corpo se faz presente, um corpo marcado
pela história, que sente e se emociona.
Durante toda a história, a forma de se compreender e ver
o corpo se modificou e se modifica; essas modificações mostram
o quanto é complexa a temática do corpo. O corpo, assim como
a cultura, tem caráter polissêmico, isto é, pode assumir vários
significados. Ao pensarmos desse modo, conhecê-lo pode signi-
ficar várias coisas (SANCHE NETO; LORENZETTO, 2008).

A complexidade da temática corpo implica,


também, o reconhecimento de sua dupla
proximidade conosco, dado que somos corpo
e não podemos falar de fora do corpo, tal como
não se pode falar de fora da história; e da que
trabalhamos com o corpo, não só produzindo
conhecimentos sobre ele, como organizan-
do intervenções sociais a partir das práticas
corporais (SILVA, 2006, p. 91).

33
O Brincar e o Jogo como Processo Educativo na Educação Física

Acreditamos que o indivíduo, à medida que produz seu


corpo, produz também novas formas de subjetivação, de modo
que associa a representação que faz de seu corpo à consciência
que dele tem. Nesse sentido, o lúdico se apresenta como meio de
colocar o sujeito no mundo e possibilitar descobertas e trans-
formações, bem como de aprofundar a consciência de si.
Tendo essas compreensões, partimos para as relações
que o lúdico e o corpo têm com a Educação Física. No decorrer
da história da Educação Física, a área se moldou em diversas
compreensões de corpo. Uma delas foi no que se refere ao trato
higienista do corpo, influência da Medicina e do Higienismo,
tratando dicotomicamente o corpo. Esse trato do corpo guiou
a prática da Educação Física, seja escolar ou não, por muito
tempo, e ainda hoje ela guarda resquícios dessa influência.
Para que estigmas históricos sejam rompidos, faz-se
necessário que o estudo e a aplicabilidade de conceitos como
o lúdico e corpo sejam efetivados na prática profissional. No
tocante à atuação da Educação Física na escola, o corpo deve
ter um trato que o apresente em sua totalidade; um corpo com
historicidade e produtor da mesma, que sente e se emociona,
permitindo ao aluno conhecer sobre o corpo em seu próprio
corpo. Sanches Neto e Lorenzzeto (2008) dizem que, na escola,
deve haver uma preocupação maior com a compreensão que
nossos alunos têm de seus próprios corpos e também da atitude
que apresentam em relação a eles, além de saberem realizar e
apreciar os movimentos.
Na Educação Física escolar, o lúdico pode ser enxergado em
diversos conteúdos que fazem parte da Cultura de Movimento,
portanto destacamos o conteúdo jogo como impulsor do espírito
lúdico. “É no sentido de alimentar espaços que possibilitem a

34
Aguinaldo César Surdi / Mackson Luiz Fernandes da Costa

emergência do lúdico que vislumbramos os jogos como conteúdo


da Educação Física escolar” (MELO; DIAS, 2010, p. 9).

Considerações finais

Entendendo o jogo e o brincar como elementos que se consti-


tuem como fatores significativos no desenvolvimento do ser
humano, a Educação Física deve colocar o sujeito da ação no
centro do processo educativo, buscando o significado do se-mo-
vimentar humano. Este movimento, por ser subjetivo, é uma
ação intencional que oportuniza ao indivíduo ter o poder sobre
o seu ato de movimentar, agir por completo, por inteiro, por
meio da sua corporeidade. Os padrões de movimento existem,
mas o que importa nesta ótica são as pessoas se movimentan-
do livremente, o que caracteriza o jogo e, consequentemente,
o componente lúdico. A ludicidade só acontece em um espaço
livre, onde a criação é motivada e a atividade é feita por prazer.
O lúdico ultrapassa as necessidades que temos de forma
imediata da vida diária. Ele tem um valor em si mesmo, consti-
tuindo, assim, uma realidade própria. Por isso, quando estamos
realizando uma atividade realmente lúdica nos envolvemos de
tal forma na atividade que ela própria nos satisfaz por inteiro.
Doamo-nos por completo, e é exatamente nesse momento que
percebemos muito do que realmente somos e da capacidade
que temos. Nosso eu se revela por meio do lúdico, caracteri-
zado pela realização de atividades significativas, dentre elas
o se-movimentar, que oportuniza um conhecimento se si, por
meio das formas de se relacionar com o mundo, onde podemos
nos expressar de forma autônoma e espontânea.

35
O Brincar e o Jogo como Processo Educativo na Educação Física

O jogo e o brincar, como atividade, incluem elementos


essenciais para o ser humano. O jogo pode representar, para
os sujeitos, uma “segunda natureza”, na medida em que ela
consegue permanecer vigilante e atenta às necessidades de
prazer, alegria e satisfação das pessoas. O jogo e o brincar
compõem conteúdos e conhecimentos da Educação Física esco-
lar, que possibilitam significativas manifestações do movimento
humano. Assim, os movimentos que configuram a situações de
sujeitos em jogo na escola, não necessariamente precisam estar
orientados segundo os padrões de referência dos interesses da
quantificação objetiva.

36
Aguinaldo César Surdi / Mackson Luiz Fernandes da Costa

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Janeiro: Imago, 1975.

39
LAZER, IDOSOS E EXTENSÃO
UNIVERSITÁRIA: UMA CONFLUÊNCIA1

Angela Brêtas Gomes dos Santos


Maria Aparecida Dias
José Pereira de Melo

A Extensão Universitária vem se fortalecendo mesmo sendo


considerada, ainda, como de menor valor acadêmico. Nessa
direção, entendemos que esse fortalecimento, em certa medi-
da, ocorre pela preocupação por parte dos alunos e professores
que atuam em projetos de extensão, de considerar os aspectos
pedagógicos e metodológicos em suas intervenções. Este traba-
lho discute a importância das atividades de extensão e suas
possibilidades para a fruição do lazer de idosos saudáveis e/ou
com comprometimentos cognitivos participantes do Projeto
Animar sem Quedas, desenvolvido na Escola de Educação Física
de Desporto/UFRJ.
A Universidade Pública, apesar de estar estruturada sobre
o tripé formado pelas dimensões do ensino, da pesquisa e da
extensão, é costumeiramente reconhecida por suas contribuições
à sociedade no que se refere aos seus cursos de graduação e de
formação de novos profissionais, bem como por sua participação
na produção de novos conhecimentos. A dimensão da extensão

1
O Grupo ESQUINA – Cidade, Lazer e Animação Cultural, que desenvolve
o projeto Animar sem Quedas, teve apoio da Pró-Reitoria de Extensão da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, em forma de bolsas do Programa
Institucional de Bolsas de Extensão (PIBEX/UFRJ), Edital 2014.
Angela Brêtas Gomes dos Santos / Maria Aparecida Dias / José Pereira de Melo

vem lutando para consolidar seu espaço e, no interior da comu-


nidade universitária, ainda é considerada, por muitos, como algo
de menor valor e que confere menor status acadêmico.
Para os docentes que desenvolvem ações extensionistas, a
pouca valorização é evidenciada em momentos nos quais afloram
as tensões referidas à pontuação para progressões funcionais,
para distribuição de turmas e de disciplinas e, consequentemen-
te, em períodos de negociação do destino de novas vagas para
Concursos de Provas e Títulos em Unidades e Departamentos.
Apesar dessas dificuldades, se pensarmos na criação da
primeira Universidade Pública Brasileira2, a Universidade do Rio
de Janeiro, em 1920, e observarmos a trajetória das relações que a
Universidade Pública vem buscando estabelecer com a sociedade,
podemos afirmar que muita coisa mudou. Se antes tais relações
eram norteadas por princípios assistencialistas, atualmente a
Política Nacional de Extensão Universitária3 orienta as interven-
ções e estabelece diretrizes para a formulação e implementação
mais adequadas ao estabelecimento de vínculos ricos e produti-
vos do ponto de vista da cidadania, da justiça social, da produção
do conhecimento e da formação dos alunos. São elas: Interação
dialógica, Interdisciplinaridade e Interprofissionalidade,
Indissociabilidade ensino – pesquisa – extensão, Impacto na
formação do estudante, Impacto na transformação social.
2
Disponível em: <http://www.ufrj.br/pr/conteudo_pr.php?sigla=HISTORIA>.
Acesso em: 6 mar. 2015.
3
Política Nacional de Extensão Universitária é pactuada pelas Instituições
Públicas de Educação Superior, reunidas no Fórum de Pró-Reitores de
Extensão das Instituições Públicas de Educação Superior Brasileiras
(FORPROEX), tendo como referências o Plano Nacional de Extensão, o
documento Política Nacional de Extensão Universitária, e os seus demais
documentos básicos disponíveis na página do Fórum www.renex.org.br.
Disponível em: <http://www.renex.org.br/documentos/2012-07-13-Politi-
ca-Nacional-de-Extensao.pdf>. Acesso em: 6 mar. 2015.

41
Lazer, Idosos e Extensão Universitária: Uma Confluência

A dinâmica de extensão da universidade


federal do Rio De Janeiro

Claro que, impulsionadas pela força da Lei, mudanças signi-


ficativas estão ocorrendo em todas as Instituições Federais
de Ensino Superior (IFES), mas no que diz respeito, especifi-
camente, à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a
preocupação acerca do estabelecimento de uma nova relação
da Universidade com a sociedade se inicia a partir da primeira
eleição do Prof. Horácio Macedo (1925-1999), professor da Escola
de Química, no ano de 1985. Desde então, novos discursos come-
çaram a circular, novas ações foram implementadas e novos
saberes foram produzidos.
O atual bairro Maré/RJ passou a ser considerado campus
vicinal e um espaço de trocas, de diálogos e de ações de mão
dupla, nas quais a Universidade levava seus saberes e, em diálo-
go com os da comunidade, produzia novos conhecimentos.
O local deixou de ser território sem história, sem cultura e sem
saber, uma espécie de lugar das negações, ‘sujo, pobre e desfa-
vorecido’. Seus moradores, agora, são tidos como sujeitos de
direito e não somente alvo de ações salvacionistas e imediatis-
tas. Era necessário que aquelas pessoas que ali residiam pudes-
sem conhecer, ver e vivenciar a UFRJ não como algo distante,
inatingível e fechado em si mesmo.
Se pensarmos que palavras e termos estão carregados de
sentidos que vão se transformando de acordo com as experiên-
cias dos sujeitos temos, ao menos, dois exemplos que ajudam a
ilustrar as mudanças pelas quais as intervenções extensionis-
tas vêm passando e algumas de suas possíveis consequências.
A primeira diz respeito ao, oficialmente, denominado bairro
Maré, já chamado de Favela da Maré e de Complexo da Maré/RJ.

42
Angela Brêtas Gomes dos Santos / Maria Aparecida Dias / José Pereira de Melo

Claro que essas alterações não estão referidas apenas à inter-


venção da UFRJ, mas sim a uma série intrincada de fatores,
entretanto, não se pode perder de vista o processo de empode-
ramento de seus moradores no qual esta Universidade teve e
tem participação ativa.
Outro exemplo refere-se, especificamente, à UFRJ. Para
que se possa ter uma ideia, à época da eleição do Prof. Horácio
Macedo, não existia uma Pró-Reitoria que abrigasse institu-
cionalmente as relações entre a Universidade e a sociedade,
isto é, as ações de extensão não eram alvo de preocupação,
sequer, de uma parcela significativa da comunidade universi-
tária. Assim, de acordo com os novos diálogos que se preten-
dia instaurar, a Sub-Reitoria de Desenvolvimento passou a se
chamar Sub-Reitoria de Desenvolvimento e Extensão. Com o
passar dos anos, e com o fortalecimento e a ampliação contínuas
das intervenções extensionistas, esta Sub-Reitoria passou a se
denominar Sub-Reitoria de Extensão até que, seguindo o mode-
lo nacional, passou a ser intitulada Pró-Reitoria de Extensão.
Essas sucessivas modificações dão mostras do processo de
consolidação das ações de extensão universitária que seguem se
fortalecendo. Nessa perspectiva, desde 2004, são organizados os
Congressos de Extensão da UFRJ que reúnem toda a comunidade
universitária envolvida com esta dimensão acadêmica. Os traba-
lhos são classificados em oito grandes áreas de atuação, quais
sejam Educação, Saúde, Tecnologia e Produção, Trabalho, Direitos
Humanos e Justiça, Comunicação, Cultura, e Meio Ambiente.
Em 2008, com o objetivo de articular mais fortemente
as dimensões de ensino, pesquisa e extensão, e de reconhecer
esta última como atividade acadêmica fundamental, foi criada
a 1ª Semana de Integração Acadêmica que uniu o 5º Congresso
de Extensão e a 30ª Jornada Giulio Massarani de Iniciação

43
Lazer, Idosos e Extensão Universitária: Uma Confluência

Científica, Artística e Cultural (JICTAC, 2008). Nesta edição, no


5º Congresso estiveram envolvidos 1.632 autores e foram apre-
sentados 378 trabalhos nos formatos oral, audiovisual ou pôster.
Em 2014, a 5ª Semana de Integração Acadêmica da UFRJ foi
composta pelos seguintes eventos: 36ª Jornada Giulio Massarani
de Iniciação Científica, Tecnológica, Artística e Cultural –
JICTAC-2014, o 11º Congresso de Extensão da UFRJ, a 6ª Jornada
de Pesquisa e Extensão da UFRJ – Campus Macaé e 2º Simpósio
de Pesquisa e Extensão de UFRJ – Campus Xerém. Nos vários
campi da UFRJ foram aprovados para apresentação 472 trabalhos
envolvendo 2.160 autores divididos pelas diversas áreas temáti-
cas, sendo 153 da área de Educação, 121 da Saúde, 65 de Cultura,
49 de Direitos Humanos e Justiça, 30 de Meio ambiente, 20 de
Tecnologia e Produção, 15 de Comunicação e 18 de Trabalho4.
Em paralelo a esses eventos, estão em curso outras
providências. Atualmente, em consonância com a Meta 23 do
Plano Nacional de Educação (2001-2010)5 e com a Meta 12.7 do
Novo Plano Nacional de Educação (2011-2020)6, o Conselho de
Ensino de Graduação (CEG) da UFRJ, por meio da Resolução

4
<http://congresso.pr5.ufrj.br/images/_congresso/arquivos/Anais_
Congresso_de_Extens%C3%A3o_2014.pdf>. Acesso em: 9 fev. 2015.
5
Lei nº 10.172, de 09 de janeiro de 2001, aprova o Plano Nacional de
Educação. Meta 23: Implantar o Programa de Desenvolvimento da Extensão
Universitária em todas as Instituições Federais de Ensino Superior no
quadriênio 2001-2004 e assegurar que, no mínimo, 10% do total de créditos
exigidos para a graduação no ensino superior no País serão reservados para
a atuação dos alunos em ações extensionistas. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10172.htm>. Acesso em: 9 mar. 2015.
6
Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, aprova o novo Plano Nacional de
Educação. Meta 12.7) assegurar, no mínimo, 10% (dez por cento) do total de
créditos curriculares exigidos para a graduação em programas e projetos de
extensão universitária, orientando sua ação, prioritariamente, para áreas
de grande pertinência social. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13005.htm>. Acesso em: 9 mar. 2015.

44
Angela Brêtas Gomes dos Santos / Maria Aparecida Dias / José Pereira de Melo

CEG nº 02/20137, estabeleceu a regulamentação do registro


e da inclusão das atividades de extensão nos currículos dos
cursos de graduação da UFRJ. Obviamente que esta medida
vem causando intenso rebuliço pelas modificações necessá-
rias nas diversas instâncias acadêmicas. Cabe ressaltar que
neste processo de consolidação da extensão na UFRJ, além dos
inúmeros programas e projetos implantados, foram criadas ao
menos duas divisões ligadas à Pró-Reitoria de Extensão que
desenvolvem ações específicas e integradas, são elas o Núcleo
Interdisciplinar de Ações para a Cidadania (NIAC)8, e a Divisão
de Integração Universidade Comunidade (DIUC)9.
Somada a essas iniciativas, a União, representada pelo
Ministério da Educação (MEC), anualmente, desde 2010, convoca,
por intermédio da Secretaria de Educação Superior / Diretoria de
Políticas e Programas de Graduação (SESu/DIPES), e em parceria
com outros Ministérios e Secretarias, as Instituições Federais,
Estaduais, Municipais e Comunitárias de Ensino Superior a apre-
sentarem propostas de desenvolvimento de programas e projetos
no âmbito da extensão universitária, por meio do Programa de

7
Disponível em: <http://pr1.ufrj.br/index.php/conselho-de-ensino-de-gra-
duao-mainmenu-148/resolues-ceg-240/2010-2019/519-2013/1127-resolucao-
-ceg-n-02-2013>. Acesso em: 1 abr. 2015.
8
O NIAC é constituído por projetos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
da Faculdade Nacional de Direito, do Instituto de Psicologia e da Escola de
Serviço Social da UFRJ, buscando oferecer um atendimento integrado à popu-
lação, com eixo na questão de Direitos Humanos. Disponível em: <http://niac.
pr5.ufrj.br/index.php/institucional>. Acesso em: 9 mar. 2015.
9
A DIUC foi criada em 2003, com o intuito de estimular, articular e coordenar
um conjunto de ações no campo acadêmico, formuladas e desenvolvidas
pelas unidades, que se destinem a ampliar a presença da Universidade nas
comunidades de baixa renda. Disponível em: <http://www.pr5.ufrj.br/index.
php/institucional-4/quemequem/82-acesso-a-informacao/acesso-a-infor-
macao/653-estrutura-diuc>. Acesso em: 9 mar. 2015.

45
Lazer, Idosos e Extensão Universitária: Uma Confluência

Apoio à Extensão Universitária MEC/SESu, conhecido por Edital


PROEXT10. Este edital é um instrumento que abrange programas
e projetos de extensão universitária, e tem por objetivo fortalecer
a institucionalização da extensão no âmbito do ensino superior.

Extensão em processo de fortalecimento:


o papel dos periódicos

Interessante é perceber que, em paralelo à movimentação dos


poderes públicos, é possível observar um movimento de valori-
zação da extensão em outro âmbito. Tani (2014), buscando iden-
tificar e discutir algumas dificuldades e desafios na editoração
de periódicos em Educação Física/Ciências do Esporte, para que
essa área possa aprimorar a definição de sua identidade e para
se consolidar como campo de conhecimento e de divulgação
de pesquisas qualificadas, afirma que seria necessária a cria-
ção de três tipos diferentes de periódicos. O primeiro estaria
destinado a publicar artigos originais de pesquisa; o segundo
veicularia artigos centrados em conhecimentos, experiências
e orientações acerca de intervenções profissionais e, o terceiro
tipo, teria o objetivo de estimular a reflexão filosófica.
Para que isto pudesse acontecer, o autor observa a neces-
sidade da existência de pesquisadores produtivos nos três âmbi-
tos referidos à classificação proposta, e uma grande mudança
na dinâmica universitária. Isto significa dizer que, em relação
às publicações voltadas para exposição e discussão de experiên-
cias profissionais, deveria haver um incremento na criação de

10
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?Itemid=490i-
d=12243option=com_contentview=article>. Acesso em: 25 mar. 2015.

46
Angela Brêtas Gomes dos Santos / Maria Aparecida Dias / José Pereira de Melo

programas, projetos e eventos de extensão, além do fortaleci-


mento dos já existentes através dos mais diversos tipos de apoio.
Entretanto, o autor segue afirmando que para este desafio ser
vencido, são necessárias algumas importantes modificações
no âmbito acadêmico a fim de que as atividades de extensão
e de ensino sejam valorizadas tanto quanto as atividades de
pesquisa. Em suas palavras,

Como a universidade é uma instituição buro-


cratizada, pesada e lenta para pôr em prática
mudanças operacionais de vulto, iniciativas
locais e específicas poderiam ser implanta-
das, por exemplo, nos departamentos, com a
premiação da produtividade nas atividades
de ensino e de extensão mediante incentivo à
participação em eventos, programas de aper-
feiçoamento, visitas institucionais e assim por
diante. Com a continuidade e disseminação
dessa prática, poder-se-ia pensar, no futuro, a
implantação de um sistema de premiação por
remuneração, como já acontece com a pesqui-
sa. Ao fim e ao cabo, essa iniciativa inovadora
resultaria na criação de um mecanismo de
estímulo à publicação de artigos diretamen-
te relacionados com a melhoria da prática
profissional (TANI, 2014, p. 720).

Mesmo que algumas dessas não tenham sido implanta-


das, importa observar que são propostas a serem valorizadas,
posto que alterariam a visão de muitos acerca da extensão.
Ademais, a publicação de artigos referidos à prática profissio-
nal configuraria um rico espaço de trocas de experiências e
de conhecimentos que, além de todas as vantagens já citadas,
aprimoraria sobremaneira a formação dos estudantes.
No que se refere aos graduandos, a participação em
intervenções extensionistas é fundamental para o contato com

47
Lazer, Idosos e Extensão Universitária: Uma Confluência

realidades por muitos desconhecidas e para uma formação


cidadã e socialmente comprometida. O estudante se depa-
ra com situações que, muitas vezes, se afastam do que está
descrito na literatura e, tendo a oportunidade de confron-
tar conhecimentos, também, tem a chance de desenvolver
a capacidade reflexiva e crítica, de refinar seus saberes, de
considerar as questões pedagógicas inerente à prática docen-
te – mesmo em espaços não escolares – e de se preparar para
os desafios que a prática cotidiana lhe apresenta. Ações de
extensão são ricas não apenas do ponto de vista profissional,
pois, muito mais do que a técnica, estão em jogo as relações
com pessoas e realidades distintas, que, inicialmente, geram
insegurança e medo, mas que levam ao crescimento profis-
sional e ao amadurecimento pessoal.
Enfim, todo empenho na criação e no desenvolvimento de
programas, projetos e eventos de extensão será recompensado
no aprimoramento da formação acadêmica, na qualidade do
profissional egresso, no fortalecimento das pesquisas advin-
das das ações extensionistas, e na consolidação do campo de
conhecimentos da área.
O trabalho extensionista pode alcançar outros espaços,
não somente no que se refere ao lócus em que esta universida-
de está inserida, mas, muitas vezes, pode ampliar este cená-
rio. É possível dialogar com outras universidades públicas do
Brasil para que a experiência vivida seja replicada.
No que se refere à Escola de Educação Física e Desportos
da UFRJ, as ações de extensão acontecem em várias áreas
temáticas, mas este trabalho se propõe a apresentar e a anali-
sar uma intervenção desenvolvida no âmbito da educação em
saúde e do lazer do idoso, mais especificamente, um even-
to intitulado 1º Encontrão sem Quedas/2014, ação do Projeto

48
Angela Brêtas Gomes dos Santos / Maria Aparecida Dias / José Pereira de Melo

Animar sem Quedas, desenvolvido pelos Grupo ESQUINA –


Cidade, Lazer e Animação Cultural.

A velhice: uma novidade social

Antes de iniciarmos o diálogo específico sobre o encontro supra-


citado, se faz necessário reafirmar o diálogo que este projeto de
extensão promoveu entre a UFRJ e a UFRN (Universidade Federal
do Rio Grande do Norte). Em visita institucional realizada por
docente da UFRN, em novembro de 2014, especificamente ao
Grupo ESQUINA, fomentou o interesse por parte dos docentes das
duas universidades em dialogar sobre o projeto e suas possíveis
ramificações na cidade de Natal onde está localizado o Campus
central da UFRN e sediado o Departamento de Educação Física
desta instituição. Ainda em 2015.2, vamos mapear possíveis espa-
ços para tal intervenção na cidade de Natal.

O grupo esquina e sua ação com a velhice

A preocupação com a velhice, esta grande novidade social,


política, cultural e econômica do século 21 (MINAYO, 2006) se
faz sentir em muitas instâncias. Variados aspectos da vida dos
idosos têm sido alvos dos novos olhares que lhes são lançados.
Este “novo olhar sobre o velho” é decorrente do aumento da
população idosa em todo o mundo, em especial, nos países em
desenvolvimento (DESLANDES; ARCOVERDE, 2010; MINAYO,
2006; PAULA, 2010). Este fenômeno vem sendo considerado o
resultado de uma série de fatores, tais como: redução da taxa
de mortalidade da população, declínio da taxa de fecundidade

49
Lazer, Idosos e Extensão Universitária: Uma Confluência

melhoria das condições de vida com o consequente aumento da


expectativa de vida, avanços dos conhecimentos no campo da
medicina e, de um modo geral, melhoria do acesso à educação.
Em meio a várias dimensões, destaca-se a preocupação com o
desenrolar saudável do processo de envelhecimento.
A saúde do idoso tem sido objeto de preocupação por
parte dos Governos Federal, Estadual e Municipal, e inúme-
ras têm sido as iniciativas neste campo. No Estado do Rio de
Janeiro, por exemplo, foi criada, em 2013, a Secretaria de Estado
de Envelhecimento Saudável e Qualidade de Vida (SEESQV)11.
Ligado a esta Secretaria, e gerenciado pelo Instituto Vital Brazil,
está o Centro de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento (CEPE),
que por sua vez, lançou o Instituto Virtual do Envelhecimento
e Saúde do Idoso12 (IVESI). No que diz respeito ao governo muni-
cipal, existe a Secretaria Especial de Envelhecimento Saudável e
Qualidade de Vida – SESQV 13 que desenvolve projetos em diver-
sos bairros da cidade.
Obviamente que um processo saudável de envelheci-
mento deve ser a tônica das ações, mas há que se ter cuidado
para não reduzirmos o entendimento de saúde apenas à ausên-
cia de doenças (BRASIL, 2002; MINAYO, 2006; SEGRE; FERRAZ,
1997). Baseados nas Cartas de Promoção de Saúde, em espe-
cial, a de Jacarta (BRASIL, 2002), afirmamos que, mesmo não
sendo nominalmente citado, o lazer está incluído dentre os
pré-requisitos para a promoção da saúde, posto que são: paz,
abrigo, instrução, segurança social, relações sociais, alimento,
renda, direito de voz das mulheres, um ecossistema estável,
11
Disponível em: <http://www.rj.gov.br/web/seesqv/exibeconteudo?article-
-id=1429331>. Acesso em: 25 fev. 2015.
12
Disponível em: <http://www.ivesi.org/>. Acesso em: 25 fev. 2015.
13
Disponível em: <http://www.rio.rj.gov.br/web/sesqv>. Acesso em: 25 fev. 2015.

50
Angela Brêtas Gomes dos Santos / Maria Aparecida Dias / José Pereira de Melo

uso sustentável dos recursos, justiça social, respeito aos direi-


tos humanos e equidade (BRASIL, 2002).
Apoiados nesses pré-requisitos, temos a medida do alcan-
ce do nosso trabalho em um projeto de extensão desenvolvi-
do com idosos, contudo, também temos plena consciência das
inúmeras possibilidades de nossa intervenção no nível micro,
portanto, assumimos o risco e a confiança de atuar na pers-
pectiva da educação em saúde sem nos desvincularmos das
questões referidas ao lazer de idosos de baixa renda e/ou com
doença de Alzheimer.

O projeto de extensão animar sem quedas

Nessa perspectiva, foi criado, em 2012, o projeto de extensão,


Animar sem Quedas. Seu objetivo é atuar no âmbito da preven-
ção de quedas de adultos e idosos em três núcleos, quais sejam:
Vila Olímpica da Maré (VOM), Vila Residencial da UFRJ (VR)
e Instituto de Psiquiatria da UFRJ (IPUB). Nos dois primeiros,
atuamos com idosos sem comprometimentos cognitivos e, no
último, os participantes têm Doença de Alzheimer e outras
demências. Para além do compromisso com as práticas corpo-
rais ministradas duas vezes por semana durante 50 min, para
um total de 80 alunos, também, enfatizamos as questões refe-
ridas ao lazer destes sujeitos.
A Vila Olímpica da Maré está situada às margens da via
expressa denominada Linha Vermelha, no bairro Maré14. Esse
conjunto de comunidades foi alçado à condição de bairro em

14
Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/
estimativa2013/>. Acesso em: 25 mar. 2015; Disponível em: <http://www.
armazemdedados.rio.rj.gov.br/>. Acesso em: 25 mar. 2015.

51
Lazer, Idosos e Extensão Universitária: Uma Confluência

1994, possui cerca de 130 mil habitantes, e apresenta IDH 0,722,


um dos quatro menores do município do Rio de Janeiro.
Os problemas enfrentados por seus moradores são
inúmeros e não diferem daqueles comuns a toda comunidade
de baixa renda, como por exemplo, altos índices de violência,
deficiências no saneamento básico, nos serviços de saúde e nos
equipamentos de lazer. Deste modo, a VOM desempenha um
papel de destaque no que diz respeito às práticas de exercícios
físicos e desportivos, posto que oferece diversas atividades para
pessoas de todas as idades.
A Vila Residencial da UFRJ surgiu na década de 1960, às
margens da Baía de Guanabara e do Canal do Cunha, na Ilha
do Fundão, como local de moradia temporária dos trabalhado-
res que construíram a Ponte Rio-Niterói e dos que participa-
ram da construção da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Atualmente, lá residem cerca de 2000 pessoas, muitos descen-
dentes desses primeiros operários e estudantes da própria UFRJ.
Comunidade um tanto isolada, não enfrenta graves problemas
ligados à violência, mas seus habitantes se preocupam com
questões referidas a saneamento básico, posse da terra, falta
de postos de saúde, de escolas e de equipamentos de lazer.
A Associação de Moradores e algumas Escolas, Faculdades
e Institutos atuam em conjunto na tentativa de minorar os
problemas, intervindo com um Programa de Inclusão Social
da Vila Residencial da UFRJ, um dos mais antigos programas
de Extensão UFRJ, tem o apoio da Pró-Reitoria de Extensão e
congrega várias unidades, dentre elas: Escola de Educação Física
e Desportos, Escola de Enfermagem, Instituto de Psicologia,
Faculdade de Medicina, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Escola de Engenharia e Faculdade de Direito.

52
Angela Brêtas Gomes dos Santos / Maria Aparecida Dias / José Pereira de Melo

O Instituto de Psiquiatria da UFRJ possui um setor multi-


disciplinar denominado Centro de Doenças de Alzheimer e
outras Desordens Mentais na Velhice (CDA)15 que possui um
ambulatório para idosos e um Centro-Dia para tratamento e
acompanhamento psicológico de pessoas adultas e idosas com
Doenças de Alzheimer e outras Demências. Neste setor estas
pessoas são atendidas por médicos psiquiatras, psicólogos,
professores de Educação Física, enfermeira, assistentes sociais,
fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, musicoterapeutas,
nutricionistas e secretários.
Ainda que a preocupação central do projeto Animar sem
Quedas seja a prevenção de quedas, nosso entendimento acer-
ca da saúde não se limita aos aspectos físicos e à ausência de
doenças. Neste sentido, a dimensão afetivo-emocional de nossos
alunos e alunas também nos inquieta e mobiliza, assim, a ques-
tão que, por ora, se apresenta está referida ao que há em comum
entre os adultos e idosos frequentadores destes três núcleos que
é a reduzida ou, em muitos casos, a completa ausência de acesso
às práticas corporais e as atividades de lazer.

15
Disponível em: <http://www.ipub.ufrj.br/portal/assistencia/idosos>.
Acesso em: 29 mar. 2015.

53
Lazer, Idosos e Extensão Universitária: Uma Confluência

Alguns aspectos referidos ao lazer


dos integrantes do ASQ

Apesar dos esforços de algumas entidades e grupos16, ainda há


poucos equipamentos de lazer no bairro Maré. Os altos índi-
ces de violência somados à falta de praças, cinemas, teatros e
parques tende a acuar os moradores. Os mais jovens resistem,
muitos frequentam a VOM e criam alternativas, como se pode
verificar nos bailes que acontecem, principalmente, nos finais
de semana nas várias comunidades que o compõem. Para os
mais velhos e mais ativos a VOM configura-se como uma boa
opção para a fruição de vivências físicas e desportivas, mas
as tensões de gênero também podem ser observadas. A gran-
de maioria das pessoas com 60 anos ou mais, que participam
das atividades ali desenvolvidas é formada por mulheres. Aos
homens restam as já conhecidas opções pelo jogo de cartas e
pelas conversas nas calçadas e nos bares. Para as idosas que
não frequentam a VOM a rede de sociabilidade é formada nas
igrejas dos arredores e na família, e o lazer é fruído no âmbito
doméstico, o que não difere muito do que é relatado em várias
produções (GOELLNER et al., 2010; VOTRE et al., 2009).
No que tange à Vila Residencial, esta comunidade isola-
da em um dos extremos da Ilha do Fundão, é extremamente
mal servida por transporte público. Os ônibus que lá circulam
têm sua frota reduzida nos finais de semana, posto que seu
objetivo principal é servir à toda comunidade universitária nos

16
Redes de Desenvolvimento da Maré: Disponível em: <http://redesdamare.
org.br/?page_id=2530>. Acesso em: 26 mar. 2015. Travessias: Disponível em:
<http://2013.travessias.org.br/>. Acesso em: 26 mar. 2015.
Observatório de Favelas: Disponível em: <http://observatoriodefavelas.org.
br/categoria/noticias-analises/mare/>. Acesso em: 1 abr. 2015.

54
Angela Brêtas Gomes dos Santos / Maria Aparecida Dias / José Pereira de Melo

dias de trabalho. Assim, mesmo que não haja tanta violência na


comunidade, os idosos que lá residem são impedidos de circular
mais amplamente de modo a acessar equipamentos de lazer de
outros locais, pois se ressentem da falta de transporte público
somada ao medo de se afastar muito e não conseguir voltar em
segurança, e da fragilidade em sua locomoção. Deste modo, as
vivências de lazer também se resumem às atividades de socia-
bilidade religiosa e ao ambiente familiar e doméstico.
Com relação ao lazer dos participantes do Projeto Animar
sem Quedas, no Instituto de Psiquiatria da UFRJ, as tensões que
o permeiam são diferentes. Como estas pessoas têm Doença de
Alzheimer e outras demências, o Centro-Dia torna-se um local
de tratamento e de acompanhamento, mas também, um espaço
de manutenção da sociabilidade. Normalmente, as famílias de
indivíduos com comprometimentos cognitivos tendem a isolá-
-los, por basicamente dois motivos: proteção e segurança.
A proteção está ligada ao fato de estas pessoas, muitas
vezes, não serem aceitas nas suas peculiaridades e poderem
ser alvo de discriminação e de preconceito em um ambiente
desconhecido que pode se tornar pouco amistoso. A seguran-
ça refere-se ao fato de que esses sujeitos, caso se afastem de
seus familiares ou cuidadores, podem ser expostos ao perigo
já que, apresentam problemas de memória e de compreensão
da realidade circundante.

Encontrão sem quedas: um evento de lazer

Enfim, além de todos os problemas referidos ao lazer de idosos


(BURGOS et al., 2013; RICARDO et al., 2013), aqueles que têm
baixa renda e os que têm comprometimentos cognitivos

55
Lazer, Idosos e Extensão Universitária: Uma Confluência

constituem uma camada extremamente delicada no que tange


à fruição do lazer em todas as suas dimensões. Na tentativa de
intervir neste âmbito, o Projeto Animar sem Quedas criou o
evento Encontrão sem Quedas, cuja primeira edição ocorreu
em 2014 e que pretende ser anual.
O Encontrão sem Quedas é um evento que efetiva três
dimensões durante sua ação, a saber: a dimensão afetiva, a
dimensão acadêmica e a dimensão intergeracional. Estas três
dimensões apresentam como elemento de transversalidade a
dimensão do lazer em sua perspectiva extensionista.
O Encontrão sem Quedas teve por objetivo, criar um espa-
ço de trocas, de experiências corporais e de sociabilidade diver-
so daqueles aos quais os adultos e idosos integrantes dos três
núcleos do Animar sem Quedas estão habituados. A intenção
foi reuni-los, em um ginásio da EEFD/UFRJ, durante uma tarde,
para que assistissem a uma palestra, fizessem uma aula–festiva
e, ao final, lanchassem juntos.
A dimensão afetiva está embutida na ‘aula-festiva’ e resi-
de no fato de que estes indivíduos estavam em um local que não
oferece riscos à sua segurança, com características diferentes
daqueles que costumam frequentar, em contato com pessoas
que passaram a conhecer, com quem dançaram, conversaram
e trocaram impressões, sorrisos e abraços, sem receio de serem
discriminados. Vivenciaram seus corpos tendo o lúdico e o
movimento como pressupostos.
A dimensão acadêmica está posta no fato de que este foi
um evento aberto à participação dos estudantes dos cursos
de Educação Física e de Dança da EEFD/UFRJ, que foram opor-
tunizados à participarem da discussão acerca do processo de
envelhecimento, conduzida por um especialista da área, e de
participar de uma aula voltada para aspectos específicos da

56
Angela Brêtas Gomes dos Santos / Maria Aparecida Dias / José Pereira de Melo

prevenção de quedas. Ademais, ainda não há em na Escola de


Educação Física e Desporto/UFRJ um componente curricular
que trate especificamente desta temática, assim, eventos e
projetos neste campo do conhecimento contribuem sobrema-
neira para o aprimoramento da formação de nossos alunos.
Somado a estas questões, este evento também obedece ao deter-
minado pela Resolução CEG 02/2013 e os discentes que parti-
cipam de sua organização têm carga horária computada como
Requisito Curricular de Extensão e, aqueles que acompanham
o evento recebem certificado de horas complementares.
A dimensão intergeracional está situada no fato de que
jovens graduandos, adultos e idosos estiveram em um mesmo
ambiente, vivenciando as mesmas atividades, rompendo barrei-
ras e quebrando preconceitos. Reconhecendo os limites e possi-
bilidades de seus corpos em movimento, provocando em todos
os participantes um repensar sobre o movimento, o lúdico e a
cooperação, elementos presentes em todo o encontro.

Considerações finais

Esta experiência provocou em todos os envolvidos uma refle-


xão acerca do lazer, do idoso, das práticas corporais e do
corpo considerando suas inter-relações. Provocou no aluno de
Educação Física a ampliação de seu olhar diante do corpo enve-
lhecido, porém cheio de ludicidade e de possibilidades.
Ademais, esta ação provocou curiosidade e reconheci-
mento por parte de outra Universidade Pública, a Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, estabelecendo uma parceria
para efetivação deste evento, ainda em 2015, na cidade de Natal,
onde está situado o Campus Central.

57
Lazer, Idosos e Extensão Universitária: Uma Confluência

Eventos deste tipo merecem ser replicados e divulgados,


pois estão na importante confluência entre extensão, idosos e
lazer. Tal imbricação gera ricas e produtivas consequências para
a formação de nossos discentes, para adultos e idosos integran-
tes e para uma sociedade que envelhece.

58
Angela Brêtas Gomes dos Santos / Maria Aparecida Dias / José Pereira de Melo

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Apicuri, 2010.

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60
AS INTERFACES DA DOR E DO
SACRIFÍCIO NA PRÁTICA DO
FUTSAL POR MULHERES

Antônio de Pádua dos Santos


Mayara Cristina Mendes Maia

A realização de uma prática esportiva pode ser compreendi-


da como uma manifestação corporal norteada por diversos
influenciadores positivos e negativos, externos e internos ao
nosso corpo. Especificamente na adolescência, encontramos
uma fase de maior busca pela construção de identidade entre
os sentidos e significados dados ao mundo, inclusive na prática
esportiva. Encontramos também nessa fase, segundo Françoise
Dolto (2004), uma preocupação maior com os julgamentos, pois
cada julgamento tende a produzir efeito, inclusive os que são
expressos por pessoas que não tem nenhuma credibilidade.
A partir de uma de nossas pesquisas intitulada “A adoles-
cente e sua vida esportiva: o futsal em foco” (2013), encontra-
mos interesse em aprofundar nossos estudos sobre temáticas
relacionadas à dor e ao sacrifício humano dentro do esporte.
A pesquisa citada objetivava investigar os sentidos e
significados que motivavam adolescentes do sexo feminino a
participarem de equipes desportivas, em específico, o futsal.
Trabalhamos com o acompanhamento de três treinos de uma
equipe de futsal das meninas do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), com faixa
As Interfaces da Dor e do Sacrifício na Prática do Futsal por Mulheres

etária de 15 a 19 anos, durante os meses de agosto a outubro de


2013, com realizações de entrevistas semiestruturadas coletivas
após cada treino.
Por meio de uma análise de conteúdo seguindo os estu-
dos de Bardin (2009), identificamos em nossas entrevistas
que o foco principal das atletas não estava pautado no signi-
ficado construído pela busca do profissionalismo dentro da
modalidade. As entrevistadas demonstraram ter sempre em
seus jogos, desejos de vitória. Mas em vez, de um caminho
de profissionalização, o significado dado à prática aparece
reformulado de maneira a centralizar uma visão da prática
pela prática, do jogar porque principalmente se quer jogar.
Quanto aos sentidos que surgiram pelas meninas do
futsal, estes foram agrupados em quatro categorias, a saber:
no sentido do prazer de fazer o que se gosta, com quem se gosta
e em estar junto buscando uma evolução; no sentido de saúde,
em se sentir bem e alcançar um corpo belo; no sentido político
de lutar por direitos igualitários e no sentido de ultrapassar
seus limites revelando a dor e o sacrifício como influenciadores.
Além disso, as entrevistadas apresentaram em suas respostas
como sentidos construídos em seus imaginários, o sentimento
do amor pelo futsal como motivador de permanência no espor-
te, apesar das adversidades sociais que enfrentam.
A partir dessas considerações, o presente trabalho sele-
cionou o sentido das atletas de “ultrapassar limites revelando
a dor e o sacrifício como influenciadores” para realização de
análises mais aprofundadas com o objetivo de investigar as dife-
rentes formas de influência desses dois fatores na participação
e continuidade das atletas dentro da prática.
Segundo Vandenberghe (2005), a dor faz parte do homem,
é um elemento corporal integrante de um sistema primitivo de

62
Antônio de Pádua dos Santos / Mayara Cristina Mendes Maia

fuga, que serve para o indivíduo escapar de eventos nocivos.


Ela tem a função de preparar o organismo para cuidar e preve-
nir lesões, assim como evitar possíveis infecções. A Associação
Internacional de Estudos da Dor (IASP, 2014), apresenta como
definição mais aceita sobre o significado de dor, a definição que
considera a dor como uma experiência sensorial e emocional
desagradável associada a um dano real ou potencial de tecidos.
Esta é sempre subjetiva, ou seja, cada indivíduo percebe e reco-
nhece o que é e como é a dor a partir das vivências alcançadas
individualmente e pode construir diversos sentidos sobre ela.
Sentida também como uma experiência encarada comu-
mente como sensação desconfortável e até insuportável em
casos específicos, a dor faz parte da história humana. Segundo a
obra História do corpo, de Alain Corbin, Georges Vigarello e Jean
Jacques Courtine (2008), a dor em diferentes períodos da nossa
história aparece como tendenciosa a assustar, causar repulsa e
até ser vista como vilã e destrutiva em diversos âmbitos sociais.
Contrariamente nesse sentido, no campo religioso, assim
como no esportivo, a dor apresenta espaço para surgir como um
fator necessário para se alcançar o objetivo central de muitas
religiões, a santidade. Homens comuns se tornam heróis e
santos a partir de vitórias alcançadas sobre a dor. E assim, o
sacrifício surge no caminhar dos tempos não mais como um ato
de amor à pátria, nem acompanhado de torturas humilhantes
como na guerra, mas como um ato necessário para o engrande-
cimento, tanto no campo religioso, como também no esportivo.
A mulher, muitas vezes, coberta pela imagem de um sexo
mais frágil que o homem, ao longo da história viveu e vive à
margem, ainda carregada por muitos impedimentos quanto a
realização de práticas sociais. Reclusas em suas casas, as mulhe-
res recebiam unicamente as funções de esperar seus caçadores,

63
As Interfaces da Dor e do Sacrifício na Prática do Futsal por Mulheres

seus guerreiros e seus atletas voltarem para casa, cuidar da casa


e criar novos homens (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO, 2008).
Ao ingressarmos no campo esportivo, pensamentos sexis-
tas de que a mulher não é capaz de suportar alguns esportes
por precisarem conviver regularmente com a presença da dor
em suas vivências causam maiores exclusões desse público no
âmbito esportivo. Entre os argumentos antigos utilizados para a
exclusão das mulheres, encontramos a “delicadeza” dos nervos
e a constituição física menos favorecida, o que levava o esporte
praticado por mulheres parecer indecente e impróprio para sua
resistência (RÚBIO; SIMOES, 1999, p. 53).
A pesquisa sobre o “Posicionamento oficial da Sociedade
Brasileira de Medicina do Esporte: atividade física e saúde na
mulher”, publicada na Revista Brasileira de Medicina do Esporte
em 2000, desmentem os argumentos que antes defendiam a
incapacidade biológica da mulher em realizar práticas esporti-
vas e supostos pontos negativos. Mas a dor e o sacrifício conti-
nuam sendo relacionados apenas aos homens heróis, únicos
julgados como capazes de encará-la e vencer, sendo apresenta-
dos como um dos principais possíveis fatores para o receio e a
falta de interesse de muitas mulheres na ausência de represen-
tatividade em diversos esportes.

Dor e sacrifício no futsal para mulheres

Ao pensarmos na história da humanidade, encontramos a dor


em todos os âmbitos e como um objeto histórico complexo,
como nos apresenta Corbin:

64
Antônio de Pádua dos Santos / Mayara Cristina Mendes Maia

A dor é uma experiência subjetiva, um “even-


to psicológico” que se inscreve no corpo e
modela a memória. As práticas da dor pessoal,
as maneiras de escutá-la, o modo como é
acolhida e exprimida formam, aos poucos, a
identidade. Através dela, lê-se a história do
indivíduo. A dor crônica chega, inclusive, a
estruturar a vida. Ela pode paralisar o pensa-
mento e modificar a relação com os outros
(CORBIN, 2005, p. 330).

Ao homem primitivo, segundo Corbin (2005), a dor esta-


va relacionada a figuras mágicas ruins como demônios e seus
males, tendo os feiticeiros como responsáveis pelos rituais de
alívio de dor. Na Antiguidade, as guerras estavam acompanha-
das de histórias de torturas que serviam como ato de humilha-
ção aos inimigos, utilizando da dor como ferramenta de poder
sobre seus rivais. Quanto maior fosse a pena do inimigo, mais
lenta, humilhante e dolorosa era sua morte na França durante o
século XVIII, servindo como tratamento penal. Já o sacrifício do
guerreiro representava um ato de fidelidade à pátria. Durante
a escravidão, a dor vivida pelos negros era, por muito tempo,
ignorada pelos brancos. Seus sofrimentos eram entendidos
como sinais de poder e submissão dos brancos.
Sobre o período do Renascimento, Corbin (2005) afirma
que a teoria da dor, relacionada ao cérebro e ao sistema nervoso,
foi confirmada. Na medicina, a dor se tornou um dos sinais de
alarme sobre algum dano no ser humano. Os médicos a utilizam
como ferramenta inicial de identificação de algum problema.
Até os dias de hoje, quando se perde alguém querido ou algo
que é importante, em algumas culturas, se tem a tendência de
construir uma imagem negativa da perda e a assim, a sentir dor
como desconfortável.

65
As Interfaces da Dor e do Sacrifício na Prática do Futsal por Mulheres

Dentro das religiões, seguindo os estudos de Corbin


(2005), a dor vem aliada ao sacrifício em busca da purificação.
Ao refletirmos sobre a presença da dor nos esportes, encontra-
mos conflitos e diversidades de sentidos, pois essa experiência
sensorial surge tanto como fator de desistência das práticas,
como, em outros casos, motivador das suas atividades. Aquele
que vence a dor, tanto nas religiões quanto nos esportes,
apresenta uma identidade de santo e herói respectivamente.
Portanto, se pode afirmar que a dor é uma sensação natural-
mente humana, mas, os diversos sentidos atribuídos a dor são
anteriores à sensação.
Santos (2012, p. 74) considera a dor “como uma construção
sociocultural que se insere no corpo como uma realidade que
não existe fora dele, mas também ele não a antecede”. Ou seja,
os sentidos construídos sobre a subjetividade da dor são mode-
lados por nossas experiências e não podem ser escritos em nós
sem terem passado por nós. E apesar de se construir junto a nós,
a dor como um todo surge muito antes de qualquer formulação
de sentido e significado humano. Santos (2012) afirma que a
presença da dor tanto na prática do atletismo como de outros
esportes, é existente na vida do atleta, de maneira que muitas
vezes precisa ser relevada, ao mesmo tempo que é valorizada
de forma positiva. “Ela é sempre um obstáculo a mais a ser
vencido” (SANTOS, 2012, p. 76).
Ao trabalharmos com discussões sobre sacrifício, apon-
tamos aqui que consideramos sacrifício como renúncia a algo
ou aceitação de alguma atitude como processo para alcançar
um objetivo maior. Santos (2012, p. 76) nos diz:

66
Antônio de Pádua dos Santos / Mayara Cristina Mendes Maia

Com o objetivo de se tornarem campeões, os


atletas se submetem a sacrifícios que, mesmo
para jovens, parecem insuportáveis, como,
por exemplo: não ir a festas (atitude bastan-
te inesperada entre jovens) para não gastar
energia, com o intuito de poupar o corpo para
os treinamentos (SANTOS, 2012, p. 76).

Segundo Durkheim (1989) ao escrever sobre a dor e o


sofrimento no campo religioso, pode-se afirmar ser o sacrifí-
cio uma situação extremamente necessária, pois sem ela não
existe a passagem do profano para o sagrado, em razão de que
o “homem não pode entrar em relações íntimas com as coisas
sagradas senão com a condição de se despojar do que é profa-
no nele” (DURKHEIM, 1989, p. 374). Analisando as obras de
Durkheim, Santos (2012) traz esse pensamento para o campo
do esporte de rendimento e afirma por suas pesquisas, atle-
tas que apresentam uma grande abnegação por determinadas
práticas, que podemos interpretar como profanas e que não
podem fazer parte da vida de um verdadeiro atleta, segundo
suas próprias compreensões.
Santos (2012) explica que a realidade do profano acontece
pela relação e pelas inserções em atividades proibidas, como ir a
festas. Em sua pesquisa, isso é demonstrado com muita veemên-
cia por todos os atletas, ao ponto de considerarem que viver
esse profano é carregar um grande empecilho para se chegar ao
plano sagrado de ser um atleta de ponta, um campeão. O atleta
assim como o religioso passa pela dor e pelas “tentações profa-
nas” sem encarar esse sacrifício como algo doloroso e cruel, pois
acredita fielmente que só assim alcançará o plano do sagrado.
Santos (2012, p. 75), explica que:

67
As Interfaces da Dor e do Sacrifício na Prática do Futsal por Mulheres

A ordem relacionada ao sagrado está distante


do indivíduo comum, mas ao mesmo tempo
representa uma ordem social que baliza o ser
e o não dever ser dentro de uma coletividade,
influenciando os comportamentos, sentimen-
tos e pensamentos, expressando de maneira
positiva ou negativa a manutenção dessa
mesma ordem (SANTOS, 2012, p. 75).

Enquanto sua fé em alcançar a vitória numa competição é


fortalecida pela ideia do sacrifício como forma de realizar seus
planos, Santos (2012), nos fala sobre a sensação apresentada
pelos atletas de sua pesquisa como sendo relacionadas a um
sentimento de ser um humano diferenciado, com restrições que
o leva para um pensamento sagrado, a maneira de se ver diante
dessas situações de sacrifício é vista pelo atleta como formas
de ser superior a quem não é atleta.
Ao entrarmos no campo geral da força e da fé, compreen-
demos que o ser humano vive a procura de diversas formas
de dominar o seu corpo como maneira de se fortalecer físico-
psíquico e emocionalmente. Mas ao associarmos “força, potên-
cia, velocidade, vigor físico, busca de limites”, Rúbio e Simões
(1999), afirma que essas características são valorizadas na
sociedade e historicamente associadas só à imagem do homem.
Neste sentido, o esporte muitas vezes é representado por uma
identidade masculina, na qual se desenvolve em espaços para a
construção de uma cultura preconceituosa quanto aos direitos
igualitários entre homens e mulheres atletas.
A participação ativa de mulheres em equipes despor-
tivas para competições vem desmistificando falsas identida-
des fixas no esporte, crescente significantemente em todo o
mundo. Ao prestigiar partidas de mulheres jogando futsal,
os jogos esportivos são muitas vezes acompanhados de união

68
Antônio de Pádua dos Santos / Mayara Cristina Mendes Maia

de grupo, de muita técnica, habilidade e de muitos aspectos de


força, virilidade e determinação demonstrando todo o potencial
das mulheres para fazer parte desse espaço de atividades físicas.
No Brasil, o futsal é um esporte culturalmente conside-
rado como uma prática para os homens, assim como o fute-
bol, o hugby, o remo, o boxe e outras práticas de lutas, por
exigir muita força, resistência e vigor físico (DEVIDE, 2005).
Características estas que sempre são postas em dúvida quanto
a sua existência nas mulheres, apesar de inúmeras conquistas
femininas dentro destes esportes.
A dor para o atleta pode ser encontrada sobre diversas
interfaces, principalmente quando se concentra na individuali-
dade do ser. As meninas atletas esquecem o modelo social para
o gênero feminino e se arriscam em trajes esportivos, revelando
corpos com músculos desenvolvidos e bem trabalhados para
determinadas práticas, apresentam atitudes de liderança, de
resistência física e de controle de situações de alto esforço físico
em suas práticas, ultrapassam as barreiras da dor e do sacri-
fício sem se fazerem de vítimas e, ao contrário, abraçam esses
desafios com determinação com objetivos iniciais: alcançar uma
vitória coletiva e individual.
Sobre a ótica dos estudos da nossa pesquisa, ao encon-
trarmos a dor e o sacrifício como um dos sentidos que condu-
ziam as atletas de futsal do IFRN para as práticas de futsal,
trabalhamos com seleções de falas das atletas entrevistadas
para dialogarmos com nosso referencial teórico. A escolha do
corpus de análise ficou concentrada nos fatores da represen-
tatividade positiva que a equipe escolhida de futsal feminina
tem dentro de sua instituição e também, perante as outras equi-
pes locais e regionais, o que contribui como um dos campos de
marcação da construção de valores sobre as práticas. O IFRN

69
As Interfaces da Dor e do Sacrifício na Prática do Futsal por Mulheres

é um dos institutos federais mais consagrados do Brasil, por


conseguinte com forte representatividade no campo esportivo
entre os outros Institutos Federais brasileiros.
Em nossa coleta de dados, de início, foram 11 meninas
entrevistadas. Durante a pesquisa, foram incorporadas ao
grupo mais atletas, compondo um grupo final com 19 entre-
vistadas. Utilizamos da simbologia numérica para identificar
cada participante das entrevistas e resguardar suas identida-
des verdadeiras.
Ao nos aprofundarmos em nossas entrevistas, encon-
tramos falas das entrevistadas sobre jogar futsal com os
meninos que derrubam argumentos defensores de um futsal
só para homens:

Quando era dia de futsal as meninas inventa-


vam de pedir uma bola de vôlei ou se senta-
vam, não queriam jogar de jeito nenhum.
Desde criança. Começavam logo com medo de
se machucar. Às vezes quando elas estavam
meio de lua, elas inventavam de jogar. “Vamo
jogar”. Mas sempre quem ficava marcando
presença era eu e mais duas amigas minhas.
[...] Pra começar um jogo assim no meio dos
meninos já “e uma coisa assim, tipo, um
processo. Porque você tem que chegar deva-
garzinho com aquele olhar pidão de quem
quer jogar e falar, “ei, posso jogar?”. Eles já te
olhando, assim, como se você não fosse nada.
O “café com leite”. Então, eles falam: “tá, ta
bom”. (Dá uma raiva né? Mas dá mais vontade
de jogar né?) ÉEE! (Expressão de indignação).
E muita. Aí quando você começa e eles veem
que você sabe jogar muito, aí começam,
“caramba! Ela vai pro meu time!”. Então, acho
que a única dificuldade dentro de quadra é
quando precisamos passar por esse proces-
so com os meninos. Com as meninas, eu não

70
Antônio de Pádua dos Santos / Mayara Cristina Mendes Maia

vejo tanta dificuldade, com as meninas acho


que é só o normal, a questão da habilidade
(Entrevistada 13, dia 25 de Setembro de 2013).

A dor, como realidade social, é simbolizada, segundo


Santos (2012), os distintos lugares sociais dos indivíduos. As
meninas sentem-se afetadas negativamente pelos estigmas
negativos criados socialmente sobre suas presenças nos espor-
tes e relatam o quanto isso é doloroso. Santos (2012) compreende
essas dores sociais como presentes internamente numa mesma
sociedade entre indivíduos não só de gênero e sexo diferente,
mas de condições sociais diferentes, clivagens sociais, entre
diferença de classe e de etnia. Portanto, consideramos em nosso
trabalho o preconceito como uma manifestação de dor social,
que se revela quando as expectativas sobre cada gênero são
infringidas, desencadeando reações de surpresa e proibição que
remetem a figura do anormal. E revelamos a presença dessa dor
social por intermédio fala da entrevistada 1:

Lá perto da minha casa tem um campinho e eu


sempre joguei bola por lá. Eu conhecia todos
os meninos. Sendo que as minhas amigas
tinham preconceito porque eu jogava bola e
eu parei de jogava por causa delas. Porque eu
não gostava dos comentários, doía, então eu
preferi cortar. Aí um dia qualquer, um milagre
desses aí, eu voltei no campinho e fui jogar.
Quando eu cheguei lá, tinha um menino, na
verdade, tinha um monte de meninos e só
eu de menina, aí quando tiraram a linha e
os meninos que me conheciam me botaram
num time. Aí esse menino que não me conhe-
cia falou assim (entrevistada 1 imita uma voz
masculina com tom engraçado): “Como é que
é? Menina vai jogar também é? Onde já se viu
um negócio desse?”. Aí eu entrei e fiz o gol,

71
As Interfaces da Dor e do Sacrifício na Prática do Futsal por Mulheres

logo de primeira. Aí ele (entrevistada 1 imita


novamente a voz masculina engraçada): “é
cagada! Só faz isso uma vez”. E quando ele foi
jogar comigo, ele me deu um empurrão! Nãaa!
(Entrevistada 1 faz expressões de indignação).
E a segunda vez, foi quando eu fui jogar aqui
na escola. Eu tava jogando na linha do futsal
masculino porque os meninos me chama-
ram, até pagaram minha inscrição, ou seja,
eu tinha o direito de jogar. Quando entrei em
quadra, o menino olhou pra mim e tomou um
susto: “e menina também pode é?”. Aí eu, “é,
eu paguei!”. Aí o jogo continuou, aí quando eu
peguei na bola, ele me deu um corpo que eu
voei! Eu voei mesmo! Ele deu o corpo e eu saí
rolando assim (entrevistada faz expressões de
rolamento com os braços e as outras meninas
observam e sorriem), quando eu me levantei,
a bola já tava vindo na minha direção. Eu botei
o pé assim, (entrevistada 1 demonstra com a
mão onde o pé ficou) e evitei o gol. Fora os
comentários dos pais né? O comentário do pai
e o da mãe machuca. [...] Eles falam, “A bola
vai te dá de comer é? Onde é que já se viu?
Parece um homem!” (Entrevistada 1, dia 25
de Setembro de 2013).

A entrevistada 1 nos conta que até parou de jogar um


tempo por comentários de amigas e nos revela alguns dos
comentários de seus pais, construções impostas nessas amiza-
des e familias sobre um futsal apenas para meninos, e que estão
carregados de pensamentos que se fazem presentes também nas
novas categorias de respostas de todas as outras entrevistadas,
assim revelando marcas de preconceitos na vida de todas. Estas
novas categorias podem ser observadas presentes também na
fala da entrevistada 6:

72
Antônio de Pádua dos Santos / Mayara Cristina Mendes Maia

Ai, meu pai falou isso! (Quanto a fala anterior


da entrevistada 1). Eeeeei! Mas isso doe, doe
muito, doe mesmo! (Se abraça e faz expres-
sões corporais como se estivesse sentindo
a mesma dor falada em seu corpo). Porque
assim, eu jogava numa quadra lá perto de
casa. E tipo, toda sexta feira eu ia pra essa
quadra jogar. Aí ele (o pai), chegou pra mim
e falou (criando uma voz para imitar o pai):
“é, vai ter que parar de jogar porque não tem
pra que, você é uma menina e menina não joga
bola. Isso é coisa de menino”. Vixi! Eu chorei
(Entrevistada 6, dia 25 de Setembro de 2013).

Enquanto algumas entrevistadas falavam, outras se


expressavam através de expressões faciais de indignação
e com risos de identificação com as situações vividas pelas
outras meninas. Goellner (2005) traz em suas pesquisas que
vários preconceitos e estereótipos ainda cercam a prática das
mulheres em modalidades como o futebol. O futsal apresenta
esses preconceitos encontrados no campo do futebol, tais como
a associação de sua imagem à homossexualidade ou a perigos
do choque da bola para sua saúde reprodutiva.
Os preconceitos contribuem para a falta de incentivo ao
esporte para a mulher, o que traz novas formas de surgimento
de dor entendida como algo que deve ser ultrapassado, mas que
causa sensações ruins, como podemos encontrar a presença da
dor na falta de incentivo familiar pela fala da entrevistada 1,

Eu já vi a minha mãe arrumando a bolsa do


meu irmão, botando meião pra ele e tênis,
deixando ele ir pro mundo com um cara que
ela nunca viu na vida porque ele disse que ele
ia ser jogador de futebol e ia ser famoso e rico
.

73
As Interfaces da Dor e do Sacrifício na Prática do Futsal por Mulheres

Pode-se identificar a indignação e o mal-estar associados


ao humor como forma de relevar essa dor. “Eu a vi fazendo isso
com tanto gosto e ela nunca arrumou pra mim.” (Entrevistada 1,
25 de setembro de 2013). Muitas outras entrevistadas se manifes-
taram para falar do quanto em vez de incentivo, sofrem restri-
ções quanto a prática, “É! Eles nunca vieram assistir meu jogo”
(Entrevistada 8, 25 de setembro de 2013), “Minha mãe queria que
eu dançasse ballet. Aí eu tentava negociar com ela. Eu dançava
ballet de manhã, mas a noite podia jogar futebol na rua”.
Essas falas contribuem para os estudos contemporâ-
neos, tais como: Mourão (2000) e de Goellner (2010). As referi-
das pesquisas apresentam a mulher atual num cenário de luta
por espaços esportivos contra a sua própria sociedade que é
fundamentada ainda em princípios patriarcais, nos quais em
vez de seu direito de serem corpos-sujeitos atuantes no esporte,
estas são preferidas pela sociedade como corpos-objetos que
servem aos atletas homens, carregando as confusões sobre os
conceitos de gênero, sexo e sexualidade. “É só uma questão de
cultura mesmo. Porque lá fora não é assim. Por causa da cultura.
Porque futebol também é sim coisa de mulher” (Entrevistada
10, 25 de setembro de 2013).
Jernigan (2003 apud DEVIDE; 2005), em suas pesquisas,
ressalta as diferenças fisiológicas entre homens e mulhe-
res, afirmando as diferenças existentes entre os sexos, mas
desmistificando, em relatos de pesquisas, mitos como a proi-
bição de práticas físicas durante o período menstrual ou da
suposta masculinização da mulher pelo esporte. Apesar desses
estudos, estas construções culturais prevalecem enraizadas
em muitas famílias.
Outra situação que encontramos nas falas das entrevista-
das com a presença da dor é relacionada ao campo profissional.

74
Antônio de Pádua dos Santos / Mayara Cristina Mendes Maia

A falta de espaços das mulheres no futsal contribui para a


quebra de muitos sonhos esportivos e ocasionam dor. Mesmo
as que não sonham em serem atletas profissionais, relatam que
muitas vezes precisam abdicar do futsal como amador por ques-
tões de falta de tempo ou outras cobranças externas:

Passamos dois anos treinando feito umas


condenadas para as únicas competições
femininas que tem no estado e durante esses
dois anos, as competições foram cancela-
das por falta de incentivo financeiro. Causa
um desgaste, sabe? Você chora porque nem
sequer ter a chance de jogar, pode. [...] Mas
é assim, levanta a cabeça e segue que uma
hora a gente consegue. Eu queria ser jogado-
ra profissional. Todo mundo me elogia e diz
que eu tenho chance. E eu fico perguntando,
cadê essas chances que eu não recebo? Tive
que desistir. [...] Desistir sempre é a maior dor
(Entrevistada 13, dia 25 de setembro de 2013).
Eu tenho muita pressão da minha família em
relação a isso. Não da família, da minha mãe.
Ela sempre comenta com as outras pessoas,
“ah, ela podia ter escolhido nado sincronizado,
vôlei, podia ter escolhido ballet, podia ter esco-
lhido tanto esporte, escolheu logo esse futsal.
Essa coisa agressiva.”. E às vezes, ela reclama
muito e às vezes dá vontade de parar pra agra-
dá-la. Mas quando a gente para, doe muito mais
(Entrevistada 16, dia 03 de outubro de 2013).

A dor de desistir e o sacrifício para se acostumar a vida


sem o esporte são considerados os mais doloridos, pois são irre-
mediáveis se o atleta não volta a prática. Aquele que desiste,
tende a voltar a vida profana. Ao falar desse reconhecimento
profissional esportivo ou mesmo espaço para o amador. Devide
(2005) diz que as mulheres lutavam pelo reconhecimento legal

75
As Interfaces da Dor e do Sacrifício na Prática do Futsal por Mulheres

de seus direitos desde a II guerra mundial durante o século XX,


exigindo a efetiva aplicação legal da vida cotidiana. Ele ressalta
que a mudança nas atitudes e na mentalidade da sociedade,
todavia, era tarefa bem mais árdua. Os discursos de nossas
atletas revelam que apesar de algumas mudanças positivas já
alcançadas, a luta continua dificil e dolorosa.
Quando questionadas sobre o esforço físico, que caracte-
rizava a presença de força, vigor físico, velocidade e a busca de
quebra de limites, os discursos eram risco em demonstrações
de dedicação:

Se você quer sempre melhorar, vai exigir


grande dedicação, e isso também ensina a ser
persistente no que decidimos fazer, não apenas
no esporte, como em outras ocasiões. [...] Tudo
que eu conquistei, assim, tudo de bom que já
passei e tudo de ruim que também já passei,
eu conquistei no futsal. [...] Levar isso como
experiência de chegar aí e aproveitar mais
cada momento que eu tiver dentro de quadra,
cada treino, cada jogo como se fosse o último
(Entrevistada 13, dia 25 de setembro de 2013).
Você tá ali, tá buscando aquela medalha, tá
buscando aquilo tudo. Mas aí às vezes você
não consegue, perde numa hora que não espe-
ra, mas quando você vê, você adquiriu o sufi-
ciente para ganhar mais do que simplesmente
tivesse passado por tudo tranquilamente. Aí
vencer aquele obstáculo vai te engrandecer
muito mais. Superar isso depois também
engrandece muito mais (Entrevistada 14, dia
25 de setembro de 2013).

A fala da entrevistada 13 revela que para ela e para as que


concordaram com ela, a falta do esforço para alcançar a vitória
não traz a mesma alegria de quem coloca sobre si os sacrifícios

76
Antônio de Pádua dos Santos / Mayara Cristina Mendes Maia

para o mesmo caminho da vitória. Surge assim, a ideia de que a


movimentação dos sentimentos quanto à prática é quem move
os sentidos de praticar e, deste modo, alteram conceitos como
o de dor que antes era visto como algo que paralisava para um
conceito novo de dor como desafio a ser superado e que traz mais
valor e sentido à prática. A entrevistada 14 revela a importância
da vivencia esportiva para além da conquista do campeonato.
Apresenta aprendizagens para uma vida para além das quadras.
Essas falas reforçam a ideia de Santos (2012, p. 76) que o homem
é movido pelo desejo da quebra dos interditos, pelo verdadeiro
uso de sua liberdade, pela vontade de transpor limites.
Quando questionadas sobre as dores físicas sentidas pela
prática, o grupo todo começou a rir. Muitas falas alimentavam
a ideia de que todas já haviam passado por alguma lesão e algu-
mas meninas faziam questão de relatar suas experiências de
lesões trazendo o humor as situações passadas de dor e esban-
jando satisfação por tê-las superado. “Doeu muito. Achei que
nunca mais ia poder voltar a jogar. Pense numa tristeza. Mas a
vontade de jogar é maior que qualquer dor, que qualquer medo”
(Entrevistada 13, dia 25 de setembro de 2013).
O cuidado para não se machucar aparece como motiva-
do pelo medo de ficar sem jogar. A dor não aparece como um
limite agora, mas como um alerta para supostas futuras lesões.
Algumas relatam que mesmo com dor ou doentes, aparecem
para treinar. O que fortalece a afirmação de Santos (2012, p. 75)
sobre alguns exemplos de praticantes que não param mesmo
com dores, “exemplo de que a dor, mesmo sendo fisiológica,
esbarra na construção social de que no esporte ela é comum”.
E sugere uma alternativa já criada por atletas, “O que resta aos
atletas é dar-lhe um significado para poder suportá-la”. Mas

77
As Interfaces da Dor e do Sacrifício na Prática do Futsal por Mulheres

algumas das entrevistadas admitem os exageros e falam sobre


suas mudanças de hábito para se cuidarem mais.

Eu jogava bola quase todo dia. Minha mãe


ficava brigando porque eu não me cansava.
Mas eu me canso, só que é bom demais. Você
treinar até o seu máximo e depois ainda fica
com o corpo de quem vai para a academia
(risos). Eu estava treinando direto, sem me
cuidar. Aí fiquei com uma inf lamação na
canela. Doía demais correr, homem. (Risos).
E me disseram para parar de treinar por um
tempo para tratar. Pense num negócio horrí-
vel é parar de jogar (Entrevistada 2, dia 25 de
setembro de 2013).
Eu acho muito bom. É maravilhoso sair do trei-
no e sentir aquele cansaço no corpo. Aquela
dorzinha que te diz assim, “dever cumprido”.
E quando a gente tá treinando e pensa que
é o último folego e consegue buscar mais,
se sente tão melhor. Cai no chão de cansaço,
mas só depois que roubou a bola e fez o gol
(Entrevistada 7, dia 25 de setembro de 2013).

Santos (2012) ressalta que atletas, principalmente inician-


tes, consideram a dor como uma provação para que eles possam
confirmar sua condição de atleta. A dor não as paralisa, ao
contrário, é impulsionadora na busca da quebra de seus próprios
limites. A sensação de se alcançar o sagrado e se tornar um ser
maior que os seres comuns pode ser encontrada nessas repre-
sentações. Durkheim (1989, p 381) afirma que para esses “atletas
sagrados, a dor é considerada geradora de forças excepcionais”.
A transgressão do profano para o sagrado causa dor e exige
sacrifícios que são interpretados por elas como a melhor manei-
ra de alcançar seus objetivos e é apresentada como um estilo de
vida que se gosta de ter.

78
Antônio de Pádua dos Santos / Mayara Cristina Mendes Maia

É bom você ter um objetivo, tudo bem, que é


ganhar uma competição. Se eu não fizer com
que esse objetivo seja buscado com alegria,
com dedicação e compromisso, com preparo
físico adequado e sacrifícios, se eu não jogar
bem por não estar preparada, participar
dessa competição sem alegria, sem amor
ao que eu to fazendo, se eu ganhar não vai
fazer tanta diferença, perder também não.
Ganhar é bom, é ótimo. Mas fazer o que
eu gosto de fazer? (Estrala os dedos como
gestos que demonstram que vale muito
mais), é muito melhor (Entrevistada 13, dia
28 de setembro de 2013).

Os momentos de dores, lesões e cansaços são sempre


compartilhados entre o time das meninas do IFRN, apenas para
desabafar, como momento de busca de conforto ou apoio, ou
mesmo para orgulhar-se das superações. Aqueles momentos
difíceis nos treinos são sentidos de maneira pessoal, porém
compartilhados numa realidade coletiva que constroem senti-
dos novos a essas sensações. Santos (2012) nos confirma dizendo
que a dor que os atletas sentem ao praticar esporte deve ser
compreendida como uma experiência que faz parte de uma
construção subjetiva. Construção subjetiva essa que no âmbito
do futsal para mulheres tem suas características em comum
com outros esportes e suas particularidades do esporte em
si, e dos confrontos ainda existentes do domínio cultural dos
homens sobre alguns esportes.

79
As Interfaces da Dor e do Sacrifício na Prática do Futsal por Mulheres

Considerações finais

A prática do futsal pelas adolescentes a partir de sentidos concen-


trados no gostar do que faz torna essa prática sua verdadeira
maneira de viver. A presença da dor e do sacrifício como desafio
e superação possibilita caminhos que exigem mais concentração
e determinação na prática do futsal, o que lhes imprime mais
valor as suas práticas. É essa forma esportiva de enxergar sua
vida que lhes submetem as subordinações, renúncias e proibições
sem o olhar negativo para essas restrições, pois elas garantem a
essas atletas a visão pessoal de pessoas sagradas. As dores impos-
tas para elas permeiam os percursos da história do esporte sem
serem consideradas cruéis em todo momento, e sim, necessárias
para o fortalecimento pessoal e coletivo.
Por meio das falas das atletas, a dor se configura entre
diversas interfaces, caminhando entre as compreensões opos-
tas de ser um desafio a ser vencido ou um obstáculo que as
paralisam em suas práticas. Ao procurarem ultrapassar a dor
sem pensar em suas condições humanas de resistência a todo
custo, pode acarretar em sérios problemas a saúde e ao desem-
penho das atletas.
O cuidado de refletir sobre a prática realizada desde seus
pontos históricos aos seus próprios desempenhos e a procura
por equilibrar e tornar a dor sua aliada como motivadora para
o sucesso no esporte surge como indicações dos nossos estu-
dos. Pesquisas voltadas para essa temática contribuem para
avanços na inclusão motivados pela culturalização de uma vida
concentrada num padrão que foge as normas enraizadas por
construções sociais fixas que apenas aprofundam distorções e
perturbações sociais na história.

80
Antônio de Pádua dos Santos / Mayara Cristina Mendes Maia

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As Interfaces da Dor e do Sacrifício na Prática do Futsal por Mulheres

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82
GINÁSTICA RÍTMICA: A CULTURA
EXPRESSA NO CORPO GINÁSTICO

Hosana Claudia Matias


Rosie Marie Nascimento de Medeiros

Certo que a vida não explica a obra, mas certo


também que elas se comunicam. A verdade
é que esta obra por fazer exigia esta vida
(MERLEAU-PONTY, 2004, p. 136).

A cultura é um conceito que transpassa a Ginástica Rítmica


(GR) de forma costumeira. As reflexões a respeito do tema
envolvem principalmente as composições coreográficas ou
as características técnicas das praticantes. Neste capítu-
lo, recorte da dissertação intitulada Ginástica Rítmica1: um
Concerto para o Corpo, buscaremos estabelecer um paralelo
entre o corpo e a cultura na GR utilizando para tanto uma
coreografia ginástica como esteio para o desenrolar do tema.
Assim, escolhemos a Espanha2 como referência para o texto
porque durante muitos anos acompanhamos a inserção de
elementos da cultura espanhola nas coreografias ginásticas,

1
Dissertação apresentada ao programa de Pós-graduação em Educação
Física da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação da
Professora. Dra. Rosie Marie Nascimento de Medeiros, em 2014.
2
A Espanha, a Bulgária e a Rússia foram utilizadas na dissertação, assim
como nesse recorte por apresentarem de forma evidente, a relação com os
conceitos trabalhados naquele documento: cultura, arte e técnica, além da
inconteste influencia no mundo ginástico.
Ginástica Rítmica: A Cultura Expressa no Corpo Ginástico

o que a diferencia das demais equipes, estabelecendo assim


um modelo de trabalho ginástico a ser seguido.
Para José Ortega y Gasset (2008), o mais puro representan-
te do homem mediterrâneo é o espanhol, caracterizado, segun-
do ele, por sua antipatia para tudo que seja transcendente, é
um materialista que prefere a rudez material, em sua miséria,
sordidez não traduzida, nem estilizada, que ama o vulgar no
sentido mais puro, o comum, o popular. Entendemos a partir
dessas colocações, que o autor percebe seu povo e a ele próprio
como amantes das coisas ingênuas da sua terra, da sua cultura
sem floreios ao mesmo tempo em que constrói a sua volta um
cenário imagético de muitas cores e músicas. A ilusão parece
servir de contraponto a simplicidade propagada pelo pensador.
Na verdade, ao assistirmos as composições espanho-
las que optam pelos temas nacionais, percebemos, em alguns
momentos, a austeridade nos gestos, a correção da técnica
que se adere aos movimentos impulsivos, românticos, nobres
e aparentemente desligados da realidade como o Quixote de
Cervantes apresentado por Ortega y Gasset (2008).
Essa tem sido a característica da GR espanhola ao longo
desse século. Um desenvolvimento com muita consistência que
tem conquistado um grande número de admiradores em todo
o mundo, o que é ratificado pelas classificações alcançadas nas
competições internacionais, reflexo da “combinação harmoniosa
da graça, plasticidade, dinamismo com a mais rigorosa técnica
e o mais cuidadoso treinamento, junto com a mais requintada
feminilidade” (MENDIZÁBAL; MENDIZÁBAL, 1985, p. 9).

84
Hosana Claudia Matias / Rosie Marie Nascimento de Medeiros

Para tratarmos do conceito de cultura utilizamos como


contraponto a coreografia de cinco bolas da Espanha3, utilizada
para a olimpíada de Londres em 2012, porque consideramos que
essa coreografia sintetiza em movimento, toda a influência da
cultura sobre esse esporte. Para a Espanha não existe ineditis-
mo sobre esse fato, pois ao longo da sua história na GR, a Equipe
Nacional sempre fez questão de anunciar a todos o orgulho da
sua cultura reproduzindo no tablado ginástico a energia das
dançarinas flamencas em seus tablados4 de dança.
A Espanha, colocando-se sobre o espaço competitivo,
exala a força da cultura como enlace artístico da composição.
A gestualidade e a expressividade são anunciadas através da
música que se inicia ao som do violino e da guitarra flamenca,
o prelúdio instiga o público para ouvir e ver a interpretação
dada pelo conjunto espanhol para o “Concierto de Aranjuez”5 de
Joaquim Rodrigo, tocada de forma comovente por Ikuko Kawai6
no Filme Violino Vermelho7 (1998).

3
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=hiKvrdguRPA>. Acesso
em: 20 jan. 2014.
4
Tablado – espécie de palco de madeira onde se realizam apresentações das
danças espanholas. Sobre esse palco os sons do sapateado dos bailarinos são
ouvidos com maior intensidade. Nesse capitulo também usaremos signifi-
cando a área sobre a qual as ginastas apresentam seu conjunto.
5
As informações sobre Joaquin Rodrigo e o “Concierto de Aranjuez” estão
disponíveis em: <http://www.cervantesvirtual.com>. Acesso em: 29 dez. 2013.
6
Concierto em Aranjuez – Ikuko Kawai – Disponível em: <http://www.youtu-
be.com/watch?v=cttTWNgGD-k>. Acesso em: 29 dez. 2013.
7
O filme Violino Vermelho trata dos caminhos percorridos por um violino
carregado de sofrimento ao longo de muitos séculos e por diversos países.
A cor vermelha é o sangue de uma esposa morta durante o parto. Seu marido
havia construído o violino para o filho que nasceria. O violino e o sangue
perpetuaram a dor daquela família e suas perdas. A saga do violino começa
nos anos 1600 e segue até o final do século XX.

85
Ginástica Rítmica: A Cultura Expressa no Corpo Ginástico

No filme, a música embala o momento em que ciganos


descobrem o violino entre as ruínas de um mosteiro. Levam
em suas andanças, tocando-o nos diversos acampamentos até
que o entregam a um astro da música erudita que ao tocá-la em
diversos concertos tem sua vida transformada de tal forma que
acaba em suicídio. O violino que é vermelho por ter sido pintado
com sangue carrega em sua madeira o sofrimento do luthier8
que pretendia dá-lo ao filho prestes a nascer. Para sua tristeza a
criança morre no parto, do mesmo modo que sua esposa. Em seu
sofrimento abismal retira do corpo da sua amada o seu sangue
e em pinceladas de sofrimento, perpetua, unidos, os amores
de sua vida: a esposa, o filho e a sua arte. É nesse contexto
que é utilizada a música de Rodrigo, cuja inspiração também é
marcada por paradoxos de amor e sofrimento.
Sobre o “Concierto” existem duas versões, a primeira apre-
senta trata da intenção do compositor em transportar o ouvinte
para os sons da natureza, de outro lugar e de outro tempo, a
captura da fragrância das magnólias, o canto dos pássaros e o
choro das fontes dos jardins de Aranjuez9, local de sua lua de
mel. A segunda versão é que a música dividida em três momen-
tos retrata também a desesperança do compositor pela perda do
filho, a súplica a Deus e a aceitação do inevitável que o conduz
para um momento de maior resignação, expressos principal-
mente no segundo momento, que foi escolhido para ser repre-
sentado nesse conjunto.
Traduzindo esse contexto, estão as ginastas espanholas,
posicionadas para transmitir uma interpretação que busca

8
Profissional especializado na construção ou reforma de instrumentos de
corda.
9
Região do centro da Espanha, próximo a Madri, famosa por seus jardins e
avenidas arborizadas em volta dos palácios reais de verão.

86
Hosana Claudia Matias / Rosie Marie Nascimento de Medeiros

expressar ginasticamente a sua dança, a arte e a cultura do país.


A posição dos braços e mãos em direção à companheira, corpo
em ataque, como um toureiro que espreita a chegada do touro.
A posição de espera, não menos enérgica, das outras ginastas,
parecendo nos dizer que estão em prontidão para o que vier.
Enquanto isso a música avança, como se estivesse envolvendo a
todos, aumentando a expectativa do que estar por vir.
As expressões das ginastas não estão restritas ao movi-
mento ginástico, é ampliada porque elas conseguem tornar
aderentes à ginástica; a dança e o aparelho, no caso a bola,
bailando com sensualidade e força, assim como parece ser
a mulher espanhola10. A música associa o violino à guitar-
ra como se fosse um só instrumento. Apesar de melódico e
emocionante, o momento é intenso e as ginastas executam
movimentos que acentuam a mobilidade expressa na música,
uma melodia continua que parece não ter um fim. O desenro-
lar da coreografia que interpreta a música de Joaquim Rodrigo
nesse momento, tem a suavidade de um interlúdio, como cita-
do anteriormente na descrição do compositor, um caminhar
por entre arvores de um jardim ou o anúncio do momento de
resignação ao destino por ele vivido.
A intensidade da música é modificada, marcações fortes
surgem, as ginastas executam elementos dinâmicos com marca-
ções fortes de braço e mãos ratificando a mudança provocada
pela música. Percebemos a expressão dessa interação entre
o corpo ginástico e a cultura que o sustenta enquanto ser no
mundo. Durante todo o desenrolar da cena, as ginastas e o som
do violino enroscam-se nas vozes do público. Assim percebemos
que o conjunto da Espanha nesse momento, parece impactar

10
Essa é uma impressão particular e pessoal.

87
Ginástica Rítmica: A Cultura Expressa no Corpo Ginástico

seus espectadores a ponto de transporta-los, também para o


mundo imaginário provocado pela música e recriados corpos
expressivos e inebriados de sentimento. Os gritos e aplausos no
ginásio referendam essa observação.
Claramente técnico e treinado, sublime e artístico, o
conjunto espanhol chama a atenção pelo entrelaçamento vital
entre a coreografia e a cultura, expressando de forma clara a
preocupação com a expressividade e o belo com significado em
cada gesto. Para Nóbrega e Moreira (2008 p. 349) “[...] o desporto
é palco onde o corpo representa possibilidades e limites, onde
se propõe um diálogo da nossa natureza interior e exterior, com
a vida e com o mundo”. Assim percebemos esse conjunto, que
se utiliza de elementos diversos, entrelaçando o ginástico ao
cultural, para extasiar, em seu palco que é o tablado ginástico,
a todos os que o assistem.
A simbiose entre cultura e corpo no esporte parece
justificada e necessária para um povo que parece orgulhar-
-se dessa relação. Nessa aproximação, que foi silenciosamen-
te construída, o que sempre me impactou na GR espanhola,
foi a constante valorização da cultura como representação
de uma nação. Não uma nação apenas política com todos os
percalços desse mundo globalizado, mas a nação que valoriza
os cantos, as danças, a música, suas influências. Assim, não se
configurando como um requisito passageiro, pois está sempre
presente em suas composições ginásticas.
Para fundamentarmos nossas reflexões a respeito da
relação entre a GR e a Cultura, tornou-se importante a aproxi-
mação desse conceito como ponto de partida que nos possibilita
lançar o olhar sobre as teias que emaranham essa relação.
O conceito de Cultura para Abbagnano (2007) parte de
duas concepções básicas. No primeiro e mais antigo, significa

88
Hosana Claudia Matias / Rosie Marie Nascimento de Medeiros

a formação do homem e seu refinamento. A segunda concep-


ção indica o produto dessa formação, ou seja, “o conjunto de
modos de viver e de pensar cultivados, civilizados, polidos,
que também costumam ser indicados pelo nome de civiliza-
ção” (ABBAGNANO, 2007, p. 225). Ao longo dos séculos e com
as muitas contextualizações, o conceito foi adaptando-se e
consolidando-se, podendo designar tanto uma civilização mais
progressista quanto as formas de vida mais rústicas ou primi-
tivas, sem que haja privilégio de um modo de vida sobre outro.
Ainda segundo Abbagnano (2007)

O caráter global de uma cultura, na medida


em que corresponde às necessidades funda-
mentais de um grupo humano, a diversida-
de dos modos como às várias civilizações
correspondem a essas necessidades e o cará-
ter de aprendizado ou transmissão da cultura,
(ABBAGNANO, 2007, p. 228)

são traços característicos expressos, aparentemente, em várias


definições consideradas válidas.
Considerando que a cultura é quem conecta o homem
ao mundo e fazendo-o parte dele, Merleau-Ponty, ao longo da
obra intitulada “A Dúvida de Cézzane” (2004) trata, em alguns
momentos, desse entrelaçamento, assim como sobre a impos-
sibilidade de se creditar apenas a hereditariedade o que somos
ou que seremos. Segundo ele,

[...] Se sou projeto desde meu nascimento, é


impossível distinguir em mim o dado e o cria-
do, impossível, portanto designar um único
gesto que seja apenas hereditário ou inato e
que não seja espontâneo – mas, igualmente,
um único gesto que seja absolutamente novo

89
Ginástica Rítmica: A Cultura Expressa no Corpo Ginástico

em relação a essa maneira de ser no mundo


que sou eu desde o começo (MERLEAU-
-PONTY, 2004b, p. 137).

Dessa forma, nos percebemos como fruto de tudo o que


nos envolve, a natureza, nossa história, nossas relações e

[...] só podemos ver diante de nós e sob o aspec-


to de fins aquilo que nós mesmos somos, de
modo que nossa vida tem sempre a forma do
projeto e da escolha e assim nos parece espon-
tânea (MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 137).

Porque somos um e somos todos ao mesmo tempo. Somos as


nossas relações e o nosso mundo, assim como somos o mundo do
outro o qual convivemos porque nossos mundos estão atados.
Para Zumthor (2000, p. 55-56) a cultura pode ser

a prática própria de um grupo humano em


todos os domínios que implicam conhecimen-
to. Assim, a cultura constitui o fundamento da
vida em sociedade e, inversamente, vida social
implica necessariamente cultura.

Ainda para o autor, tudo o que designa a palavra cultura é deter-


minado pela evolução dos meios e modos de comunicação. Todo
o conhecimento desenvolvido em determinado grupo social
pode ser passado adiante, construindo pontes entre gerações,
difundindo seus saberes, criando e recriando costumes, comu-
nicando-se. Para o autor comunicar; “não consiste somente em
fazer passar uma informação; é tentar mudar aquele a quem
se dirige; receber uma comunicação é necessariamente sofrer
uma transformação” (ZUMTHOR, 2000, p. 61) criar um hábito,
identificar uma sociedade. Dessa forma, compreendemos que a

90
Hosana Claudia Matias / Rosie Marie Nascimento de Medeiros

cultura está presente em nosso cotidiano, é ela que, como cons-


trução humana, recursivamente edifica o que somos e como nos
relacionamos com o mundo. Para ele, o corpo é ao mesmo tempo
ponto de partida e de chegada, o ponto de origem e a referência
do discurso. Podemos entender que a cultura está no corpo e no
mundo. Ela pode se estabelecer em um contexto no qual

[...] indica muito claramente que se trata de


uma acumulação de conhecimentos que são
da ordem da sensação e que por motivos
quaisquer, não afloram no nível da raciona-
lidade, mas constituem um fundo de saber
sobre o qual o resto se constrói (ZUMTHOR,
2000, p. 90-91).

Nessa perspectiva, entendemos a cultura a partir de


vários olhares que sempre partirão do corpo, do outro e do
entorno que entrelaçados compõem,

[...] um conjunto complexo e heterogêneo de


condutas e modalidades discursivas comuns
que determinam certa faculdade de todos os
membros do corpo social produzirem certos
signos e identifica-los e interpreta-los da
mesma forma (MEDEIROS, 2010, p. 10).

A partir da fundamentação apresentada, e traçando


um paralelo com a temática aqui desenvolvida, percebemos o
quanto o conceito de cultura e seus reflexos são significati-
vos na GR. Mesmo se considerarmos a grande influência da
Rússia enquanto referência técnica em todos os aspectos que a
compõe na atualidade, o olhar artístico impede que as coreo-
grafias fiquem restritas a esse aspecto apenas. E aí a cultura,
que já está ali representada na GR pelo simples fato de existir

91
Ginástica Rítmica: A Cultura Expressa no Corpo Ginástico

enquanto esporte, se abre de forma evidente nas escolhas da


ideia a ser abordada, na gestualidade a ser representada, na
escolha da música.
Percebemos no conjunto espanhol a dança, os gestos, os
olhares, as mãos, as batidas dos pés sobre o tablado, a cultura
de forma plena. Não porque estejam apresentando um passo
de dança típico, mas porque esse passo tem um significado que
lhes é real, movimentações que lhe são próprias e que só as
espanholas conseguem com tanta verdade porque expõem os
símbolos da sua cultura registrados no corpo e enlaçado com os
outros corpos com uma significação tão intensa que só os míni-
mos detalhes diferenciam. Percebamos as mãos, expressivas,
abertas em prontidão, a pose sempre em ataque, um olhar que
desafia, parece que sempre estão destinadas a luta ou mesmo
provocando-a, assim como os toureiros nas arenas que com sua
capa vermelha instigam os touros e os iludem até a morte. Esses
gestos estão sempre presentes nas coreografias espanholas.
Entretanto a cultura a que nos referimos e a qual visua-
lizamos na GR não está restrita apenas de um país que repre-
senta a si próprio, mas também é visível entre os países que
buscam referências em outras culturas para a construção de
suas coreografias. De fato, a necessidade de compor sequên-
cias de movimentos que transcendam os aspectos técnicos é
um convite à investigação de temas que podem vir através da
música, como no caso do conjunto espanhol, através de filmes,
de livros, um quadro, um número infinito de possibilidades
que instigam o caminhar por diferentes formas de expressão
e por culturas as mais díspares.
O desafio de criar formas e enlaces inusitados diferencia
uma equipe da outra. A interpretação das ginastas sobre a ideia
desenvolvida demanda uma apropriação consistente sobre o

92
Hosana Claudia Matias / Rosie Marie Nascimento de Medeiros

que está sendo composto. E, assim, a cultura transita no meio


ginástico, tanto na valorização e conhecimento adquiridos atra-
vés das pesquisas necessárias à composição, quanto no reco-
nhecimento e na aproximação da cultura de outros países ou
comunidades. Podemos comprovar a diversidade cultural nas
coreografias de GR ao assistirmos qualquer campeonato, quer
seja regional ou internacional. Ali estará presente uma diversi-
dade significativa de compreensões sobre a cultura e esse fato
instiga a apreciação (VELARDI; MIRANDA, 2010). Portanto, ao
considerarmos a GR, como “um sistema cultural de significações
plásticas, animadas e poéticas”, (NÓBREGA, 2013, Informação
verbal)11 traduzidas pelas coreografias apresentadas e subme-
tidas a avaliação com fins competitivos, poderemos perceber o
entrelaçamento entre o corpo e a cultura, como alguns dos pila-
res que teceram a GR que hoje conhecemos, nesse caso utilizan-
do o esporte como palco onde essa tessitura está representada.
Para compreendermos melhor essa trama é preciso saber
que a ginástica e o esporte como entendemos hoje, tiveram
origem em uma mesma época, porém em locais diferentes e com
objetivos diferentes. No entanto, fatos históricos transforma-
ram a configuração dessas práticas corporais. O esporte moder-
no institucionalizou os jogos populares, assim como a ginástica,
impondo-lhes uma mudança de significado e de função. Essa
transformação deu-se através de uma elite que se apropriou das
práticas dotadas de funções sociais, assim como ocorreu com
a música ou a dança, convertendo-os em exercícios corporais:

atividades que são o seu próprio fim, espécie


de arte pela arte corporal, submetidas a regras

Nóbrega, T. P. durante a qualificação dessa dissertação em agosto de 2013,


11

no laboratório VER/UFRN.

93
Ginástica Rítmica: A Cultura Expressa no Corpo Ginástico

específicas, cada vez mais irredutíveis a qual-


quer necessidade funcional, e inseridas num
calendário específico (BOURDIEU, 2003, p. 185).

Como consequência, tivemos à mercantilização dessas


atividades, que adquiriram um status de espetáculo, seja para
uso político ou comercial. Nessa perspectiva:

O desporto que temos é o que a história, a


cultura e a sociedade têm legitimado. Com
todas as suas virtualidades e excessos, mas
um desporto do homem, por ele construí-
do à sua dimensão (MARQUES apud BENTO;
MARQUES, 1993, p. 31).

Para manter-se viva frente a tantas mudanças, a GR


foi modificando-se na tentativa de ampliar seus horizontes
e continuar sobrevivendo enquanto prática corporal. Essa
influência se manifestou tanto na técnica quanto nos aspectos
metodológicos, segundo Langlade e Langlade (1970), A partir
dessa constatação, percebemos que a característica atual da
GR apenas reflete uma trajetória que foi sendo delineada, não
aleatoriamente, mas vinculada as transformações sociais de
cada período histórico. Sua caracterização foi aculturada
assim como as artes, a ciência, a educação, porque é fruto
da sociedade e da cultura em que está inserida. Dessa forma
entendemos que,

Num dado momento um esporte é um pouco


como uma obra musical; uma partitura (uma
regra do jogo etc.), mas também interpreta-
ções concorrentes (e todo um conjunto de
interpretações do passado sedimentado); e
é com tudo isso que cada novo interprete se

94
Hosana Claudia Matias / Rosie Marie Nascimento de Medeiros

defronta mais inconsciente do que conscien-


temente, quando propõe sua interpretação
(BOURDIEU, 2004, p. 215-216).

Assim está configurada a GR. Paradoxalmente, a busca


pela uniformidade das características da modalidade submeti-
da a um conjunto de regulamentos12 escritos e divulgados para
que seja utilizado em todo o mundo, desperta a necessidade
de tornar heterogêneo, diferente, exclusivo, inusitado o que a
institucionalização da ginástica pelo esporte quer homogenei-
zar. A composição das coreografias ginásticas tem esse objetivo,
responder as regras e ao mesmo tempo encontrar tangentes
que as tornem únicas. E a cultura faz esse papel, ao permitir
que apesar de aparentemente sermos iguais, somos na verdade
heterógenos, o que não nos permite o fechamento sobre nós
mesmos e a submissão cega às regras de convivência, porque
entendemos que as nossas respostas a determinadas situações
correspondem ao que culturalmente nos alicerçou. Como afir-
ma Zumthor (1993, p. 117) “Toda cultura comporta uma hete-
rogeneidade originária”.
Ao estabelecermos um paralelo com a GR, podemos
perceber no conjunto espanhol, o quanto a cultura própria o
diferencia dos demais países, assim seria também com as russas,
com as búlgaras ou com qualquer outro conjunto. No conjunto
espanhol, percebe-se o quanto existe coerência entre a ideia da
coreografia e a cultura. A escolha da música indica também a

12
Regulamento – o Código de Pontuação na GR é o documento que rege todo
o planejamento da modalidade. Suas normas influenciam tanto o treina-
mento quanto o processo de criação. As treinadoras e ginastas “vivem” em
função dele e na tentativa de superá-lo, principalmente no nível dos conjun-
tos descritos nessa pesquisa.

95
Ginástica Rítmica: A Cultura Expressa no Corpo Ginástico

forma como esse grupo percebe a si mesmo. A seleção dos movi-


mentos que ligam as dificuldades reflete a sensação causada
pela música em cada componente, por mais que as expressões
possam ser dirigidas, não há como escapar do sentimento que
lhe invade ao escutar o tema escolhido. O corpo responde ao
que sente porque não está dissociado do mundo nem do outro.
Segundo Merleau-Ponty,

É por meu corpo que compreendo o outro,


assim como é por meu corpo que percebo
“coisas”. Assim ”compreendido”, o sentido do
gesto não está atrás dele, ele se confunde com
a estrutura do mundo que o gesto desenha e
que por minha conta eu retomo, ele se expõe no
próprio gesto (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 253).

Nesse contexto multifacetado que envolve a modalidade,


é que percebemos no entrelaçamento do corpo com a cultura na
GR, a diversidade de teias que são lançadas sobre a modalidade.
Essas teias iniciam com a própria concepção de esporte, seu
desenvolvimento, suas regras, a escolha de transgredir os regu-
lamentos sem, no entanto, abandoná-lo, a opção por represen-
tar suas origens ou por conhecer outras formas de expressão.
O desejo e o desafio de consolidar-se como esporte olímpico.
O desejo de manter-se bela, porém sem perder a objetivida-
de frente a uma realidade que contradiz essa relação. Enfim,
acreditamos que a cultura é quem constrói esses enredamentos
porque somos todos frutos dela, a GR inclusive.
Para Merleau-Ponty (2011, p. 465), somos natureza e
cultura, entrelaçadas,

96
Hosana Claudia Matias / Rosie Marie Nascimento de Medeiros

Assim como a natureza penetra até no centro


de minha vida pessoal, entrelaçando-se a ela,
os comportamentos também descem na natu-
reza e depositam-se nela sob a forma de um
mundo cultural
e continua.

Não tenho apenas um mundo físico, não vivo


somente no ambiente da terra, do ar e da água,
tenho em torno de mim estradas, plantações,
povoados, ruas, igrejas, utensílios, uma sine-
ta, uma colher, um cachimbo. Cada um desses
objetos traz implicitamente a marca da ação
humana à qual serve [...] A civilização da qual
eu participo existe para mim com evidência
nos utensílios que ela se fornece. Se trata de
uma civilização desconhecida ou estranha,
maneiras de ser ou de viver podem repousar
sobre ruínas, sobre os instrumentos quebrados
que encontro ou sobre a paisagem que percor-
ro. O mundo cultural é agora ambíguo, mas ele
já está presente. Há ali uma sociedade a conhe-
cer [...] (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 465-466).

Assim é a GR, que como esporte, reflete a cultura a qual


está inserida. Uma construção recente que foi se alinhando ao
que considerou ser importante para a sua permanência no cená-
rio esportivo. Dessa forma nos ancoramos no pensamento de
Merleau-Ponty (2004a, p. 467) que afirma que “A constituição de
outrem, não ilumina inteiramente a constituição da sociedade,
que não é uma existência a dois ou mesmo a três, mas a coexistên-
cia com um número indefinido de consciências”. Para nós essas
infinitas consciências são determinantes para a continuidade de
qualquer que seja a forma como a cultura se apresente.
Enfim, encerrando a aproximação com os conceitos elen-
cados nesse trabalho, é hora de recompor o que acreditamos

97
Ginástica Rítmica: A Cultura Expressa no Corpo Ginástico

estar imbricado na essência da GR. O que antes para mim era só


corpo, aparelho e música, tomou outra configuração. Agora vejo
um corpo expressivo, um aparelho que se adere a esse corpo
tornando-se um só elemento e a música que artisticamente
abraça-os e nos envolve numa experiência estética que não
passa despercebida. Reconhecemos que esses conceitos forma
amplificados pelo olhar fenomenológico, o que torna todas essas
novas compreensões um caminho aberto e inacabado que me
conduz para novas descobertas.

98
Hosana Claudia Matias / Rosie Marie Nascimento de Medeiros

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Ginástica Rítmica: A Cultura Expressa no Corpo Ginástico

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100
Hosana Claudia Matias / Rosie Marie Nascimento de Medeiros

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Companhia das letras, 1993.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo:


EDUC, 2000.

101
BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE
O FUTEBOL ENTRE OS POVOS
INDÍGENAS KARIPUNA1

Marcio Romeu Ribas de Oliveira

Introdução

Este texto tem como pressuposto indicar breves considerações


sobre o esporte futebol e sua prática entre os povos indíge-
nas Karipuna. O contato inicial se dá numa tarde de sol na
cidade do Oiapoque, extremo norte do Brasil e do estado do
Amapá. No mês de julho de 2009, ao participar do módulo do
curso de licenciatura intercultural indígena, Campus Norte2,
da Universidade Federal do Amapá3. Curso que envolve povos
indígenas do Amapá e norte do Pará, entre esses povos estão os
Waiãpi, Galibi-Marworno, Galibi-Kalinã, Apalai, Tiriyó, Palikur
e Karipuna. O convite foi feito para estabelecer uma conversa
sobre uma proposta, conjuntamente com os/as estudantes do
curso, em relação às práticas corporais nas escolas indígenas.
Nomeamos a nossa proposta: Educação Física como linguagem:

1
Uma primeira versão deste texto foi publicada, no Encontro de Pesquisa
Educacional do Norte e Nordeste, Manaus, 2011, com o título Imagens do
Futebol entre o povo indígena Karipuna.
2
Atualmente, Campus Binacional do Oiapoque.
3
O curso é desenvolvido em módulos, neste módulo foi desenvolvido no campo
da Linguagem e Artes, uma discussão sobre o campo da Educação Física.
Marcio Romeu Ribas de Oliveira

práticas corporais e incorporais na escola indígena, título que impli-


cava a cosmologia que o corpo e suas práticas encenam nas
sociedades indígenas. Nas discussões que foram enredadas em
nossos encontros, o tecido central era o de valorizar, reconhe-
cer e inventariar as práticas corporais desses povos indígenas.
Percebendo na ideia uma construção coletiva dos povos
indígenas a respeito das práticas corporais, num caminho de
valorização cultural, fortalecimento do conhecimento indí-
gena e identificação das práticas cotidianas como elementos
instituintes dos saberes e fazeres sobre as práticas culturais
de movimento produzidas nas aldeias. Entretanto, dentro da
metodologia dos encontros na disciplina, propusemos uma
investigação inventariada de práticas culturais de movimento
que estão/estariam presentes no cotidiano das aldeias. Nesse
inventário aparece, repetidamente, e entre vários povos indíge-
nas, o componente futebol, jogar futebol, competir com “os paren-
tes” do Suriname, correr no futebol, e, talvez, por fim e com maior
ênfase, o futebol é do nosso costume.
Ao voltarmos, brevemente, no que diz respeito ao tema
da valorização da cultura dos povos indígenas, podemos acre-
ditar que o futebol, em sua dimensão esportiva e nas suas
múltiplas interpretações é um componente importante da
cultura cotidiana indígena.
Essas questões iniciais empenharam algumas possibilida-
des de pensarmos o futebol entre os povos indígenas Karipuna,
e se enredam nessa problemática, como a prática esportiva do
futebol se apresenta e se relaciona com a vida cotidiana nas
aldeias do povo indígena Karipuna?
Do ponto de vista do tecido metodológico os procedi-
mentos da proposta fotoetnográfica de Achutti (1997, 2004)
foram experimentados na aldeia Manga e na cidade do

103
Breves Considerações sobre o Futebol entre os Povos Indígenas Karipuna

Oiapoque, o período do trabalho foi em novembro de 2010 e


em fevereiro de 2011.
Para Achutti (2004, p. 109) ao argumentar sobre sua
proposta,

Uma narrativa fotoetnográfica deve se apre-


sentar na forma de uma série de fotos que
estejam relacionadas entre si e que compo-
nham uma sequência de informações visuais.
Série de fotos que deve se oferecer apenas
ao olhar, sem nenhum texto intercalado a
desviar a atenção do leitor/espectador.

De tal maneira que a narrativa fotoetnográfica seja um


universo de interpretação “visando a uma composição que
mostre a singularidade cultural de um determinado grupo
social ou de subgrupos que vivem em sociedades diversas”
(ACHUTTI, 2004, p. 92). Dessa forma, apresentar as práticas
esportivas na vida cotidiana e seus enredamentos no campo
da prática esportiva entre os povos indígenas, através de uma
narrativa visual, mesmo em tão pouco tempo, não necessaria-
mente seria estabelecer uma imagem fixa das práticas espor-
tivas nas aldeias indígenas. Antes disso tudo, é necessário
perceber a necessidade de contato com os povos indígenas,
assim como o cuidado com as estratégias metodológicas desse
contato, não obstante o fato de que esses povos foram e são
marginalizados nas suas práticas culturais, estranho seria
se tudo fosse tão fácil de acessar em seus aspectos culturais.
A questão supracitada indicia os percursos teóricos e metodo-
lógicos praticados em outras dimensões temporais, exercidas
pelos povos indígenas e a necessidade de entender a continui-
dade do percurso da pesquisa.

104
Marcio Romeu Ribas de Oliveira

Nesse sentido, Achutti (2004, p. 94), comenta:

Durante a fase de trabalho de campo, o pesqui-


sador pode utilizar diversas técnicas de pesqui-
sa que enriquecerão o estudo etnográfico e
lhe conferirão maior profundidade. Há muito
tempo, o gravador, a máquina fotográfica, a
câmera de cinema e o vídeo vieram se juntar
ao tradicional bloco de notas. Cada uma dessas
ferramentas engendrou novas técnicas de cole-
ta e descrição dos dados mais ou menos especí-
ficas conforme o tipo de material pesquisado.

A trama do futebol indígena dos Karipuna

Naquele sábado, numa tarde de sol exuberante, o estádio


municipal do Oiapoque começava a receber um bom público,
os povos indígenas Karipuna chegavam em caminhões vindos
da aldeia. Subi com a filmadora, a fim de registrar a prática
corporal esportiva, ao chegar numa humilde cabine de repor-
tagem, encontro com um “jornalista esportivo”, iniciando seus
trabalhos de locução e registro do “clássico indígena de grande
rivalidade”. O locutor comenta que os jogos de futebol entre os
povos indígenas são uma sensação na cidade, muito prestigiados
e aguardados, resultado das características da elevada força
física e da quantidade de gols – comenta o “jornalista”. Essas
características identitárias produzidas pelos não-índios sobre
o futebol praticado entre os povos indígenas, exibem a neces-
sidade de problematizar a identidade do que é ser indígena, e
que em muitos momentos é uma visão ingênua e pouco produ-
tiva para entender tais povos, em outros momentos tal iden-
tidade se acopla a uma questão produzida, pela proximidade
vivida pelos povos indígenas com os não-índios. Para Eduardo

105
Breves Considerações sobre o Futebol entre os Povos Indígenas Karipuna

Viveiros de Castro (2006, p. 42), sobre a identidade indígena e


sua visibilidade:

[...] acho que um dia vamos chegar lá – que


índio não é uma questão de cocar de pena,
urucum e arco e flecha, algo de aparente e
evidente nesse sentido estereotipificante, mas
sim uma questão de “estado de espírito”. Um
modo de ser e não um modo de aparecer.

Das conversas realizadas nos encontros do curso de


formação de professores/as, era visível a importância do espor-
te como prática cotidiana entre os povos indígenas do Amapá e
norte do Pará. Os Karipuna destacaram a presença do futebol
na aldeia, por volta da década de 1960, vindo do contato com os
não-índios, talvez seja possível acreditar que a presença e conta-
to com os não-índios, no afã de instituir hábitos “civilizados” e
“civilizantes” para esses povos, utilizou do esporte, e principal-
mente do futebol, numa primeira instância, como mobilizador
da cultura não indígena nas aldeias indígenas (ALMEIDA, 2010).
Para Tassinari (2003, p. 370),

os jogos de futebol chegaram ao Curipi junto


com a escola, como atividades das aulas de
Educação Física. Passaram a funcionar, porém,
como importantes ocasiões para articulação,
reiteração e ativação do intercâmbio entre
diferentes círculos de famílias. Tanto aqueles
formados pelas próprias famílias Karipuna,
como círculos mais amplos que reúnem times
de outros povos indígenas ou mesmo das cida-
des vizinhas. A forma como os times se cons-
tituem no interior do Curipi, o modo como os
Karipuna utilizam os torneios para “aproxi-
mar” famílias de fora, as tensões e acordos

106
Marcio Romeu Ribas de Oliveira

manifestos nesses torneios fazem dos jogos de


futebol verdadeiros idiomas sobre as relações
interfamiliares e étnicas.

A autora contribui para o entendimento das práticas


esportivas como algo muito além da prática esportiva, como
uma linguagem, um evento dinâmico, múltiplo em seus senti-
dos e significados. Dessa forma o futebol deve ser entendido
enquanto uma prática cotidiana nas aldeias, mas não é uma
prática “tradicional” dos povos indígenas, pois o esporte é uma
invenção burguesa, como argumenta Grando (2010, p. 109), ao
tratar do povo Bororo,

[...] mesmo sendo o futebol um esporte da


sociedade envolvente, traduz outros senti-
dos e significados como jogo apropriado e
vivenciado como estratégia para uma educa-
ção intercultural bororo, garantindo o que
Mauss (1969) afirma ser a educação que não
se separa da instrução.

Em nossas observações entre os Karipuna, da Aldeia


Manga, percebemos dois times que jogavam no campeonato
de futebol amador do Oiapoque, times que exibem relações de
parentesco, dentro dos seus times como entre os times. Como,
por exemplo, primos que são zagueiros de um time e atacantes do
outro time, há, também, a presença de não indígenas, pelo menos
num time da aldeia, tal questão pode indicar a necessidade de
uma possível melhora na perfomance nas competições locais, e
com a presença de não indígenas isso seria alcançado; num outro
entendimento é possível pensarmos que a qualidade do time,
faz com que não indígenas tenham interesse em jogar nos times
indígenas, assim é possível indicar que a presença da sociedade

107
Breves Considerações sobre o Futebol entre os Povos Indígenas Karipuna

envolvente da cidade do Oiapoque estabelece essa mediação e os


não-índios queiram participar das práticas esportivas do time.
No outro time, só é permitida a entrada de indígenas para
jogar. Do ponto de vista técnico o time que tem não indígenas já
foi campeão do campeonato amador da cidade do Oiapoque, o
outro ainda persegue tal feito, as diferenças entre os times são
muito grandes, tanto da estrutura, como na elaboração de certo
orgulho na Aldeia do Manga, e em contrapartida, “gozações” e
provocações são frequentes entre os praticantes.
No jogo que assisti, as arquibancadas estavam cheias de
mulheres indígenas, crianças indígenas e homens indígenas
e não indígenas, presentes para o acontecimento futebolísti-
co. A torcida é considerada pelos não indígenas como a mais
animada nos jogos da cidade, a torcida das mulheres indígenas
movimenta o jogo aos gritos, tanto quando a bola se aproxima
do gol ou na sua distância. Tudo num clima de muita alegria.
Conversando com alguns indígenas, foi comentado o proces-
so de aproximação desse povo indígena e a prática do futebol.
O início do futebol foi marcado pela força física, resultado
das práticas corporais desenvolvidas nas aldeias, como caçar,
pescar, o trabalho na roça, o que dava um excelente prepa-
ro físico para os indígenas, em detrimento da pouca técnica.
Segundo relato de um representante da Aldeia Manga, os indí-
genas faziam muitos gols no primeiro tempo, mas no segundo
tempo cansavam e acabavam perdendo para os não-índios.
Nessa estada em julho, o time da aldeia Espírito Santo esta-
va sendo assessorado por um professor de Educação Física. Tática
utilizada para tentar melhorar seu rendimento técnico e tático
no campeonato. Essas breves considerações intentam entender-
mos a prática do futebol nas aldeias indígenas, num primeiro
momento é necessário afastarmo-nos de posições que entendem

108
Marcio Romeu Ribas de Oliveira

a presença do futebol nessas aldeias como fruto da aculturação


desses povos, ausência da identidade indígena, apropriação
do esporte de alto rendimento não indígena, esportivização e
ausência das práticas tradicionais de movimento. Nos estudos
sobre o futebol, desenvolvidos por Fassheber (2006, 2009) sobre os
Kaigang e nos de Vianna (2008) sobre os Xavante, apontam para
uma compreensão da relação de saberes, educação entre cultu-
ras e interculturalidade, ressignificação dos sentidos e signifi-
cados produzidos nas práticas esportivas na aldeia. Práticas que
se entrelaçam nas dimensões do conhecimento localizado nas
aldeias, na forma de conhecimento material e imaterial, como
explica Gallois (2008) desses povos sobre o futebol.
Podemos entender o esporte na aldeia como uma trama
muito complexa, para tanto Sarlo (2005, p.78), comenta a dimen-
são conceitual do sentido da trama:

[...] pode-se dizer que ela encerra uma vonta-


de construtiva e reconstrutiva, explicativa e
causal. Tudo isso é verdade, e mais. A trama
é um relato, ainda que fragmentário e provi-
sório, em que se constroem hipóteses de
vínculos e se traça um movimento (ás vezes
chamado processo); a trama busca conexões
e, quando o faz, não pode garantir de antemão
que os pontos ligados pertençam uniforme-
mente ao mesmo nível, nem que a forma das
ligações seja a mesma em todos os momentos
da trama: num determinado capítulo, dados
culturais e artísticos poderão ligar-se a trans-
formações políticas; mas isso não garante que,
no capítulo seguinte, a literatura ou a arqui-
tetura não apareçam afetadas por mudanças
quantitativas ou qualitativas na população.
E, para complicar ainda mais as coisas, o que
se encontra na emergência de um fenômeno
não necessariamente pode ser descrito como

109
Breves Considerações sobre o Futebol entre os Povos Indígenas Karipuna

ausência no momento de sua dissolução. Nas


tramas, os fios se juntam e se separam, há
pontos de condensação onde tudo parece
estar presente, onde a história que a trama
tenta contar dá a impressão de ser o lugar de
confluência de uma porção de histórias que,
mais adiante, talvez voltem a se separar. Uma
trama constitui uma sintaxe cujos princípios
são hipóteses e costuma estar regulada por
uma idéia (ou por várias, às vezes em confli-
to) do que seja uma história que vale a pena
ser contada: os sujeitos, as séries de fatos, a
relação entre fatos e sujeitos, a perspectiva,
os modos da figuração e do discurso.

Entender a prática do futebol na Aldeia Manga pelo


sentido da trama de Sarlo enreda ao, como escreve Viveiros de
Castro, o visível nas práticas culturais de movimento entre os
povos indígenas é muito mais complexo do que apenas acredi-
tar que estão deixando de ser indígenas por estarem jogando
futebol, e que em detrimento de suas práticas tradicionais o
futebol estaria sendo hegemônico nas aldeias, ou que as práticas
culturais indígenas estão paralisadas no tempo e no espaço.
É muito claro que nas aldeias a prática do futebol é vivida em
seu cotidiano, principalmente no seu fim de tarde, vivências
que produzem acontecimentos e que os transcrevo:

[...] fomos jogar no campo com os indígenas,


ao chegar vimos alguns jovens jogando numa
trave, eram cinco os que estavam jogando,
depois chegou mais um, que tinha nos ajuda-
do a chegar ao campo, eles estavam jogando
“rebatida”. Como é conhecido por mim, não
investiguei o nome do jogo que praticavam,
talvez seja necessário denominar qual é o
jogo. Eles terminaram de jogar e se direcio-
naram para o outro lado, já tínhamos pedido

110
Marcio Romeu Ribas de Oliveira

para jogar “de fora” o mesmo jogo que eles


jogavam, não obtivemos nenhuma resposta,
mas pela condução do que faziam, foi possí-
vel que iríamos todos jogar uma partida em
traves pequenas, os não índios ficaram num
time com mais dois indígenas e do outro
lado quatro indígenas no mesmo time, todos
estavam com chuteiras para jogar futebol,
demonstravam habilidade no drible, na
condução da bola, e o jogo foi vivido em sua
totalidade, nenhum tipo de agressividade foi
notada, depois fiquei pensando na lógica do
jogar como um ato de entrega e divertimento
mútuo, não existe ou não existiu nenhum tipo
de cobrança, nenhum tipo de xingamento,
apenas sorrisos, sorrisos nos gols feitos
e sorrisos nos gols perdidos, sorrisos nas
jogadas certas e sorrisos nas jogadas perdidas,
é verdade que estávamos brincando, mas
isso, em outras atividades esportivas, como
no futebol não indígena é sempre muito visí-
vel, a vitória é sempre a razão e última lógica
da atividade, não se joga pelo jogar, mas se
joga para vencer o outro. Não percebi isso
no jogo, senti a necessidade da brincadeira,
bem, foi o primeiro jogo, agora teremos todas
as tardes para pensar nisso e para jogar bola.
(ANOTAÇÕES PESSOAIS)

De acordo com Fassheber (2009, p. 117),

Conseguem também organizar a própria


sociedade a partir desse esporte: mitologia,
organização social, centralidade, parentesco,
trânsito entre Terras Indígenas, gênero e reli-
gião são aspectos notáveis. Ademais a noção
tradicional de força Tare – expressão física
e simbólica de seus corpos - é afirmada em
seus jogos e torneios. Assim, denominamos
de Etno-Desporto o processo de mimesis do
esporte global pelos Kaingang que permite-
-nos pensar sua identidade étnica.

111
Breves Considerações sobre o Futebol entre os Povos Indígenas Karipuna

Ao indicar a presença do Etno-Desporto entre os


Kaingang, Fassheber aponta para uma dimensão relacional
dessas práticas esportivas, posto que em muitas análises há
um procedimento de acreditar que esses povos indígenas este-
jam perdendo suas tradições, pelo acesso à cultura envolvente.
O que é importante mencionar, e que Gallois4 indica como
uma forma contemporânea de sociabilidade desses povos indí-
genas com os não-índios, diz respeito a rede de relações de troca
e mudanças que a cultura opera nesses encontros. Para a autora
não é possível pensar a cultura como uma dimensão centrada nas
dimensões tradicionais, para ela há uma escolha desses povos
indígenas em manter o que é necessário para a sua sobrevivência,
tanto física como cultural. E nesses encontros com os não-índios
isso ficará claro, entretanto, é necessário entender que esse é
um procedimento dos povos indígenas e não dos não-índios.
Entender, então, de antemão que o esporte na aldeia tem carac-
terísticas étnicas, como aponta Fassheber, indica procedimentos
teóricos e metodológicos que se enredem nessa trama.
Nesse sentido, Fassheber (2009, p. 125) indica a ideia de uma
encorporação, fato que indica que os povos indígenas, podem
ressignificar a presença do esporte nas aldeias, elaborando novos
sentidos e significados para a prática esportiva, principalmente
com a relação cosmológica desses povos.

Daí a encorporação do Futebol ter soado como


boa metáfora das guerras e dos jogos de guer-
ra Kaingang. Jogo de guerra ressignificado

4
Curso ministrado pela professora Drª Dominique Gallois, no Instituto de
Pesquisa e Formação em Educação Indígena, sede Amapá em outubro de
2008. O curso tinha como tema a formação para um olhar antropológico na
educação indígena.

112
Marcio Romeu Ribas de Oliveira

pela faculdade mimética, com novas confi-


gurações de identidade.

Dessa forma é necessário entendermos as diversas


manifestações, sentidos e significados que os povos indígenas
estabelecem no encontro com o futebol, talvez isso indique trans-
formações na cultura indígena, efeitos produzidos pela evidência
do esporte moderno não indígena nas aldeias. Fato que não se
pode desprezar, pois inerente as práticas cotidianas esportivas
não indígenas, como a sobrepujança, as comparações objetivas,
violência e espetacularização podem se relacionar nesse proce-
dimento etnográfico, pois é uma relação de alteridade, marca-
damente não é uma rua de mão única, mas um enredamento de
saberes culturais entre os povos indígenas e os não índios.

Técnicas corporais, com regras, incluem entre


outras coisas, jogos tradicionais e espor-
tes modernos. Regras são controles sociais
presentes em ambos os casos. A diferença
entre ambos está, talvez, tanto na maior rigi-
dez de regras no segundo caso tanto quan-
to há de espontaneidade no primeiro. Entre
os dois, por efeito da mimesis, insere-se o
caso das transformações nos jogos tradicio-
nais indígenas e a não tão recente encorpo-
ração dos denominados esportes modernos
dentro das TIs, principalmente o Futebol
(FASSHEBER, 2009, p. 125).

113
Breves Considerações sobre o Futebol entre os Povos Indígenas Karipuna

Imagens do futebol

Figura 1 – Torcedores – Oiapoque

Fonte: autoria própria

Figura 2 – Campo de futebol da Aldeia Manga, etnia Karipuna – Oiapoque

Fonte: autoria própria

114
Marcio Romeu Ribas de Oliveira

Figura 3 – Jogadores Karipuna se preparando para o jogo e torcedores


– Oiapoque

Fonte: autoria própria

Figura 4 – Jogador Karipuna – Oiapoque

Fonte: autoria própria

115
Breves Considerações sobre o Futebol entre os Povos Indígenas Karipuna

Considerações finais

O futebol praticado entre os indígenas é uma prática inter-


cultural étnica. Ao nos aproximarmos das práticas culturais
de movimento dos povos indígenas vivenciamos aspectos da
cosmologia indígena, das relações sociais produzidas no coti-
diano das aldeias, dos aspectos singulares da aprendizagem
entre os diversos povos indígenas e da presença da diferença
nos modos de ser indígena. É muito claro também, a necessidade
de um deslocamento de nossos modos teóricos e metodológicos
aprendidos ao longo da prática científica, em muitos casos e
momentos a teoria e a metodologia não funcionam como nos
manuais, necessitando de um artesanato científico, de uma
valorização dos saberes tradicionais e um distanciamento das
ideias fixas sobre o que pensamos sobre os povos indígenas.
Em outro aspecto, desestabilizar o fenômeno espor-
tivo, principalmente no que se refere aos conceitos e modos
de apreensão produzidos pelos não indígenas, afasta-nos de
oferecermos alguns elementos de análise prematuros, e não
significa se furtar a preencher algumas lacunas, mas, de certa
forma, entendendo que essas análises podem conter uma série
de aprioris etnocêntricos, e que só cabem em sociedades que não
são indígenas, em muitos casos operamos com processos teóri-
cos e metodológicos que aprisionam as práticas observadas,
corroborando a necessidade de revisitarmos nossas práticas
de fazer ciência.
Nesse caso, o retorno ao mundo não indígena já não é
mais o mesmo, e a percepção equivocada que os índios não são
tão índios vai sendo deixada de lado e vamos percebendo que
ser indígena é muito mais do que se aparenta, é um convívio
entre coisas visíveis e invisíveis, e que, por muito tempo e pelas

116
Marcio Romeu Ribas de Oliveira

práticas científicas produzidas no interior da academia, fomos


deixando de ver, ao trazer essas breves considerações sobre
o futebol, talvez possamos contribuir para percebemos que a
prática de futebol não altera o modo de ser indígena, mas, muito
mais, o futebol deixa de ser visto como prática ocidentalizada
de se jogar bola.
Vai tomando características singulares, vai se transfor-
mando também, vai deixando de ser essencialmente competi-
tivo, para produzir uma rede de sociabilidades nas aldeias, vai
criando espaços e tempos de convívio, de conversa, de aprendi-
zagem sobre as práticas culturais de movimento, é uma lingua-
gem acessível e com muitas possibilidades de instituir outras
características na prática hegemônica do futebol. Aproxima
“os parentes”, nesse primeiro momento são essas imagens do
pensamento que vão sendo tecidas, é necessário acreditar que
tudo isso pode ser diferente do que pensamos que seja. E um
aspecto porvir é a presença de tais temas na formação inicial
de professores e professoras de Educação Física, tanto indígenas
como não indígenas.

117
Breves Considerações sobre o Futebol entre os Povos Indígenas Karipuna

REFERÊNCIAS

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Tomo Editorial; Palmarinca, 1997.

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Jardim. Porto Alegre: Tomo Editorial; Editora da UFRGS, 2004.

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história e a cultura dos povos indígenas na escola. Cuiabá: EdUFMT,
2010. p. 121-138.

FASSHEBER, José Ronaldo Mendonça. Etno-desporto indígena:


contribuições da antropologia social a partir da experiência
entre os Kaingang. 2006. Tese (Doutorado em Educação Física) –
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entre os Kaingang. In: PRÊMIO BRASIL DE ESPORTE E LAZER DE
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2008. Brasília: Ministério do Esporte, 2009. p. 117-136.

GALLOIS, D.T. Patrimônio cultural imaterial e povos indígenas:


exemplos no Amapá e norte do Pará. São Paulo: Iepé, 2008.

118
Marcio Romeu Ribas de Oliveira

GRANDO, Beleni S. O jogo da educação do corpo e a identidade


Bororo em espaços de fronteiras culturais. In: GRANDO, Beleni
Salete; PASSOS, Luiz Augusto (Org.). O eu e o outro na escola:
contribuições para incluir a história e a cultura dos povos
indígenas na escola. Cuiabá: EdUFMT, 2010. v 1. 168 p.

SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias. São Paulo: Edusp, 2005.

TASSINARI, Antonella Maria Imperatriz. No bom da festa: o


processo de construção cultural das famílias Karipuna do Amapá.
São Paulo: USP, 2003.

VIANNA, Fernando de Luiz Brito. Boleiros do cerrado: índios


Xavantes e o futebol. São Paulo: Annablume; Fapesp; ISA, 2008.

VINHA, Marina. Corpo - Kadiwéu: jogo e esporte. 2004. Tese


(doutorado em Educação Física) – Universidade de Campinas,
Campinas, 2004.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. No Brasil, todo mundo é índio,


exceto quem não é. In: RICARDO, Beto, RICARDO, Fany (Org.).
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SocioAmbiental, 2006. p. 130-161.

119
CORPO E EPISTEMOLOGIA:
CONTRIBUIÇÕES PARA
A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

Mackson Luiz F. da Costa


Aguinaldo César Surdi
Judson Cavalcante Bezerra
Moaldecir Freire Domingos Júnior

Introdução

O campo acadêmico da Educação Física iniciou-se na déca-


da de 80 do século XX, com um movimento denominado de
“crise”. Medina (1983), em seu famoso livro Educação Física cuida
do corpo... e “MENTE”, declarou que a Educação Física precisava
“entrar em crise”. Desta forma, o autor quer enfatizar sobre a
necessidade de um questionamento sobre a identidade episte-
mológica que essa área devia enfrentar. Portanto, as décadas
de 1980 e 1990 foram protagonizadas pelo debate referenciado
nas ciências sociais e humanas, levando em consideração prin-
cipalmente o caráter epistemológico.
No entanto, Bracht (2003), retomando a história da
Educação Física, observou que ela ainda está marcada pela
dissociação entre conhecimento e intervenção. Foi assim no
período chamado higienista, militarista, e esportivista, e não
é diferente em tempos atuais, mesmo já passadas mais de duas
décadas do início da “crise”. Desde o seu surgimento, a Educação
Mackson Luiz F. da Costa / Aguinaldo César Surdi /
Judson Cavalcante Bezerra / Moaldecir Freire Domingos Júnior

Física tem uma relação distante entre o conhecimento acadêmi-


co e o sentido da legitimação do seu fazer pedagógico.
Atualmente, o campo de conhecimento da Educação
Física apresenta uma atividade epistemológica muito ampla,
relacionada com diversas problemáticas. Essa pluralidade de
problemáticas faz com que a área não se restrinja a um único
objeto de estudo, permitindo que as discussões se encontrem
em constante transformação.

No âmbito da atividade epistemológica, nos


deparamos com a revisão de conceitos, méto-
dos, problemáticas de investigação, corpo de
conhecimento que definem determinada área,
relação entre os diversos saberes, limites do
próprio conhecimento, linguagem, dentre
outros questionamentos (MENDES, 2009, p. 3).

Um dos objetos de estudos da Educação Física, que apre-


senta uma reflexão marcante, está relacionado com a temática
do corpo. Nóbrega (2006) diz que a problemática do corpo pode
apresentar indicadores para a configuração epistemológica da
Educação Física, haja vista a existência de um número signifi-
cativo de pesquisas que enfocam questões relativas ao corpo.
Podemos encontrar pesquisa sobre sociologia do corpo, filosofia
do corpo, antropologia do corpo, corpo e epistemologia, corpo
e Educação Física escolar, dentre outras.
No campo da Educação Física escolar, as compreensões
de corpo foram sendo materializadas na prática pedagógica,
mostrando que os estudos em torno do corpo e as maneiras
como ele é divulgado na sociedade implicam diretamente nas
relações que se tem com ele na escola.
Ampliar as discussões sobre o corpo é de extrema
importância, pois a informação, a experiência ou a prática são

121
Corpo e Epistemologia: Contribuições para a Educação Física Escolar

necessárias, mas insuficientes, por se restringirem a uma deter-


minada perspectiva, não abrangendo outros pontos de vista
sobre o fenômeno (NÓBREGA, 2006).
Durante toda a história, a forma de se compreender e ver
o corpo se modificou e se modifica; essas modificações mostram
o quanto é complexa a temática do corpo. O corpo, assim como
a cultura, tem caráter polissêmico, isto é, pode assumir vários
significados (SANCHES NETO; LORENZETTO, 2008). Acreditamos
que a forma com a qual o professor de Educação Física se
apropria das discussões sobre o corpo interfere diretamente
na sua atuação no espaço escolar, no que se refere à questão
didático-pedagógica.
Pensar sobre o corpo, do ponto de vista teórico, é pensar
também o modo como determinados discursos sobre o corpo
se materializam em determinadas práticas sociais (NÓBREGA,
2006). Neste sentido, esse artigo tem como objetivo refletir como
os discursos sobre o corpo influenciaram e/ou influenciam na
atuação do professor de Educação Física na escola.
O artigo se estrutura com uma reflexão sobre o corpo,
um rápido passeio pela história da Educação Física, apontamen-
tos sobre as concepções de ensino na Educação Física e como o
corpo se apresenta nelas. Dentro desse contexto, na tentativa de
relacionar o corpo com a atividade epistemológica da Educação
Física, partilhamos da seguinte compreensão de epistemologia:

Abrange a análise das ciências, quanto à inda-


gação sobre os procedimentos científicos, a
análise das condições sócio-históricas e do
capital cognitivo acumulado, os avanços e
os limites do conhecimento, a validade dos
procedimentos, dos instrumentos e dos resul-
tados das investigações; bem como outras
configurações do saber, inclusive o diálogo da

122
Mackson Luiz F. da Costa / Aguinaldo César Surdi /
Judson Cavalcante Bezerra / Moaldecir Freire Domingos Júnior

Ciência com outros saberes como a Filosofia,


a Arte e a Educação (NÓBREGA, 2006, p. 59).

Tal compreensão nos impulsiona a escrever dialogando


com diferentes saberes, na esperança de mobilizar professores de
Educação Física a pensarem sobre o corpo e seu cotidiano escolar.

Uma reflexão sobre o corpo e


um pouco de sua história

Destacar os momentos históricos sobre o corpo não é contar sua


história, mas perceber as variações de significado que esse concei-
to sofre, uma vez que o “epistemólogo – que nisso difere do histo-
riador – deve destacar, entre os conhecimentos de uma época, as
ideias fecundas”, como nos ensina Bachelard (1996, p. 14).
Se considerarmos o período mítico, não se pode falar
nem em Educação Física nem em esporte, conceitos que, segun-
do Santin (1992), não existiam, porque, conforme esse autor,
tais atividades dependem de uma classificação conceitual.
Estudos etnológicos descobriram que entre os povos primi-
tivos não havia distinção valorativa de atividades. Todas as
atividades tinham o mesmo valor e a vida humana era referên-
cia, tanto no âmbito individual como coletivo. As atividades de
caça, pesca, da guerra, das corridas, lutas ou danças, tudo era
exigido para manter a vida ativa, sem a noção de trabalho ou
de esporte, de atividade física ou mental, da separação entre
sagrado e profano, corpo, mente etc. Para esse autor, foi na
modernidade que os estudiosos ocidentais, baseados na ciência
moderna e seu método, criaram uma nomenclatura classifi-
catória, ou, ainda, modelos que têm o objetivo de valorizar e
diferenciar as atividades humanas.

123
Corpo e Epistemologia: Contribuições para a Educação Física Escolar

Diante desse processo de classificação e valorização,


Bracht (1999) comenta que foram projetadas perspectivas para
a humanidade e não reservavam ao corpo um lugar central. Na
construção de uma prática emancipatória, não atribuíram ao
corpo papel importante, como também nenhum papel subver-
sivo. A emancipação humana, ou seja, a iluminista, dar-se-ia
pela razão, pela consciência desencarnada. As teorias da cons-
ciência, mesmo as de orientação positivista, são mentalistas.
Portanto, nas teorias do conhecimento da modernidade, que
têm sua expressão máxima no chamado método científico, o
corpo ou a dimensão corpórea do homem aparece como um
elemento perturbador que precisa ser controlado pelo estabe-
lecimento de um procedimento metódico rigoroso. Para Veiga
Neto (1996), a divisão feita por Descartes entre res estensa e
res cogitans construiu a base para o surgimento da ideia do
controle racional do mundo.
Conforme Bracht (1999), tanto nas teorias da constru-
ção do conhecimento como nas teorias da aprendizagem, com
raras exceções, quem comanda a aprendizagem é o intelecto.
A inteligência ou a consciência se liberta do corpo para criar seu
estatuto sobre o conhecimento. Podemos perceber que até as
teorias sobre aprendizagem motora são, em parte, cognitivistas.
O papel da corporeidade na aprendizagem foi historicamente
subestimado, negligenciado. Hoje é interessante perceber um
movimento no sentido de recuperar a “dignidade” do corpo
ou do corpóreo, no que diz respeito aos processos de apren-
dizagem. No entanto, quais os motivos desta valorização que
o corpo está recebendo atualmente? Segundo Bracht (1999),
nas exigências das formas sociais de organização da produ-
ção e da reprodução da vida, o corpo deve se adaptar às novas
demandas da modernidade. Neste sentido, ele se torna alvo das

124
Mackson Luiz F. da Costa / Aguinaldo César Surdi /
Judson Cavalcante Bezerra / Moaldecir Freire Domingos Júnior

necessidades produtivas (corpo produtivo), das necessidades


sanitárias (corpo “saudável”), das necessidades morais (corpo
deserotizado), das necessidades de adaptação e controle social
(corpo dócil). O autor ainda salienta que:

[...] o déficit de dignidade do corpo vinha


de seu caráter secundário perante a força
emancipatória do espírito ou da razão. Mas
esse mesmo corpo, assim produzido historica-
mente, repunha a necessidade da produção de
um discurso que o secundarizava, exatamente
porque causava um certo mal-estar à cultu-
ra dominante. Ele precisa, assim, ser alvo de
educação, mesmo porque educação corporal
é educação do comportamento que, por sua
vez, não é corporal, e sim humano. Educar o
comportamento corporal é educar o compor-
tamento humano (BRACHT, 1999, p. 72).

Atualmente, outro fator importante que podemos perce-


ber é a ampliação das reflexões sobre o corpo e sua relação
com a corporeidade. A corporeidade, compreendida filosofi-
camente como discurso, reconhece a impossibilidade de uma
redução completa da experiência vivida pelo próprio discurso
(NÓBREGA, 2006).
Nóbrega (2006) ainda mostra que, em Merleau-Ponty, o
conceito corporeidade considera a realidade do corpo para além
das dicotomias corpo e mente, sujeito e objeto, natureza e cultu-
ra. Conceitos esses formulados a partir de uma crítica rigorosa
ao modo como o empirismo e o intelectualismo compreenderam
o corpo em suas construções científicas e filosóficas.

125
Corpo e Epistemologia: Contribuições para a Educação Física Escolar

Nesse sentido, Sérgio (1996, p. 64-65) menciona que:

As grandes dimensões da pessoa humana


parecem basear-se: na corporeidade (o homem
é presença e espaço na história, como corpo,
no corpo, desde o corpo e através do corpo);
na motricidade (que é virtualidade para o
movimento intencional, que persegue a trans-
cendência); na comunicação e cooperação
(o sentido do outro nasce de sua indispensa-
bilidade ao meu estar-no-mundo); na histori-
cidade (a historicidade do homem consiste no
fato de ele não poder conhecer-se, com uma
análise exclusiva do presente, pois ele vem de
um passado-recordação, que o motiva, para
um futuro-esperança, onde se projeta); na
liberdade (passar do reino da necessidade ao
reino da liberdade é a expressão omnilateral
de um sujeito histórico, simultaneamente
reflexo e projeto); na noosfera (ou reino do
espírito e da cultura, onde a especialização
dos vários saberes readquirem o sentido da
totalidade humana); na transcendência (ser
humanamente é agir para ser mais).

Assim, a tríade sentir, pensar e agir só pode ser compreen-


dida como uma rede em constante movimento e inter-relação,
que é sintetizada no corpo, que elabora e constrói as inúmeras
possibilidades para conhecer o mundo. Neste sentido, o corpo é
ato expressivo, significativo e único, que se caracteriza pela sua
possibilidade de movimento. A corporeidade é a realidade huma-
na que se constrói a cada momento no mundo e, sendo a expres-
são a realização da corporeidade, tem a capacidade de revelar
o sentido de nossas experiências puras. Todavia, o ser humano,
sendo sua corporeidade, é, da mesma forma, infinita possibili-
dade de movimento criativo, gestos e expressões ilimitados, que
tornam a relação com o mundo significativa e cheia de sentido.

126
Mackson Luiz F. da Costa / Aguinaldo César Surdi /
Judson Cavalcante Bezerra / Moaldecir Freire Domingos Júnior

Pensando no corpo como uma problemática epistemo-


lógica, Silva (2001) comenta que implica nos confrontarmos
com sua complexidade, considerando que o corpo se mostra
situado na interconexão entre a cultura e a natureza, entre o
biológico e o social, segundo algumas dualidades modernas,
sendo integralmente de ambos os domínios.
No decorrer da história da Educação Física, a área se
moldou em diversas compreensões de corpo. Uma delas foi
no que se refere ao trato higienista do corpo, influência da
Medicina e do Higienismo, tratando dicotomicamente o corpo.

Uma dicotomia pode ser entendida como


uma separação entre duas coisas, sempre
com um conflito envolvido. As mais impor-
tantes para a Educação Física são justamente
aquelas que envolvem o corpo: as dicotomias
entre corpo e alma, e entre corpo e mente.
Assim, a superação desses entendimentos
conflitantes pode ser um passo inicial para
conhecer o próprio corpo (SANCHES NETO;
LORENZETTO, 2008, p. 138).

Esse trato ao corpo guiou a prática da Educação Física –


seja escolar ou não – por muito tempo e, ainda hoje, ela guarda
resquícios dessa influência. A biologização e esportivização das
práticas existentes, inclusive nas escolas, permite-nos traçar
um perfil de aproximação da Educação Física atual com os ideais
burgueses disseminados no século XIX (ARAÚJO; MELO, 2006).

Mais recentemente, as relações do corpo com


o meio ambiente refletiram uma tentativa
de superação das dicotomias, integrando
o ser humano em corpo, mente e alma, ou,
pelo menos, em dimensões afetivas, sociais,

127
Corpo e Epistemologia: Contribuições para a Educação Física Escolar

psicológicas e motoras, respeitando a subje-


tividade e as diferenças individuais (NETO;
LORENZETTO, 2008, p. 139).

Ao iniciarmos uma investigação da Educação Física, não


podemos ignorar aquilo que se passou na Europa a partir do sécu-
lo XIX, já que esse período influenciou diretamente as concep-
ções da área nos dias atuais (PALMA; OLIVEIRA; PALMA, 2010).
Os fatos históricos desse período, que foi caracterizado
pela revolução, foram de grande importância para a inserção da
Educação Física na escola. Em um primeiro momento, a educa-
ção do corpo nas classes mais ricas era função da família, porém
com a ampla divulgação, ela passou a ser efetivada na escola
pública do século XIX.

Essa mudança do privado para o público acon-


teceu devido às condições históricas daquele
período, que foram concretizadas em dife-
rentes contextos. O primeiro, em relação ao
período pré-revolucionário e revolucioná-
rio, no qual o pensamento liberal transita da
educação do corpo privado e exclusivo de uma
classe, para conceber projetos educacionais
em relação ao físico, estendidos a toda a socie-
dade. E segundo, no contexto pós-revolucio-
nário, no qual a educação corporal, enquanto
pública, é intensamente debatida no inte-
rior da Revolução Francesa e é concretizada
quando a burguesia luta para que a sociedade
construída mantenha as suas relações sociais
(PALMA; OLIVEIRA; PALMA, 2010, p. 38).

No Brasil, a Educação Física surgiu diante da transição


da sociedade escravista para a sociedade capitalista, no final
do século XIX e início do século XX. Nessa época, a educação
do corpo vem com o objetivo de assegurar a ordem social e o

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Mackson Luiz F. da Costa / Aguinaldo César Surdi /
Judson Cavalcante Bezerra / Moaldecir Freire Domingos Júnior

progresso, tornando-se essencial para o início do desenvolvi-


mento do país. O método ginástico vem como meio de alcançar
os objetivos da formação do físico. A Educação Física assume,
portanto, o papel de adestrar os corpos em nome de uma edu­
cação voltada para a higienização e assepsia social, além da
moralização dos hábitos (ARAÚJO; MELO, 2006).
Por um bom tempo, os militares eram os designados para
instruir a ginástica na escola; apenas em 1939 surge a primeira
escola civil para formar professores de Educação Física e um
pouco antes, em 1937, a Educação Física passa a ser obrigatória
em todo território nacional. Após a Segunda Guerra Mundial,
que coincide com o fim da ditadura do Estado Novo no Brasil,
surgem outras tendências, tais como: Método Natural Austríaco,
Método da Educação Física Desportiva Generalizada, dentre
outros (PALMA; OLIVEIRA; PALMA, 2010).
Em 1961, houve a fixação das Diretrizes e Bases da
Educação Nacional; no ano de 1964 o golpe militar direciona a
Educação Física para o ensino do esporte com a concepção de
eficiência e tecnicismo. A partir de 1970 surgem novas inter-
pretações sobre a Educação Física, que criticavam a pedagogia
tecnicista. Ao final dos anos 1980 e início dos anos 1990 aparece
a abordagem sociocultural, buscando a formação do “homem
crítico” e, atualmente, no século XXI, estão em vigor as discus-
sões de práticas pedagógicas que visam às concepções críticas
de ensino (PALMA; OLIVEIRA; PALMA, 2010).
A Educação Física, como prática social, apropria-se de
um conhecimento que emerge do social e o devolve de maneira
sistematizada à sociedade. Tal objeto de conhecimento pode
ser delimitado pelas diversas maneiras de como se manifesta
o movimento humano, individual e coletivamente.

129
Corpo e Epistemologia: Contribuições para a Educação Física Escolar

Ao ocupar-se do movimento humano como seu objeto de


estudo e de abordagem social, a Educação Física não pode negar
ao corpo um lugar privilegiado em suas reflexões, uma vez que
é por meio deste que se manifesta qualquer atividade huma-
na, porém, historicamente, foi atribuída à Educação Física uma
finalidade instrumentalista e reducionista de adestramento e
manipulação dos corpos nos espaços de manifestação da sua
finalidade social em clubes, escolas, forças militares, academias
de ginástica etc.

O corpo nas concepções de


ensino da Educação Física

No decorrer do processo histórico da Educação Física, perce-


bemos mudanças no trato pedagógico, que são inerentes à
sociedade na qual está inserido. Em um primeiro momento,
surgem os métodos ginásticos, com influência da Medicina e do
Higienismo, depois nos deparamos com o esportivismo, baseado
na eficiência e na técnica, que passou para o esporte recreativo,
chegando ao que hoje chamamos de concepções críticas.
As pedagogias críticas, a partir dos anos 1980, tinham
por objetivo empreender a crítica à concepção produtivista da
educação, evidenciando sua subordinação ao desenvolvimento
econômico, o que a tornava funcional ao sistema capitalista e a
serviço do interesse das classes dominantes. A Educação Física,
devido ao incentivo à pesquisa promovido pelo início dos cursos
de pós-graduação na década de 1970, aproximou-se diretamente
das ideias pedagógicas não hegemônicas e as incorporou. Assim,
os professores que se formaram nessa época passaram a rejeitar
a influência do modelo biomédico, a hegemonia do esporte de

130
Mackson Luiz F. da Costa / Aguinaldo César Surdi /
Judson Cavalcante Bezerra / Moaldecir Freire Domingos Júnior

competição e a docilização dos corpos, cabendo à escola ensinar


a multiplicidade de elementos da cultura de movimentos. 
Em consonância com a Pedagogia Crítico-Social dos
Conteúdos, surge a Pedagogia Crítico-Superadora, defendendo
que o objeto dessa disciplina escolar é a cultura corporal, deven-
do ser tratada de forma histórica, evidenciando os movimentos
contraditórios. Enfoca também a reflexão sobre o significado/
sentido do “fazer corporal” (BRACHT, 1999).
A pedagogia Libertadora exerceu influência sobre a peda-
gogia Crítico-Emancipatória. Essa concepção acredita que o
movimentar-se (teoria do Se-Movimentar) humano seja uma
forma de comunicação, entendendo o sujeito como capaz de
atuação crítica e autônoma sobre o mundo. Também aponta
como proposta metodológica a tematização de elementos da
cultura do movimento (DARIDO, 2003). Essas duas propostas
consideram o esporte de autorrendimento um agente reprodu-
tor da sociedade capitalista, sugerindo procedimentos didático-
-metodológicos que possibilitem esclarecimento crítico a esse
respeito (BRACHT, 1999).
Para as teorias progressistas da Educação Física cita-
das (pedagogia crítico-superadora e crítico-emancipatória),
as formas culturais dominantes do movimentar-se humano
reproduzem os valores e princípios da sociedade capitalista
industrial moderna, sendo o esporte de rendimento um fator
fundamental que contribui para isso. Portanto, reproduzi-los
na escola por meio da Educação Física significa colaborar com
a reprodução social. Bracht (1999, p. 81) comenta que:

A linguagem corporal dominante é “ventrí-


loqua” dos interesses dominantes. Assim,
ambas as propostas sugerem procedimentos
didático-pedagógicos que possibilitem, ao se

131
Corpo e Epistemologia: Contribuições para a Educação Física Escolar

tematizarem as formas culturais do movimen-


tar-se humano (os temas da cultura corporal
ou de movimento), propiciar um esclare-
cimento crítico a seu respeito, desvelando
suas vinculações com os elementos da ordem
vigente, desenvolvendo, concomitantemen-
te, as competências para tal: a lógica dialética
para a crítico-superadora, e o agir comunica-
tivo para a crítico-emancipatória.

Dessa forma, pessoas conscientes ou dotadas de cons-


ciência crítica poderão agir autônoma e criticamente na esfera
da cultura corporal ou de movimento, além de agir de forma
transformadora como cidadãos políticos. Segundo o autor,
essas propostas buscam ser um “antídoto” para um conjunto
de características da cultura corporal ou de movimento atuais
que, segundo a interpretação dessas abordagens, por um lado
são produtoras de falsa consciência e, por outro, transformam
os sujeitos em objetos ou consumidores acríticos da indústria
cultural. Para que isso aconteça é fundamental entender o obje-
to da Educação Física, o movimentar-se humano, não mais como
algo biológico, mecânico ou mesmo apenas na sua dimensão
psicológica, e sim como fenômeno histórico-cultural.
Portanto, esse entendimento da Educação Física só terá um
significado maior quando as ciências sociais e humanas forem
tomadas mais intensamente como referência. No entanto, é preci-
so ter claro que a própria utilização de um novo referencial para
entender o movimento humano está na dependência da mudan-
ça do imaginário social sobre o corpo e as atividades corporais.
Entendo que essa visão do objeto da Educação Física está alcan-
çando uma quase unanimidade na discussão pedagógica desse
campo. Os termos cultura corporal, cultura de movimento ou
cultura corporal de movimento aparecem em quase todos os

132
Mackson Luiz F. da Costa / Aguinaldo César Surdi /
Judson Cavalcante Bezerra / Moaldecir Freire Domingos Júnior

discursos, mesmo que cada uma dessas culturas abordem de dife-


rentes formas suas possibilidades pedagógicas (BRACHT, 1999).
A cultura de movimento, segundo Mendes e Nobrega
(2009), possibilita uma relação entre corpo, natureza e cultura,
que se configura como um conhecimento que vai sendo cons-
truído e reconstruído ao longo de nossas vidas e da história. Um
conhecimento marcado pela linguagem sensível, que emerge
do corpo e é revelada no movimento que é gesto, abarcando os
aspectos bioculturais, sociais e históricos, direcionado ao senti-
do de unidade ou, ainda, da corporeidade. Um conhecimento
que permite a compreensão do mundo por meio do corpo em
movimento no ambiente, cultura e história. A linguagem sensí-
vel é revelada pela movimentação do criar e recriar e, ao mesmo
tempo em que nos expressamos, conseguimos nos comunicar.
Os gestos, considerados bioculturais, expressam a nossa
própria vida individual e coletiva porque têm um sentido
histórico. As dimensões históricas, por não serem conside-
radas imutáveis, mostram que a intencionalidade dos gestos
expressa a maneira única de existir no ato do momento vivido,
uma vez que o corpo humano, por estar atado ao mundo por
meio de uma relação dinâmica, atribui sentidos que se renovam
conforme a situação (MENDES; NÓBREGA, 2009). Portanto, em
relação à história, “não há uma palavra, um gesto humano,
mesmo distraídos ou habituais, que não tenham significação”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 16).
A compreensão de cultura de movimento pode contri-
buir para que os professores ofereçam conteúdos na Educação
Física escolar, como jogos, danças, esportes lutas e outras mani-
festações culturais, relacionados à realidade dos educandos,
com o propósito de favorecer uma leitura crítica do mundo.
Os professores poderão ter como ponto de partida conteúdos

133
Corpo e Epistemologia: Contribuições para a Educação Física Escolar

que valorizem as singularidades de cada comunidade, discutin-


do e problematizando as hierarquizações culturais. Além disso,
os professores poderão despertar em seus alunos a elaboração
de sugestões para as problemáticas identificadas (MENDES;
NÓBREGA, 2009).
Nesse propósito, pensar uma prática educativa que consi-
dere um ser que é fundamentalmente corporal e que “se movi-
menta” é pensar nas múltiplas dimensões da expressividade
humana. É fundamental desenvolvermos uma Educação Física
que se atenha à diversidade, respeita as possibilidades indivi-
duais, considera as experiências vividas de cada sujeito, explora
o vasto repertório da cultura de movimento e ao mesmo tempo o
transforma, conjuntamente, num processo de ensino que inclui
a aprendizagem, a ressignificação e a criação. Assim, cada um, a
seu modo, produz conhecimento e consequentemente, cultura.
Quando pensamos na relação entre a atividade episte-
mológica e corpo, acreditamos que a compreensão de corpo
em cada momento em que ela for feita, tem relação direta com
a elaboração de discursos e atuação. Cada momento estabele-
ce intervenções, interdições e possibilidades de usos do corpo.
Essas variações precisam ser dialogadas na formação inicial
e continuada por professores de Educação Física, contribuin-
do para uma elucidação do cotidiano escolar e abertura para
outros questionamentos.

Considerações finais

A atividade epistemológica na Educação Física é um proces-


so contínuo que vive a quebrar paradigmas. O tempo passa,
novas configurações de corpo podem surgir e, com elas, outras

134
Mackson Luiz F. da Costa / Aguinaldo César Surdi /
Judson Cavalcante Bezerra / Moaldecir Freire Domingos Júnior

concepções, métodos ou qualquer outra nomenclatura que


venha a se discutir.
Segundo Merleau-Ponty (1999), o corpo pode ser conside-
rado o primeiro dos objetos culturais, pois é por meio dele que
todos os outros existem. Afinal, não vivemos apenas no ambien-
te da terra, do ar e da água, mas compartilhamos um cenário
cultural que inclui, em torno dos sujeitos, estradas, plantações,
ruas, igrejas e utensílios, como sinetas, colheres, cachimbos etc.
Esses objetos trazem, implicitamente, a marca da ação huma-
na, ações que trazem agregados sentidos humanos, definidos
conforme suas necessidades. Portanto, nosso corpo-próprio
constrói um mundo e, assim, a cultura. A cultura de movimen-
to pode abrir um diálogo constante na experiência humana
e contribuir para um processo educacional que possibilite a
aprendizagem, a ressignificação e a (re) criação dos movimen-
tos pela percepção do mundo pelo corpo-próprio. Desta forma,
nossa experiência originária, proporcionada pelo mundo vivido,
é respaldada pela cultura e pela história.
Os professores, neste sentido, devem procurar entender
de forma mais ampla o sentido do movimento humano. Esse
procedimento pode ser feito por meio de um engajamento maior
em estudos baseados na filosofia e sociologia. Uma reflexão
nessa ordem pode ampliar o direcionamento das pessoas na
busca de sua autonomia.
O ensino problematizador deve ser mais enfatizado.
Os alunos devem ser instigados a se-movimentar de forma
própria a construir e criar novas formas de movimento que
estimulem a criatividade e o prazer. O professor pode pergun-
tar mais e responder menos. A multiplicidade de ideias e de
respostas favorece um ambiente dialógico. Essa troca dialética
de informações entre os alunos para resolver um determinado

135
Corpo e Epistemologia: Contribuições para a Educação Física Escolar

problema mostra que o aluno é o centro do processo da apren-


dizagem e, com isso, sente-se importante. Assim, ele se torna
cada vez mais capaz de tomar suas próprias decisões, tanto na
sala de aula como fora dela.
O movimento do ser humano é o fator mais importante da
Educação Física. Com isso, ela deve procurar atendê-lo em sua
totalidade. Deve-se ampliar seu entendimento sempre, numa
busca infinita, porque o movimento humano entendido como
significativo é sempre novo. Cada gesto intencionado para o
mundo tem sua particularidade, que é original, motivo pelo
qual o estudo sobre o corpo e as suas múltiplas relações, princi-
palmente nas aulas de Educação Física, deve ser mais explorado.

136
Mackson Luiz F. da Costa / Aguinaldo César Surdi /
Judson Cavalcante Bezerra / Moaldecir Freire Domingos Júnior

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139
O CORPO NA “MEDIDA CERTA”:
COMPREENSÕES, SABERES
E PRÁTICAS

Hudson Pablo de Oliveira Bezerra


Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

Introdução

No contexto social contemporâneo, a mídia oportuniza cons-


tantemente a veiculação de ideias, informações, compreensões,
valores, comportamentos, modos de viver, entre outros, sobre
os diferentes temas que estão dissipados nas relações sociais
cotidianas. Entretanto, focaremos neste estudo na temática do
corpo, pois seu debate se configura como central no contexto
da Educação Física.
No que concerne à compreensão de corpo é necessário
pensá-la como fenômeno situado que emerge de diferentes
espaços e tempos e que é constantemente reconstruída e ressig-
nificada de acordo com as características do contexto social em
que se desenvolvem. Neste contínuo, percebemos a interferên-
cia de diversas instituições na construção de novos sentidos e
significados para o corpo, dentre as quais destacamos a mídia.
Assim, o objetivo desta pesquisa foi analisar as compreen-
sões, saberes e práticas propagadas a propósito do corpo no
quadro “Medida Certa” do programa Fantástico da emissora
Rede Globo de Telecomunicações.
Hudson Pablo de Oliveira Bezerra / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

Para atingir o objetivo deste estudo, direcionamos os


focos de análise da pesquisa sobre o quadro “Medida Certa”.
Este quadro foi desenvolvido entre os meses de abril e junho
de 2010, e teve como objetivo levar os apresentadores Renata
Ceribelli e Zeca Camargo a adotarem um novo estilo de vida
através do acompanhamento do profissional de Educação Física
Márcio Atalla e de outros profissionais especializados (médi-
cos, nutricionistas etc.) com vista a reprogramar o corpo dos
apresentadores para obtenção da medida certa.
Com relação aos aspectos metodológicos, nossa pesquisa
configura-se a partir de uma abordagem qualitativa (SEABRA,
2001). Trata-se de uma pesquisa documental, visto que segundo
Gil (2007, p. 164) “os documentos de comunicação de massa, tais
como jornais, revistas, fitas de cinema, programas de rádio e
televisão, constituem importante fonte de dados para a pesquisa
social”. Trabalhamos com dados do meio televisivo e da internet.
Os dados do meio televisivo foram coletados através
de downloads das reportagens exibidas ao vivo durante o
Fantástico no site do referido programa, sendo 14 vídeos no
total. Os dados da internet foram coletados através do blog
Medida Certa. Nele coletamos as postagens realizadas sobre o
quadro durante os três meses de desenvolvimento. Coletamos
textos, imagens e vídeos (que foram transcritos na íntegra)
e organizamos todas as postagens separando-as de acordo
com a data de postagem. Nessa investigação obtivemos um
total de 16 vídeos publicados no blog, além de 97 postagens.
Destacamos que toda coleta de dados para arquivamento e
posterior análise foi realizada uma semana posterior ao térmi-
no do quadro, ou seja, 03 de julho de 2011. Utilizamos essa

141
O Corpo na “Medida Certa”: Compreensões, Saberes e Práticas

demarcação temporal de uma semana em virtude da rotati-


vidade dos arquivos virtuais.1
Optamos em nosso estudo pela técnica de análise de
conteúdo de Bardin (2011). Segundo as orientações do autor, a
análise de conteúdo é realizada em três fases: a pré-análise; a
exploração do material; e o tratamento dos resultados obtidos
e interpretação.

Em busca do corpo reprogramado

Sobre corpo, compreendemos que este é detentor de um vasto


espaço nos discursos difundidos socialmente, bem como a ele é
dedicado muita atenção no que concerne a realização de tera-
pias, práticas corporais, processos cirúrgicos, intervenções
estéticas, entre outros processos interventivos com finalidade
de lazer, expressão e cuidados com a saúde.
Refletindo sobre o corpo, Nóbrega (2010) chama a atenção
para a cultura de consumo que se criou sobre ele na contem-
poraneidade, especialmente a partir da influência das insti-
tuições midiáticas. No entanto, o consumo se dá sobre o corpo
bonito, sexualmente disponível e passível de exposição através
da aparência e do visual.

1
Atualmente o endereço do blog Medida Certa. Disponível em: <http://fantas-
tico.globo.com/platb/medidacerta>. Acesso em: 29 jan. 2015. direciona para
o último quadro que foi o “Medida Certa – O Condomínio”, o qual foi ao ar
em 2015. Fato que impossibilita a localização dos dados do período da coleta,
deixando-os apenas nos arquivos dos pesquisadores e não mais disponíveis
na rede. No entanto, algumas informações do quadro ainda estão disponíveis
no site da Globo, na página direcionada ao programa Fantástico, disponível
em: <http://g1.globo.com/fantastico/quadros/medida-certa/>. Acesso em:
29 jan. 2015.

142
Hudson Pablo de Oliveira Bezerra / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

Os discursos sobre o corpo veiculado pela mídia são em


sua maioria restritos diante a variedade corporal existente,
pois, adotam padrões que devem ser dissipados no imaginário
social buscando uma adequação coletiva como sinônimo de feli-
cidade, de beleza, e, acima de tudo, de saúde.
Diante os dados analisados chegamos as seguintes catego-
rias de análise: corpo como sistema operacional; corpo biológico;
corpo fragmentado e exterior ao sujeito; corpo quantificado e
padronizado; e, corpo sujeito. Estas categorias mantem relações
entre si e contribuem com a busca da reprogramação do corpo.

Corpo como sistema operacional

Destacamos dentro desta categoria as compreensões, saberes


e práticas que se propuseram a realizar uma reprogramação
do corpo. Os termos reprogramar ou reprogramação foram
frequentemente utilizados durante todo o desenvolvimento
do quadro pelos profissionais da área médica, nutricional e da
Educação Física, bem como pelos jornalistas integrantes e pelo
público que acompanhou o quadro.
Em muitos momentos, a ideia da reprogramação foi
tomada como conceito base para os objetivos e as intervenções
realizadas. Segundo a jornalista Patrícia Poeta o desafio do
quadro é “reprogramar o corpo em 90 dias” (PATRÍCIA POETA,
VÍDEO BLOG 03).
Sobre este fato, percebemos que quando é realizada a
programação no corpo não se devem negar os componentes nele
existente, mas é necessário reorganizar os hábitos e costumes
para poder atingir os objetivos estabelecidos. Podemos perceber
isto quando a jornalista Renata Ceribelli apresenta que o objetivo

143
O Corpo na “Medida Certa”: Compreensões, Saberes e Práticas

do “reality” é reprogramar o corpo, e que os jornalistas/apresen-


tadores passaram pelo processo de reprogramação mantendo as
rotinas de cada um (RENATA CERIBELLLI, VÍDEO BLOG 02).
O corpo se associaria ao computador, visto que, seria
necessária a “instalação” de novos hábitos, especialmente atra-
vés da prática regular de exercícios e do controle alimentar,
bem como por meio da “remoção” do que não lhe é útil ou do
que atrapalha o seu desempenho. Esse corpo enquanto siste-
ma operacional, assim como os sistemas computacionais, está
submetido aos riscos da contaminação dos vírus. Estes vírus
seriam provenientes de diferentes fontes, sejam os vírus biológi-
cos estudados e decifrados nos laboratórios pelos profissionais
da área da saúde, ou, os vírus sociais, que aqui caracterizaría-
mos a partir das modas, do consumo, das aparências, entre
outros, e que no cotidiano nos infectam ou buscam nos infectar.
Para refletir de forma mais detalhada sobre os vírus
sociais acima comentados, destacamos o fenômeno das modas.
Sobre este, Baudrillard (1990, p. 77) comenta que:

Basta considerar o efeito da moda. É um


contágio miraculoso das formas, em que o
vírus da reação em cadeia prevalece à lógi-
ca da distinção. O prazer da moda é, decerto,
cultural, mas não seria mais ainda decorrente
do consenso imediato, fulgurante nos jogos
dos signos? As modas, aliás extinguem-se
como as epidemias, quando devastaram a
imaginação, e o vírus se cansa.

Portanto, verificamos que a moda surge como um efei-


to viral que contamina as pessoas, contaminação essa que se
extinguirá, ou se ressignificará, quando se normaliza dentro do
contexto social em que estas vivem. No contexto atual a moda

144
Hudson Pablo de Oliveira Bezerra / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

cansa quando se torna habitual, fato que demanda a necessi-


dade do surgimento de novas modas. Assim, percebemos que
a moda enquanto vírus social atrela-se as relações de poder
exercidas socialmente, não um poder centrado em um único
sujeito ou grupo, mas um poder que circula através das relações
exercidas e vivenciadas por esses, como destaca Foucault (2012)
ao tematizar sobre poder numa perspectiva relacional.
Ainda sobre a associação do corpo ao sistema operacio-
nal, Baudrillard (1990, p. 31) diz que “a revolução cibernética
leva o homem, diante da equivalência entre cérebro e computa-
dor, à interrogação crucial: sou um homem ou uma máquina?”.
Essa interrogação que coloca o ser humano diante a inquietação
da associação a uma máquina não é recente, no entanto, verifi-
camos ressignificações. Anteriormente, o corpo foi constante-
mente associado às máquinas, sendo estas pensadas através das
máquinas a vapor, de funções mecânicas “braçais”, de força e
produção do trabalho. Este seria visualizado no arcabouço dos
seus músculos, ossos e constituintes biológicos que associados
entre si possibilitariam o desenvolvimento de trabalho.
Hoje em dia, os seres humanos assemelham-se as máquinas
digitais, virtualizadas e integradas a circuitos de informações.
Máquinas essas que tentam reproduzir, e muitas vezes reprodu-
zem, funções desempenhadas pelos seres humanos nas relações
sociais. Todavia essas máquinas apresentam limitações que as
tornam estranhas ao ser humano. Para Baudrillard (1990, p. 61):

O que sempre distinguirá o funcionamento


do homem do funcionamento das máquinas,
mesmo das mais inteligentes, é a embriaguez
de funcionar, o prazer. Inventar máquinas que
sintam prazer está ainda, felizmente, fora dos
poderes do homem. Todos os tipos de prótese

145
O Corpo na “Medida Certa”: Compreensões, Saberes e Práticas

podem concorrer para o prazer dele. Embora


invente algumas que trabalham, “pensam” ou
se deslocam melhor do que ele ou por ele, não
há prótese, técnica ou midiática, do prazer do
homem, do prazer de ser homem. Para isso
seria necessário que as máquinas tivessem
ideias do homem, que pudessem inventar o
homem, mas para elas é tarde demais: foi ele
quem as inventou.

O ser humano enquanto corpo vivo e situado em um


contexto está sujeito às sensações, as ressignificações e as
reconstruções dos sentidos e modos do viver. As máquinas
estão condicionadas e programadas ao desenvolvimento de
funções específicas pensadas a partir dos desejos e necessida-
des de quem as programa, todavia o ser humano não se rende
aos desejos “próprios” das máquinas.
A ideia desta categoria de análise é sintetizada na fala
da jornalista Renata Ceribelli quando realiza a apresentação
da proposta do quadro. A jornalista argumenta que: “vou tirar
da memória do meu corpo tudo aquilo que me fez engordar no
decorrer dos anos, e vou reprogramá-lo em 90 dias” (RENATA
CERIBELLI, POSTAGEM 01). “A proposta do Medida Certa é
Reprogramar o Corpo em 90 dias. E o que isso significa? Dar um
outro padrão de saúde para o corpo através de mudanças nos
hábitos alimentares, e principalmente incluindo atividade física
Diária na nossa vida” (RENATA CERIBELLI, POSTAGEM 51).
Diante os argumentos expostos, verificamos que o corpo
nessa reprogramação se torna passivo, visto que as intervenções
foram realizadas de fora para dentro não oportunizando a atua-
ção do próprio corpo, que para nosso entendimento não pode ser
reconhecido somente como objeto, mas também como sujeito que
se modifica, capaz de refletir e decidir sobre suas ações.

146
Hudson Pablo de Oliveira Bezerra / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

Na realização dessa reprogramação corporal, fica eviden-


te que os exercícios foram essenciais. Durante o quadro foram
realizadas diferentes tipos de atividade física, as quais exempli-
ficamos a seguir: vôlei, natação, musculação, corrida, caminha-
da, musculação, pular corda, remo, ciclismo, dança, ginástica
funcional, yoga, entre outros.
O controle alimentar também foi essencial para a obten-
ção da reprogramação proposta. Ao longo do quadro foram
apresentadas inúmeras dicas de alimentos que contribuem
para o emagrecimento, como também para o aumento do peso.
Receitas de pratos; indicação da alimentação fragmentada de
três em três horas, seis vezes ao dia; ingestão de fibras e hidra-
tação; dentre outras dicas. Portanto, fica evidente que nesta
categoria de conteúdo o corpo foi compreendido e divulgado
pela mídia como um sistema operacional com necessidade de
reprogramação, ou seja, de emagrecimento.

Corpo biológico

O corpo compreendido dentro desta categoria obteve grande


destaque durante as análises do material do Medida Certa em
virtude dos inúmeros discursos que lhe fizeram referência a
partir dos constituintes biológicos, especialmente pelos saberes
de áreas como a anatomia, a fisiologia e a bioquímica. No entan-
to, vale ainda destacar que cada corpo teria sua configuração
subordinada a uma carga genética herdada dos progenitores.
Segundo Souza (2005, p. 173) a biologia instituiu uma nova
forma de olhar para o ser vivo.

147
O Corpo na “Medida Certa”: Compreensões, Saberes e Práticas

Esse olhar, ao dirigir-se para o interior do


corpo e procurar correlacionar as funções dos
órgãos e dos sistemas com a anatomia compa-
rada, cria o interno do organismo vivo e, depois
os elementos exteriores que integram o corpo,
possibilitando-lhe a existência da vida.

Para conhecer o corpo a partir dos seus constituintes bioló-


gicos foi necessário o desenvolvimento de instrumentos, dentre
eles destacamos o microscópio. Segundo Mendes (2007, p. 74)

com o aperfeiçoamento do microscópio, um


mundo novo se descortina, órgãos, tecidos e
células revelam o interior do corpo humano
vivo. Um corpo que não era possível de ser
visto a olho nu.

Com o desenvolvimento tecnológico foram construídos


novos instrumentos e desenvolvidas técnicas de maior precisão
no esquadrinhamento e conhecimento do corpo. Dentre estas
destacamos as técnicas de imagem que passaram a realizar um
minucioso trabalho de conhecimento das estruturas e compo-
nentes biológicos do corpo (SANTAELLA, 2007).
Ainda sobre a constituição do corpo, a categoria do corpo
biológico abre espaços para sua composição a partir dos elemen-
tos químicos, conhecimentos estes que são tratados pela bioquí-
mica e que no quadro aparecem constantemente associados aos
saberes da área médica e aos exames laboratoriais.
O conhecimento das partes constituintes do corpo
é importante para pensar algumas de suas características
estruturais e de funcionamento, no entanto, o seu isolamen-
to e exclusividade no conhecimento do corpo reduz este a um
sistema pautado no mecanicismo e exclui as possibilidades de

148
Hudson Pablo de Oliveira Bezerra / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

reconhecimento como sujeito passível de expressão, sensação e


desejo. Entretanto, é importante não negarmos os conhecimen-
tos produzidos pela biologia para não cairmos numa “biofobia”.
Na articulação dos conhecimentos anatômicos com os
conhecimentos bioquímicos, nos deparamos com o campo de
saber da fisiologia, que se empenha na compreensão do funcio-
namento do corpo humano. Diante dos aspectos fisiológicos, ele
pode ser pensado a partir do metabolismo, da respiração, da
circulação, da reprodução, entre outros. Entretanto, no quadro
Medida Certa as questões que envolvem o metabolismo se sobres-
saíram especialmente por direcionar muitos dos discursos e
práticas para as questões que envolvem o emagrecimento.
As práticas buscavam oportunizar aos apresentadores,
bem como a população que acompanhava o quadro, o desenvolvi-
mento de um estado de equilíbrio do corpo no que concernem os
aspectos biológicos, visto que, estes eram os únicos enfatizados.
O equilíbrio seria alcançado através de adaptações fisiológicas
promovidas pela prática de exercícios e do controle alimentar.
Ao analisarmos as imagens dos vídeos exibidos no
Fantástico nos domingos à noite, verificamos que em muitos
momentos da reportagem eram expostos através de imagens
e textos, alguns componentes do corpo de ordem biológi-
ca, como: leucócitos, hemoglobina, hematócrito, hemácias,
promielócitos, metamielócitos, glicose, plaquetas, gordura,
músculos, sangue, entre outros.
Apesar dessa ênfase nos aspectos biológicos do corpo
humano no quadro Medida Certa, não podemos deixar de
ressaltar que “o homem é considerado um ser biocultural, sendo
totalmente biológico e totalmente cultural”, além disso, “o que
é biológico no ser humano encontra-se simultaneamente infil-
trado de cultura. Todo ato humano é biocultural” (MENDES;

149
O Corpo na “Medida Certa”: Compreensões, Saberes e Práticas

NÓBREGA, 2004, p. 130-131). Portanto, de acordo com as autoras


citadas o corpo deve ser compreendido no entrelaçamento da
constituição biológica com a cultura, sem hierarquizações ou
isolamentos, fato pouco evidenciado nos discursos do quadro.

Corpo fragmentado e exterior ao sujeito

Classificamos dentro desta categoria as compreensões de


corpo que o visualizam a partir de suas partes, numa cons-
tante fragmentação e isolamento. Um corpo que parece estar
exterior ao sujeito. Os discursos analisados não evidenciam
uma visão holística dos componentes do corpo, muito menos
inter-relações entre eles.
No material analisado percebemos a fragmentação do
corpo através dos discursos que evidenciam suas partes: cora-
ção, pulmões, músculos, gordura, colesterol, glicose, entre
outros. Nesta fragmentação, evidenciamos uma forte presença
dos conhecimentos da anatomia, fisiologia e bioquímica.
O conhecimento das partes constituintes do corpo é
essencial para pensar suas características estruturais e de
funcionamento, entretanto conhecê-las de forma isolada trás
poucas contribuições na compreensão do sujeito como um todo,
bem como, seu comportamento diante as diferentes situações.
A fragmentação do corpo pode ser pensada quando o
profissional de Educação Física apresentou para os jornalistas
a quantidade de gordura eliminada através de um pedaço de
borracha de constituição semelhante, como forma de chocar os
apresentadores em relação à gordura que tinham eliminado na
metade do quadro (MÁRCIO ATALLA, VÍDEO FANTÁSTICO 07).

150
Hudson Pablo de Oliveira Bezerra / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

Analisando outro vídeo, nos deparamos com os comentá-


rios de Márcio Atalla sobre a jornalista Renata Ceribelli: “Renata
reprogramar o corpo, eu vi que você já está reprogramando,
show! Agora eu quero reprogramar a cabeça” (MÁRCIO ATALLA,
VÍDEO FANTÁSTICO 06). Os argumentos utilizados evidenciam
mais uma vez uma fragmentação do corpo, visto que segun-
do Márcio Atalla a jornalista tinha conseguido reprogramar o
corpo e faltaria a cabeça.
No trabalho das partes do corpo os exercícios foram cons-
tantemente solicitados e aconselhados. O remo pode ser visua-
lizado com exemplo disso. Segundo o profissional de Educação
Física, “o remo é uma atividade física completa, por que além dele
ter um trabalho cardiovascular importante ele também trabalha
toda a musculatura de braço, perna, peito, costas, é uma excelen-
te opção” (MÁRCIO ATALLA, VÍDEO FANTÁSTICO 10). Muitas das
vezes os exercícios são realizados visando o trabalho das partes
isoladas, como na musculação em que os grupos musculares
requeridos variam de acordo com o tipo de exercício realizado.
Foca-se nas partes e na maioria das vezes esquece-se do conjun-
to, ou seja, do corpo como um todo.
Nesta categoria, destacamos também os discursos que
compreenderam o corpo numa fragmentação que exteriorizava
o sujeito do seu corpo. Com predominância dos aspectos bioló-
gicos na composição e no funcionamento, o corpo foi em muitos
momentos do quadro compreendido como uma espécie de objeto
que estaria fora ou que não se integraria a pessoa que o possuía.
As pessoas não se concebem enquanto corpo com capa-
cidade de sentir, pensar, expressar etc., mas apenas como seres
capazes de exercer controle sobre ele. Esse controle ou autocon-
trole é realizado pelos sujeitos a partir de escolhas que tomam
como base normas padronizadas divulgadas socialmente nos

151
O Corpo na “Medida Certa”: Compreensões, Saberes e Práticas

discursos das instituições (FOUCAULT, 2001). Os discursos são


então submetidos às relações de poder exercidas socialmente,
visto que as ideias contidas nos discursos desestabilizam as
relações entre os sujeitos. “O discurso veicula e produz poder;
reforça-o, mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-
-lo” (FOUCAULT, 2011, p. 112).
Nos diálogos do quadro, em muitos momentos, fica
evidente essa separação do corpo e do sujeito, ou seja, do ser
humano que não é somente objeto de intervenção. Para exempli-
ficarmos como isto acontece deixamos expostos alguns trechos
de falas dos integrantes do quadro. A jornalista Renata Ceribelli
ao discutir sobre seus objetivos dentro do quadro comenta
“a ideia nem é ser magra, eu quero estar feliz dentro da estrutu-
ra do meu corpo” (RENATA CERIBELLI, VÍDEO FANTÁSTICO 11).
Outra passagem que demonstra essa separação do corpo
do sujeito é encontrada em uma postagem realizada por Renata
Ceribelli no blog do quadro. Nela a apresentadora fala da rela-
ção de uma pessoa com o corpo, especialmente quando pensa
as questões estéticas. A apresentadora destaca: “vocês podem
imaginar que a relação de uma pessoa com o corpo, quando ele
não está exatamente dentro dos padrões de beleza,  é um pouco
complicado” (RENATA CERIBELLI, POSTAGEM 04).
Renata Ceribelli simula um diálogo com seu corpo para
pensar a resistência que este oferece quando é retirado da
zona de conforto. A apresentadora destaca: “o diálogo com
meu corpo está engraçado”. Simula então um diálogo: “ele
diz: estou cansado, pare de fazer tanto exercício! E eu respon-
do: calma, é só neste começo, é preciso tirar você da zona de
conforto! Isso vai ajudar você a ajudar o meu metabolismo e
queimar as gorduras que estão sobrando e me fazendo mal”
(RENATA CERIBELLI, POSTAGEM 29).

152
Hudson Pablo de Oliveira Bezerra / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

Os argumentos apresentados na fala da jornalista desta-


cam como o corpo é compreendido numa ótica de separação, de
posse e de exteriorização. Sobre ele deve ser exercida a domi-
nação, pois só assim será possível conquistar os objetivos que se
deseja. No entanto, o quadro enfatizava frequentemente que os
meios para exercer esta dominação são através da prática regu-
lar de exercícios e do controle alimentar. Todavia, uma passa-
gem da citação salta mais forte e vem reforçar os argumentos
aqui utilizados: “eu e meu corpo agradecemos”. No caso exposto,
a apresentadora e o corpo dela agradeciam ao profissional pelos
benefícios conquistados na participação do quadro.

Corpo quantificado e padronizado

Destacaremos dentro desta categoria as compreensões, saberes


e práticas do corpo enquanto elemento mensurado e quanti-
ficado através dos exames, medições, pesagens, entre outros
procedimentos técnicos, e atrelados à padrões construídos e
divulgados socialmente.
Durante o quadro, os apresentadores foram submetidos
a uma série de exames, testes e avaliações antropométricas.
Para tanto foi necessário o auxílio de profissionais da Nutrição,
Medicina e Educação Física.
Apresentaremos alguns fragmentos de discursos sobre o
corpo pensado nesta perspectiva. No vídeo do primeiro episó-
dio do quadro os apresentadores foram submetidos à realiza-
ção de exames, testes e avaliações. Segundo Zeca, “tiramos
todas as medidas, altura, circunferência abdominal, percen-
tual de gordura”. Já Renata argumenta que “pior momento
para mim até agora, hora de tirar as medidas. Primeiro a

153
O Corpo na “Medida Certa”: Compreensões, Saberes e Práticas

altura mais fácil né?, um e setenta, agora o peso, socorro! Será


que tenho mesmo que contar isso?” (RENATA CERIBELLI; ZECA
CAMARGO, VÍDEO FANTÁSTICO 01).
Conforme o exposto, compreendemos que a verdade
sobre o corpo que se sobressai no quadro Medida Certa é aque-
la proveniente dos instrumentos e testes de mensurações, e
consequentemente dos valores numéricos obtidos. No vídeo
apresentado na metade do quadro, Zeca comenta que “só tem
um jeito de saber, que venha a fita métrica” (ZECA CAMARGO,
VÍDEO FANTÁSTICO 07).
Uma passagem significativa nesta compreensão do corpo
através dos números é encontrada na fala da jornalista Renata
Ceribelli. Segundo ela, “por mais que a gente esteja sentindo
os resultados em nosso corpo, aquele numerozinho da balan-
ça, aquele da fita métrica, a gente fica esperando” (RENATA
CERIBELLI, VÍDEO FANTÁSTICO 13).
Ao final do quadro, os resultados obtidos pelos jornalis-
tas/apresentadores do Fantástico foram expressos através dos
valores numéricos dos exames, testes e avaliações realizados
sobre eles. No último episódio, a jornalista e apresentadora
Patrícia Poeta comenta: “vamos direto aos números, acho que
o Brasil inteiro quer saber”. O profissional de Educação Física
expõe os valores conquistados pelos apresentadores: “Renata
você começou o programa com 80,3 kg [...] agora depois de muito
suor, de três meses, Renata seu novo peso é 74,4 kg”, “o Zeca
começou esse programa com 111,4 kg [...] agora 104 kg” (MÁRCIO
ATALLA; PATRÍCIA POETA, VÍDEO FANTÁSTICO 14). Perante o
exposto, entendemos que o corpo reduzido aos processos de
quantificação dos seus constituintes estaria reduzido a uma
objetivação que negaria a sua complexidade e a sua atuação nos
diferentes espaços de convívio.

154
Hudson Pablo de Oliveira Bezerra / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

Entendemos ainda, que o processo de quantificação do


corpo e sua posterior avaliação e classificação em padrões
de normalidade com base em índices e tabelas de referência
acaba por propagar determinados padrões como corretos
em detrimento de outros. O corpo preconizado seria dessa
forma o padronizado.
Os discursos do quadro mostraram constantemente uma
busca pela adequação corporal aos padrões de magreza. Para
tanto é necessário atitude. Conforme argumenta Renata Ceribelli
“as pessoas querem ser emagrecidas, elas não querem emagrecer,
elas querem que o remédio emagreça, que a cirurgia plástica
emagreça. Não é possível que você não goste de uma atividade
física, escolha uma e faça! Você vai ver os benefícios”. Finalizando
a jornalista ainda diz “não tem sacrifício, é só fazer tudo na medi-
da certa” (RENATA CERIBELLI, VÍDEO FANTÁSTICO 09).
É importante ainda destacar que embora se viva

um momento de exacerbado culto ao corpo,


contraditoriamente há uma enormidade de
pessoas que não incorporam qualquer práti-
ca de exercícios físicos no seu dia a dia, que
não estabelece rotineiramente a alimentação
considerada pelos especialistas e, quiçá, são
obesas (OLIVEIRA et al., 2010, p. 37).

Ainda sobre a padronização do corpo em medidas prede-


terminadas, a jornalista Patrícia Poeta define Márcio Atalla como
“o homem que conseguiu colocar Renata Ceribelli e Zeca Camargo
na Medida Certa” (PATRÍCIA POETA, VÍDEO FANTÁSTICO 14). Qual
seria a Medida Certa? A Medida Certa seria individual ou coletiva?
Esta Medida Certa é fixa ou é fluida?
Sobre a primeira pergunta, verificamos que embora o
quadro propague a ideia de busca por uma Medida Certa ele não

155
O Corpo na “Medida Certa”: Compreensões, Saberes e Práticas

define claramente qual seria esta medida. Diante disto, refleti-


mos se esta medida seria coletiva ou individual, ou seja, a medida
certa propagada pelo quadro seria uma medida geral exposta
para as pessoas de fora para dentro a qual deveriam se adequar
ou a medida certa seria única para cada pessoa de acordo com as
individualidades de cada um. Portanto, defendemos uma pers-
pectiva que não define uma medida padrão como certa.
Quanto à estabilização ou não dessa medida, os discur-
sos apontam para uma fixação. O quadro estabelece 90 dias
para atingi-la, entretanto, os discursos denotam que passados
os 90 dias não seria necessário os mesmos cuidados. Verifica-
se assim um grande engano, pois, assim como antes, passado
o prazo do quadro se não derem continuidade aos cuidados
voltarão à mesma situação.
Apesar dessa busca desenfreada por um corpo padroni-
zado, acreditamos que a definição de uma medida certa não
pode ser tomada de forma generalizada e imposta de fora para
dentro, deve antes respeitar as individualidades dos sujeitos
e ser compreendida dentro de uma fluidez visto que a medi-
da compreendida como certa hoje poderá não ser a mesma
amanhã. Portanto, isto dependerá de uma série de fatores como
os desejos, sentimentos, objetivos e contextos sociais de cada
sujeito nos diferentes momentos históricos de sua vida.

Corpo como sujeito

De forma mais tímida durante o quadro, foi possível perceber


elementos que fizeram referência ao corpo enquanto sujeito.
Embora não tenhamos encontrado uma defesa clara sobre esta
compreensão em relação às demais, foi possível a localização de

156
Hudson Pablo de Oliveira Bezerra / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

discursos e atitudes que visualizaram o corpo antes de tudo como


um sujeito que é e que se expressa através dos seus movimentos.
Esse corpo sujeito é assim reconhecido na integralidade
dos aspectos biológicos com os elementos culturais e históricos
do contexto em que viveu ou que vive. É um corpo que permite
o entrelaçamento dos diferentes fatores que se fazem presente
na vida de um ser humano, sem buscar sua classificação ou
julgamento. Para Mendes e Nóbrega (2004, p. 128)

nosso corpo possui historicidade tanto na


estrutura orgânica quanto nas interações
com a cultura em que vamos convivendo, o
que desmistifica a ideia de que só os estudos
culturais reconhecem a historicidade do corpo.

Assim, essa compreensão reconhece o corpo como um


conceito vivo em movimento. É a representação e a expressão
do homem durante o seu existir. Ele é o entrelaçamento de dife-
rentes elementos, sejam eles biológicos, culturais, históricos,
sociais e emocionais. Entretanto, essa configuração complexa
e fascinante, faz do corpo um sujeito enigmático e mutável,
especialmente no que concernem as compreensões, os saberes
e as práticas que agem sobre si.
Devemos compreender o corpo como sujeito em relação
com outros corpos, visto que, “os outros contribuem para modu-
lar os contornos de seu universo e dar ao corpo o relevo social que
necessita, oferecem a possibilidade de construir-se inteiramente
como ator do grupo de pertencimento” (LE BRETON, 2010, p. 9).
Um dos momentos que revela o corpo como sujeito que
sente e que reage as experiências vividas é percebido quan-
do o jornalista Zeca Camargo relata durante o quadro o mau
humor e a irritação que tem sentido diante as mudanças

157
O Corpo na “Medida Certa”: Compreensões, Saberes e Práticas

provocadas na rotina de alimentação e prática de exercícios


(VÍDEO FANTÁSTICO 03). Assim, compreendemos o corpo dota-
do de autonomia para se organizar, expressar, modificar a si e
aos outros, além de ser recortado pelos aspectos históricos das
experiências vivenciadas.
Para Lacroix (2006, p. 38) “o individuo só é ele mesmo [...]
a partir do momento em que pode sentir e exprimir as emoções
que nos agitam”. O sentir, o emocionar-se são dessa forma
elementos inerentes ao ser humano e estão entrelaçados neste,
em todas suas configurações e experiências vividas ao longo do
seu existir. “Ao nos abandonarmos a nossas emoções, reapren-
demos a ser o nosso corpo. Sentimos o delicioso afloramento
da fisiologia sob o envoltório cultural” (LACROIX, 2006, p. 41).
Assim, o corpo guarda em si as experiências vivenciadas
e fará uso das informações e aprendizagens proporcionadas
por estas em outros momentos quando requeridas. Um exem-
plo disso pode ser reconhecido na fala de Márcio Atalla quan-
do aborda a importância da aprendizagem de movimentos na
infância para a posterior utilização do repertório de movimen-
tos na vida adulta. Segundo ele, “quem constrói esse acervo de
movimentos na infância, jogar vôlei, futebol, depois quando vai
jogar lembra. [...] é importante até como socialização, a crian-
ça fazer atividade física, por que quando ela for adulta ela vai
poder participar de muitos eventos, porque ela tem habilidade
para aquilo” (MARCIO ATALLA, VÍDEO FANTÁSTICO 07).
Nesta compreensão de corpo sujeito ganha destaque a
compreensão fenomenológica de Merleau-Ponty. Esta compreen-
são entende inicialmente que “tudo aquilo que sei do mundo,
mesmo que por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou
de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência
não poderiam dizer nada” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 3).

158
Hudson Pablo de Oliveira Bezerra / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

Com base na compreensão fenomenológica de Merleau-


Ponty, Nóbrega (2010, p. 15) defende o corpo como aspecto
primordial da existência humana, ele “é a medida de nossa exis-
tência no mundo”. Desta forma, “o corpo não é uma coisa, nem
ideia, o corpo é movimento, gesto linguagem, sensibilidade, dese-
jo, historicidade e expressão criadora” (NÓBREGA, 2010, p. 15).
Portanto, compreendemos diante os argumentos apre-
sentados nesta categoria que o corpo deve ser antes de tudo
compreendido no entrelaçamento com os diferentes aspectos
que se relacionam ao seu entorno. O corpo expressa os desejos,
sentimentos, medos, afetos, emoções, de cada ser humano. É um
ser relacional e entrelaçado que reage às investidas realizadas
sobre ele. É deste modo, um corpo construído e recortado por
aspectos biológicos, culturais, históricos e sociais.

Considerações finais

As formas de cuidado propagadas se deram a partir de padrões


e modelos, fato que rejeitamos diante a variedade corporal exis-
tente nos diferentes contextos sociais. Verificamos também,
uma predominância de formas de cuidado com o corpo atre-
ladas à conhecimentos e informações exteriores a eles, bem
como também foi atribuído a responsabilidade de cuidado com
o corpo a cada indivíduo.
Segundo o quadro foi necessário à adoção de cuidados
com o corpo na medida certa, no entanto, o quadro não defi-
ne em nenhum momento de forma clara qual seria a medida
certa. Pensamos que uma medida certa não pode ser defi-
nida e muito menos identificada, mas sentida e vivida por
cada sujeito dentro de seu existir, em um processo contínuo

159
O Corpo na “Medida Certa”: Compreensões, Saberes e Práticas

de transformação. Dessa forma, a compreensão do quadro


é restrita e acaba despertando a falsa ilusão em inúmeros
consumidores de suas informações de que existe uma medida
certa ideal que pode ser alcançada.
Quanto às compreensões, saberes e práticas apresenta-
das a respeito do corpo, verificamos que estas se mantiveram
restritas e limitadas, pautadas essencialmente em conhecimen-
tos de cunho biológico, com contribuições dos conhecimentos
científicos e tecnológicos, provindos predominantemente de
conhecimentos exteriores aos sujeitos e estabelecidos com base
em parâmetros ou índices de normalidade aos quais os sujeitos
deveriam se adequar.

160
Hudson Pablo de Oliveira Bezerra / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

REFERÊNCIAS

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161
O Corpo na “Medida Certa”: Compreensões, Saberes e Práticas

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162
O CORPO NO CINEMA DE PEDRO
ALMODÓVAR: PERCEPÇÃO E
EXPERIÊNCIA NA EDUCAÇÃO FÍSICA

Terezinha Petrucia da Nóbrega


Paula Nunes Chaves

Um olhar fenomenológico sobre o corpo

Nesse texto, entramos em um mundo onde verdades imutáveis


e absolutas são completamente ilusórias. Nesse mundo feno-
menológico e corporal, teremos como principal referência o
filósofo francês Maurice Merleau-Ponty que se debruçou sobre
os fenômenos do corpo, da percepção, da existência, do mundo,
nos dando possibilidades de pensar a existência como corporal.
Ele contrapõe-se de forma decisiva a uma perspectiva mecani-
cista ou clássica de corpo como objeto distante da natureza,
da história, das sensações, distanciando-se de um discurso
linear sobre um corpo fragmentado e considerado como obje-
to da consciência ou do espírito, compreensão recorrente nas
ciências e na filosofia tradicionais. Suas postulações tensionam
essas dicotomias, tendo em vista que seu projeto filosófico
como um todo corrobora com a tentativa de superar as duali-
dades clássicas do Ocidente, sobretudo a de origem cartesiana
(corpo e espírito) e outras como a dicotomia natureza e cultura.
No entanto, ao examiná-las e questioná-las não está preocupa-
do com soluções ou resoluções para os dilemas, pois segundo o
O Corpo no Cinema de Pedro Almodóvar: Percepção e Experiência na Educação Física

próprio Merleau-Ponty (1999) sua fenomenologia e seu pensa-


mento são ancorados no princípio do inacabamento, o que não
significa fracassar na obtenção de respostas, tendo em vista
que os fracassos são necessários e inevitáveis à sua fenomeno-
logia existencial, que tem como árdua e interminável tarefa, a
revelação dos mistérios do mundo.
A filosofia de Merleau-Ponty, em especial durante os
anos de formação na École Normale Supèrieur em Paris e de
preparação de suas duas teses: a estrutura do Comportamento
(1942) e a Fenomenologia da percepção (1945) foi marcada pela
violência da Guerra. A partir dessa experiência Merleau-Ponty
considera que não era mais possível pensar uma “consciência
nua”, destacada do mundo da vida, dos acontecimentos sociais
e da história. Nesse contexto, sua filosofia irá se ancorar no
presente, na historicidade e no tempo e espaço da experiência
vivida cuja natureza é corpórea.
Nóbrega (2010a) nos ajuda a compreender o pensamento
de corpo em Merleau-Ponty, a partir da dimensão fenomeno-
lógica da existência. Segundo a autora, o filósofo postula um
corpo que é nossa condição de ser no mundo, que é recorta-
do pela historicidade, pela subjetividade, pelos afetos, pela
linguagem, pelos desejos expressos na existência sob a forma
de sentidos diversos que se fazem na realidade do corpo, que
nos permite desejar, respirar, pensar, sonhar, fantasiar, imagi-
nar e viver. Nessa direção, a análise de Merleau-Ponty sobre o
corpo se dá inevitavelmente a partir da experiência vivida desse
corpo e de seu modo singular de ser no mundo. Tal perspectiva
é fundamental para contrapor-se ao idealismo transcendental
e ao mundo das essências que configuram a tradição filosófica
ocidental, inclusive em algumas abordagens da fenomenologia.

164
Terezinha Petrucia da Nóbrega / Paula Nunes Chaves

De acordo com Imbert (1997, 2005), após a Fenomenologia


da Percepção, Merleau-Ponty faz uma severa crítica de seu
método e anuncia um novo programa filosófico. Segundo a
autora, imediatamente após a guerra, era mais ou menos claro
que uma filosofia não tinha muitos meios para confrontar-se
com a história e o presente. A Guerra Aconteceu1. O tom indi-
cativo do enunciado dizia do caráter irremediável e factual da
situação em que se encontrava o mundo e o pensamento. Era
preciso dizer adeus a essa maneira de viver, de ver e de parti-
lhar. De fato, o ano de 1945 não deve ser considerado um ano
como os outros, pois a guerra exigia outro olhar sobre a violên-
cia, sendo preciso sujar as mãos. A ideia de uma consciência nua
não mais podia ser sustentada, assim a noção de história passa a
ter uma relação direta com o outro e com a realidade. Inspirado
pela pintura, mas também pelo cinema, Merleau-Ponty dá outro
tom aos propósitos da fenomenologia, trilhando um caminho
original na filosofia contemporânea.
Merleau-Ponty postula sua fenomenologia sob o pilar do
fenômeno originário da abertura do corpo ao mundo. Nessa
direção, segundo Dupond (2010), o grande esforço da fenome-
nologia reside em recuperar e reaver a comunicação, a troca,
a relação genuína e ingênua com o mundo. O mundo é o meio
que nos possibilita experiência e ação de forma plural, insti-
tuindo ainda relações e ligações de implicação e imbricação
recíproca, no entanto, sempre lacunar, apresentando fissuras
e inacabamentos. Um mundo que tudo abarca e a quem tudo
pertence, que é o núcleo do tempo, uma dimensão ilimitada
que inscreve nos corpos esse raio de mundo que os atravessa, e

1
Título do ensaio publicado na Revue Temps Moderns por Merleau-Ponty
em junho de 1945 (MERLEAU-PONTY, 1966).

165
O Corpo no Cinema de Pedro Almodóvar: Percepção e Experiência na Educação Física

os transforma nessa sutura e encontro do homem com o seu


mundo (DUPOND, 2010).
É para esse mundo que atesta as existências que quere-
mos nos ater agora. Ao retornar ao mundo vida, Merleau-Ponty
reinaugura seu estatuto filosófico, possibilitando o fenômeno
da transcendência, colocada em sua fenomenologia como uma
existência tomada para si ou enquanto abertura do corpo ao
mundo. Nessa direção, esse processo descrito é “o ato de trans-
cendência pelo qual o sujeito se abre [para o mundo] arrebata-se
a si mesmo” (DUPOND, 2010, p. 72).
Na filosofia de Merleau-Ponty, “[...] nossa existência está
atada ao mundo de maneira demasiado estreita para conhe-
cer-se enquanto tal no momento em que se lança nele [...]”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 12). Somos relação com o mundo
e presença nele desde sempre, pois é lá que nos conhecemos
ao experimentar nossa existência. O corpo se lança ao mundo
das experiências, sendo ele mesmo uma experiência. E é justa-
mente a partir desse lançamento do corpo em sua trajetória
pelo mundo, sobre o qual reflete Lucena (2013), que é possível a
existência das trocas, transformações, encontros, descobertas,
interações que dá poder ao corpo de sentir, agir e, principal-
mente de criar a partir desse mergulho do corpo no ‘circuito da
existência’, fazendo nascer sua história e experiência sensível.
É nessa direção, que o próprio Merleau-Ponty fala da necessida-
de de restabelecer essa permutabilidade das presenças corpo-
rais com o mundo, o que sua fenomenologia existencial tenta
concretizar. Em suas palavras:

Uma boa parte da filosofia fenomenológica


ou existencial consiste na adimiração dessa
inerência do eu ao mundo e ao próximo, em
nos descrever esse paradoxo e essa desordem,

166
Terezinha Petrucia da Nóbrega / Paula Nunes Chaves

em fazer ver o elo entre o indivíduo e o univer-


so, entre o indivíduo e os semelhantes [...]
(MERLEAU-PONTY, 1983, p. 116).

Por ser um sujeito aberto e engajado no mundo, nós huma-


nos criamos um elo fundamental com os outros, sendo esse
aspecto da intersubjetividade que permite nossas aprendiza-
gens. Para a fenomenologia de Merleau-Ponty a intersubjetivi-
dade apresenta um caráter corpóreo, sendo a intercorporeidade
que nos faz criar relações, aprendizagens, culturas. O corpo é
atravessado pelo acontecimento febril do mundo que destrói e
reconstrói seus contornos e sua história. Nóbrega inspirada em
Merleau-Ponty nos diz que:

[...] cada sujeito encarnado é como um registro


aberto, em que não sabemos o que se inscre-
verá; ou como uma nova linguagem, a qual
não sabemos que obras produzirá; mas que,
uma vez aberto, não seria possível dizer pouco
ou muito, ter uma história ou um sentido
(NÓBREGA, 2010, p. 98).

O corpo revela um mundo e é um mundo, ao mesmo


tempo em que está imbricado e atado a ele, configurando o
quiasma, o entrelaçamento, a porosidade entre as ações indi-
viduais, sociais e históricas. Essa inerência anima o corpo vivo
que em sua empreitada de se oferecer ao mundo, fazendo-se
e expressando-se inaugura uma existência sempre recomeça-
da. Para Caminha (2014), a fenomenologia de Merleau-Ponty é
capturada pelo inacabamento eterno do fenômeno que se esta-
belece na relação do corpo com o mundo, de forma que não é
possível que exista um mundo sem corpo, da mesma maneira
que um corpo sem mundo simplesmente inexiste.

167
O Corpo no Cinema de Pedro Almodóvar: Percepção e Experiência na Educação Física

Ao recusar os determinismos e linearidades, Merleau-


-Ponty inaugura uma compreensão de corpo atado ao mundo
que é um ‘sensível exemplar’, imbricado no tecido do mundo,
cuja essência está na existência e na experiência vivida. No livro
Fenomenologia da Percepção (1999), o filósofo trabalha a noção de
corpo-próprio, que deixa de ser simples objeto para a sociologia,
biologia, e até mesmo para o discurso, passando a ser um corpo
que é afetado por sensações e também capaz de afetar com sua
presença. Um corpo que não é pura exterioridade, pois antes de
tudo, como ele mesmo nos diz: “[...] eu não estou diante de meu
corpo, estou em meu corpo, ou antes sou meu corpo” (MERLEAU-
-PONTY, 1999, p. 207-208). O corpo é a própria condição de ser e
estar no mundo, e tudo no mundo humano é corpóreo:

‘o corpo fenomenal’ ou ‘ corpo próprio’, que a


um só tempo é ‘eu’ e ‘meu’, no qual me apreen-
do como exterioridade de uma interioridade
ou interioridade de uma exterioridade, que
aparece para si próprio fazendo aparecer o
mundo, que, portanto, só está presente para si
próprio a distância e não pode se fechar numa
pura interioridade [...] (DUPOND, 2010, p.12).

Para Merleau-Ponty (1999), a experiência do corpo


próprio revela, ao recolocar o sujeito na experiência corpo-
ral, que o corpo fenomenal é um corpo-sujeito, um modo de
existência ambíguo, cuja unidade é sempre confusa, e cujo
problema consiste justamente no fato de que tudo “reside ali”:

O corpo próprio está no mundo assim como o


coração no organismo; ele mantém o espetá-
culo visível continuamente em vida, anima-o
e alimenta-o interiormente, forma com ele
um sistema (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 273).

168
Terezinha Petrucia da Nóbrega / Paula Nunes Chaves

A concepção de corpo da Fenomenologia da percepção


(1999), que se distancia da tradição do corpo fragmentado, redu-
zido a medidas matemáticas, simples matéria inerte ou mecâ-
nica, chama atenção para uma configuração animada e para
a condição viva do corpo, horizonte primeiro de toda a expe-
riência. O corpo próprio, que na sua indivisibilidade de sujeito
e objeto da existência, se configura enquanto uma potência
de vida, se caracteriza pela ambiguidade de suas sensações,
bem como pela sua capacidade de afetar e ser afetado pelo
mundo ao qual pertence a partir das experiências e sensações.
O corpo próprio ou fenomenal de Merleau-Ponty, é, de acordo
com Dupond (2010) um domínio criador de sentido e de histó-
ria, uma potência expressiva, lugar sensível e de inscrição de
todos os outros sensíveis, um corpo que incorpora a poeira do
tempo, e que exprime sentidos e significados impregnados na
existência, pois é a própria existência que se move e transcende
de forma potente em direção ao mundo e às coisas.
O corpo próprio objeto da existência, das leis mecâni-
cas, da natureza, da biologia, da fisiologia, de uma anatomia
morta, torna-se sujeito ao movimentar-se e expressar-se, dife-
rentemente das formas unívocas e determinadas ou apenas
como resposta a certos estímulos, autenticando e criando sua
sujeitidade (BUTLER, 2012), ou seja suas formas de se constituir
enquanto sujeito, por meio da criação de gestos e invenção de
movimentos que expressam de forma única a relação existen-
cial do corpo com o mundo, com os outros e consigo mesmo, se
fazendo matéria viva que exprime sua forma de estar criativa-
mente no mundo:

169
O Corpo no Cinema de Pedro Almodóvar: Percepção e Experiência na Educação Física

Isso quer dizer que nenhuma conduta é, no


homern, o simples resultado de algum meca-
nismo corporal, que não há, no comporta-
mento, um centro espiritual e uma periferia
de automatismo, e que todos os nossos gestos
participam à sua maneira dessa única ativida-
de de explicitação e de significação que somos
nós mesmos (MERLEAU-PONTY, 1991, p.258).

Eis talvez a grande novidade do corpo próprio trabalhada


no capítulo do ‘Corpo como expressão e a fala’ da Fenomenologia
da percepção (MERLEAU-PONTY, 1999): a linguagem como
expressão do corpo vivo e que emana infindáveis sentidos e
significados existenciais. Neste capítulo, Merleau-Ponty vai nos
brindar com a existência de um corpo expressivo e intencional2,
que exprime sua história, suas emoções, seus sentimentos, sua
verdade e autenticidade, sua própria vida por meio da lingua-
gem dos gestos, da fala, das fisionomias, trata-se de um corpo
que sempre tem algo a dizer de sua existência, até mesmo quan-
do silencia. Nesse sentido, a expressão na filosofia do corpo de
Merleau-Ponty:

[...] designa uma estrutura ontológica encon-


trada na fala, mas também no corpo vivo,
na obra de arte, na coisa percebida, e que
consiste na passagem mútua de um interior

2
Cabe aqui um esclarecimento sobre a compreensão da intencionalidade
em Merleau-Ponty posto que não raro essa perspectiva se identifica com a
filosofia da consciência ou das ideias transcendentais originadas de Husserl.
Porém, mesmo em Husserl, há um aspecto da intencionalidade da consciên-
cia diretamente vinculado à motricidade, ao corpo em movimento. É esse
aspecto que Merleau-Ponty irá desenvolver em sua filosofia, notadamente
aprofundando a noção de esquema corporal como podemos observar no
Curso sobre o Mundo sensível e o mundo da expressão, ministrado no Collège
de France em 1953 e cujas notas foram recentemente publicadas (MERLEAU-
PONTY, 2011).

170
Terezinha Petrucia da Nóbrega / Paula Nunes Chaves

para o exterior e de um exterior para o inte-


rior ou no movimento mútuo de sair de si e
de entrar em si [...] só há sentido expresso ou
encarnado em um corpo, e so há corpo, corpo
de coisa, corpo vivo ou corpo verbal animado
de um sentido ou prenhe de um significado
(DUPOND, 2010, p. 29).
O corpo é atravessado pela linguagem por meio da qual
nos expressamos, atribuímos sentidos e nos comunicamos como
o outro. Andrieu (1993), ao estudar as ideias sobre o corpo ao
longo do século XX, concentra-se nos modelos psicanalítico,
fenomenológico e neurocientífico para discutir as relações do
corpo e espírito e também as questões da linguagem. Em relação
à fenomenologia da linguagem, o autor ressalta as dificuldades
da expressão linguística, a saber:

Eu não consigo me exprimir. Eu não encon-


tro palavras para dizer. Poderíamos melhor
dizer. Procuro uma palavra que corresponda
ao que penso. Eis algumas experiências que
provam a inaptidão da expressão linguística
para incarnar o sentido subjetivo da impres-
são (ANDRIEU, 1993, p. 279).

Não encontro palavras para dizer e mesmo esse silêncio


é todo ele, intensamente, expressivo. Assim, as falas, as pausas,
os silêncios que percebemos em uma obra cinematográfica por
exemplo, sustenta essa potência linguística da corporeidade. Esse
corpo como potência indefinida de expressão e que não exis-
te fora do mundo inaugura sempre um certo estilo de ser no
mundo que comunica os significados de sua operação expressiva.
Essa linguagem expressiva do corpo distancia-se de gestos ou
formas expressivas automatizadas, trata-se de uma linguagem
como criação que revela as profundezas do homem, traduzindo-
-as para o exterior, onde adquirem existência gestual, concreta

171
O Corpo no Cinema de Pedro Almodóvar: Percepção e Experiência na Educação Física

e significativa. Portanto, para Merleau-Ponty (1999), a lingua-


gem não é um discurso que dá existência a um corpo depois de
nomeá-lo, “[...] pois nomear um objeto é afastar-se do que ele tem
de individual e de único para ver nele o representante de uma
essência ou de uma categoria[...]” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 240).
A linguagem expressiva e criativa é justamente o que afasta o
corpo de uma categorização, inscrevendo-o em um domínio
potente de sentido do inclassificável, do humano, do existencial,
do sensível, enfim, no domínio da arte e da expressão.
De acordo com Lima Neto e Nóbrega (2014), Merleau-
-Ponty jamais fez uso da arte como um mero instrumento de
ilustração ou complemento da teoria, um apêndice do pensa-
mento. Ela é, na verdade, linguagem indireta: possibilita modos
outros de ver, pensar e sentir e expressar o mundo. A literatura,
a pintura e o cinema foram as operações expressivas por meio
das quais o filósofo buscou fazer a experiência do pensamento
e formular sua filosofia do corpo e da existência.
É a partir dessa compreensão de filosofia, de arte e de
corpo, que nos reportamos ao cinema de Pedro Almodóvar,
buscando esses outros modos de ver e pensar a experiência dos
corpos expressos nas existências da tela. Interrogamos as fisio-
nomias, olhares, gestos, cores, sensações, atitudes corporais que
nos possibilitam a ampliação da percepção do corpo, da lingua-
gem, da sexualidade, e a inauguração de novos horizontes refle-
xivos a partir da análise perceptiva da arte cinematográfica.

A fisionomia do corpo no cinema de Almodóvar

O cinema nos dá a ver. Essa formulação de Merleau-Ponty (1966)


traz para a filosofia do corpo a noção de fisionomia, permitindo

172
Terezinha Petrucia da Nóbrega / Paula Nunes Chaves

um olhar sobre as expressões do corpo, o movimento, a postu-


ra, as atitudes do corpo. Assim, o filme é um objeto a perce-
ber e ao fazê-lo exercitamos nossa sensibilidade e educamos
nosso olhar. Essa percepção do movimento que o cinema nos
dá contribui para ampliarmos nosso olhar e nosso pensamen-
to sobre fenômenos ligados a corporeidade, como é o caso da
sexualidade, das transformações corporais e das condutas exis-
tenciais observadas, por exemplo, na personagem criada por
Almodóvar no filme “Tudo sobre minha mãe”.
Ao nos reportarmos a esse corpo expressivo, sexuado e
que se transforma na relação com o mundo recorremos à perso-
nagem Agrado, colocada em tela na película clássica de Pedro
Almodóvar “Tudo sobre minha mãe” (1999), que nos ajuda a
compreender algumas postulações de Merleau-Ponty. A perso-
nagem dá vida a esse olhar fenomenológico ao nos brindar com
um corpo em constante transformação a partir de sua expe-
riência no mundo, um nó de significações vivas, expressões,
gestos e linguagem que fazem dela um modo único de ser e
viver corporalmente.
Agrado é uma figura irônica e engraçada que trabalha-
va em um gueto de prostituição de travestis. Sempre preocu-
pada com sua aparência, horroriza-se ao se olhar no espelho e
ver que seu nariz está disforme devido à uma surra que levou
de um cliente. Enfatiza e ironiza que, como modelo, precisa
se cuidar e estar gostosa, sempre atentando para os últimos
avanços tecnológicos da cirurgia cosmética. Em um diálogo
com sua amiga Manuela que lhe pergunta se a roupa que está
usando é autêntica, responde que a única coisa que tem de
verdadeira são seus sentimentos. Merleau- -Ponty (1999) no
faz entender essa autenticidade das emoções e sentimentos,
ao nos dar o exemplo da cólera, cujo sentido está no próprio

173
O Corpo no Cinema de Pedro Almodóvar: Percepção e Experiência na Educação Física

gesto corporal que é compreendido na expressão, em suas


palavras “[...] eu não percebo a cólera ou a ameaça como um
fato psíquico escondido atrás do gesto, leio a cólera no gesto,
o gesto não me faz pensar na cólera, ele é a própria cólera”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 251). É essa a conduta corporal
que a personagem nos dá. Assim, Agrado não nos faz pensar
na autenticidade, na tristeza, a dor, ela nos dá, nos oferece essas
atitudes e sensações em seu próprio corpo, onde a expressão e
o exprimido coexistem:
Figura 1 – Dor e existência expressas no corpo

(a) (b)

Fonte: Cenas do filme Tudo sobre minha mãe (1999).

Nessa direção, apreendemos que os significados estão


no próprio gesto, exprimindo um mundo passional, existen-
cial, que diferentemente da fala, não podem ser transferidos
para o papel, pois sua escrita se dá unicamente no corpo
vivo atado ao mundo. Os gestos para Merleau-Ponty (1999)
indicam a relação entre o sujeito e o mundo sensível:

Vê-se muito bem o que há de comum ao gesto


e ao seu sentido, por exemplo à expressão das

174
Terezinha Petrucia da Nóbrega / Paula Nunes Chaves

emoções e às próprias emoções: o sorriso, o


rosto distendido, a alegria dos gestos contém
realmente o ritmo de ação, o modo de ser no
mundo que são o próprio júbilo (MERLEAU-
-PONTY, 1999, p. 254).

A partir de uma gesticulação emocional, Agrado encontra


uma forma única e peculiar de se projetar para o mundo, de
experimentar-se no espaço, um calor vivo, uma mudança inces-
sante, uma simultaneidade entre corpo e sensação, emoção. Esse
é o “milagre da expressão”, capacidade do humano em fazer o
sentido encarnado brotar, emergir, existir para o mundo exterior,

Essa revelação de um sentido imanente ou


nascente no corpo vivo se estende, como
o veremos, a todo mundo sensível, e nosso
olhar, advertido pela experiência do corpo
próprio, reencontrará em todos os ‘objetos’
o milagre da expressão” (MERLEAU-PONTY,
1999, p. 268).

Agrado usava seu corpo expressivo e vivo para ganhar


a vida como prostituta, seu corpo era tudo que tinha, é tudo
o que tem, é sua história, seu mundo, sua vida. Entendemos a
história aqui, como uma “memória do mundo” no corpo, um elo
com o passado ao mesmo tempo em que se abre para fazer-se na
fugacidade do instante. O ator da história, nesta perspectiva,
é sempre o próprio homem que está incessantemente dando
forma à sua vida, fazendo-se, redescobrindo-se (DUPOND, 2010).
Após sair da “rua”, a travesti começa a trabalhar na
companhia de teatro “um bonde chamado desejo”, essa desig-
nação parece cair bem em Agrado, que nos brinda com uma
das cenas mais marcantes do filme, ao subir ao palco do teatro
e ao palco simbólico de sua vida para comunicar ao público
que as atrizes do “bonde chamado desejo” não poderiam estar

175
O Corpo no Cinema de Pedro Almodóvar: Percepção e Experiência na Educação Física

presentes para o espetáculo. Neste momento, no cenário, um


clarão de luz desponta, e, surge Agrado, que tem toda a super-
fície de seu corpo iluminada em contraste com o restante do
cenário obscuro. Ela está vestindo uma roupa simples, uma
blusa cor de rosa, uma calça preta acompanhada de botas, mas
o que estava prestes a falar não é tão simples, fiquemos com
suas palavras:

Figura 2 – A história viva de Agrado

Fonte: Cenas do filme Tudo sobre minha mãe (1999).

Por causas alheias à sua vontade, duas das


atrizes que diariamente triunfam sobre este
cenário não podem estar aqui hoje. Coitadas
[...] o espetáculo será cancelado. Quem quiser
receberá o dinheiro do ingresso de volta, mas
quem não tiver nada melhor para fazer, já que
vieram ao teatro, é uma pena irem embora
(TUDO..., 1999).

Neste momento, a câmera que inicialmente estava


longínqua, vai se aproximando lentamente enfatizando cada
vez mais o corpo da personagem, seu rosto modificado e busto

176
Terezinha Petrucia da Nóbrega / Paula Nunes Chaves

amortizado. Ela continua: Se ficarem eu prometo divertir vocês


contando a história da minha vida. Neste momento, Agrado abre
alguns botões de sua blusa deixando parte do seu busto e de
seus seios à mostra, dando evidencia ao seu corpo sensualizado,
com um sorriso no rosto de quem tem orgulho de sua história:

Chamam-me Agrado porque, a vida inteira,


só pretendi tornar a vida dos outros agradá-
vel. Além de agradável, sou muito autêntica.
Olhem só que corpo! Todo feito sob medida!
(arranca risos da platéia). Olhos amendoa-
dos: 80 mil. Nariz: 200 mil. Jogadas no lixo,
no ano seguinte ficou assim depois de outra
surra (leva o dedo ao nariz). Sei que me dá
personalidade, mas, se soubesse antes, não
mexeria nele. Vou continuar. Peitos: dois,
porque não sou nenhum monstro [...] 70 mil
cada um (aponta para os seus seios, tocando-
-os). Silicone nos lábios, testa, maças do rosto
e bunda. O litro custa cem mil. Calculem
vocês porque eu já perdi as contas. Redução
de mandíbula: 75 mil. Depilação definitiva a
laser porque as mulheres também vem dos
macacos tanto ou até mais do que os homens:
60 mil por sessão. Depende da cabeluda que
se é. O normal é entre duas e quatro sessões.
Mas, se é uma diva do flamenco, precisará de
mais, claro. Bem, como eu estava dizendo,
custa muito ser autêntica, e, nessas coisas,
senhores, não se deve ser avarenta, porque
nós ficamos mais autênticas quanto mais nós
nos parecemos com o que sonhamos de nós
mesmas (TUDO..., 1999).

Agrado, em sua performance teatral nos oferece a verda-


de de seu corpo sujeito e objeto da existência, ela era tudo aqui-
lo que estava falando “seu passado, seu corpo e seu mundo”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 142). Um ser de experiência que não

177
O Corpo no Cinema de Pedro Almodóvar: Percepção e Experiência na Educação Física

diz somente com as palavras, mostra, para o espectador, na


concretude de seu corpo vivido as mudanças que o mundo, o
tempo e sua vontade fizeram existir. Ao mesmo tempo em que
vocaliza sua história, ela a mostra em seu corpo apontando
suas modificações. Arranca aplausos calorosos da plateia, esta-
belecendo uma relação viva com os outros e consigo mesma ao
manifestar sua linguagem corporal falada, que é um aconteci-
mento febril, pois, para o corpo próprio,

a intenção de falar só pode encontrar-se em


uma experiência aberta; ela aparece, assim
como a ebulição de um líquido, quando, na
espessura do ser, zonas de vazio se constituem
e se deslocam para o exterior (MERLEAU-
PONTY, 1999, p. 266).

Suas palavras são o que Merleau-Ponty (1999) chama de


“imagens verbais. Agrado é um personagem cujo corpo dá exis-
tência e significado às palavras que pronuncia, palavras, essas,
que deixam traços em quem as expressa e em quem as ouve,
tendo em vista que não somos sujeitos absolutos, nos relaciona-
mos com o outro, afetamos e somos afetados por ele na trama
existencial do corpo no mundo. Na mesma obra acima cita-
da, Merleau-Ponty irá confessar que um homem que fala pode
ser igual a uma lâmpada, no entanto, o que diferenciará esses
acontecimentos é justamente a intencionalidade e a significação
desse movimento de fala (MERLEAU-PONTY, 1999).
No caso da personagem, estamos lidando com “gestos
fonéticos” autênticos que nos dão uma certa melodia, um certo
tom de existência, alicerçado na experiência. Seu corpo é um
verdadeiro “fenômeno sonoro”, que projeta e exterioriza inten-
ções e movimentos, advindos de um poder de expressão que é

178
Terezinha Petrucia da Nóbrega / Paula Nunes Chaves

próprio do corpo vivo. A fala, para o filósofo tem uma significa-


ção existencial que nela está enraizada, a fala também é gesto,
é a presença do pensamento no mundo e no corpo, conferin-
do existência a sentidos que são exteriorizados, sentidos que
habitam nas próprias palavras, inevitáveis e inseparáveis das
mesmas (MERLEAU-PONTY, 1999).
As palavras de Agrado são um ato eminentemente huma-
no, autêntico, que revelam atitudes existenciais que se esten-
dem para além das fronteiras de um corpo queer3, sobretudo
se colocamos em pauta as inúmeras transformações corporais
possíveis seja por razões estéticas, médicas ou psicológicas. O
depoimento da personagem nos faz pensar as muitas histórias
singulares. Suas atitudes são desenhadas com um ritmo que
nos conduz a profundidade de sua experiência, de suas marcas
corporais, de seus gestos. Sua fala carrega também uma signifi-
cação gestual, um conjunto potente que nos arrebata para seu
mundo. Uma voz mansa, fisionomia de quem sabe o que está
falando, gestos que significam um mundo, como o movimento
de seus ombros, mãos, lábios, olhos que miram claramente a
plateia, o corpo é um todo significante:

[...] a análise da fala e da expressão nos faz


reconhecer a natureza enigmática do corpo
próprio. Ele não é uma reunião de partículas
das quais cada uma permaneceria em si, ou
ainda um entrelaçamento de processos defi-
nidos de uma vez por todas – ele não está ali
onde está, ele não é aquilo que é – já que o
vemos secretar em si mesmo um ‘sentido que

3
“Queer é tudo isso: é estranho, raro, esquisito, queer é, também, o sujeito
da sexualidade desviante – homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis,
Drags. É o excêntrico que não deseja ser ‘integrado’ e muito menos tolerado”
(LOURO, 2013, p. 7-8).

179
O Corpo no Cinema de Pedro Almodóvar: Percepção e Experiência na Educação Física

não lhe vem de parte alguma, projetá-lo em


sua circunvizinhança material e comunicá-
-lo aos outros sujeitos encarnados. Sempre
observaram que o gesto ou a fala transfigu-
ravam o corpo [...] é ele que mostra, ele que
fala (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 267).

Agrado carrega no seu enigma corporal as marcas de


uma existência sofrida e vivida no corpo, fala com seriedade
e propriedade porque seu corpo é sua forma única de estar no
mundo, a qual ela conhece. Um corpo próprio do qual nos fala
Merleau-Ponty, jogado ao mundo, sujeito e objeto da existência,
possuindo unicamente suas histórias, seus sentimentos, como
diz Agrado, e seu mundo vivido. Em seus olhos azuis como as
águas profundas dos oceanos, também se passam um amon-
toado de coisas, memórias, lembranças, dores, sofrimentos,
alegrias, enfim, todo o seu mundo humano e profundo que
se externa pelo olhar, pelo gesto, pela expressão, pelo corpo
falante. Além das palavras, sorriso, olhar, movimentos do rosto
e gestos sensíveis atrelados ao universo feminino nos dão a
perceber sua existência ambígua, não classificável e pulsante
no metamorfosear-se. Seus movimentos condizem com suas
palavras, gestos e fisionomias que ironizam seu corpo e sua
própria condição de estar no mundo:

Assim como a fala significa não apenas pelas


palavras, mas ainda pelo sotaque, pelo tom,
pelos gestos e pela fisionomia, e assim como
esse suplemento de sentido revela não mais os
pensamentos daquele que fala, mas a fonte de
seus pensamentos e sua maneira de ser funda-
mental (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 209).

O corpo de Agrado nos dá essa maneira de ser, sua verda-


de através de sua expressão autêntica, através do olhar direto e

180
Terezinha Petrucia da Nóbrega / Paula Nunes Chaves

profundo direcionado para a plateia que a assiste no espetáculo


da vida, e de um sorriso que se abre ao final, uma fisionomia
alegre de quem falou o que viveu, nos dá o que ela é realmente,
preenchendo de fala e gesto um vazio existencial: seus gestos,
ao romperem o silêncio de sua existência, significam uma vida.
Agrado parece saber que:

[...] a palavra é um certo lugar de meu mundo


linguístico, ela faz parte de meu equipamen-
to, só tenho um meio de representá-la para
mim, é pronunciá-la, assim como o artista só
tem um meio de representar-se a obra na qual
trabalha: é preciso que ele a faça” (MERLEAU-
PONTY, 1999, p. 246).

Agrado é um sujeito fazedor de si próprio, um corpo atado ao


seu mundo e que ao se expressar através da linguagem que
emana do corpo, de seus gestos e palavras nos dá sua forma
única de estar no mundo enquanto corpo capaz de criar, aproxi-
mando-se da compreensão de corpo próprio de Merleau-Ponty,
um corpo lançado à odisseia mundana, que carrega inexora-
velmente suas experiências existenciais ao mesmo tempo em
que as expressa.
Nessa trajetória a sexualidade mobiliza nosso ser e nuan-
ça significados primários e simbólicos em nossas vidas. Assim,
o corpo como órgão dos sentidos se encarrega da metamor-
fose da existência, em particular no domínio da sexualidade,
do Eros e da libido, como Merleau-Ponty irá demonstrar nos
cursos sobre a Natureza (NÓBREGA, 2014, 2015). Na mesma dire-
ção, os conceitos teóricos do freudismo são ratificados e afir-
mados quando são compreendidos por meio da corporeidade
tornada, ela mesma, pesquisa do fora no dentro e do dentro no
fora, poder global e universal de incorporação. Assim, a libido

181
O Corpo no Cinema de Pedro Almodóvar: Percepção e Experiência na Educação Física

freudiana não é uma enteléquia do sexo, nem o sexo uma causa


única e total, mas uma dimensão inelutável, fora da qual nada
de humano poderia permanecer, porque nada de humano é,
com efeito, incorpóreo.
De acordo com Nóbrega (2015), Merleau-Ponty aprofun-
da a dialética da consciência encarnada, tema presente desde
os primeiros trabalhos do filósofo, a partir da Psicanálise e
das relações com a sexualidade. Assim, esses fenômenos são
a possibilidade de uma vida fragmentada da consciência que
não possui uma significação única. A psicanálise permitirá a
Merleau-Ponty complexificar a análise do esquema corporal,
notadamente a partir da compreensão da sexualidade e do
desejo. Por outro lado, o estudo das estruturas passivas da exis-
tência sugere um corpo aberto a um mundo como um campo
denso de eventos que mobilizam o sujeito e a plasticidade do
desejo. Merleau-Ponty recorre à teoria freudiana para dizer
que a sexualidade não é um automatismo ou uma relação cons-
ciente, sendo preciso reintegrá-la no conjunto das experiências
afetivas e existenciais.

A educação do corpo e da
sexualidade em Almodóvar

No filme Má Educação (2004), nos deparamos com outras fisiono-


mias do corpo, atitudes, gestos, olhares e desejos do persona-
gem Ignácio que nos levam a ver e pensar de outras maneiras
o fenômeno do corpo queer e da sexualidade para além da vida
íntima, como nos fez pensar Agrado, mas ampliando também os
olhares e reflexões acerca dos processos sociais e de educação

182
Terezinha Petrucia da Nóbrega / Paula Nunes Chaves

do corpo e da sexualidade por meio dos fenômenos educacio-


nais, da ginástica e de uma ‘Educação Física’ e moral.
Ignácio, um dos personagens principais da narrativa
de Almodóvar, é um garoto que sofre os disciplinamentos e
interdições de um processo educativo perverso, unilateral e
homogeneizador de corpos e desejos dentro de uma instituição
escolar religiosa. É nessa ambiência controladora e de vigilância
do corpo que Ignácio inicia o processo de descoberta e vivencia
de sua sexualidade, relacionando-se com seu amigo Enrique.
Ao viverem concretamente esse desejo “ilegal” são descobertos
pela fisionomia perplexa de um dos padres/professores que se
encarrega das medidas punitivas. Na cena a seguir, é possível
perceber, em meio a um cenário disciplinador, a mistura de
raiva e tristeza nos olhos de Ignácio ao ver Enrique, seu primei-
ro amor, sendo expulso da escola:

Figura 3 – O olhar vivo e subversivo de Ignácio

Fonte: Cenas do filme Má Educação (2004)

183
O Corpo no Cinema de Pedro Almodóvar: Percepção e Experiência na Educação Física

Ignácio e Enrique são frutos de um processo educacional


autoritário e violento, do qual nos fala Miskolci (2012), que deixa
marcas nos corpos que saem como o esperado e nos que resis-
tem, e é esse mesmo processo que persegue, pune e marca como
indesejáveis e anormais os sujeitos, sexualidades e desejos que
fogem à normatização. Nesse mundo Almodovariano de desejos
tidos como impróprios, a escola tenta instaurar um processo de
normalização identitária, corporal e moral, ditando modelos de
como as pessoas devem ser, tornar-se e comportar-se.
Esse processo de educação normalizadora dos corpos
torna-se nítido na película a partir da utilização de exercícios
ginásticos que controlam e padronizam o corpo e seus movi-
mentos objetivando uma educação moral. Ignácio, ao despe-
dir-se por meio de um olhar de Enrique, está participando de
uma aula de ginástica que se passa em um campo de futebol,
uma verdadeira e implacável educação ou interdição dos corpos.
Silhuetas retilíneas, corpos enfileirados, dóceis, destituídos de
suas pulsões e sentimentos, alienados pelo movimento padro-
nizador ditado por um suposto educador padre, que parece
ser discípulo de Amoros4. Uma imagem que perturba, por ser
emblemática da tentativa de educação, acabamento, discipli-
namento e determinação dos corpos em seus aspectos físico e
moral através da prática de exercícios ginásticos.

4
Coronel espanhol que viveu na França, Amoros era estudioso da ginástica
e desenvolveu, nas primeiras décadas do século XIX, uma sistematização
de exercícios ginásticos como modelo de treinamento para o corpo visando
seu desenvolvimento físico, e, principalmente a instauração ou incorpora-
ção de normas de conduta moral primadas pela educação cívica da época
(SOARES, 2005).

184
Terezinha Petrucia da Nóbrega / Paula Nunes Chaves

Figura 4 – A educação do corpo

Fonte: Cenas do filme Má Educação (2004)

Vergara (2009) ao comentar sobre os traçados e linhas do


cinema de Almodóvar nos chama a atenção para a configuração
espacial desses meninos fazendo ginástica sobre as ordens do
padre José, sentado e sempre acompanhado de seu bastão, como
um símbolo de poder. Segundo o autor, esses traços retilíneos
marcam sempre os limites dos corpos, uma barreira que tenta
segurar o inexorável das existências, essas linhas significam
imobilidade para as silhuetas de corpos desencarnados, ou

185
O Corpo no Cinema de Pedro Almodóvar: Percepção e Experiência na Educação Física

seja, sem vida pulsante de desejos (VERGARA, 2009). Os corpos


se curvam em geometrias estáticas, nada parece conseguir
subverter as ordens de controle do corpo e de seu movimento.
Soares (2005) atenta para a configuração dessa educação
do corpo que se fortifica com o advento do movimento ginástico
europeu no século XIX que objetivava o controle do corpo, a
instauração de gestos comedidos e silenciosos, o desenvolvi-
mento de um corpo sem excessos e moralmente “sadio” através
de exercícios sistemáticos, configuração essa que ainda rever-
bera nas práticas educacionais e no conhecimento da Educação
Física até os dias de hoje. Nessa história que ainda está a se
fazer, corpos, desejos, subjetividades e sexualidades queer, como
o de Agrado, Ignácio e Enrique não possuem espaço, passando
por processos de invisibilização e normalização.
Andrieu (2013) nos faz pensar sobre a questão da sexua-
lidade, do prazer e de uma moral repressiva que se transfor-
ma em uma reivindicação de liberdade ao longo da história.
As diferentes formas de amar, os desejos e afetos ultrapassam as
condutas normativas engendradas pelas instituições religiosas
e médicas e ganham espaço em novas condutas de partilha da
sexualidade e do amor corporal como as que podemos observar
nas condutas e atitudes queer.
É nessa direção que Louro (2013) sugere a incorporação
das compreensões irreverentes e antinormalizadoras da teoria
queer no cenário predominantemente normalizador da educação,
permitindo pensar a múltiplas e fluidas formas de ser corpo e de
viver a sexualidade. Transportar o ímpeto perturbador e subver-
sivo da teoria queer para o âmbito da educação e da Educação
Física significa dar espaço para expressões, gestualidades, exis-
tências corporais e experiências sexuais como as dos persona-
gens do cinema queer de Almodóvar, significa também balançar

186
Terezinha Petrucia da Nóbrega / Paula Nunes Chaves

certezas, desconstruir cânones, provocar reflexões sobre o corpo


e a sexualidade como dimensões existenciais dos sujeitos.
Nessa perspectiva, a Educação Física enquanto ‘educação
do corpo’ distancia-se de um modelo físico e moral de norma-
tização dos corpos, passando a questioná-los em detrimento
da consideração da pluralidade de sensações, emoções, lingua-
gens, expressões, afetividades, desejos e sexualidades que fazem
parte da experiência corpórea do sujeito no mundo, e que estão
representadas no cinema queer de Almodóvar.
Menel (2015), ao nos apresentar um panorama do cinema
queer sublinha diversas transformações sociais e históricas que
remetem também a uma transformação do olhar, do corpo e do
movimento no cinema, na vida social e na vida íntima. A autora
nos chama atenção para esse cinema queer no qual filmes como
Tudo sobre minha mãe e Má Educação de Pedro Almodóvar
se inscrevem. Para autora, a partir desse cinema podemos
refletir sobre as relações entre o corpo biológico e cultural,
o desejo, o amor como questões fundamentais da existência e
dos processos educativos, corroborando com o pensamento de
Merleau-Ponty sobre a ampliação de horizontes e olhares sobre
os fenômenos possibilitada pelas obras cinematográficas.
A experiência do cinema cria horizontes de significa-
ção para a compreensão da corporeidade, aspecto relevante
para a Educação Física e as práticas da cultura de movimento.
A corporeidade coloca em cena um corpo sensível, um esque-
ma corporal aberto ao mundo, ao outro e cuja motricidade é
capaz de criar experiências polissêmicas, modos de aprendiza-
gem, maneiras de ver, de mostrar, de compreender a realida-
de social e subjetiva. A noção de esquema corporal percebida
na experiência do cinema, nas cenas, diálogos, fisionomias,
gestos, movimentos impressionam o olhar do espectador e pode

187
O Corpo no Cinema de Pedro Almodóvar: Percepção e Experiência na Educação Física

desencadear reflexões sobre a estética, a ética, a educação, as


condutas sociais, as metamorfoses do corpo ao longo do tempo
e conforme os processos sociais e educativos.
No caso dos filmes aqui apresentados: “Tudo sobre
minha mãe” e “Má educação” visualizamos as transformações
corporais, as questões da sexualidade e as maneiras de educar
o corpo em instituições sociais como a família e a escola, por
exemplo. Nota- se que as condutas humanas são configuradas
no entrelaçamento entre a realidade subjetiva e o mundo da
cultura, entre nossa herança biológica, as condutas sociais e
os processos históricos. Podemos observar as técnicas corpo-
rais médicas, estéticas e educativas que metamorfoseiam não
apenas o corpo dos indivíduos, mas também o corpo social.
Nesse contexto, a perspectiva queer transforma as relações
com o corpo e a sexualidade, exigindo condutas educativas
ampliadas para a criação de cenários éticos e estéticos capazes
de fazer face a polissemia do corpo, dos afetos e dos desejos
humanos, demasiadamente humanos.
Assim como a linguagem, a sexualidade atravessa a corpo-
reidade e expressa sentidos afetivos. Esse sentido afetivo do corpo
e das experiências contadas no cinema de Almodóvar e na obra
de outros artistas confirmam a tese fenomenológica segundo a
qual o corpo faz as coisas existirem para nós. Esse sentido afeti-
vo engloba e ultrapassa a experiência erótica como sendo da
ordem do desejo que liga um corpo em direção a outro corpo,
instituindo relações intercorporais cujo poder de generalidade
estende-se a diversos domínios da existência. Como seres dese-
jantes possuímos um poder de criação e de transformação da
realidade do corpo próprio, do corpo íntimo, do corpo social.
Nosso corpo assegura as metamorfoses da vida como nos conta

188
Terezinha Petrucia da Nóbrega / Paula Nunes Chaves

Agrado e Ignácio, personagens que fazem vibrar a corporeidade,


os processos subjetivos, os desejos, as vontades, as aprendizagens.
A capacidade que tem o cinema de deslocar nosso olhar
sobre fenômenos tais como a educação do corpo e da sexua-
lidade é desencadeada por meio da empatia cinestésica, ou
seja, de nossa identificação sensorial, motriz, afetiva com
as imagens observadas e assim formular nossas impressões,
percepções, fisionomias, ações e reações. O cinema apresenta-
-se, pois, como um veículo de comunicação e de expressão que
pode contribuir para refletirmos sobre o conhecimento da
Educação Física em sua natureza ética e estética, fornecendo
também elementos pedagógicos que podem configurar
processos de percepção, de crítica e de aprendizagens sobre
o corpo e a cultura de movimento.

189
O Corpo no Cinema de Pedro Almodóvar: Percepção e Experiência na Educação Física

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192
CORPO LIBERTINO: POR
UM IDEAL HEDONISTA

Rayane Monaliza da Nóbrega Oliveira


Rosie Marie Nascimento de Medeiros

Introdução

O presente texto é parte constituinte de uma dissertação1 de


mestrado, na qual interrogamos a Filosofia de Michel Onfray2
para refletirmos sobre o corpo. Nesse sentido, utilizamos seu
próprio método de trabalho: o Materialismo Hedonista – um
projeto filosófico que reúne as principais ideias defendidas
pelo autor – para contemplarmos nossas categorias de estudo,
a saber: Corpo Glorioso e Corpo Libertino. A partir de então,
traçamos implicações para as questões éticas e estéticas no
âmbito da Educação Física.
Para compor seus escritos, o referido filósofo parte de
fortes críticas ao ideal ascético (constituído pela tradição filosó-
fica e pelas religiões monoteístas), acusando-o de tentar ocultar
o corpo e o prazer de seus ensinamentos, os quais são ancora-
dos pela moral cristã. Em contrapartida, sua filosofia defende

1
Dissertação de Rayane Oliveira, intitulada “O Corpo em Michel Onfray”;
orientada por Rosie Marie, no Programa de Pós-Graduação em Educação
Física da Universidade Federal do Rio Grande do Norte; defendida no ano
de 2015.
2
Breve biografia do autor disponível em seu site oficial: Disponível em:
<http://mo.michelonfray.fr/biographie/>. Acesso em: 5 abr. 2015.
Corpo Libertino: Por um Ideal Hedonista

o ideal hedonista que prima pelo prazer como princípio ético/


moral do bem viver a vida, o qual visa o outro tanto quanto o
próprio indivíduo, enaltecendo o corpo e suas potencialidades
através dos cinco sentidos.
Nesse texto, enfatizamos, particularmente, a configu-
ração do corpo libertino a partir do pensamento de Michel
Onfray, o qual nos impulsionou a refletir sobre a ética do corpo
na Educação Física – área que, tradicionalmente, esteve atrelada
à execução de tarefas disciplinadoras do corpo, desconsideran-
do a sensibilidade de sua prática pedagógica.
Diante do exposto, propomos fazer tal reflexão partin-
do da análise dos escritos de Michel Onfray (traduzidos no
Brasil), e ademais, trazendo Silvino Santin para as discussões
que envolvem a abordagem ética/estética no conhecimento
da Educação Física. Além disso, utilizamos o recurso cinema-
tográfico para enriquecer nosso diálogo, haja vista seu poder
de amplificar nosso olhar e de desestabilizar nossa percepção,
fazendo-nos ver de outras maneiras a paisagem comum, como
relata Nóbrega (2013).

Um encontro ético com o corpo

Na defesa de seu projeto hedonista, Michel Onfray ataca toda


uma tradição de desprezo pelo corpo e culpa do prazer, impreg-
nada na moral cristã. Para tanto, traz em seu Materialismo
Hedonista uma grande lição de que só existe corpo, sendo
este exclusivamente material, coisa atômica, um organismo
composto de elementos. Logo, o hedonismo aqui enfatizado é
uma filosofia da matéria corporal, uma sabedoria do organis-
mo (ONFRAY, 1999). Nessa visão, o filósofo defende um corpo

194
Rayane Monaliza da Nóbrega Oliveira / Rosie Marie Nascimento de Medeiros

concreto, palpável, em total contraposição aos corpos seráficos,


exaltados pela tradição filosófica.
Em total contraposição ao hedonismo vulgar difundido
na sociedade, o qual alimenta o egoísmo na busca do prazer
indiscriminado, o hedonismo aqui defendido cede lugar à alte-
ridade. Nessa perspectiva, há uma espécie de contrato entre as
relações interpessoais com fins de prazer no ato de reciproci-
dade, posto que “o desejo de prazer do outro ativa o movimento
em direção a si; a ativação do desprazer do outro desencadeia o
movimento inverso” (ONFRAY, 2010, p. 53). Tal contrato, então,
funda a relação ética.
Apesar da aparente facilidade em manter a devida rela-
ção ética, Onfray (2010) nos alerta sobre a existência de sanções
próprias ocasionadas pela quebra do contrato hedonista:

[...] A sanção, nessa ética imanente, é imedia-


ta. Nesse movimento browniano perpétuo,
Deus não julga, porque nada nem ninguém
julga, o resultado consiste apenas na deter-
minação de uma relação. A decomposição
de uma relação ou a sua solidificação, eis as
únicas consequências: nada além do bastan-
te concreto. Não é preciso, para isso, de um
terceiro celestial [...] (ONFRAY, 2010, p. 54).

Sendo assim, observamos que a ética hedonista atua


conforme os atos que causem o bem para ambas as partes envol-
vidas numa relação interpessoal; e caso seja violada, a mesma
lança suas sanções: trata-se da separação das partes envolvidas,
determinando a quebra do contrato.
Assim como existem aqueles indivíduos que quebram um
contrato hedonista, Onfray (2010) aponta para os que não têm
a capacidade de manter uma relação ética por possuir algum

195
Corpo Libertino: Por um Ideal Hedonista

tipo de problema, seja mental, seja patológico, seja um distúrbio


de comportamento, ou mesmo de outras ordens. Tais pessoas,
definidas pelo autor como “delinquentes relacionais”, acabam
sendo vítimas de um prejuízo social e ético.
Nessa ordem de ideias, a ética hedonista nunca será
estática, sendo, portanto, dinâmica, numa relação fixa com o
comportamento do outro. Por conseguinte, o outro é devedor
dos seus compromissos e responsável por seu lugar em meu
esquema ético (ONFRAY, 1999).
“Daí a imensidão de perspectiva que se abra diante do
hedonista: fundar uma moral, decidir arbitrariamente, subjeti-
vamente, sobre um bem e um mal, um belo e um feio” (ONFRAY,
1999, p. 240). Assim, observamos a inexistência de parâmetros
judicativos para o estabelecimento de ações humanas (como
boas ou más), de imagens (como bonitas ou feias), entre outros.
Portanto, cabe às pessoas decidirem seus pontos de vista, de
modo relativo e contratual, como sugere Onfray (2010).
Ao constatarmos a existência de um princípio ético
e moral que ancora o materialismo hedonista, é importante
esclarecer que a ética é assunto de corpo, e não da alma, com
bem enfatiza Onfray (2010). E ainda acrescenta: “sou meu corpo,
portanto, e nada mais. A moral provém dele” (ONFRAY, 2010,
p. 46). Nessa perspectiva, vemos um contraponto apontado pelo
filósofo no que diz respeito a sua visão de corpo em relação ao
trato dado pela tradição filosófica, que o separa da alma.
Nesse sentido, Onfray (1999) explica como a moral é acio-
nada de acordo com seu projeto hedonista:

Uma ação é moral quando permite a reali-


zação de um prazer. A ordem social, a ética
coletiva, a moral religiosa em nada interfe-
rem na decisão do hedonista. Ele é por si só

196
Rayane Monaliza da Nóbrega Oliveira / Rosie Marie Nascimento de Medeiros

sua própria lei. Abaixo, portanto, o Estado, a


Pátria ou a Religião (ONFRAY, 1999, p. 240-241).

Em suma, o hedonismo é considerado uma moral do


interesse, a única capaz de tomar o real como nos é dado, e
não como gostaríamos que fosse. Portanto, resta-nos gozar e
fazer gozar, na tentativa de dar sentido às relações que um
sujeito pode manter, primeiro, com ele mesmo, e posterior-
mente, com o outro, traduzindo um ato de reciprocidade na
busca do prazer (ONFRAY, 2010).
Nessa perspectiva, o corpo libertino se insere em tais
prerrogativas do Materialismo hedonista. Primeiramente, os
cinco sentidos são exaltados, pois são eles, em conjunto, que
nos provam as potencialidades do corpo. De um lado, o ideal
ascético exalta apenas os sentidos tradicionalmente nobres –
audição e visão –, os partidários do hedonismo encontram uma
função especial em todos os cinco sentidos. Desse modo, Onfray
(1999, p. 236) ressalta:

Os filósofos hedonistas celebram a festa


dos sentidos, não deixam nenhum de lado,
exacerbam os mais esquecidos, os mais
desprezados pelos contendores do corpo.
Sabem sentir, saborear, tocar, respirar, ouvir
e se alegram em fazer funcionar os mecanis-
mos sutis que permitem ao mundo fazer-se
formas, eflúvios, volumes, cores, perfumes,
sons, temperaturas. O sensível é sensual, a
pele do real merece cuidado.

Na perspectiva do ideal ascético, o corpo idealizado


remete à figura do anjo: puro, iluminado, assexuado, leve, e
sobretudo, imaterial. Porém, é incompatível com o mundo real,
e por isso, totalmente contrário ao corpo real. Este faz suas

197
Corpo Libertino: Por um Ideal Hedonista

necessidades fisiológicas, envelhece, morre; é composto de pura


matéria: de sangue e de nervos, de músculos e de linfa, de quilo
e de ossos (ONFRAY, 2010).
Para o declínio do anjo, a filosofia de Michel Onfray nos
apresenta o corpo libertino:

Corpo nominalista, ateu, encarnado, mecâni-


co – ainda que essa mecânica, muito mais sutil
do que os adversários espiritualistas afirmam,
mereça um aprimoramento conceitual e teóri-
co. Desmistifiquemos a carne, esvaziemo-la
dos fantasmas, das ficções e outras represen-
tações mágicas (ONFRAY, 2010, p. 103).

Em suma, partindo de ataques aos desígnios do ideal


ascético, que se contrapõe a qualquer evidência corporal,
Onfray traz em seus discursos e, sobretudo, em sua vivência
cotidiana, um corpo livre das amarras da moral cristianizada:
que clama pelos seus desejos; que sofre pelos pesares da própria
existência; que desfruta de paixões desmedidas; que tudo sente;
que precisa do outro; que vive momentos alegres; que não teme
a morte; enfim, que diz um grande Sim à vida presente, pois
com toda sua efemeridade pode nos propiciar grandes júbilos.
Finalmente, demarcamos um encontro de reconciliação
entre o corpo e a alma; embora estejamos convictos de que o
dualismo platônico e as religiões monoteístas continuarão atuan-
do para o perpétuo desprezo da nossa existência corporal. Somos
corpo, quer queira, quer não! E talvez um dia, corpo libertino.

198
Rayane Monaliza da Nóbrega Oliveira / Rosie Marie Nascimento de Medeiros

A ética do corpo na Educação Física

Com fins estéticos, a Educação Física intervém sobre o corpo,


intensificando o ideal da jovialidade. Possivelmente, este ideal
seja um fator que leve muitos de nós a temer à velhice. Talvez,
não estejamos preparados para encará-la, pois nossa existência
corporal é simplesmente atingida pela ilusão de que podemos
produzir um corpo, aliás, uma imagem, que seja capaz de sobre-
pujar o tempo. Não temos a pretensão de negar essa capacidade,
até admitimos a eficiência das ciências e da técnica nessa ideali-
zação, mas o que está em jogo é uma questão de ética, que inter-
fere diretamente na maneira pela qual encaramos o dia a dia.
De acordo com Santin (1995), a presença do homem no
mundo é marcada pelo seu corpo. Cada um possui uma imagem
corporal de si mesmo. Nesse contexto, há dois momentos que,
segundo o autor, talvez sejam os mais dramáticos. O primeiro
deles é demarcado pela perda da imagem corporal infantil
para então, ocorrer a construção de uma imagem adulta. Já
o segundo, o mais trágico, decerto, dá-se com o envelheci-
mento e, hoje mais ainda, a humanidade não aceita a imagem
envelhecida do corpo, haja vista que o envelhecimento denota
decadência e fim da prospectividade.
Para adentrarmos nessa questão do envelhecimen-
to, oportunizamos este espaço para pensarmos o que traz o
filme “Elsa e Fred: um amor de paixão”, dirigido por Marcos
Carnevale, lançado em 2005.
O referido filme retrata uma divertida história de amor
iniciada na velhice, entre os protagonistas “Elsa e Fred”. Ele é
um senhor recém-viúvo, de sorrisos contidos, que teve o senti-
do da existência perdido com a morte da sua esposa; encarava
a velhice como uma doença que o impedia de aproveitar os

199
Corpo Libertino: Por um Ideal Hedonista

efêmeros momentos da vida. Mas, passa por muitas transforma-


ções ao conhecer Elsa, uma senhora extrovertida, aventureira,
que vive de sonhos. A obra nos torna sensíveis ao exibir um casal
de idosos vivendo uma grande paixão, e muitas outras aventu-
ras, demarcando a quebra das convenções sociais.
Os protagonistas do filme nos proporcionaram uma inte-
ressante reflexão sobre a dor. Fred se sentia doente, e vivia suas
dores intensamente: tanto pela morte da esposa, quanto pelos
limites de seu corpo envelhecido, recusando qualquer tipo de
prazer. Já Elsa, que se encontrava realmente enferma, negligen-
ciava tanto seu estado de saúde (sem, no entanto, negá-lo) quan-
to as limitações da velhice, para então, desfrutar dos momentos
agradáveis. Este fato nos remete às reflexões de Serres (2004)
sobre as variações do corpo. Sabiamente, o autor discorre sobre
a dor. Em suas palavras:

Recusar a dor me parece tão perigoso quan-


to aceitá-la completamente. Nem a anestesia
triunfa sobre o valor moral da dor, nem a droga
sobre a resignação universal. [...] Como todo
sofrimento, a dor tem uma dupla face, positiva
e negativa: ela tortura e conforta, enfraquece e
enaltece, atrofia o corpo e o conhecimento até
destruí-los, enobrece o conhecimento e rein-
venta a saúde (SERRES, 2004, p. 40).

Desse modo, percebemos na personagem Elsa, um exemplo


desse pensamento do autor, visto que ela não se encontrava no
extremo (recusa ou aceitação), e sim, no entremeio que a permitia
superar o lado negativo da dor, para logo mais, reinventar sua
saúde. Já Fred, era completamente saudável, mas recusava seu
corpo, limitava-se. Serres (2004, p. 59) nos esclarece essa ques-
tão: “na quietude da saúde, o corpo ignora seu pertencimento, a

200
Rayane Monaliza da Nóbrega Oliveira / Rosie Marie Nascimento de Medeiros

capacidade integral de sua totalidade. [...] Só existem as síndro-


mes, o corpo sadio não diz uma palavra”. O corpo é dotado de
potencialidades e, portanto, pode nos surpreender.
Em grande parte das cenas, observamos uma resistência
de Fred com relação às propostas de Elsa, que durava o suficien-
te para ser desprezível, culminando num prazer consentido,
pois sua paixão por ela o fazia repensar suas decisões. Nesse
contexto, Serres (2004, p. 50) argumenta que

o coração nos atira justamente ao lugar em


que decididamente nos recusamos a ir. Esta
virtude desafia a sabedoria da mesma manei-
ra que o corpo sabe ir além da cabeça, não
importa o que ela pense”.

O final do filme retrata o momento em que Elsa realiza


seu maior sonho, a partir da ficção: repetir a cena do filme
“A Doce Vida”, no qual os personagens originais (os belos jovens
“Anita e Marcello”) declaram seu amor, num cenário belíssimo –
Fontana de Trevi, em Roma. Após a concretização de tal sonho,
Elsa morreu [...] feliz! Fred, que antes encarava a morte de sua
primeira esposa como perda do sentido de sua vida, agora visi-
tava o túmulo de Elsa sorrindo, lembrando dos momentos feli-
zes que juntos vivenciaram.
Recorrer a “Elsa e Fred” nos permitiu lançar um novo
olhar para a velhice, movimentar nossa percepção para ver de
outra maneira o culto ao corpo, a sabedoria de viver a vida. Elsa
nos deu lições de vida, mostrando-nos que a liberdade está na
nossa capacidade de sentir, de criar, e não, nas limitações de um
corpo marcado pelo tempo. Essa personagem representa as trans-
gressões sociais, cuja moral ancorada por princípios religiosos
mantém uma relação vertical com a humanidade, tentando tirar

201
Corpo Libertino: Por um Ideal Hedonista

de cena um corpo que sente, que sofre, que deseja, que ama,
enfim, que mantém uma linha tênue entre prazer e dor.
Para alavancar nossas discussões, Santin (1995) vai
propor a ética da estética3, na qual a subjetividade é condi-
ção primeira para sua atuação, portanto, a sensibilidade é seu
ponto fundamental. Precisamos lembrar que, no Ocidente, a
existência humana e a vida social são marcadas pela “dualida-
de excludente entre as razões da razão e as razões do coração”
(p. 36). Nesse sentido, o autor nos alerta para a emergência do
resgate da sensibilidade, enquanto conhecimento válido, e da
mesma forma, enquanto vida afetiva.
O autor ainda aponta o conjunto de apoios da ética da
estética, a partir de quatro momentos da pós-modernidade: o
primeiro deles diz respeito à construção do corpo. Nesse senti-
do, “cada sociedade tem suas próprias construções corporais
resultantes da estrutura e dos sistemas que a sustentam, que
podem ser de ordem religiosa, econômica ou política” (SANTIN,
1995, p. 41). O segundo é o hedonismo, cujo prazer é habitual-
mente limitado e controlado, tanto por princípios morais, como
também por regras sociais, inclusive políticas. Já aqui na ideia
da ética da estética, o mesmo consistiria num princípio filosófi-
co, superando assim, os antigos conceitos. O terceiro se trata da
tactilidade, o que faz com que os indivíduos se toquem uns aos
outros, não apenas numa construção corporal individual, mas,
sobretudo, com o outro. Por último, o tribalismo (ou a visão

3
A compreensão da expressão “ética da estética” foi construída pela compreen-
são, como capacidade de sentir, a partir do sentido mais original grego, de
aisthesis que significa sentir com o outro, experienciar emoções com os outros.
A ética da estética emerge, neste contexto pós-moderno de manifestações
de parâmetros e características sociais que se tinham deixado de lado e que
ganham espaço, cada vez mais na vida social. A importância que vai tomando
o imaginário, a paixão, o afetivo na vida social (SANTIN, 1995, p. 40).

202
Rayane Monaliza da Nóbrega Oliveira / Rosie Marie Nascimento de Medeiros

comunitária), na qual instala-se a heteronomia estrutural; em


outras palavras, minha lei é dada pelo outro, oportunizando
minhas experiências emocionais com o outro.
Aqui, já encontramos uma consonância com o
Materialismo Hedonista de Michel Onfray. Na perspectiva da
ética da estética, o hedonismo também é valorizado como um
princípio filosófico do prazer, em detrimento aos conceitos
vulgares que o limitam.
Parece-nos que nossa sensibilidade está sendo cada vez
mais esquecida do convívio com o outro. O estilo de vida das
pessoas contribui de modo significativo nessa perda: a pressa,
o estresse, a máquina, a internet, o comodismo, e muitos outros
fatores. Lutar a favor da nossa sensibilidade requer mudanças
que envolvem, sobretudo, nossa construção de corpo. Nessa
empreitada, buscamos na Educação Física um aporte que valori-
ze nossa capacidade de sentir. A construção do corpo na cultura
desta área tem nos distanciado do nosso pertencimento corpo-
ral. Portanto, é preciso que ela desenvolva sua intervenção a
partir da emergência da realidade do cotidiano.
Para tanto, Santin (1995) atenta para a necessidade de a
Educação Física seguir quatro passos, a saber: o primeiro passo é a
“capacidade comunicativa”. Ela precisa instaurar um diálogo com
os indivíduos através da linguagem do corpo: do movimento, da
gestualidade, da corporeidade. O segundo diz respeito à alfabe-
tização do homem corporal: a Educação Física precisa trabalhar
com a leitura do corpo, por meio da linguagem do sentimento,
da paixão, da emoção, assim como das necessidades, dos dese-
jos, da presença. Na opinião do autor, alfabetizar o homem para
aprender tal linguagem, constitui o cerne da ação pedagógica
da referida área. O terceiro passo seria atentar para a solidarie-
dade orgânica do ser vivo, estimulando a alteridade. Por fim, a

203
Corpo Libertino: Por um Ideal Hedonista

restauração do homem aestheticus, “cujas características perten-


cem à ordem da beleza, do gosto, do sentimento” (SANTIN, 1995,
p. 24). A Educação Física precisa assumir o desafio de acreditar
que o mesmo tem lugar no contexto do mundo de hoje.
Ao abordarmos a ética da estética, percebemos sua apro-
ximação com a ética hedonista proposta pelos ensinamentos do
Materialismo Hedonista de Michel Onfray. Em primeiro lugar,
há uma convergência no trato dado ao corpo. Ambas valorizam-
-no pelos sentidos. Alertam-nos pela emergência em conside-
rá-lo a partir da sensibilidade, em contraposição, ao dualismo
excludente que valoriza a mente, o inteligível.
Assim como propõe a ética em Michel Onfray, aqui, o
outro também é considerado. Ao propor a tactilidade, a ética
da estética induz à necessidade do outro, para que o tocar não
se reduza ao individualismo corporal. A alteridade em ambas é,
pois, fator fundamental para que o princípio ético da vida com
prazer, seja atuante e global.
Com a abordagem da ética da estética, não temos a
pretensão de abandonar o culto ao corpo. Não é este o alvo de
nossas críticas, mas sim, pensá-lo na perspectiva do cultivo de
si, na plenitude do bem viver a vida. A Educação Física pode
e deve engajar-se nesse novo cenário da ética; fundamentar
as práticas corporais tendo como pano de fundo a estética na
perspectiva da sensibilidade, em contraponto, à estética, ao
rendimento físico, e todos os meios que condicionam o corpo à
sua condição de máquina.

204
Rayane Monaliza da Nóbrega Oliveira / Rosie Marie Nascimento de Medeiros

Considerações finais

Como vimos, a ética do corpo na filosofia de Michel Onfray é


lúdica, ancorada pela busca do prazer, em sintonia com o prazer
do outro. Nesse contexto, o corpo se reconcilia com a mente
(portanto, a carne com o espírito) e passa a ser configurado:
corpo libertino, que goza e faz gozar. Corpo livre, ateu, que
transgride as convenções sociais. Corpo feito de matéria, que
toca e é tocado. Que tem o poder de conhecer através dos cinco
sentidos. Corpo que sente, que sofre, que deseja, que ama. Corpo
sujeito da existência, que ora se torna objeto da contingência.
Corpo que despreza a morte para desfrutar da vida. Enfim,
corpo sujeito a dor e ao prazer.
Esse contexto nos levou a pensar sobre a Educação Física,
na qual a ética do corpo se encontra em conformidade com a
idealização do belo. Logo, a velhice é temida, culminando na
busca de uma imagem corporal que possa sobrepujar a “cruel-
dade” do tempo. Nessa perspectiva, manter uma relação ética
com o corpo significa camuflá-lo da velhice, através dos meios
disponíveis que o manipulam a exemplo de um objeto.
Em total discordância com a ética do corpo jovem, busca-
mos refleti-la a partir da ética da estética, a qual valoriza a
subjetividade do indivíduo, logo, a sensibilidade. Portanto,
percebemos a urgência em resgatar a sensibilidade, não apenas
enquanto dimensão afetiva, mas também, enquanto conheci-
mento válido. Parece-nos, que tudo ao nosso redor conspira
contra tal resgate.
É nessa empreitada, que valorizamos a Educação Física,
impondo-lhe seu papel de intervir sobre o corpo, não a maneira
de uma máquina, mas no sentido de nos ensinarmos a linguagem
dos gestos, da expressividade. Estamos convictos de que esta

205
Corpo Libertino: Por um Ideal Hedonista

área vem apresentando avanços em suas discussões sobre as


questões éticas e estéticas do corpo, e consequentemente,
mudando o foco da transformação do corpo em máquina, para
seu ponto central: a sensibilidade.
Cada vez mais a Educação Física vem ganhando espa-
ço no meio acadêmico e social como prática pedagógica que
nos proporciona a sabedoria de viver a vida com felicidade
e prazer. Mas é importante que estejamos cientes de que a
jornada é longa, e nossa empreitada contra o culto ao corpo
está longe de ser sanada.

206
Rayane Monaliza da Nóbrega Oliveira / Rosie Marie Nascimento de Medeiros

REFERÊNCIAS

ELZA E FRED: um amor de paixão. Direção: Direção: Marcos


Carnevale. Espanha, Argentina, 2005. Cor. 108min.

NÓBREGA, T. P. da. O corpo e o movimento expressivo no cinema.


In: NÓBREGA, T. P. da. Aspectos sociofilosóficos da Educação
Física. Natal: Sedis/UFRN, 2013.

ONFRAY, Michel. A arte de ter prazer. Trad. Monica Stahel. São


Paulo: Martins Fontes, 1999.

ONFRAY, Michel. A potência de existir: manifesto hedonista.


Trad. Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

SANTIN, S. Educação Física: ética, estética e saúde. Porto Alegre:


Edições EST, 1995.

SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Trad. De Assis Carvalho,


Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand, 2004.

207
O CORPO NA EDUCAÇÃO FÍSICA:
REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA
DOCENTE A PARTIR DA
FENOMENOLOGIA DE
MERLEAU-PONTY1

Marcel Alves Franco


Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

Introdução

Iniciando estudos acerca do trato corporal, na educação brasi-


leira, percebemos que há em sua historiografia, o fenômeno do
controle sobre o corpo. Realizado por meio da vigilância, dos
castigos corporais, da higienização, pela padronização sugerida
pelas ginásticas e intervenções médicas, percebe-se que este
controle faz do corpo alvo e motivo de preocupações frequentes,
a exemplo da dificuldade de lidar com a heterogeneidade de
comportamentos, de modo de ser, de aprender.
Neste sentido, propomos uma pesquisa bibliográfica
que, segundo Gil (2002), parte da análise de material elabora-
do previamente, a exemplo de livros e artigos científicos. Com
isso, buscamos apresentar a compreensão de corpo de Maurice

1
Pesquisa financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Rio Grande do
Norte (FAPERN) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES).
Marcel Alves Franco / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

Merleau-Ponty, em especial na Fenomenologia da Percepção


(2011), tratar da temática da subjetividade encarnada e as possi-
bilidades de produção de conhecimento na Educação Física a
partir de seus interpretadores.
Nesse contexto, devemos esclarecer que o objetivo de
nossa pesquisa é discutir as implicações da fenomenologia
do corpo no âmbito da Educação Física, uma vez que, a partir
das reflexões de Merleau-Ponty, percebemos o corpo como ser
sensível e imbricado no mundo antes de qualquer teorização e
o diálogo com essa área do conhecimento como possibilidade de
transcendência do corpo puramente objetivo das ciências bioló-
gicas, ampliando nosso entendimento com a noção de corpo
próprio e de experiência vivida e promovendo um novo modo
de conceber a existência e a relação com os outros e com mundo.

Olhares para a educação:


ressignificando o lugar do corpo

Antes de tentarmos conceituar a educação, podemos antes reali-


zar um exercício de identificação do sentido que atribuímos a
ela a partir de nossas experiências. Após realizado tal exercício,
podemos problematizar e perceber que o fenômeno da educação
é polissêmico, ou seja, possui uma diversidade de significados.
Segundo Lalande (1993), é um procedimento que visa o
desenvolvimento do sujeito e das suas potencialidades; para
Libâneo (1990), educação refere-se ao desenvolvimento onilate-
ral da personalidade, o que engloba a formação física, moral,
intelectual e estética, a orientação da atividade humana, num
determinado contexto, em relação ao meio social; e na pers-
pectiva fenomenológica, o foco é a compreensão do sujeito em

209
O Corpo na Educação Física: Reflexões Sobre a Prática Docente
a Partir da Fenomenologia de Merleau-Ponty

relação com os outros e o mundo, assim, para Rezende (1990), é


percebida como aprendizagem da cultura a partir de uma estru-
tura complexa que engloba e entrelaça cada um de seus aspectos,
sejam eles econômicos, sociais, culturais, orgânicos, psicológicos,
e, além disso, assegura que em uma determinada análise apenas
um destes seja ressaltado, todos remeterão uns aos outros e ao
todo da estrutura por não serem nunca desassociados.
Nesse sentido, afirmamos aqui que compartilharemos o
caminho da perspectiva fenomenológica da educação. Portanto,
devemos considerar que a aprendizagem será caracterizada
humana quando esta não for limitada ou reduzida. Segundo
Rezende (1990, p. 49-50), o corpo fora considerado “animal,
mecânico, sociológico, econômico, ideológico” e, em se tratar
da educação, da mesma forma será seu desenvolvimento, ou
seja, segmentado e desassociado.
Seguindo essa lógica, é possível nos questionarmos acer-
ca de como conceber a aprendizagem nesta perspectiva? Para
refletirmos sobre esta questão, podemos recorrer à Nóbrega
(2005), quando busca fundamentos nos estudos das ciências
cognitivas e da inteligência artificial e nas repercussões dos
estudos de Merleau-Ponty para abordar esta temática.
A autora, Nóbrega (2005), questiona a relação entre as ciên-
cias à época de Merleau-Ponty e reconfigurando a complexidade
dos processos corporais, da relação percepção/movimento na
interpretação da realidade, para a construção do conhecimento.

À época de Merleau-Ponty, não havia


comunicação entre as ciências – neurologia,
psicanálise, psicologia, inteligência artificial,
entre outras, diferente do que acontece hoje.
Entretanto, sua reflexão permanece válida
e atual: ao enfatizar a experiência vivida,

210
Marcel Alves Franco / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

possível pela corporeidade, os estudos


iniciais sobre uma nova abordagem do
sistema nervoso, diferentemente da tradição
positivista; o sentido do corpo em movimento,
configurando uma percepção que, ao inter-
pretar a realidade via motricidade, desloca
o sujeito como epicentro do conhecimento,
privilegiando a complexidade dos processos
corporais (NÓBREGA, 2005, p. 606).

Neste breve recorte, podemos observar alguns conceitos


abordados por Merleau-Ponty que possibilitaram uma forma
diferente de observar e realizar as diversas ciências e o conhe-
cimento que delas se construía, tais como: corpo, percepção,
experiência vivida e motricidade.
A saber, para Merleau-Ponty (2011), a fenomenologia
repõe as essências na existência e, além disso, considera a
pré-reflexividade do corpo, ou seja, vive-se as experiências na
relação originária com o mundo. Essa noção implica no fato de
antes de realizarmos a ação de refletir, o corpo já se faz presen-
te, habitando o espaço, o mundo, e não meramente ocupando-o
como uma coisa, um objeto.

O mundo está ali antes de qualquer análise que


eu possa fazer dele, e seria artificial fazê-lo
derivar de uma série de sínteses que ligariam
as sensações, depois os aspectos perspecti-
vos do objeto, quando ambos são justamente
produtos da análise e não devem ser realizados
antes dela (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 5).

Desse modo, concordamos com Santos (2012) ao perce-


ber que em todo ato educativo há um princípio norteador que
fundamenta sua prática. Para este autor, o corpo próprio pode
ser reconhecido como um desses princípios. Resultado de sua
tese doutorado, o autor afirma:

211
O Corpo na Educação Física: Reflexões Sobre a Prática Docente
a Partir da Fenomenologia de Merleau-Ponty

O Corpo Próprio nada tem a ver com o corpo


que a ciência estuda como objeto. As ciências
do corpo, a Biologia, a Medicina, a Psicologia,
a Fisiologia, entre outras, procuram conhe-
cer os mecanismos, as leis e os processos que
regem seu funcionamento. É um corpo tratado
segundo as regras capazes de serem cientifi-
camente justificadas ou verificadas. Por outro
lado, o Corpo Próprio é conhecido somente
por aquele que faz ele próprio a experiência
de sentir. Essa vivência não se dá apenas com
um indivíduo, mas com tudo aquilo com que
ele se relaciona (SANTOS, 2012, p. 81).

Esta assertiva reforça o argumento de Nóbrega (2005)


quando trata da cognição como dependente da experiência.
Para esta autora, somos corpos em movimento: de perceber,
de sentir, de conhecer, de existir. E todos eles se emergem da
corporeidade. Sobre isso, a autora aborda o conceito de enação,
assegurando significar que “os processos sensório-motores,
percepção e ação, são essencialmente inseparáveis da cogni-
ção” (NÓBREGA, 2005, p. 606).

A cognição emerge da corporeidade, expres-


sando-se na compreensão da percepção como
movimento e não como processamento de
informações. Somos seres corporais, corpos
em movimento. O movimento tem a capacida-
de não apenas de modificar as sensações, mas
de reorganizar o organismo como um todo,
considerando ainda a unidade mente-corpo.
Essa proposição geral sobre a percepção se
aproxima da apropriação enactiva, na qual a
cognição é inseparável do corpo, sendo uma
interpretação que emerge da relação entre o
eu e o mundo, corpo e mente, nas capacida-
des do entendimento. [...] A mente não é uma
entidade “des-situada”, desencarnada ou

212
Marcel Alves Franco / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

um computador, também a mente não está


em alguma parte do corpo, ela é o próprio
corpo. Essa unidade implica que as tradicio-
nais concepções representacionistas se enga-
nam em colocar a mente como uma entidade
interior, haja vista que a estrutura mental é
inseparável da estrutura do corpo (NÓBREGA,
2005, p. 606-607).

Devemos assegurar, de antemão, que o estudo sobre o


corpo próprio implica diretamente nas noções de motricidade,
intencionalidade, sexualidade, espacialidade, entre outras, as
quais compõem um novo ponto de ressignificação do corpo.
Na seção a seguir, abordaremos o corpo próprio do qual trata
Merleau-Ponty e a temática da subjetividade encarnada a
partir da literatura.

O corpo próprio: aportes conceituais


para prática docente

Com a proposição de Merleau-Ponty (2011), iremos refletir sobre


os elementos que constituem sua noção de corpo próprio, com
os estudos de Nóbrega (2005), Santos (2012) e Caminha (2012)
e Dentz (2008) iremos abordar as temáticas do corpo e subjeti-
vidade e de Gonçalves (2012) para assegurar a importância de
nossas discussões na prática docente.
Para compreendermos o que Merleau-Ponty aborda,
temos que assumir uma atitude fenomenológica, em outras
palavras, isso implica não em esquecer da construção cientí-
fica que fora construída até então, mas em nos perceber como
sujeitos de experiência, pôr os pés no mundo dado antes das

213
O Corpo na Educação Física: Reflexões Sobre a Prática Docente
a Partir da Fenomenologia de Merleau-Ponty

postulações racionais e empíricas para fim de reconhecermos


a constituição do corpo próprio.

A experiência revela, sob o espaço objetivo,


no qual finalmente o corpo toma lugar, uma
espacialidade primordial da qual a primeira
é apenas o invólucro e que se confunde com o
próprio ser do corpo. Ser corpo, nós o vimos,
é estar atado a um certo mundo, e nosso corpo
não está primeiramente no espaço: ele é no
espaço (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 205).

Em Merleau-Ponty, pensar o corpo é pensar nossa exis-


tência e o movimento é subjetividade em ação. É a intenciona-
lidade do ser em direção a si mesmo, ao outro e ao mundo. E
para compreendermos melhor a intencionalidade, é necessário
refletirmos sobre o que o filósofo aborda acerca da motricidade.
Para o filósofo, o movimento do corpo condiz a um ato
intencional de solicitação do mundo, é pensamento em ação, é
a realização de nossos projetos por meio de nossa corporeidade.
Dessa forma, o sujeito ao movimentar-se, reorganiza seu esque-
ma corporal, conhece suas possibilidades expressivas e recria
em torno si um contexto simbólico o qual podemos situar como
cultural. Neste sentido, a motricidade, para Merleau-Ponty,

não é como uma serva da consciência, que


transporta o corpo ao ponto do espaço que
nós previamente nos representamos. Para
que possamos mover nosso corpo em direção
a um objeto, primeiramente é preciso que o
objeto exista para ele, é preciso então que
nosso corpo não pertença à região do “em si”
(MERLEAU-PONTY, 2011, p. 193).

214
Marcel Alves Franco / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

Além disso, pensar o corpo em movimento é também refle-


tir sobre a sua espacialidade e sua temporalidade. A condição
do corpo não é de ocupar um lugar, um espaço ou o tempo, mas
este os habita, existe neles e se relaciona com eles. O espaço é
explorado, é tido como possibilidade de interação do corpo com
o mundo e que não possuem limites de formas para tal relação.
No tocante à temporalidade, Merleau-Ponty (2011) critica
a construção do tempo de forma linearizada, como se fosse algo
causal. Para o corpo próprio, esse processo não acontecesse
de forma desligada da experiência vivida. Meu passado não é
desligado do presente, nem do meu futuro. O porvir influencia
diretamente minha vida e meu modo de ser no mundo no agora.
O passado pode contar minha história, no entanto, a imensidão
de informações e possibilidades de interpretações assumem a
forma singular de minha existência me fazendo seu único teste-
munho. Desse modo, assegura Merleau-Ponty (2011, p. 194-195):

Cada momento do movimento abarca toda


a sua extensão, e em particular o primei-
ro momento, a iniciação cinética, inaugura
a ligação entre um aqui e um ali, entre um
agora e um futuro, que os outros momentos se
limitarão a desenvolver. Enquanto tenho um
corpo e através dele ajo no mundo, para mim o
espaço e o tempo não são uma soma de pontos
justapostos, nem tampouco uma infinidade de
relações das quais minha consciência operaria
a síntese e em que ela implicaria meu corpo:
não estou no espaço e no tempo, não penso
o espaço e o tempo; eu sou no espaço e no
tempo, meu corpo aplica-se a eles e os abarca.

215
O Corpo na Educação Física: Reflexões Sobre a Prática Docente
a Partir da Fenomenologia de Merleau-Ponty

Além desses elementos, Merleau-Ponty (2011) aborda a


temática da expressividade, do corpo enquanto fala e lingua-
gem e a sexualidade como constituintes do ser humano e não
apenas funções do mesmo. No tocante ao corpo como ser de
linguagem, o filósofo afirma que este é potência aberta e inde-
finida de significar, ou seja, apreende e comunica um sentido:

fato último pelo qual o homem se transcende


em direção a um comportamento novo, ou em
direção ao outro, ou em direção ao seu próprio
pensamento, através de seu corpo e de sua fala
(MERLEAU-PONTY, 2011, p. 263).
Melhor do que nossas observações sobre a
espacialidade e a unidade corporais, a análi-
se da fala e da expressão nos faz reconhecer a
natureza enigmática do corpo próprio. Ele não
é uma reunião de partículas das quais cada
uma permaneceria em si, ou ainda um entre-
laçamento de processos definidos de uma
vez por todas – ele não está ali onde está, ele
não é aquilo que é – já o vemos secretar em si
mesmo um ‘sentido’ que não lhe vem de parte
alguma, projetá-lo em sua circunvizinhança
material e comunicá-lo aos outros sujeitos
encarnados. [...]. Não se via que, para poder
exprimi-lo, em última análise o corpo precisa
tornar-se o pensamento ou a intenção que ele
nos significa. É ele que mostra, ele que fala [...]
(MERLEAU-PONTY, 2011, p. 267).

No tocante à sexualidade, esta não é aquela função do


ser humano que condiz somente à capacidade reprodutiva dos
órgãos; mais além, ela é movimento intencional e produtora e
representadora de significações do sujeito. Pode-se se dizer, neste
sentido, que a experiência vivida da sexualidade, ou da ausência
dela, abarca a função reprodutiva, mas também a intimidade

216
Marcel Alves Franco / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

do ser no mundo e todos os seus sentidos e significados, suas


paixões, amores, prazeres e desprazeres. É uma relação carnal
entre o sujeito e seu mundo e com aqueles que o compõem.

Se no homem a sexualidade fosse um aparelho


reflexo autônomo, se o objeto sexual viesse
afetar algum órgão do prazer anatomica-
mente definido, o ferimento cerebral deveria
ter como efeito liberar esses automatismos e
traduzir-se em um comportamento sexual
acentuado. [...] É preciso que exista, imanen-
te à vida sexual, uma função que assegure seu
desdobramento, e que a extensão normal da
sexualidade repouse sobre as potências inter-
nas do sujeito orgânico. É preciso que exista
um Eros ou uma Libido que animem o mundo
original, dêem valor ou significação sexuais
aos estímulos exteriores e esbocem, para cada
sujeito, o uso que ele fará de seu corpo objetivo
(MERLEAU-PONTY, 2011, p. 215).

Dessa maneira, o que seria então a subjetividade para


esta perspectiva? Segundo Caminha (2012) a subjetividade tem
como base o soma, o corpo. Este autor discute a perspectiva do
corpo e a experiência de existir enquanto “eu” e “nós” e que
se sustenta na premissa de que “o corpo pode ser considerado
como dotado de existência subjetiva” (CAMINHA, 2012, p. 23).
Também interpretador da filosofia de Merleau-Ponty,
Caminha (2012) propõe os movimentos do corpo como subje-
tivos, como movimentos intencionais realizados pelo corpo
condizentes à expressão de um modo de existir.

A força criadora dos movimentos intencionais


é instituída nas relações do corpo próprio,
considerado em sua existência singular,
com outros corpos, concebidos como “eus”

217
O Corpo na Educação Física: Reflexões Sobre a Prática Docente
a Partir da Fenomenologia de Merleau-Ponty

encarnados na historicidade. A emergência de


uma forma de vida experimentada pelo corpo
que constitui a subjetividade em permanente
elaboração, é fundamentalmente, intersub-
jetiva. Nesse sentido, devemos pensar que o
próprio corpo experimenta uma existência
subjetiva como coexistência sociocultural
(CAMINHA, 2012, p. 23).

Longe de tentar uma conceituação única e plenamente


verdadeira, Dentz (2008), refere-se à subjetividade como campo
expressivo de realização pessoal do Eu. Segundo este autor, a
subjetividade humana

se realiza comunicando-se e expressando-se na


visibilidade do corpo e na realidade concreta
do mundo. A este movimento expressivo e
comunicativo se denomina o “revestimento
do corpo de significações humanas”, ou subje-
tivação, fora do qual não há nem consciência
“humana”, nem mesmo “corpo humano”
(DENTZ, 2008, p. 2).

Na interpretação deste autor, o corpo vivido é subjetivi-


dade. É relação do ser humano consigo mesmo, com o outro e
com o mundo. É a manifestação do comportamento, das inten-
ções, é o corpo próprio do qual trata Merleau-Ponty:

O si, o eu mais íntimo, mais subjetivo se puder-


mos falar assim, não é mais um Cogito, mas
uma afetividade vivida, em razão do entrela-
çamento (‘chiasma’ no discurso merleaupont-
yano) ou junção-engajamento do corpo com o
mundo (DENTZ, 2008, p. 4).

218
Marcel Alves Franco / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

Portanto, tomando esse conhecimento do corpo próprio


como subjetividade encarnado, iremos agora discutir possíveis
implicações no contexto da Educação Física.

O trato corporal e a prática docente

Para este momento, nos reservamos o direito de descrever algu-


mas experiências pessoais e profissionais que representarão
uma forma comunicativa que nos auxilia a compreendermos a
abrangência dos sentidos e das possibilidades de interpretações.
No caso da Educação Física, experiências relativas à fase
escolar nos fazem refletir sobre os objetivos dessas aulas, o que
nos proporcionaram e como estas eram realizadas. O correr
era um ato de felicidade, de espontaneidade, de ludicidade.
A mais pura e bela sensação da liberdade. Chutar uma bola,
subir numa árvore, sorrir junto de colegas, que talvez hoje
nem lembremos mais os nomes.
Quando criança, recebíamos orientações do professor,
durante a atividade, que por vezes a facilitava e outras a dificulta-
va. Nos fazer parar para pensar em uma aula de Educação Física?
Esse questionamento, aparentemente ingênuo e dicotômico, é o
ponto de partida do problema ao qual nos propomos a refletir.
Segundo Gonçalves (2012), a educação é uma prática siste-
mática que atua sobre indivíduos e grupos e que visa a forma-
ção da personalidade e a participação na sociedade. Mas, o que
aprendemos nessas aulas? O estereótipo que criticamos refe-
re-se àquela Educação Física que não se desenvolve a ponto
de seus alunos terem experiências significativas, ou que,
pelo menos, não os auxilia a construir um sentido para dadas
situações, gestos, movimentos que realizam com seu corpo e

219
O Corpo na Educação Física: Reflexões Sobre a Prática Docente
a Partir da Fenomenologia de Merleau-Ponty

a estabelecerem relações com o contexto social e cultural se


restringindo apenas à repetição técnica de gestos esportivos
num único contexto que não estimula a criatividade, a expres-
sividade e, consequentemente, as possibilidades relacionar-se
e de conhecer a si mesmo.
Nesse sentido de Educação, essa mesma autora alerta que

A Educação transformadora busca promover


a liberdade pessoal, levando o aluno a um
autoconhecimento que lhe possibilite superar
suas próprias contradições, desenvolvendo a
capacidade de compreender a si mesmo e a
seu mundo, desvelando as mútuas relações
que, tanto em nível pessoal como social, são
historicamente condicionadas (GONÇALVES,
2012, p. 127).

Dessa forma, percebemos que não são todos os alunos


contemplados por tal Educação. Cada escola tem a sua reali-
dade, sua forma de compreender o corpo, sua Educação Física,
mas, ainda assim, é preciso, como responsabilidade acadêmi-
ca, produzirmos novos significados para a prática docente dos
futuros professores. E é o que Gonçalves (2012, p. 128) aborda
ao referir a Educação como promoção de liberdade que busca
o desenvolvimento da criatividade:

Todo homem possui a capacidade de criar,


pois nenhuma situação existencial se repe-
te exatamente ao mesmo tempo, e a cada
momento o novo criado, não sendo nunca
nossas ações repetíveis em sua integridade.
A criatividade está ligada, então, à capa-
cidade de perceber, em cada situação, o
elemento novo. Podemos repetir ações que
em situações semelhantes nos permitiriam

220
Marcel Alves Franco / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

atingir os objetivos propostos, no entanto,


por mais semelhante que seja a situação,
nunca é a mesma, exigindo sempre uma
reorganização de nossas formas de compor-
tamento. Criatividade é, assim, a capacida-
de de interpretar de novas formas as novas
situações, agindo de forma construtiva, de
modo a adequar nossas ações ao desenrolar
da situação, que se modifica a cada instante,
e ao objetivo proposto.

Retomando as experiências, agora fora do contexto esco-


lar, podemos ver nas práticas corporais, por exemplo, a relevân-
cia de gestos técnicos, repetidos inúmeras vezes para fim de
eficiência, sejam arremessos, nadando, dançando e da mesma
forma, a da espontaneidade e da expressividade na realização
de um gesto comunicativo, para ampliar as possibilidades do
nosso ser em se relacionar com o mundo e os outros.
No entanto, o significado que damos, mesmo aos gestos
técnicos, reforçam a subjetividade, a intencionalidade indivi-
dual. É possível, até mesmo em equipes grandes, os jogadores
não possuírem o mesmo objetivo, o que reforça a ideia de que
os sentidos e significados que estes dão às suas práticas serem
totalmente diferentes.
Numa representação artística, seja dança, teatro, ginásti-
ca artística, ou até mesmo, um sorriso ou uma lágrima, a comu-
nicação é estabelecida a partir do nosso corpo. Assim, é possível
também de criarmos inúmeras relações num mesmo instante,
se pensarmos numa apresentação de palco ou um filme que
assistimos. Os sentidos que damos a determinadas cenas, gestos,
ao contexto, e até mesmo à nossa presença nessas situações, são
individuais, mas que transcendem ao coletivo.
No âmbito da Educação Física, podemos perceber a impor-
tância dessas questões no apelo de Soares (2005, p. 59-60) quando

221
O Corpo na Educação Física: Reflexões Sobre a Prática Docente
a Partir da Fenomenologia de Merleau-Ponty

ressalta a experiência do prazer do corpo e de possíveis mudan-


ças na percepção que temos de nossas próprias ações, principal-
mente se a considerarmos no contexto da prática docente.

Afirmar a positividade e o prazer do corpo


em movimento talvez leve à ref lexão de
nossas ações cotidianas e as mudanças na
percepção de gestos bastante singelos como
caminhar para observar paisagens, preocu-
par-nos menos com o número de voltas que
damos nos parques e mais com as pessoas, as
flores e folhas que encontramos, com o canto
dos passarinhos, com a luz do sol e o brilho
que causa quando se projeta sobre a paisagem;
sentir mais as diferenças de temperatura do
ar batendo no nosso rosto, a carícia do vento,
do que os segundos levados para percorrer
uma determinada distância; subir montanhas
para olhar o horizonte, a vegetação, ouvir os
sons do próprio silêncio que estes lugares
propiciam. Mergulhar em águas não apenas
para vencer o cronômetro, mas para experi-
mentar os movimentos do corpo num meio
líquido que não precisa ser retangular, nem
“semi-olímpico” para propiciar as experiên-
cias de deslizar sobre a água, uma experiência
humana muito antiga, encontrada inclusive
em pinturas rupestres em diferentes partes
do mundo, portanto, uma movimentação
humana, prazerosa e, ao mesmo tempo, utili-
tária em épocas remotas e anteriores aos
“estilos” de natação e à imposição dos cronô-
metros. Talvez caminhar mais, subir mais
escadas, andar a pé, dançar e, evidentemen-
te, praticar algum esporte, freqüentar algu-
ma academia, mas, atento para não embarcar
ingenuamente na cultura da performance e da
competição desenfreada em nome da manu-
tenção da saúde, idéias inseridas na cultura
de movimento domesticada pelo esporte de
alto rendimento.

222
Marcel Alves Franco / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

Levando em consideração a ideia de que nossas ações,


mesmo antes de serem pensadas, são vividas por nós, autores
como Santos (2012), propõem que a construção de sentido se
inicia em nossa relação com o mundo e com os outros, num
entrelaçamento, e que esta consciência integradora fundamen-
ta o papel do professor.

O ser professor, na perspectiva fenomenoló-


gica, requer posturas flexíveis e reflexivas
de repensar esse mundo/vida, de propor o
exercício da criatividade, de inovar perante o
movimento próprio do ser, de estar, de pensar e
de fazer. De estimular a sensibilidade, de estar
atento ao percebido, de reafirmar o sentido
na mediação pedagógica, para transcender
os limites circundantes no contexto educati-
vo. Dessa maneira, a educação atual já possui
a mentalidade necessária para compreender
a importância de princípios educativos que
promovam o poder subjetivante do corpo.
Assim, nós, educadores, temos o compromisso
de despertar a inteligências, criar as condições
de interpretadores do mundo em sua complexi-
dade, aflorar as potencialidades do aprendiz e
auxiliá-lo nas suas escolhas dentro do contexto
sócio educacional (SANTOS, 2012, p. 85).

Pensar as possibilidades do corpo na educação nos coloca


numa situação, enquanto educadores, de nos questionar acerca
do que fazemos conosco. Nossos hábitos, rotinas, (des)cuida-
dos, que movimentos realizamos e de que forma nos colocamos
numa atitude de renovação, de ampliação de nossa percepção
para com o nosso próprio corpo e as nossas potencialidades que
talvez ainda nem tenham sido descobertas.

223
O Corpo na Educação Física: Reflexões Sobre a Prática Docente
a Partir da Fenomenologia de Merleau-Ponty

Assim, como aponta Merleau-Ponty (2011), a fenomenolo-


gia representa uma forma de reaprendermos a olhar o mundo.
A experiência vivida de cada professor constitui a sua subjetivi-
dade que é imbricada no corpo, em sua carne, num determinado
contexto e que manifesta seu modo de ser. Reavivar movimen-
tos que executávamos apenas na infância, na adolescência,
talvez nos permita uma de ampliação de nosso conhecimento
sobre nós mesmos e que terá implicações diretas na forma como
nos relacionamos com nossos alunos, como os percebemos e nos
auxiliará a compreender de forma mais complexa o modo de ser
no mundo de cada um deles, estabelecendo uma comunicação
respeitosa quanto a condição de singularidade.

Considerações finais

Retomando os questionamentos da seção anterior, podemos


afirmar que a filosofia de Merleau-Ponty nos auxilia a perce-
bemos o corpo – o nosso próprio, inclusive – de maneira viva,
significativa, e literalmente repor a essência na existência. Para
com a prática docente, refere-se a uma atitude frente a nós
mesmos de não nos considerarmos prontos, mas sempre num
movimento de abertura às novas descobertas, novas formas de
nos relacionarmos com o mundo e os outros.
Se indagarmos qual a importância de ressignificar o corpo
para o contexto da educação, podemos recorrer à Mendes (2007,
p. 138), quando esta defende uma educação que valorize a vida e o
despertar de diferentes sentidos. Uma educação que tem o corpo
como lugar, como ponto de partida e horizonte de possibilidades.
Desse modo, a autora aponta para uma educação que

224
Marcel Alves Franco / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

valorize a vida, os amores, a diversidade de


atrações sexuais, a energia que liga os seres
humanos com o restante da natureza, bem
como a superação de obstáculos que surgem
no dia a dia. Uma educação que valorize os
jogos, as danças, as lutas, os esportes e as
ginásticas como conhecimentos, como cons-
truções culturais, como possibilidade de
despertar diferentes sentidos e também de
aceitar a morte, ao contribuir com o prolon-
gamento da vida.

Viver o corpo enquanto educador é restabelecer nosso


movimento de conhecer a infinidade de horizontes proporcio-
nados pela relação que temos conosco, com o mundo e com
os outros. É nos permitir reconsiderar a forma como a educa-
ção vem se estabelecendo e, principalmente, o modo como a
compreendemos e a realizamos em nosso cotidiano. Se abrir
para a condição de aprendiz do mundo através do corpo e das
experiências vividas. Pensar a sala de aula não como um quadro
onde os alunos são sempre pintados sentados, sem vida, sem
cor. Mas, cada um à sua maneira, seu modo de ser, utilizando
a cor que quer, expressando liberdade em sua singularidade
corpórea, intersubjetiva, existencial.

225
O Corpo na Educação Física: Reflexões Sobre a Prática Docente
a Partir da Fenomenologia de Merleau-Ponty

REFERÊNCIAS

CAMINHA, I. O. O corpo e a experiência de existir enquanto “eu”


e “nós”. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL CORPO E CULTURA DE
MOVIMENTO, 3., 2012, Natal. Anais... Natal: UFRN, 2012. p. 23-26.

DENTZ, R. A. Corporeidade e subjetividade em Merleau-Ponty.


Intuitio, Porto Alegre, v.1, n. 2, p. 296-307, nov. 2008.

GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo:


Atlas, 2002.

GONÇALVES, M. A. S. Sentir, pensar, agir: corporeidade e


educação. 15. ed. Campinas: Papirus, 2012.

LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico de filosofia. São


Paulo: Martins Fontes, 1993.

LIBÂNEO, A. C. Didática. São Paulo: Cortez, 1990.

MENDES, I. B. S. Mens sana in corpore sano: saberes e práticas


educativas sobre o corpo e saúde. Porto Alegre: Sulina, 2007.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. Tradução


Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 4. ed. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2011.

NÓBREGA, T. P. da. Qual o lugar do corpo na educação? Notas sobre


conhecimento, processos cognitivos e currículo. Revista Educação
& Sociedade, v. 26, n. 91, p. 599-615, maio/ago. 2005.

226
Marcel Alves Franco / Maria Isabel Brandão de Souza Mendes

REZENDE, A. M. Concepção fenomenológica da Educação. São


Paulo: Cortez, 1990.

SANTOS, A. M. O corpo próprio como princípio educativo a partir


da perspectiva fenomenológica de Merleau-Ponty. In: COLÓQUIO
INTERNACIONAL CORPO E CULTURA DE MOVIMENTO, 3., 2012.
Natal. Anais... Natal: UFRN, set. 2012. p. 78-85.

SOARES, C. L. Práticas corporais: intervenção de pedagogias? In:


SILVA, A. M.; DAMIANI, I. R. Práticas corporais. Florianópolis:
Nauemblu Ciência & Arte, 2005. (Gênese de um Movimento
Investigativo em Educação Física, v. 1).

227
SOBRE OS AUTORES
E OS ORGANIZADORES

Aguinaldo Cesar Surdi


Possui graduação em Educação Física pela Universidade
Federal de Santa Maria, bem como graduação em Filosofia
pela Universidade do Oeste de Santa Catarina. Mestrado em
Educação Física pela Universidade Federal de Santa Catarina
e doutorado em Educação Física pela mesma instituição.
Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte no
Departamento de Educação Física. Professor permanente do
Programa de Pós-graduação em Educação Física e coordena-
dor do curso de licenciatura em Educação Física. Experiência
na área de Educação Física e Filosofia, atuando principalmen-
te com temas relacionados ao brincar e ao movimentar-se na
escola, filosofia do movimento humano, formação continuada
de professores de Educação Física e discussões relacionadas
ao lazer e ao trabalho.

Angela Brêtas Gomes dos Santos


Possui graduação em Educação Física pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro e especialização em Psicomotricidade
pela Universidade Estácio de Sá. Mestrado em Educação pela
Universidade Federal Fluminense e doutorado em Educação pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Desenvolve pesquisas
na área da História da Educação Física e do Lazer discutindo,
mais especificamente, o lazer operário na primeira metade do
século XX. Atualmente, é vice-diretora e professora adjunta da
Sobre os Autores e os Organizadores

Escola de Educação Física e Desportos da Universidade Federal


do Rio de Janeiro (EEFD/UFRJ). Coordenadora do Grupo
ESQUINA: Cidade, Lazer e Animação Cultural sediado na EEFD/
UFRJ, desenvolve projetos de extensão na área do envelhecimen-
to, além de coordenar Projeto de Extensão de Educação Física
na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Integra o Laboratório
Multidisciplinar de Pesquisas do Envelhecimento (LAMPE). Tem
experiência na área de Educação Física atuando principalmente
nos seguintes temas e áreas: lazer, ludicidade, prevenção de
quedas de adultos e idosos, bem como relação entre Educação
Física e Educação de Jovens e Adultos.

Antônio de Pádua dos Santos


Possui graduação em Educação Física pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN), especialização em Educação
Motora na Escola pela mesma instituição. Mestrado em Ciências
Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e
doutorado em Educação pela mesma Universidade. Professor
de Educação Física da UFRN, desenvolve pesquisas teórico-em-
píricas no campo do esporte, com abordagem no imaginário
radical, nas representações sociais e na subjetividade.

Hosana Claudia Matias


Possui graduação e mestrado em Educação Física pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Atualmente,
é professora assistente da Universidade Federal da Paraíba e
coordenadora pedagógica do Colégio Nossa Senhora das Neves.
Tem experiência na área de Educação Física, com ênfase em
ginástica rítmica e dança.

229
Sobre os Autores

Hudson Pablo de Oliveira Bezerra


Possui graduação em Educação Física pela Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Doutorando em
Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
mestre em Educação Física pela mesma Universidade. Professor
de Educação Física no Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN). Atua principalmen-
te em temas e áreas: Educação, cultura, corpo, saúde, mídia,
esportes e Educação Física Escolar.

José Pereira de Melo


Possui graduação em Educação Física pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), especialização em
Educação Física Escolar pela mesma instituição, mestrado e
doutorado em Educação Física pela Universidade Estadual de
Campinas. Pós-doutorando do Programa de Pós-graduação em
Educação da Universidade do Estado do Pará (PPGED/UEPA).
Atualmente, é professor titular da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, vinculado ao Departamento de Educação
Física. É professor permanente dos programas de pós-gradua-
ção em Educação e em Educação Física (acadêmico e profissio-
nal), ambos da UFRN. Tem experiência na área de Educação
Física Escolar, na pedagogia do esporte e na formação de
professores, tendo sua produção intelectual centrada na publi-
cação de artigos, livros e capítulos de livros que versam sobre
a Educação Física Escolar, Corpo e Aprendizagem, formação de
professores e projetos sociais na escola. Coordenador do Grupo
de Pesquisa Corpo e Cultura de Movimento (GEPEC). Avaliador
do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
(INEP). Diretor do Complexo de Esportes e Eventos da UFRN

230
Sobre os Autores e os Organizadores

(COESPE) e diretor de atividades estudantis da Pró-Reitoria de


Assuntos Estudantis (PROAE/UFRN).

Judson Cavalcante Bezerra


Possui graduação em Educação Física pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN), mestrado em Educação Física
pelo Programa de Pós-graduação em Educação Física da mesma
instituição. É vinculado ao Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura
de Movimento (GEPEC/UFRN) desde agosto de 2010, desen-
volvendo pesquisas nas áreas de Políticas Públicas Sociais e
Educação Física Escolar, além de estudos relativos ao fenôme-
no de Esportivização da Vida. Experiência na área de Educação
Física, com ênfase em Educação Física Escolar, jogo, lúdico,
esporte e projetos sociais.

Mackson Luiz Fernandes da Costa


Possui graduação em Educação Física pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte e mestrado em Educação Física pela
mesma instituição. Atualmente, é doutorando do Programa
de Pós-graduação em Educação (UFRN). Professor do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do
Norte. Atuou como professor temporário do Departamento de
Educação Física da UFRN e, desde 2013, atua na Secretaria de
Ensino a Distância (SEDIS/UFRN). Tem experiência na área de
Educação Física, com ênfase em Educação Física e Educação,
atuando principalmente nos seguintes temas: Educação Física
Escolar, educação integral, didática, sistematização do conteúdo.

231
Sobre os Autores

Marcel Alves Franco (Org.)


Possui graduação em Educação Física pela Universidade Federal
de Sergipe e mestrado em Educação Física pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Atualmente, está cursando
o doutorado no Programa Associado de Pós-graduação em
Educação Física (UPE-UFPB). É professor responsável pelo
Projeto de Extensão Iniciação ao Aikido da UFRN (2015-atual).
Foi docente da Escola Multicampi de Ciências Médicas do Rio
Grande do Norte (EMCM/UFRN) e coordenador adjunto do
Projeto de Extensão Contato: estudos da anatomia palpatória
a partir das práticas integrativas e complementares em saúde.
Tem experiência na área de Educação Física, atuando principal-
mente nos seguintes temas: corpo, saúde, cuidado de si, práticas
corporais e artes marciais.

Marcio Romeu Ribas de Oliveira


Possui graduação em Educação Física pela Universidade
Estadual de Ponta Grossa, mestrado na área de Teoria e Prática
Pedagógica pelo Programa de Pós-graduação em Educação Física
na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e doutorado
em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPEd/UERJ).
Professor adjunto no Departamento de Educação Física do Centro
de Ciências da Saúde na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Os interesses de pesquisa são os seguintes temas e áreas:
Educação Física Escolar e Literatura, Educação Física Escolar e as
narrativas em imagens (fotografia, cinema, literatura), práticas
culturais de movimento nas suas relações com a vida cotidiana
urbana, Educação Física e os povos indígenas da região Norte
do Brasil, história das práticas culturais de movimento e sua

232
Sobre os Autores e os Organizadores

relação com a educação do corpo. Participa dos seguintes grupos


de pesquisa: Grupo de Estudos em Corpo e Cultura de Movimento
(GEPEC/UFRN), do Grupo de Estudos em Ludomotricidade (GEL/
UFRN), do Laboratório de Estudos em Educação Física, Esporte e
Mídia (LEFEM/UFRN), e do Laboratório e Observatório da Mídia
Esportiva (LaboMídia/UFSC).

Maria Aparecida Dias


Possui graduação em Educação Física pela Universidade
Castelo Branco, mestrado em Educação pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte e doutorado em Educação
pela mesma Universidade. Atualmente, é professora associada
I da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, lotada no
Departamento de Educação Física e membro efetivo dos seguintes
grupos de pesquisa: GEPEC – Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura
de Movimento – UFRN, coordenando a linha de pesquisa Corpo,
Cultura de Movimento e Inclusão e GETS – Grupo de Pesquisa
Gestão, Educação, Trabalho e Saúde – UFRN. Além disso, é profes-
sora do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGED/
UFRN) vinculada à Linha de Pesquisa Educação e Inclusão
Social em Contextos Escolares e Não Escolares e professora do
Mestrado Profissional em Educação Física/UFRN. Coordenadora
do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência
(PIBID) Educação Física/UFRN – 2012/2013, 2014/2017. Chefe
do Departamento de Educação Física/UFRN, biênio 2017/2019.
Experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Física
Escolar e Educação Inclusiva, Didática e Educação Física.

233
Sobre os Autores

Maria Isabel Brandão de Souza Mendes


Possui graduação em Educação Física pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro, mestrado em Educação pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte e doutorado em Educação pela
mesma Universidade, bem como pós-doutorado pela Université
de Montpellier II. Realizou estágio no Institut de Sciencies
du Sport da Université de Lausanne. Atualmente, é docente
da graduação e da Pós-graduação Stricto Sensu do curso de
Educação Física da UFRN. Foi vice-coordenadora do Programa
de Pós-graduação Stricto Sensu em Educação Física e foi vice-
-coordenadora do curso de graduação em Educação Física da
UFRN. Pesquisadora do GEPEC (UFRN) e da Rede CEDES do
Ministério do Esporte. Foi coordenadora do Grupo de Trabalho
Temático (GTT) Atividade Física e Saúde do Colégio Brasileiro
de Ciências do Esporte (2009-2011). Tem experiência na área
de Educação Física, pesquisando os seguintes temas: corpo,
cultura de movimento, produção de conhecimento, epistemo-
logia, saúde, ideologia do ser saudável e cuidado de si, educação
física, práticas corporais.

Mayara Cristina Mendes Maia


Possui graduação em Educação Física pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte e mestrado em Estudos da Mídia pela
mesma Universidade. É doutoranda em Ciências do Movimento
Humano pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Foi professora de Educação Física na Escola Atheneu
Norte-Riograndense em Natal/RN. Foi bolsista do Projeto
6908 – ESEF/ME-2º tempo no Brasil 2013/2016 – Esporte da
Escola, atuando na formação de monitores do Mais Educação
pela equipe C03 – Esporte da escola. Participa, atualmente,

234
Sobre os Autores e os Organizadores

do Grupo de Pesquisa Centro de Memória do Esporte (CEME)


pela UFRGS. Participou do Grupo de Pesquisa Marginália pelo
Centro de Ciências Humanas, Artes e Letras (CCHLA) e do
Grupo de Pesquisa de Estudos em Educação Física, Esporte e
Mídia (LEFEM) pelo Departamento de Educação Física da UFRN.
Durante a graduação, participou do Grupo de Pesquisa Corpo e
Cultura de Movimento (GEPEC) e atuou como bolsista de inicia-
ção científica nos projetos Trajetórias esportivas de corredo-
res de longa distância (2012) e Gênero, sexualidade e esporte:
descentramentos da virilidade no cinema (2013). Realiza pesqui-
sas com ênfase em temas relacionados à participação da mulher
no esporte, à visibilidade midiática do esporte brasileiro e o
futebol de mulheres.

Moaldecir Freire Domingos Júnior


Possui graduação em Educação Física pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte e mestrado em Educação pela mesma
instituição. Foi professor de Educação Física da Prefeitura
Municipal de Parnamirim de fevereiro de 2016 a julho de
2017. Foi professor substituto de Educação Física do Núcleo de
Educação da Infância, Colégio de aplicação da UFRN, de feverei-
ro de 2014 a julho de 2015; e, de agosto de 2017 a maio de 2018.
Atualmente, é coordenador/professor do curso de Educação
Física da Unifacex. Tem experiência na área de Educação Física,
atuando principalmente nos seguintes temas: corpo, cultura de
movimento, Educação Física Escolar, Epistemologia, Didática da
Educação Física, consciência corporal, metodologia das lutas/
artes marciais, Aikido.

235
Paula Nunes Chaves
Possui graduação em Educação Física pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, além de mestrado em Educação Física
pela mesma instituição na área Movimento Humano, Cultura
e Educação. É doutoranda em Educação na UFRN e desenvolve
pesquisas na Linha de Estudos Sociofilosóficos sobre o Corpo
e o Movimento Humano, com enfoque na Fenomenologia de
Maurice Merleau-Ponty. Faz parte do Grupo de Pesquisa Corpo,
Fenomenologia e Movimento (ESTESIA), atua principalmente
nos seguintes temas: corpo, sexualidade, Teoria Queer, cinema.

Rayane Monaliza da Nóbrega Oliveira


Possui graduação em Educação Física pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN), e mestrado em Educação Física
pelo Programa de Pós-graduação em Educação Física (PPGEF)
da mesma Universidade. Atualmente, é professora de Educação
Física na rede de ensino do Estado do Rio Grande do Norte, e se
dedica aos estudos do corpo e da Educação Física Escolar. Tem
experiência na área da Educação Física, atuando principalmente
nos seguintes temas: Educação Física Escolar, metodologia da
dança, epistemologia da Educação Física, Consciência Corporal,
Filosofia da Educação Física, Didática da Educação Física, lazer
e recreação, metodologia do jogo.
Terezinha Petrucia da Nóbrega
Possui graduação em Educação Física e em Filosofia pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, bem como
mestrado em Educação pela mesma Universidade e douto-
rado em Filosofia da Educação pela Universidade Metodista
de Piracicaba. Realizou estágio pós-doutoral na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) de março a agos-
to de 2009, na área de Filosofia e na Université de Montpelllier
(II e III), no período de agosto de 2009 a fevereiro de 2010, com
bolsa Capes nas áreas de Filosofia, Educação e Educação Física.
Professora convidada da Université de Montpellier, Institut
de Formation de Maîtres (2011). Realizou Estágio de Pesquisa
Sênior/Pós-doutoral na École Normale Superieur de Paris (2014-
2016), com bolsa Capes Estágio Sênior (2014-2015) e CNPq (2015-
2016). Atualmente, é professora titular da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, coordenadora do Grupo de Pesquisa
Estesia: corpo, fenomenologia e movimento e do Laboratório
Ver – Visibilidades do Corpo e da Cultura de Movimento e coor-
denadora do Programa de Pós-graduação em Educação Física.
Tem experiência nas áreas de Educação Física e Filosofia, atuan-
do principalmente nos seguintes temas: corpo, corporeidade,
estética, fenomenologia, epistemologia, educação física e ciên-
cias humanas, ecologia corporal.
Este livro foi produzido pela equipe
editorial da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte.

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