Chiara Klara Clarinha - Salomão Rovedo - Iba Mendes
Chiara Klara Clarinha - Salomão Rovedo - Iba Mendes
Chiara Klara Clarinha - Salomão Rovedo - Iba Mendes
Salomão Rovedo
(1942)
Livro 694
É isso!
Iba Mendes
[email protected]
www.poeteiro.com
ÍNDICE
UM 2
1 - A praia de onde viemos
2 - A vida começa com um dente de leite
3 - Em Petrópolis, entre as árvores
4 - Imagine
5 - Cartas da minha cidade
DOIS 17
1 - E ao pó voltarás...
2 - Klara se lembrava
3 - Quando se debate a vida
4 - Um Pinot Noir amargo
5 - Cartas da minha cidade
TRÊS 30
1 - No cemitério São João Baptista
2 - Crianças lambuzadas de areia
3 - As três amigas
4 - Antes da névoa densa
4 - Cartas da minha cidade
QUATRO 46
1 - Cartas são beijos e abraços
2 - O boi Espalha Merda
3 - Crônica sobre o Destino de Klara
4 - O silêncio das maritacas
5 - Cartas da minha cidade
CINCO 60
1 - Entre papéis ainda legíveis
2 - O espelho negro
3 - Por que o ruim acontece
4 - Pão com manteiga e açúcar
5 - Cartas da minha cidade
SEIS 73
1 - Submersa no pântano
2 - Manual de sobrevivência para quimoviciados
3 - Os meninos ciganos
4 - A chama inesperada do amor
5 - Cartas da minha cidade
SETE 91
1 - O mesmo em outra intermitência
2 - O cheiro da manga - rosa
3 - Chá e fogão de linha
4 - Eis o mistério da fé
5 - Cartas da minha cidade
OITO 105
1 - Touradas em Madri
2 - Coisa nenhuma é por acaso
3 - Tão somente uma dedada
4 - Tio Zequinha, adeus
5 - Cartas da minha cidade
NOVE 123
1 - Dentro do ventre da noite
2 - Enquanto seu lobo não vem
3 - Uma clareira na mata atlântica
4 - A sós com ninguém que conheça
5 - Cartas da minha cidade
ANEXO 136
O caderno de Klara
CHIARA KLARA CLARINHA
ROMANCE
Não tendo beleza, nem sendo poesia, já que muitos nomes se poderia dar, por
vício de leitura e escrevinhar, digo que é Romance – e Romance será.
Para compor este texto me vali das crônicas de Joaquim Itapary, da leitura do
Livro de Jó e muitos estudos bíblicos (que não dá pra detalhar), da memória e de
invencionices.
Salomão Rovedo
1
UM
1 - A PRAIA DE ONDE VIEMOS
Praia, sol, calor, festa – não se pode é perder tempo. Praia Vermelha, Leme,
Copacabana, Praia Brava, Arpoador, Ipanema, Leblon, São Conrado, Barra,
Recreio, Macumba, Prainha, Grumari, nos esperam... lotadas. Antes que o
serviço de meteorologia dê o aviso fatal: aí vem a chuva! Antes de chegar a
ventania, atirar areia nas pernas, fazer voar as barracas, trazer nuvens revoltas,
antes do tempo virar, porque aí vai chover, vai ter temporal, fim de praia. Mas,
temporal vem, chuva vai e o calorão continua acima de 40 graus.
Agora estou indo para Botafogo, um pouco distante da praia, mas o movimento
das pessoas é no rumo das praias e prevalece o traje de banho. Vou me
aproximando do destino e já de longe dá para ver o mosaico emaranhado de
tonalidades – um dia foram cores definidas: branco, musgo, cinzento, lodoso,
negro –, formando as quadras dos sepulcros mais recentes, estendendo o
cemitério até nos limites do morro de São João. Um último paredão, formado
pelas gavetas que comportam um caixão cada, faz fronteira entre o morro e o
cemitério. Estou a caminho do São João Batista, o cemitério e não das praias.
Revendo essa paisagem em torno da qual vivi durante muitos anos, o sol
abrasador me faz relembrar as muitas vezes estive ali para acompanhar o
enterro de parentes e amigos. Mas não pude comparecer àquele que seria o
2
mais importante: o enterro de Klara. E agora, cinco anos depois de seu
falecimento, posso cumprir um desejo dela: ser cremada, vontade que por
muitos motivos só poderá ser atendida post-mortem.
Mesmo antes deste momento passei pelas atribulações da burocracia sem fim,
quando tive que produzir prova de ser o único parente, de que a cremação era
desejo expresso da falecida, cumprir prazo de publicação, além de pagar taxas e
mais taxas, documentos com firma reconhecida e atestado cartorial. Cumpridas
todas essas exigências, por fim, acompanhado de dois funcionários, estou a
caminho do túmulo de Klara, pensando no pouco tempo que falta para cumprir
o desejo dela. É uma longa caminhada – desde a entrada principal na Rua
General Polidoro, onde fica a administração do São João Batista – até o local
onde me aponta o empregado, já chegando à encosta do morro, ao lado do
Túnel Velho.
Fustigado pelo calor e pelo péssimo preparo físico próprio dos sedentários,
caminho mais lentamente que os empregados, que me seguem na mesma
pisada, mesmo a contragosto, porque muitas vezes terão que fazer esse serviço
durante o dia. Foi a migração forçada pelo emprego que me obrigou a viver a
vida sedentária da cidade grande, além de me exprobrar com o fato de que
estarei para sempre condenado, pois quando conseguirei recuperar esse
tempo? Jamais. Isso me veio à lembrança agora, pisando velhos
paralelepípedos, sentindo dor nos pés e a garganta seca.
3
No meio do caminho passamos por mais de um féretro, ora com várias pessoas,
ora com poucos acompanhantes, todos na mesma marcha sonolenta e
melancólica, que costuma servir de cortejo a tais cerimônias. Volta e meia,
também cruzamos com muita gente (parentes, amigos, amores eternos), que
toma a iniciativa de elas mesmas cuidarem do lugar onde estão os restos dos
entes queridos, pelos quais sofreram, suportaram alegrias e tristezas, mesmo
decorrido tanto tempo.
Eu mesmo me via como uma dessas pessoas, mas não tinha nenhum ânimo
para digressão dessa natureza. Esse era um ritual daqueles que a gente
encontra em qualquer lugar do universo. Uma cerimônia que se deve cumprir
sem quaisquer tipos de questionamentos.
Ao lado, distante apenas uma quadra, outra família enterrava um parente. Era
um grupo de pouco mais de vinte pessoas, as senhoras mais idosas vestidas de
negro oravam e choravam acompanhadas de esposos, irmãos, amigos – essa
classe de gente que ainda consegue fazer do enterro uma despedida
merecedora da quem parte. Algumas vozes acompanhavam a oração em
surdina, murmúrios, acrescentando palavras mais incisivas ao texto, conforme o
rito exigia.
Como terá sido o enterro de Klara? O ambiente me faz tentar lembrar se houve
alguma particularidade, além do que a tradição durante séculos nos transmitiu.
Acho que não. Parece que tudo se repete ali ao lado – o que vejo é como se
fosse mesmo o féretro de Klara.
É provável que tivesse mais pessoas presentes porque Klara era muito querida,
tinha muitos amigos. Por outro lado, sei que ela procurou o isolamento de tudo
e de todos quando resolveu se desligar para ignorar a fealdade a que o destino
4
resolveu submetê-la com rigor excessivo. Mas tudo deve ter transcorrido com
intensa comoção por parte das amigas e amigos mais ferrenhos. E havia, sim,
muitos deles.
Quantas e quantas vezes aqueles mesmos gestos foram repetidos, cada qual
diante de uma plateia diferente, com as emoções latentes, sentimentos de
amor e ódio... E depois que a multidão de amigos se dispersasse – como ocorre
agora mesmo com os vizinhos inesperados – restará a uma última alma a tarefa
de recolher os ossos e liberar o palco onde o teatro da vida apresenta o seu
último ato.
A mim foi destinado a cumprir essa última obrigação para com Klara. Imerso
nesse pensamento repetitivo, recostei-me à laje de um túmulo abandonado
enquanto assistia aos preparativos dos dois operários. O pedreiro antecipou-se
para a sua cotidiana missão: com uma marreta começou a desprender a faixa de
concreto que circundava a laje e era parte da vedação. O outro rapaz acendeu
um cigarro e começou a dispor no chão o seu equipamento: uma pequena urna
com alça, par de luvas, uma pequena pá, fita adesiva para lacre.
Klara criou o hábito de se socorrer a mim sempre que algo inusitado acontecia.
Foi assim, me recordo, desde quando o primeiro dente de leite ficou mole e ela
chorou com a dor que a mordida no pão tinha provocado. O dente, um molar
frontal, já estava quase solto da gengiva, mas o medo da dor fazia com que ela
impedisse qualquer um se aproximar ou examinar. Depois da mordida um
pouco de sangue correu pelos lábios.
Ela saiu da mesa e correu chorando em minha direção. Mais uma vez ela veio
cheia de dor, com lágrimas nos olhos. Eu disse, olha, vamos fazer o seguinte.
Vou pegar essa toalhinha e massagear a gengiva, assim a dor diminui. Aí, eu
peguei a toalhinha, umedeci com um pouco de álcool e massageei a gengiva
próxima ao dente, conversando sobre o fim da dor, coisas assim.
5
Aos onze anos ela cochichou com a boca colada ao meu ouvido umas palavras
que não compreendi. Não entendi, disse. Repeti que não tinha entendido mais
uma vez, não sabia o que ela queria dizer. Ela pegou a minha mão e colocou-a
sobre o seio. Algo havia mudado, agora, para surpresa dela, havia um pequeno
botão intumescido que começava a saltar da blusa. O que é isso? Ela perguntou.
Depois eu te falo, disse. Diz logo, diz logo! Depois eu te falo, depois, repeti, e ela
se conformou.
Na primeira na ocasião que ficamos sós, ela logo cobrou a explicação. E vinha
cobrando com o olhar e me mostrava os seios quando saía do banho. Falei
sobre o crescimento dos seios, dei o exemplo das outras mulheres,
aproveitando a deixa para falar dos pelos que iriam aparecer no púbis e nas
axilas. Ela, mostrando nervosismo, deu um risinho e um olhar de jeito mais que
curioso brilhou. Para não complicar mais, deixei para falar do mênstruo depois.
Volta e meia fugíamos para as praias mais distantes, desertas, onde não se teria
preocupação com a presença de ninguém. A gente chegava correndo na praia,
ia largando as peças de roupa entre as passadas rápidas na areia e
mergulhávamos nus nas águas mornas. Ao entardecer alguns pescadores
começavam a estirar as redes para o arrastão noturno. Só então, quando o sol
botava os raios lilases por cima das ondas bem lá longe, com o mesmo ritual da
chegada, vestindo a roupa peça por peça, a gente voltava para casa.
Mas não era tão terrível assim: apenas envolvia sexo, virgindade, casamento e
amor. Como sempre, para o bem ou para o mal, eu era o escolhido para tratar
do assunto. Foi nesse tempo que ela conheceu Toni. E ficou de marcar um
almoço para que nos conhecêssemos.
Veja bem esta foto, repare que ainda é em preto e branco, já mostra que
ficamos bem crescidos. Estamos sentados num banco à beira do parque. Atrás
de nós, um bosque com muitas árvores e arbustos floridos nas margens. Estou
com as pernas cruzadas e com um cigarro entre os dedos da mão esquerda,
repousada sobre a coxa. Klara está com as pernas juntas, o busto pequeno,
encostada no espaldar ereto. O retrato não tem data, mas calculo que eu estava
com uns 18 e ela com 16 anos, pois quase dois anos separavam nosso
aniversário.
O Imperador mostrou que era definitivo o seu interesse pela região, quando
intensificou a transferência da sede governo para Petrópolis, até então limitada
a ser refúgio do cáustico verão. Não somente o Rio de Janeiro se tornava foco
de doenças, como era também lugar de crescente teor de criminalidade:
sequestros, assassinatos, atentados, roubos e crimes menores. Por outro lado, a
distância física do Imperador reduzia pressões políticas e reclamações sociais,
que aumentavam com o crescimento da Capital. No caso particular de
Petrópolis existe um elemento secreto: a vida amorosa de Pedro II. Mas
nenhum historiador teria coragem de afirmar que foram os encontros com as
amantes do Imperador que deram origem à cidade.
Desde que um dia eu li essa narrativa para Klara, ela sempre a repetia a todos,
invertendo um fato aqui e ali, mas com muita fidelidade histórica.
Pois está dito meu amigo, a pousada é como se fosse extensão da nossa casa, de
preferência daquela casa calorosa e antiga dos nossos pais e avós, que hoje só
resiste nos retratos amarelados, na memória embotada pelo tempo. Além de
tudo é uma casa com boa vizinhança, com hóspedes que se ajudam, fazem
amizade, se cumprimentam diariamente. E saiba que, se calhar de alguém
adoecer ou ter algum problema, jamais se verá tamanho poder de mobilização,
de total confraternização, de ajuda mútua, compreensão e apoio. E isso os
hotéis, com sua frieza polar, estão cada vez mais longe, muito longe de ser.
Repeti o café, mas não as guloseimas, depois fui até à cozinha agradecer e
louvar tão santa refeição, com merecidos elogios a todo pessoal. Foi a atitude
correta porque os rostos se abriram em sorrisos que avisavam a mim que não só
havia ganho o dia, como toda a estada! Eis o que vale dizer um simples “muito
obrigado”...
Depois de vários dias de chuva intermitente, até mesmo Itaipava, que em dias
de sol resplende as cores da natureza, do verde musgo ao céu azulinho, que na
claridade ecoa todos os sons dos cantos dos pássaros, até mesmo Itaipava, se
mostra carrancuda. A vila se fecha em copas, sobrecenho enrugado, como a
velha e anciã que reclama das dores nas articulações, dos achaques da idade.
9
gotas grossas toda a água que um dia bebeu e refinou desta boa terra – e não
hesita em exclamar:
Aí, meu amigo, não tem mais jeito: haverá de pagar o erro, não com as mãos
postas aos céus em reza desesperada, nem pedindo verba para o governo,
porque dinheiro não traz chuva, nem com procissão – se procissão fizesse
chover o nordeste era um oceano de água doce! – tem sim de se curvar de
joelhos de frente para si mesmo, em contrito mea culpa, reconhecer o erro e
tentar consertar tudo. Ainda é tempo de você deixar para os filhos algum
pedaço de terra habitável, sim senhor.
Aqui na Pousada das Araucárias, só tem uma única alegria capaz de superar os
rostos preocupados com o tempo chuvoso, uma ameaça permanente para a
população das encostas, para os veículos que trafegam nas estradas
escorregadias, sujeitas a ameaças de desmoronamento.
Mas nada se compara à pousada. É uma alegria ser recebido de maneira assim,
com essas comidinhas saborosas, porque me trazem a lembrança de minha
querida mamãe – que Deus a tenha! Mamãe herdou o hábito dos avós, que era
recepcionar visitas à moda de Cascaes, origem da nossa família. Estar à mesa
significava sempre alegria, união, felicidade, confraternização.
– Deixe a tristeza lá fora – ela dizia – que ela procura outro rumo, não aqui.
4 - IMAGINE
11
Imagine você bonita, alegre, feliz... De repente, o dia seguinte, um dia sinistro,
tudo morre ao mesmo tempo: você fica feia, você perde a alegria de viver, fica
triste, infeliz, muito infeliz.
Imagine você bem colocada na vida, batalhou para ter o que desejava: bens
para usar, casa para morar, carro à disposição, apartamento na praia, casa na
serra... De repente, de uma hora para outra, tudo acontece muito rápido: no
meio de uma crise de saúde, você perde tudo, deixa de gozar os bens que havia
lutado para conseguir, fica com as mãos abandonadas, falta saúde para usufruir
a vida.
Imagine que você tivesse uma empregada a seu serviço, parentes, amigos e
colegas de trabalho a seu lado. De repente, num átimo, todos se afastam de
você, como se fosse um leproso, alguém com chagas, doença contagiante de
outrora: olha para os lados e vê que não tem mais ninguém. Ninguém, nem
mesmo os bichos de estimação.
Imagine que você é bastante saudável, boa saúde, pratica esporte, mas num dia
trágico você se levanta de manhã e percebe que está sofrendo de enfermidade
muito grave: câncer (haverá outra mais terrível?). O seu corpo se transforma, é
outra pessoa da cabeça aos pés, irreconhecível ao espelho. Desesperada,
começa a raspar as feridas, olear-se com todas as essências, mas continua
12
cheirando mal, sua pele resseca, seu olhos afundam nas pálpebras roxas, você
está como um caco de telha velho e coberto de musgo.
Imagine que não há paraíso É fácil, se você tentar, Nem inferno abaixo de nós
Acima de nós apenas o ar Imagine todas as pessoas Vivendo o dia de hoje.
Imagine que você é uma pessoa conhecida, querida, viajada, bem relacionada
na sociedade, amada, bem nos negócios e sem explicação plausível, de repente,
você perde tudo, todos os amigos desaparecem, os conhecidos não telefonam
mais, alguns fingem não vê-la. Você esconde os olhos sob óculos escuros, usa
perucas para ocultar a calvície química, lenços e véus recobrem toda a cabeça,
na mente só uma pergunta:
– Por quê?
Imagine que no meio dessa tragédia nada mais resta da vida, tudo se
transforma em angústia e provação, num acesso de mau humor você se diz:
“Por que ainda sou justa e religiosa? Por que não amaldiçoo a Deus, aos santos,
a tudo no mundo?”
Você lembra que sempre foi honesta nos negócios pessoais, nada deve aos
bancos, nem a pessoas ou empresas, foi fiel às amizades, manteve o caráter
íntegro, foi temente a Deus, foi às missas e frequenta a igreja de modo regular.
Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A brotherhood of man
Imagine all the people
Sharing all the world.
Muitas vezes, Deus permite que passemos por grandes provações. Mas, por que
eu? Serei acaso filha de Jó? Será que isso terá um final? Poderei olhar para trás
e prever que esses dias sombrios serão tempos de grande aprendizado
espiritual? O que aprenderei com tantas adversidades, a não ser que o horror
da vida jamais será um sinal do amor?
O sofrimento não é um tema popular que se ouça comentado por aí. Nossa
sociedade é cheia de subterfúgios, fica de costas para a infelicidade, mas o
câncer é parte real da vida. Por tudo isso que estou passando, tudo, sim, me diz
que o sofrimento é real. Ainda recordo o primeiro dia em que recebi a notícia de
diagnóstico benigno, tratei o aviso de modo especial, brindei com Toni com
vinho Pinot Noir, tive a noção até do que é felicidade, toda a noite grudada ao
corpo negro do amado.
14
Quando eu era menina e mamãe ainda não me tinha dado, quando por
qualquer doença me sentia fraca, sentia a presença dela ao meu lado, com
algum remédio caseiro e o carinho que me curava de fato. Depois aprendi que
não mais minha mãe viria, mas que Deus, sim, estará no momento mais escuro
da minha vida para ensinar que não dependo dessas circunstâncias dolorosas
para viver.
Agora não sei mais se Ele irá mesmo me mostrar que está no controle das
situações. Que o sofrimento é o anúncio de muitos milagres que estão para
chegar. Portanto, enquanto estiver atravessando a privação de viver com a alma
feliz e o corpo saudável, as atribulações da dor e do abandono, a dúvida sobre a
fé, tentarei me lembrar de que Deus pode usar a tormenta para depois nos
presentear com a mansidão da calmaria – como um prêmio.
Mas a lembrança que o som dessa música traz – quando cantada por Toni só
para mim, entremeando-a da tradução em recital, me diz algo que não sei como
exprimir. Liberta da lembrança do espelho, do sonho do quarto sombreado, da
visão da janela que dava para o mato, livre até mesmo do som irritante do
cricrilar do grilo, sinto-me no direito ao pouso desavergonhado e devasso do
meu corpo no corpo negro de Toni. Sei que é o momento de aspirar o cheiro
estranho do suor dele, de meter o nariz entre os pelos das axilas, passear a boca
na virilha, deixar-me tocar e penetrar por ele.
Limão.
28 de outubro
Klara.
15
No dia 7 de novembro os sãobentuenses comemorarão o bicentenário da
criação da Freguesia de ocupação e colonização de terras firmes da Baixada
Maranhense. Fato que redundaria, a 30 de março de 1905, na promoção da
antiga Vila de São Bento dos Peris à categoria de Cidade. Que orgulho!
Então, é claro que também estarei lá nas comemorações! Como bom são-
bentuense, mantenho, por indecifráveis sortilégios, permanente ligação com a
pureza dos campos primitivos e selvagens. Sou íntimo do lugar, das aves, das
florestas, dos rios, dos igarapés, das enseadas, das lagoas que se interligam
como contas líquidas dos rosários. Pois, para pontuar os pastos de criação de
São Bento dos Peris, sempre cheios de vida, verdes de esperanças – estarei lá! E
se estivesses aqui irias comigo, relembrando os velhos tempos.
Enquanto eu, logo ao primeiro gole, antes que o agridoce sabor da tiquira
fugisse do céu da boca, trincava um camarão seco, cheiroso, ainda regado pelos
naturais humores, tu ficavas melando os dedos nas línguas de bacuri – lembras?
Já meio zonzo e aturdido pelo prazer, nem espero o segundo gole para – junto
com amigos – estalar a língua e dar viva ao pajé que inventou a tiquira, batizada
de “vinho de Tupã”.
16
DOIS
1 - E AO PÓ VOLTARÁS...
Somente cinco anos após o seu falecimento pude cumprir o desejo de Klara de
ser cremada post-mortem. Estive ausente durante muito tempo e nem mesmo
ao sepultamento pude assistir. Agora, para se vingar da minha falta, mandava o
sol lanhar-me com faíscas de guasca a cabeça, ombros, costas. É assim, no verão
carioca que deixa, dia e noite, tudo fervente e seco como os climas desérticos,
que me vejo em pleno cemitério São João Batista cumprindo o que considero
um dever.
Mesmo antes deste momento passei pelas atribulações de uma burocracia sem
fim, quando tive que produzir prova de ser o único parente, de que a cremação
era desejo expresso da falecida, cumprir prazo de publicação, além de taxas e
mais taxas, tudo com firma reconhecida e atestado cartorial.
Fustigado pelo calor e pela falta de preparo físico, caminho mais lentamente
que os dois empregados que me seguem na mesma pisada, mesmo a
contragosto. Foi a migração forçada pelo emprego que me obrigou a viver a vida
sedentária da cidade grande, além de me exprobrar com o fato de que estarei
para sempre condenado, pois quando conseguirei recuperar esse tempo?
Jamais.
No meio do caminho passamos por mais de um féretro, ora com várias pessoas,
ora com poucos acompanhantes, todos na mesma marcha sonolenta e
melancólica, que costuma servir de cortejo a tais cerimônias. Volta e meia,
17
também cruzamos por outras pessoas – parentes, amigos, amores eternos –
que tomavam a iniciativa de elas mesmas cuidarem do lugar onde estão os
restos de um ser pelo qual sofreram, suportaram alegrias e tristezas, mesmo
decorrido tanto tempo.
Eu mesmo me via como uma dessas pessoas, mas não tinha nenhum ânimo
para digressões dessa natureza. Esse era um ritual daqueles que a gente
encontra em qualquer lugar do universo. Uma cerimônia que se deve cumprir
sem quaisquer tipos de questionamentos. Antes que começasse a mergulhar
numa divagação e para sorte do meu cansaço, um pouco antes das íngremes
ladeiras, chegamos ao sepulcro de Klara, onde uma placa de mármore tinha
gravados o número, o nome e a data da ocorrência.
Ao lado, distante apenas uma quadra, outra família enterrava um parente. Era
um grupo de pouco mais de vinte pessoas, as senhoras mais idosas vestidas de
negro oravam e choravam acompanhadas de esposos, irmãos, amigos – essa
classe de gente que ainda consegue fazer do enterro uma despedida
merecedora da quem parte. Algumas vozes acompanhavam a oração em
surdina, acrescentando palavras mais incisivas ao texto, conforme o rito exigia.
De longe dava para notar a presença de outros parentes e amigos em trajes de
trabalho, como se tivessem interrompido o cotidiano por exigência do trágico
parêntese e para o qual – missão cumprida – logo voltariam.
Como terá sido o enterro de Klara? O ambiente me faz tentar lembrar se houve
alguma particularidade, além do que a tradição durante séculos nos transmitiu.
Acho que não. Parece que tudo se repete ali ao lado – e o que vejo é como se
fosse mesmo o féretro de Klara. É provável que tivesse mais pessoas presentes,
porque Klara era muito querida. Por outro lado, sei que ela procurou se isolar de
tudo e de todos quando resolveu se desligar para ignorar a fealdade a que o
mundo resolveu submetê-la com rigor excessivo. Mas tudo deve ter
transcorrido com intensa comoção por parte das amigas e amigos mais
ferrenhos. E havia, sim, muitos deles.
O calor era excessivo, o silêncio foi tomando conta do grupo. Só ficou o ruído da
pá do pedreiro misturando o cimento e aplicando a massa nas frestas das lajes,
para impedir a entrada desagradável de oxigênio e de insetos. Como que
atraídos por um ímã, todos fixaram o olhar no trabalho que o pedreiro, com
cuidado e dedicação, executava debaixo do sol quente.
Quantas e quantas vezes aqueles mesmos gestos foram repetidos, cada qual
diante de uma plateia diferente, com as emoções latentes, sentimentos de
amor e ódio... E depois que a multidão de amigos se dispersasse – como ocorre
agora mesmo com os vizinhos inesperados – restará a uma última alma a tarefa
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de recolher os ossos e liberar o palco onde o teatro da vida apresenta o seu
último ato. A mim coube cumprir esse último dever para com Klara.
2 - KLARA SE LEMBRAVA
Mal tiravam a roupa, corriam os três nus cruzando casa adentro para o banho
no chuveiro que tinha no fundo do quintal. A água jorrava, eles se revezavam na
bucha, untando o corpo com sabonete, esfregando com força, até ficar
vermelho. Depois faziam fila os três para a mãe ou o Tio enxugar com a toalha,
não sem antes verificar toda a limpeza, devolvendo um e outro para a água com
sabão, até estarem todos limpos.
A fila seguia para o almoço, quando a mesa, de madeira crua, ficava pequena
para toda a família. Ninguém se preocupava em comentar sobre a comida, nem
ligavam se era boa ou ruim. Era o almoço em casa e só esse fato fazia com que
todas as outras coisas fossem menos importantes. Comiam alegres, bebiam
água na garrafa de coca-cola. Depois de breve descanso os três se reuniam no
quarto para reler e limpar os erros da aula do dia e Klara, que não desgrudava
deles, nem mesmo na hora de fazer o dever de casa, não perdia nem um lance...
Klara cresceu rápido e foi arrebatada pelo Tio para o Rio de Janeiro onde iria
estudar e logo arrumar um emprego, porque a cidade crescia e precisava de
jovens inteligentes. Os amigos também no ano seguinte foram viver com um
parente que progredia e tinha bom salário. E logo em seguida alugaram uma
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casa, se separando do Tio e sua mãe foi chamada para se juntar a eles, a família
crescia socialmente e precisava do apoio materno. O Tio – porque não podia
perder o emprego que tinha – nem Klara – porque estava no meio do ano de
estudo – ainda não podiam ir, mas seria questão de tempo.
Klara se lembrava, sim, que não ficou nem alegre n em triste com toda essa
mudança, porque era questão de tempo e logo iriam se unir à família e tudo
voltaria ao normal. Mas um buraco, um vazio, uma coisa oca se formava logo ali
abaixo do umbigo e sempre a deixava um pouco desfeita de alegria. Não era a
mesma coisa que antes, esse chegar à casa sozinha, tomar banho, cuidar da
própria, arrumar tudo e deixar a comida do Tio pronta, na mesa que agora
parecia tão grande.
Seu corpo também crescia. Seus seios estavam grandes, sua barriga lisa dividia-
se dos quadris por uma cintura estreita, seus cabelos agora vinham até a
cintura, lisos, negros. Estranhamente não tinha pelos nas axilas, como via nas
colegas. Do colo para baixo todo o seu corpo era como se fosse uma praia
deixada pelo rio. Areias vermelhas, águas claras, remanso. Klara se lembrava,
sim, se lembrava de que achava isso muito lindo, por ser diferente das demais
colegas também era mais bonita, mais formosa.
Klara se sentia feliz, Klara se lembrava de que ainda era feliz, porque contava os
dias que seus estudos aqui iriam acabar, contava os dias que faltavam para
viajar para o Rio de Janeiro e encontrar a mãe, os amigos, ter novos
companheiros, nova escola, novos professores e novos colegas. Enquanto
estudava via seu Tio sair para encontrar os amigos, quando ele voltava, tarde da
noite, ela estaria dormindo em sono profundo. Quando acordava não se
lembrava senão dos sonhos, dos pássaros que pousavam em sua janela e das
aranhas que cercavam espaços de teias para protegê-la.
Era uma coisa que dava mais força para ela. Tinha num canto do quarto uma
maletinha sempre pronta para a viagem. Ali ela arrumou com cuidado as
melhores roupas que tinha. Roupas limpas, passadas, perfumadas com um
molhe de capim cheiroso. E todas as noites antes de dormir, ela dirigia um olhar
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confidente para a maleta, como se dialogasse com ela, combinando as
trampolinagens de uma viagem de ônibus.
Uma noite teve sonhos agitados, bichos, lesmas, algo desagradável corria pelo
seu corpo em ondas, como talvez as ondas da praia, do mar, que ela não
conhecia. Ondas ásperas... Ela acordou num susto. Entrava pelo quarto uma
réstia do luar, o vento assoprava no quintal, a palmeira, o mamoeiro, tudo
parecia pedir socorro, lançar acenos. Klara se lembrava dos amigos, da mãe, dos
colegas de colégio – de todos que podiam socorrê-la naquele momento. No dia
seguinte, lembrou-se de perguntar ao Tio: – Quando viajamos para Rio de
Janeiro?
Os sonhos pareciam fazer parte da noite. Se sua mãe estivesse aqui correria
para a cama dela. Encolhida ao lado dela, perderia o medo e não seria atacada
pelas lesmas que lambiam seu corpo todo. Nas manhãs sentia o cheiro de suor,
que não era o dela, sentia um gosto que não era o gosto dela. Gosto e cheiro
que talvez lembrassem as bebidas que o Tio tomava com os amigos. Quem sabe
o cheiro de bar? Quiçá o cheiro que recendeu quando a garrafa girou como um
pião sobre a mesa, para afinal se espatifar, espalhando cachaça sobre o piso.
Klara se lembrava de contar o pesadelo para o Tio. E dele se oferecer para lhe
fazer companhia, quando o medo chegasse. Mas a janela onde o passarinho seu
amigo pousava ficava sempre aberta para defendê-la. Ele sempre trazia recados,
trinados, e alegria. Então, qual seria o recado agora? Um aviso de que a hora de
reencontrar os seus amigos, de beijar a sua mãe, de ir para o Rio de Janeiro
estava chegando? Sim, era isso sim, era o mesmo recado de sempre, que a
deixava tranquila para dormir o sono em que todo o seu corpo apagava e só
despertaria no dia seguinte, com o sol varrendo as cortinas de palha.
Klara se lembrava, sim, muitas lembranças, mas essa dor que ela sentiu era
como se fosse uma agulhada. Pior, como se fosse um prego fincado na mão, que
a fez relembrar o dia em que foi colher uma rosa para a mãe e de repente o
espinho penetrou no seu dedo, de modo violento como nunca havia visto nem
sentido. Uma dor fina, aguda, que correu todo o seu corpo com um arrepio
friorento, fazendo o sangue espirrar e se espalhar pelo lençol de chita, uma
esponja, fios, rios.
21
Era uma sensação de navegar sem ter um porto à vista. Um vazio que não
terminava nunca. Essa impressão – que viajava com ela como se fosse objeto de
uso pessoal – só deixou de perturbá-la quando conheceu Toni. E não foi à
primeira vista que ela teve a percepção de libertar-se do oceano em que
singrava sem rumo, a caminho do desconhecido, de ondas altas, mortais, igual
às mesmas que assistia nos filmes. A sensação de naufrágio só terminou quando
sentiu que estava segura sob o aconchego dos braços de Toni.
Mais de uma vez sentiu que estava em segurança, que Toni entrou em sua vida
para protegê-la de tudo e todos.
Sozinha com seus pensamentos Klara sente a cabeça ferver de tantas coisas que
ouviu. Ouvir as três amigas foi o mesmo que apelar para a insignificância
humana. Mesmo assim ela não deixa de exaltar a soberania da vida sobre as
outras coisas. Acabou por concluir que a lei Aqui se faz aqui se paga (que no
princípio a abalou), não se aplica a tudo: é falso dizer que o mal nunca terá
punição. Às vezes a doença cura, outras vezes ela mata, às vezes o homem se
safa do mal, outras não. No mundo ela viu lado a lado, justiça e injustiça, lógica
e loucura, castigo e impunidade, Fé e descrença.
Então, jamais saberemos por que 0 a pessoas boas. Não se trata de afastar o ser
humano da ambição, porque não importa se a pessoa merece o mal do qual
sofre, se pecou ou não pecou, se tem Fé ou apenas veneração. A vida e a morte
são arbitrárias – podem fazer o que quiser, no tempo que achar bem, sem
qualquer interferência daquilo que se conheça. Portanto, Klara não tem nada a
dizer a esse respeito, parou de lutar, declarou-se inocente, lançou-se ao destino,
agora aguarda. Para ela se fez o silêncio, isso significa que seu raciocínio
prevalece. Klara conseguiu calar o Destino, mas poderá calar também a Morte?
Em uma noite de pesadelo apareceu para Klara uma entidade que afirmava ter a
resposta para o enigma do bem e do mal. O extraordinário fantasma não surgiu
no sofrimento inicial, nem no estado terminal, como poderia pensar-se. Estava
ali quando a esperança ainda se mantinha vívida. Suas feições não são
familiares, a expressão é impassível, Klara tem certeza que não o conhece.
Ascendência da família? Parentesco? Afinidade? Como ele tomou as rédeas da
sua história? Ela não sabe. Mas no sonho ele proferia algumas respostas
categóricas:
– Coisas ruins acontecem a pessoas boas, porque é uma forma da vida ensinar
algo.
23
O espectro lamenta que as três amigas de Klara tenham se concentrado no
aspecto da dor como punição: – Deixar de lado o fato como ensinamento, muda
o foco da vida. No lugar de “por quê”, ele usa “para quê”. Na verdade o ente
procura achar utilidade no sofrimento, mas a questão é:
O que não vem pelo amor, vem pela dor. Isso parece bonito e filosófico, em
certo aspecto pode ser verdadeiro, mas não se emprega a todas as pessoas,
como não se aplicava a Klara.
Sobre a vida, não lhe abre os olhos alguma explicação, nem aquela conversa
inicial sobre destino. Assim Klara não saberá o que acontece no mundo
espiritual. Não saberá sobre as insinuações do bem e do mal, não sentirá
confiança na atuação do destino pelo sofrimento. A vida não nos endereça a
nenhum porto seguro, ao contrário, impõe mais reflexões, no lugar de oferecer
resposta a quem vem sobrecarregada de perguntas. Klara apenas ouve, não
pensa em comentar problemas morais, ela reza para o mundo natural: estrelas,
ventos, cores, sons, plantas e animais.
– Você pode explicar como faz isso, para que eu possa aceitar minhas
limitações?
24
A criatura afirma que a Fé deu a Klara confiança inabalável, força de vontade e
caráter, que sustentam a esperança. Ter Fé é mais que acreditar: é confiar,
obedecer, prostrar-se e tais condições são imperiosas. Ao confrontar Klara com
tal exigência, o espírito não pede que creia em algo absurdo, pois confia no seu
caráter de crer na bondade, no desejo de servir, na capacidade de conviver com
o desconhecido. Ao acreditar que coisas ruins acontecem a quem tem ódio,
acostumada a associar o amor às coisas boas, Klara tenta se livrar de conclusões
errôneas.
No momento em que Klara se viu na cruz, sofrendo seu próprio calvário, ele
ponderou:
Mas Klara conhece a história: o salvamento de Jesus mostra que ele era amado
por Deus, mas como se sabe, Deus não salvou Cristo da cruz. O que aconteceu?
Através da morte e da ressurreição, provocou a exaltação do homem, da paz e
do amor, promoveu a redenção de todos, revolucionou o mundo. Mas, pela dor,
Klara se colocou do lado oposto a essa liturgia.
É o pesadelo que diz em sussurros. Se isso for verdade, sempre se pode tirar
algo de bom das tragédias, pensa Klara. Mas no caso dela, a experiência no
árido deserto da dor e do sofrimento proporcionará crescimento espiritual,
ampliará a visão da existência? Ao final vemos que não: Klara se esforçou para
alcançar a compreensão do propósito divino. Ela duvidou, levantou questões
corajosas, jamais permaneceu em silêncio. Mas se calou em humildade quando
a dor cruel se proclamou vitoriosa.
– Nenhum dos meus intentos pode ser frustrado. Eu é que sei os pensamentos
que tenho: pensamentos de paz e amor, de esperança. Mas em quê?
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Klara sabe que foi longe demais nas especulações sobre a vida e a morte:
– Uma coisa é questionar a vida, outra coisa bem diferente é julgar a vida.
Após isso Klara não se recorda mais nada, a não ser que dormiu e que de manhã
o espelho refletiria o mesmo rosto emaciado...
Quando entrei em casa, Klara estava sozinha, recostada na pia da cozinha com
uma taça próxima à boca. Tinha o olhar distraído, os pensamentos imersos em
algum poço profundo, ela nem se deu conta da minha chegada. A cor arroxeada
do vinho tinto tornava seus lábios mais encarnados do que o normal. Apoiava o
cotovelo sobre o outro braço dobrado ao nível da cintura.
Era noite. A luz do teto caía sobre os cabelos de Klara deixando os olhos em
sombra, mas dava para ver que ainda assim brilhavam. Era esse mesmo brilho
que alimentava um leve sorriso de satisfação, alegria de ver um perigo se
dissipar.
– Uma biopsia negativa – repeti. Ora, ora! Então mais do que nunca eu também
tenho o quê comemorar.
Enchi outra taça e trocamos um brinde levemente. Coloquei a taça contra a luz:
o vinho tinha cor do sangue quando seca após um corte – coisa que só a
variedade pinot noir consegue. Passei os braços ao redor da cintura fazendo um
carinho, que Klara respondeu agradecida.
– Também estou feliz pelo resultado, embora não soubesse de nada. O que
houve?
– Puxa! Não alarmar a ninguém! Que droga é essa? Estou aqui ao teu lado não
só para as alegrias, mas para ser alarmado também! Logo às vésperas de minha
viagem. Mas, enfim, com essa boa notícia, poderei viajar tranquilo.
– Bem, não quis mesmo era te deixar preocupado. O Antônio Carlos sempre
soube e sempre me acompanhou nos exames, mesmo com o pouco tempo que
as apresentações em TV, rádio, mais entrevistas, assinatura de contratos,
empresário, parceiros de grupos, essa coisa toda.
Antônio Carlos – ou Toni – era cantor, compositor, negro, baiano, cujas músicas
estavam começando a ficar famosas e bem tocadas. Pertencia a um grupo de
artistas que ficou imprensado entre a Bossa Nova e o Iê-iê-iê, gente que
compunha um samba de cadenciado lento, mais próximo ao samba-canção,
com leve influência jazzística.
Era um negro bonito, sorridente, nariz afilado, lábios salientes, cabelo à moda
black-power norte-americana, sempre solícito, educado nas maneiras e se
expressava de maneira suave. Era bom cantor, tinha a tonalidade morna,
aveludada, quase afeminada – como o velho Nat King Cole.
No dia seguinte eu começaria uma excursão de serviço, que iria me deixar longe
de Klara por longo tempo. A empresa em que trabalhava resolveu me designar
supervisor de vários fornecedores e assim virei viajante sem pouso, pulando de
um lado para outro, o que me deixava sem tempo algum para voltar ao Rio de
Janeiro.
– Agora vou tomar um banho quente, gostoso. Bebe o vinho, te serve do que
quiseres e me espera para jantarmos juntos. A casa é tua, sempre foi, sempre
será, tu sabes...
Não se sabia o que era mais saboroso nesse café: o aroma que exalava no
ambiente quando estava sendo preparado ou o sabor amargo, quando sorvido
sem açúcar.
Menos de trinta dias depois, recebi uma carta de Klara, dando conta que tinha
sofrido mastectomia na mama esquerda. Aquela mesma cuja biopsia serviu de
motivo para deixar um bocadinho mais alegre as sempre tristes comemorações
de despedida.
Procurei saber se Toni estava a par de tudo aquilo, talvez a presença dele
sufocasse menos o dia-a-dia de Klara. Como ela não tinha contado nada a ele –
queria poupá-lo ou tinha medo de perdê-lo – sugeri que ela colocasse as coisas
pouco a pouco, o que ela aceitou. Essa atitude veio a transformá-lo num apoio
que se mostraria imprescindível. E me deixaria mais tranquilo, sofrendo menos
o peso da tragédia que apenas se vislumbrava.
7 de julho
Klara
Estou aqui com um retrato antigo meu, na cadeira forrada de sola tingida de
castanho, daquelas que abre e fecha para facilitar o transporte. É uma cadeira
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baixa, de quase dois palmos, rente ao chão do quintal cheio de fruteiras viçosas
da nossa casa em São Bento.
Aqueles óculos não são meus: naquele tempo tinha a vista pura e limpa como o
ar diáfano dos campos de flores douradas da minha terra natal. Tanto que,
mesmo vistos à distância, sempre distingui a alvura imaculada das garças e a
negrura solene das graúnas. Alguém quis dar à minha infante figura o ar grave
de gente grande, e os óculos de aros grossos se prestam bem a isso.
De mim eu sei bem o que o tempo fez. Sei também, de modo inequívoco, o que,
deliberadamente ou não, não permiti que fosse feito. Mas aquele instante com
o livro aberto ao colo parece que, por força da memória, todo dia se repete em
minha vida: como bem sabes, durmo e acordo sempre com os olhos ocupados
na leitura.
Sinto que transmiti o vício a ti, embora tua escolha tenha sido para ler nas
histórias o lado doce da vida. Agora, vendo esse antigo retrato, noto que não há
nada de errado com isso: são os lados doces da vida que mais enfeitam nossa
existência...
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TRÊS
1 - NO CEMITÉRIO SÃO JOÃO BATISTA
– Não precisa se preocupar, você será avisado por telefone e só irá lá quando
tudo estiver concluído. A fila está grande, mas o prazo não deve passar dos
trinta dias.
Fiquei sabendo, por exemplo, que pelo decreto 482 de 1851, o terreno onde
está o cemitério foi doado à Santa Casa de Misericórdia, que iria fundar e
administrar os cemitérios da cidade. Mas na prática a inauguração só se deu em
1852 quando do enterro de Rosaura, filha de Cândido Silva, de apenas quatro
anos.
O antigo Sítio Berquó, tem pela frente a Rua General Polidoro e se estende até o
Morro de São João, na entrada do Túnel Velho. A portaria monumental,
esculpida em granito, e os gradis de ferro fundido, foram projetados pelo
engenheiro fluminense Bittencourt da Silva. O cemitério cresceu em
importância depois do traslado dos restos mortais de Álvares de Azevedo e com
a construção dos túmulos de políticos, pessoas famosas, ricas e nomes
tradicionais.
O folheto diz, mostrando certo orgulho, que o São João Batista é um dos
cemitérios mais ataviados do país: centenas de ricos mausoléus, sepulturas
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artísticas, túmulos perpétuos de sociedades e famílias de condes, barões,
verdadeiras obras de arte.
No centro antigo está a capela São João Batista. Bem perto da orada, está a
quadra das Irmãs de Caridade da Ordem de São Vicente de Paula. Essas freiras
assistiam os doentes e internos da Santa Casa. Lá também estão também os
mausoléus da ABL, do Herói da II Guerra Mundial, do Aviador, do Marinheiro e
dos Veteranos da FEB.
Aquela é a a aleia principal – satirizada pelo carioca como Vieira Souto (alusão à
famosa via da orla de Ipanema) – onde ficam os túmulos mais caros e mais
visitados. Ali estão as personalidades famosas, os cantores, cantoras,
compositores, pintores, artistas em geral. E também os túmulos ditos
milagrosos, geralmente pessoas e anjos, crianças envolvidas em morte trágica,
cujas sepulturas recebem todo tipo de manifestação, inclusive depósito de ex-
votos, agradecidas imagens de cabeças, órgãos curados, etc.
A leitura foi interrompida e finalizada com o início da retirada dos ossos. Larguei
o folheto de lado para ver a laje da campa retirada e posta de lado. O
reconhecimento do local fez surgir lá de dentro surgiu o caixão – ou o que
sobrou dele – partes apodrecidas, apenas os metais tinham sido preservados
pelo tempo. O resto – madeira, ornamentos, tecido, atavias – tudo estava
podre, transformado em matéria orgânica.
Droga, essas coisas vêm à cabeça quando menos se espera... Mas era exato
assim desse jeito que Klara era. Não tinha como deixar passar um gracejo.
Deixei de lado as lembranças para acompanhar o trabalho. Depositando a
pequena urna de lado, o funcionário calçou as luvas para começar a retirada dos
ossos.
A operação era cheia de detalhes – ele pegava os ossos um a um, sacudia para
retirar qualquer sujeira, separava com cuidado as partes iguais, as articulações,
os membros – e depositava tudo na urna numa ordem que só ele conhecia. O
outro colega acendeu um cigarro e ficou ao lado, dando apoio, atendendo aos
pedidos, recolhendo as sobras.
Por fim chegou a vez do crânio – que era a última peça a guardar. Foi só então
que eu reconheci Klara. Sim, ela, era ela, seus restos, que estavam ali. O crânio
redondo e bem formado, que tinha sido ornamentado um dia com vastos
cabelos cacheados, como aqueles da fotografia, castanhos, molhados,
encarapitados como uma coroa. Os dentes estavam perfeitos, e de novo me
veio de volta à lembrança do sorriso, da gargalhada, todas aquelas expressões
que demonstravam a alegria de viver, bem próprios dela.
Antes de encerrar os trabalhos, antes de recolocar a laje no local, para que fosse
limpo e renovado para novo sepultamento, o funcionário deu uma última e
detalhada varredura no interior da tumba. Suas mãos voltaram bem lá do fundo
com um objeto nas mãos:
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– Quem sabe ela não deixou algum dinheirinho para mim?
Mas nada. O que havia dentro do saco era outro envelope, de papel pardo
plastificado, mais resistente, mas que não suportou as intempéries do tempo,
deixando que a umidade tomasse conta da superfície e, decerto, do conteúdo.
Liberei o grampo e dei uma olhada no conteúdo:
Não parei para pensar quem tinha tido a ideia de colocar algo assim tão insólito
dentro do caixão. Provavelmente alguma amiga íntima? Alguém que havia
guardado aquelas lembranças e queria enterrá-las para sempre? Não sei e nem
saberei. Só sei que o destino não quis que fossem esquecidas para sempre, nem
que fossem transformadas em cinza pelo fogo do crematório...
Naquela casa, que sempre foi estranha para mim, morava um primo que passei
a gostar muito. Era bem mais velho que eu, mas me tratava de igual para igual,
não como adulta, mas alguém que tinha inteligência e atitude. Além do mais me
deixava chamá-lo de Tio.
Ele era diferente de todos os outros: usava barba, ainda que aparada – adorno
reservado para poetas, escritores e jornalistas – óculos redondos de aros
grossos e fumava charutinhos pequenos e finos, cujo fumo exalava o perfume
doce de especiarias, misteriosas. Jamais calava diante dos muitos os assuntos
tratados em casa e a sua voz era quase sempre discordante.
Ele era o único que não tinha horário determinado para isso ou para aquilo.
Para chegar, para sair, para se alimentar. Quando se apresentava para as
refeições era sempre muito cedo ou muito tarde, ou a mesma já estava de
permeio, prestes a terminar. Nas conversas, durante as refeições ou na sala, ele
jamais se omitia em expor sua própria opinião, mesmo sem ser instado a isso.
Na maioria das vezes o que expunha divergia do senso comum: sua voz era a
voz do espelho avesso, que reflete uma imagem bem diversa daquela que
estava à sua frente. Por isso era tratado como um renegado: diferente, excluído
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e nunca o levavam a sério – embora eu notasse que o pai de todos nós, o dono
da casa, de modo discreto largava o garfo a meio caminho da boca para refletir
no que ouvira.
Eu olhava admirada para aquele meu irmão, o único adulto presente nessa
fotografia em que crianças sujas de areia são as figuras principais: tinha-o como
aliado, era como se fosse meu herói.
Éramos, também, como dois cúmplices no antro dos inimigos. Volta e meia –
sabendo que eu me mantinha atenta às suas palavras e atitudes – trocávamos
breves olhares e meios sorrisos. Ademais, esse primo-irmão sempre tirava um
domingo do mês para me levar à praia. Ele ia em silêncio até meu quarto, me
cutucava com os dedos ossudos e, como que gritava em surdina:
Primeiro ele parava num depósito de carros velhos para espiar entre os mais
antigos, guardados mais ao fundo e ver se tinha alguma novidade. Seguíamos a
pé até onde ele ia e realmente a gente encontrava os carros mais antigos que
jamais tínhamos visto, mas que ainda mostravam resquícios da beleza que já
tiveram. Juntos repousavam restos mortais de um velho Cadilac, Rabo de Peixe,
um Ford esquecido, um Buick negro, um Studbaker com pinta de foguete ou um
Austin-Halley com fleuma e ares britânicos.
Era gritaria agitando a viagem toda. O bando de trás fazia careta através do
vidro para os outros, mas eles nem ligavam, sorrindo alegres, os cabelos
revoltos pelo vento, os olhinhos fechados para evitar a agressão da poeira.
Aquilo era mar de piscina e qualquer criança podia brincar ali sem perigo.
Outros já estavam arrumando os times, batendo bola na areia, dando bicicleta
no ar, fazendo defesas espetaculares. Quem não brinca vai apanhar murici e
depois descer a toda velocidade, rolando do alto das dunas.
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3 - AS TRÊS AMIGAS
Antes de se isolar de vez, ainda recebia as três amigas e, mais raro, uma e outra
pessoa. Lembro bem das fotos que recebi registrando as reuniões: Klara sempre
com um lenço vermelho com motivos híndi protegendo a cabeça calva e as
sobrancelhas sem nenhum pêlo. As olheiras – bem marcantes da sua
ancestralidade – serviam de moldura para dois olhos negros naufragados em
sofrimento. As três amigas ainda esboçavam um sorriso, mas as feições de
Klara, os lábios ressecados em riste, já tinham assumido o rictus subjacente da
viagem sem volta, o desígnio assumido.
Não foi surpresa que ela inventasse mais uma das reuniões, já com intenção de
torná-la a última. As primeiras palavras de Klara eram de desabafo: não queria
explicação das amigas, também não espera interpretação para o seu
sofrimento. As amigas sentem obrigação de responder ao desabafo, de maneira
mais gentil possível e respeitosamente pedem que Klara não fique zangada. É
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que as três amigas ainda viam em Klara a companheira religiosa, cheia de fé e
esperança, mas se surpreendem quando a mutação se faz clara aos seus olhos.
É sempre mais fácil evitar o golpe dos que estão contra nós para conservar o
inimigo à distância. E se durante anos, Klara tivesse vivido uma farsa, fazendo-a
crer que era feliz quando na verdade a desgraça aguardava oportunidade para
feri-la?
Quando se juntou às três amigas, Klara queria ser igual a elas para gozar a
amizade, mas também a perseverança da fé em Deus. Agora que tinha
acontecido a desgraça, por que Deus e todos ao redor a tinham abandonado?
Por não entender a razão de tudo aquilo, o temor de perder o relacionamento
com Deus também se evaporou.
– Carinho e compreensão dizem mais que mil palavras: oferecer um sorriso, uma
lágrima, um abraço, uma oração, mostrará a Klara que não está sozinha.
Até então, Klara tinha a certeza de possuir um grupo de três amigas, mas
despida de religiosidade através do sofrimento, essas palavras soaram de
maneira diversa, refletindo na alma – como o espelho negro – a mais completa
escuridão. Agora nem mesmo a lua cheia conseguia trazer luz ao seu espírito,
nem o quartinho escuro, nem os vidros coloridos conseguiam suscitar a
ressurreição de um novo dia. Klara resolveu assumir o destino que um dia
guardou num envelope lacrado, que circulou por todo o mundo sem trazer um
pingo de liberdade sequer.
Finalmente, para deteriorar tudo de uma vez por todas, as três amigas
chegaram a uma conclusão que vai machucar Klara muito mais do que tudo o
que lhe acontecera até o momento. Elas dizem em uníssono:
Depois de ser atingida por uma doença pavorosa e deformadora, após ser
abandonada em sua fé, depois de passar semanas deitada num leito, Klara
afinal renuncia a tudo. Agora temos a oportunidade de conhecê-la melhor.
Podemos ver Klara não como a crente espiritual, que não se abala à toa, mas
como uma mulher de carne e osso.
Ainda hoje tantos fazem o mesmo quando veem uma história similar à de Klara:
pensando ajudar, procuram falhas para justificar o sofrimento; inventam toda
sorte de acusações; dizem que sua religiosidade é só de aparência; que o medo
de ficar pobre a estava atormentando; que Deus está pesando na punição. A
verdade é que Klara não era perfeita, mas não havia cometido falta tão grave
que justifique o sofrimento exagerado, nem mesmo à luz da religião. Ademais,
nem todo sofrimento pode ser explicado como castigo de Deus.
Orgulhosas, as três amigas pensam que isso pode ter feito muito bem a Klara.
Afinal, ela pôde contar com as três amigas fieis ao seu lado, em silêncio
respeitando a sua dor. De modo ingênuo, transmitiram a Klara suas conclusões,
sem pensar em magoá-la, mas foi tanta a ingerência em sua vida pessoal que o
efeito foi hostil. As três amigas não alimentam esperanças com relação ao
futuro. Pensando assim, pedem a Deus que faça justiça enquanto Klara estiver
viva. Ora, para as três amigas, todos são iguais após a morte, então, todos os
atos devem ser punidos ou recompensados em vida aqui na terra.
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Assim, acreditam provar a sua lealdade acima de qualquer dúvida e levar
solidariedade foi um ato positivo que fez muito bem a Klara. Vaidosas, acharam
que era um privilégio para Klara poder contar com três amigas fiéis ao seu lado,
observando um silêncio respeitoso diante da sua dor. Mas as coisas não
pararam por aí, infelizmente. Durante o dia em que ficaram caladas, as três
amigas de Klara começaram a refletir sobre tudo que estava ocorrendo.
Colocando-se acima de Deus, geraram teorias próprias para explicar o
sofrimento de Klara.
Determinada a terminar a vida num quarto mágico, que era pirâmide e esfinge,
Klara delimitou o trespasse da última fase da existência. Ali poderia inventar
consigo mesmo mil histórias para tentar saber como tinha acontecido tudo isso.
Já não era o mesmo quarto, a menina perdida com uma maleta nas mãos, as
janelas de quartzo, os vidros coloridos, oito reflexos cristalino de luzes
multicores pulsando num universo em contração.
A paixão de Klara por Itaipava, porém, não se deu por causa do tom soturno do
inverno nevoento. Antes, muito pelo contrário. Quando se decidiu comprar uma
morada para passar as férias e se recolher na aposentadoria, Klara juntou uma
agenda de endereços selecionados e, num sábado de verão, pegou o ônibus e
subiu a serra.
Mas não foi assim desde o começo: o dia estava claro e sem nuvens, a paisagem
verde refletia raios cintilantes no asfalto, os fios de água escorriam das
nascentes pedregosas, tudo fazia com que a viagem pela estrada ondulante
fosse tranquila e descansada.
Chegando à rodoviária Klara pegou um táxi e, para que a busca fosse produtiva,
resolveu ajustar a busca programando-se com a ajuda do motorista. Foi assim
que conheceu o Ferreira, que iria atendê-la sempre que fosse chamado.
Explicou do que se tratava e, dando a sequência de endereços, deixou que ele
pusesse em ordem.
A caçada pela casa começou debaixo de um sol forte e clima seco. Klara
abasteceu-se de água mineral e botou o chapéu de palha de abas largas que
costumava usar nas caminhadas do Leblon. Primeiro foram ao distrito de
Corrêas, três endereços apenas.
Realizada essa primeira etapa, com uma pausa para lanche e descanso, a busca
depois se concentrou em Itaipava onde, em segredo, Klara depositava as
melhores esperanças e desejos. Ela partiu para as visitas com vontade e ânimo,
determinada a concluir a busca e encontrar a casa dos sonhos.
Andou, andou, sempre auxiliada pela boa vontade do taxista, mas nada se
encaixava em seus desejos. Ainda seguiu algumas indicações dadas por Ferreira,
que não tinham sido previstas, mas mesmo assim nada se encaixou com o que
ela queria. O fim da tarde se aproximava, o vale começava a amornar as suas
cores, um último fio de sol se deitava atrás das montanhas.
Klara e dona Hortência, pois, logo enfrentaram uma palestra tão calorosa
quanto à temperatura ambiente. Pois é sabido que assunto puxa assunto e tudo
foi se encaminhando de modo natural até chegar ao trabalho infrutífero que
Klara teve na busca por uma casa que – àquela altura não tinha dúvidas – só
existia na sua fantasia. Como imaginação era o que não faltava a Klara, ela pôde
relatar com detalhes a sua quimera, como também a sua frustração, a desilusão
em ter falhado.
– Pois você nem imagina minha querida – os olhos de dona Hortência brilharam
– porque a casa que você descreveu está a apenas 300 metros daqui. Para ser
mais exata, é na mesma rua em que moro!
E, sim, naquele momento se podia afirmar que ninguém iria imaginar que as
flores iriam desaparecer daquela casa, nenhuma fotografia mostrava o
ambiente soturno e fantasmagórico em que se converteu, quando em presença
da doença e do mal. Não. Essa casa era bonita, sim, bem escondida debaixo de
um arvoredo antigo, cujos cipós gotejantes desciam dos galhos até o chão.
Logo a imagem se desviou de rumo e tudo se resumiu num futuro em que outro
carro chegaria quase em silêncio, trazendo a alegria e o prazer pelos quais Klara
tinha desmontado toda a sua estrutura e recriado outro país para viver: Antônio
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Carlos. Ele estaria de volta depois de excursão ao nordeste, apresentando
shows de Salvador a Fortaleza e a promessa de uma semana de folga caiu como
um presente dos céus.
Agora que tudo parecia cor-de-rosa, Klara reparou que fez muito bem em
aceitar meu conselho, quando em conversa me falou:
– Antônio Carlos vai fazer uma excursão e quer que eu vá com ele.
Tentei não dar ao assunto um aspecto trágico, o que funcionou logo e seus
ânimos arrefeceram, desconversei antes de responder, para que eu mesmo
botasse a cabeça no lugar. Que responsabilidade me caiu no colo! Logo a mim
ela pede socorro, logo de quem obteve apoio para quase todas as iniciativas, ela
indagava:
– O que fazer?
– Você vai explicar a ele tudo sobre o seu trabalho, de como tinha programado
assim se realizar, de como lutou para conseguir e da importância para o seu
futuro. Se ele realmente amar você, irá compreender, aceitará a sua opção,
saberá que você estará o esperando ao fim das excursões. Fale com convicção,
mas com amor, firme, mas com delicadeza. Vai dar certo, vai dar certo...
Depois que o ruído do motor silenciasse ainda haveria tempo para uma ducha,
um lanche de queijos e vinhos, pão de cevada, as torradas que dona Hortência
preparara.
20 de janeiro
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Klara.
Passei apenas quatro dias em São Bento. Mas foram quatro dias com o coração
acarinhado pela gentileza de velhos amigos nascidos na região – que ainda
retêm e representa de modo mais fidedigno –, o autêntico espírito maranhense.
Num repente, ali estão os meninos da minha infância, todos sem falta, com
chapéus de carnaúba enfeitados de fitas coloridas, peitorais e aventais de
veludo brilhantes de canutilhos e miçangas na brincadeira do Boi de São João.
Tempos depois seria tua a imagem a vestir tais lembranças, pois gostavas de te
fantasiar com vestido de chita, fita vermelha na cintura e chapéu de palha
coberto de miçangas e vidrilhos. Para completar tua beleza – lembro bem – dois
algodões de ruge na face e um pingo de batom carmim nos lábios...
Não penso noutra coisa a não ser voltar logo para São Bento. Vou de novo
sentar num tamborete, na calçada da igreja, proseando entre o sabor do café
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torrado, da fatia de queijo, da colherada de arroz-de-toucinho. Ouvir histórias
da vida, sorver em pequenos goles o espesso e generoso vinho da memória,
repor ordem no pensamento.
Desta vez quatro dias foi pouco tempo para tanta lembrança, tanta sentença,
conceitos e princípios, nascidos da experiência de um homem simples, puro,
bom, um sábio eremita de nosso tempo.
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QUATRO
1 - CARTAS SÃO BEIJOS E ABRAÇOS
Tio Zequinha é tio e amigo, maranhense de gema, do signo de Touro, que Vênus
favoreceu com o dom da escrita, gênio tolerante e personalidade generosa.
Nesse tempo indefinido vejo-o atravessar a rua em passos marcados, nas
assíduas visitas a parentes.
Onde passa deixa lembranças terrenas, produtos do dia a dia, coisas feitas em
casa e compradas com amor: uma dúzia de ovos, uma garrafa de vinho tinto,
uma caixa de bombom, queijo minas curado, manteiga da fazenda, pães
fresquinhos, beijus, canjica, queijo de São Bento.
Sempre que era preciso varrer as lembranças, o Tio Zequinha me leva à padaria
do Seu Ramos que, ao ver meu semblante triste, traz logo com a cesta de
bolachinha, a manteigueira de lado e um sorriso.
Logo depois, traz o café com leite, pão com manteiga e açúcar quente. O Tio,
taurino apresado, distraído, extravagante nas emoções, trazia lágrimas aos
olhos com facilidade.
Três ou quatro vezes por ano, o Tio Zequinha faz um passeio a São Bento e às
vezes me convida. Vamos de carro, carregados de mantimentos e presentes.
Atravessamos o canal de ferry boat, a bordo do qual uma sinhá vende
apetitosos pastéis: camarão, queijo, carne; serve deliciosos gelados: cajazinho,
coco e manga; copos de limonada, sorvete de coco e picolé de manga.
Nessas ocasiões seus olhos ganham um brilho extra, as coisas mais bobas
trazem um sorriso aos seus lábios, era toda uma felicidade só.
Dava gosto ver como ele é querido: na cidade todos param para cumprimentá-
lo, recebe muitos abraços, convites para almoços, jantares, agrados, comidinhas
aqui e ali. O prefeito, o padre e o tabelião – que são as pessoas mais
importantes da vila – assim que tivessem conhecimento da sua presença, logo o
procuram para o abraço amigo.
Escrever carta é coisa que Tio Zequinha – em respeito e para manter a fama de
caladão – não faz a ninguém (Klara é a exceção), por isso não foi com surpresa
que Klara recebeu a correspondência dele. Não ficou só numa carta, não. Depois
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muitas outras ele me escreveu, como se soubesse que elas eram o um salva-
vidas.
Tio Zequinha sempre começa as cartas com uma frase que me repetia sempre:
“Agora que você já é gente grande e independente” – era assim que costumava
dizer sorrindo.
O bilhete era sobre pão com manteiga e açúcar, mas nas entrelinhas havia
muito mais: tinha uma alma e um coração juntos, que vieram para dar o
conforto que eu precisava.
Não poderia imaginar o que se passava com Klara, atacada por todas as mazelas
de quimioterapia, ainda mais quando se alternava com a radioterapia. Devido
ao peso que trazem as muitas responsabilidades assumidas, Antônio Carlos não
tinha tempo sequer de pensar em Klara, no dia-a-dia, nas particularidades,
senão como a amada ausente.
Não tinha condições psicológicas de saber como a aparência física dela tinha se
transformado, nem as alterações psíquicas, mentais e morais que essa
metamorfose carregava consigo.
Como um hábito social Klara guardava para si toda a dor. Como se respondesse
ao costumeiro “como vai?”, suas palavras para Antônio Carlos eram de conforto
– como se orgulhasse da obrigação de vedar ao seu amor a situação grave que
vivenciava.
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Não se considerava solitária. Klara sabia que no mundo muita gente suportava o
tempo hostil que ela mesma tenta superar, que sua dor é muito comum ao
destino de tantas almas: o impacto, o choque, a violência e agonia de um lado,
confrontados com a alegria, o júbilo, o contentamento no sentido oposto. Dois
tempos antagônicos de destinos conflitantes, direito e avesso, duas almas
vivendo climas contrariados, verso e anverso.
Klara de vez em quando botava para fora forte doses de um sarcasmo ácido.
Não sei de que veia ela tirou esse instinto, que não se confundia com nenhum
tipo de discriminação: era crítica, autocensura, objeção, revolta às vezes,
oposição. Foi assim, de modo instintivo como os bichos, que ela encontrou um
jeito especial de demonstrar insatisfação.
Também não sei onde ela arranjou a letra de uma marchinha de carnaval, mais
chegada ao escatológico que satírico, pelo jeito música bem antiga, o que não
era fácil. Mas ela conseguiu, cantou, ensinou-me a fazer o dueto. Era a marcha
do boi Espalha Merda:
Nessas horas Klara olhava para mim, piscava o olho e eu já sabia: lá vem a
marchinha do Espalha Merda. Ela se levantava eu ia junto. Botava as mãos na
cintura dela e começávamos a circundar o grupo cantando bem alto:
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Chamaram meu boi de Espalha Merda
A turma lá de casa protestou
Me desculpe seu doutor Carlos Lacerda
Espalha Merda é o cu-da-mãe de quem chamou.
Nessas horas eu ficava olhando para Klara e bem que reparava como os olhos
dela brilhavam, enxugando o suor com um lenço, arrumando os cabelos,
acompanhando, por sua vez, a cada um de seus amigos, colegas, parentes e
como eles chegaram por fim ao entendimento. Tudo por causa de uma
marchinha boba sem pé nem cabeça.
Então eu dava um jeito de escapulir até ela só para mandar um olhar malicioso,
uma piscadela, um sorriso cúmplice – de imediato assimilado em conluio. Essa
colaboração espontânea para que seu espírito e pensamentos tornassem ao
equilíbrio tinha a correspondência logo confirmada através de um largo sorriso.
A paz voltara.
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Relembrando tudo isso com um punhado de cinzas na mão e na alma, ainda me
rói um pensamento: aonde Klara, carregando a leveza da adolescência nos
ombros, foi encontrar essa marchinha, ainda escorreita nos dias de hoje?
Descubro que em Goiás existe o Bloco Carnavalesco Espalha Merda; que o boi-
bumbá Espalha Emoção, do Pará, é um ex-Espalha Merda; que a banda Mocotó,
do Maranhão, tem como mascote o boi Espalha Merda; que Espalha Merda é
um bloco do tradicionalíssimo carnaval de Olinda, PE. Descubro coisas assim e
também que ocorre uma variada gama de plágios, adaptações e variantes
moralizadas da marchinha Espalha Merda.
Aqui faço um necessário parêntese para registrar o fato de que nenhum dos que
me contaram a história, em virtude da força da ocorrência e seu eco popular, se
lembrava mais do nome original do boi Espalha Merda. Mas bem que poderia
ter sido igual ao tradicional Boi Barroso, com um nome fulgurante e
espalhafatoso, como Estrela de Aço, Força da Natureza ou outro qualquer de
igual poder carnavalesco.
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A partir de então, de surpresa, mas sem perder a nobreza, cada passada do
Brilhante Estela era acompanhada do despejo de um bolo de excremento, que
se espatifava sonoro no chão. O estrado coberto de areia branca foi ficando
todo salpicado de bolotas de bosta, que mais pareciam broas para assar no
forno. O espetáculo inusitado arrancava da plateia gritos, risos, vaias, até que
um espectador mais gaiato soltou o epíteto fatal:
– Espalha Merda!
Bastou dar o passo inicial e dentro em pouco o coro foi aumentando, até que
toda a arquibancada gritava em uníssono:
É claro que o ódio subiu à cabeça dos proprietários e familiares, com o apoio
dos demais camarotes, alguns modestos escondendo o riso, alimentando a
réplica irada:
Mas a coisa não ficou por aí porque, malgrado o evento desastroso, o Espalha
Merda (ou Brilhante Estela) conseguiu classificar-se, com mérito, entre as 10
melhores reses da temporada, ganhando direito a participar do desfile final.
Mas aí já era tarde.
Por outro lado, a confusão foi tanta que foi difícil aos organizadores controlar a
plateia e por um triz o evento não se encerrava sem conhecer o campeão. Aliás,
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nem vou contar mais nada, porque foi daí que surgiu a segunda parte da
marchinha:
Meu pensamento está preso em outros dias, na amizade de Klara, os jovens nas
festas, as explosões de alegria e riso, no clima tenso, horas em que Klara, jeito
maroto, me piscava o olho.
Lá vinha ela à frente de uma turma cantando a marcha do Espalha Merda, alto e
bom tom, eu corria junto, com as mãos na cintura dela, circular em volta do
grupo:
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A turma ia aderindo àquela figura catalisadora como pressentindo nela a
liderança, de repente o grupo hipnotizado dançava e cantava à viva voz.
Fábula: No princípio Deus criou as aves sem asas. Elas sofriam muito para
procurar alimento, saltando de um lado para outro, as pernas e o corpo se
feriam nas pedras. Um dia as aves amanheceram com um peso nas costas, sem
saber do que se tratava. Teve muita reclamação: frágeis, com as pernas e o
corpo fracos. Agora Deus as fazia carregar um peso a mais nas costas. Que
injustiça! Até que uma ave questionou: qual a finalidade disso? Ela abriu as asas
e saltou. O começo foi difícil, mas não demorou e ela adquiriu habilidade. De
repente, ante o olhar abismado das outras, a ave se ergueu, voou livre, deixou
para trás a vida presa ao chão. Então todas entenderam: aquilo que parecia um
peso na verdade era o instrumento de conquista das alturas e da liberdade.
Klara é uma pessoa real, que enfrenta duras provações, mas não consegue
vencê-las. Sua história jamais será contada na íntegra e nos séculos vindouros,
de geração em geração, seu nome será apagado. Os detalhes dessa história se
tornaram conhecidos, porque a autoria está inspirada por um sonho a relatou,
acrescentando pormenores, concebeu assim o destino de Klara.
Os detalhes desta narrativa foram trazidos até nós pela inspiração, pela
coincidência, o véu que cobre o mundo espiritual foi tirado para nos deixar ver o
que se passa por detrás do cenário da dor e do sofrimento. Klara estava tendo
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embates no plano natural e físico, mas eram lutas decorrentes de outra batalha
no plano espiritual?
Se alguém sofre doença ou infortúnio isso é sinal de pecados graves. Hoje essa
forma de pensar da antiguidade se resume em “aqui se faz, aqui se paga” ou “o
inferno é aqui mesmo”. Não sabemos de quem foi a autoria de o destino de
Klara, mas sabemos que era uma mulher que tinha intimidade com as letras,
que seguia e respeitava os ensinamentos cristãos, mas discordava da doutrina
tradicional da retribuição.
A autora procurou não só a resposta mais exata para o sofrimento, mas também
apresenta um novo ensino que é capaz de explicar a questão do padecimento.
Se as tragédias não podem ser atribuídas a falhas humanas, como explicá-las
então? Como entender um Deus bom e, ao mesmo tempo, ter de viver num
mundo de tremenda desigualdade?
Se for verdade que o honesto e o bom sofrem, por que ele sofre, por que não
vive num mar de felicidade? Então, logo em seguida se indaga: o que sobra a
Deus, poder ou bondade? Klara acredita ter resposta para essas perguntas, ela
se esforça corajosamente para encontrá-las. Klara não se conforma com
respostas simples que a sociedade apresenta e, com todas as forças, mergulha
em busca da verdade.
O que Klara queria? Ouvir a voz do Senhor, conversar com Deus? O destino de
Klara é uma obra do universo, do criador para a criatura. Nele ficamos cara a
cara com a agonia de um coração, um corpo e uma alma massacrados pela dor,
pelo sofrimento e pelas dúvidas. Fatos ruins trazem aflição e questionamento.
Coisas ruins forçam a refletir e põem em projeção a fé e a convicção religiosa.
É verdade que nem todos sofrem como Klara sofreu. Mas todos sofrem. Não há
ninguém como ela que não conheça o gosto da dor. Para quem foi escrito o
destino de Klara? Para todos nós... Ainda hoje, se acredita que os bons não
podem sofrer, pelo menos, não por muito tempo. Se Deus é perfeito, o mundo
tem de ser perfeito também. Mas, do mesmo modo que se é desafiado
diariamente, todos os teoremas da fé são desmontados pelo sofrimento.
Sendo verdade que os bons sofrem, por que eles sofrem? O que falta a Deus?
Poder ou bondade para tornar as coisas diferentes? O destino de Klara não deve
trazer respostas a estas perguntas. Klara não se contenta com soluções
simplistas, que as pessoas oferecem para essas questões. O sofrimento sempre
parece coisa desprezível e má, assim tentamos, a todo custo, fugir dele.
– Todo dia é a mesma coisa. Esse grupo de maritacas passa para aquele bosque
lá adiante fazendo uma algazarra. Na verdade estão fazendo o caminho de
volta: de manhã todas partem em busca de alimento, atravessam a rodovia e já
do outro lado se dirigem àquela mata aonde ainda existem umas araucárias.
Seu alimento é a pinha, quando é tempo, o coquinho das palmeiras. Ainda tem
muita baba-de-boi, açaí, tucum. Quando a tarde chega elas voltam para casa.
– Ainda bem – disse Klara – que a população aqui tem instinto rural, não é? Se
não fosse assim poderiam atacá-las, provocando algum acidente ecológico.
– É verdade. Essas maritacas na verdade não eram daqui. Certo dia foram
chegando aos poucos, ainda sem lugar de pouso, como se buscasse um local
novo para se fixarem. Quando isso acontece é porque em seu local de origem
alguma coisa errada aconteceu, desmatamento, queimada, algo assim...
Justo agora que Toni, depois de passar uma semana inteira a sós ao lado de
Klara, se despediu e voltou ao Rio de Janeiro para cuidar da viagem,
prometendo contatos diários através da internet, pelos programas de
mensagem com vídeo. Tinha surgido uma oportunidade para o grupo se
apresentar na Europa e talvez Estados Unidos. A turnê deveria durar quatro
meses, mas com certeza o conjunto teria que aceitar novos convites para shows
– portanto, nunca se sabe quanto tempo a viagem duraria.
Seria uma longa separação. Klara tinha terminado a primeira fase do tratamento
e estava mais alegre que nunca, tal a certeza que haviam incutido de que a cura
estava próxima. As poucas vezes que falei com ela (o namoro com Toni trouxe a
vantagem de torná-la menos dependente de mim), senti a voz alegre, de gente
feliz, de pessoa que estava amando e sendo amada.
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No entanto, jamais deixei de recomendar que mantivesse a continuidade do
tratamento, com a mesma garra que tinha mostrado até então. Lembra-me que
usei uma frase até meio grosseira para acentuar a importância de não dar
trégua:
– Klara, tu não estás com um simples resfriado, que pode ser tratado com chás e
caldo de rã. O câncer tem cura, sim, mas é coisa séria. Cuida-te, cuida-te, cuida-
te.
Agora, ela iria ficar desamparada por muito tempo, teria apenas as lembranças
e as maritacas como companhia. Eu estava ausente, Antônio Carlos estaria na
Europa com o seu conjunto, incluído num grupo de músicos brasileiros e faria
apresentações em vários festivais. Essa oportunidade, que todos os artistas
esperam, o seu agente de pronto aceitou, tratando de resolver a agenda de
espetáculos sob esse novo prisma. Que peso teria a ausência dele no
tratamento, na própria doença? Pois dizem que o câncer também tem muito do
caráter emocional pelo que o doente passa.
Ninguém sabe, nem mesmo as amigas de Klara saberão a quem dirigir preces.
De novo cairá à tarde e Klara, estará sozinha, sem Dona Hortência, sem Antônio
Carlos, sem mim. Imagino-a sentada no velho sofá de almofadas coloridas,
espiando um último grupo de maritacas.
Aos poucos se fará um silêncio quase absoluto, que costuma invadir a serra logo
depois de as aves diurnas se recolherem. Apenas a fímbria de névoa descerá
sobre o bosque, fazendo-se de alvo lençol. Na verdade a névoa estará
percorrendo o caminho de volta, pois de manhã as nuvens todas partirão para
outras paragens, o céu estenderá o manto azul além do sol.
22 de março
Caburé me contou...
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Que a formosa cidade de São Bento fica bem ali do outro lado da baía de São
Marcos, vila de tranquilidade e paz seculares situadas sobre uma feliz ponta de
terra. No teu tempo, menina, São Bento não passava de um arruado com
algumas vielas, em derredor casas de gente humilde, lavradores, pescadores,
cujas mulheres são fazedoras de redes de fama.
Depois que não tem jeito de alguém lembrar-se do nome verdadeiro, o apelido
é sacramentado nos cartórios. Lá, por exemplo, há famílias Pisa Ouro, Bate
Banha, Peixe Frito, Afoga Gato e outras de nomes até mais exóticos. No entanto
têm também os Pereiras, os Correias, os das Silvas, os Cascaes.
E agora, contando tantas histórias, sei que hás de te lembrar um pouco da nossa
cidade querida de São Bento. Além do mais tem ainda o leite mugido de búfala
e o famoso queijo que, quando menina, gostavas de comer com bolachas.
Te mando, junto com esta, uns retratos tirados hoje em dia e verás que a cidade
cresce: já tem prédios de quatro andares! Tem também uma rádio e as
televisões pegam os programas de São Luís. Por enquanto teu Tio te contou
isso...
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CINCO
1 - ENTRE PAPÉIS AINDA LEGÍVEIS
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7 - Alimentação Suprema – A que promove a libertação do indivíduo, o vínculo
emocional entre o homem e a sua alimentação. Nesse caso, ele sabe
exatamente o quê come e por que come. É a alimentação que leva ao Nirvana.
Nabo Comprido – Ralado, comer em saladas. Fazer dez dias o chá da folha de
nabo para banho de assento. Agasalhar bem os pés para não pegar friagem.
Tomar o chá logo em seguida.
2 - O ESPELHO NEGRO
Aquela primeira noite que passei fora de casa ficou para sempre guardada na
minha memória. É coisa que jamais esqueci, até que a sombra se fez em minhas
retinas fatigadas, tornando aquele todo em apenas memória guardada numa
caixa. Mas, todas as vezes que uma réstia se forma no pensamento, aquela
noite entra e fica ali presente. Sempre a mesma memória, sempre a mesma. Até
em sonhos, descobri, ela vem e se repete.
Quem mais, além de mim, tem sonhos que se repetem? Alguém mais tem
sonho que faz uma pausa e depois reinicia e continua e para e reinicia de novo e
de novo? Pois aquela noite, em especial – como os sonhos –, se repete no
enredo, se repete no espaço, se repete na paisagem. Os dias passaram, os
meses e os anos foram arrancados da folhinha e continua a mesma história,
para mim reiterada a qualquer ocasião, sem que tenha sido chamada ao
pensamento, a mesma história vem, fica comigo e me acompanhará para
sempre.
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A parte superior das duas janelas, formada de quatro molduras com vidros
coloridos, que me traziam a visão de oito pedacinhos do céu cheios de luzinhas
multicores que piscavam sem parar.
Puxei o lençol até o pescoço, comecei a contar e dar nome às estrelas. Descobri
que nem mesmo a noite mais escura é suficiente silenciosa, sempre vem um
ruído quase imperceptível, como a dizer que não há o silêncio absoluto.
Não, não pude reter a lágrima que desceu logo que se fez dia e me vi naquele
quarto desconhecido. O dia anterior cresceu de novo em minha mente e tudo
retornou como se fosse um pesadelo imutável. Toda uma agitação se fez e logo
descobri que havia uma nova vida para viver. Novas rotinas, novos parentes –
irmãos, diziam – comprar roupas novas, sapatos novos, até o penteado mudou,
os cabelos foram cortados quase rentes, caindo nos ombros. Até o almoço foi
diferente, meio silencioso, mas que todos entabulavam conversa, menos eu.
Depois fui levada para uma escola na qual entraria de manhã e só sairia à noite.
E quando chegava ao meu quarto descobri que nem mesmo a noite mais escura
é tão negra que não se divise aquilo que se gosta. Sempre tem uma claridade
que os olhos arregalados capturavam para si, os ruídos quase imperceptíveis se
tornam comuns, confirmando que não há o silêncio absoluto.
Ademais havia ganhado um novo amigo: era aquele grilo que começou a
cricrilar bem perto. Nas noites seguintes comparecia sem falta e deixava que eu
o acariciasse aninhado em meus cabelos. Não sei quando ele voltava para seu
terreno, sua casa, seu ninho. Só sei que desde aquele momento em que pensei
ouvi-lo no parapeito, do lado de fora da janela, depois encontrá-lo já no batente
de dentro e depois deixar que se recolhesse nos meus cabelos – quando o
silêncio se fez – desde aquele momento se transformou na companhia perfeita.
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Até mesmo quando a incompreensão de tudo me fazia muda era no quarto e
nos vidros escuros das janelas que eu via refletida toda a incerteza do universo.
Levantava no escuro e ia conversar com o espelho negro, cuja imagem refletida
era mais negra ainda. Porque não via nada, ficava ali em frente ao espelho,
quase colada a um reflexo invisível conversando comigo mesma, quando mil e
uma perguntas se repetiam ao infinito. E nem a lua grande que clareava o
quartinho como se fosse dia me trazia resposta para perguntas sem respostas:
– Por que estou aqui? Por que fui dada? Por que não estou com minha mãe, meu
pai, meu irmão? Por que me chamam irmã, por que me batem?
E como nem a lua grande conseguiu clarear a minha alma, nem aquele o
quartinho escuro, nem os vidros da janela conseguiram trazer-me um novo dia,
resolvi que era aquele meu destino, que tudo estava e guardado num envelope
selado pelos correios, que há de circular por todo o mundo sem ter nem um
pingo de liberdade.
Foi assim, fingindo e suportando todas as agruras, como se tudo aquilo não
estivesse ocorrendo comigo, que consegui crescer – como cresci muito e forte –,
um dia do qual não me lembro de mais nada, quando peguei o trem para Nova
Iguaçu e nunca mais retornei àquele quartinho escuro e negro, nem mais ouvi o
cricrilar do grilo amigo, visitante noturno, inseparável.
Sim, não pensem que não reagi com calor um dia, quando me dei conta que os
bicos dos seios começaram a arder e os pelos negros me invadiram toda virilha.
Senti que o ventre respondia com arfar quando tocava de leve entre as pernas
diante do espelho.
Sim, sim, lembro-me de que aquela cama ficou pequena demais, quando
minhas pernas encompridaram, meus pés se esticaram para fora do lençol e
pude finalmente retirar todas as minhas roupas do velho armário, os cabides
parecendo esqueletos abandonados. O espelho do armário, no qual me espiava
arrumada, as pernas finas e tortas, os dedos dos pés escondidos nas meias
brancas e nos sapatos de verniz, aquele mesmo espelho no qual eu me espiava
dentro da noite e que, como um buraco profundo, nada refletia...
E quando me preparei para sair e da porta lancei uma última espiada para
dentro, para as janelas fechadas, esqueci por completo que um dia andei
fazendo perguntas aos vidros coloridos, que se tornavam negros ao primeiro
sinal de tempestade.
Tudo ali me parecia muito formal, como se fosse o reflexo daquele primeiro dia
em que ali cheguei. Mas, que novos dias me esperavam? Qual era aquele meu
novo destino? O que estaria guardado nesse novo envelope selado, que sairia
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dos correios para circular por todo o mundo, agora almejando todas as
liberdades?
Confio que naquele momento acabara de enterrar aquela primeira noite que
passei fora de casa e extirpá-la da minha memória. É coisa que jamais
relembrarei; até a sombra se refez em luzes coloridas, remoçando as minhas
retinas fatigadas; nem um pouco de emoção guardei para seguir estrada e todas
as vezes que uma réstia se forma no pensamento, não permito que aquela noite
de novo entre.
Esse é o paradoxo: acreditar num Deus perfeito, bondoso, com poder ilimitado
e apesar disso conviver com injustiças, desastres, tragédias e desgraças. O que a
palavra de Deus diz sobre a dor e o sofrimento? As explicações são que as
pessoas não sofrem do mesmo jeito e nem pelas mesmas razões.
Conheci a dor pelo pecado. Ouvi dizer que o sofrimento purifica a fé. Que há
uma dor para se arrepender. O sofrimento que gera perseverança. Há o
sofrimento para a disciplina. Li sobre o sofrimento que conduz à perfeição e o
padecimento para salvar. A aflição que aproxima do sofredor e o desgosto para
santificar. E, por fim, o calvário que iguala a Deus.
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Dizem também que Deus não desmerece a dor e o sofrimento. Usa isso para
propósitos mais elevados e que nas palavras encontramos todas as explicações.
Mas sempre vem de dentro o clamor: por quê? É um desabafo, um apelo para
que Deus escute, para que socorra, para vir sentar-se a nosso lado. Quero
chamar a atenção dele, quero que se apresente, dê uma explicação. Faço isso
porque quero continuar acreditando, como fez Klara...
Ainda que o Diabo arranque seus bens, a família, a reputação e a saúde – não
consegue arrebatar, de todo, a fé. Ela se revolta em alguns momentos, reclama
das calamidades, mas permanece fiel, prova que sua devoção é sincera. O
destino de Klara não é uma aposta: algo muito mais sério acontece, precisamos
sempre nos lembrar disso.
Para Klara tudo estava evidente. Ela conhece a integridade e sabe que nada
tinha feito para merecer aquele sofrimento. Então sua conclusão é óbvia: os
seres humanos estão por conta própria. A bondade não compensa. Deus não
liga à mínima: coisas ruins acontecem porque Deus não se importa. Cabe a Klara
dar um fim naquilo tudo. Por que continuar com a crença de que existe um Deus
justo e bom se tudo indica o contrário?
Como Klara reagiu a isso? Teria relembrado a razão de viver? Terá conservado
amargura no coração e na alma? Não sei, porque neste ponto ela desaparece da
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minha mente e da narrativa. Vira memória, lembrança de que pode existir uma
Klara mesmo aqui dentro de mim e em qualquer um. Sempre que sou atingido
por tragédias, a voz que acusa Deus se ergue dentro de mim. Por isso tenho o
direito de perder a fé e me revoltar.
Klara parou diante do espelho, mas a escuridão da noite não refletia a mulher
nua, magra em pele e osso, em cuja pele emaciada fulgurava uma série de
varizes roxas.
Ouvia-se apenas a voz sibilante, quase surda, que repetia a frase como se fosse
um refrão, constante, firme, inflexível:
Todo mundo fica desconfiado quando tenta misturar sabores opostos, mas a
falta de preconceito e a curiosidade natural fazem o caminho das aventuras
gastronômicas que acompanha nossa juventude.
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No mesmo caderno anota as receitas, notas e comentários recebidos dos
colegas de escola.
Ela lança a questão, olha para mim e ri. Pão com manteiga e açúcar é o lanche
que a gente prepara quando nos deixavam a sós na casa e não tinha nada
pronto para comer.
Esse caderninho Klara não dividia com ninguém. Não era um segredo como
tantos outros: trata-se de um arcano, daqueles que ficam guardados, cuja
fidelidade jamais é rompida.
Sim, isso existe – ou existia. Agora vejo que o segredo era também guardado em
seu caderninho secreto. Nele constam inúmeras anotações sobre a receita de
pão com manteiga e açúcar, inclusive bilhetes, cartas, várias opiniões de outras
pessoas sobre o tema.
São muitas as variantes do pão com manteiga e açúcar: pão com manteiga e
mel; pão com tahine e mel (árabe); pão com manteiga e geleia; pão com
manteiga e creme de amendoim; pão com manteiga e melaço.
Na ausência do pão, pode-se substituir a base pelo pão francês (massa grossa)
ou por bolacha, biscoito, pão integral, torrada, panqueca, pão árabe e até beiju
– tudo salgado, para manter o contraste.
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Mas a receita básica é pão ou francês (quentinho), manteiga (bem salgada e boa
marca) e açúcar (branco, cristal ou mascavo).
– Pegue o pão (abra com a mão), passe a manteiga por toda a superfície (sem
excesso), polvilhe o açúcar sobre a manteiga (para que fique grudado – e não
misturado), tudo na quantidade exata, para equilíbrio entre o doce e o salgado,
depois é só deliciar-se com esta requintada guloseima, verdadeira obra-prima
da culinária infantil!”
– Hoje quase não se acha mais aquele pão quentinho, saído direto do forno, que
costumava comer na infância. Nem casas como aquela na esquina da Rua dos
Afogados, onde estava a padaria do Seu Ramos, que fazia um pão quentinho e
uma bolachinha sem igual! A gente pedia um sanduíche e o queijo já vinha se
derretendo no calor do próprio pão! Quando o lanche chegava à mesa se
botava o inevitável açúcar por cima...
Pois uma das coisas que também eu tenho saudades da época da padaria do
Seu Ramos era o lanche à tarde, não só pela companhia das colegas de escola,
mas pelo conjunto da obra: o café e o leite eram servidos em recipientes
separados, os pães vinham numa cesta de vime, ao lado da manteigueira
transbordante, que também se derretia ao calor.
Essa lembrança, que hoje me vem à memória, era de que ocasião? Não sou de
recordar com precisão certas épocas da vida. Tudo vem em flashes, que me
acompanham por muito tempo, aos quais tenho acesso de vez em quando.
Só me lembra aquilo que está nas fotografias. Lembro que nada mais havia no
mundo, além da loja do Tio Pereira, das fotografias que tiramos, dos dias de
visita dos ciganos, que sempre me aparecem na imaginação e fazem com que os
sonhos brotem como frutos nas árvores.
Recordo também das fases da escola, mas foi um período muito longo, desde a
infância até o dia em que recebi o diploma que me afastou da maioria das
amigas. E quando estava só, sem ninguém para falar, como era fácil conversar
com as flores, se entender com os cachorros, dialogar com os peixes e os
gatos...
Naquela idade eu queria ter um gato malhado de olhos verdes, tinha muito
amigo invisível, gostava muito de comer pão com manteiga e açúcar.
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– Pão com manteiga e açúcar!
Quando alguma coisa me fazia chorar, corria para um lugar onde ficasse só,
esperava a lágrima escorrer pelo rosto até chegar à boca para sentir seu gosto
salgado. Isso me fazia acalmar, as lágrimas secavam, esquecia e perdoava a
causa do choro.
Muito diferente do choro urbano, provocados pelos adultos, que são mais
pesados, são lágrimas cinzentas, da cor das nuvens de chuva, às vezes negros
como o asfalto, soluços que são como raios e trovões.
Hoje eu não como mais pão com manteiga e açúcar. O mundo é imensamente
maior que o sítio do meu Tio Pereira e agora eu vivo na angústia de agarrá-lo
por inteiro e sacudi-lo até ver o que sobrará desse terremoto.
Meu universo agora é uma gaveta cheia de papeis velhos, cadernos escritos
quando estudava no Colégio Rosa Castro. Tudo parece muito lindo, sempre
escrevi bem, até ganhei 9,9 numa prova de redação. Só não tive coragem de
dividir com os outros, apenas com algumas colegas íntimas.
Isso porque os outros também têm lembranças e segredos que não repartem
com ninguém. Pão com manteiga e açúcar; pão com queijo e açúcar; pão com
queijo minas e açúcar mascavo. Eu adorava comer pão com queijo minas
derretido e açúcar, muito açúcar, muito açúcar!
Mas quem me deu essa receita foi meu Tio Zequinha, aquele que me chamava
irmã. Ele também me ensinou um jeito diferente de lidar com as lembranças e
classificá-las em pares.
Quentes – Frias
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Ternas – Iradas
Saborosas – Insípidas
Cheirosas – Fedorentas.
– Quando alguém quiser ser teu amigo, pergunta: “Tu já comeste pão com
manteiga e açúcar?” Qualquer que for a resposta, ela te trará boas amizades na
vida.
E a lista não terminava, pois havia muitas linhas em branco e espaço em aberto
para ser preenchido.
7 de agosto
Klara.
Hoje sei que é um apelo à vida, o que tentavas transmitir-me com essas receitas
estapafúrdias. Mas, que tal uma nova receita que inventei só para ti? Anota em
teu caderninho: pão com manteiga, açúcar e... canela em pó. Sabes que sou
viajado, pois descobri que em algumas regiões chamam o nosso pão com
manteiga e açúcar de Pão a São João, mas este é feito com açúcar mascavo.
Klara, hoje, quando acordo, não consigo comer nada, nem a bolachinha da
padaria de Seu Ramos, nem aquele café com leite, pão com manteiga e açúcar.
Outra coisa que é de teu conhecimento é que nada substitui o café-com-leite,
quentinho, bolachinha lambuzada de manteiga, pão massa grossa, que a gente
devorava naquele lanche inesquecível da padaria do seu Ramos.
71
Gosto, sim, de me livrar do gosto amargo que acorda em nossa boca passando
no pão esta extravagante pasta: manteiga com chocolate e canela. Ao saborear
essa delícia, esqueço todas as coisas tristes, por isso, não te esqueças de jamais
tirar o amargor da vida com o doce do pão, manteiga e açúcar.
72
SEIS
1 - SUBMERSA NO PÂNTANO
Ele conheceu Klara mocinha, ainda morando na casa do Tio Zequinha, e por ele
foi indicado para servi-la no que fosse possível – mas até mesmo o impossível
Ferreira atendia. Viveu o crescimento da menina estudante até virar mulher
independente, como a doença tomou conta do corpo e da alma e, por fim,
sentiu na pele o tratamento feroz, que transformou a moça feliz na pessoa
conformada que desistiu de viver.
Antes de chegar ao acesso para Petrópolis, Ferreira desviou para a Estrada Rio-
Juiz de Fora e seguiu sem problemas até a ponte de acesso para a Estrada União
e Indústria. Ao atravessar a ponte viu como o Rio Piabanha estava num nível
bem mais alto que o normal. As águas, puxadas pela forte correnteza, agitada e
73
turbulenta, já se aproximavam das margens altas, o que significa três ou quatro
metros acima do padrão.
Mas Ferreira sabia que chegar ali significa estar a menos de um quilômetro do
destino: saindo da estrada, pelo lado direito, chegava-se à vivenda de Klara.
Escondida numa ladeira não muito íngreme e guardada dessas turbulências
naturais por arvoredo antigo e espesso, a habitação se parecia mais a uma
fortaleza natural, invisível e intransponível. Como de fato, só aquele que
conhecia bem o lugar saberia localizar o esconderijo de Klara, mesmo sabendo-
se que bem ao lado existisse a igreja e o cemitério locais.
Como sempre fazia, Ferreira alojou Klara na casa, arrumou os petrechos cada
um em seu lugar, mas desta vez não teve tempo de sentar e tomar o cafezinho
de praxe. Mesmo assim, sua preocupação com Klara era grande e a toda hora
perguntava se ela ia ficar bem, se queria mais alguma coisa, que não o
incomodava nada em pedir.
Klara ligou a TV, mas foi sentar-se na varanda, com as pernas magras cobertas
por uma manta de lã. Com muito esforço, botou na mesinha de lado o bule de
chá, uma garrafa de água, copo, guardanapos, comprimidos para dor. Recostou-
se nas almofadas que aliviavam o incômodo e ficou, ouvindo apenas o som da
TV, que de tempos em tempos dava notícia sobre o tempo na região. Uma
sensação de alívio percorreu todo o seu ser quando se deixou levitar sobre o
almofadado, macio e terno como o colo da mãe. O apresentador do noticiário
divulgava os boletins oficiais:
“Defesa Civil faz balanço e deixa em alerta seu efetivo. O boletim emitido hoje
pela Coordenadoria de Defesa Civil faz um balanço dos eventos que ocorrem
durante as fortes chuvas que caem nos municípios da Região Serrana há vários
dias. A situação até o momento registra 250 quedas de barreiras, 140
deslizamentos de terra, 90 quedas de árvores, 50 alagamentos, 110 ruas
interditadas e 160 ameaças de queda de casas”.
Enquanto a tarde cai, uma forte neblina se incorpora à garoa, pintando tudo de
cinza. Daqui a minutos a paisagem se transformará num muro líquido e
transparente, no qual a vista não penetra um palmo adiante. Klara fecha os
olhos, deixa a névoa penetrar na varanda, na casa, nos quartos, embebendo a
casa num húmus selvagem e deleitoso. A mesma chuva espessa que um dia
Klara havia imaginado.
Ela ouve o seu tio negociando com o peixeiro. Daqui a pouco tempo ela vê o
peixe sendo guardado numa caixa de isopor enchida até a metade de água
doce. Ela corre para ver: a água é turva, espessa e não dá mais para reparar os
olhos baços do muçum. Como o espaço é pequeno, o peixe fica enrolado em si
75
mesmo, mas está mais confortável do que naquele balcão frio com jeito de
cadafalso.
Klara sabe que o Tio Zequinha gosta de comer um muçum, carregado no cheiro-
de-peixe, molho de pimenta feito na calda e várias bicadas de tiquira. Por isso
treme de medo. Mas, para sua surpresa, o que ele faz é pegar a estrada velha e
se dirigir até a entrada da Lagoa Feia. Chegando lá, pára o carro, juntos tiram a
caixa com o muçum e se encaminham para as margens da lagoa. Ali depositam
com cuidado o peixe, aguardando que recobra as forças, vendo-o nadar
lentamente para o fundo das águas. Klara sorri.
É a menina medrosa que agora, como o muçum, está numa caixa de águas
turvas e visão nevoada. Sua respiração é um fio apenas, terminando num silvo
que ninguém ouve. A bruma espessa, gosmenta como a pele do muçum, cresce
e se expande sem que ninguém possa impedir. Sua pele, antes ressecada pela
quimioterapia. Agora está plena de umidade da cerração vasta que transforma
todo o vale num aquário. As veias sobressaem no braço magro, verdes como os
cipós que deitam das árvores.
Klara, menina que perdeu o medo, ordena que suas pálpebras, agora pesando
toneladas, jamais se fechem. Ela doravante não será mais aquela menina
temerosa do Mercado de Peixes de São Bento. Os dedinhos finos atualmente
estão só que é osso e pele, não podem mais se socorrer agarradas nas mãos do
Tio Zequinha, como os náufragos se apegam ao salva-vidas. Não, hoje Klara está
sozinha, desamparada, repudiada no desarrimo de tudo e todos. Sente as
pupilas despregadas, para sempre arregaladas como o olhar dos peixes. Busca
reencontrar os olhos baços do muçum na placidez das águas fundas da Lagoa
Feia a serenidade que aposentou durante a curta existência.
Aspira de modo tão mais profundo que pode até sentir os pulmões flácidos se
encherem acelerados como se fossem balões de gás. Sente um aroma químico
misto de metano, oxigênio e clorofila, preencher todos os espaços de seu corpo
e consegue assim incorporar a sua presença corporal ao ambiente. Sente-se tão
leve que julga flutuar num espaço onde nem respirar é preciso mais.
Klara sonhou que estava amamentando. Olhou para o colo e na penumbra viu
um bonito bebê, alvo, de olhos verdes e lábios róseos, que mamava ferozmente
o peito esquerdo. O lusco-fusco iluminava a pele lisa e rosada, os pelos que
começavam crescer na cabecinha redonda, os olhos castanho-escuros, cheios
de vivacidade, as mãos rechonchudas, os dedinhos se movendo, como se
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quisessem pegar algo no ar. Recostada na cama, despertou de um desejo que
sempre teve escondido.
Sentiu as mamadas mais vigorosas, que traziam dor ao mamilo, e pensou que o
bebê deveria estar faminto. Volveu a mirada pelo corpo que tinha nos braços,
passou a mão levemente na cabeça e no rosto da criancinha, mas tomou um
susto: a carícia revelou um corpo frio e plástico.
Desta vez a criança aparentou uma dessas bonecas modernas de látex, que
fingem a representação perfeita e exata de um bebê. Seu corpo tremeu, sua
pele arrepiou-se ante os olhos de vidro que denunciavam a fraude.
– Era Ci, Mãe do Mato. Logo viu, pelo peito destro seco dela, que a moça fazia
parte dessa tribo de mulheres sozinhas parando lá nas praias da lagoa Espelho
da Lua, coada pela Nhamundá. A cunhã era linda, com o corpo chupado pelos
vícios, colorido com jenipapo.
O quê de sofrer caberia a Klara nesse mundo de Deus? Quando se viu refletida
no espelho com o peito destro seco, logo pensou que passava a ser parte dessa
tribo de mulheres sozinhas, grupo de gente, uma tribo mesmo, que se expandia
a passos largos no mundo de hoje. Fazer parte da tribo dos quimioterápicos era
coisa que jamais passou pela sua cabeça.
Quando começou a ler a cartilha que lhe foi entregue após os últimos exames,
Klara esvaziou-se toda de quaisquer misericórdias. Ao acordar após uma noite
da qual nada havia por que rir Klara viu diante do espelho outra mulher. Desde
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aquele primeiro dia em que seus cabelos deixaram de crescer, que sua pele
ressecou em escamas, viu que todas as profecias se realizavam. Tudo mudou
em sua vida, mas o que transfigurou a sua cabeça? O horror. O isolamento. A
repulsa. O ódio. O niilismo.
Tudo aquilo que ouvira pela boca dos outros agora fazia parte de seu mundo
pessoal. Mal conseguiu ler quando lhe depuseram nas mãos tremulas a cartilha
que substituiria a sua agenda diária. Era um Guia do Paciente, tedioso e chato,
tipo de literatura que ninguém gosta, menos ainda, de ter na mesinha de
cabeceira. Saltou quase todas as páginas e gravou apenas o que já sabia:
2. Como é o tratamento? O tratamento é feito através da veia; por via oral; por
injeção intramuscular; ou em aplicação local, diária, semanal ou mensal.
Efeitos colaterais. Tudo bem. Klara mandou logo cortar os cabelos antes que
caíssem diante de seus olhos. Comprou uma peruca, bem parecida com o
penteado original. Entulhou as prateleiras de cremes para a pele ressecada.
Bebia só água mineral e comia as refeições mais puras que a natureza oferece.
Todo dia em jejum tomava sopa de rã, receita que tirou da internet. Isolou-se de
amigos e amigas e passou a conviver só com o auxílio de uma empregada, sua
companheira há muito tempo. Esqueceu-se de amar e de fazer sexo. Não quis
preocupar nenhum Deus e nem ocupar os santos com suas dores. Esqueceu-se
de orar. Não quis usar nenhum estratagema sublime para animar sua vida...
Klara acordava com o corpo feito fogo, e furiosa crescia em ódio para cima dele,
imersa na impotência de tentar destruí-lo, destruir-se, consumar aquele ardor
que não era energia.
– Deus, o que fiz para sofrer tanto? E perguntava a si e aos outros eu: – Repetirei
Jó diante dos infortúnios?
Klara prostrada de joelhos ante a implacável maldição da doença que não tem
nome, resignando-se, promovendo mudanças nos hábitos diários e na
alimentação, prisioneira de uma fé que prometia “auxiliar o paciente”, tais
como: preferir alimentos com rápida digestão; não encher o estômago de uma
só vez, preferindo fazer várias alimentações ao dia, em pequenas quantidades;
evitar alimentos gordurosos e frituras; comer devagar, mastigando bem os
alimentos; preferir alimentos frios, gelados, ou em temperatura ambiente;
evitar odores fortes; procurar não exercer atividades que exijam esforço físico;
procurar vestir roupas leves.
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Enquanto durasse a coragem, Klara enfrentaria e suportaria as feridas na boca,
febre, diarreia, queda de cabelo, alterações da pele e unhas, aftas, irritação nas
gengivas, na garganta, infecções por vírus, bactérias e fungos, diarreia? Ou,
acovardada, jamais consumiria bebidas alcoólicas, voltaria às atividades físicas,
evitaria o trabalho excessivo, abdicaria do prazer sexual, não se automedicaria?
3 - OS MENINOS CIGANOS
Estava mais do que curioso para saber o conteúdo do envelope achado entre os
restos mortais de Klara. Mas antes de abri-lo, quando cheguei ao hotel, mais
cansado que de costume por conta do dia agitado, quis mesmo tomar um
banho, beber um uísque sem gelo e relaxar um pouco com as pernas estiradas
na cama.
Só depois desse descanso então fui examinar o conteúdo achado por acaso no
caixão de Klara. Isso porque eu tinha guardado na consciência que aquilo não
era para estar em minhas mãos nem nas mãos de ninguém. Enfim, estavam
comigo agora, à minha frente, tudo espalhado por sobre o colchão.
As fotografias cobriam – com muitos vazios – quase toda a vida de Klara e, por
consequência, a minha vida também. Eram fotografias em preto-e-branco,
depois outras de um colorido já esmaecido e algumas mais recentes.
Klara me atrasava menos de dois anos em idade. Devia estar com sete ou oito.
Já era bonita, com os olhos quase negros, espertos, alegres, vivos.
Ao fundo via-se bem a casa dos tios, com um pequeno comércio na frente o
pomposamente chamado Armazém Pereira e também as quinze janelas na
lateral que indicavam o local de nossa residência. Do outro lado dava para ver
apenas uma parte da outra loja, também de esquina, distante apenas os trinta
metros de largura da rua empoeirada: era a Loja do Izaque.
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– Lá vem a ciganada! Lá vem a ciganada!
Os fotógrafos todos, locais e que passavam por ali, logo aprontaram suas
câmeras, limpando as lentes, arrumando os negativos, ajustando os tripés nas
calçadas irregulares, tudo para registrar a chegada dos nômades, esse momento
tão raro e importante na vida da cidadezinha. Aquelas fotos seriam
transformadas em postais para venda na Capital.
Mas as crianças pareciam tão curiosas quanto nós. Não ligavam muito para o
que os pais queriam e discutiam em voz alta. Se detinham nos detalhes, como a
prenunciar onde estariam as crianças daqui. Um e outro adivinhavam, tinham
alguma ideia e buscavam-nos nas frestas das janelas. Outros nem entravam na
loja, desciam da garupa e ficavam na rua mesmo para trocar palavras e a brincar
com as crianças locais que não tinham medo e acorriam para ver os ciganos-
meninos.
82
A ciganada era gente que ninguém confiava. Quando surgia alguma suspeita de
que estavam querendo surripiar alguma coisa, antes do imponderável ocorrer,
já o Tio se derramava em gentilezas, oferecia cafezinhos, tragos de aguardente e
chamava atenção ao grupo para a exuberante loja do outro lado da rua aonde –
dizia eufórico – tinha coisas extraordinárias, belas, misteriosas.
– Vá lá! Procura o senhor Izaque e diga que foi o amigo dele – do Armazém
Pereira – quem mandou. Vá lá! Diz que pedi para oferecer a ti bons produtos,
muitos descontos e bons preços! Vá lá!
Depois que o tumulto todo passou e o último sinal de poeira sumiu no fim da
rua principal, os comerciantes se reuniram para comentar o fato, lamentar as
perdas, fazer um balanço dos furtos ocasionais: no fim os comentários viravam
piadas e tudo se resumia em mais uma aventura de cidadezinha. As crianças
saíam do esconderijo e corriam para ouvir dos tios e dos empregados da loja as
curiosas e fantásticas histórias dos ciganos e sua gente.
A única coisa que a foto não diz é que aquela menininha de cabelos
encaracolados se escondeu num quartinho de empregada, para escapar dos
espelhos distribuídos pelos cômodos, que insistiam em refletir o vulto ossudo e
magérrimo, um fantasma que não era mais ela.
Relembro agora que já adultos, quando Klara me convocou para uma conversa
fiquei imaginando o que seria de tão importante. Mas não era tão terrível assim:
83
apenas envolvia sexo, virgindade, casamento e amor. Como sempre, para o bem
ou para o mal, eu era o escolhido para tratar do assunto. Foi nesse tempo que
ela conheceu Toni. E ficou de marcar um almoço para que nos conhecêssemos.
– Bem, não quis mesmo era te deixar preocupado. O Toni sempre soube e
sempre me acompanhou nos exames, mesmo com o pouco tempo que as
apresentações em TV, rádio, mais entrevistas, assinatura de contratos,
empresário, parceiros de grupos, essa coisa toda.
Era um negro bonito, sorridente, nariz afilado, lábios salientes, cabelo à moda
black-power norte-americana, sempre solícito, educado nas maneiras e se
expressava de maneira suave. Era bom cantor, tinha a tonalidade morna,
aveludada, quase afeminada – como o velho Nat King Cole.
Toni, como negro, seguia apenas os rituais e sincretismos que herdou da família
na Bahia. Dali não arredava a fé, mesmo porque tudo estava arraigado à sua
própria cultura: desde menino todos os estudos incluíam a umbanda,
candomblé, onde santos e santas cristãos se mesclam a divindades africanas
masculinas e femininas.
84
Nos rituais funerários anglicanos uma frase enigmática se encaixa nos desígnios
de Klara: “Cinzas a cinzas, pó ao pó”. Lembro que as cinzas vêm mesmo da
cremação, que é comum em dezenas de países e mais usual na Índia. E o pó, é
em pó que o corpo se converte nos enterros naturais, direto na terra.
Justo agora que Toni, depois de passar uma semana inteira a sós ao lado de
Klara, se despediu e voltou ao Rio de Janeiro para cuidar da viagem,
prometendo contatos diários através da internet, pelos programas de
mensagem com vídeo. Tinha surgido uma oportunidade para o grupo se
apresentar na Europa e talvez Estados Unidos. A turnê deveria durar quatro
meses, mas com certeza o conjunto teria que aceitar novos convites para shows
– portanto, nunca se sabe quanto tempo a viagem demoraria.
Seria uma longa separação. Klara tinha terminado a primeira fase do tratamento
e estava mais alegre que nunca, tal a certeza que haviam incutido de que a cura
estava próxima. As poucas vezes que falei com ela (o namoro com Toni trouxe a
vantagem de torná-la menos dependente de mim), senti a voz alegre, de gente
feliz, de pessoa que estava amando e sendo amada.
A turnê de Toni tinha demorado mais do que previsto – como, aliás, todos nós
mesmos tínhamos imaginado. Agora os convites e compromissos eram tantos
que era impossível adivinhar o retorno dele ao Brasil.
85
Agora, amando Toni, Klara sonhava com celas, algemas, o tronco e o chicote –
os algozes todos eram amigos, parentes, conhecidos – que julgaram e a
condenaram ao suplício. Nesse caso vinha de ancestrais a censura mais óbvia:
como poderiam consentir àquela branquela o namoro com um negro, artista,
boêmio? Como dar aval à tendenciosa vida de aventuras, desregrada, de futuro
incerto e fatalmente perdida?
Só ao dar ouvidos a essa voz já extinta, Klara sente calafrios no corpo inteiro, as
noites em que esse pensamento assomava era de repouso perdido, só em
pensar na censura que viria dos parentes e amigos – principalmente os mais
velhos – ela adia, se ausenta dos encontros, almoços, às reuniões festivas. Mas
chegaria o tempo de atacar a realidade, em que não poderia mais esconder essa
relação imaginada. Por isso ela recorreu a mim, por isso eu disse sim.
Quando Toni chegou de repente, num breve espaço que teve entre as
apresentações, Klara estava em meio de uma dessas chatas reuniões com as
amigas. Foi uma surpresa que ajudou em muito na tomada de atitude de Klara:
ela apresentou Toni a todas as visitas como seu namorado, mas foi inevitável o
choque, as debandadas repentinas, censuras e elogios. As amigas de verdade
não arredaram pé, pelo contrário, transformaram a conversa pesada em
animado encontro, que só chegou ao fim com a exigência a Toni para que
cantasse algumas músicas.
Das turnês de Toni sobrou apenas a pilha de cartas e postais que mapeavam o
seu itinerário mundo afora. Jamais vi ou ouvi Klara se lamentar devido à larga
ausência do namorado. Jamais senti nela algo que denunciasse dor, sofrimento,
saudade. Ao contrário, muitas vezes compartilhei com ela alegria e emoção
pelos êxitos alcançados por Toni e seu grupo, quando líamos nos recortes de
jornais as notícias e comentários sobre suas apresentações.
Algumas dessas fotos, aliás, estavam naquele envelope achado quando fui
retirar os destroços dela para cremação.
Todas as fotos eram do casal, nenhum deles estava só nas imagens. Eram
retratos representativos de momentos únicos, alguns íntimos, outros apenas
em repouso da vida.
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De todas essas lembranças o que me fixou na memória é justamente o
semblante alegre de Klara, o ar expansivo, o sorriso feliz, os gestos de confiança.
Todos os demais castigos que o destino já lhe impunha estavam obliterados
pela obstinação de expor as vísceras, a alma de alguém que fazia questão de
assumir uma felicidade, mesmo que fosse frágil, ainda que simulasse uma
mercadoria comprada num supermercado.
Somente após ter alcançado algum sucesso, juntou doze músicas para o
primeiro disco. Toni teve a primeira gravação foi produzida pelos amigos e
compositores baianos Antonio Carlos e Jocafi, que já eram famosos. Neste disco
interpretou somente composições suas, quando surgiu o primeiro sucesso
nacional. No ano de 1976, gravou pela Continental o disco no qual iniciou
parceria com outros compositores.
No ano seguinte, gravou o disco "Toni", no qual interpretou músicas com outras
parcerias. Ainda nesta gravação lançou "A oeste do teu corpo", dedicado a Klara
Neste mesmo ano, Alcione interpretou "Chore mais não, já cheguei", onde
exaltava o prazer de voltar das excursões e chegar a casa. Neste mesmo disco,
lançou músicas inéditas que compôs para vários artistas.
Nas gravações Toni muitas era o responsável por voz, violão e teclados, além de
boa parte dos arranjos. Toni havia se consolidado e deixado para trás a década
de 1960, quando venceu o Festival do Samba, realizado em Salvador,
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defendendo música de sua autoria. Daí em diante, sua presença seria constante
em festivais. No início da década de 1980 seguiu carreira mais estruturada, com
bom empresário, gravadora e publicidade. Por essa época, Vanja Orico
interpretou músicas de sua autoria, em disco produzido pela cantora, que
contou com composições e arranjos dele, além de participar como vocalista e
músico tocando vários instrumentos.
s/data
Klara,
Foram os sinos de o glorioso Santo das Regras, padroeiro do meu berço, que
abriram nossos ouvidos infantis para o som do bronze. Pois eu te conto que
desde menino eu era acordado, de manhãzinha, pelos dobres da Matriz de São
Bento chamando pelos fiéis para a Missa.
O sol mal nascia e lá iam todos, em grupos de conversas animadas, para o dever
cristão, sentindo o cheiro das lenhas a arderem nos fornos das olarias. Você
também ia, mirradinha, agarrada na minha mão, como se tivesse medo de se
perder entre o mundo de gente.
Parece que os sinos de São Bento também despertavam as aves dos campos.
Logo aos primeiros dobres garças, guarás, gaviões, socós, misturavam as cores
na aquarela do arrebol. Depois, mais tarde, vindo para o colégio na capital,
foram, os sinos da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios que impregnaram a
minha memória auditiva. Aqui eram mais potentes que os de São Bento e
todavia mais melodiosos.
Pois é verdade: fiquei sem a música do bronze para acompanhar o espocar dos
foguetes de taboca lá no alto dos céus e relembrar nossa infância! Nem para as
festas do padroeiro ou dos Remedinhos, que tu tanto gostavas e atraem
conterrâneos vindos de todo o Brasil, os sinos tocam mais.
Não sei quem é o Bispo investido de tanta autoridade eclesiástica para calar os
sinos que o povo comprou com o dinheirinho suado nas canoas, nos barcos, nas
olarias, nos roçados, na pescaria, na criação de bichos.
89
Porque é sabido que nenhum sacerdote botou um sino sequer em orada, capela
ou igreja de São Bento. Tudo ali foi dado e feito pelos fiéis. Portanto, não há
mandato outorgado a qualquer religioso, seja qual for seu grau hierárquico.
Enfim, por essas e por outras, que de vez em quando a tevê e os jornais exibem,
é que a religião definha e a Igreja se desagrega. Para tristeza minha e tua...
90
SETE
1 - O MESMO – MAS EM OUTRA DIMENSÃO
Quando a doença transtorna não só o corpo, mas por igual derruba a fé, quando
a terapêutica, o tratamento é bem pior que a cura, a tragédia se impõe, a perda
de tudo, enfim, se consolida como causa de intenso sofrimento. Com Klara não
seria diferente: campo precioso para os ataques, contaminar a alma, plantar
dúvidas, semear descrença, erigir suspeitas de natureza espiritual – ela carrega
em si todos os elementos irracionais de combate à fé.
A seu turno, quando Toni assistia às visitas mantinha-se à parte das discussões.
Quão longe de tais diatribes estava o tipo especial de religiosidade com a qual
fora criado. Apesar da imposição do sincretismo, ele acompanhou a avó e a mãe
num tipo de candomblé puro, nos quais os orixás são sucedâneos dos
elementos naturais. Tudo a ele fora ensinado da maneira mais espontânea:
assimilou a religião do modo simples, igual ao aprendizado do ABC, quando
ensinaram a ler.
A avó de sangue, que aprendeu a chamar Mãe Velha, com a carapinha branca
como aureola sobre a cabeça, era o singelo retrato da sabedoria e bondade. O
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saber fazia parte da anciania, reverenciada ao mesmo tempo como mãe, avó,
mestra. Era a última pessoa com quem falava antes de pôr os pés na rua. Toni
muito aprendeu com a mãe-velha e para ele sempre representará a sabedoria, a
bondade, dona de uma alma muito reverenciada em seus ancestrais.
Sempre foi e será a mãe, a avó sabida e carinhosa. No passado foi ama de leite,
lavadeira, professora, costureira – desempenhou mil ofícios. Mãe-velha, como a
maioria, trasladou sua bagagem cultural, não através dos livros que não
possuíam. Transmitiu pelas mãos das “mães postiças” a cultura africana mais
tradicional, diferente, sem nenhuma sintonia com o sincretismo que se impôs
pela força. O ensinamento se fez pelas aias, pelas mães de leite, que
transmitiram às crianças, junto com o aleitamento, os cantos, os mitos
sussurrados, as canções de ninar. É assim a mística da cultura africana com suas
tradições e sua religiosidade.
Mesmo em silêncio, Toni se comunicava com Klara pelo olhar, pelo gesto, pelo
movimento incômodo. Assim ela jamais estaria a sós, abandonada àquela
evangelização mística um tanto forçada pelo ataque virulento e simultâneo com
que se dava, diante de seres enfraquecidos, sem qualquer possibilidade de
ouvir, em defesa, o contraditório, a palavra alternativa.
Quando estavam a sós, Toni dava um jeito de mostrar o seu ponto de vista,
espelhado em sua experiência religiosa. Mas, sem a habilidade e tato que os
protestantes acumularam durante séculos de repressão, era difícil fazer valer a
sua opinião. Nem mesmo ele queria assim, forçado, preferia o conhecimento
natural, como ele mesmo experimentou.
Olha Klara, nenhum Deus pune assim os filhos, tampouco os condena à fogueira
eterna. Nenhum Deus entregaria pessoas amadas a seu maior inimigo, nem
mesmo quem cometeu “erros divinos”, chamados pecados. Não o nosso Deus.
Ele não destrói pessoas, não aniquila as almas, não tem ciúmes, quando não é
adorado, amado ou seguido. Como um pai, Deus jamais deixaria de perdoar
seus filhos, tampouco condenaria ao extermínio por erro cometido ou que
venham cometer.
92
As olheiras – bem marcantes da sua ancestralidade – serviam de moldura para
dois olhos negros afundados pelo sofrimento, os lábios ressecados em riste, já
tinham assumido o rictus subjacente da viagem sem volta, o desígnio assumido.
É sempre mais fácil evitar o golpe dos que estão contra nós para conservar o
inimigo à distância. E se durante anos tivesse vivido uma farsa, fazendo-a crer
que era feliz quando na verdade a desgraça aguardava oportunidade para feri-
la? Portanto, Deus é um pai mais que perfeito, mas igual também a qualquer
outro pai.
Bem longe o sol arrepiava a linha do mar onde se fundem céu e água. Quando
alguém nos deseja o mal, assumimos atitudes de defesa, estamos atentos. Mas
quando amigos ferem, somos atropelados pela surpresa. Quando o desengano
nos agride de supetão, nos deixa vulneráveis, a dor é muito maior. Os piores
sofrimentos são causados por pessoas queridas, que falham conosco, justo o
que aconteceu com Klara, martelando na cabeça palavras desconexas:
2 - O CHEIRO DA MANGA-ROSA
93
Primeiro vamos esclarecer o seguinte: tu não foste “dada”, como costumas
dizer. Nem sei de onde tiraste essa ideia, ora! Naquele tempo era assim: as
irmãs conversaram e acharam que o melhor é que fosses morar com a tua tia.
Na hora estavam pensando em te dar melhor vida e educação. Tua tia
acreditava que o papel de madrinha era proteger, educar, fazer o melhor,
encaminhar a afilhada para a vida.
E tudo que estava previsto de fato aconteceu, por isso você tem mais é que tirar
esse pensamento da cabeça – seja lá de que modo ele entrou. Pode ser que o
pensamento tenha te ocorrido no primeiro dia, logo que chegaste àquela casa
estranha, a solidão, a falta de tudo que até então tu tinhas... Mas para te falar a
verdade – apesar de toda tristeza que se abateu em mim com a tua partida –
nunca tive a sensação de que tu tinhas sido “dada”.
Acho que tudo se me passou como fatalidade, mas éramos pequenos, com a
cabeça voltada para as primeiras leituras, brinquedos, estudos, as brincadeiras.
Ninguém iria pensar no que a vida nos aprontava, nem sabíamos o que era
destino.
Lembra bem daquele dia em que achei lá em casa um velho turíbulo de prata e
nele botei sobre o carvão algumas pedras de incenso e folhas de murta,
impregnando teu corpo nu com a fumaça azul que se desprendia no ar?
Lembra, ainda, que te disse no ouvido, com a voz sussurrada – que te provocava
arrepios – que estavas cheirosa?
E que me disseste que o perfume era de alfazema do campo, mas não cheirava
apenas no teu pescoço, recendia também nos sovacos, nas pernas, nós pés, na
barriga e entre as pernas se misturava ao suor das corridas?
94
Lembra, lembra, que ali eu parei um bom tempo cheirando, cheirando,
cheirando até que desmaiaste num suspiro?
Mas todas as violências jamais nos afastaram um do outro. Havia uma união
que ninguém – nem mesmo nós – entendia. Até que um tempo desistiram de
nos separar, de corrigir aquelas atitudes, que tacharam de irresponsável.
Enfim viram porque era da nossa natureza agir como agíamos... Ninguém
compreendia porque tínhamos prazer em correr para debaixo da mangueira,
mal a chuva se anunciava. E jamais nenhum deles provaria do prazer que
sentíamos juntos, úmidos pelas gotas de chuva que atravessavam a folhagem
espessa, nossas roupas, assombrando os dedos enrugados pelo frio.
O que entendiam eles do cheiro da terra quente quando era molhada pelos
primeiros pingos de água?
Que sabiam do perfume que exala do chão em névoa quase invisível e, quente,
vara as narinas, perfura os pulmões e arrepia a pele?
E como encrespada ficava a nossa pele, e como a cabeça fervia, e como a mente
escorregadia errava pelos pensamentos imperfeitos, fazendo brotar os
pequenos prazeres que nos atingiam como dardos.
Mas tudo era pelo cheiro da terra, pelo perfume da manga rosa, pelo aroma do
figo quase podre, pelo gosto do caroço da pitomba, do jenipapo coberto de
açúcar. Esses cheiros recendem tal e qual os odores exóticos que exalam das
axilas.
95
São gestos, posições, diretivas, tudo que se relaciona com a atitude, que
chegam até nós sem serem chamadas.
Agora, amando Antônio Carlos, Klara sonhava com celas, algemas, o tronco e o
chicote – os algozes todos eram amigos, parentes, conhecidos – que julgaram e
a condenaram ao suplício.
Nesse caso vinha de ancestrais a censura mais óbvia: como poderiam consentir
àquela branquela o namoro com um negro, artista, boêmio? Como dar aval à
tendenciosa vida de aventuras, desregrada, de futuro incerto e fatalmente
perdida?
Só ao dar ouvidos a essa voz já extinta Klara sente calafrio no corpo inteiro, as
noites em que esse pensamento assomava era de repouso perdido, só em
pensar na censura que viria dos parentes e amigos – principalmente os mais
velhos – ela adia, se ausenta dos encontros, almoços, às reuniões festivas.
Mas chegaria o tempo de atacar a realidade, em que não poderia mais esconder
essa relação imaginada. Por isso ela recorreu a mim, por isso eu disse sim.
Quando Toni chegava de repente, num breve espaço que teve entre as
apresentações, Klara estava em meio de uma dessas chatas reuniões com as
amigas.
Foi uma surpresa que ajudou em muito na tomada de atitude de Klara: ela
apresentou Antônio Carlos a todas as visitas como seu namorado, mas foi
inevitável o choque, as debandadas repentinas, censuras e elogios.
96
Desde criança moro nesta casa simples, erguida nos flancos de um dos morros
de Itaipava. A casa foi construída virada para o sul, por isso no inverno o sol só
nos aquece até as duas da tarde. O frio e a umidade são terríveis para quem não
está habituado. Para remediar herdei da família (de velha cepa europeia
acostumada ao frio rigoroso), o uso do fogão de lenha como fonte de
aquecimento, hábito que ficou até hoje.
Tenho o fogão a gás para cozinhar, mas o velho fogão de lenha fica aceso
durante as noites de inverno, porque aquece a casa inteira de forma eficiente.
Meus pais tinham o costume de manter tijolos no forno. Quando a gente ia
dormir os tijolos enrolados em jornais velhos eram colocados debaixo do
cobertor para aquecer a cama e o corpo.
O combustível era a lenha recolhida na mata que existe no morro atrás da casa.
Antes era floresta densa, com árvores de grande porte. Todo ano meu pai e
vizinhos iam coletar os galhos caídos ou derrubar uma árvore velha, que depois
era serrada e cortada, para servir no próximo inverno. Hoje já não existe árvore
de grande porte, apenas a vegetação rasteira, arbustos e árvores pequenas, que
não conseguem crescer devido a queimada.
Agora está tudo mudado, muito desmatamento, ora para lenha de combustível,
ora só para limpar o terreno e construir as casas encarrapitadas nas encostas
íngremes e perigosas. Algumas são levantadas nos fundos dos terrenos, posse
de parentes comprada a baixo custo, porque estão localizados em ponto de
difícil acesso. Outras são invasões onde habitam famílias de baixo poder
aquisitivo, sem condição de comprar ou construir em locais nobres sem nenhum
risco.
A morada é erigida com meios e mão de obra própria, tijolo a tijolo, cômodo a
cômodo e leva anos até ser considerada casa, com razoável conforto. O
importante é ter de imediato um teto que proteja da chuva e do frio. E assim os
morros de Itaipava vão sendo ocupados: a cada dia mais um barraco (que um
dia será casa), é construído. Essa gente não tem noção do risco a que se sujeita,
quando constrói em tais condições. Desmata-se o terreno, fazem-se cortes e
aterros, entulham-se vales, despeja-se lixo e água servida sem tratamento – é o
prenúncio do desastre.
97
Não é necessário ser especialista para perceber o risco que essa urbanização
descontrolada traz. Nos últimos anos têm ocorrido períodos de chuvas
extremas, fortes, com consequências catastróficas para a população e a cidade.
A ocupação dos morros que acompanhou o crescimento da população trouxe
também a pobreza – e a tragédia se repete.
Apesar das várias ocorrências graves, a nossa casa nada sofreu, mas quatro
casas em frente foram derrubadas, devido ao deslizamento no topo do morro,
em um ponto onde os moradores do casebre despejavam água sem canalização.
O terreno do despejo, sempre encharcado, se transformou num ponto de
fragilidade e quando as chuvas chegaram a zona frágil não resistiu, iniciando a
avalanche que desceu o morro carregando tudo o que havia no caminho. Eu vi,
eu coloquei o pé exatamente nesse ponto!
Nos últimos dias do ano os fatos se repetiram com intensidade bem maior. A
população continuou a subir os morros, ocupando áreas proibidas, desmatando
e levando consigo os hábitos e vícios da construção improvisada e da vida
descuidada, tudo que dá origem aos desastres naturais.
Como tudo fica nas mãos dos políticos, eles jamais irão fazer um controle sério e
efetivo sobre o uso do solo, criar programas de construção de casas populares
para retirar os moradores das áreas de risco. Jamais porão em prática os
programas de educação, que ensinam conceitos mínimos de convivência com a
natureza, meio-ambiente, educação ambiental. Políticos só pensam, em
dinheiro, na próxima eleição e em se manter no poder...
98
Um misto de revolta e raiva perpassou pela cabeça de Klara quando Hortência
terminou o relato. Muitas das passagens bem que poderiam servir de cenário na
vida de seus antepassados, também emigrantes ou na sua própria vida, tempo
em que era apenas garota, ainda desconectada da realidade. Não podia deixar
de se lembrar dos lugares rústicos em que morou com a família numerosa. Por
quantas vezes a sua vida esteve ameaçada de desabamento, igualzinho às
tragédias que assistia transformada no cinema, como nesta história que ouviu
de Hortência em comovido silêncio.
4 - EIS O MISTÉRIO DA FÉ
Êxtase.
Rito de renúncia.
Ascese.
Pouco importa a maneira como, depois, formulais vossa crença, seja cristã ou
outra qualquer.
99
Circunstância de alegria, de admiração extremada, que absorve totalmente
qualquer outro sentimento.
Êxtase místico.
Ele não usa a oração como fórmula mágica e sim a assunção de todas as forças.
Solitário, tão completamente só, que se diria recluso dentro de seu próprio
interior e da oração retirará forças para a vida.
***
Mais que tudo impressiona o som dos cantos inspirados pelos mesmos motivos,
acompanhados ou não pela música do órgão, que é o único instrumento
inventado especialmente para o culto religioso, fechando assim o círculo de
influências. São rituais voltados para gente especial, por isso se consideram
fechados a certas imaginações.
Esse estado de vazio total é apregoado por quase todas as correntes religiosas,
veio na esteira das fontes indianas, cristãs, chinesas e judaicas, mas é no
budismo que se transforma em objetivo final.
Mas a população da igreja não se limitava a esses fiéis que conseguiram com fé
e crença realizar todas as treze mortificações interiores e exteriores. A Igreja
estava cheia porque se rezava uma daquelas missas de espírito coletivo em que
vários fatos e pessoas são lembrados.
– Hoje a noite se fez dia, hoje a morte foi vencida – responderam os fiéis.
Por fim, Klara sabia que o poder de autoridade pela deferência concedida a ela
impunha respeito ao grupo. Enfim, foram poucos e frios os cumprimentos,
formais, mas para Klara apenas algum aceno mais gelado ainda.
Vós sois a raça escolhida, o povo que ele conquistou para proclamar as obras
admiráveis daquele que os chamou das trevas para a sua luz! Palavras do
Senhor.
Toma este pão nas mãos e come, ele é parte do meu corpo.
Toma e bebe, neste cálice de vinho está o meu sangue – sangue da eterna
aliança.
Para o entendimento de todo esse ritual, cinco palavras que são lidas após as
oferendas do corpo e sangue, ficam ecoando na minha cabeça: Eis o mistério da
fé!
102
Eis que os mistérios do universo material, o buraco negro, o big-bang, a
explosão inicial, de repente se reconhecem também como legado religioso,
onde ciência e fé se fundem, pois as liturgias sempre impressionaram
vivamente.
Klara
Várias redeiras mostravam a arte tecer, as técnicas para bem armar e bem
deitar. O ofício de redeira faz parte da tradição de desde tempos imemoriais,
terra onde está enterrado o meu cordão umbilical. Famílias inteiras, desde
remota ancestralidade, se dedicam com capricho à tecelagem, à ornamentação
de redes, as tapuiranas tão necessárias ao repouso do corpo para espairecer o
espírito.
O padre da Ermida de São Roque bem que sabe disso: em sermão especial para
a festividade afirmou que Deus não dorme, mas descansa numa tapuiranas. A
igreja estava apinhada da boa gente religiosa, que crê num Deus de todos e para
todos.
Aquele rústico tear de pau d'arco era que fabricava as delicadas obras de arte,
verdadeiras prendas de querubins, redes de todo ponto, as vistosas tapuiranas,
pesadas, difíceis de lavar, que os filhos de São Bento se orgulham exibir. As
tapuiranas são redes faceiras, têm desenhos no pano inteiro, flores, barras com
motivo grego, estrelas de cinco pontas, que se entrelaçam em harmonia.
As varandas, grandes, não são apenas para enfeite, pois o bom são-bentuense
se vale delas, não só como coberta para agasalhar o corpo do frio das
madrugadas, mas bem assim para evitar olhares indiscretos quando quer
intimidades com a mulher amada.
Aqui em meu quarto tem sempre uma bela tapuiranas armada no canto onde
há uma janela com vista para o mar. A que mais gosto é feita de linha esterlina
branca, com estrelas amarelas, varandas amarelas com o meu nome bordado e
quatro borlas nas extremidades. É muito parecida com aquela que te levei, no
teu último aniversário.
Quando vou dormir é para sonhar com o tempo de menino. Depois da oração,
deito na tapuiranas debaixo do mosquiteiro, imaginando se terei ainda força
para repetir no galho da mangueira, os saltos do ginasta do circo que acabara de
chegar.
Minha querida irmã e sobrinha, até os sonhos são melhores sonhados numa
rede de não é?
104
OITO
1 - TOURADAS EM MADRI
Aliás, jamais vi qualquer pessoa assumir tal nível de tolerância e aceitação como
ela fazia, de maneira religiosa, quase política, à maneira do “é dando que se
recebe”, (talvez porque pretendesse o merecimento de também ser aceita e
tolerada em suas tergiversações), nessas horas jamais me recebeu de cara
trombuda.
Klara estava com um lenço colorido cobrindo a cabeça até as orelhas, preso à
nuca por um nó. A feição sombreada deixava bem claro onde a gordura se fazia
ausente. As sardas que sempre teve espalhadas como chuvisco, agora eram
bem mais visíveis. As olheiras de raiz italiana (que só ela e Silvana Mangano
tinham – como costumava dizer), cercavam de negro os olhos baços. Estava
com os dedos enfiados num pote de creme de óleo de tartaruga, que vivia a
passar nos braços, pés e mãos ressecados. Mais adiante, afastado no canto, um
umidificador sibilante enchia o ambiente com uma nuvem de vapor.
Voltei alguns passos em silêncio, para fingir que chegava naquele momento.
Não queria que ela pressentisse o furto daqueles minutos de um ritual que me
pareceu o sacrifício que antecede à imolação, uma cerimônia para o desfecho
anunciado. Reabri a porta que fechei com o ruído necessário para fazer notar a
minha presença e fui dizendo com a animação possível que fosse, apesar de
tudo, aparentar:
– Klara! Estava numa festa e lá aprendi uma música nova. Vamos cantar!
105
Parará ti bum bum-bum
E quase não volto mais aqui
Pra ver Peri beijar Ceci
Parará ti bum bum-bum
Parará ti bum bum-bum.
– Vamos lá pessoal!
Caramba caracoles
Sou do samba não me amoles
Pro Brasil eu vou fugir
Isso é conversa mole para boi dormir
Parará ti bum bum-bum
Parará ti bum bum-bum
Klara tinha tomado decisão de desistir da vida. Entendi quando um dia ela me
escreveu reclamando da tortura que era o tratamento que, para curar, destrói
não só todas as defesas imunológicas, mas também faz ruir todo o espírito e
religiosidade que o ato de viver traz consigo. “É uma doença que corrói por
dentro, silenciosamente vai derribando toda resistência, deixa a gente um
trapo, física e espiritualmente em trapo, um arremedo de ser humano”.
106
Bebi de um gole só a metade da dose de uísque e levei a outra para o banheiro,
tentando ainda, de um modo insano, cantar a minha invenção para alegrar
Klara:
Quando saí do banho, mais demorado que de costume para tentar recompor a
minha tristeza, encontrei Klara ainda com o lenço colorido cobrindo a cabeça e
as orelhas. Suas feições sombreadas demarcavam as pequenas covas que se
insurgiam contra a beleza natural de Klara. Eu podia constatar pelo toque a
pretendida carícia, que a magreza se fazia presente, dominadora.
– Você pode ser a minha Claudia Cardinale ou mesmo Sophia Loren, mas Silvana
Mangano, não!
Ficávamos assim por muito tempo, até uma hora que o sono nos vencia, ela
recostava a cabeça no meu ombro e saíamos agarrados, ela com o braço
apoiado no meu, em passos curtos num passeio místico, itinerário para as
ablações antes dela se deitar: passagem obrigatória pela cozinha, dois
comprimidos de vitamina C, a garrafa de água para passar a noite, o
comprimido de antidepressivo, um copo de suco de maracujá.
107
noites, sem abandonar as coisas materiais, mas dei-lhe um carão e tomei a
iniciativa:
No dia seguinte, de manhã cedo, Klara ainda dormia, dei-lhe um beijo e, mal
chegou a empregada, arrumei a mochila e parti de novo.
Das turnês de Antônio Carlos sobrou apenas a pilha de cartas e postais que
mapeavam o seu itinerário mundo afora. Jamais vi ou ouvi Klara se lamentar
devido à larga ausência do namorado. Jamais senti nela algo que denunciasse
dor, sofrimento, saudade.
Ao contrário, muitas vezes compartilhei com ela alegria e emoção pelos êxitos
alcançados por Toni e seu grupo, quando líamos nos recortes de jornais as
notícias e comentários sobre suas apresentações.
Algumas dessas fotos, aliás, estavam naquele envelope achado quando fui
retirar os destroços dela para cremação. Todas as fotos eram do casal, nenhum
deles estava só nas imagens. Eram retratos representativos de momentos
únicos, alguns íntimos, outros apenas em repouso da vida.
E assim seguia...
108
recompunham, o colo torva-se ereto e o porte altivo se impõem de modo
natural.
Rodeava a casa um terreno com poucos arbustos, mas que poderia servir para
plantar alguns pés de pitanga, marmelo, acerola, goiaba, essas frutinhas que os
passarinhos gostam muito e ainda dão um bom suco. Imaginou-se nas manhãs,
caminhando por ali, sobre os tufos de grama ainda úmidos pelo sereno frio
caído na madrugada.
Mas a casa estava fechada, não poderia vê-la... Dona Hortência, mais uma vez,
atravessava os pensamentos com uma ótima sugestão:
– Por que você não fica hoje aqui? Será minha convidada...
– Obrigada, dona Hortência, mas não quero incomodar, é muito trabalho. Vou
ficar, sim, porque encontrei o que imaginava e não quero deixar Itaipava sem
estar tudo resolvido: alegria ou decepção, um dos dois será, mas tomarei a
decisão final, não é? Posso muito bem ficar num hotel ou pousada perto daqui...
– Bobagem. Para que se deslocar daqui, se estamos bem pertinho da casa? Vai
ser um prazer recebê-la. Daqui não se vê, mas, subindo mais um pouco, à
direita, dobrando a primeira curva, fica a minha casa.
– É uma ótima ideia. Apesar de não me ter programado para pernoitar aqui,
aceito a sugestão. Mesmo porque tinha em conta sair daqui com tudo resolvido.
E vai ser de grande valia estar ao lado da casa. Tem certeza que não será um
incômodo?
– Mas, acredite, não é trabalho nenhum. Vivo só há muitos anos com uma
amiga, a Maria, que é mais do que uma simples empregada. Ela cuida de mim
há anos. Ademais, meus filhos, noras e netos vêm me visitar de vez em quando,
109
nas datas festivas. Quando bate em mim mais forte a saudade – deu um sorriso
– eu é que vou vê-los no Rio de Janeiro.
– Você não sai daqui sem ser a minha vizinha mais nova!
No dia seguinte Klara acordou com uma ânsia incontrolável. Não via o momento
de ir até a casa, entrar nos cômodos, conhecer o jardim e o quintal. Hortência
tinha saído cedo, mas deixou sua amiga Maria para cuidar de Klara, do café da
manhã. Maria já estava informada de tudo. Cumprimentou Klara com a boa
nova:
– Pois sim, que tudo de acertará. A Hortência tem uma premeditação que parece
até coisa de magia. Mas não pense em nada disso: somos devotas de Nossa
Senhora das Dores, patrona daquela igreja que tem logo ali perto do cemitério.
O café da manhã era simplório, mas de deixar qualquer paladar confortável: pão
francês fresco, manteiga – não margarina – queijo minas, bolinhas de pão de
queijo, um pote com mel e outro com geleia de rosas. Completava a mesa um
bolo de milho, dourado como uma coroa real, uma realeza que reúne
simplicidade e fartura.
110
pulou, pulou mesmo, quando ouviu a voz de Hortência subindo os degraus da
varanda.
– Bom dia! Bons dias! – repetiu com a conhecida alegria. Estendendo as duas
mãos para ampará-la, Klara fez questão de ser a primeira a cumprimentá-la.
– Então minha amiga, foi bem tratada? A Adélia a cuidou bem de você?
– Como uma rainha – respondeu Klara. Como uma rainha! E a senhora? É bem
madrugadora, hem?
– Sim, sou de acordar antes do galo. Mas, antes de tudo, vamos parar logo com
esse negócio de senhora pra lá senhora pra cá. Se quiser me chamar de velha,
tudo bem, mas senhora não. Isso mais aparenta coisa de amos e súditos, cena
de filmes do passado, enfim.
Hortência meteu a mão na bolsa como a procurar algo, para depois exibir, como
um troféu, o chaveiro com meia dúzia de chaves penduradas. – Missão
cumprida, milha filha, disse sorrindo. Missão cumprida.
Enquanto isso Maria arranjava num vaso com água o buquê de flores do campo
que Hortência tinha trazido – era outra missão que jamais deixava de cumprir –,
além de guardar outras coisinhas para a despensa. Depois, seguiram as três,
para visitar a casa, a casa de Klara, como todas guardavam na mente.
Entraram juntas, esbarrando uma na outra, as três muito ansiosas. A casa aos
poucos foi se exibindo, como uma caverna de tesouros ocultos. O ambiente era
mais ou menos parecido com a da casa de Hortência, só que estava ainda vazio.
Para Klara, porém, isso nada importava. Ela preenchia os espaços com ideais da
imaginação.
Também ali predominava o reinado dos aromas, dos muitos perfumes, mas de
modo diferente, ainda predominava o cheiro de mato, mais chegado àquele das
fazendas das terras da sua infância. Essa ligação imediata fez-lhe refletir de
como o Tio Zequinha gostaria de estar ali, por isso prometeu a si mesma fazer o
convite logo quando chegasse ao Rio de Janeiro.
111
Foi inevitável encher a cabeça com as visões que Klara teve nessa manhã
mágica. Também aqui os passarinhos se tornariam íntimos, fariam parte da
casa, entrariam na cozinha, nos batentes das janelas, a bicar farelos de pão e
bolo, os montinhos de xerém.
Visitou cada quarto vazio enchendo os vãos com as imagens que há anos se
formaram na cabeça. A cama próxima da janela, com o vitral em cruz, onde
poderia de novo assistir ao espetáculo das noites estreladas e – quem sabe –
receber de novo a visita de algum grilo esquecido pela natureza.
Klara passava de leve a mão nas paredes rugosas dos corredores, entre um
cômodo e outro, concentrada na concepção de seu ideal, anteviu como ficariam
orgulhosas e bonitas, ornamentadas com os quadros e retratos, mesmo
amarelados, que para esse fim guardara como um tesouro.
Ao fim daquela estranha aventura que foi passar em minúcias toda a casa,
chegando à copa e cozinha, Klara respirou fundo e só faltou se derramar em
lágrimas.
A qualquer olhar mais despojado, aquele imóvel seria apenas uma modesta
residência, mas não na eternidade de Klara.
Para ela esse fato – não mais uma quimera – é parte de uma fantasia, um
projeto, até então imaterial, que estava sendo realizado.
112
Essas lembranças vêm a respeito de uma irreverência de Klara. Aliás, como era
mordaz em quase tudo que fazia, uma vez lancei-lhe uma das muitas frases que
a gente inventava ao calor das refregas. Disse-lhe: “Não te preocupes, os
gozadores não morrem de câncer”. Foi uma frase infeliz, embora dita ao tempo
em que não se divisava, ainda, a tragédia que viria desqualificar a locução.
113
Outra reminiscência decorrente foi uma discussão que tivemos sobre o exame
de próstata. De modo mais simplista, eu sempre saía favorecido quando
desmontava as teses dela, argumentando que para a mulher era fácil exigir do
homem tal exame, porque tem a vantagem de não ter próstata. Essa discussão,
por outro lado, jamais se transformou em pilhéria, porque comecei a tratar
como coisa séria. Cá comigo, entre as mil teses que invento, tem aquela em que
acho que mexer na próstata – como ademais em qualquer órgão atacado por
doença – é atiçar o invasor e arremetê-lo ao assalto.
De fato, por falta de fazer esse exame os homens sofrem ataques violentos das
autoridades de saúde e da área médica, não só alegando risco de contrair
câncer, mas em geral acusando-nos de atitude machista ou preconceituosa.
Compreendo a preocupação de Klara com a minha saúde, o quê a fazia reforçar
os ataques contra mim sempre que podia.
– Isso é terrorismo psicológico, nada mais. Ademais, eles alegam que “o governo
gasta muito com tratamentos”. Como é que é? “O governo gasta muito?”
Parece até que o dinheiro sai do salário deles...
Agora mesmo, já faz dois anos que não levo a dedada (seja lá) no cu. Apesar de
eu não ter nenhum plano de saúde, já me indicaram: – Vai à Santa Casa, que
você consegue rapidinho. E fico sabendo que tem um médico muito bom que,
mesmo beirando os oitenta anos, por algum trocado, faz o exame na hora. Quer
dizer, ademais de sofrer a humilhação, ainda vou pagar para levar a dedada no
cu, aplicada por um octogenário? Como diria o poeta: “São por demais as
agruras desta vida!” Continuo crendo que é caso para a psicanálise.
Suponhamos que Freud tivesse um caso desses nas mãos. Em suas notas de
estudo (ia dizer científicas, mas o Dr. Hans Eysenck alertou-me de que
psicanálise não é ciência), Freud decerto escreveria:
A questão é: sob qual aspecto de suas várias teorias Freud encaixaria essa grave
questão? As razões da recusa não afloram à luz da psicanálise e permanecem
mergulhadas no inconsciente. E a perene fofoca entre o id, o ego e o superego,
renasceria com todo vigor, pois, como se sabe, a psicanálise trata de esclarecer
tudo que ocorre nesse buraco negro da alma que é o subconsciente. Neste caso
particular, tudo pode não passar de piada, uma das muitas que se inventou, mas
que hoje é considerada preconceituosa ou politicamente incorreta – para
repetir as expressões da moda.
Quem diria que uma simples incursão ao reto de um dedo médio, enluvado,
com vaselina e esterilizado fosse causar tanto rebuliço às teorias freudianas!
Mas foi a essa conclusão que o estudo de estágios pré-edipianos chegou,
causando sensação e estímulo à catarse induzida dos neurônios,
115
experimentação natural alicerçada no controle da depressão, da ansiedade, da
autoacusação, da fadiga psíquico-neurótica, que traz o exame prostático.
Antes de sair deste assunto explico aos ignorantes: dedada erótica, é aquela que
a mulher aplica em você, de modo torpe e traiçoeiro, quando o clímax se
aproxima (impossível defender-se); beijo grego, bem, é o mesmo que
cunnilingus, só que aplicado lá mesmo no cu. Acho que deu para esclarecer.
116
Porém – graças a Deus tudo nesta vida tem um porém! – a viagem pelo país do
Google não foi de todo infrutífera. Vejam a pérola que encontrei e que levo ao
conhecimento de todos:
Notícias más e notícias boas. Está bem, confesso, me faz falta a pergunta (às
vezes oral, às vezes escrita) que Klara me gritava: – Então? Já levou a dedada
este ano? Mas ao mesmo tempo dá um alívio não mais ouvi-la. E depois dessa
novidade alvissareira, que dá chance de dialogar com o meu cu, passo-lhe o
recado: – Não desespere, ainda resta uma esperança!
117
Quantas e quantas vezes repeti o mesmo gesto sozinho, desfrutar um pinot noir
e repensar aquele dia, para enfim compreender que na verdade se comemorava
um “falso negativo”, que nada mais é que o fruto doloroso de uma
incompetência criminosa. Quando enchia outra taça, trocava um brinde
irrefletido, olhar a taça contra a luz, admirar a cor de sangue seco, coisa que só
a variedade pinot noir consegue oferecer.
A turnê de Toni tinha demorado mais do que previsto – como, aliás, todos nós
mesmos tínhamos imaginado. Agora os convites e compromissos eram tantos
que era impossível se prever o seu retorno ao Brasil. Após a participação em
festivais na França, Espanha, Alemanha e Portugal, a viagem prosseguiu para
Londres, Dublin, Glasgow e Birmingham. Como o contrato com os empresários
não fixava limites – a não ser promover o grupo e obter ganho financeiro e
promocional – o grupo tinha esticado a viagem para alguns países do leste
europeu por mais dois meses antes de seguir para os Estados Unidos.
Como ele mesmo detalhou em conversa com ela, a fama é efêmera, todos os
célebres um dia se tornarão ilustres ignorados – melhor, pois, desconhecido e
com algum dinheiro, que o contrário.
Entrementes, chegou a Klara outra notícia triste: o Tio Zequinha teve infarto
durante uma viagem e veio a falecer depois de quase um mês internado numa
UTI. A informação veio de longe e picotada por diversas pessoas, das quais ela
procurara ter conhecimento de algum detalhe. Também demorou a chegar, já
tinha se passado alguns meses quando ela soube.
Não pôde fazer nada, senão pranteá-lo, chorar sozinha, além de, por um
impulso espontâneo, vindo de origem sobrenatural, rezar todos os dias uma
novena vezes com o terço de Fátima entre as mãos trêmulas.
Tio Zequinha era o mais doce, o mais fraterno, o mais compreensivo, o mais
tolerante e perfeito amigo que teve. Apegado à vida simples do interior, Tio
118
Zequinha jamais perdeu o contato com o campo, mesmo quando das muitas
mudanças que fazia.
Costumava dizer que se algum dia ganhasse na loteria compraria muitas terras e
mandaria construir um grande sobrado à beira do Lago de São Bento.
Era conhecida a sua paixão pelos animais, a idolatria pela natureza, o ardor com
que defendia a vida simples, o entusiasmo que tinha para manter a família e os
amigos sempre unidos.
Tio Zequinha jamais ganhou o prêmio, mas conseguiu realizar o sonho de ter
sua terrinha, no pequeno sítio os animais de criação, plantar um pomar com as
frutas preferidas, manter o gado protegido num curral, beber o leite, a coalhada
e o café que ele mesmo produzia numa modesta casinha para moradia
periódica no campo.
Tio Zequinha era sabido por agir assim, sem anunciar o nome a quem o
atendesse. Se alguém perguntasse quem havia deixado as encomendas, não
saberia o que responder.
Talvez por isso, sempre que o encontrava, tinha a impressão de vê-lo com um
cajado, como usavam os pastores para alimentar as ovelhas.
Quando comprou uma posse pequena na orla da enseada em São Bento e fez
dela um sítio aprazível, sentiu-se plenamente realizado na vida. Ali Tio Zequinha
plantou mangueiras, cajueiros, goiabeiras, jacameiras, bananeiras e com as
fruteiras locais, criou um pomar muito a seu gosto.
119
Nada em escala empresarial. Só pelo gosto de criar bichos, gozar os ares do
campo e ouvir dos empregados as lendas de monstros e visagens. O deleite de
montar a cavalo, beber cerveja, comer jeju frito, saborear a maciez amanteigada
dos bagrinhos.
Tio Zequinha sentou praça no Sítio Canarana só para gozar o esquisito sabor do
muçum ao leite de coco e pimenta, o arroz-de-jaçanã e tantas coisas que dão
prazer ao baixadeiro.
Esses tais eram os encantos de Tio Zequinha. Era viajado, sim, porém, o seu
xodó era a São Bento da meninice, das festas anunciadas com foguetes de
taboca.
Pois não é que ele foi, sozinho, terminar seus dias exatamente na cidade aonde
chegou? Ali foi criado entre os filhos do povo pobre, humilde, mas pacato, feliz
e honrado da mais bela cidade do mundo, correndo em intermináveis
brincadeiras pelo gramado natural da praça, aonde de noite se acendiam
fogueiras com bostas de boi, para espantar as muriçocas.
Foi nesse ambiente que Tio Zequinha fez as primeiras letras, formando-se na
escola e nos folguedos, arrebanhando as melhores amizades de sua vida.
Tio Zequinha, meu Tio querido, que me recebeu em sua casa, na primeira noite
em que fui dada e chorava sozinha no quarto, faleceu fulminado por um
enfarte.
Tio Zequinha era o melhor de todos os homens: foi jornalista, foi funcionário
público, amigo exemplar, escritor culto – e já começa fazer uma falta enorme.
Peço a Deus que perdoe os pequenos pecados que acaso tenha cometido e o
deixe repousar, para sempre, numa casinha modesta, à beira de verde campina
florida, ouvindo o bezerro saudar os dias, com o berreiro de fome do leite mais
doce que existe no pasto do Sítio Canarana.
13 de agosto
Klara,
120
Como te contei em carta anterior, aquele convite para viagem a São Bento foi
suficiente para relembrar as redes incomparáveis feitas ali. E na lembrança elas
não vieram sozinhas, mas acolitadas de cheiros, sabores e visões que sempre
percorrem juntos os tempos de nossa vida, mãos ocupadas com maços de
vassourinha, alimpando os empoeirados caminhos da memória.
Assim protegida com tanto carinho, a rede pode ser armada, que para isso ela
foi feita. Mas não se arma rede assim sem mais nem menos. É necessário
observar as regras mínimas para que se possa desfrutar bem delas.
Rede para criança fica na altura dos cotovelos da mãe, para facilitar a lida de
troca de cueiro.
Já a rede de velho não deve ser armada a mais de dois palmos e meio do chão,
que é pro velho não se machucar muito, se cair.
Aqui, bem te lembras, o dia começa cedo. Antes das cinco horas, vultos de
corpos dissimulados pela bruma da madrugada já estão na lida do curral, na
tiragem do leite para o café com farinha, a coalhada, o queijo.
O resto do dia flui lento no trabalho duro. Descansar mesmo só de noite, depois
do banho tomado à beira do poço, um bom prato de bagrinhos e jejus
cozidos, caldo apimentado e farinha biriba, às vezes com um pouco de arroz
pilado pelas mulheres.
Aí vem o café grosso, torrado com açúcar para puxar o sabor do fumo-de-molho
picado e enrolado na abade.
121
Pronto, afastadas as pragas com a fumaça de bosta de boi seca queimada, é
deixar o corpo cair na tapuiranas que o sono chegava de mansinho.
Tem tempo que as crianças choram dia e noite de medo. Não vão à escola, não
passarinham, nem armam arapucas nos matos.
O medo vira pavor. Então, os moradores de São Bento pegam a rezar ladainhas
e novenas, a fazer benzedura, a acender vela.
Chegaram mesmo a construir uma capela com enorme cruzeiro de pau d’arco
roxo à frente e foram chamar o padre de Pinheiro, para enviar aos céus missas
concelebradas durante três domingos seguidos, mode debelar aquelas forças
demoníacas.
Como vês querida prima-sobrinha-irmã não muda quase nada em nossa terra
querida...
122
NOVE
1 - DENTRO DO VENTRE DA NOITE
Somente após o filme das dez horas acabar, Klara levantou-se para dormir.
Antes havia ainda todo aquele ritual de fechar as portas e janelas, arrumar as
cortinas, passa em revista os cômodos secundários, cozinha, área de serviço,
banheiros.
Antes de deitar-se para dormir nada haveria de estar fora do seu lugar: louças,
talheres, toalhas, copos – tudo, tudo iria parar no seu devido espaço, e até
alguma coisa fosse para ser antecipada para a manhã seguinte – ritual
consagrado pelo tempo, nada sobrando para que se pudesse mudar.
Agora viria a segunda parte, mais íntima, que era aquela missa que todas as
mulheres celebram para si e para seu tempo: cuidar da pele, lavar-se e
enxaguar-se, fazer as necessidades, a higiene pessoal, tudo numa sequência que
culminava com a aplicação de uma película de creme em todo o corpo e uma
máscara facial.
Antes de sair do banheiro Klara apagou as luzes para não incomodar o sono de
Toni, cuja presença em meio à semiescuridão era pressentida pelo respirar
ritmado numa cadência simétrica.
Sem nem mesmo preocupar-se com qualquer vestimenta, ela flutuou o corpo
para se deitar ao lado dele, perfazendo assim um quadro que ninguém haveria
de registrar, apesar de se repetir a todo instante.
Dois corpos nus, uma cama, pálpebras fechadas em sono profundo, naquele
momento vigiadas por olhares arregalados que ainda tentavam traduzir a
escuridão, dissipar a névoa, localizar pontos de toques e carícias.
123
Foi assim. Klara começou tateando aqui e acolá, por intuição, os mamilos de
Toni eriçados no peito arfante, o umbigo marcando limites no ventre
musculoso, os pelos curtos do púbis, o membro, as coxas.
Com todo tempo do mundo Klara usava as mãos com a perícia de um cirurgião,
percorrendo alguns pontos do corpo de Toni determinados pela reação nervosa,
até certo ponto devassas, com a delicadeza de uma massagista oriental invadia
as reentrâncias carnais, distribuindo os toques libertinos, as carícias lúbricas
com a mesma leveza de um chumaço de algodão.
Toni não despertara em nenhum momento. Mas o seu corpo não estava de
todo insensível, ao contrário, reagia impudico, por instinto abria-se em porteiras
para deixar livres as mãos de Klara.
Um leve suor recobria a sua pele, exalando, por onde quer que fosse, o odor e a
postura lasciva, aromatizando o ambiente com o cheiro bruto fabricado pelas
glândulas que reproduzem aromas carnais, exclusivos para aquele momento,
impossíveis de se guardar em vidros.
Foi assim que Klara trepou sobre Toni e cavalgou por um tempo demorado,
indeterminado, salteando em leves ondas, vagas diminutas que apenas
arrefecem à beira da praia, sem provocar escarcéus, flutuando mesmo,
exaurindo-se também em suores que escorriam ventre abaixo, até o momento
em que um clarão relampeou em seus olhos, a fronte latejou, fez-se um silêncio
repentino.
Aí então, sim, as suas unhas feriram o peito de Toni, ele despertou arfando,
num impulso suas mãos apertaram os quadris da mulher que sabia estar sobre
ele, desta vez sem conseguir – ele também – refrear-se, ajudá-la na montaria,
corcovear, explodir, até Klara finalmente apear do corpo inerte.
Mas fazer sexo amando é bem como um trunfo guardado para a grande jogada.
Ninguém é capaz de adivinhar como a mística vira se realizar. Nem quando será
a última vez disso ou daquilo.
124
Klara tinha esse instinto cigano impregnado em seu viver, sem saber de onde
tinha herdado. Por isso ela deixou, assim, sexo e amor dependurados num
cabide imaginário quando tomavam café naquela manhã ensolarada.
Nem ela nem Toni nem ninguém seria capaz de imaginar o que viria a seguir.
Apenas se despediram.
Ainda consegui marcar com Toni um almoço. Depois disso seria pouco provável
que a gente se encontrasse. Na verdade o almoço falhou e acabamos nos
encontrando ao fim da tarde. Coloquei a situação para ele: as cinzas de Klara
não estavam mais no cemitério São João Batista, aliás, em cemitério algum. Foi
pedido dela, expliquei. Mas Toni também tinha conhecimento disso, porque ele
conseguiu resumir para mim seu último encontro com Klara. Ele me contou
como foi.
A derradeira vez que a vi, foi quando aproveitei uma breve escala no Rio de
Janeiro. Por um problema na companhia aérea, os passageiros tiveram de
pernoitar no Rio. Fomos todos para o Hotel Othom que fica bem pertinho do
apartamento dela. Depois que deixei os colegas, ao fim da tarde, lá fui ver Klara.
Fiquei um bocado de tempo. Ela não conseguia mais se levantar tão fácil e
andava pouco.
– As minhas pernas estão moles, bambas, como as de uma boneca de pano – ela
dizia.
Ajudei-a a ir ao banho, deixei que a água morna molhasse todo o seu corpo.
Depois participei do ritual da massagem com um creme feito especialmente
para ela. Ela mesmo se massageava e só pedia para aplicar nos locais de difícil
acesso. O creme, que ela usava em abundância para esconder as ranhuras da
pele ressecada, tinha um perfume almiscarado, lembrando fragrâncias orientais.
Depois desse ritual, até que ela se alimentou bem: comeu uma salada de frutas
que inventei na hora, em seguida bebeu dois copos de suco misturado com
soro, após isso se deitou, de lado, com os joelhos dobrados até a cintura. Logo
Klara respirava em cadência, vi que estava cochilando, eu aproveitei para
relaxar também, diminuir um pouco o cansaço das múltiplas viagens, como você
bem sabe.
Virei o corpo no mesmo sentido do dela e pude ver como Klara tinha
emagrecido, estava praticamente com a metade da massa corporal. Seu corpo
bem formado, que refletia ainda os efeitos dos exercícios que sempre fez, ora
em academias, ora nos parques públicos, deixava à mostra as partes extremas
do esqueleto.
– Ninguém conhece essa doença. Ela vai corroendo aos poucos, por dentro.
Corroendo, corroendo...
Devo ter cochilado um pouco, porque despertei com algumas palavras ditas por
Klara em sussurro, em sonho. Não entendi nada, mas imagino o que seria dito, o
126
que se passava na mente dela, tendo sofrido da vida a pior das reviravoltas
pelas quais um ser humano será capaz de passar e suportar. Merda!
A fisionomia dela gravou aquele misto de ‘sofro um bocado, mas finjo que não
padeço, mostro que aguento mais um adeus, que ainda tenho forças para
suportar a solidão, que a tudo tolero e ainda sei me comportar como uma boa
menina’... Eu estava bem sabedor dessa expressão, que muitas vezes era
acompanhada de lágrimas furtivas.
Quando fui dormir os sons chegavam ao quarto filtrados, mas ainda carregavam
uma estranha miscelânea, intercalando o ruído das ondas que quebravam nas
areias com o zumbido que urrava em meus ouvidos.
Continuo repetindo histórias para tirar a nuvem de lembranças que cobre minha
cabeça. Repetindo, repetindo, como se atendendo ao pedido de Klara: – Como
foi? Conta! Conta! Gosto de saber tudo, desde o princípio. Até parece que nasci
aqui há séculos atrás.
Pois sim... Quantas vezes repeti a mesma cantilena: Petrópolis nasceu de uma
vila no início do século 18, com a abertura do Caminho do Garcia, feita para
127
explorar pedras preciosas. Garcia Rodrigues Paes, filho do legendário
bandeirante Fernão Dias, foi também autor de muitas façanhas e aventuras, que
varam o Uruguai, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Vale do Paraíba,
Rio de Janeiro, até alcançar Minas Gerais. Aventuras que, como todos sabem,
custou a vida de centenas de milhares de nativos brasileiros.
Essa era a história que Klara gostava que eu repetisse aos que visitavam o seu
reduto em Itaipava pela primeira vez. Mas tudo isso se some da memória
quando se inicia a subida da serra e logo chega à fase mais bonita, aquela que
mantém viva e verdejante grande parte da Mata Atlântica original da Serra dos
Órgãos. As copas das árvores se fecham altas por cima, desenhando um túnel
natural, úmido, obscuro. A estrada sinuosa margeia pela lateral a Serra dos
Órgãos, subindo em zigue-zague, em lenta ascendência, tendo como vizinhança
velhas árvores de galhos deitados pelo alto. Os pedaços de troncos podres,
caídos pela estrada, se multiplicam até chegar à entrada da cidade, vista desde
ali, das portas da Casa do Alemão.
Mesmo assim noto que, ao contrário do que havia previsto os seus projetistas, a
cidade cresceu em desordem, deturpando o planejamento técnico feito pelos
engenheiros Julio Köeler e Paulo Barbosa, em 1843. As principais atrações da
cidade (Museu do Império, Museu Santos Dumont, Casa Stefan Zweig, etc.),
estão protegidas e conservadas, mas o mesmo não se pode dizer do casario
antigo. Muitos e muitos anos frequentei aquelas paragens acompanhado de
amigos petropolitanos, que repetiam com ares de professores todos os dados
históricos, como um rito de passagem.
128
Muitas vezes estive aqui, eu e Klara, tendo como obrigatório frequentar as casas
de chás para o tradicional lanche, acompanhado de biscoitos amanteigados, de
sabor único, com café das fazendas de Itaipava e Corrêas – coisas que tanto ela
gostava! Tudo desapareceu, a casa de chá deu lugar a estabelecimentos de
suco, refeições rápidas (fast food) ou pastelarias de chineses vindos de Taipei e
Hong Kong, a maioria deles entrados ilegalmente no país.
Quantas vezes, depois de bater perna pelos becos da cidade, não fui parar à
noite na Casa D’Ângelo (de irmãos D’Ângelo & Cia.), que sobrevive numa casa
de dois andares de ordens clássicas, peitoris com medalhas de faiança,
revestimento, estantes, móveis e cristaleiras em mogno negro. Apesar da
tradição de servir chá da índia com torrada petrópolis, na Casa D’Ângelo, eu
dava preferência às terrinas de patê, queijo coalho, tipo suíço, pão de cevada,
acompanhados com o excelente chope preto da antiga cervejaria Bohemia.
Seguindo para Itaipava para cumprir a parte final da missão que o destino
impôs, avisto de longe a Pousada das Araucárias, ali pelas bandas de Corrêas.
Lembro a pseudo-história dessa pousada que Klara me contou, sempre ouvindo
minhas objeções quanto à veracidade da mesma. Aproveitando-se do que
sobrou de uma clínica para tratamento das afecções pulmonares (abandonada
por motivos óbvios), um casal de portugueses resolveu descansar a
aposentadoria montando esta pousada.
Dizia mais: que foi ali que o poeta Manuel Bandeira – sempre em busca da cura
para a tísica que o perseguiu desde a infância – escreveu os poemas do livro
Libertinagem. De qualquer modo, acho que a história tem seu sabor, bem
apropriado ao ambiente de clima poético. Como também acho vivificante o
sonho do casal português de encerrar a laboriosa vida servindo aos outros, com
o prazer de estar fazendo o que gosta, porque, maior que o retorno financeiro,
devolve também o consolo emocional.
Respiro fundo. Daqui de longe vejo a Pousada das Araucárias no alto da colina,
cortando a encosta, numa estradinha de pedras.
Respiro fundo porque estou a caminho de dar fim a um drama pessoal e pelo
prazer de respirar o odor refrescante e místico das espécies nativas, os ipês, as
araucárias, o ar fresco que sopra nas médias altitudes. E também pela alegria
alegórica que traz o gorjeio das aves, o grasnido das aratacas e como tudo isso
penetra de chofre na gente de modo inexorável.
Ainda tenho espaço no cantinho das lembranças para relembrar era para cá que
Klara fugia com Toni para passar dias de completa solidão e prazer a dois, livres
das raízes preconceituosas alimentadas pelo subconsciente, subtraindo toda a
129
energia de seu reacionamento, como as plantas parasitárias espalhadas nas
copas sugam os nutrientes das árvores que as hospedam.
Agora não mais, mesmo quando tentei localizar Toni para convidá-lo a participar
do último ritual, não tive como, nada mais me ligava àqueles anos de breve
relacionamento, nem mais o seu nome era assim tão conhecido. Sua carreira
artística tinha se reduzido a aparições em que se tentava refazer um momento,
uma época remota.
Vejo uma nuvem cinza, quase branca, que vai se espalhando desde logo pelos
vales ainda verdes de Itaipava. É a névoa que se incorpora à própria natureza de
modo casual. Acompanha o fumo alvo que sai da terra fria nas manhãs. Mistura-
se em partículas aos fios da água que escorre das árvores durante a madrugada.
Sinto-me grudado à umidade, minha camisa cola à pele como se fosse uma coisa
só. É tão difícil imaginar que pouco mais de uma hora distante do Rio de Janeiro,
do ar opressivo enfumaçado pela poluição, se possa respirar e usufruir
ambiente quase pré-histórico.
O sol perpassa a candeia pela urna num abluo de luz, flores dispersam o aroma
de sésamo, Klara está vestida pela brancura do ambiente. Os pés imaginados
em direção ao sul, a cabeça no rumo do norte. Estão soltas as algemas terrenas:
fogo, ar, terra e água voltam às esferas. O esqueleto em pó é quebrado. A
essência dela flutua, o olor de sândalo voa, queimam folhas de murta, o aroma
de cânfora se dispersa na vegetação, as cinzas, em leve fumaça azul, as cinzas
caem, irrigam a terra, o ar, a água.
Klara acordou com o minúsculo ruído que a brisa fazia na cortina da janela. Era
imperceptível ao ouvido comum, mas foi esse som que a despertou. O quarto
estava embebido em uma luz cinza, raios azuis se mesclavam com as faíscas
cintilantes com que o sol clareava o ambiente, como pequenos relâmpagos.
Seus olhos refulgiam a cada clarão, fazendo com que desviasse a vista para os
cantos mais escuros do quarto. Sons e ruídos estranhos doíam aos ouvidos.
Alcançou o travesseiro e ficou estática ouvindo os ruídos e sons que toda manhã
enchiam o seu quarto. Vinha da rua adjacente o som, estridente e explosivo,
dos veículos que passavam a caminho do túnel, onde mergulhavam velozes
levando também o barulho excessivo. Logo abaixo da sua janela os vizinhos
passavam em direção à praia. Se estivessem acompanhados de crianças, era
certo que a algazarra alegre, os gritos e os risos deles serviriam de anúncio que
o dia estava ensolarado e a praia convidativa. Talvez fosse domingo, feriado ou
tempo de férias.
Afastou o lençol de lado e viu seu corpo, nu e magro, estendido como uma
toalha na areia. Os ossos sobressaltavam-se emergindo da pele alvacenta e o
ventre chato. Um tufo anormal de pelos negros, uma touceira de capim, servia
apenas para mostrar a inutilidade de tudo. Logo abaixo do queixo viu os seios
esparramados.
Um dos seios era natural, guardava o caimento da idade, mas sem elasticidade
alguma; o outro ainda mantinha certa altivez – era de silicone – tinha
substituído o outro, vítima de mastectomia. Suas axilas coçavam, devido aos
cabelos negros que cresciam e retomavam a posse do seu lugar.
131
Klara sentiu um fio de líquido quente correr entre as pernas: estava urinando.
Afastou-se para o lado alguns centímetros, apenas para evitar que seu corpo
ficasse sobre a parte da cama molhada pela urina. Resignada, deixou tudo em
seu lugar, não pensou em fazer nada, nenhum esforço, para mudar aquela
situação. Ouviu mais uma vez o grito das crianças indo a caminho da praia, o
barulho dos carros, buzinas, derrapagens, freadas. Cansada de tudo fechou os
olhos determinada a esquecer de todas as lembranças, apagar da memória os
meses, as semanas, os dias. “Hoje não levanto, não acordo, não vivo. Fico
apenas deitada, nada mais”.
Klara estava só e livre para violar todas as regras: urinava na areia, provava água
salgada, espremia os tatuís, os bichinhos da areia, nas mãos, quebrava conchas
em picadinho, gritava palavras proibidas, que só o vento ouvia – merda! não
quero! merda! não faço! merda! não obedeço! Esfregava os dedos entre as
pernas e cheirava, lambia. Se quisesse faria cocô ali mesmo, como um dia já fez.
Ninguém repara, ninguém saberá, ninguém reclama. Era a liberdade de pecar e
não ter obrigação de confessar as culpas a quem quer que seja, nem a padre
nem a pastor nenhum!
132
Outras vezes apenas deixava o chuveiro escorrer, antes do arrepio, a mesma
água morna das praias da sua infância. Agora se viu transportada àquela praia
imensa e deserta que era o campo da sua liberdade, o local das extravagâncias,
o espaço de desrespeito às normas e às regras. Seu corpo encolheu, mas agora
era o frio do vento que enrugava a pele molhada, entre arrepios e tremores.
A praia se estendia em areal imenso, mas a água morna que embebia os pés
agora estava gélida. Klara tremia, o gelo respingava nas pernas, nos ombros, no
rosto, ela se sentia atirada ao vento, numa imensa geleira.
“Klara, Klara!”
Ela fingiu que não estava ouvindo. Assim poderia ficar mais tempo sozinha entre
o sonho e a liberdade. Depois teria que retornar para a prisão, dissipados os
sonhos, perdida a liberdade.
“Klara, Klara!”
Enfim, teria de chegar a hora que não poderia mais se fingir de surda. Ouviu
mais uma vez seu nome ser repetido, desta vez por várias vozes distintas, aflitas
com a alma absorta que tomava conta de seu corpo.
Mas foi inútil. Klara entreabriu os olhos e viu o quarto cheio de vultos, gente
que se multiplicava em dobro ao seu olhar cansado. Sentiu um cheiro estranho,
olhou para os lados, estava deitada na cama misturada a urina e fezes, sobre o
ventre acumulava-se um líquido verde, que corria da boca. Onde estavam os
seus primos e primas? Alguém para me socorrer? E as amigas da escola? E o
padre? Bem que consentiria se confessar hoje.
Pois quando se abriram as portas da ambulância ela olhou para trás em busca
daquele um rosto amigo, um olhar conhecido que viesse em seu socorro,
alguém para salvá-la das ondas, do afogamento, e gritou:
29 de agosto
Klara,
Não é sopa a vida moderna. Por isso, sempre que posso, corro para terra dos
peixes e das aves do campo, quintuplicados pelo milagroso padroeiro da cidade.
Não adianta ficar fazendo de conta que está vivo, neste céu de lama, pútrido e
abjeto.
Pelo menos, por enquanto, felizmente tem um barco que sai todo dia para São
Bento. Resolver, não resolve porque não é possível fugir nele para sempre, nas
as velas coloridas asseguram que do outro lado da baía há vida. Decerto, não
tão venturosa quanto merecem os filhos de Deus.
Mas tem homens sobre cavalos, varejando canoas, no meio de um verde vivo,
sem a solidão opressiva da multidão enlatada nos trens que descem dos
subúrbios da cidade grande. Gente livre que comunga tempo, água, vida, ar,
verde e azul com animais que apascentam na paisagem sem fumos tóxicos.
Tem o voo das aves no ilimitado campo que nos liberta das algemas invisíveis e
rompe liames imemoriais que aprisionam os homens. E há aquele cheiro de café
torrado subindo por entre as telhas, filhas morenas da doce argila dos
barrancos. Há a maciez da talhada de queijo, o sabor gordo do leite das
novilhas, o perfume dos peixes roliços cevados nas enseadas, a farinheira e o
caldo de pimenta na mesa dos amigos, gente que – ali sim – está cheia de vida.
Junto a eles, vou fazer pedidos e orações para mim, para ti e bendizer a santa
proteção que recebemos dia e noite. Desde o alvorecer peço bênção à Vila de
Nosso Senhor com o seu cajado, o Livro das Regras às mãos, na constante
vigilância do sono, do trabalho e da formação espiritual de seus afilhados.
Nesta sexta-feira, de manhã bem cedinho, vou tomar o barco, entre os saudares
das gaivotas alegres e o canto dos marinheiros, em busca da vida. Por uns dias?
Que seja! Quem sabe não te encontro no meio do caminho?
134
Beijos do Tio Zequinha.
Rio de Janeiro, Cachambi, 26 de dezembro de 2014.
135
ANEXO
O CADERNO DE CHIARA KLARA CLARINHA
***
Boas e más companhias aquelas que tivemos. Aquelas ficaram, estas se foram e
nós atravessando a vida e o tempo. Marcamos a data do nosso casamento.
Participação a todo mundo e a toda a família. Maiores compromissos, maiores
responsabilidades. O mundo seu e meu, éramos eu e você.
***
CARTA
Por que você não me avisou do que estava se passando? Como você pode ser
tão volúvel a esse ponto? Onde você estava com a cabeça?
Lembro-me agora de um sonho. Uma rua comprida, casa todas iguais, muitas
arvores, ninguém na rua, só você subindo a ladeira e eu correr atrás. Por mais
que eu corresse e me esforçasse em gritar não conseguia emitir um único som.
136
Várias vezes tinha esse pesadelo. Recorda-se do que me disse certa vez?
Certo dia você não apareceu ao nosso encontro. Telefonei à sua casa. Havia
saído cedo e não tinha voltado. Ia encontrar-se com uma amiga. Esperei em vão.
Desistindo de espera-la no local do encontro, dirigi-me à sua casa. Às 11 horas
da noite você desceu de um automóvel. A Glorinha estava junto e um homem
também...
- Você aqui? Não recebeu meu recado? Imagine que a Glorinha vai ficar noiva
desse rapaz e ele convidou-me para jantarmos juntos. Deixei recado lá no Clube,
não lhe deram? É um absurdo, aqueles porteiros não servem nem para tomar
conta do nariz!
Quando teria começado tudo? Quem era ele? Não me importa. Tudo passou. O
Destino pregou-me uma peça e a Vida ensinou-me mais uma lição. Foram três
anos perdidos? Não! Três anos ganhos! Três anos de felicidade, de amor, de
sonho!
***
É madrugada. Do meu quarto vejo a cidade iluminada. Cai uma garoa, fina,
espessa. É triste a cidade vazia, sem ruídos, sem gente, sem vida. A luz do abajur
cai sobre minha mão. Treme... Treme meu peito, sufoca meu coração! Vou
partir. Para onde? Não sei. Vou partir para algum lugar longe daqui, longe de
você. Longe de todos os amigos.
Longe desta cidade, onde você vive, onde ele mora! Não respirar o mesmo ar
que você e ele respiram! Ar pestilento de gente covarde que não sabe enfrentar
os outros!
137
A cidade tão longe, tão cheia de coisas estranhas, de sofrimentos, de dor, de
alegrias, de tristeza, de riquezas e de miséria. Homens e mulheres vivendo e
morrendo. Crianças nascendo. Gente amando, gente traindo... gente como...
você, como ele... Gente covarde e tola como eu... Assim é a cidade, assim é a
Vida...
Não imagina o caos, a dor de consciência tremenda que passei durante algum
tempo.
Quero confessar que é no apogeu de todo o meu amor por você que desisto da
caminhada. Sou um viandante cansado, doente, que deseja descanso e
agasalho. Não pretendo continuar tão cedo. Se, quando me levantar, ainda a
encontrar, quem sabe não continuaremos juntos!
Amanhã escreverei a seu pai, desistindo de tudo. Não quero nada de volta.
Guarde, inclusive, a aliança. Precisando de mim, seja para o que for, estarei ao
seu lado.
***
O TÍMIDO, SEGUNDO...
138
***
Quanto mais te dou, mais possuo, porque são inexoráveis em mim a minha
generosidade e o meu amor...
***
***
Eu gosto das manhãs, pois em todas elas a Vida põe em minha janela um
cestinho cheio de sonhos, estrelas e sorrisos.
Clara - 19/4/1960.
***
OTIMISMO
Sob o rigor dos tempos, os lábios, que antes se beijavam, permanecem frios e
afastados, já não há chama de paixão nos olhos adormecidos; mas eu sonho
com os olhares de amor que nunca se apagam.
Sob a crueldade dos maus momentos, os que antes sorriam, soluçam agora, os
amores se separam, as amizades que não se extinguem, eu sonho com os idílios
que desafiam todas as adversidades, eu sonho sempre.
***
TROVAS
***
I
Um dia me deu vontade,
De fazer não sei o quê
Então peguei a pena
E me pus a escrever.
II
As coisas que escrevi
(uma poesia muito singela)
Mas, como sendo a primeira,
eu a achei muito bela!
III
Brasília foi a primeira,
E compus, a 21 de abril,
Data essa magnífica,
Que nunca sairá do meu coração juvenil!
IV
E assim foi a minha homenagem sincera
A essa grande maravilha,
A essa beleza sem par,
Que tem por nome: Brasília!
***
A nossa vida é como a árvore: bem ou mal tratada, dá bons ou maus frutos.
Clara, 21/4/1960
***
***
***
***
***
No quadro-negro da vida,
O apagador natural é o tempo.
Ele apaga tudo afinal:
Da alegria ao tormento!
Clara, S. Luis, 2/12/1960
***
CARTA DE AMOR
Esperei-o... esperei-o com ansiedade louca, sentindo no peito uma dor aguda a
devorá-lo.
142
Mais tarde contemplei o sol, as árvores, os pássaros que em revoada saudavam
o amanhecer e via você, meu bem amado, a sorrir-me como só você o sabe,
com esse sorriso cruel que me prende, fascina e que tanto adoro!
Olhei a imensidade assustadora do oceano sem ... As ondas com seu rumorejar
constante vinham beijar-me os pés, relembrando a mim que fora ali o recanto
de sonho onde recebi seus primeiros beijos, meu amor.
Atarefadas em seu vai e vem constante, numa ansiedade bem igual à minha,
falavam-me de nosso amor, desse amor desmedido e sincero que havia sido
jurado diante delas...
E aquelas águas claras, ora de tonalidades azul, ora verdes, turvas ou mansas,
quietas ou nervosas, gritavam-me sua perfídia, sua terrível ingratidão, o olvido
de todas as lindas juras de amor!
Diziam-me que você, Carlos, a quem amo com fervor de crente, apesar de sua
maldade, diziam-me que me abandonara no deserto da saudade trocando-me
por outro afeto, qual criança inquieta a correr de brinquedo a brinquedo.
Da eternamente sua.
***
A vida é como a teia de aranha, quando arrebenta um fio, fica logo inutilizada.
143
S. Luís – CRovedo – 27/4/1960
***
***
Clara, não podendo entender o que de belo você achou em minhas tolas
reflexões é que deixo a você todo meu agradecimento e sincera admiração. Da
amiga Mirtes 29/4/1960
***
REFLEXÃO
Não sei por que, mas gosto do impossível! Puxa, por que digo impossível? Por
que existem as coisas monótonas e bobas? Por que todas elas acontecem?
Como seria sublime se todo o impossível fosse possível, se um pensamento do
nada se tornasse realidade... Por que estou escrevendo? Por nada, só pela
vontade de viver um pouco do incontestável, de fugir à rotina paulatina das
coisas terrestres, de subir ao impossível e nele entranhar-me, beber gota por
gota do que nunca vi. Por que a torturante infelicidade vem, toda enjoada e
pedante para perturbar a instável quietude que aqui na terra só poderá
assemelhar-se à felicidade, pois esta aqui não é possível? Que turbilhão de
sentimentos em mim! Pareço-me uma Babel. Acho o feio bonito, quero viver no
impossível, penso no nada como existente, e ao mesmo tempo tudo isso vira ao
contrário.
144
Quero subir até as estrelas, banhar-me de sua luz e descer para o meu meio. Por
que e para quê escrevi?
***
A VIDA
CRovedo
S.Luis, 27/4/1960
Saudades, tormentos, paixões, dores, sorrisos... Por quê? Mas... não é isso a
vida? Quem sabe?...
***
ERRO
Machado de Assis
***
***
***
***
146
NOVO AMOR
CRovedo
S.Luis, 29/4/1960
I
Naquela manhã tão linda,
Que reinava a primavera,
Eu confiei em tuas palavras,
Que palavras vãs, aquelas...
II
Dizias que me amavas,
Amavas-me? Qual o quê!
Então, por que me abandonaste
E me fizeste sofrer?
III
Sim, sofri cruelmente
Depois que me abandonaste,
Mas, como era natural,
Veio outro amor, o qual foi o contraste.
IV
Sim, o contraste do teu amor,
Ambicioso, pérfido e mau,
Este sim é como o céu,
Límpido, doce e angelical.
***
I
Pois então não és tu
Que ontem estava inspirada
A fazer um rabisquinho
À tua mãe amada?
II
E agora, mãos à obra,
Pega a pena e vai escrever,
Pois a boa menina não deixa
147
Para amanhã o que tiver de hoje fazer!
III
Por onde começar?
Ora, a coisa mais natural
É falar do Dia das Mães,
Pois não é o assunto principal?
IV
E por que dia tão lindo?
Fico eu admirada!
Pois então não é o dia
Da tua mãe adorada?
V
Sim, o dia da mamãezinha,
A quem adoro com fervor,
E é nesta poesia
Que lhe dedico meu amor.
***
***
REFLEXÕES
Mirtes Matos
Garanto que as pessoas do mundo, todas, sem exceção, estão do meu lado.
148
Quantos sonhos irrealizáveis tomariam forma para vir ao mundo das coisas que
existem em plena e perfeita felicidade.
Seria ilícito, pois onde iriam abrigar-se: o Amor, que, malvado, constitui um
pouco do nosso ser? O Ódio que destrói? A Inveja que corrompe? E a
Indiferença, prepotente, gélida, solitária e antipática, atroz como ela só?
Não! Bem fez Deus em nos fazer imperfeitos e alvos fáceis para projéteis certos
que, quando não matam, ferem demais.
Gostaria de ter o perfume das rosas, a brancura do lírio e também (por que
não?) um ou dois espinhos. 29/9/1959
***
***
***
ILUSÃO
CRovedo
S.Luis, 3/5/1960
I
Quando fico às vezes sozinha
Começo logo a imaginar
149
Por que será...
Que meu amor custa a chegar?
II
Fiquei assim pensando
Até que algum passarinho cantou
Será meu Deus...
Que meu amor chegou?
III
E quando volto a mim
Depois de longas horas de meditação
Ouço ruídos, ouço passos...
Abafados na escuridão.
IV
Não, é este vento frio e cortante
Como meu próprio coração
Que me faz pensar coisas de instante
a instante...
V
Mas, de repente... um abraço...
E meu coração quase parou
E transida pela emoção
Olho para Ele que chegou
***
***
***
***
150
NADAS – ERÓTICO
CRovedo
S.Luis, 4/5/1960
I
O amor que te dedico
É como um jardim na primavera
Só flores, folhas e heras
Tão bonito!
Ou a um mar,
Com seu incansável vai e vem
torturante!
II
E o meu amor,
É como uma nuvenzinha no céu
Sempre a correr de léu
em léu
Ele tem o perfume das rosas
e como as mães, tem o carinho
mas, como é natural,
tem também um ou mais
espinhos!
***
OLHOS VERDES
CRovedo
S.Luis 2/5/1960
I
Você conhece aqueles olhos?
São os olhos do meu amado,
São profundos e cismadores
Mas, também, amargurados.
II
Qual a cor? Perguntam todos
151
São tão verdes como o mar!
Ah! Olhos verdes, pensativos,
Que tanto me fazem sonhar!
III
Olhos verdes, tentadores,
Olhos que fazem pecar,
Parecem duas esmeraldas
Que não cessam de brilhar!
IV
Mas, quando estão zangados,
Ah! É um horror!
Já não são olhos verdes
Porque mudam de cor!
V
Por isso, amor, nunca se zangue,
Nunca tenha um só rancor,
Porque, você zangado,
Eles mudam de cor!
VI
E, mudando, já não são
Aqueles olhos tão amados,
Ficam frios e sem graça,
Porque ficam amargurados!
***
Aquele que não tem certeza de seus próprios pensamentos, procura fazer que
os demais pensem da mesma forma para confirmar a si mesmo.
***
VINCIT AMOR...
Alberto Silva
***
FLORES E ESPINHOS
Temístocles Soares
Quando ela passa airosa
Requebrando como quê,
Parece um botão de rosa
Brincando de bambolê.
***
ZELOS
Zeferino Brasil
***
MELANCOLIA
CRovedo
S.Luis 10/6/1960
***
154
Sendo hoje o dia dos pais,
Dia grande, aliás... grandão,
Temos que dar, a nossos pais,
Qualquer coisa, ao menos um cartão!
***
O CÉU
CRovedo
S.Luis 1/9/1960
***
MEUS SONHOS
CRovedo
S.Luis 8/9/1960
Ninguém está satisfeito com seu modo de vida, nem com a sua posição, nem
com o seu emprego; nesta vida nunca ninguém está satisfeito; é uma verdade.
Eu sou uma; às vezes penso... se eu fosse um passarinho, ou uma borboleta...
corria o mundo, ia daqui pra lá, voltava, ia, não dava contas a ninguém. Hoje via
o Japão, amanha a Rússia (só que lá é mais difícil), a Itália, enfim o mundo!
Imagina eu, um passarinho (ou uma borboleta, conforme o gosto de cada um),
comendo uma cereja no Japão, vendo as gueixas e, depois, sayonara, voava,
voava... chegava na Síria, saboreava uma tâmara,e...
Ah! Mas isso é só em sonho! Meus sonhos maravilhosos em que eu viajo pelo
mundo inteiro, dormindo ora num iglu, ora numa tenda de índios – tudo isso se
resume em uma só palavra – sonho.
Tudo em minha vida é sonho, desde a minha idade, que é a dos sonhos, até...
Tudo –.
Como digo eu, esta vida é um sonho – e pobre de nós se não fosse.
***
A PRIMAVERA
CRovedo
S.Luis 16/9/1960
A Primavera chega irradiando alegria nas almas tristes, trazendo beleza a tudo e
a todos, felicidades, cobrindo a terra com um imenso tapete verde!...
O Inverno que para mim corresponde à nossa velhice, às vezes tão triste, tão só!
Porém, também passa esse tempo, mas muitas vezes quem está no Inverno da
Vida, não olhará a outra Primavera que chega!
***
A MINHA LUZ
CRovedo
S.Luis 16/9/1960
157
Estava no mar da vida,
Perdida na escuridão,
Quando de repente apareceste
Iluminando meu coração.
***
IDA
CRovedo S.Luis
20/9/1960
Vai partir...
Será que volta?
Esperei confiante
E lembrando a sua revolta...
Hoje parte...
E eu, nessa incerteza...
Ele lá, muito longe...
Não vai trair-me por outra beleza?
***
SÓ...
CRovedo
S.Luis 27/9/1960
Sou sozinha...
Amor – não tenho nenhum
158
Esperarei sem cansar
E um amor para mim há de chegar
E aí meus sonhos
Coisas belas serão
Pois farei coisa diferente:
Sonharei com o coração.
***
INCERTEZA
CRovedo
S.Luis 27/9/1960
Em minha alma
Uma dor profunda
Cruciante, tenaz, pungente,
Que te tristeza logo inunda
***
***
***
***
Quem quiser seguir-me, renuncie a si mesmo e tome a sua cruz. (Mt. 16,24)
***
INGRATIDÃO
160
CRovedo
S.Luis 20/10/1960
Deus meu
uma desgraça
aconteceu
Meu amor
traiu o meu.
E meu coração
sofre por
tanta ingratidão
daquele que
dizia ter
por mim
grande amor.
Coitado de quem
é ferido
pela ingratidão
de alguém.
***
TRISTEZAS
CRovedo
S.Luis 20/10/1960
Ruas imundas,
Tormento, solidão...
Neste mundo nada é real
Tudo pura ilusão...
Ruas tristes,
idênticos corações
dos que precisam
da luz da razão.
Foi-se a vida...
Para eu serviu viver tanto, tanto,
se viveu só na amargura
161
no desespero e no pranto?
***
TEU AMOR
CRovedo
S.Luis /10/1960
Um amor louco
Me devora o coração,
A alma, o ser...
Não sou nada então
E desesperada procuro
No deserto da tua alma
Uma coisa que suaviza, que acalma...
Mas só acho desilusão,
Sofrimento, pesar,
Que fazer então
Se só queres magoar?
E meu pobre coração,
***
***
MULHER
CRovedo
S.Luis 23/10/1960
Mulher tentadora,
Irradiando poesia,
Lembras, ó doce mulher,
O lindo nascer do dia!
És um pedaço do céu,
Tão bonita e angelical,
Que devias ficar
Como uma santa: no pedestal!...
***
REBENTO AMADO
Quando desperto
Ou quando em sono,
Encontrarás teu berço trono
163
Em nossos próprios corações
***
CRovedo
S.Luis 28/10/1960
Achava tudo tão belo, tudo tão azul... olhava tudo com tão bons olhos, que
quase fiquei separada do resto do mundo. Meu primeiro amor chegou tão
depressa que não tive tempo de parar de sonhar e quando os dois se
misturaram, o amor e o sonho, se antes já considerava o mundo uma coisa
espantosa, aí mesmo que passei a imagina-lo... nem sei como! E minha
imaginação acabou por cegar-me; cegou-me tanto que não vi meu amor
sorrindo à outra, falando com a outra, falando na outra, enfim, tudo era a
outra!...
E eu, boba, cega de imaginar o mundo perfeito e todos tão bons, acabei sendo
ludibriada pelo destino. Primeiro amor!... será que foi? Talvez não, uma atração
passageira que não deu para chegar ao coração!
***
POESIA INACABADA
CRovedo
S.Luis 28/10/1960
Vínhamos
de
164
mãos
dadas
e meu
coração...
Pronto!
Faltou-me
A inspiração.
A poesia
fica
inacabada
então...
Não falem,
não digam
nada
pois isto
é minha
invenção!
***
PRIMEIRO AMOR
CRovedo
S.Luis 28/10/1960
***
165
REFLEXÕES
CRovedo
S.Luis 7/11/1960
Mas, algumas vezes, sem nós querermos, as palavras saem como se voando e
vão pousando lentamente no caderno, sem que a gente note; no , às vezes,
sai uma bobagem, mas às vezes pode sair qualquer coisa que se aproveite.
A maior parte das pessoas não entende porque escrevemos coisas tão
diferentes umas das outras, frases que não se completam e finalmente...
Tudo sem nexo; quem quiser saber, a mim não perguntem, pois nem eu
mesmo sei explicar. Mas, nem por isso poupo lápis e papel; como já disse,
posso escrever muitas bobagens, porém no meio delas deve haver qualquer
coisa de bom!
***
PAUSA
CRovedo
S.Luis 7/11/1960
Vontade muita
Assunto pouco
Se penso... nada escrevo
Se escrevo... nunca presta!
De que falam?
Você não sabe? Só eu sei!
... Porém há uma coisa:
– A ninguém nunca direi!...
***
166
Mãe é a gota [fonte] d’ gua que fertiliza o deserto da vida! - CRovedo S.Luis
7/11/1960
***
Maravilhoso
Amor
Eterno!
***
AUSÊNCIA
CRovedo
S.Luis 12/11/1960
Então...
Faz-se ouvir um longo e doloroso suspiro
Cortando aquele silêncio
aquela solidão...
***
167
SE
CRovedo
S.Luis 13/11/1960
***
DESPEDIDA
CRovedo
S.Luis 13/11/1960
Na alvorada
daquele dia sombrio
sem ninguém... tudo vazio...
um galo cantava o seu desafio.
Os primeiros raios de sol
já brincavam no céu
com as nuvenzinhas
que corriam ao léu.
Pouco depois entrava
168
pela janela, naquele quarto
onde sozinho estava,
um... apaixonado
quem o visse... coitado
triste... solitário
escrevendo... o seu diário.
E o raio muito esperto
leu o que estava escrito:
My love, good bye
coisa bem triste havia visto!
Cabisbaixo o raio voltou
e, pensando, disse:
como dói um adeus de amor!...
***
SAUDADES
CRovedo
S.Luis 14/11/1960
***
***
O AMOR
CRovedo
S.Luis 29/11/1960
***
O AMOR
CRovedo
S.Luis 30/11/1960
Os poetas deixam nos seus versos de amor sua alma, seu coração. As mães, nos
seus filhos, para seus filhos, por seus filhos, se transformam em Amor!
Como cada face que existe no mundo, há uma diferente espécie de amor. A
natureza é Amor.
Casais, amantes, noivos, pássaros, flores, vida, mundo – Amor!
Pra que a vida? Perguntam alguns. Para o Amor, respondo eu! Vocês não
acham? Para que adiantaria viver se não fosse para o Amor? Todos vivem para o
Amor: as freiras e padres, para o Amor de Deus; os casais, para seu par; o
solteirão – ora, para seus animais de estimação ou algum amor impossível.
Quem não ama não vive, pois a Vida é o Amor.
***
VEM
CRovedo
S.Luis 3/12/1960
Inspiração
Vem para mim
Que eu quero fazer
Poesias que não tenham
171
Se eu pudesse faria
Uma coisa linda, diferente,
Uma coisa que tocasse
No coração, na alma da gente
Se conseguisse transformar
Tudo o que sinto em poesia
Você seria o primeiro
A quem as mandaria
***
ELA
CRovedo
S.Luis 3/12/1960
***
***
***
172
ELE
CRovedo
S.Luis 3/12/1960
***
CHUVA
CRovedo
S.Luis 11/12/1960
A palavra... chuva...
não sei bem porque,
traz-me uma tristeza infinda,
talvez... porque lembra-me você.
Recorda-se?
Foi num dia chuvoso
A nossa despedida.
Pra mim foi tenebroso.
Eu já tanto sofria
Que nada mais sentia
Não adiantava chorar...
Para que?
Já não havias tu
Para me consolar...
Que dia triste!
173
Além da nossa despedida,
Na qual levaste a minha vida...
Chuva...
***
ABANDONO
CRovedo
S.Luis 17/12/1960
***
POR QUÊ?
CRovedo
S.Luis 8/1/1961
VOCÊ
CRovedo
Paranaguá 6/2/1961
***
MEU PORTO
CRovedo
S.Luis 28/2/1961
...Não posso...
Tua presença em meu pensamento
não deixa que eu escreva
aquelas palavras loucas
que moram em minha alma,
habituando-a aquela ilusão:
teu amor!
Mesmo assim, sinto-me em teus braços,
como um barco que acha
um lugar seguro
no meio da tormenta.
Como um sonho o porto se distancia
mais e mais...
Triste como uma saudade,
vai teu amor também
e eu, barco teimoso, quero encalhar em ti
mas... é impossível...
o mar te reclama... tu o preferiste... vai...
..................
175
Serei então um barco afundando em pleno
porto!
***
DESEJO
CRovedo
S.Luis 28/2/1961
***
ILUSÃO
CRovedo
S.Luis 28/2/1961
.........................
***
176
DESABAFO
CRovedo
S.Luis 3/3/1961
***
DESEJO ESTRANHO
CRovedo
S.Luis 3/3/1961
***
TEUS OLHOS
CRovedo
S.Luis 5/3/1961
***
DISTRAÇÃO
CRovedo
S.Luis 5/3/1961
***
178
Se Colombo viesse ao mundo
E visse o preço de um ovo
Dava um suspiro profundo
E caía morto de novo...
Sem fumaças
***
***
***
***
***
A alma tem ilusões, da mesma maneira que uma ave tem asas; é isto mesmo
que a sustenta. Victor Hugo
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
Não ergas jamais a espada sobre a cabeça daquele que pede perdão.
Provérbio árabe
***
***
***
Nosso inimigo é geralmente aquele a quem devemos ou que nos deve gratidão.
***
Nenhum elogio deve parecer mais merecido do que aquele que sai da boca de
um inimigo.
Provérbio árabe
***
À ESPERA
J.G. de Araújo Jorge
181
E ela não vem... Aumenta a ansiedade:
- o segundo que passa e me tortura,
é o segredo sem da eternidade.
***
***
Meu querido caderno, só a ti posso dizer como sinto que termina o meu
querido ginásio hoje 14 de novembro foi para mim um dia cheio de tristeza e
de saudade que espero não esquecer. CRovedo 14/11/1960
***
Não há novidades.
***
182
***
Se acaso alguém achar este caderno, fazer o favor de entregar a: Clara Maria
Boabeyd Rovedo, Rua Nina Rodrigues, 489, Tel: 19-06, São Luis – Maranhão –
Brasil.
www.poeteiro.com
183
DADOS BIOGRÁFICOS
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morte do autor, os direitos autorais retornam para seus herdeiros naturais.