Segurança Hidrica - Ler
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Revista do Ministério Público do RS Porto Alegre n. 89 jan. 2021 jun. 2021 p. 9-30
André Rafael Weyermüller, Bruno de Lima Silva e Carolaine Budke
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A essencialidade de água e a necessidade de promover segurança hídrica como fator...
A história humana é marcada por fases onde crises se sucedem. Esse fenô-
meno ocorre em qualquer sociedade e pode causar uma ruptura de paradigmas.
Silva e Leite (2019, p. 975) explicam que as crises reetem momentos de di-
culdades, de desarmonia, de desestabilização, os quais promovem mudanças espe-
cialmente na estrutural social e no meio ambiente. Portanto, as crises não são algo
positivo ou tranquilo já que nesses períodos as bases da sociedade são tensionadas.
Giddens (1991, p.17) explica que as mudanças na estrutural social são um
fenômeno de dois gumes, o lado da oportunidade e o lado sombrio. O pri-
meiro garantiu por um determinado período que os humanos tivessem uma exis-
tência segura e graticante. O segundo trouxe consequências como o uso indevido
do poder político com episódios de totalitarismos e, também, o poder destrutivo
das forças de produção em relação ao meio ambiente.
Igualmente, avançando nesse contexto de mudança, observa-se uma alte-
ração de como os países valorizam a água, já que até a última década do século
passado, os indicadores mais seguros de estabilidade e riqueza de uma nação
eram suas reservas de petróleo ou de recursos minerais não renováveis. Con-
tudo, na atualidade inicia-se um processo de questionamento desses indicado-
res, justamente porque a água é um recurso escasso e que tem valor econômico
e estratégico. (REBOUÇAS, 2011, p. 35)
A comunidade internacional vem há décadas debatendo1 a situação am-
biental global. Muitos avanços foram atingidos, porém ainda existe um longo
caminho a ser percorrido, especialmente em relação às mudanças climáticas e
seus efeitos na gestão das águas.
O tema das mudanças climáticas está diretamente ligado com a crise hí-
drica. Conforme a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agri-
cultura FAO (2018), para cada 1 °C de aumento na temperatura do planeta,
calcula-se que 500 milhões de pessoas sofrerão uma queda de 20% na disponibi-
lidade de recursos de água doce. Somando esses dados com a previsão de que
até 2050 a população mundial atingirá a marca de aproximadamente 9,7 bi-
lhões de pessoas (ONU, 2019), tem-se um contexto de crise evidente.
1
Destaca-se os principais eventos e documentos da comunidade internacional sobre a questão am-
biental: Conferência de Estocolmo (1972), Relatório Nosso Futuro Comum (1987), Eco-92 (1992),
Agenda 21 (1992), Protocolo de Kyoto (1997), Rio+10 (2002), COP-15(2009) Rio+20 (2012) e
COP-21 (2015).
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tos destinados a proteção dos direitos humanos. A ONU, porém, produziu pro-
tocolos adicionais corroborando que o meio ambiente de forma ampla é um di-
reito humano, pois danos ambientais afetam diretamente os Direitos Humanos.
O direito à água aparece pela primeira vez no âmbito internacional em 1977,
no Plano de Ação da Conferência das Nações Unidas sobre a Água, que declarava
o seguinte: Todos os povos, qualquer que seja estágio de desenvolvimento e con-
dições sociais e econômicas, têm o direito de ter acesso à água potável em quan-
tidades e de qualidade igual às suas necessidades básicas (ONU, 1977).5
No plano internacional, ainda, a partir da metade da década de noventa,
percebe-se uma disputa pelo controle da água de forma proeminente. Partindo
das premissas do Relatório da Comissão Brudland e demais documentos e tra-
tados oriundos da Rio 92, como a Agenda XXI e a Carta da Terra, nota-se um
tratamento tímido em relação a água (PORTO-GONÇALVES, 2011, p. 413).
Porém, mais recentemente, a Assembleia Geral da ONU e o Conselho de Di-
reitos Humanos vêm tratando o acesso a água com a devida importância. Diversos
tratados internacionais sobre direitos humanos explicitaram a importância da água,
tais como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher6 (CEDCM), a Convenção sobre os Direitos da Criança7 (CDC)
e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deciência8 (CDPD).
O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais em 2002 elaborou
o Comentário Geral nº 15 O direito humano à água prevê que todos tenham
água suciente, segura, aceitável, sicamente acessível e a preços razoáveis
para usos pessoais e domésticos. Nesse sentido, o contexto de Segurança Hí-
drica vai ao encontro dos requisitos propostos pelo comentário geral nº 15, quais
sejam, o respeito aos princípios gerais dos Direitos Humanos, disponibilidade,
qualidade/segurança e acessibilidade física e nanceira.
5
No original All peoples, whatever their stage of development and social and economic conditions,
have the right to have access to drinking water in quantities and of a quality equal to their basic needs.
6
Art. 14, §2. Os Estados-parte adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação
contra a mulher nas zonas rurais a m de assegurar, em condições de igualdade entre homens e mu-
lheres, que elas participem no desenvolvimento rural e dele se beneciem, e em particular assegu-
rar-lhes-ão o direito a: [...] h) Gozar de condições de vida adequadas, particularmente nas esferas da
habitação, dos serviços sanitários, da eletricidade e do abastecimento de água, do transporte e das
comunicações. (grifo nosso).
7
Art. 24, §2. Os Estados Partes devem garantir a plena aplicação desse direito e, em especial, devem
adotar as medidas apropriadas para: [...] c) combater as doenças e a desnutrição dentro do contexto
dos cuidados básicos de saúde mediante, inter alia, a aplicação de tecnologia disponível e o forneci-
mento de alimentos nutritivos e de água potável, tendo em vista os perigos e riscos da poluição am-
biental. (grifo nosso).
8
Art. 28, §2. Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deciência à proteção social
e ao exercício desse direito sem discriminação baseada na deciência, e tomarão as medidas apro-
priadas para salvaguardar e promover a realização desse direito, tais como: a) Assegurar igual acesso
de pessoas com deciência a serviços de saneamento básico e assegurar o acesso aos serviços, dispo-
sitivos e outros atendimentos apropriados para as necessidades relacionadas com a deciência;.
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O CESCR enfatizou sua interpretação na palavra incluindo, ocorrendo
um desdobramento onde o Direito a água vai ao encontro dos objetivos do art.
11, ou seja, para garantir alimentação, vestuário e moradia de forma efetiva é
necessário o acesso a água. Ainda, o CESCR arma que o direito à água se
coloca claramente na categoria das garantias essenciais para se assegurar um pa-
drão de vida adequado, especialmente porque é uma das condições fundamen-
tais para a sobrevivência (CESCR, 2002, §3º).
Entretanto, essa ação inovadora trouxe muitas críticas sob a forma como
o CESCR cunhou o direito humano à água a partir de outros direitos explíci-
tos. Tully (2005, p. 37), em duas oportunidades, criticou o CESCR e o seu CG
nº 15. No primeiro momento, descreveu que o CESCR e o comentário eram
revisionistas; num segundo momento armou que as interpretações dos
Artigos 11 e 12 do CESCR é irreexiva (Tully, 2006, p. 461).
Os sistemas regionais de proteção dos Direitos Humanos, vem apresen-
tando em suas convenções e pactos, uma proteção ao meio ambiente como um
Direito Humano, mas não trazem o direito humano à água de forma especíca.
Por exemplo, no sistema interamericano de proteção de Direitos Humanos, a Con-
venção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 não traz uma previsão so-
bre o meio ambiente hígido e sadio de forma expressa.
Em 1981, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos instituiu a
proteção do meio ambiente no artigo 24, nos seguintes termos: Todos os po-
vos têm direito a um meio ambiente geral satisfatório, propício ao seu desen-
volvimento, percebe-se a inserção da preocupação ambiental em um documento
que trata de direitos humanos.9
Nesse mesmo sentido, a jurisprudência internacional tem se posicionado
sobre a proteção do meio ambiente como um Direito Humano com duas prin-
cipais correntes. Na primeira, reconhece que a poluição ambiental pode resultar
9
Em 2009, a Comissão Africana elaborou e distribuiu para comentar um Projeto de Princípios e dire-
trizes para a implementação de políticas econômicas, sociais e culturais Direitos da Carta Africana
dos Direitos Humanos e dos Povos, que continha uma seção especíca sobre o direito à água e ao sa-
neamento. Disponível em: <https://www.achpr.org/pr_resources>. Acesso em: 8 dez. 2020.
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Nesse contexto, Cahill (2010, p. 194) arma que o direito à água pode ser
denominado como um direito auxiliar, ou seja, está subordinado com os obje-
tivos dos direitos explicitamente protegidos, então ca dependente do direito
principal no interesse do qual o acesso à água está garantido.
Reconhecer a água como um direto humano é extremamente relevante, mes-
mo frente às críticas de como esse processo foi iniciado. A armação de Cahill
(2010) sobre o direito à água pode de ser denominado como um direito auxiliar
está presente na jurisprudencial internacional dos sistemas regionais de proteção
aos Direitos Humanos. O direito a água não foi reconhecido de forma autônoma
nas referidas cortes, somente está atrelado aos demais Direitos Humanos.
Aos Estados cabe proteger, respeitar e cumprir os Direitos Humanos. Igual-
mente torna-se um desao garantir de forma efetiva o abastecimento hídrico em
quantidade e qualidade adequadas, demonstrando a importância do conceito de
Segurança Hídrica.
De outro modo, somente reconhecer a água como direito fundamental
não é o suciente. Benjamin (2007, p. 113) explica que a tutela ambiental não
é um daqueles valores sociais em que basta assegurar uma liberdade negativa,
orientada a rejeitar a intervenção ilegítima ou do abuso do Estado. Portanto,
são necessárias ações positivas do Estado através de uma gestão participativa,
efetiva e ecaz.
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Ribeiro e Rolim (2017, p. 20) ilustram que sopesar a água como um di-
reito humano fundamental confere deveres ao Estado, deveres esses em relação
a garantia de acesso e a uma gestão ecaz, inclusive no tocante à potabilidade.
No entanto, como a água é um recurso fundamental, caso o Estado seja omisso
e não aplique políticas públicas efetivas, as quais garantam a disponibilidade e
a potabilidade da água, a sociedade tem o direito de buscar o poder judiciário
para garantir tais direitos.
Destaca-se que o Estado tem o dever de promover esses direitos, sendo sua
obrigação garantir bens, serviços e instalações para gozo e uíram dos direitos
econômicos, sociais e culturais. Porém, o Estado deve disponibilizar esses servi-
ços de forma adequada e com preço acessível para garantir os custos oriundos da
moradia, à alimentação, à água, ao saneamento básico, à saúde e à educação, os
quais são essenciais para uma vida digna (MAILLART; COUTO, 2013, p. 47).
Em resumo, a essencialidade da água e a importância econômica dos re-
cursos hídricos estão intimamente relacionadas com os direitos mais fundamen-
tais, mais amplos e representativos dos Direitos Humanos. Para se dar o mínimo
de garantia a esses direitos é preciso buscar a tão necessária segurança hídrica.
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Na jurisprudência do Tribunal, principalmente em relação ao artigo 225 da
Constituição, não se verica diretamente a proteção dos recursos hídricos, as-
sim como no próprio texto constitucional não consta nada explicito em relação
à segurança hídrica. Entretanto, o STF promove a proteção do direito ao meio
ambiente equilibrado e sadio, tratando o mesmo como um direito de terceira di-
mensão. Também ressalva o princípio da solidariedade e a anidade do meio
ambiente com os demais direitos, especialmente a dignidade da pessoa humana
e das gerações futuras. Para Barbosa e De Oliveira (2019, p. 114) a água é um
recurso essencial no Brasil por força do artigo 5º da Constituição, o direito das
águas é uma garantia ou direito fundamental.
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serviço. Quanto ao tratamento dos esgotos, 74,5% dos esgotos são coletados e
somente 46,3% do total é tratado. Nove estados apontam um índice médio de
atendimento urbano com rede coletora de esgoto de 20% a 40%. São eles: Rio
Grande do Sul, Tocantins, Ceará, Sergipe, Pernambuco, Rio Grande do Norte,
Alagoas, Santa Catarina e Piauí. Na faixa de 10% a 20%, encontram-se três es-
tados, quais sejam, Maranhão, Acre e Amazonas. Por m, na faixa inferior a
10%, há três estados: Amapá, Pará e Rondônia, em que se percebe que o décit
maior está na região Norte (BRASIL, 2019 p. 17 e 65).
O cenário brasileiro é preocupante. Após vinte três anos da Política Na-
cional de Recursos Hídrico e treze anos do marco do saneamento, não foi pos-
sível avançar muito nas desiguales regionais em relação ao abastecimento de
água e saneamento. Atualmente, as regiões Norte e Nordeste são as que mais so-
frem com o abastecimento de água. Em relação ao saneamento básico, pouco
foi feito em nível nacional, sendo a região Norte novamente aquela que apre-
senta o pior resultado do país. O Brasil está longe de garantir a efetividade des-
ses direitos.
Para Kempfer (2011, p. 193) o Estado Moderno não foi capaz de garantir
a segurança humana através de políticas públicas. Dessa forma, o Estado con-
temporâneo tem uma árdua missão, buscando maneiras de aplicar políticas pú-
blicas garantindo a efetiva proteção aos Direitos Humanos, especialmente o di-
reito água e ao saneamento.
Para uma mudança signicativa nesse cenário, faz-se necessário modicar
a abordagem do problema, possivelmente se utilizando de premissas de adapta-
ção. Adaptação está diretamente ligada com seleção natural, a qual força mu-
danças involuntárias nos seres vivos para que esses consigam sobreviver e deixar
descendentes viáveis. As ciências naturais, especialmente a biologia, foram atin-
gidas diretamente pelas contribuições de Charles Darwin, principalmente por
sua teoria sobre a seleção natural.
A ONU criou o Fundo de Adaptação principalmente por causa das mu-
danças climáticas e seus efeitos. Iniciado no âmbito do Protocolo de Kyoto, es-
se fundo nanciaria projetos de adaptação em países em desenvolvimento ou
vulneráveis. Os investimentos seriam concretados na capacidade de resiliência10
10
Sobre o termo resiliência opta-se pelo signicado proposto pelo Painel Intergovernamental sobre
Mudanças Climáticas IPCC (2014) Resiliência Capacidade dos sistemas sociais, econômicos e
ambientais de enfrentar eventos, tendências ou distúrbios perigosos, respondendo a eles ou reorgani-
zando-se de forma que possam manter sua função essencial, identidade e estrutura, mantendo também
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Essa iniciativa do fundo busca modicar a realidade dos países que serão
afetados diretamente pelas mudanças climáticas. Estudos têm demonstrado que
os custos com as adaptações necessárias serão menores do que os gastos e perdas
que poderiam ocorrer na ausência dessas medidas.14
Adaptar a legislação e as estruturas de Estado aos novos contextos de
complexidade também é necessário e parece ser um caminho a ser trilhado,
pois as implicações econômicas da falta de água ou escassez crônica são muito
profundas. Adaptar, na perspectiva aqui colocada, se refere a considerar os re-
cursos hídricos como elemento não apenas simbólico, mas como bem com valor
econômico e assim precisa ser considerado. É preciso consolidar o valor econô-
mico da água de forma conectada com a necessidade de se estabelecer uma maior
identicação entre a sociedade e o recurso essencial. Não basta apenas a previ-
são legal. (WEYERMÜLLER, 2014).
O pagamento pelo uso da água é reconhecido pela Lei n. 9.433/97, e re-
presenta uma forma de ecaz de proteção dos recursos hídricos, na medida em
que combina elementos da racionalidade econômica com princípios de proteção
ambiental. Assim, o pagamento pelo recurso ambiental, vem ao encontro de uma
política de adaptação que possa enfrentar de maneira efetiva as complexas di-
culdades postas pela realidade hídrica, uma vez que a água tem valor econô-
mico para todos e por todos os seus usos.15 Um sistema adequado e planejado
de pagamento pelo uso da água e aplicação dos recursos obtidos na própria ba-
cia hidrográca, representa uma forma de Adaptação Ambiental que pode surtir
efeitos muito benécos para a sociedade e, assim, enfrentar a crise hídrica.
O que se propõem é repensar o conceito de Segurança Hídrica conside-
rando a necessidade de constante adaptação, seja nas práticas, seja na legisla-
ção e sua aplicação, tudo para enfrentar as variantes imprevisíveis das mudanças
climáticas, da escassez e das necessidades econômicas.
O Direito tem papel importante na problemática da água, uma vez que
atua como um sistema capaz de reduzir a complexidade social, dando validade/
14
No Brasil, uma pesquisa realizada na cidade de Santos (SP) revelou que embora a adaptação à mu-
dança do clima demande obras que são relativamente caras para os orçamentos municipais, a falta
de adaptação pode acarretar custos até dez vezes maiores. No caso analisado, constatou-se que o
custo mínimo para realizar obras de adaptação em duas regiões da cidade caria em torno de 300
milhões de reais, ao passo que a ausência dessas medidas poderia custar ao município pelo menos
1,5 bilhões de reais. A pesquisa foi desenvolvida como parte do Projeto Metrópole, uma iniciativa
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