G. Sebenta (Carolina Silva)

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 152

FDUC – DOII 2017/2018

RESPONSABILIDADE CIVIL
I. GENERALIDADES

1. NOÇÃO
Surge-nos como a grande fonte legal de obrigações, sendo a obrigação de reparação dos

danos causados pelo lesante no lesado, ou seja, quando alguém, preenchidos os restantes
pressupostos, cause dano a outrem, é obrigado ou nasce desse facto lesivo, a obrigação de reparar

esses mesmos danos - deixar o lesado na situação em que estaria sem a existência da respetiva lesão.
Daí que se diga que a responsabilidade civil é fonte de obrigações, e é fonte legal de obrigações - é

a lei que estabelece os pressupostos e os casos em que o lesante é obrigado à respetiva reparação.
Quando falamos em responsabilidade civil, o grande princípio em matéria de repartição de

danos é o chamado princípio do casum sensit dominus - se alguém, por qualquer razão, sofre
um determinado prejuízo, em regra esse prejuízo fica a seu cargo.

Exemplo: Se escorregar nas escadas e partir o salto do sapato só, sofre-se um prejuízo -

tem de ir ao sapateiro ou ir comprar uma sapatos novos -, mas esse prejuízo é da pessoa em
causa, ou seja, será ela que tem que suportar o dano decorrente do acidente que sofreu)

A menos que exista algum fundamento especial para transferir esse dano de quem o sofreu

para outrem.

Retomando o exemplo do sapato, mas em que se cai porque alguém passou uma rasteira -
se estiverem preenchidos os restantes pressupostos, nomeadamente que quem lhe passou a

rasteira fê-lo propositadamente, ou seja não foi porque ia a passar e acidentalmente a empurrou,
agiu com culpa p. ex. -, então aí a culpa, a censurabilidade do comportamento do agente é
justificação suficiente para transportar digamos assim, ou transferir, melhor dizendo, o dano de
quem o sofreu para outrem - nesse caso dizemos que há um lesante e um lesado.

1
FDUC – DOII 2017/2018

Portanto, a ideia básica de que devemos partir é se não existir uma razão especial que
justifique a transferência do dano de quem o sofreu para outrem, é quem sofre o dano que o tem de

suportar necessariamente - faz parte dos riscos de estarmos vivos e de convivermos. Quem sofre um
determinado dano é, em última análise, quem tem de o suportar a menos que exista uma razão

especial.
2. CLASSIFICAÇÕES

2.1 RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL E RESPONSABILIDADE PÓS-CONTRATUAL


Muitos autores consideram esta terceira via - não se subsume nem no âmbito da

responsabilidade civil contratual, nem no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, e portanto


serão aplicáveis para determinados efeitos as regras de uma, para outros as regras de outra -,

enquanto outros enquadram estas hipóteses no âmbito da responsabilidade civil contratual.


Trata-se de responsabilidades que têm a justificá-las uma relação jurídica especial existente entre

as partes em que, apesar de não haver violação do dever de prestação, há a violação de um


determinado dever de conduta - mas ainda assim violação de uma obrigação em sentido técnico, e

por isso é que muitas vezes na própria responsabilidade pré-contratual se aplicam as regras da
responsabilidade contratual (nomeadamente quanto à existência da prova da culpa), muito embora

quanto aos prazos da prescrição a lei mande aplicar as regras da responsabilidade extracontratual (a
própria lei no art. 227º CC remete para a responsabilidade extracontratual, e não para a contratual).

2.2 RESPONSABILIDADE CONTRATUAL E RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL

A RESPONSABILIDADE CONTRATUAL é uma modalidade da responsabilidade civil

“proveniente da falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios

unilaterais ou da lei”.
Estamos perante responsabilidade civil contratual quando, antes do facto lesivo, existe entre as
partes uma relação de natureza especial, e portanto é essa relação de natureza especial que liga

credor a devedor, e que justifica os efeitos/as consequências decorrentes do não cumprimento.

2
FDUC – DOII 2017/2018

 Então e qual é o facto lesivo no âmbito da responsabilidade contratual?


É precisamente o não cumprimento/violação de uma obrigação em sentido técnico (quando

existe a obrigação de um dever jurídico especial) - é porque o devedor não cumpre a obrigação a
que estava adstrito, e com isso causa um prejuízo ao credor, esse facto gera uma responsabilidade

contratual. Nós seríamos levados a pensar que existe responsabilidade contratual quando existe,
como o nome indica, a violação de um contrato, mas nós sabemos que o contrato não é a única

fonte de obrigações em sentido técnico - além do contrato, as obrigações podem decorrer de


negócios jurídicos unilaterais, ou podem decorrer da própria lei -, por isso há quem proponha a ideia

de em vez de se responsabilidade contratual se designar por responsabilidade obrigacional.

Já a RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL é “a resultante da violação de direitos

absolutos ou da prática de certos atos que, embora lícitos, causam prejuízo a alguém”.
A responsabilidade extracontratual, também designada também por delitual ou aquiliana -
prevista no art. 483º e ss. CC, também resulta de uma violação de um dever. Sucede que não está

em causa um dever jurídico especial, mas sim de um dever jurídico geral, que é contrapólo dos tais

direitos absolutos – a ideia de que existe responsabilidade extracontratual sempre que se viola a
chamada obrigação passiva universal, o dever que é imposto a todos os membros da coletividade

jurídica para proteção de valores jurídicos de natureza absoluta. Estão em causa quer:
 direitos reais;

 quer direitos de personalidade;


 quer os tais direitos sobre bens imateriais

Ex.1: se A devia 500 a B, não pagou e com isso causou um prejuízo a B, nós estamos no âmbito
da responsabilidade contratual/obrigacional.

Ex. 2: se A atropelou B, e lhe causou um prejuízo de 500 - porque, em virtude dos danos
sofridos na sua integridade física, teve despesas hospitalares, deixou de trabalhar um determinado

número de dias, sofreu determinadas dores, etc. - essa responsabilidade de A não é uma
responsabilidade contratual, é uma responsabilidade delitual/aquiliana, ou seja, violou um chamado

direito absoluto - o direito à integridade física -, que é um direito de personalidade).

3
FDUC – DOII 2017/2018

EM CONCLUSÃO:

Sempre que está em causa a violação de uma obrigação em sentido técnico temos
responsabilidade civil contratual, e sempre que está em causa a violação de um dever jurídico geral

(o tal dever jurídico imposto a todos os membros da coletividade jurídica para proteção de
valores/direitos absolutos), então estamos perante responsabilidade civil de natureza

extracontratual/delitual/aquiliana

Convém referir aqui uma nota relativamente à (falta de) eficácia externa das obrigações

(matéria lecionada no 1º Semestre): a responsabilidade civil extracontratual vem regulada nos arts.
483º e ss. CC, e o art. 483º CC quando fala dos pressupostos, que vamos designar por ilicitude - “1.

Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem (...)” -, aqui o direito de
outrem nós entendemos que apenas se trata de direito absoluto de outrem (se um terceiro,

como nós vimos, de alguma maneira colaborar com o devedor no não cumprimento de uma
obrigação, o seu comportamento pode ser ilícito por outra via, nomeadamente pela via do abuso do

direito que também tem uma vertente delitual, mas não é pela via aqui do 483º/1, na medida em
que nós entendemos que estão apenas previstos/ que o legislador pretendeu aqui incluir não todos

os direitos subjetivos, mas apenas os direitos subjetivos de natureza absoluta). Portanto, a violação
de um direito de natureza absoluta gera responsabilidade civil extracontratual, nos termos do art.

483º CC.
Esta grande divisão entre responsabilidade civil contratual e extracontratual tem

consequências obviamente, ou é reclamado precisamente até pela aplicação do respetivo regime.


Desde logo, a lei trata/regula uma e outra em locais diferentes: a responsabilidade contratual vem

disciplinada a propósito do não cumprimento das respetivas obrigações, na parte do incumprimento


culposo - arts. 798º e ss. CC -, e a responsabilidade extracontratual na parte das fontes das

obrigações no art. 483º e ss. CC. Isto não significa que não existam comuns, e desde logo a lei
disciplinou para ambas as responsabilidades o cálculo da chamada indemnização, ou o valor da

reparação. Essas questões relativas ao cálculo da indemnização vêm previstas nos arts. 562º e ss. CC,
que são normas comuns para ambos os tipos de responsabilidade.

4
FDUC – DOII 2017/2018

Assim, o art. 562.º e ss. é um lugar de confluência das consequências decorrentes das duas
responsabilidades, como que unificando o seu regime.

Modernamente, tem havido algumas tentativas de unificação das responsabilidades: o ideal


seria falar de responsabilidade civil tout court. E há algumas matérias em que o legislador seguiu esta

tendência, sendo que no Código Civil o legislador seguiu a tendência da unificação dos dois

regimes mas não na totalidade: apenas quanto às consequências da responsabilidade - dever de

indemnizar.
Supervenientemente ao Código Civil, há mesmo matérias em que os dois regimes estão

totalmente unificados: por exemplo, a responsabilidade civil do produtor (a partir da década de 60).
Esta responsabilidade do produtor é independente de culpa e da existência ou não de um contrato

(a vítima pode ser contratante ou não contratante).


Os regimes destas duas responsabilidades não é coincidente, apesar de a consequência ser

a mesma: a obrigação de indemnização. Podemos ter casos em que do mesmo facto nascem das
duas modalidades de responsabilidade civil.

Imaginemos que um farmacêutico, distraído, entrega um medicamento errado ao cliente:

temos um caso de responsabilidade extracontratual, por violação do direito à integridade física; e


simultaneamente um caso de responsabilidade contratual, por violação do contrato de compra e

venda.
Outros casos em que isto acontece é na responsabilidade médica em hospitais privados.

2.2.1 DIFERENÇAS ENTRE OS REGIMES


Se o legislador as disciplinou em locais diferentes, com certeza que as dotou também de regime

diferente nalgumas partes:

1. O principal aspeto em que há diferenças é quanto ao ÓNUS DA PROVA DA CULPA. No


âmbito da responsabilidade civil contratual, a lei presume que há culpa do devedor - portanto, se
há incumprimento, se há o facto objetivo “incumprimento”, a lei presume que o devedor é culpado

(há uma presunção de culpa do devedor). Então se a lei presume, sendo esta uma presunção relativa,
pode ser afastada mediante prova em contrário - se o devedor não quiser ser responsabilizado tem

5
FDUC – DOII 2017/2018
que fazer prova de que o incumprimento não resulta de culpa sua, portanto aqui a culpa como

pressuposto genérico da responsabilidade civil.

Diz precisamente o art. 799º CC, “1. Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o

cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.”.

Portanto a lei presume a culpa do devedor, há aqui inversão do ónus da prova e terá de ser o
devedor a fazer prova de que o incumprimento não procede de culpa sua.

Ao contrário do que sucede no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, onde

genericamente, cabe ao lesado fazer a prova da culpa do autor da lesão.

A lei di-lo expressamente no art. 487º CC - “1. É ao lesado que incumbe provar a culpa do
autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.” - Mas se não o dissesse resultaria das

regras gerais.

Nota: fazer remissão para o art. 799.º CC

Qual é o regime mais favorável para o lesado? É obviamente aquele em que o ónus da prova
cabe ao lesante, ou seja, o da responsabilidade contratual.

 QUAIS SÃO AS REGRAS GERAIS EM MATÉRIA DE ÓNUS DA PROVA?

Quem alega um determinado direito tem de fazer prova de todos os pressupostos constitutivos
desse mesmo direito, ou seja, todos os factos que conduzem a esse mesmo direito.

Um dos pressupostos ou factos que conduzem à obrigação de reparação ou ao direito de obter a


reparação dos danos é a culpa do autor da lesão - é ao lesado que invoca o direito a ser reparado

que tem de fazer prova da culpa do autor da lesão e do pressuposto da obrigação de indemnização.
Há casos também, como iremos ver infra, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual em que

há presunção de culpa, mas são casos específicos.


Em geral, se não houver presunção de culpa a favor do lesado, vale esta regra do art. 487º CC.

6
FDUC – DOII 2017/2018

Repare-se que é muito mais fácil no âmbito da responsabilidade contratual para o credor acabar
por obter a reparação porque não tem de fazer prova da culpa do devedor, o devedor é que tem de

provar que não teve culpa no não cumprimento, do que propriamente para o lesado porque é ele,
no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, que tem de fazer prova da culpa do autor da

lesão, a menos que tenha a seu favor uma presunção de culpa (art. 491º, 492º e 493º CC).

2. A segunda nota distintiva é quanto à capacidade. A capacidade delitual é diferente da


capacidade negocial/ contratual. Quando é que se adquire capacidade de exercício de direitos

(capacidade contratual/negocial)? Quem é que não tem capacidade negocial/contratual?


Os menores de 18 anos, e os interditos por anomalia psíquica. No âmbito da capacidade

delitual diz a lei que se presume inimputabilidade (não podem ser suporte de um juízo de culpa), ou
seja falta da tal capacidade delitual, aos menores de 7 anos, e aos interditos por anomalia psíquica.

Portanto repare-se que a capacidade negocial adquire-se com 18 anos, a capacidade delitual
presume-se a partir dos 7 anos.

Exemplo: se uma criança de 5 anos joga uma pedra e parte um vidro de uma janela, de um
para-brisas, dizemos que a lei presume que ele é inimputável, nem sequer vamos estabelecer um

juízo de culpa, porque não tinha suporte desse juízo porque não tinha capacidade para entender
as consequências dos seus atos, e por isso não tinha também capacidade para determinar a sua
vontade em função desse juízo que fez.

Ou pode até ser, porque aquilo que a lei contém é uma mera presunção de inimputabilidade

Exemplo: pode-se fazer prova de que o miúdo de 5 anos, apesar da tenra idade, já
percebia que ao jogar a pedra ia partir o vidro, ou seja, já percebia que aquilo era uma coisa má,

proibida e que não podia fazê-lo - aí quem tem de fazer prova dessa imputabilidade já é o
lesado, porque a inimputabilidade presume-se; não só tem de fazer prova da culpa, como

também da capacidade do menor de 7 anos para entender e querer a consequência dos


respetivos atos.

7
FDUC – DOII 2017/2018

Se se trata de um maior de 7 anos, já a lei não presume a sua inimputabilidade - ele passa a
ser suporte de um juízo de culpa -, e quem quiser provar que ele não percebia as consequências dos

seus atos é que tem de fazer essa mesma prova, porque justamente não há aqui presunção a favor
dessa inimputabilidade. Portanto, num caso não se é responsável contratualmente antes dos 18 anos

(porque até aí não se tinha a capacidade de assumir as tais obrigações, a não ser que sejam já
aqueles atos de gestão corrente), por outro lado no âmbito da responsabilidade delitual não se

presume a inimputabilidade dos maiores de 7 anos

ART. 488º CC

“1. Não responde pelas consequências do facto danoso 5 quem, no momento em que o facto
ocorreu, estava, por qualquer causa, incapacitado de entender ou querer, salvo se o agente se

colocou culposamente nesse estado, sendo este transitório.


2. Presume-se falta de imputabilidade nos menores de sete anos e nos interditos por anomalia

psíquica.”

Quanto às regras da capacidade de exercício de direitos, temos os arts. 123º e 127º CC.

3. A terceira regra em que difere a responsabilidade contratual e a delitual é quanto aos


PRAZOS DE PRESCRIÇÃO. A lei fixa para a prescrição da obrigação de indemnizar no âmbito da
responsabilidade civil extracontratual um prazo de 3 anos, a contar da data em que o lesado teve

conhecimento do direito que lhe compete. No âmbito da responsabilidade contratual, como não há
fixação de nenhum prazo especial para a prescrição do direito a receber a indemnização, nós

aplicamos o prazo geral de prescrição de 20 anos.

Ex. 1: se o devedor é condenado a pagar uma indemnização ao credor em virtude do

incumprimento, a indemnização só prescreve no termo de 20 anos - prazo normal de prescrição.


Ex. 2: se, ao contrário, A causa um dano no âmbito de uma ação de responsabilidade civil

extracontratual, e é condenado a pagar uma indemnização por esse mesmo dano, o direito do
lesado prescreve no prazo de 3 anos a contar do conhecimento do respetivo direito).

8
FDUC – DOII 2017/2018

4. Quanto também ao regime da PLURALIDADE PASSIVA há regras diferentes. Quando falamos


em pluralidade passiva, quer-se dizer que há uma pluralidade de devedores - do lado passivo da

relação existe mais do que um devedor/sujeito. Qual é o regime desta pluralidade? De que forma
são os devedores responsáveis perante o credor?

A regra geral no direito civil é a, havendo uma pluralidade de devedores/credores, da conjunção -


cada um dos devedores é apenas responsável pela sua parcela da dívida.

Exemplo: A, B e C são devedores de D em 750€, sendo que têm igual

participação/montante na respetiva dívida - cada um é devedor de 250€ -, se nada se disser em


contrário, o regime desta dívida é o da conjunção - o credor pode exigir a cada devedor apenas a

sua parcela na dívida, isto é, pode ir a A e exigir 250€, pode dirigir-se a B e pedir 250€ e pode
dirigir-se a C e pedir os restantes 250€; se algum dos devedores não puder pagar, quem corre o

risco da falta de cumprimento/pagamento é o próprio credor, que fica como se costuma dizer na
gíria “a arder”).

Se a lei vier a dizer de outra maneira ou se as partes fixarem, então o regime pode ser o da

solidariedade - ou seja, o regime regra é o da conjunção, por força da lei ou da vontade das partes
pode ser o da solidariedade. E existe solidariedade passiva quando o respetivo credor pode exigir a

cada um dos devedores a totalidade da prestação, sendo que o pagamento por um deles libera os
restantes face ao credor.

9
FDUC – DOII 2017/2018

Retomando o anterior exemplo: A, B e C eram devedores de D de 750€; se o regime desta

dívida for o da solidariedade, sucede que D pode exigir a qualquer deles a totalidade da prestação,
isto é, pode ir a A e exigir os 750€, sendo que A não se pode defender com o benefício da divisão,

porque ele é solidariamente responsável com os outros devedores; é claro que se ele pagar os 750€
ficam os outros devedores liberados perante o credor, D, portanto a dívida fica saldada perante o

credor, embora exista depois direito de regresso no âmbito das relações internas - aquele que
pagou tem direito de regresso, na medida da sua participação na respetiva dívida, contra os

restantes condevedores, isto é, A que pagou a dívida pode depois dirigir-se a ir B e exigir-lhe os
250€ e pode dirigir-se a C e exigir-lhe os seus 250€.

E se um dos devedores não puder pagar? Quem é que corre o risco de não receber? Os
restantes condevedores é que correm o risco de um deles ser insolvente ou não puder efetuar o

respetivo pagamento, porque fica prejudicado o respetivo direito de regresso; o credor não, uma
vez que se pode dirigir a qualquer um deles, tem a possibilidade de receber a totalidade de

qualquer um deles.

No direito comercial, até por uma questão de fluidez da própria atividade negocial, é um regime
amigo do crédito, logo o regime regra é o da solidariedade. Mas o direito civil não. Isto também

significa que, quando a lei quer proteger determinado crédito, mesmo a lei civil, estabelece o regime
da solidariedade - é o que acontece no âmbito da responsabilidade civil extracontratual - por

preocupação com o lesado, e do seu direito à indemnização, vem estabelecer que, em caso de
pluralidade de lesantes, é solidária a sua responsabilidade, e não o regime da conjunção por força da

lei - a lei especialmente o estabelece no art. 497º CC: “1. Se forem várias as pessoas responsáveis
pelos danos, é solidária a sua responsabilidade.”- protegendo o direito à indemnização do lesado

que fica assim com maior possibilidade de vir a satisfazer o seu direito perante os vários lesantes.
No âmbito da responsabilidade contratual, se existirem vários devedores que não cumprem a

obrigação, e que com isso causam um prejuízo ao credor, como a lei nada diz/estabelece (ao
contrário do que sucede no âmbito da responsabilidade extracontratual) vale/aplica-se o regime da

conjunção - art. 513º CC.

10
FDUC – DOII 2017/2018

Em conclusão: havendo uma pluralidade de lesantes, respondem solidariamente na


extracontratual e conjuntamente na contratual. Assim, a garantia é muito mais forte na

extracontratual, pois a obrigação fica garantia pelos patrimónios de todos os lesantes, art. 497.º. Na
contratual, cada um responde pelos danos que causarem com a sua própria conduta. Neste aspeto, o

regime mais favorável para o lesado é o da responsabilidade civil extracontratual.

 SURGEM AQUI ALGUMAS QUESTÕES: há determinadas regras que se questionam se serão


aplicáveis também no âmbito da responsabilidade civil contratual ou se apenas à responsabilidade

civil delitual, na medida em que elas vêm fixadas no âmbito regulativo da responsabilidade civil
extracontratual (ou delitual). Poderíamos ser levados a pensar “que se o legislador as fixou neste

âmbito, é porque quis a sua aplicação exclusiva ao âmbito da responsabilidade civil extracontratual,
tanto mais que são regras que têm a ver com o cálculo da obrigação de indemnização. E portanto, se

quisesse que fossem comuns a ambos os tipos de responsabilidade, teria regulado essas matérias a
propósito da obrigação de indemnização, nos arts. 562º e ss. CC, e não aqui no âmbito da

responsabilidade civil extracontratual”.


Este é um argumento que é meramente formal, que vale o que vale, e vamos verificar infra se

isso é mesmo assim ou não.


Coloca-se aqui um problema que tem 2 vertentes (e se calhar soluções diferentes): há normas

que estão estabelecidas no âmbito da responsabilidade extracontratual que se discute se são


aplicáveis ou não no domínio da responsabilidade contratual. Referimo-nos aos arts. 494º - diz

respeito à limitação da indemnização quando exista mera culpa - e 496º CC - para a chamada
indemnizabilidade dos chamados danos morais/não patrimoniais.

ANTUNES VARELA respondia da mesma forma a ambas as questões, embora apenas do ponto
de vista formal:

 Não podemos pressupor que o legislador tenha querido a aplicação destas duas normas à
responsabilidade contratual, porque se o quisesse ter feito (se quisesse a sua aplicação) deveria ter

colocado estas normas não neste âmbito sistemático, mas antes nos arts. 562º e ss CC a propósito
da obrigação de indemnizar. Ambas as normas referem-se à obrigação de indemnizar, e ANTUNES

VARELA refere que se o legislador quisesse cumulativamente a aplicação destas normas a um e a

11
FDUC – DOII 2017/2018
outro tipo de responsabilidade, teria disciplinado estas matérias no âmbito da obrigação de

indemnizar, e não no âmbito da responsabilidade civil extracontratual. Se disciplinou aqui nesta sede,
é porque quis a sua aplicação exclusiva à responsabilidade civil extracontratual.

 Ora, este argumento vale o que vale - é um argumento formal -, e nós devemo-nos
preocupar antes em saber se faz sentido ou não, do ponto de vista substancial/material, a aplicação

destas normas também ao âmbito contratual. E pode-se fazê-lo, mesmo que não seja por aplicação
direta ao menos por aplicação analógica dos respetivos princípios. Neste aspeto a resposta é

diferente para cada uma das normas, ou seja, tendo em conta a sua razão de ser/o plano material, a
resposta da aplicação ou não ao âmbito contratual é diferente para o art. 494º CC e para o art. 496º

CC:

(1) O art. 494º CC vem a dizer que pode haver redução do quantum indemnizatório, isto é, do
valor da indemnização, quando o lesante tenha tido culpa pouco grave, ou seja, quando o

comportamento do agente seja pouco censurável (quando tenha agido não com dolo, mas com
mera culpa/negligência), e tendo em conta a situação de cada uma das partes isso se justifique. Isto é

um desvio ao princípio da reparabilidade integral dos respetivos danos – dizemos que o que
fundamenta a responsabilidade civil é a existência de um determinado dano que, por uma razão
especial, é deslocado da pessoa que o sofre para outrem (neste caso a razão especial é a culpa), em

princípio o valor da indemnização corresponde ao valor dos danos (o lesante terá de indemnizar o
lesado de todos os danos sofridos pelo lesado). Esta solução é uma solução excecional que tem a ver

com a pouca gravidade/fraca censurabilidade do comportamento do agente.


 Faz sentido aplicar esta regra no âmbito da responsabilidade civil contratual?

 Quando o devedor, não cumprindo a obrigação, provoca/causa danos ao credor, também se


o seu comportamento for pouco censurável, ou seja, se houver pouca gravidade podemos, à

semelhança do que se diz aqui no art. 494º CC, pressupor/permitir a redução do quantum
indemnizatório?

 A doutrina é quase unânime em entender que não, ou seja, visto que isso
defraudaria as expectativas do credor resultante de uma relação especial que já existia entre

as partes, ou seja, o credor satisfaz o seu interesse através do cumprimento, e quando, por

qualquer razão, o devedor não cumpre e não permite a satisfação do interesse, a

12
FDUC – DOII 2017/2018
indemnização aparece aqui como um equivalente pecuniário desse mesmo interesse, e

portanto há expectativas fortes do credor que seriam fortemente atingidas. Assim a relação
obrigacional seria fortemente atingida, se nós permitíssemos a redução do quantum

indemnizatório – porque já existe entre as partes uma relação de natureza especial, ao


contrário do que sucede no âmbito da responsabilidade delitual em que o direito e a relação

entre as partes surge com a própria lesão, e pode acontecer que o comportamento do lesante
seja de tal forma desprovido de censurabilidade que justifique a repartição do dano (a lei fala

em “fixação equitativa da indemnização”) precisamente por essa razão, que seja um


comportamento do lesante de tal forma não grave que não leve à indemnizabilidade dos

respetivos danos.
 É pacífico na doutrina justamente porque o que está em causa é a proteção das

expectativas do credor, ou melhor do próprio direito e da própria confiança do credor - quer


seria gravemente afetada caso ele pudesse, por força do incumprimento, obter uma

indemnização inferior ao respetivo dano. A ideia é que, se no âmbito da responsabilidade


extracontratual, antes da lesão não existe uma relação especial entre as partes (entre lesante e

lesado), e há tão só a confiança que todos nós temos de ter nos outros, e não uma confiança
específica numa determinada relação especial que deva ser protegida, e portanto aí quando a

culpa é leve pode, em termos de equidade, o tribunal entender que é mais justo repartir o
dano entre lesante e lesado. Não já no âmbito do não cumprimento - aquilo que justifica a

relação obrigacional, que é o interesse do credor, a não permitir essa redução. Atendendo à

ratio da norma, devemos excluir a sua aplicação do âmbito da responsabilidade


contratual - é uma norma específica da responsabilidade contratual.

 PAULO MOTA PINTO defende a posição de que este artigo, mesmo que não
seja de aplicar sempre em casos de responsabilidade contratual, pode em alguns casos ser

convocado, quando o dano seja desproporcional face à mera culpa do devedor inadimplente.
Não haverá uma objeção de princípio, o valor da indemnização não tem de ser coincidente

com o da indemnização.

13
FDUC – DOII 2017/2018

(2) O mesmo já não se diga do art. 496º CC. Este art. refere-se à indemnizabilidade dos danos
não patrimoniais - os danos morais são aqueles que não são suscetíveis de avaliação pecuniária,

não suscetíveis de se traduzirem num montante em dinheiro, tanto que relativamente a estes danos
nem falamos em indemnização, falamos em simples compensação (a ideia de que, por vezes, há

certos prejuízos/condicionalismos que levam a que haja um sofrimento, uma espécie de dor físico-
psicológica por parte do respetivo lesado, mas isso não se traduz ou não se pode traduzir num

respetivo montante em dinheiro -alguém sofre um ataque à sua integridade física, daqui resultam
necessariamente danos patrimoniais, no sentido em que há despesas médicas, há dias

eventualmente de trabalho que não pode exercer, e portanto também não tem a respetiva
remuneração, pode haver objetos destruídos, etc., ou seja, pode haver um sem número de danos

patrimoniais; mas ao lado destes danos patrimoniais nós temos os chamados danos não
patrimoniais, sofreu determinadas dores/vexames que não mensuráveis, não se podem traduzir

numa quantia em dinheiro, por isso é que não se podem reparar, não se podem apagar as dores
através de um equivalente pecuniário; mas podem sem compensadas, a ideia de que se nós

atribuirmos ao lesado uma quantia em dinheiro, não estamos propriamente a apagar a dor, mas
estamos de alguma maneira a permitir-lhe que tenha certos prazeres, que o façam/possam fazer

esquecer, em parte, a dor; está em causa a ideia da compensação dos respetivos danos/ prejuízos, e
não propriamente a ideia de reparação).

 O legislador veio expressamente permitir a indemnizabilidade dos danos não


patrimoniais, a ideia de que eles são compensáveis. Foi muito discutido na doutrina -

grande parte da doutrina vinha dizer que parece que é imoral que se atribua um preço
à dor, que se atribua um preço à honra;

 Mas no fundo acabou por se chegar à conclusão de que seria muito mais imoral e
muito mais injusto que o lesado ficasse desprovido de qualquer indemnização, quando

os danos não patrimoniais até pode ser muito mais graves que os patrimoniais, até
podem gerar muito mais prejuízos do que os respetivos danos patrimoniais. Mas veio

consagrar esta tal indemnizabilidade nesta sede.


 Será que no âmbito contratual existe/podem existir danos não patrimoniais, e se

são ou não são indemnizáveis?

14
FDUC – DOII 2017/2018

 ANTUNES VARELA também responde negativamente a esta questão - também o art.


496º CC é de aplicação exclusiva ao âmbito da responsabilidade extracontratual, por

força daquele argumento formal (se o legislador tivesse querido que os danos não
patrimoniais fossem indemnizáveis no âmbito da responsabilidade contratual, teria

disciplinado esta matéria no âmbito da obrigação de indemnizar).


 Relativamente ao art. 496º CC, ANTUNES VARELA vem ainda alegar o seguinte: se

nós permitirmos que, no âmbito contratual, sejam indemnizáveis os danos não


patrimoniais, isso traduzir-se-á num crescimento exponencial das respetivas ações de

indemnização (“por dá cá uma palha, os credores vão exigir a indemnizabilidade de


determinados sofrimentos, ou de determinadas pretensas dores que decorreram do

não cumprimento das respetivas obrigações”).


 Este argumento pode ser de alguma maneira contestado da seguinte forma - o

próprio legislador atribui a medida e o filtro (dá-nos instrumentos) que nos permitam
reduzir esse número de ações que ANTUNES VARELA dizia que exponencialmente

subiriam. Porquê? Porque nem todos os danos não patrimoniais, quer num âmbito
quer no outro, são indemnizáveis - não pode o credor, “por dá cá uma palha” vir a

exigir a indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, porque a lei vem a dizer
que deve atender-se aos danos não patrimoniais, que pela sua gravidade mereçam a

tutela do direito. Portanto há obviamente aqui uma intervenção constitutiva do tribunal


no sentido de avaliar a gravidade ou não gravidade dos respetivos danos, e a

concessão ou a não concessão da respetiva indemnização. Também no âmbito


contratual não é uma especial sensibilidade do lesado que justifica a atribuição de

compensação por pretensos determinados não patrimoniais - têm de ser graves, têm
de ter gravidade ao ponto de merecerem tutela do respetivo direito.

 Tem entendido hoje a generalidade da doutrina, e também é hoje essa a nossa opinião
(nomeadamente PINTO MONTEIRO tem uma dissertação de doutoramento em que

trata amplamente estas matérias, e justifica que precisamente também no âmbito


contratual se devam atender aos danos não patrimoniais, mas apenas aqueles que pela

sua gravidade mereçam a tutela do direito). Os argumentos que levaram o legislador a

15
FDUC – DOII 2017/2018
admitir no âmbito extracontratual a indemnizabilidade dos danos não patrimoniais são

exatamente os mesmos que valem para a responsabilidade contratual. Há pouco vimos


que havia razões para a não aplicação do art. 494º CC, agora vemos que não há

nenhuma razão para a aplicação do art. 496º CC ao âmbito contratual, apesar da


sua inserção sistemática. Há quem sustente a aplicação direta deste art., mas quem

ficar sensível a este argumento da inserção sistemática opta pela extensão analógica
deste art. - extrai daqui um princípio que depois aplica também no âmbito contratual.

 Coloca-se aqui ainda uma outra questão no âmbito desta distinção, que é a seguinte: por
vezes um mesmo determinado facto lesivo é gerador de ambos os tipos de responsabilidade. E nesse

caso queremos saber que regime aplicar (são regimes em parte diferentes, com normas distintas), se
aplicamos o regime da responsabilidade extracontratual (um regime mais específico que tem em

conta essa relação especial entre as partes), ou se podemos aplicar indistintamente um dos dois
regimes - ou seja, se permitimos o cúmulo das duas responsabilidades (embora entendido de

determinada forma).

Imaginemos um taxista que tem um contrato de transporte com o respetivo cliente no

momento em que o leva a um determinado local, e durante a viagem, por negligência, causa um
acidente onde o respetivo cliente sofre danos nas coisas que transportava, e na sua integridade

física - o ato gerador do respetivo dano, acaba por se traduzir num facto gerador de
responsabilidade contratual (porque não há cumprimento ou há o cumprimento defeituoso de

uma obrigação em sentido técnico - uma vez que ele se obrigou a levar o cliente em segurança e
comodidade a um determinado destino, e acaba por não cumprir, ou não cumpre de forma

perfeita), e ao mesmo tempo há a violação de um direito absoluto ou de vários direitos absolutos,


e nesse sentido também existe responsabilidade civil extracontratual. Que regime aplicar? Temos

de aplicar necessariamente o regime da responsabilidade civil contratual?

Esta era a orientação francesa e a que era seguida por ALMEIDA COSTA, uma vez que o

legislador estabeleceu um regime que é mais específico para as relações contratuais, quando há
responsabilidade contratual é esse regime, e não o da responsabilidade delitual (mais genérico) que

deve ser aplicado.

16
FDUC – DOII 2017/2018

 Nós temos seguido a orientação alemã, e também italiana, que permite o cúmulo de normas
(e não de responsabilidades), porque esta possibilidade de poder cumular as duas responsabilidades

não significa, de facto, um cúmulo de responsabilidades - existe apenas uma ação que no plano
material corresponde apenas a um único direito, e de alguma maneira esse cúmulo tem como

objetivo único a reparação do dano, não existe cúmulo de ações (não existe uma ação para exigir a
indemnização no âmbito da responsabilidade civil contratual, a que se soma uma outra ação para

exigir a reparação do dano no âmbito da responsabilidade civil extracontratual).


 Assim, o cúmulo será apenas de normas, normas aplicáveis à respetiva pretensão do agente.

Uma pretensão unitária, obviamente - o lesado pode socorrer-se ou do regime da responsabilidade


civil contratual ou do regime da responsabilidade civil extracontratual conforme aquilo que entenda

que lhe é mais benéfico no respetivo caso concreto (p.ex., se tem dificuldades na prova da respetiva
culpa, obviamente que terá muito mais vantagens no âmbito da responsabilidade civil contratual, e

em apelá-lo; se eventualmente também está em causa a questão da prescrição, tem mais vantagens
no âmbito da responsabilidade civil contratual - tem um prazo bastante mais alargando-se

prescrição; mas já não é vantajoso no caso da pluralidade passiva). Também pode o tribunal
fundamentar numa ou noutra a respetiva solução, conforme entenda mais correto.

 Portanto caso a caso tem de se ver qual é o regime mais benéfico, e apelar a cada um desses
regimes em função dos respetivos interesse. Aquilo que nós aceitamos não é um cúmulo de ações,

mas antes um cúmulo de normas (apelar às normas de um tipo e outro de responsabilidade no


sentido de fundamentar a respetiva pretensão). Parece que é esta a solução não só no plano do

direito constituído, como é a solução desejável - o facto de o legislador ter previsto um regime mais
específico para a responsabilidade contratual, não significa que, estando preenchidos os requisitos da

responsabilidade extracontratual, não possa haver recurso às respetivas normas para fundamentar a
pretensão do autor, desde que estejam obviamente integrados os respetivos

requisitos/pressupostos).

17
FDUC – DOII 2017/2018

2.3 RESPONSABILIDADE SUBJETIVA E RESPONSABILIDADE OBJETIVA

O que é que as distingue? Precisamente o fundamento de imputação, ou seja, o tal


fundamento que leva a justificar que alguém que não causou dano seja responsável por ele.

 No âmbito da responsabilidade civil subjetiva, o que justifica a passagem do dano/prejuízo

do lesado para o lesante é a censurabilidade do seu comportamento, ou seja, é a culpa. Ficamos já


assentes que responsabilidade civil subjetiva é responsabilidade que se baseia/fundamenta na culpa

do lesante - o lesante teve um comportamento eticamente censurável, deve responder pelos danos
que causou ao lesado; e a culpa é precisamente esse juízo de censura relativamente ao

comportamento do agente. Quando nós dizemos que alguém agiu de forma diferente daquela que
podia e devia ter agido, então dizemos que o seu comportamento foi censurável - se ele agisse de

certa maneira, teria evitado o dano (ex.: o condutor que ultrapassa os limites de velocidade age com
culpa, porque ele podia e devia ter agido de outra maneira, mesmo que não seja uma culpa

intencional - não tem de ser dolo como veremos infra).


 O fundamento normal da responsabilidade é a culpa, ou seja a regra é a

responsabilidade subjetiva (tendo de provar ou não, exige-se a culpa do autor da lesão). Só existe
responsabilidade objetiva nos casos especialmente previstos na lei (quer no CC, quer em lei

extravagante), é excecional - a lei diz isso mesmo no art. 483º/2 CC: “Só existe obrigação de
indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.”

 Já, por contraposição, a responsabilidade civil objetiva é a responsabilidade que é

independente de culpa/ não assenta na culpa do lesante - o fundamento de imputação é outro que
não a culpa. Aquilo que leva a que alguém responda perante o lesado, nada tem a ver com a

censurabilidade do respetivo comportamento, é outro o motivo. Muitas vezes não está sequer
dependente de um facto do próprio lesante.

18
FDUC – DOII 2017/2018

2.3.1 CARACTERÍSTICAS DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA

1) A responsabilidade objetiva é uma responsabilidade excecional e que necessita de


fundamentação legal.
Então, que casos existem de responsabilidade objetiva?

1. Os artigos 499.º e segs. falam da RESPONSABILIDADE PELO RISCO.


a. Art. 500.º: responsabilidade do comitente;

b. Art. 501.º: responsabilidade do Estado e outras pessoas coletivas públicas;


c. Art. 502.º: danos causados por animais;

d. Art. 503.º: danos causados por acidentes de viação;


e. Art. 509.º: danos causados por instalações de energia elétrica ou gás.

Quando pensamos em responsabilidade civil objetiva, o primeiro e mais importante núcleo

dessa responsabilidade é a chamada responsabilidade pelo risco. Baseia-se na ideia de que aquele
que beneficia de uma certa atividade que causa potenciais riscos para terceiros, deve, segundo um

princípio básico de justiça distributiva ibi commoda ubi incommoda, suportar os danos que sejam
concretização desses mesmos riscos/perigos, ou seja, quem queria ou mantém na sua esfera

determinados riscos/perigos relativamente a terceiros, deve responder pelos danos que sejam
concretização desses mesmos riscos/ perigos. E isto porque ele beneficia exatamente da criação

desse mesmo risco. Este é o principal setor da responsabilidade objetiva, mas não esgota a
responsabilidade objetiva - não podemos assimilar os dois conceitos, não podemos dizer que

responsabilidade objetiva é responsabilidade pelo risco.

2. Também temos a RESPONSABILIDADE POR FACTOS LÍCITOS: Aqui a responsabilidade do


agente não depende da culpa, e agora já nem da ilicitude depende - o lesante assume/pratica um
ato que é permitido pelo próprio direito, mas tendo em conta uma ideia de justiça distributiva a lei,

porque estes casos são sempre excecionais, vem estabelecer a obrigação de indemnizar.

19
FDUC – DOII 2017/2018

(1) No caso da apanha de frutos em terreno alheio, que de outra forma ser-lhe-ia vedado. É
comum esta situação, e o nosso CC é muito rural ainda, pressupondo todas estas questões, que

nestas zonas rurais são as grandes fontes de conflito;


(2) A colocação de andaimes em terreno alheio - é responsável pelos danos que causar ao

respetivo prédio;
(3) A constituição de uma servidão de passagem por prédio alheio;

(4) A revogação unilateral de certos contratos quando ela é permitida e quando são
contratos remunerados - diz-se que o mandante pode, a todo o tempo, pôr fim ao contrato de

mandato, mesmo que não exista justa causa para tal. A revogação em sentido técnico, em regra, é
um ato bilateral - é o chamado mútuo dissenso (para a formação do contrato é necessário um

mútuo consenso, para a sua destruição é necessário igualmente o consentimento das partes). Se
uma delas não tiver justa causa para pôr fim ao contrato (se tiver, nesse caso até falamos de

resolução) não pode fazê-lo, excecionalmente o legislador dá essa possibilidade e é o caso,


precisamente, do mandato, por razões muito específicas deste contrato. Mas se o mandato for

remunerado, a revogação vai pôr fim, unilateralmente e sem justa causa, a uma relação, e prejudica
os interesses do respetivo mandatário, que tinha expectativas de receber uma determinada

retribuição pela prática dos atos jurídicos por conta do mandante. Temos aqui então um dos casos
de indemnização por atos/intervenções lícitas - a lei permite a revogação, mas ao mesmo tempo diz

ao mandante que ele tem de indemnizar o mandatário pela retribuição que ele deixou de receber,
em virtude da revogação do mandato (ou seja pelos danos que ele sofreu em virtude desta

revogação). Nem sequer há aqui ilicitude porque se trata de um ato permitido pelo direito - o
direito vem permitir a intervenção numa esfera jurídica alheia, que em princípio estaria

completamente vedada, mas dá possibilidade ao lesado de se ver ressarcido dos respetivos danos
causados por essa mesma intervenção;

(5) O caso do estado de necessidade. Há aqui uma intervenção permitida, no entanto aquele
que aja em estado de necessidade pode ter de ser obrigado a indemnizar os danos que causar ao

respetivo lesado.

20
FDUC – DOII 2017/2018

3. Há outro caso de responsabilidade objetiva: a RESPONSABILIDADE POR DANOS

CAUSADOS POR INIMPUTÁVEIS, que em casos excecionais podem ser responsabilizados, se o


tribunal ficar convencido da necessidade de indemnizar o lesado. A obrigação de indemnização
baseia-se, nestes casos, no art. 489.º. O inimputável, por definição, não pode ser objeto de um juízo

de culpa, e portanto não se lhe pode dirigir uma censura (embora a culpa não seja de todo
irrelevante); o fundamento aqui, segundo a própria lei, é a equidade, fundada na ideia de justiça

material (mas não é o risco), entendendo-se que, havendo capacidade económica do inimputável e
se isso não prejudicar, nomeadamente o seu direito a alimentos, deva ser o próprio inimuptável a

responder, mesmo não seja objeto desse juízo de culpa. Chega-se à conclusão de que, muitas vezes,
sendo o ato praticado por um inimputável, e não sendo possível obter a devida reparação das

pessoas encarregadas da sua vigilância, acha-se injusto que fique o lesado a ter de suportar
totalmente o dano produzido, que só se não se transfere para outrem, porque esse outrem é um

inimputável.

4. Além destas normas do Código Civil, temos ainda a RESPONSABILIDADE CIVIL DO

PRODUTOR: O produtor é responsável pelos danos que os defeitos nos respetivos produtos venham
a causar. E quando falamos dos danos indemnizáveis pelo produtor, independentemente de culpa (é

nesse sentido objetiva) é responsável pelos danos que esses produtos venham a causar, vamos
chegar à conclusão que nem todos os danos são indemnizáveis – os danos às pessoas são sempre

indemnizáveis pelo produtor, independentemente de culpa; mas os danos em coisas não são todos
indemnizáveis. Só são indemnizáveis os danos em coisas destinadas a consumo.

21
FDUC – DOII 2017/2018

Ex.1: um automóvel novo que sai da fábrica, falha o sistema de travagem e embate numa
montra de um restaurante - o dano causado à montra do restaurante, ainda que haja
responsabilidade objetiva do produtor, não é reparado pelo produtor; pode ser reparado pelo

vendedor do carro, necessariamente pelo detentor do carro naquele momento que depois,
eventualmente, se fará ressarcir também dos prejuízos que lhe foram assacados, mas o produtor

não responde.

Ex.2: o micro-ondas que era defeituoso e que explode na cozinha, e estraga a máquina de

lavar loiça, o frigorífico, etc. - o produtor do micro-ondas, se este for de facto defeituoso, pode ou
não ser responsável por aquelas coisas, dependendo se os móveis estavam numa casa particular

seguramente há responsabilidade; mas se por ex., aqueles mesmos móveis estivessem num
restaurante, ou eventualmente numa cantina de uma determinada fábrica, já não seriam

indemnizáveis, pelo produtor; mas isto não quer dizer que não fossem indemnizáveis, podia ser
diferente o fundamento da respetiva responsabilidade, só não seriam responsabilidade objetiva do

produtor.

Aqui o fundamento de responsabilização não é só o risco, é também a intenção de proteger o


consumidor – estas normas da responsabilidade do produtor têm como fundamento não apenas o

risco causado ou o aumento do risco que a utilização dos produtos implica, ou a colocação em
circulação de determinados produtos implica, mas também a proteção do consumidor. Porque se

fosse o risco o fundamento de imputação, à indemnização deveria recair sobre todos os danos
causados, e não apenas sobre os danos causados ao consumidor.

2) Outra característica é o carácter relativo: tendo em conta a posição difícil do lesante, que
responde sem culpa, o legislador compensa este facto por uma circunscrição dos danos ressarcíveis.

Por exemplo, o art. 504.º vai circunscrever os danos ressarcíveis. Por outro lado, o legislador delimita
igualmente o montante indemnizatório (os limites máximos), que é o que sucede no art. 508.º.

22
FDUC – DOII 2017/2018
Por vezes, quando o legislador cria um regime de responsabilidade objetiva, impõe a

subscrição de um seguro obrigatório, que se prende com a obrigação de indemnização por danos
causados a terceiro. Está aqui em causa a proteção do lesado, mas também há uma defesa do

lesante: por vezes, os danos causados são de tal ordem que não é possível o lesante pagar a
indemnização. Discutiu-se se os condutores de bicicleta deviam constituir seguro obrigatório: o art.

503.º abrange a responsabilidade por danos causados por veículos não motorizados; no entanto,
não existe seguro obrigatório. Na responsabilidade por danos causados por animais, também não

existe seguro obrigatório.

3) É uma responsabilidade limitada, pois o legislador consagra causas de exclusão da


responsabilidade – é o que sucede no art. 505.º, que exclui a responsabilidade quando os danos
sejam imputáveis ao próprio lesado. Já é irrelevante a prova de inexistência de culpa.

2.3.2 PRESUNÇÃO DE CULPA

Por vezes temos também uma tendência a confundir a responsabilidade objetiva, ou seja,
aquela que não depende da culpa, com a chamada responsabilidade assente numa presunção de

culpa. A responsabilidade assente numa presunção de culpa é responsabilidade subjetiva - ela


depende da existência de culpa, só que a culpa presume-se e por isso, ao presumir-se a culpa, é o

lesante que tem de afastar a respetiva presunção. Pode acontecer que alguém venha efetivamente a
responder, e efetivamente não há censurabilidade do seu comportamento, mas isso não quer dizer

que ele responda objetivamente - ele respondeu subjetivamente, ou seja, o fundamento da sua
responsabilidade é a culpa, mas essa culpa presume-se. Se ele não conseguiu afastar a respetiva

presunção, responde subjetivamente. Falamos dos casos de responsabilidade subjetiva agravada -

agravada com uma presunção. Enquanto que nas situações normais é ao lesado que cabe fazer
prova da culpa do autor da lesão, nos termos do art. 487º CC, nestas situações (do art. 491º-493º

CC) presume-se a culpa do autor da lesão, logo inverte-se o ónus da prova. É ao lesante que cabe
afastar a respetiva presunção. Como é que nós ajuizamos que não se trata de responsabilidade

objetiva? Na responsabilidade objetiva, o lesante responde independentemente de culpa, é


indiferente que se prove ou não prove a respetiva ausência de culpa:

23
FDUC – DOII 2017/2018

 O detentor do automóvel que atropela o peão é responsável pelos danos causados ao peão,
independentemente de ter agido com culpa - pode ter atravessado um sinal vermelho ou não, pode

ter ido com velocidade excessiva ou não, pode pura e simplesmente ter perdido o controlo da
viatura porque havia óleo na estrada, e portanto foi ter com o respetivo peão e nesse caso o seu

comportamento não é censurável; mas ainda assim ele é responsável, porque a responsabilidade do
detentor do veículo não depende da culpa, não se fundamenta na culpa; ainda que ele venha a

provar a ausência de culpa, ele responde pelo risco porque a sua responsabilidade é fundada no
risco.

 Mas agora imaginemos que era uma pessoa sob a vigilância de outrem - a lei diz que as
pessoas obrigadas à vigilância de outrem respondem pelos danos que esse outrem, o incapacitado,

causar, a terceiros, e só não respondem se fizerem prova que cumpriram o seu dever de vigilância. A
questão é que, ainda que o lesado nada provar pode não ter havido culpa, e ainda assim o vigilante

responde; mas ele tem sempre a possibilidade de fazer prova (de afastar a presunção) de que
cumpriu o seu dever de vigilância. O fundamento da responsabilidade aqui é a culpa, embora seja

culpa presumida - tanto mais que o lesante afasta a sua responsabilidade se afastar a respetiva
presunção, se fizer prova de que agiu sem culpa. E fala-se nos mesmos termos no art. 492º e no art.

493º CC.
O que é mais evidente, para distinguir estes casos de responsabilidade subjetiva agravada dos

casos de responsabilidade objetiva é o seguinte: se o autor da lesão conseguir afastar a presunção,


ou seja, se conseguir provar que não houve culpa da sua parte, ele afasta a responsabilidade; nos

casos de responsabilidade objetiva, isso é absolutamente irrelevante (não releva à partida que o
condutor venha dizer “não, eu embati e causei danos a terceiros, eu perdi o controlo do veículo
porque desmaiei”, ou “perdi o controlo do veículo porque derrapei numa mancha de óleo”),
respondendo independentemente de culpa.

24
FDUC – DOII 2017/2018

II. RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS


1. PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL

(1) A existência de um facto humano e voluntário;

(2) Ilicitude;

(3) Imputação do facto ao agente (quer ao nível do controlo da imputabilidade, quer ao nível da
culpa);

(4) Existência de um dano (sem dano não há responsabilidade civil, uma vez que o objetivo do
direito da responsabilidade é a reparação dos respetivos danos);

(5) Nexo de causalidade entre o facto e o dano;

(6) Âmbito de proteção na norma para determinada doutrina, mas entre nós acabou-se por

entender que isso se engloba dentro de outros pressupostos de responsabilidade civil, não
fazendo muito sentido autonomizá-lo.

(1) EXISTÊNCIA DE UM FACTO HUMANO E VOLUNTÁRIO

Tem de haver um comportamento humano voluntário, controlável pela vontade, que se pode

consubstanciar numa ação ou numa omissão (facto comissivo e omissivo). Todas as situações que
não são controláveis objetivamente, ou em termos abstratos pela vontade do agente, estão excluídas
dos casos de atos que geram responsabilidade civil.

Quando se alude a facto voluntário, isto não quer dizer que tenha de ser um ato querido:

 Há casos, como o da negligência inconsciente, em que não há representação mental do facto.


 Basta uma capacidade natural para entender e querer para que uma pessoa responda (art.

488.º/1), sendo que a responsabilidade dos inimputáveis não está totalmente excluída (art.
489.º/1).

ENTÃO: “Facto voluntário” significa, assim, “facto objetivamente controlável ou dominável pela

vontade”: basta a possibilidade de controlar o ato omissão. Fora ficam apenas os danos provocados
por causas de força maior ou pela atuação irresistível de circunstâncias fortuitas.

25
FDUC – DOII 2017/2018

Eventualmente se um sonâmbulo, durante uma crise de sonambulismo, destrói um bem a


um terceiro, nós diríamos que esse ato não é objetivamente controlável pela consciência. Estamos

perante numa situação de inconsciência, não é um ato gerador de responsabilidade civil.

Se se tratar de uma omissão, é preciso que se preencha o requisito adicional que a lei exige –

tem de haver o incumprimento de um dever jurídico de agir. Assim, o art. 486.º estabelece que as
simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos quando houvesse, por força da lei ou

do negócio jurídico, um dever de praticar o facto.

A doutrina tem feito um esforço para alargar estas situações em que, fora de norma expressa ou
da existência de um contrato como fonte um dever, a outros casos ou situações onde exista dever de

ação. No âmbito do direito civil não temos os problemas de tipicidade que temos em matéria
direito penal - em direito penal a equiparação da omissão à ação, para efeitos de ilícito criminal,

pode gerar um problema que é o de criação de um ilícito criminal sem existir lei que o autorize
(esbarra com o princípio de não há crime sem lei, “nulla poena sine lege”);

Ora no direito civil não lidamos com o problema da tipicidade, e é muito mais fácil equiparar a
chamada omissão à ação. É muito mais fácil sustentar casos onde a omissão gere responsabilidade

civil, mesmo sem a existência de um contrato, ou mesmo sem a existência de uma norma expressa a
impor um dever de agir.

Que situações são essas que a doutrina tem, de alguma maneira, falado? São desde logo os
chamados casos de deveres gerais de prevenção do perigo - há situações onde quem cria ou

mantém um determinado risco ou um determinado perigo, fica com o dever de agir no sentido de
eliminar esse mesmo perigo/risco, ou tudo fazer para que esse risco/perigo não se concretize em

dano. Note-se que não se está aqui a falar nos casos de responsabilidade objetiva - esses existem e
estão previstos na lei, e muitas vezes não dependem de uma ação -, aquilo que estamos a falar são

situações diferentes - são situações que, independentemente do estabelecimento ou não de


responsabilidade objetiva, são casos em que, através de uma certa ação, se cria um risco ou um

perigo. Então, a partir desse momento em que se cria um perigo/risco, em que se mantém a

funcionar esse risco/perigo, surge um dever. Qual é esse dever?

26
FDUC – DOII 2017/2018

O dever de agir no sentido de eliminar, ou de pelo menos fazer com que esse risco ou esse
perigo não se concretizem num dano.

Estes deveres de prevenção do perigo nasceram na doutrina como chamados deveres de


segurança no tráfego - porque eles apareceram ligados à abertura de um caminho/tráfego. Dizia-se

“quando se abre um certo caminho, ou se permite a passagem do tráfego, cria-se uma fonte de
perigo/risco, então deve fazer-se de tudo para eliminar, ou para pelo menos evitar, que esse
risco/perigo se concretize num dano” (ex.: deve-se limpar o respetivo caminho; nas escadas deve-se
colocar corrimões; deve-se iluminar o caminho para que se vejam os riscos/perigos que ele
pressupõe), e portanto nesse sentido estes deveres nasceram como deveres de segurança no
tráfego. Mas logo se transformaram em conceitos mais genéricos, e passamos a falar de deveres de

prevenção do perigo.

Então o que é que justifica aqui o nascimento de um dever de evitar que o risco ou o perigo

se concretize num dano? O que justifica é a ação - é a criação ou a manutenção dessa fonte de
risco/perigo. Se alguém cria ou manter uma fonte de risco/perigo está a agir de um determinado
sentido, logo daí, desta circunstância, nasce um dever - o dever de evitar que esse perigo/risco se

concretize em danos para terceiros. O facto gerador da responsabilidade não é a criação do risco,
não é a manutenção do risco, mas antes é não ter agido no sentido de evitar que esse risco/perigo e

concretize em danos (não ter colocado os reais corrimões nas escadas; não ter procedido à
iluminação do caminho; não ter limpo o respetivo caminho). A criação do risco é o fundamento da
origem/nascimento do respetivo dever de ação, cuja omissão pode gerar responsabilidade civil.

Há várias formas de cumprir estes deveres:


1. O primeiro nível realmente tem a ver com dar possibilidade, sejam deveres de aviso, sejam

deveres de instrução, a que os outros, terceiros, lidem, de uma forma auto responsável com o
respetivo perigo/risco. Neste primeiro momento este dever cumpre-se avisando da existência de um

perigo, ou avisando da existência de um risco, e pode ser que até seja suficiente para cumprir o
dever de prevenção este aviso/ esta instrução. Muitas vezes não é possível fazer de outra maneira,

esta é a única forma de cumprir, e mesmo que fosse possível fazer de outra maneira, é suficiente por
vezes o aviso/a instrução acerca da forma de como evitar o risco/perigo.

27
FDUC – DOII 2017/2018

1 - Alguém que causa um determinado acidente por culpa sua, ainda que o não seja.

Pode não ter causado imediatamente danos a terceiros - o carro despistou-se, foi ali embater

no passeio mas ficou com os pneus completamente furados, e não pode ser removido daquele

local. Com o automóvel ali parado, cria-se uma fonte de perigo/risco para terceiros - para a

circulação rodoviária em geral.


Qual é o dever que tem o condutor que vê o automóvel imobilizado, e que não pode

retirá-lo imediatamente dali? Em primeiro lugar, é telefonar para o pronto-socorro e pedir que
venha retirá-lo, mas enquanto não consegue retirar o automóvel tem de colocar o triângulo -

precisamente para avisar todos os outros condutores que existe ali um risco/perigo, para que esses
outros condutores possam, de forma auto responsável, ligar com esse risco/perigo. Cumpre o seu

dever de prevenção do perigo, numa primeira fase, o automobilista que tem este comportamento -
ele cria um perigo, mas ao avisar os restantes automobilistas de que esse perigo existe, vai permitir

que eles lidem, de uma forma auto responsável, com esse perigo/risco, podendo evitá-lo (quando
colocamos o triângulo como que transmitimos a mensagem que “cuidado, há um impedimento

qualquer, e portanto há ali um veículo em princípio imobilizado, vamos ter cuidado e temos o
dever de ter esse cuidado”). Nesse sentido, está a cumprir esse dever de prevenção do perigo, que

é também neste caso um dever de segurança no tráfego.

2- Os estaleiros de construção civil de obras, sejam em meios urbanos ou não, devem

conter um aviso de que é proibida a entrada no estaleiro a pessoas estranhas, e esse dístico

deve conter a mensagem de que quem lá entrar está sujeita a riscos ou perigos. Portanto, a

não entrada ou a proibição de entrada a estranhos à obra, não tem como finalidade proteger o

próprio estaleiro de eventuais furtos, mas antes tem também como finalidade proteger os

estranhos dos perigos/riscos que encontrarão nesse mesmo estaleiro/local.

28
FDUC – DOII 2017/2018

2. Quando não é suficiente informar, então o lesante ou aquele que cria o risco/perigo tem de
agir de forma direta sobre o foco de perigo, eliminando-o. Muitas vezes não são suficientes ou não

se cumprem estes deveres de prevenção avisando/instruindo, muitas vezes é necessário reagir sobre
o próprio foco de risco/perigo, eliminado esse risco/perigo.

1 - Supra dissemos que primeiro informa que está lá o veículo parado/imobilizado, mas

depois tem de retirar o veículo de lá.

2 - No caso dos estaleiros, pode acontecer que seja suficiente, em determinados meios,

conter o dístico de que é proibida a entrada, mas noutras situações é necessária fechar mesmo

o próprio estaleiro, insolando-o, evitando assim que lá entrem pessoas que estejam sujeitas

àqueles perigos/ riscos

Esta ideia encontra apoio na nossa lei civil, nomeadamente no art. 493º CC (nomeadamente
no que toca a riscos ligados a atividades, e riscos ligados à detenção de determinadas coisas), que

vem estabelecer uma presunção de culpa. A ideia de que há determinados riscos ligados à detenção
de coisas, ou há determinados perigos ligados à detenção de animais que geram responsabilidade,

salvo se o detentor ou o vigilante destas coisas ou dos animais provar que cumpriu o seu dever de
vigilância, ou seja, que tudo fez para evitar que o risco/perigo não se concretizasse num determinado

dano.
E depois também no nº2, que diz respeito a riscos ligados ao exercício de determinadas

atividades consideradas perigosas, e que geram também responsabilidade, a menos que se prive que
se tentou prevenir esses danos.

Portanto este art. 493º CC é precisamente uma consagração daquilo que nós acabámos por
referir - a ideia que muitas vezes nascem deveres de prevenção do perigo que se fundamentam na

criação/manutenção dessa fonte de perigo para terceiros. Quem cria esse perigo deve fazer tudo
para evitar que ele se concretize num determinado dano.

Fora destas situações, depois a doutrina, nomeadamente a doutrina alemã e alguma doutrina
nacional, fala também de outros casos de um nascimento de um dever de ação, cuja omissão é

geradora de responsabilidade civil:

29
FDUC – DOII 2017/2018

Fala-se naquelas situações de assunção fáctica de responsabilidade - a ideia de que, por


vezes, não é necessário um contrato para que se assuma um dever de ação. Fala-se nos casos de
assunção de um dever sem contrato, p. ex., naqueles casos em que nós aceitamos, mesmo sem

consciência de estar a emitir uma declaração negocial, ainda que tácita, cuidar de uma criança.

Ex.: um dos vizinhos vai ao supermercado, e diz para o outro: “podes ficar com o menino 10

minutos” e nós acabamos por ficar os 10 minutos com a criança - não podemos dizer que existe
aqui efetivamente a emissão de uma declaração negocial, que assumimos, mediante um contrato,

um dever de cuidado da criança. Mas durante os tais 10 minutos em que aceitamos ficar com a
criança, temos o dever de fazer de tudo para evitar que ela se venha a magoar, ou que lhe

aconteça algo de menos bom. Falamos aqui na assunção fáctica de uma responsabilidade - o que
está na base da assunção de um dever de agir (de vigiar ou de cuidar da criança) não é a lei, nem

é o contrato, mas a assunção de facto de uma responsabilidade.

Fala-se ainda naqueles casos, à semelhança do direito penal, em que o dever de agir decorre

de relações de proximidade - as relações de proximidade podem gerar deveres de solidariedade


mais intensos, de maneira a que justifiquem certos deveres de ação quando necessário.

Exemplo1: Os casos de proximidade em termos de parentesco (não estamos a falar entre

pais e filhos, porque aí o dever de ação é um dever que tem por fundamento a própria lei) - entre
namorados, entre noivos, entre marido e mulher, etc. -, em que o dever de solidariedade em caso

de necessidade de um dos membros justifica-se por essa maior relação de proximidade, familiar.
Exemplo2: Também a proximidade existente entre as chamadas comunidades de risco -

por vezes, a participação numa determinada comunidade de risco leva à assunção de certos
deveres de ação, quando um ou vários elementos participantes nessa unidade necessita de auxílio

ou de apoio - um grupo de alpinistas, perante uma determinada contrariedade da natureza,

fica cada um para com os outros, com determinados deveres de ação/auxílio/solidariedade -

o dever de agir nasce destas proximidade.

Note-se que estes são casos marginais, e o que mais nos importa, e que tem reflexos na

própria lei, é este dos deveres de prevenção do perigo.

30
FDUC – DOII 2017/2018

(2) ILICITUDE
O segundo pressuposto da responsabilidade civil é a ilicitude. Para efeitos de responsabilidade

civil, dizemos que um comportamento é ilícito em três situações:


 É ilícito quando viole direitos de outrem;

 É ilícito quando viola uma norma legal destinada a proteger direitos alheios;
 É ilícito quando configura a existência de um abuso de direito.

Assim, temos três variantes/modalidades da ilicitude:

1) Violação de um direito absoluto: estão aqui incluídos os direitos de personalidade, direitos


reais e direitos de autor. Coloca-se a questão de saber se os direitos familiares podem ter eficácia
absoluta:

ANTUNES VARELA diz que os direitos familiares patrimoniais têm eficácia externa, mas esta é uma
questão sem relevância prática; quanto aos pessoais, estes não têm eficácia externa. Por ex., se um

ex-cônjuge usar indevidamente o apelido do cônjuge, há uma violação do direito à identidade.

2) Violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios: está em causa a
“infração das leis que, embora protejam interesses particulares, não conferem aos respetivos titulares

um direito subjetivo a essa tutela”. Não há verdadeiramente um direito, mas um interesses tutelado.
São raras as disposições em que não há direito mas há interesse, mas encontramos algumas

exceções, de normas de proteção – por ex., normas penais de ordenação social ou normas de
proteção rodoviária. Também podemos ter casos de normas que protegem interesses particulares,

mas sem dar ao respetivo titular um direito subjetivo (é o que sucede no art. 1391.º).
Para que o lesado tenha direito à indemnização nestes casos, é necessário que se verifiquem três

requisitos:
1. Que a lesão dos interesses do particular corresponda à violação de uma norma legal.

2. Que a tutela dos interesses do particular figure entre os fins da norma violada.
3. Que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar.

31
FDUC – DOII 2017/2018

Assim, temos de conhecer o âmbito de proteção material (que interesses?) e pessoal (que

pessoas?) destas normas: o caso mais famoso ocorreu com uma criança que subiu a um poste de
eletricidade e ficou eletrocutada. Verificou-se que o poste não tinha a altura regulamentada: qual

o âmbito de proteção da norma que estabelece a altura mínima? É a de permitir a circulação, por
baixo dos postes, e não a de proteger as crianças.

3) Abuso do direito - art. 334.º: há abuso do direito, segundo a conceção objetivista do art.
334.º, sempre que o titular de um direito o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela

boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social desse direito.
Em sede de responsabilidade civil, é particularmente importante não tanto a violação da boa

fé (que carece de uma relação especial), mas sim as outras modalidades: violação dos bons costumes
ou do fim social do direito. Por ex., um autor quer exercer o seu direito de retirada de uma obra, não

por motivos pessoais, mas para prejudicar o editor – viola o fim social do direito de retirada.

O abuso do direito tem duas sanções:


1. Paralisação do direito: tem o direito, mas não o pode exercer.

2. Indemnização: é isto que nos interessa.

(2.1) CASOS ESPECIAIS DE ILICITUDE


Para além das diretrizes gerais da ilicitude, o Código Civil trata de forma especial alguns casos

de ilicitude:

1. Factos ofensivos do crédito ou bom nome das pessoas, art. 484.º. Independentemente da

questão de saber se existe ou não um direito subjetivo ao bom crédito, consideram-se objetivamente
ilícitas as condutas que ameacem lesá-los. Para que a afirmação ou divulgação de factos seja

considerada ilícita, é necessário que o facto não seja verdadeiro? A doutrina divide-se: para
ANTUNES VARELA, não importa que o facto seja verdadeiro ou não: basta que o facto divulgado ou

afirmado seja suscetível, nas circunstâncias do caso, de diminuir a confiança na capacidade e na

32
FDUC – DOII 2017/2018
vontade da pessoa para cumprir as suas obrigações ou de abalar o seu prestígio. Para outros autores,

se o facto for verdadeiro a sua divulgação não é ilícita.

2. Conselhos, recomendações ou informações geradoras de danos, art. 485.º. A regra é a da


irresponsabilidade pela inexatidão das informações e conselhos (n.º 1), uma vez que queremos uma
sociedade solidária, na qual as pessoas não tenham medo de se ajudar. Porém, o n.º 2 estabelece

três casos em que há responsabilidade: (1) quando se tenha assumido a responsabilidade pelos
danos; (2) quando haja o dever jurídico de os dar e se tenha agido com culpa; (3) e quando o

procedimento do agente seja criminalmente punível. Quanto ao segundo caso, importa notar que o
dever de informação é uma concretização do art. 227.º (dever de atuar de boa fé).

3. Omissões, art. 486.º. Para que uma omissão seja considerada um facto ilícito, tem de haver
o dever (imposto por lei ou negócio jurídico) de praticar o ato omitido, e este pudesse normalmente
ter evitado a verificação do dano (omissão casual). O dever imposto tanto pode resultar de uma

norma percetiva, que diretamente imponha certa ação (omissão pura), como provir indiretamente da
norma que imponha a colaboração na prevenção de certo resultado, punido ou reprovado pela lei

(comissão por omissão). Destaca-se o dever jurídico de prevenção do perigo: quem criar uma

situação especial de perigo para terceiros deve tomar todas as medidas razoavelmente exigíveis com
vista à prevenção de consumação desse risco.

(2.2) CAUSAS JUSTIFICATIVAS

Para as causas de justificação da ilicitude somos remetidos para o capítulo do exercício de


direitos, nomeadamente para as figuras da ação direta, estado de necessidade, legítima defesa e do

consentimento do ofendido. No fundo, um comportamento deixa de ser ilícito, mesmo que viole um
direito absoluto de outrem, ou uma norma legal destinada a proteger interesses alheios, quando ele

corresponda ou a um exercício de um direito, ou ao cumprimento de um dever.

1) AÇÃO DIRECTA (ART. 336.º)


A ação direta consiste no recurso à força para realizar ou assegurar o próprio direito. É uma

forma de realização da justiça característica dos sistemas primitivos, que foi gradualmente perdendo

33
FDUC – DOII 2017/2018
importância. O Código Civil admite a ação direta em termos genéricos, mas com requisitos

apertados:

 Fundamento real: tem de haver um direito próprio, um direito pessoal, que se quer realizar
ou assegurar.

 Necessidade do recurso à força ou indispensabilidade: o recurso à força tem de ser


indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, os

tribunais, para evitar a inutilização prática do direito do agente.

 Adequação: o agente não pode exceder o estritamente necessário para evitar o prejuízo. O

n.º3 do artigo 336.º concretiza dizendo que a ação direta não é lícita quando sacrifique

interesses superiores aos que procura defender.


 Podíamos referir este como um quarto requisito, mas é mera inferência ou concretização da

adequação, da proporcionalidade dos meios em relação aos fins (valor relativo dos

interesses em jogo).

O n.º2 exemplifica em que consiste este recurso à força: apropriação, destruição ou

deterioração de uma coisa ou na eliminação da resistência irregularmente oposta ao exercício do


direito, ou noutro ato análogo.

Estes requisitos são de verificação cumulativa. Na falta de verificação de um ou mais dos


requisitos elencados, a atuação do agente tem-se por ilícita. Consequentemente, terá lugar o dever

de indemnização nos termos da responsabilidade civil.


Todavia, o artigo 238.º indica que, se o titular do direito agir erroneamente supondo que os
pressupostos estão verificados, tem de indemnizar os prejuízos causados, salvo se o erro for
desculpável. Ou seja, não se verificando algum dos requisitos, e sendo o erro desculpável, também

não haverá dever de indemnizar.

34
FDUC – DOII 2017/2018

2) LEGÍTIMA DEFESA (ART. 337.º)


A legítima defesa consiste na “reação destinada a afastar a afastar a agressão atual e ilícita da

pessoa ou do património, seja do agente, seja de terceiro”. Para que um facto seja lícito ao abrigo da
legítima defesa, é necessário que se verifiquem os seguintes requisitos:

 Agressão: tem de haver uma agressão, que se traduz numa ofensa da pessoa ou dos bens de
alguém.

 Atualidade e ilicitude da agressão: só perante uma agressão presente, iminente e ilícita é


que se pode reagir em legítima defesa. A legítima defesa é uma reação no momento presente

para afastar uma agressão contrária à lei e atual. Notas:


a. A agressão não tem de ser culposa, pois a lei só exige que seja ilícita – pode, por isso,

tratar-se de um inimputável.
b. Enquanto que a ação direta é uma forma de auto-tutela, apenas serve para realizar

direito próprio, na legítima defesa podemos agir em defesa da pessoa ou património de terceiro.

 Necessidade da reação: não pode ser viável nem eficaz o recurso aos meios normais.

 Adequação: o meio usado não pode provocar um dano manifestamente superior ao que se
pretendeu afastar.
O n.º2 acrescenta que o ato considera-se igualmente justificado, ainda que haja excesso de

legítima defesa, se o excesso for devido a perturbação ou medo não culposo do agente.
Na legítima defesa, além de ser lícito o ato de quem se defende e, como tal, não se admitir a

legítima defesa do agressor, o autor é isento de responsabilidade pelos danos causados.

3) ESTADO DE NECESSIDADE (ART. 339.º)


É igualmente lícito o “ato daquele que, para remover o perigo atual de um dano manifestamente

superior, quer do agente, quer do terceiro, destrói ou danifica coisa alheia”. Por maioria de razão,
também se considera lícito o ato de quem usa coisa alheia sem autorização. O estado de

necessidade consiste, assim, na “situação de constrangimento em que age quem sacrifica coisa

alheia, com o fim de afastar o perigo atual de um prejuízo manifestamente superior”. Distingue-
se da legítima defesa na medida em que o perigo provém, não de uma agressão, mas sim de

circunstâncias externas.

35
FDUC – DOII 2017/2018

Como o perigo não provém de uma agressão prévia do lesado, e porque os interesses do titular
da coisa são legitimamente sacrificados mas em proveito de outrem, a obrigação de indemnização

dos danos causados pode não ficar excluída – o agente fica obrigado a indemnizar os danos

sempre que a situação de perigo tenha sido provocada por sua culpa exclusiva, sendo que aqui a
responsabilidade segue as regras gerais. Fora deste caso, o tribunal pode fixar uma indemnização
equitativa e condenar nela não só o agente, como aqueles que tiraram proveito do acto ou
contribuíram para o estado de necessidade.

Exemplos de casos de estado de necessidade

1. Há um incêndio numa casa e alguém invadem a casa do vizinho para chamar os


bombeiros – está
a remover o perigo atual de um dano manifestamente superior, quer do agente quer do terceiro.
2. Alguém usa o carro de terceiro com as chaves para levar alguém que se esvai em sangue

ao hospital.
3. Um cão ataca uma pessoa, que mata o cão para afastar o perigo, atuando em estado de

necessidade.
4. Para evitar o atropelamento de uma criança quando conduz, alguém conduz o carro para

cima de um muro que está ao lado da criança.

Neste último caso, quem tem o dever de indemnizar o dono do muro, os pais ou o agente?

CALVÃO DA SILVA acha que a melhor solução era levar os pais da criança, podendo, a indemnizar –
responsabilidade solidária, tendo o agente direito de regresso quanto aos pais da criança,

responsáveis por andar “à solta” Se os pais não tiverem possibilidades, pode o juiz condenar então os
dois: o agente e os pais. A nossa lei dá esta grande margem de apreciação ao julgador.

O dever de indemnizar o dono do muro nos termos da equidade por parte do lesante ou dos
pais é a regra geral. Mas imagine-se que o muro é do próprio lesante: há quem pense que nesta

situação temos uma gestão de negócios, e aplicam o regime desta para justificar a indemnização, o
dever de reparar os danos ao muro. Há divergência doutrinal quanto a se se aplicam as regras da

responsabilidade civil ou da gestão de negócios.

36
FDUC – DOII 2017/2018

A atuação em estado de necessidade é lícita, logo não pode haver legítima defesa contra a
pessoa que atua em estado de necessidade.

4) CONSENTIMENTO DO LESADO (ARTIGO 340.º)

O consentimento do lesado consiste na “aquiescência do titular do direito à prática do ato

que, sem ela, constituiria uma violação desse direito ou uma ofensa da norma tuteladora do

respetivo interesse”.
Trata-se de um consentimento autorizante.

O consentimento do lesado não exclui, porém, a ilicitude do ato, quando este for contrário a
uma proibição legal ou aos bons costumes. Para além disto, há direitos indisponíveis, que não

admitem consentimento – a doutrina é unânime no reconhecimento da indisponibilidade do bem


jurídico vida, ou seja, não podemos consentir a nossa morte (ainda que CALVÃO DA SILVA refira a

existência diariamente de uma eutanásia passiva nos hospitais, máquinas que são desligadas a
pessoas em estados vegetativos, deixando a pessoa entregue a si própria para morrer; distingue-se

da ativa, em que é dado um comprimido que provoca a morte da pessoa. É mais uma lacuna
legislativa, neste caso voluntária, do que uma proibição).

Ao lado deste consentimento autorizante legal, que não ofenda a ordem pública e os bons
costumes, há o chamado consentimento presumido (n.º3). Tem-se por existente o consentimento

do lesado nos casos em que esta se deu no interesse do lesado e de acordo com a sua vontade
presumível, ou seja, olha-se ao que a pessoa diria se esta estivesse consciente e convenientemente

informada. Esta presunção tem um campo especial de aplicação no caso das intervenções cirúrgicas
em que o doente não está em condições de dar o seu consentimento.

Finalmente, no caso de certas práticas desportivas mais violentas, como o boxe ou a Fórmula
1, ou no caso do tabaco, tem-se entendido que há uma aceitação tácita e recíproca dos riscos de

acidentes ou lesões que essas atividades envolvem. Ou seja, não pode uma pessoa a morrer de
cancro provocado pelo tabaco propor uma ação de responsabilidade civil contra a indústria

tabaqueira. Consideramos que existe aqui uma assunção ou aceitação do risco, pelo que o ato,
devidamente consentido, deixa de ser ilícito.

37
FDUC – DOII 2017/2018

(3) NEXO DE IMPUTAÇÃO DO FACTO OU AGENTE OU CULPA


Para que o facto ilícito gere responsabilidade, é necessário que o autor tenha agido com culpa.

Em primeiro lugar, temos de saber quem é imputável, ou seja, que requisitos são necessários para
que uma pessoa seja suscetível do juízo de culpa.

(3.1) IMPUTABILIDADE

Diz-se imputável a pessoa com capacidade natural de entender (capacidade intelectual) e

querer (capacidade volitiva). Assim, diz-se inimputável aquela pessoa a quem falta esta dupla
capacidade no momento da prática do facto (art. 488.º/1).
 Capacidade intelectual: é a capacidade de entender os seus atos e os efeitos dos seus atos

(em termos éticos e não jurídicos). Está em causa o discernimento ético e social.
 Capacidade volitiva: é a capacidade de autodeterminação do sujeito e de se conformar ao

entendimento face à sua atuação. Por vezes, os doentes mentais têm consciência de que não
estão a atuar corretamente mas não se conseguem autodeterminar no sentido de não praticar

o facto.

No n.º 2 do art. 488.º, a lei presume a inimputabilidade dos menores de sete anos e dos

interditos por anomalia psíquica. Para além destes, serão inimputáveis, por exemplo, os que
pratiquem o ato em estado de embriaguez completa, durante o sono, um ataque epilético, um
acesso de febre elevada, etc.

No entanto, se houver culpa do agente na colocação no estado de inimputabilidade (por ex.,


aqueles que culposamente se embriagaram ou tomaram estupefacientes), a lei trata-os como

imputáveis (art. 488.º/1, parte final).


Quando não haja imputabilidade, o lesado poderá ressarcir-se à custa da pessoa obrigada à

vigilância do agente, salvo se se verificar alguma das circunstâncias previstas no art. 491.º. No caso
em que não haja pessoas obrigadas ou se verifique uma dessas circunstâncias, a lesão fica sem

reparação – salvo quando haja responsabilidade do inimputável.

38
FDUC – DOII 2017/2018

Responsabilidade especial das pessoas inimputáveis


Naqueles casos em que não é possível obter uma indemnização das pessoas obrigadas à

vigilância do autor da lesão, o Código Civil admite que a pessoa imputável seja condenada a

indemnizar total ou parcialmente o lesado, quando razões de equidade assim o imponham (art.

489.º): o lesado ficou numa difícil situação económica, haja um grave desequilíbrio económico entre
o lesado e o autor, o montante do prejuízo é elevado, a conduta do agente é particularmente grave,
etc.

Note-se que esta não é uma responsabilidade objetiva, independente de culpa: o agente
responde nos termos em que responderia se fosse imputável e praticasse o mesmo facto. A única

diferença é que responde segundo critérios de equidade. O n.º 2 estabelece, porém, um limite a esta
responsabilidade: não pode prejudicar os alimentos do inimputável nem os deveres legais de
alimentos que recaiam sobre ele.
NOTAS:

1. É uma responsabilidade subsidiária: desde que não seja possível obter a reparação dos
vigilantes.

2. Não é uma responsabilidade absoluta, é relativa por ser segundo os critérios da equidade
(n.º 2): o juiz pode achar que é necessário proteger o lesante. O juiz pode obrigar à reparação total

ou parcialmente.
3. É preciso que o facto, analisado objetivamente, possa ser classificado como facto ilícito e

culposo se tivesse sido praticado por um imputável. Há aqui uma ficção.


4. É uma situação excecional pois o sujeito age sem culpa.

(3.2) CULPA

3.2.1. NOÇÃO

Em que consiste o nexo de imputação ou culpa? A culpa é um juízo de censurabilidade

relativo à conduta do agente, segundo o qual este poderia e deveria ter agido de forma

diferente. O sujeito é culpado porque a sua conduta é censurável. Este juízo de culpa pode revestir
duas formas: o dolo e a negligência.

39
FDUC – DOII 2017/2018

3.2.2. MODALIDADES DE CULPA


Nas modalidades da culpa, temos:

 Dolo:
 Direto;

 Necessário ou indireto;
 Eventual.

 Negligência ou mera culpa:


 Consciente;

 Inconsciente.

1) DOLO

No dolo direto, o agente quer diretamente realizar o facto ilícito, ou seja, representa o efeito
da sua conduta e quer esse efeito como fim da sua atuação, apesar de conhecer a sua ilicitude. O

agente prevê exatamente as consequências do seu ato, os danos que vão ocorrer e tem intenção de
provocar esses mesmos danos.

Exemplo: Alguém que quer provocar a morte de outrem, e desfere um tiro – tem
consciência de que, ao desferir o tiro, vai causar o dano “morte”, e tem intenção de o causar. A

ligação da vontade do agente ao resultado verificado é direta, ele provocou o dano cuja intenção
queria ter provocado.

No dolo necessário, o agente não quer diretamente o facto ilícito, mas prevê-o como uma
consequência necessária da sua conduta e nem por isso deixa de agir. O efeito ilícito e o resultado

querido estavam indissoluvelmente ligados por um nexo de causalidade.

Exemplo: A quer destruir uma coisa de B e sabe que, para tal, tem de destruir também uma
coisa de C. Existe dolo direto em relação à primeira coisa e necessário em relação à segunda.

Em termos de consequências, o dolo necessário é equiparado ao dolo direto.

Finalmente, no dolo eventual, o agente prevê o facto ilícito, não como uma consequência

necessária da sua conduta, mas como um efeito apenas possível ou eventual. Não é fácil de aferir
em concreto, sendo que o critério mais seguido pela doutrina e jurisprudência para aferir do dolo
40
FDUC – DOII 2017/2018
eventual passa pela resposta à seguinte pergunta: que teria feito o agente se previsse o facto ilícito,

não como mera consequência possível, mas como efeito necessário da sua conduta? Se tivesse
praticado o facto, temos um caso de dolo eventual.

Exemplo: ao aproximar-se de um cruzamento, e vendo pessoas e carros transitarem num

sentido diferente do seu, o condutor não abranda e segue em velocidade excessiva, não se
importando com o risco de um acidente, que vem a ocorrer. As fronteiras entre o dolo eventual e

a negligência consciente são muito ténues.

2) NEGLIGÊNCIA

Na negligência inconsciente, o autor prevê o facto ilícito como possível, mas por desleixo crê
na sua não verificação, e só por isso não toma as providências necessárias para o evitar.

Por exemplo: o condutor não diminui a velocidade antes de um cruzamento de intensa


circulação, mas por estar insensatamente persuadido que nenhum outro veículo surgirá no

momento em que passa.

Enquanto que no dolo eventual o sujeito representa a prática do facto mas mostra-se
indiferente, na negligência o sujeito sabe que vai praticar um facto ilícito mas acredita, por

imprudência, que estes não se vão realizar. No dolo eventual há uma indiferença face aos danos
(dupla negativa), na negligência inconsciente o sujeito não prevê mas deveria ter previsto.

Na negligência inconsciente, o agente não chega a prever a possibilidade de produção do


facto ilícito, por descuido, desleixo, imprudência. Está em causa o desrespeito por regras elementares

de prudência.

Exemplo: um fumador imprudente atira um cigarro fora, provocando um incêndio na casa


alheia.

Podemos achar que a negligência consciente é sempre mais grave, mas não é
necessariamente assim: VAZ SERRA previa que a inconsciente era mais grave, mas não foi esta que

vingou.

41
FDUC – DOII 2017/2018

Na negligência, existe uma ligação da pessoa com o facto menos forte que o dolo, mas
mesmo assim reprovável ou censurável.

Temos ainda a ideia de “mera culpa” e de negligência grosseira. O objetivo da figura da


“mera culpa” era abranger toda a negligência, mas é óbvio também que se tratar de negligência
grosseria ou muito grave nesse sentido, não pode caber no conceito de “mera culpa”, sobretudo se

tivermos em conta que o conceito de “mera culpa” serve muitas vezes, nomeadamente, no art. 484º
CC para reduzir o montante indemnizatório ao valor dos respetivos danos. Assim podemos utilizar o

conceito de negligência grosseira - onde se violam as regras mais elementares da


prudência/zelo/cuidado, e nesse sentido acaba por não ser tão desculpável como uma simples

distração menos grave. Tem relevo nesse sentido, embora a “mera culpa” seja a simples negligência
(em contraposição do dolo), mas se se tratar de uma negligência grosseira, muito grave, num grave

atentado às regras básicas de convivência, de facto, não podemos retirar daí as consequências que
são normalmente assacadas à ideia de “mera culpa”.

3) RELEVÂNCIA PRÁTICA

Qual é o interesse em distinguir estes graus de culpa? Há uma relevância prática:


1. Aplicação do art. 494.º: é possível uma moderação equitativa da indemnização caso haja

mera culpa do agente. A ideia subjacente é a de que, se não houve intenção de causar danos, o
lesante pode pedir ao juiz que reduza a indemnização.

2. Aplicação do art. 497.º/2, direito de regresso: havendo vários lesantes, respondem


solidariamente. Se um deles pagar, fica com o direito de regresso em relação aos restantes

responsáveis, sendo que o montante que vai exigir de cada um é em função do grau de culpa. Se
houver dois lesantes, A e B, e se A atuar com dolo direto e B com negligência, A terá de pagar mais

que B.
3. Montante indemnizatório a título de compensação pelos danos não patrimoniais: o art.

496.º/4 diz que o montante indemnizatório será fixado equitativamente, tendo em conta as
circunstâncias do art. 494.º. O juiz tem diretrizes legais: julga segundo a equidade (não há tabelas

legais), e está condicionada por três fatores: o grau de culpabilidade do agente, a situação

económica do lesante e do lesado e as demais circunstâncias do caso concreto.

42
FDUC – DOII 2017/2018

a. A causa um acidente de viação contra B, de 88 anos, e C, de 8 anos. Age com dolo direto

contra C e negligência. Mesmo que os danos sejam idênticos, os montantes indemnizatórios


podem ser diferentes. Um dos fatores que condiciona este valor é o grau de culpa: por um lado, há

uma necessidade de sancionação do comportamento, por outro, os estudos da psicologia


demonstram que se a pessoa souber que lhe estão a causar um dano de propósito, essa pessoa

sofre mais. Deve haver uma certa proporção entre o montante e o grau de culpa.
b. Mas devemos ponderar também outras circunstâncias do caso concreto: quem sofre mais

é C, que tem 8 anos, por causa da duração da lesão (este é um fator a ponderar).

Assim, regra geral a culpa não é o critério que dá a compensação do dano, a não ser no

caso dos danos não patrimoniais. Enquanto que nos danos não patrimoniais, o juiz tem de atender
a várias circunstâncias; nos danos patrimoniais, a indemnização é fixada em função do montante dos

danos. Não existe no nosso sistema a figura dos danos punitivos, que vão para além dos danos reais
e visam sancionar a conduta do agente por esta ter sido censurável. Esta questão está muito próxima

dos danos não patrimoniais: a compensação dos danos não patrimoniais não tem um valor ab initio,

é necessário atender a vários fatores; já nos danos patrimoniais, temos um valor fixo, e perguntamos
se tem sentido dar um valor extra – a resposta é não, o limite máximo da indemnização é o valor do

dano (caso contrário, teríamos um enriquecimento ilícito).


4. Também no art. 570.º CC, quando exista culpa do lesado – quando um facto culposo do

lesado também tenha concorrido para a produção do respetivo dano -, a lei manda atender não só à
culpa do lesante mas também à culpa do lesado, para saber se a indemnização deve ser totalmente

excluída, ou se deve ser apenas reduzida.

43
FDUC – DOII 2017/2018

3.2.3. PADRÃO DE CONDUTA


Principalmente no caso da negligência, que assenta na omissão de um dever de diligência, é

necessário saber qual o padrão de conduta a que se recorre, sendo que existem dois critérios
possíveis:

1. Critério de apreciação da culpa em concreto: aqui, confronta-se a conduta do agente com


a conduta que ele normalmente tem. É necessário ver se o agente se afastou da sua normalidade ou
não.

2. Critério de apreciação da culpa em abstrato: a conduta do agente é comparada com


aquela que seria adotado por uma pessoa diligente, sensata e razoável (o bom pai de família). É este
o critério legal previsto, art. 487.º/2. É um critério mais exigente que o outro. Notas:

a. Não se confunda um juízo do bom pai de família com um juízo de normalidade.


b. É um critério maleável: aprecia-se a diligência em abstrato mas nas circunstâncias do caso

concreto. Também pode ser maleável em função das circunstâncias profissionais (não se pode exigir
a um estagiário advogado o mesmo que a um advogado).

Assim, nos termos do art. 487.º/2, a culpa é apreciada pela diligência do bom pai de

família, nas circunstâncias do caso (fazer remissão recíproca para o art. 789.º/2, que diz que a
culpa é apreciada nos mesmos termos da responsabilidade extracontratual). O bom pai de família é o

homem médio do sector, da atividade em causa; sendo que é necessário ainda um enquadramento

fáctico, nas circunstâncias do caso concreto. Qual a racionalidade da adoção deste critério?

 É o único critério que impõe uma autoexigência, uma auto consciencialização, um


comportamento ajuizado por parte das pessoas – por exemplo, um médico tem de saber

quando tem de parar de operar, pela perda de faculdades que a idade acarreta.
 Para além disto, é um critério mais justo do ponto de vista da vítima: não seria justo deixar

uma vítima de um acidente sem indemnização pelo facto de o condutor ser cego.

44
FDUC – DOII 2017/2018

3.2.4. A CULPA COMO DEFICIÊNCIA DA VONTADE OU COMO CONDUTA

DEFICIENTE

Também no âmbito da negligência, podemo-nos perguntar se no âmbito da culpa entra


apenas a deficiência da vontade ou se, por outro lado, há culpa mesmo que o sujeito tenha tido

vontade de alterar a sua conduta (deficiência da conduta).


Se entendermos a culpa como deformação da vontade, basta que a pessoa, tal como é, se

esforce para cumprir. E portanto, se tal como é se esforçou para cumprir, agiu sem culpa (agiu com a
tal diligência normal que nós entendemos).

Na culpa como deficiência da conduta, já não basta que a pessoa se esforce para cumprir. É
necessário que tenha as aptidões, o bom senso e a razoabilidade do tal homem médio. Portanto não

basta que ela se esforce para cumprir, é necessário mais do que isso - é necessário que ela tenha as
aptidões para levar a cabo determinada conduta, e se não tiver essas aptidões, que em último termo

deixe de a praticar, ou seja, deixe de levar a cabo determinado ato.

Exemplo: Um médico que, depois de uma noite infernal numa urgência, pega num

automóvel e dirige-se para casa, está cansado, não tem quase capacidade para conduzir e ter a
atenção devida. E em virtude desse cansaço provoca um acidente. Ele esforçou-se para cumprir

(ele veio em esforço, a tentar manter a atenção que devia no trânsito), mas não conseguiu, e por
minutos fechou ali os olhos e embateu num peão. Este condutor agiu ou não com culpa?
Somos levados a entender que sim, ou seja, apesar de haver um esforço da vontade (ou
seja, apesar de haver um empenho ao nível da vontade), ele não tinha naquele momento a

aptidão necessária para levar a cabo aquele comportamento. Há aqui a exigência de que o próprio
lesante se auto-avalie, avalie a suas capacidades, em em última análise deixe de praticar os atos

para os quais não tem essa mesma capacidade.

Para ANTUNES VARELA, apesar de a letra da lei apontar sobretudo para o empenho da

vontade, a melhor solução e aquela que melhor se coaduna com o critério da culpa em abstrato é a
que define a mera culpa como uma conduta deficiente e não a restringe a uma simples deficiência na

vontade, pelos mesmos motivos que levam à adoção do critério da culpa em abstrato – é um critério

45
FDUC – DOII 2017/2018
mais pedagógico e mais justo do ponto de vista do lesado. Para além disto, quanto às deficiências

mais graves (como cegueira ou surdez), esta orientação terá a vantagem de levar o interessado a
coibir-se dos atos que escapam ao círculo das suas aptidões naturais.

3.2.5. PROVA DA CULPA

Sendo a culpa do lesante um elemento constitutivo do direito à indemnização, nos termos das
regras gerais incumbe ao lesado fazer a sua prova (art. 342.º/1). Isto é o que consta do art. 487.º: é

ao lesado que incumbe provar a culpa do lesante, salvo quando haja presunção de culpa. O que
nos interessa aqui é a exceção à regra geral, que consta do art. 344.º: quando haja uma presunção
legal, as regras invertem-se, ou seja, o ónus da prova inverte-se. O lesante afastará a sua

responsabilidade provando que a sua conduta foi diligente. As presunções legais de culpa são as que
constam dos arts. 491.º, 492.º, 493.º e 503.º/3.

Também quando haja uma violação de uma norma de proteção (por ex., do direito penal ou
do direito rodoviário) o juiz presume a culpa – temos uma presunção judicial de culpa. Um dos

autores que contribuiu para esta posição foi SINDE MONTEIRO, e tem a ver com a força jurídica das
normas de proteção: quando são violadas, presume-se que os interesses que esta visava proteger

não foram respeitados.

1) Art. 491.º: Responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de outra – pais, tutores,
enfermeiros, professores, etc.

Assim, no caso de danos causados por incapazes (pessoas naturalmente incapazes) a


terceiros, presume-se que houve culpa das pessoas obrigadas a vigiá-los. As pessoas vigilantes de

outrem, por lei ou contrato, por virtude da incapacidade natural das pessoas vigiadas, são
responsáveis pelos danos que os vigiados causarem a terceiros. Há aqui uma presunção legal de

culpa pois no artigo se lê "salvo se mostrarem que cumpriram o dever de vigilância ou se mostrarem
que os danos se teriam produzido à mesma". Estas são, portanto, duas formas de afastar a

responsabilidade:
1. Cumprimento do dever de vigilância – Alegando e mostrando que se cumpriu o dever de

vigilância, neste caso está a afastar-se a culpa, isto é, a ilidir-se a presunção de culpa e afasta-se

desta maneira a responsabilidade;

46
FDUC – DOII 2017/2018

2. Relevância negativa da causa virtual – Há outra forma de afastar a responsabilidade, que


é provar que ainda que tivesse cumprido o dever de vigilância, os danos teriam ocorrido. Fala-se aqui

em relevância negativa da causa virtual. A causa virtual, como o próprio nome sugere, é a causa que
levaria ao dano se ele não fosse provocado pela causa real.

NOTAS:

1. Não se podem tratar de danos causados ao próprio vigilante – aí, têm de se ir buscar as
regras gerais do art. 483.º e 489.º, não havendo qualquer inversão do ónus da prova.

2. Trata-se de uma responsabilidade por facto próprio: é o vigilante que é responsabilizado


pelos danos causados pelo vigiado, ou seja, não responde pelo facto do vigiado, mas por o vigilante
ter omitido o dever de vigiar. Apesar de serem danos causados pelo vigiado, é uma responsabilidade

por facto próprio, pela omissão do dever do vigilante – culpa in vigilando.


3. Nem todos os obrigados a vigiar estão sujeitos à presunção de culpa, mas só aqueles cujo

dever de vigilância resulta da incapacidade natural do vigiado – por excelência, a menoridade.

2) Art. 492.º: consagra uma presunção de culpa do proprietário ou possuidor de uma obra

que ruir devido a defeito de construção ou conservação (é o mais comum), que responde pelos
danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência

devida, os danos não se teriam evitado (de novo a relevância negativa da causa virtual). Novamente
temos aqui duas formas de ilidir a presunção de culpa:

1. Prova do cumprimento do dever de conservação.


2. Relevância negativa da causa virtual.

NOTAS:

1. Esta solução estende-se a outras obras, sendo consideradas como tais todas as construções
ligadas ao solo ou unidas ao prédio (muros, pontes, colunas, aquedutos, poços, canais, postes, etc.),

mas não as coisas móveis sem tal ligação (ex: vaso) nem os produtos naturais ligados ao solo (como
as árvores).

47
FDUC – DOII 2017/2018

2. Pode haver aqui lugar à responsabilidade contratual do empreiteiro por defeito nas obras
de construção e conservação, perante o dono da obra ou por danos causados a terceiro, que é uma

responsabilidade mais objetiva.


3. Se o dano for exclusivamente devido a defeito de conservação, não é o proprietário que

responde, mas sim quem tiver o dever de o conservar (por ex., o usufrutuário, art. 1472.º). Se
também houver culpa do proprietário ou possuidor, respondem ambos solidariamente.

3) Art. 493.º: consagra uma presunção de culpa no caso de danos causados por coisas,

animais ou por atividades perigosas. O n.º 1 abrange as coisas e animais e o n.º 2 o exercício de
atividades perigosas.

 N.º 1: quem tiver a seu cargo a vigilância de coisas móveis/imóveis ou de animais responde
pelos danos que estas causarem, salvo se ilidir a presunção através da prova do cumprimento ou da

relevância negativa da causa virtual. Esta também é uma responsabilidade do vigilante, distinguindo-
se do art. 491.º pois este se refere à vigilância de pessoas. Note-se que não é o proprietário que

responde, mas sim o mero detentor (que pode também ser proprietário).
São possíveis duas interpretações deste artigo: ou o legislador quis abranger qualquer dano

que surgisse pela violação da vigilância, ou quis falar de uma falta de vigilância específica. Por outras
palavras, ou está em causa o poder propriamente dito, a retenção da coisa (quem é detentor da

coisa responde pelos danos que esta causar), ou, numa interpretação mais exigente, é necessário ter
o poder sobre a coisa e o dever de a vigiar. Em bom rigor, não há grande diferença prática, uma vez

que o legislador entende que quem tem a coisa tem o dever de a vigiar; porém, por vezes quem tem
o poder material pode não ter o dever de vigilância e vice-versa.

 N.º 2: quem causar danos a outrem pelo exercício de atividades perigosas responde por eles,
salvo se mostrar que empregou todas as diligências necessárias. A exclusão da responsabilidade só

se faz pela elisão da culpa, e não pela prova da relevância negativa da causa virtual. O Código
brasileiro e italiano consagram neste âmbito uma responsabilidade objetiva pelo risco, enquanto que

o nosso se ficou pela culpa presumida, admitindo-se o afastamento da culpa pela prova do emprego
de todas as diligências necessárias. Qual é o padrão de apreciação? É à luz do padrão do homem

médio que se vai apreciar se o exercente empregou ou não todas as diligências necessárias.

48
FDUC – DOII 2017/2018

Discutiu-se durante muito tempo se este n.º 2 se aplicava ou não à condução de veículos
automóveis: os tribunais divergiam, até que houve um acórdão uniformizador da jurisprudência de

1980 que veio dizer que a responsabilidade objetiva do art. 503.º excluía a aplicação do art. 493.º.
CALVÃO DA SILVA critica esta solução: também na responsabilidade por animais há

responsabilidade objetiva do art. 502.º, mas isso não exclui a aplicação do n.º 1.

Qual o âmbito da presunção de culpa? Para a Escola de Coimbra, a presunção de culpa


apenas atinge o pressuposto da culpa; porém, para a Escola de Lisboa e por influência de
MENEZES CORDEIRO, a presunção de culpa é uma presunção genérica e ampla – de ilicitude,

culpa e nexo de causalidade. A jurisprudência tem adotado a posição de MENEZES CORDEIRO,


que argumenta que a inspiração do nosso Código foi um artigo do Código Civil francês, que

abrange também a ilicitude e o nexo de causalidade.


Porém, não parece ter sido esta a intenção do legislador, caso contrário tê-lo-ia referido

expressamente; e, por outro lado, esta é uma posição extremamente onerosa para o lesante.

3.2.6 EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE DE PRESUMIDO CULPADO POR

ALEGAÇÃO E PROVA DA CAUSA VIRTUAL


Ainda que não consigam ilidir a culpa pela prova do cumprimento, há uma segunda via de

exclusão da responsabilidade: a prova da relevância negativa da causa virtual. A causa virtual é o


facto (real ou hipotético) que tenderia a produzir certo dano, se este não fosse causado por um outro
facto (causa real).

Imaginemos que, às 3h da manhã, rui um prédio por defeito de conservação; mas às 4h,
por força de um terramoto, caem todos os prédios num raio de 4 km. Para excluir a sua

responsabilidade, o dono do prédio vai alegar a causa hipotética ou virtual: enquanto que a causa
real é a má conservação, o terramoto é apenas uma causa hipotética ou conjetural, que serve para

alegar que teriam eventualmente causados os mesmos danos. Ou seja, ainda que o proprietário
tivesse feito as obras de conservação, o prédio teria ruído na mesma. Outro caso de causa virtual

é o art. 1136.º/2.

49
FDUC – DOII 2017/2018

Até que ponto uma causa virtual pode ser admitida em geral? Em abstrato, a causa virtual pode
ter uma relevância positiva ou negativa:

1. Positiva: o autor da causa virtual responde pelo dano provocado pela causa real.
2. Negativa: a causa virtual exclui a responsabilidade do autor da causa real.

A tese maioritária é a da irrelevância, via de regra, da causa virtual, salvo quando a lei
expressamente preveja a sua relevância. Nos casos que vimos, a causa releva mas negativamente,

enquanto causa de exclusão da ilicitude – a causa só releva negativamente quando a lei


expressamente o preveja, em circunstâncias excecionais (por ex., não releva no caso do art. 493.º/2);

e positivamente também se passa o mesmo, pois seria um salto brutal admitir em geral a sua
relevância positiva.

(4) DANO

(4.1) NOÇÃO
Não há responsabilidade civil sem dano. O dano é um prejuízo que alguém sofre, na sua pessoa

e nos seus bens.


(4.2) CLASSIFICAÇÃO

1) DANO REAL E DANO DE CÁLCULO:


 O dano real tem a ver com o prejuízo considerado in natura, ou seja, o prejuízo causado

concretamente nos bens/direitos do lesado.


 Enquanto que o chamado dano de cálculo é o reflexo/as consequências produzidas no

património do lesado por esse dano real.

Exemplo: Imaginemos que um automóvel embateu num outro, partiu-lhe um farol e o para-
brisas - o dano real é a quebra do farol e a quebra do para-brisas, e o dano patrimonial refere-se às

consequências que esse dano real tem no património do respetivo lesado, ou seja, todas as despesas
que resultam do dano em prejuízo do respetivo património (a despesa que decorre do reboque do

automóvel no caso de ele não conseguir circular sozinho, a reparação - a colocação lá da chapa no
respetivo lugar e a colocação do novo vidro e farol). O dano de cálculo obtém-se através da

comparação de duas situações - uma real e outra hipotética.

50
FDUC – DOII 2017/2018

2) DANOS PESSOAIS E DANOS PATRIMONIAIS: os danos pessoais lesam a pessoa,


enquanto que os danos patrimoniais lesam o património.

3) DANO PATRIMONIAL E DANO NÃO PATRIMONIAL:


 Muitas vezes, fala-se de dano patrimonial com um sentido diferente, para abranger os

prejuízos suscetíveis de avaliação em dinheiro.


 Ao lado destes danos avaliáveis em dinheiro, temos os danos não patrimoniais, que

por atingirem bens que não integram o património do lesado (por ex., a honra), não são suscetíveis
de avaliação em dinheiro. Antes, aos danos não patrimoniais era dado o nome de danos morais,

porém esta expressão é muito restrita, abrangendo menos danos que os não patrimoniais (existem
danos patrimoniais que não derivam da ofensa à personalidade moral, como os sofrimentos físicos

ou os danos estéticos).
Durante muitos séculos, vigorou a ideia de que os danos morais não eram indemnizáveis:

posteriormente, estabeleceu-se uma compensação por estes danos, visando substituir os valores
perdidos e dando novos horizontes à vítima – o dinheiro poderia compensar os danos, mesmo não

colocando o lesado na situação que estaria sem a lesão. Dentro desta lógica, há danos diretamente
pessoais, sofridos na pessoa, mas que são indiretamente acompanhados de outros danos

patrimoniais – por exemplo, o mesmo acidente pode causar danos pessoais e patrimoniais.

4) DANOS EMERGENTES E LUCROS CESSANTES:


 Os danos emergentes compreendem os prejuízos causados nos bens ou nos direitos

já existentes na titularidade do lesado à data da lesão (podendo traduzir-se em menos ativo ou em


mais passivo);

 Os lucros cessantes abrangem os benefícios que o lesado deixou de obter por causa
do facto ilícito, mas a que ainda não tinha direito à data da lesão.

Por exemplo, num acidente com um táxi, será um dano emergente o prejuízo causado no

veículo, e lucro cessante o ganho que deixou de obter pelo facto de não ter o veículo disponível
para as viagens que deveria efetuar.

51
FDUC – DOII 2017/2018

O art. 564.º/1 diz que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado como os
benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão. A primeira parte refere-se aos

danos emergentes, e a segunda parte aos lucros cessantes ou frustrados. O n.º 2 diz que o juiz pode
atender aos danos futuros no cálculo dos danos emergentes e dos lucros cessantes, desde que
previsíveis:
1. No processo declarativo, muitas vezes consegue-se provar que há danos mas não se

consegue quantificá-los, pelo que se pode remeter para a execução da sentença o apuramento do
montante indemnizatório.

2. Ou ainda pode haver danos em curso durante o processo declarativo, que são igualmente
remetidos para a execução (podendo-se fixar uma indemnização provisória, art. 565.º, pelos danos já

causados, remetendo o apuramento da indemnização total para momento posterior).

5) DANO POSITIVO OU DANO DO CUMPRIMENTO E DANO NEGATIVO OU DANO DA


CONFIANÇA:

 A doutrina clássica diz que são apenas os danos negativos, traduzidos na violação da
confiança, que são indemnizáveis em sede de rutura injustificada das negociações; no entanto, a

doutrina moderna diz que devem ser todos os danos indemnizados. Os danos negativos são aqueles
que decorrem do facto de o lesado ter acreditado na celebração do contrato e este não se ter

celebrado;
 Enquanto que os danos positivos são aqueles que encontramos na responsabilidade

contratual e que decorrem do incumprimento ou da mora. Esta é uma distinção que interessa à
responsabilidade contratual.

(4.3) A FIGURA DOS DANOS PUNITIVOS E DA PERDA DE CHANCE OU DE

OPORTUNIDADE
1) Danos punitivos: é uma figura muito usada no direito anglo-saxónico. Prende-se com a

função da responsabilidade civil: a sua função decisiva é a função ressarcidora, de colocar o lesante
na posição em que estaria sem a lesão (art. 562.º). Mas há ainda uma função secundária, que é uma

função preventiva, punitiva, sancionatória do lesante. A responsabilidade civil exerce uma pressão

52
FDUC – DOII 2017/2018
sobre todos nós no sentido de não causar danos, sob pena de responder sobre eles. A figura dos

danos punitivos é aquela figura na qual se pode indemnizar o lesante por danos superiores aos
danos efetivamente causados, de forma a punir o lesante: está a colocar-se a tónica na punição do

lesante, obrigando-o a indemnizar danos mesmo não ocorridos ou em montante superior.

No nosso sistema, de origem romanista, não há lugar para os danos punitivos. Isto resulta
da conjugação dos seguintes argumentos:

1. A finalidade da responsabilidade civil é a da reconstituição da situação hipotética, art. 562.º,


ou seja, colocar o lesado na situação em que estaria sem a lesão. Conferir uma indemnização

superior aos danos seria enriquecer ilicitamente o lesado.


2. O art. 494.º diz que é possível o juiz fixar uma indemnização inferior ao dano causado mas

não superior. É permitido ao juiz fixar uma indemnização inferior em caso de mera culpa, mas não
uma indemnização superior em caso de dolo, pelo que são proibidos os danos punitivos.

2) Perda de chance ou perda de oportunidade: não há razão para autonomizar esta figura,
porém nos últimos anos tem sido desenvolvida em várias doutrinas, designadamente em França. Este

problema resolve-se em sede de nexo de causalidade: por ex., tomemos o caso real em que um
advogado não envia os papéis a tempo para o recurso e este é dado como deserto, e o cliente

intenta uma ação para indemnização por perda de chance. Podemos aplicar aqui o nexo de
causalidade: é necessário ver a probabilidade de ganhar o recurso. Se a doutrina fosse unânime no

sentido da solução da primeira instância, a probabilidade de ganhar seria muito baixa, ainda que haja
sempre uma probabilidade ínfima de o acórdão inverter a jurisprudência. Assim, pelo nexo de

causalidade, apenas havendo uma probabilidade ínfima de ganhar recurso, o juiz não deve conceder

a indemnização. Em suma, CALVÃO DA SILVA não vê qualquer motivo para autonomizar esta

figura e não se resolver este problema pelas regras gerais do nexo de causalidade. A teoria da
causalidade adequada implica que a probabilidade seja séria, adequada.

53
FDUC – DOII 2017/2018

(4.4) A RESPONSABILIDADE PELOS DANOS NÃO PATRIMONIAIS OU MORAIS


Tradicionalmente, é negada a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, com os seguintes

argumentos:
1. Natureza irreparável dos danos.

2. Impossibilidade de fixar, sem uma larga margem de arbítrio, a compensação. Porém, a estes
argumentos tem-se replicado com a afirmação de que a prestação pecuniária a cargo do lesante,

além de constituir uma sanção adequada, pode contribuir para atenuar e compensar os danos
sofridos pelo lesado: “entre a solução de nenhuma indemnização atribuir ao lesado, a pretexto de

que o dinheiro não consegue apagar dano, e a de se lhe conceder uma compensação, reparação ou
satisfação adequada, ainda que com certa margem de discricionariedade na sua fixação, é

incontestavelmente mais justa e criteriosa a segunda orientação".


O art. 496.º constituiu, na altura, um grande passo em frente face aos restantes Códigos,

tendo adotado no n.º 1 a indemnização dos danos não patrimoniais em geral, ao contrário dos
outros Códigos, que apenas consagravam a admissibilidade da compensação dos danos não

patrimoniais quando tal estivesse expressamente previsto na lei. Em vez de restringir a

ressarcibilidade dos danos não patrimoniais aos casos expressamente previstos na lei, o art. 496.º

consagra a sua ressarcibilidade em geral mas limitada aos danos graves. O termo “gravidade” dá

uma grande margem de discricionariedade ao juiz, que lhe permite ter em conta a nova sociedade
tecnológica, ou seja, permite uma interpretação atualista muito forte que não é possível na solução

dos outros Códigos.


NOTAS:

1. A gravidade do dano mede-se por um padrão objetivo, não relevando fatores subjetivos
(como uma hipersensibilidade).

2. Para além disto, a gravidade aprecia-se em função da tutela do direito, ou seja, o dano
deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao

lesado.

3. O montante da compensação é fixado equitativamente, remetendo o art. 496.º/3 para o


art. 494.º. O juiz deve atender, assim, ao grau de culpabilidade do lesado, à situação económica do

lesado e lesante, aos padrões de indemnização geralmente adotados na jurisprudência, etc. O facto

54
FDUC – DOII 2017/2018
de a lei mandar atender à culpa do lesante e à situação económica do lesado revela que esta

compensação tem uma natureza mista: por um lado, visa reparar os danos sofridos, por outro, tem
uma função sancionatória.

(4.4.1) INDEMNIZAÇÃO PELO FACTO DA MORTE DA VÍTIMA (ART. 496.º, N.º 2)


O n.º 2 do art. 496.º refere-se especialmente aos danos não patrimoniais provenientes da

morte da vítima, sendo que esta referência especial se justifica pela necessidade de designar o
titular do direito à indemnização. Isto porque se coloca o problema de saber se a própria perda da

vida, em si mesma considerada, conta ou não como um dano autónomo, cuja reparação confere aos
herdeiros, por sucessão mortis causa, um direito a indemnização. Este problema foi resolvido em

sentidos diferentes por dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 1969 e 1971:

1. O primeiro acórdão respondeu negativamente, negando a existência de um dano


autónomo pela perda da vida, uma vez que a lei apenas se refere expressamente aos danos sofridos

pela vítima e aos danos sofridos pelo cônjuge ou parentes. No entanto, ANTUNES VARELA
argumenta que o facto de o art. 496.º/2 reconhecer um direito próprio, por danos não patrimoniais,

ao cônjuge e parentes não exclui a possibilidade de lhes reconhecer, ao mesmo tempo, um direito à

indemnização pelos danos morais causados à vítima e de neles se incluir o dano da perda da vida.

2. O segundo acórdão respondeu positivamente, defendendo a tese de que a obrigação de


indemnização pela perda da vida nasce com a prática do facto ilícito na esfera jurídica da vida,

integrando o seu património e transmitindo-se aos herdeiros por sucessão mortis causa. No fundo,
há como que uma ficção.

 CALVÃO DA SILVA adota esta última tese, de que o direito à indemnização constitui um
direito que se transmite iure hereditario, e não um direito próprio das pessoas enumeradas no
art. 496.º/2.

 Já ANTUNES VARELA considera que este é um direito próprio do cônjuge e parentes mais
próximos da vítima, uma vez que "a morte é um dano que, pela própria natureza das coisas,

se não verifica já na esfera jurídica do seu titular". Para tal, convoca ainda os seguintes
argumentos:

 Os trabalhos preparatórios do Código revelam que o legislador quis afastar a natureza


hereditária deste direito.

55
FDUC – DOII 2017/2018
 O dano traduzido na perda de vida do lesado ocorre num momento em que, deixando

ele de existir, o direito à reparação já não se pode constituir na sua esfera jurídica.
 O facto de se atribuir como direito próprio às pessoas do art. 496.º/2 a faculdade de

exigir a reparação por um dano relativo a um bem pertencente a outra pessoa nada
tem de anómalo – basta pensar, por ex., no art. 71.º.

Em suma, na indemnização pelo facto da morte da vítima, são ressarcíveis três tipos de danos:
1. Dano da perda da vida em si. Este dano passou a ser ressarcível com o acórdão do Supremo

Tribunal de Justiça de 1971.


2. Danos não patrimoniais entre a lesão e a morte, sofridos pela vítima direta.

3. Danos não patrimoniais sofridos por alguns familiares ou outras pessoas, definidos como
titulares pelo legislador.

E quem são os titulares do direito à indemnização? No n.º 2, o legislador diz que a


indemnização cabe, em conjunto, ao cônjuge e aos filhos, ou outros descendentes; na falta destes,

aos pais e outros ascendentes; e, na falta de uns e outros; aos irmãos e sobrinhos com direito de
representação. O n.º 3 veio acrescentar os unidos de facto.

(5) NEXO DE CAUSALIDADE

O Código Civil não se refere expressamente a este problema, salvo no art. 563.º (relativo à
obrigação de indemnização), onde se diz que a obrigação de indemnização só existe em relação aos

danos que o lesado provavelmente não teria sofrido. Esta é a palavra-chave: o nexo de causalidade

implica um juízo de probabilidade.

(5.1.) TEORIA DA CONDITIO SINE QUA NON


Mas como é que a doutrina tem tentado colocar o problema? Num primeiro momento, a
doutrina que se impôs foi a doutrina da conditio sine qua non. Esta doutrina veio dizer que nem

todas as circunstâncias que interferem no respetivo processo causal são causas do resultado; dentro
do processo causal, são causas todas as condições sem as quais o resultado não se teria produzido.

Porém, rapidamente esta doutrina começou a ser criticada por conduzir a resultados que
repugnam ao sentimento comum de justiça.

56
FDUC – DOII 2017/2018

Imaginemos que A tem um acidente, é levado para o hospital, tem de levar uma transfusão

sanguínea com sangue infetado com SIDA e morre.

Se apenas se aceitasse a teoria da condição sine qua non, teríamos aqui uma responsabilidade
conjunta de inúmeros agentes – da pessoa que causou o acidente, da pessoa que levou A para o

hospital, da pessoa que fez a transfusão sanguínea, etc.


Assim, podemos aceitar a teoria da conditio sine qua non como primeiro patamar do nexo de

causalidade, tendo entretanto surgido teorias mais seletivas para dar resposta ao problema da
causalidade. Ainda hoje, em França, é seguida a doutrina da condição sine qua non, pois esta dá

responsáveis vários, em regime de solidariedade, em relação à vítima, que depois se devem entender
em sede de ação de regresso.

(5.2) TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA

Assim, tornou-se necessário apurar melhor, no processo causal, onde se deve localizar o
verdadeiro causador do dano. Partindo da teoria da condição sine qua non como ponto de partida,

surgiu a doutrina da causalidade adequada: não basta que o facto praticado pelo agente tenha
sido, no caso concreto, condição do dano; é ainda necessário que, em abstrato o facto seja uma

causa adequada do dano.


Que o facto seja condição sine qua non do dano é necessário, mas não suficiente. É necessário

fazer um juízo abstrato, o que significa que se devem tomar em consideração as circunstâncias
cognoscíveis à data do facto por um observador experiente, mais as circunstâncias efetivamente

conhecidas do lesante.
NOTAS:

1. Para que haja causa adequada, não é necessário que o facto, só por si, sem a colaboração
de outros, tenha produzido o dano. Nada obsta a que o facto seja apenas uma das condições do

dano.
2. Para que um dano seja considerado como efeito adequado de certo facto não é necessário

que ele seja previsível para o autor desse facto, basta que seja objetivamente adequada.

57
FDUC – DOII 2017/2018

3. A causalidade adequada não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas


ao processo factual que, em concreto, conduziu ao dano. O processo causal pode ser interrompido

por um facto de terceiro ou por uma circunstância exterior.

Existe uma formulação positiva e negativa da causalidade adequada, partindo ambas da


mesma premissa, mas distinguindo-se a nível do ónus da prova:

1. Formulação positiva: o facto é causa adequada do dano sempre que constitua uma
consequência normal ou típica deste. Assim, segundo esta formulação, é necessário provar a conditio
sine qua non mais a causa adequada, em abstrato, em geral, do dano; logo é o lesado, que invoca o

direito à indemnização, que tem de fazer a prova de que o facto do agente é condição sine qua non
e causa adequada do seu dano, em geral e em abstrato.

2. Formulação negativa: o facto que atuou como condição do dano só deixa de ser
considerado como causa adequada se se mostrar indiferente para a verificação do dano, ou seja, se o
tiver provocado por virtude de circunstâncias excecionais ou anómalas. A conditio sine qua non tem

de ser provada pelo lesado, mas presume-se causa adequada do dano, pelo que se inverte o ónus da

prova, cabendo ao lesante provar a não adequação. Vale dizer que cabe ao lesante provar que o
dano se deve a circunstâncias extraordinárias, anormais, excecionais, ou seja, que no caso concreto

aquele dano foi anormalmente causado por ele. Esta é uma posição mais favorável ao lesado.

Qual é a formulação mais aceitável? CALVÃO DA SILVA defende a formulação negativa,


quer na responsabilidade por factos ilícitos, quer na responsabilidade pelo risco, uma vez que é mais
adequada à proteção da vítima. Já ANTUNES VARELA defende a teoria negativa mas apenas para a

responsabilidade por factos ilícitos:


1. Na responsabilidade por factos lícitos, o autor defende que um facto só deve ser

considerado causa dos danos que constituam uma consequência típica dele; todos os outros devem
ser suportados pelo titular dos interesses afetados.

2. Na responsabilidade por factos ilícitos, já se compreende a adoção da formulação


negativa, uma vez que, estando em causa um facto ilícito e culposo do agente, o prejuízo deve recair

sobre este.

58
FDUC – DOII 2017/2018

O facto ilícito só deixará de ser considerado causa adequada quando tenham concorrido
decisivamente circunstâncias extraordinárias, fortuitas e excecionais.

O art. 563.º, apesar de não ser claro, consagra a teoria da causalidade adequada, o que
resulta também dos trabalhos preparatórios do Código. Quanto à opção por uma das formulações,

não faz qualquer referencia, pelo que é deixada margem ao intérprete – sendo a doutrina mais
defensável a da formulação negativa, “será essa a posição que, em princípio, deve reputar-se

adotada no nosso direito constituído”.

(5.3) REFERÊNCIA À TEORIA DO FIM DA NORMA


A doutrina da causalidade adequada foi desenvolvida pelos autores alemães. Porém,

recentemente tem sido posto em causa na doutrina alemã, por autores que defendem a teoria do

fim da norma na responsabilidade por factos ilícitos. Segundo esta teoria, se o dano se subsume no

fim da norma, no seu âmbito de proteção, esse dano deve ser indemnizado. A doutrina alemã
moderna tem transferido o fim da norma para a causalidade adequada, defendendo que o fim da

norma responde melhor.

ANTUNES VARELA diz que uma coisa não impede a outra: se o dano se subsume no fim da

norma, é ilícito, mas ainda assim o facto ilícito pode não ser adequado a produzir o dano . Por
outro lado, em certos casos não se torna necessário recorrer à teoria do fim da norma para delimitar
a responsabilidade do agente, pois esta falha logo no requisito da ilicitude – por exemplo, na

segunda modalidade da ilicitude, se o dano não cair no âmbito da disposição legal, o facto não é
ilícito. O fim da norma não prescinde do apuramento do nexo da causalidade. O art. 483.º é claro na

distinção: fala do dano resultante, logo há necessidade de apurar se o dano resultante foi causado
adequadamente pelo autor.

59
FDUC – DOII 2017/2018

2. EFEITOS: A OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO


2.1 NOÇÃO E FUNÇÃO

A obrigação de indemnização aparece tratada, no nosso Código, como modalidade autónoma


das obrigações, (art. 562.º e segs.), e portanto comum à responsabilidade contratual e

extracontratual.

A obrigação de indemnização tem como função principal, nos termos do art. 562.º, a

reconstituição da situação que existiria se o facto não tivesse sido praticado (situação hipotética

atual). Deve abranger todos os danos, e só esses, de que o facto foi causa adequada (art. 563.º).

Assim, a indemnização tem uma função essencialmente ressarcidora, e não sancionatória ou


preventiva – esta função surge apenas indiretamente, de forma secundária (não existem danos

punitivos).

2.2 MODALIDADES DE INDEMNIZAÇÃO: REGRA DO RESSARCIMENTO NATURAL E


EXCEÇÃO DA INDEMNIZAÇÃO EM DINHEIRO

A questão que se coloca é: como se procede à reparação dos danos? O art. 566.º/1 dá-nos a

resposta a contrario: em princípio, deve reparar-se os danos mediante reconstituição natural,


apesar de o lesado poder preferir em muitos casos a indemnização em dinheiro. Assim, a lei prefere

a remoção direta do dano real à custa do responsável, pois este será o meio mais eficaz de garantir o
interessa da integridade das pessoas, dos bens, ou dos direitos sobre estes. Assim, se o dano consistir

em estragos provocados a um veículo, haverá que proceder ao seu conserto.


Porém, nem sempre o recurso à reconstituição natural é viável, casos em que se deve fixar a

indemnização em dinheiro (art. 566.º/1). São estes:


1. Impossibilidade ou insuficiência: há situações em que a reconstituição natural é impossível

ou é insuficiente para cobrir todos os danos. A impossibilidade de reconstituição pode ser material
(por ex., morte da pessoa ou destruição de coisa infungível) ou jurídica (por ex., alienação

consecutiva do mesmo imóvel a duas pessoas, a última das quais registou a aquisição a seu favor). Já
a insuficiência dá-se quando a reconstituição não cobre todos os danos (por ex., naquele caso do

veículo, a reparação não cobre o dano da privação do seu uso durante o período do conserto), ou

60
FDUC – DOII 2017/2018
ainda quando não abrange todos os aspetos em que o dano se desdobra (por ex., o tratamento

clínico do atropelamento não compensa as dores físicas que teve).


2. Natureza do dano: para além dos casos de impossibilidade ou insuficiência da

reconstituição natural, esta pode não ser possível por força da natureza do dano (danos não
patrimoniais). Aqui, nem sequer falamos numa indemnização, mas sim em compensação.

3. Excessivamente onerosa para o devedor: finalmente, no caso da responsabilidade


contratual, a reconstituição natural é substituída pela indemnização em dinheiro quando aquela for

excessivamente onerosa para o devedor.

2.3 CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO EM DINHEIRO


 TEORIA DA DIFERENÇA

Segundo a teoria da diferença, a indemnização deve corresponder à diferença entre a situação


real em que o facto deixou o lesado e a situação hipotética em que ele se encontraria sem o dano

sofrido. É isto que decorre expressamente do art. 566.º/2. Na determinação desta diferença, deve-se
ter em conta não só os danos emergentes, mas também os lucros cessantes (art. 564.º/1).

NOTAS:

1. Como já vimos, no cálculo da indemnização o legislador manda atender aos danos futuros
(art. 564.º/2), desde que previsíveis. A fixação do montante destes danos, assim como dos danos

presentes mais ainda não determináveis, é remetida para a execução da sentença (art. 564.º/2).
2. Por outro lado, o art. 569.º não só dispensa o autor da ação de indemnização de indicar na

petição o montante exato do valor dos danos, como também lhe permite reclamar indemnização
mais elevada, sempre que se venham a revelar danos maiores do que os inicialmente previstos.

3. Uma outra possibilidade é a fixação de uma indemnização provisória (art. 565.º).


4. Quando sejam determinados os danos a indemnizar, mas não seja possível a fixação do seu
montante (por ex., não se consegue prever qual será a diminuição da capacidade profissional da

vítima do acidente), o art. 566.º/3 manda que o tribunal julgue segundo critérios de equidade,
dentro dos limites provados (se os houver).

61
FDUC – DOII 2017/2018
Porém, a teoria da diferença é um critério subsidiário, como o indica expressamente o artigo
("sem prejuízo do preceituado noutras disposições"). De entre as ressalvas ao critério da teoria da

diferença, destacam-se três:

1. Graduação da indemnização quando haja mera culpa do lesante: segundo o art. 494.º, o
tribunal pode fixar uma indemnização inferior ao valor do dano quando haja mera culpa do lesante,

atendendo ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica do lesante e do lesado, etc.


Como vimos, para ANTUNES VARELA esta solução apenas vale para os casos de responsabilidade

extracontratual e responsabilidade pelo risco, não se aplicando à responsabilidade contratual devido


às legítimas expectativas do contraente lesado.

2. Exclusão ou limitação convencional da responsabilidade: no âmbito da


responsabilidade contratual, as partes podem fixar por acordo o montante de indemnização exigível

pelo credor (cláusula penal, art. 810.º). Apesar de nada se dizer quando à exclusão da
responsabilidade, nada impede que as partes fixem um montante pequeno para a indemnização ou

que excluam do seu cálculo determinadas categorias de prejuízos. Para além desta possibilidade,
existem disposições legais que excluem ou limitam a responsabilidade de alguns contraentes, pela

natureza especial do contrato (na doação, art. 956.º e 957.º, e no comodato, art. 1134.º). Na
responsabilidade extracontratual, também nada impede que os interessados limitem ou excluam a

responsabilidade quando os danos resultem de negligência, dentro dos limites da lei (arts. 280.º/2,

504.º/3, 800.º/2, in fine). Na prática, porém, isto raramente sucede.

3. Culpa do próprio lesado: quando o facto do próprio lesado tenha contribuído para a
produção ou agravamento do dano, a indemnização pode ser reduzida ou mesmo excluída (art.

570.º).

62
FDUC – DOII 2017/2018

 COMPENSATIO LUCRI COM DAMNO


O art. 568.º refere que, quando a indemnização resulte da perda de qualquer coisa ou direito, o
responsável por exigir que o lesado lhe ceda os seus direitos contra terceiros. Isto sucede, por

exemplo, no caso das seguradoras que pagam a indemnização que o lesante deve ao lesado: por lei,
estas têm o direito de se sub-rogar ao lesado no direito à indemnização, isto é, exigir ao lesado que

lhes ceda os seus direitos contra terceiros.


Porém, deste artigo resulta ainda a ideia da compensatio lucri com damno, ou compensação do

lucro com o dano: quando o facto determinante da responsabilidade, ao mesmo tempo que causa
um dano, proporciona ao lesado a aquisição de uma vantagem, terá de se deduzir o valor desta ao

montante da indemnização. Ao montante dos danos desconta-se o montante dos lucros, pois só
assim se cumpre o disposto no art. 566.º (confronto entre a situação real patrimonial do lesado e

aquele que ele estaria se não fosse a lesão). Para além disto, a função da indemnização é a de
reparar danos, não podendo ser uma fonte de enriquecimento sem fundamento.

Por ex.: uma pessoa sofre um acidente de viação e fica internada duas semanas no hospital – é
necessário deduzir ao montante dos danos o dinheiro que gastaria em comida se não tivesse no

hospital. Note-se que, para que esta dedução se posse fazer, é necessário que entre o facto danoso
e a vantagem obtida para o lesado haja um verdadeiro nexo de causalidade e não uma simples

coincidência acidental, fortuita ou causal.

 A AUTO-RESPONSABILIDADE DO LESADO E O DEVER DE MINORAÇÃO DO ANO: A

INTERPRETAÇÃO ATUALISTA DO ART. 570.º


Como vimos, pode suceder que o lesado contribua para a produção ou atenuação do dano, caso
em que a lei permite uma ponderação entre a responsabilidade do lesante e a auto-responsabilidade

do lesado. Esta ponderação pode levar à manutenção da indemnização, à sua redução, ou mesmo à
sua exclusão, de acordo com a gravidade das culpas de ambas as partes e as consequências que

delas resultaram.
O art. 570.º/2 consagra uma regra excecional para quando haja uma presunção de culpa do

lesante: se a responsabilidade do lesante se basear numa presunção de culpa, provando-se a culpa

63
FDUC – DOII 2017/2018
do lesado, exclui-se o direito de indemnizar. Porquê? O legislador pensa que, havendo presunção de

culpa, isto não significa que o lesante tenha mesmo culpa, mas que não conseguiu afastar a
presunção. No fundo, temos dúvidas quanto à culpa do lesante; em contrapartida, temos da parte do

lesado uma atuação culposa.


Perante estas duas situações, prefere excluir a indemnização: há uma ponderação entre a

inexistência ou suspeita de culpa e a culpa efetiva do lesado.


 Segundo CALVÃO DA SILVA, temos de proceder aqui a uma interpretação atualista, mais

extensiva, para admitir não só o concurso da culpa do lesado com a presunção de culpa do lesante,
como o concurso da culpa do lesado com o risco do lesante. Em que termos? Através do nexo de

causalidade: se se provar que o nexo de causalidade existe também na responsabilidade do próprio


lesado, esta cocausalidade justifica a aplicação deste artigo.

 CALVÃO DA SILVA lê o artigo desta forma: a culpa do lesado exclui o direito de indemnizar
se a culpa do lesado for causa exclusiva do dano; ou, se for um dolo um culpa grave, por causa do

grau de elevada censurabilidade. Se se provar que a causa do dano é exclusivamente imputada ao


lesado, exclui-se a indemnização, seja por culpa presumida ou pelo risco.

Assim, temos:

1. Se o lesado atuar com dolo, mesmo que haja um caso de culpa presumida, percebe-se que
o juiz na ponderação entre um dolo e uma culpa presumida exclua o dever de indemnizar.

2. Isto também deve acontecer quando o dano for exclusivamente causado pelo lesado.

Desta lógica podemos retirar um grande princípio: o próprio lesado deve comportar-se em
termos de não agravar o dano e até de o diminuir, dentro da razoabilidade. A sua

autorresponsabilidade não diminui depois de o lesante lhe causar o dano, podendo ser
responsabilizado por não ter atuado, como devia, para atenuar ou minorar o dano.

Note-se que a doutrina da culpa do lesado vale ainda, por força do disposto no art. 571.º, para a
hipótese de a conduta culposa provir dos seus representantes legais ou das pessoas que quem ele se

tenha utilizado.

64
FDUC – DOII 2017/2018

2.4 SOLIDARIEDADE

Na produção do mesmo dano podem comparticipar, de múltiplas formas, várias pessoas. Esta
comparticipação pode assumir várias formas:

1. Em relação à mesma causa: podemos ter vários autores, instigadores ou auxiliares da


mesma causa do dano. O art. 490.º consagra a sua responsabilidade solidária.

2. Concorrência de duas ou mais causas: pode ocorrer a convergência de várias causas na


direção do mesmo dano. Podemos ter vários tipos de concurso de causas:

 Causas subsequentes: o facto praticado por uma pessoa é causa adequada do facto
praticado por outra (ex: o depositário deixa a coisa abandonada num local que propicia

o furto cometido por outro indivíduo).


 Causas complementares: as causas são complementares entre si mas sem qualquer

nexo de causalidade entre elas (ex: A embate numa casa, deixando-a em estado
precário, e logo a seguir B também embate nela, deitando-a abaixo).

 Causas cumulativas: os factos praticados não necessitam de se somar, visto qualquer


deles sozinho ser suficiente para causar o dano, mas ambos intervieram (ex: A e B, sem

prévia combinação entre si, deitam veneno na bebida de C, sendo qualquer das doses
de eficácia mortal).
 Simples coincidência: o dano pode produzir-se numa zona simultaneamente coberta
pela sanção contra o facto ilícito de uma pessoa e pelo risco a cargo de outra (ex: um

trabalhador é atropelado culposamente por terceiro no local onde trabalhava).

Em qualquer destes casos, qualquer dos responsáveis é obrigado a reparar todo o dano, em
regime de solidariedade, art. 497.º/1.

2.5 PRESCRIÇÃO DO DIREITO À INDEMNIZAÇÃO

Sem prejuízo do prazo de 20 anos correspondente à prescrição ordinária (contado sobre a

data do facto ilícito, art. 498.º/1 in fine e 309.º), o direito à indemnização fundada na

responsabilidade extracontratual prescreve no prazo de 3 anos a contar da data em que o lesado

65
FDUC – DOII 2017/2018
teve conhecimento do direito que lhe compete, art. 498.º/1. Este prazo conta-se a partir da data em

que o lesado, conhecendo a verificação dos pressupostos que condicionam a responsabilidade,


soube ter direito à indemnização pelos danos que sofreu.

Em relação ao início da contagem do prazo, colocam-se alguns problemas relativamente à


segunda parte do artigo ("embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão

integral dos danos"):


1. O início do prazo é independente do conhecimento da extensão integral dos danos, pela

possibilidade de o lesado formular um pedido genérico de indemnização.


2. O início da contagem do prazo é ainda independente do conhecimento da pessoa do

responsável.
Porém, este preceito tem de ser entendido em termos hábeis: o prazo de prescrição pode

acabar sem o lesado conhecer a pessoa do responsável, pelo que, para colmatar esta falha do

legislador, vamos buscar o art. 321.º, sendo que o prazo de prescrição se suspende três meses antes
de findar.

NOTAS:

1. Se o facto ilícito constituir crime, e o respetivo procedimento penal estiver sujeito a um


prazo mais longo do que o fixado no Código Civil, o prazo de prescrição é o fixado pela lei penal.

Porém, se o facto criminoso tiver sido praticado pelo comissário, o prazo alargado não é aplicável ao
comitente, apesar do regime de solidariedade que une as duas obrigações (art. 497.º/1), pelo

carácter pessoal do facto criminoso.


2. A prescrição do direito à indemnização pelo dano causado contra a propriedade não

implica a prescrição da ação de reivindicação ou do enriquecimento sem causa (art. 498.º/4).


3. O prazo do art. 498.º vale apenas para a responsabilidade extracontratual.

66
FDUC – DOII 2017/2018

III. RESPONSABILIDADE OBJETIVA

1. NOÇÃO E RAZÃO DE SER


A tendência geral dos autores é a de filiar a responsabilidade civil no pressuposto da culpa do

lesante, uma vez que não seria justo a solução de obrigar as pessoas a responder perante outrem
por atos de que não são culpadas. Porém, a teoria da culpa nem sempre conduziu aos melhores

resultados: há certos setores em que as necessidades sociais de segurança se sobrepõem às

considerações de justiça. A responsabilidade objetiva surgiu, pela primeira vez, no domínio dos

acidentes de trabalho, durante a primeira revolução industrial inglesa: o recurso mais frequente à

máquina aumentou o número e a gravidade dos riscos de acidente a que os operários estavam
sujeitos; ao mesmo tempo, a diferença de poder económico entre a entidade patronal e os

trabalhadores tornou mais difícil a estes exigir uma indemnização, por não lhes ser cómodo
demandar o empresário nem fácil fazer a prova da culpa.

Numa primeira fase, tentou-se resolver o problema através de uma presunção de culpa da
entidade patronal – no entanto, esta presunção era facilmente ilidível. O problema era outro: a

utilização de máquinas envolve riscos inevitáveis de acidentes que, mesmo não sendo imputáveis a
culpa da entidade patronal, se considera justo que sejam suportado por ela.

Surgiu, assim, a teoria do risco: quem cria ou mantém um risco em proveito próprio deve

suportar as consequências prejudiciais dessa atividade, já que colheu dela o principal benefício.
Por outro lado, a imposição desta responsabilidade constitui um estímulo eficaz ao aperfeiçoamento

das empresas no sentido de diminuir os acidentes de trabalho, bem como a segurar os empregados
contra os acidentes.

O segundo sector onde se desenvolveu a responsabilidade objetiva foi nos acidentes de


viação, que levou ao aparecimento do seguro automóvel obrigatório.
A partir da evolução registada nestes dois sectores, muitos autores se pronunciaram no
sentido da ampliação da responsabilidade objetiva a outras atividades consideradas perigosas,

igualmente com base no critério de justiça distributiva (ubi commoda, ibi incommoda). Hoje, assiste-
se mesmo a uma certa tendência de socialização do risco, ou seja, assegurar a indemnização ao

67
FDUC – DOII 2017/2018
lesado não só quando o acidente seja devido a circunstâncias de força maior, mas também quando o

responsável seja desconhecido ou não tenha meios para cobrir a sua responsabilidade.
Isto não significou, porém, um abandono da tese da responsabilidade subjetiva, que continua a ser a

regra.

Assim, a responsabilidade objetiva é excecional, só existindo nos casos expressamente

previstos na lei (art. 483.º/2). Esta excecionalidade deriva não só de a responsabilidade objetiva
prescindir da culpa, como também da ilicitude.

2. CASOS DE RESPONSABILIDADE OBJETIVA PREVISTOS NO CÓDIGO CIVIL

O nosso Código Civil regula alguns casos de responsabilidade objetiva, para além de outros
regulados em leis avulsas.

A responsabilidade objetiva está regulada nos arts. 499.º e segs. A regra é a de que à
responsabilidade por risco se aplicam as regras da responsabilidade por factos ilícitos, ou seja,

onde não haja uma regra especial, vamos buscar as regras gerais. Mas isto apenas na parte

aplicável: tudo aquilo que tenha a ver com a culpa não se aplica, logicamente, pois se prescinde da

culpa. Por outro lado, nenhum caso de responsabilidade objetiva criado por lei, nas normas que a
prevêem, regula a causalidade, logo vamos buscar o regime da causalidade à responsabilidade

subjetiva.

2.1 RESPONSABILIDADE DO COMITENTE


 NOÇÃO E FUNÇÃO

O comissário é aquele que está ao serviço de outrem e atua sob direção e controlo do comitente.
O comitente que encarrega outrem de certo serviço (comissão) responde pelos danos que o

comissário causa, desde que sobre ele incida também o dever de indemnizar (desde que haja culpa

do comissário). A responsabilidade do comitente pelos atos culposos do comissário é uma

responsabilidade por facto próprio do comitente, uma vez que responde independentemente de

culpa. E é uma responsabilidade por facto próprio independentemente de culpa própria: aliás, como

é que o comitente pode ter culpa num ato que não é seu? O comitente pode ter culpa na escolha

do comissário (culpa in eligendo), nas instruções (culpa in instruendo) ou na vigilância (culpa in

vigilando) – esta é uma responsabilidade subjetiva.

68
FDUC – DOII 2017/2018

Mas o que a lei quis não foi isto: mesmo que tenha havido boa escolha, instruções e vigilância do
comitente, a lei quer que o comitente responda. Porquê? No fundo, o comissário é o seu ajudante, o

comitente tem no comissário uma longa manus; e, se dos atos do comissário retira benefícios
enormes, deve suportar os inconvenientes que daí advenham. Por isso, o comitente deve responder

pelos danos que causar o comissário, por forma a evitar que a vítima fique sem indemnização –
geralmente, o comissário terá menos possibilidades económicas, será um mero trabalhador.

Quais são, assim, os fundamentos da responsabilidade do comitente?


1. PROTEÇÃO DO LESADO: pode intentar a ação contra quem oferecer maior estabilidade

económica, maior garantia económica. Há uma ampliação ao nível dos sujeitos contra quem se
intenta a ação.

2. Observação segundo a qual normalmente os danos causados por funcionários ocorrerem em


virtude de instruções incorretas ou de vigilância incorreta. Há aqui uma suspeita de que houve uma

atuação incorreta do comitente.

Apesar de a culpa não ser requisito da responsabilidade, pode ter influência no seu regime:
1. Se houver culpa, tanto do comitente (culpa na escolha, instruções ou vigilância), como do

comissário, qualquer um deles responde solidariamente perante o lesado (este pode exigir a
indemnização a qualquer um deles), sendo que o encargo da indemnização será depois repartido

entre eles na proporção das respetivas culpas (art. 497.º/2, por remissão do art. 500.º/3).
2. Havendo apenas culpa do comitente, apenas ele será obrigado a indemnizar, nos termos

da responsabilidade por factos ilícitos.


3. Havendo apenas culpa do comissário, o comitente que houver pago pode exigir dele a

restituição de tudo quanto pagou (art. 500.º/3).

Assim, o comitente responde a título de garantia: se o comissário não pagar, o comitente

entra subsidiariamente a responder pelos danos; se for o comissário a pagar, depois poderá

exigir o reembolso nas relações internas. Para CALVÃO DA SILVA, aqui a palavra "reembolso" é

mais correta que "regresso" (art. 497.º/2), pois não temos aqui em rigor uma responsabilidade

69
FDUC – DOII 2017/2018
solidária, mas sim uma garantia. No caso de haver somente culpa do comissário, o que há
verdadeiramente é uma subrogação: o comitente paga em vez do comissário.

 PRESSUPOSTOS

1) EXISTÊNCIA DE UMA RELAÇÃO DE COMISSÃO: para que haja responsabilidade objetiva do

comitente, é necessário que haja comissão (ART. 500.º/1). O termo comissão tem aqui um sentido
amplo de serviço ou atividade realizada por conta e sob a direção de outrem, podendo traduzir-se
num ato isolado ou numa função duradoura, ter carácter gratuito ou oneroso, etc. Tem de haver uma
relação de dependência entre comitente e comissário, que autorize aquele a dar ordens e instruções

a este.
2) PRÁTICA DO FACTO NO ÂMBITO DAS SUAS FUNÇÕES: o comissário tem de ter agido no

exercício das suas funções e por causa delas, ou seja, não basta um nexo de mera ocasionalidade
entre a relação da comissão e a prática do facto, mesmo que o comissário aja dolosamente ou contra
as instruções do comitente.

1. Exemplo: A, dono de uma empresa, encarrega o motorista B de levar mercadorias a Paris. A


empresa indica um itinerário, mas B desvia-se para ir visitar a sua família e tem um acidente. Os

danos não são provocados por causa da função e no exercício da função.

2. Outro exemplo: um funcionário do balcão de um banco desvia dinheiro das contas. O


banco deverá repor o dinheiro nas contas? Não se pode dizer que o ato de desvio foi integrado no

âmbito das funções, porém temos aqui um quadro formal de aparência eficaz: as pessoas podem
confiar legitimamente que o funcionário ao balcão do banco irá depositar o dinheiro e não desviá-lo.

A aparência eficaz deve ser tutelada, pelo que haverá responsabilidade do comitente. Ficam
abrangidos os atos que estão ligados à função por um nexo meramente instrumental, que

constituam um abuso de funções, desde que compreendidos nos poderes do comissário.

70
FDUC – DOII 2017/2018

3) RESPONSABILIDADE DO COMISSÁRIO: têm de se verificar os pressupostos da

responsabilidade civil em relação ao comissário (art. 500.º/1, parte final). Assim, é necessário que

haja culpa do comissário. A consequência é que o comitente vai pagar e se o fizer pode exigir ao
comissário tudo quanto haja pago, exceto se também houver culpa sua.

2.2 RESPONSABILIDADE DO ESTADO E DEMAIS ENTIDADES COLETIVAS PÚBLICAS

POR ATOS DE GESTÃO PRIVADA

Nos termos do art. 501.º, é aplicável ao Estado e às restantes pessoas coletivas públicas,

quanto aos danos causados pelos seus órgãos, agentes ou representantes no exercício de

atividades de gestão privada, o regime do art. 500.º. Isto significa que:


1. O Estado e demais pessoas coletivas públicas respondem perante o terceiro lesado,
independentemente de culpa, desde que os seus órgãos, agentes ou representantes tenham

incorrido em responsabilidade.
2. Gozam do direito ao reembolso de tudo quanto tiverem pago, exceto se também houver

culpa da sua parte. Esta exceção só tem sentido em relação aos atos praticados por agentes ou
representantes, pois aí é concebível a existência de culpa por parte dos órgãos que lhes confiaram a

incumbência e que representaram a vontade da pessoa coletiva.

 Os atos de gestão privada são aqueles atos em que o Estado ou a pessoa coletiva pública

intervém como um simples particular, despido do seu poder de autoridade, e que estão
sujeitos às mesmas regras que estariam se fossem praticados por particulares.

 Já os atos de gestão pública são os que, visando a satisfação de interesses coletivos, realizam
fins específicos do Estado e assentam mais das vezes sobre o ius imperium.

71
FDUC – DOII 2017/2018

2.3 RESPONSABILIDADE POR ATOS DOS ANIMAIS


O art. 502.º consagra uma responsabilidade objetiva pelos danos causados pelos animais.

Vimos que existia igualmente uma responsabilidade subjetiva agravada por danos causados por

animais (art. 493.º): como se explica esta diversidade de regime? O art. 493.º refere-se às pessoas

que assumiram o encargo da vigilância dos animais, enquanto que o art. 502.º é aplicável

aqueles que utilizam os animais no seu próprio interesses. É em relação a estas pessoas que tem

cabimento a teoria do risco: quem utiliza em seu proveito animais, que são uma fonte de perigos,
tem de suportar as consequências do risco especial que acarreta a sua utilização.

Normalmente, esta responsabilidade atinge o proprietário ou aquele que, como o usufrutário,


tenha um direito real de gozo sobre o animal. Porém, podemos ter outras hipóteses:

1. O dono do animal empresta-o a alguém: usando o comodatário o animal em proveito


próprio, é justo que responda pelos danos que a utilização do animal venha a causar.

2. O dono do animal pede a alguém para o guardar: esta pessoa já não responderá.
3. O animal é alugado: a sua utilização passa a fazer-se no interesse quer do locador, quer do

locatário, pelo que serão ambos responsáveis.


4. No caso de o utente ter incumbido alguém da vigilância dos animais, poderão cumular-se

as duas responsabilidades (art. 493.º e 502.º), no caso de o facto danoso provir da presuntiva culpa
do vigilante; não havendo culpa do vigilante, a obrigação de indemnizar recairá apenas sobre o

utente nos termos da responsabilidade pelo risco.

Porém, nem todos os danos causados pelo animal obrigam o utente a indemnizar, como
resulta da parte final do art. 502.º: apenas aqueles que resultem do perigo especial que envolve a

utilização do animal. Os danos têm de resultar do perigo próprio da utilização desse animal, e não
quando a causa próxima seja um caso fortuito, um facto de terceiro, ou não tenha qualquer ligação

com ele.
Discute-se se esta responsabilidade do utente ou utilizador dos animais admite ou não

exclusão da responsabilidade, no caso de força maior, culpa de terceiro ou apropria vítima.

72
FDUC – DOII 2017/2018

ANTUNES VARELA não exclui essa responsabilidade porque o artigo nada diz. Quem usa o
animal deve suportar os danos, nada se dizendo acerca de causas de exclusão da responsabilidade,

mesmo naqueles três casos.


CALVÃO DA SILVA discorda: dentro do sistema jurídico português pode invocar-se dentro da

responsabilidade pelo risco estes fatores que venham excluir a responsabilidade. No fundo, retira um
princípio geral do art. 505.º, aplicável ao art. 502.º.

2.4 RESPONSABILIDADE POR ACIDENTES DE VIAÇÃO

O art. 503.º diz que aquele que tiver direção efetiva de qualquer veículo de circulação
terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que a pedido do comissário, responde pelos

danos que causar em resultado dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em
circulação.

2.4.1 SUJEITOS RESPONSÁVEIS

 DETENTOR DO VEÍCULO

Em regra, o responsável será o dono do veículo, visto ser ele quem aproveita as vantagens

especiais do meio de transporte. Porém, temos outras hipóteses em que a responsabilidade objetiva
do dono do veículo já não se justifica (por exemplo, se tiver alugado o veículo), pelo que a lei fixou

um critério geral, segundo o qual responsável por este danos será o detentor do veículo, que

reúne duas condições:


1. Ter a direção efetiva do veículo: a direção efetiva é o poder real de facto sobre o veículo,

associado à obrigação de controlar o veículo, sobretudo a nível de inspeções. Normalmente, o


detentor é o proprietário, mas nem sempre assim será: por ex., A compra um veículo com reserva de

propriedade a B e utiliza imediatamente o veículo – quem tem o dever de fazer o controlo é o A.

2. Utilizar o veículo no seu próprio interesse: este requisito visa afastar a responsabilidade
objetiva daqueles que, como o comissário, utilizam o veículo, não no seu próprio interesse, mas em

proveito ou às ordens de outrem. Assim, pode estar em causa qualquer interesse, o de obter uma

73
FDUC – DOII 2017/2018
vantagem económica ou altruísta (por ex: emprestar o carro). Isto ainda que por intermédio do

comissário: muitas vezes, o detentor não é a pessoa que conduz porque está a ser conduzido pelo
comissário.

“A fórmula, aparentemente estranha, usada na lei – ter a direção efetiva do veículo – destina-se a

abranger todos aqueles casos (proprietário, usufrutuário, locatário, comodatário, adquirente com
reserva de propriedade, autor do furto do veículo, pessoa que o utiliza abusivamente, etc.) em que,

com ou sem domínio jurídico, parece justo impor a responsabilidade objetiva a quem usa o veículo
ou dele dispõe”.

Por vezes, os veículos são conduzidos por inimputáveis. Nos termos do art. 503.º/2, as

pessoas não imputáveis respondem nos termos do art. 489.º: podem responder, mas é uma
responsabilidade excecional. Uma pessoa imputável pode ter também momentos de

inimputabilidade, sendo que neste caso se aplica este artigo.

 RESPONSABILIDADE DO COMISSÁRIO (ART. 503.º/3)


A questão mais complexa é quando alguém conduz o veículo por conta de outrem, n.º 3.

1) EXERCÍCIO DAS SUAS FUNÇÕES: a primeira parte do artigo diz respeito às situações em que

o comissário atua no exercício das suas funções. No caso de o veículo ser conduzido por um

comissário, presume-se a culpa; no caso de a viatura ser conduzida pelo próprio dono, a prova da
culpa incumbe ao lesado. Qual é a ratio deste sistema?

Normalmente, os condutores por contra de outrem conduzem veículos pesados, que dão origem
a acidentes mais propensos e mais graves.

 Para além disto, não tem uma relação com o veículo, pelo que não sente as deficiências dele.
 Também se diz que à partida tem-se menos cuidado com os veículos de outro: há

normalmente um relaxamento na condução do veículo.


 Outra razão diz que estas pessoas são geralmente condutores profissionais, logo ser-lhes-á

mais fácil afastar a presunção.

74
FDUC – DOII 2017/2018

 Finalmente, se presumirmos a culpa do condutor estamos a beneficiar o lesado porque o


comitente também responde.

O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a questão se saber se este regime viola o

princípio da igualdade, discriminando os condutores por conta de outrem face aos restantes.
Entendeu que este não é um tratamento discricionário pois há razões objetivas. Em relação aos

condutores normais, há quem na doutrina portuguesa entenda que se aplica a presunção de culpa
de atividades perigosas: por ex., SINDE MONTEIRO e SOUSA RIBEIRO.

A perigosidade depende da natureza da atividade ou dos meios: para certos autores, como há
muitos acidentes, isto permitiria classificar como uma atividade perigosa. Esta posição é demasiado

exigente e foi afastada pelo Assento 21/11/79, que hoje é um acórdão de uniformização de
jurisprudência. CALVÃO DA SILVA discorda, assim como a jurisprudência, salvo em certos casos em

que o veículo possa ser classificado como perigoso – por ex., se o veículo transportar material
inflamável.

Quem responde?

 Se o condutor por conta de outrem estava no exercício das suas funções e houver culpa

sua (não afasta a presunção), preenchem-se os requisitos da responsabilidade do comitente e

este também responde. Responde o comitente, nos termos do art. 500.º, e o comissário, nos termos
do art. 483.º. Ou seja: o condutor tem culpa, respondendo nos termos gerais, e por causa disso
também responde o comitente. Não aplicamos o art. 503.º/1.

 Se o condutor conseguir afastar a presunção de culpa, não se verificam os pressupostos da

responsabilidade do comitente. Não podemos responsabilizar o comitente enquanto tal. Assim,


temos de nos perguntar quem é o detentor do veículo: o comissário tem o poder de facto sobre o

veículo, mas este é do dono – ambos têm a direção efetiva, um pelo poder de facto e outro pelo
dever de controlar. Porém, quem utiliza o veículo no seu próprio interesse é o comitente – tem

direção efetiva e o veículo é utilizado no seu próprio interesse, ainda que por intermédio do
comissário. Responde o detentor do veículo, que é o comitente mas não enquanto tal. Aplicamos o

art. 503.º/1.

75
FDUC – DOII 2017/2018

HÁ ALGUMA DIFERENÇA ENTRE RESPONDER COMO COMITENTE E RESPONDER COMO


DETENTOR?

 Se responde como comitente, pode exigir o direito de regresso ao comissário. E se for o


detentor, pode exigir o detentor? Não.

 Se o comitente responde, responde porque o comissário agiu com culpa, logo responde em
função da responsabilidade do comissário, em função dos danos causados por ele.

 Se responder nos termos do art. 500.º, o limite da indemnização está nos danos causados
(não há limites indemnizatórios). Se responder como detentor, aplica-se o art. 508.º e aí estão

fixados limites máximos. É mais vantajoso responder como comitente ou detentor? Pela última
hipótese, é como detentor. Note-se que são a mesma pessoa, mas respondem a título

diferente.

Esta presunção foi alvo de divergência doutrinal: é apenas nas relações internas ou também nas
relações externas? Foi ao STJ depois de várias divisões da doutrina, e foi resolvido por um acórdão

uniformizador (na altura um assento, Assento de 14 de Abril de 1983): a primeira parte do n.º 3
estabelece uma presunção de culpa do condutor (comissário) do veículo por conta de outrem pelos

danos que causar, aplicável nas relações entre ele e o lesante e o titular ou titulares à indemnização.
Ou seja, a presunção só funciona nas relações externas perante a vítima, perante o lesado: este é que

pode propor a ação contra o condutor e o detentor.


O lesado não tem que provar a culpa, mas na defesa o presumido culpado vai alegar que não

teve culpa, tentando ilidir a presunção. Conseguindo, é absolvido pelo juiz, mantendo como

responsável apenas o detentor do veículo. Mas a presunção apenas beneficia o lesado: na relação

interna, na ação de regresso entre o detentor do veículo e o condutor, o detentor não pode servir-

se da presunção de culpa do art. 503.º, esta não funciona nestas relações internas. Apenas funciona
em benefício do lesado nas relações externas.

76
FDUC – DOII 2017/2018

2) FORA DO EXERCÍCIO DAS SUAS FUNÇÕES: se o comissário conduzir o veículo fora do


exercício das suas funções, quem responde? Aplica-se o art. 503.º/3, parte final.

 Se tiver culpa efetiva, responderá o comitente? Não: não se verificam os pressupostos da


responsabilidade do comitente, há uma relação de comissão genérica mas está fora das suas

funções. Não podemos aplicar o art. 500.º. Quem responde, então? É o próprio, o condutor,

nos termos gerais do art. 483.º.

 Se não tiver culpa, temos de saber mais uma vez quem é o detentor de um veículo, com os

dois requisitos: direção efetiva e utilizar o seu próprio interesse. O condutor por conta de

outrem é, neste caso, o detentor do veículo – art. 503.º/ 1.

Note-se que o legislador apenas prevê a segunda hipótese ("responde nos termos do n.º 1), mas
também temos de equacionar a hipótese de não ter culpa.

Verificam-se os Responde o
pressupostos da comitente, art.
responsabilidade 500.º
O comissário não do comitente (há
afasta a presunção culpa do Responde o
comissário; no comissário, art.
No exercício das exercício das 483.º
Presunção de culpa
funções funções)
Não se verificam os
Responde o
pressupostos da
O comissário detentor, que é o
responsabilidade
consegue afastar a comitente mas não
do comitente (não
presunção enquanto tal, art.
há culpa do
503.º/1
comissário)
Não se verificam os
pressupostos da
responsabilidade Responde o comissário nos termos gerais,
Com culpa efetiva
Fora do exercício do comitente art. 483.º
das suas funções (não é no exercício
das funções)
Responde o detentor, que é neste caso o comissário por força
Sem culpa
do art. 503.º/3, parte final, nos termos do art. 503.º/1

77
FDUC – DOII 2017/2018

 RESPONSABILIDADE DO LADRÃO

Em caso de furto ou roubo do automóvel, quem é responsável é o autor do furto ou roubo


(ladrão): é ele quem tem a direção efetiva, o poder de facto sobre o veículo. Responde nos termos

do art. 503.º.
Todavia, temos de conjugar esta norma com o art. 8.º/2 do Decreto-lei 522/85 (seguro

obrigatório automóvel), segundo o qual o seguro cobre as indemnizações devidas pelos autores de
furto do veículo.

Portanto, se um carro for roubado e no curso de uma viagem do ladrão este tiver um grave
acidente, obviamente que este continua a ser responsável subjetivamente, mas imagine-se que ele

não tem bens para pagar à vítima: entra o seguro. Assim, o proprietário que segura, como lhe
incumbe, a responsabilidade civil automóvel, acaba por responder pelos danos provenientes de

acidente causado com o seu veículo pelo ladrão através da seguradora.


O seguro automóvel é obrigatório para beneficiar as vítimas de acidentes de viação. O seguro é

uma figura através da qual o tomador do seguro transfere a responsabilidade para outro sujeito, a
seguradora, com vista a, mediante pagamento de preço, se salvaguardar no futuro, havendo

acidente, não tendo que pagar uma indemnização volumosa. O legislador mantém o seguro na
hipótese do ladrão em nome da proteção das vítimas.

 RESPONSABILIDADE EM CASO DE ALUGUER OU EMPRÉSTIMO

No caso de aluguer, sendo o veículo conduzido pelo locatário ou às suas ordens, o veículo é
utilizado tanto no interesse do locatário como no interesse do locador, e qualquer um deles tem a

direção efetiva do veículo – assim, ambos respondem solidariamente pelo dano.


Havendo comodato, a responsabilidade do comodatante deve manter-se, salvo se o empréstimo

tiver sido feito em condições, nomeadamente de tempo, de o comodatário tomar sobre si o encargo
de cuidar da conservação e bom funcionamento do veículo. Se este dever continuar a cargo do dono

(como sucede se o empréstimo se destinar a uma viagem isolada ou a um passeio de curta duração,
a responsabilidade objetiva recai simultaneamente sobre comodante e comodatário.

Esta é uma solução que se aceita como forma indireta de obrigar o dono do veículo a ser
prudente na sua cedência. Poderá objetar-se que o veículo não é utilizado no interesse do

78
FDUC – DOII 2017/2018
comodante: porém, a finalidade deste requisito é afastar a responsabilidade daqueles que conduzem

o veículo por conta de outrem, e no caso do comodato ainda há um interesse do comodante na


utilização do veículo.

2.4.2 DANOS INDEMNIZÁVEIS

Os danos que a pessoa responsável é obriga a indemnizar são os que tiveram como causa o
acidente.

Porém, encontramos quanto aos danos causados por veículos uma regra especial: fala-se em

“danos provenientes dos riscos próprios do veículo”. Assim, este regime está pensado em função da
existência de danos que resultem dos riscos próprios do veículo: temos vários tipos de "riscos

próprios", que não se limitam aos riscos do veículo em si:


1. Riscos em relação ao veículo em si (por ex., o sistema de travagem que falha).

a. Provocados pelo veículo em circulação ou estacionado.


2. Riscos em relação ao condutor (por ex., o condutor tem um ataque cardíaco enquanto

conduz).
3. Riscos relacionados com o meio de circulação (por ex., nevoeiro, óleo na estrada, etc.).

2.4.3 BENEFICIÁRIOS

Segundo o art. 504.º, são beneficiários da responsabilidade não só os terceiros, mas

também as pessoas transportadas. Terceiros são pessoas que estão no exterior do veículo, mas a
doutrina também entende que são terceiros os que estão no interior a exercer funções (ex: revisor

dos bilhetes no comboio). Não há limites quanto aos danos pessoais ressarcíveis, mas os números
seguintes estabelecem certos limites:

 O art. 504.º/2 estabelece a ressarcibilidade dos danos no caso de contrato de transporte. Se

houver um contrato de transporte, os danos abrangidos são os danos pessoais mais os

danos materiais em relação às coisas transportadas pela pessoa. Ficam de fora os danos
relativos às coisas transportadas mas não acompanhadas pela pessoa.

 O n.º 3 diz que, no caso de transporte gratuito, a responsabilidade abrange apenas os

danos pessoais.

79
FDUC – DOII 2017/2018

O DL 14/96 veio alterar a redação anterior do artigo 504.º, a que se refere ANTUNES VARELA:
inicialmente, no caso de transporte gratuito apenas era possível pedir indemnização nos termos

gerais, se houvesse culpa (dizia-se que “o transportador responde apenas, nos termos gerais, pelos
danos que culposamente causar”). Isto era assim porque se entendia que seria injusto impor a

responsabilidade sem culpa a quem forneceu o transporte sem nenhum correspetivo.


Este artigo foi alterado em 1996 por imposição de uma diretiva europeia (90/232), que veio

determinar que o seguro de responsabilidade civil atinente à circulação de veículos automóveis deve
cobrir a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, com exceção dos sofridos

pelo condutor.
Não se compreenderia que a responsabilidade do segurado não tivesse extensão equivalente à

do seguro.
Assim, hoje pode-se pedir uma indemnização nos termos da responsabilidade objetiva em caso

de transporte gratuito, mas apenas pelos danos pessoais. Porque é que se excluem os danos
materiais? Isto tem a ver com a falta de correspetividade económica: a responsabilidade objetiva não

é absoluta, apenas responde pelos danos mais importantes, os danos pessoais.


Já o art. 504.º/3 estabelece que são nulas as cláusulas que excluam ou limitam a

responsabilidade do transportador pelos acidentes que atinjam a pessoa transportada.

2.4.4 CAUSAS DE EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE


Art. 505.º: diz-nos que há causas de exclusão da responsabilidade objetiva, que são três:

 Facto imputável ao lesado: quer-se abranger aqui qualquer facto do próprio lesado, culposo
ou não.

 Facto imputável a terceiro: o terceiro tanto pode ser um peão, como o condutor de outro
veículo, como o passageiro.

 Causa de força maior: trata-se aqui de casos de força maior, quando estranhos ao
funcionamento do veículo. É um acontecimento imprevisível, cujo efeito danoso é inevitável

com as precauções normalmente exigíveis do condutor.

80
FDUC – DOII 2017/2018

 CONCURSO DA CULPA DA VÍTIMA COM O RISCO DO DETENTOR: CRÍTICA À TESE


CLÁSSICA

Em relação ao facto do lesado, temos duas posições:


 Na posição de ANTUNES VARELA e posição maioritária até 2007, entendia-se que

todo e qualquer facto do lesado excluía a responsabilidade. Há uma interrupção do


nexo causal quanto à conduta do agente.

 De acordo com a interpretação atualista de CALVÃO DA SILVA, não consideramos que


todo e qualquer facto exclui – só aquele que for causa única e exclusiva do acidente.

Ora, o art. 505.º considera que que a responsabilidade objetiva apenas é excluída quando o

acidente é imputável ao próprio lesado ou a terceiro (note-se que, aqui, “imputável” tem o sentido

de que o acidente devido ao lesado). Para ANTUNES VARELA, GALVÃO TELES e RUI ALARCÃO,

adeptos da doutrina clássica, se o acidente for imputável ao lesado exclui-se a responsabilidade

objetiva do art. 503.º, bastando para tal haver culpa leve do lesado concorrente para o acidente.

Estes autores partem do princípio de que a responsabilidade pelo risco é muito excecional, sendo
grave alguém responder não sendo censurável o seu comportamento: assim, se a vítima tem culpa

no acidente o risco deve ser excluído e não deve ser responsabilizado objetivamente. Entre um risco
e uma culpa, ainda que leve, a censura é merecida: toda e qualquer culpa exclui o risco. Para estes

autores, o art. 570.º apenas se aplica no caso de haver culpa de ambas as partes: se o acidente tiver
simultaneamente como causa um facto culposo do condutor e um facto da vítima, cabe ao tribunal

determinar, com base na gravidade relativa e nas consequências que deles resultaram, se a
indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

CALVÃO DA SILVA discorda: “sem prejuízo do concurso da culpa do lesado, a

responsabilidade objetiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido

unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força

maior estranha ao funcionamento do veículo. Equivale isto a admitir o concurso da culpa da vítima
com o risco próprio do veículo, sempre que ambos colaborem na produção do dano, sem quebra ou

interrupção do nexo de causalidade entre este e o risco pela conduta da vítima como causa exclusiva
do evento lesivo”. Assim, o art. 570.º não se refere às hipóteses em que há culpa de ambas as partes.

81
FDUC – DOII 2017/2018

 É lógico que o art. 570.º se refere ao concurso da culpa: a ressalva feita no art. 505.º aplica-se
à responsabilidade fixada no art. 503.º, que é uma responsabilidade objetiva, logo temos aqui

uma concorrência entre a culpa do lesado (art. 570.º) e o risco da utilização do veículo (art.
503.º).

 A parte final do art. 505.º favorece esta interpretação – a causa de força maior só pode
excluir a responsabilidade quando este resulte única e exclusivamente dessa causa (caso em

que os danos não são provenientes do risco próprio do veículo e seu condutor).
 Não faz sentido interpretar a ressalva para o art. 570.º como aplicável havendo culpa de

ambas as partes, uma vez que a responsabilidade fixada no art. 503.º/1 não assenta na culpa
do detentor e o concurso da culpa do detentor do veículo com um facto culposo do lesado já

estar previsto no art. 570.º, ficando sem sentido a remissão. Só através desta interpretação é

que assume significado útil a primeira parte do art. 505.º.

Assim, o art. 505.º deve ser lido da seguinte forma: “Sem prejuízo do art. 570.º (leia-se, sem

prejuízo do concurso da culpa do lesado), a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só

é excluída quando o acidente for devido (com culpa ou sem culpa) unicamente ao próprio lesado

ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao

funcionamento do veículo”.
Para além destas críticas apontadas à tese clássica, “a aceitação do concurso da culpa do lesado

com o risco próprio do veículo, permitindo ao juiz sopesar as suas gravidades e contributos causais e

assim moldar o an e o quantum respondeatur, impõe-se decisivamente numa interpretação

progressista ou atualista, que tenha em conta a unidade do sistema jurídico e as condições do


tempo em que é aplicada”:
 A unidade do sistema jurídico leva a ter de atender às muitas normas jurídicas que

concretamente consagram o concurso da culpa da vítima com o risco da atividade do agente,


e correspondente aquisição dessa regra como princípio geral.

 As condições do tempo moderno exigem que se aceite com grande abertura o princípio da
solidariedade e justiça que enforma a responsabilidade pelo risco, bem como a

obrigatoriedade de seguro, aqui com limites mínimos significativos.

82
FDUC – DOII 2017/2018

Passados poucos anos depois de um artigo publicado por CALVÃO DA SILVA, sai um acórdão do
STJ que confirma este entendimento. Subsequentemente, têm surgido muitos acórdãos em que o

princípio do concurso do risco com a culpa da vitima é admitido. Hoje, o entendimento dominante é
este.

2.4.5 COLISÃO DE VEÍCULOS

No caso de colisão de veículos, quem responde (art. 506.º)?


 Havendo culpa de ambos os condutores, cada um deles responde pelos danos

correspondentes ao facto que praticou. Se se der por assente a culpa de ambos, mas não se
conseguir determinar a medida em que cada um deles contribuiu para a produção dos danos

verificados, presumir-se-á que contribuíram em igual proporção.


 Se apenas um deles foi culpado, ainda que por culpa meramente presumida e não elidida, só

esse responde pelos danos que causou.


 No caso de não haver culpa de nenhum dos condutores, temos duas situações distintas:

o Apenas um veículo causou danos aos outros (ex: um veículo cujos travões se partiram
embate num outro estacionado). Apenas o detentor do veículo causador dos danos é obrigado a
indemnizar, na sequência da teoria do risco.
o Ambos os veículos concorreram para o acidente: quer os danos se estendam aos dois
veículos, quer se estendam a um só, e não havendo culpa de nenhum dos condutores, o Código

Civil (art. 506.º/1) manda somar todos os danos resultantes da colisão e repartir a
responsabilidade (total) na proporção em que cada um dos veículos houver contribuído para a

produção desses danos.

O texto do art. 506.º refere-se apenas aos danos causados pela colisão nos próprios veículos,
razão pela qual VAZ SERRA sustenta que este regime aproveita apenas a estes danos. Porém, não há

qualquer razão para distinguir os tipos de danos: desde que os danos sofridos, seja pelos
condutores, seja por coisas transportadas ou não nos veículos, provêm da colisão, aplica-se o art.

506.º/1.

83
FDUC – DOII 2017/2018

 COLISÃO ENTRE VEÍCULO E ANIMAL


Por vezes, há colisões, não entre dois veículos, mas entre um veículo e um animal. Aqui aplica-

se, não de forma imediata, mas sim por analogia, o art. 506.º/1.

 APLICAÇÃO DA PRESUNÇÃO DO ART. 503.º/3


No caso de colisão de veículos, aplica-se a presunção de culpa do comissário do art. 503.º/3

(como ficou estabelecido no Assento de 26 de Janeiro de 1994). Assim, ocorrendo uma colisão entre
dois veículos, um conduzido por um comissário, e o outro conduzido pelo seu proprietário, presume-

se a culpa do primeiro.
Isto com base nos seguintes argumentos:

 As razões que subjazem à presunção de culpa do comissário (afrouxamento da vigilância do


veículo, fadiga do condutor, etc.) também valem para o caso da colisão de veículos.

 A unidade do sistema jurídico reclama uma uniformidade de critérios, pelo que se deve
entender que o art. 503.º/3 estabelece uma presunção de culpa do condutor por conta de

outrem em termos gerais, que tanto valem para os danos causados pelo simples
atropelamento, como para os danos provenientes da colisão de veículos.

 O art. 506.º/1 não distingue culpa efetivamente provada e culpa presumida não ilidida.

Assim, no caso de colisão de veículos, um guiado pelo comissário e outro pelo proprietário, para
que se aplique o art. 506.º/1 (“nenhum dos condutores tiver culpa no acidente”), tem de ser ilidida a

presunção do art. 503.º/3.

2.4.5 LIMITES MÁXIMOS DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA POR ACIDENTES DE


VIAÇÃO (ART. 508.º) E LIMITES MÍNIMOS DO SEGURO OBRIGATÓRIO

Enquanto que na responsabilidade subjetiva vigora o princípio geral da reparação integral do

dano (ainda que com o limite do art. 494.º), na responsabilidade objetiva vale o princípio da

limitação do ressarcimento, por causa daquela velha ideia segundo a qual a responsabilidade
objetiva é excecional.

84
FDUC – DOII 2017/2018

CALVÃO DA SILVA entende que, na responsabilidade objetiva, não tem aplicação do art.
494.º, tendo em conta a teleologia da responsabilidade pelo risco, independente de culpa e ilicitude,

e os parâmetros máximos de indemnização (ANTUNES VARELA, ao contrário, entende que o artigo


494.º se aplica à responsabilidade objetiva, por força do art. 499.º).

Porém, é preciso conciliar o art. 508.º com a legislação sobre seguro obrigatório automóvel e
os montantes mínimos nela fixados. O seguro obrigatório de responsabilidade automóvel foi

instituído pelo DL 408/79, revogado pelo DL 522/85 (ainda em vigor). Nesse ano, o DL 190/85 veio
alterar a primitiva versão do art. 508.º, por considerar que os limites nele fixado eram muito baixos,

fixando novos valores que tinham por base as alçadas da relação.


A subida dos limites máximos de responsabilidade puxou para cima o capital

obrigatoriamente seguro, fixado pelo DL 408/79 em valores muito baixos. O DL 5322/85 foi sofrendo
várias alterações com vista à harmonização da nossa legislação do seguro automóvel com as

diretivas europeias, sendo que a certo ponto o limite máximo da responsabilidade fixado no art.
508.º era muito inferior ao limite mínimo de seguro obrigatório.

CALVÃO DA SILVA publicou um artigo criticando esta situação: o seguro obrigatório surge
em cumprimento do dever de segurar a responsabilidade civil resultante da circulação rodoviária,

com o objetivo de proteção das vítimas. Os montantes mínimos de seguro obrigatório visam garantir
uma indemnização suficiente à vítima, ou seja, “estabelecer montantes mínimos de seguro

obrigatório equivale a garantir à vítima o ressarcimento integral dos danos por si sofridos até àquele
tecto”. Pelo que não faz sentido fixar limites máximos de indemnização inferiores aos montantes

mínimos de seguro obrigatório: a primeira subverteria o sentido e fim dos segundos como
montantes mínimos. Os montantes mínimos reputados suficientes de seguro obrigatório são também

os limites máximos de indemnização para efeitos do art. 508.º.


Face a isto, CALVÃO DA SILVA veio defender uma interpretação atualizada do art. 508.º,

argumentando para tal que os diplomas que estabelecem os montantes mínimos de seguro
automóvel revestem natureza de normas materiais de responsabilidade civil automóvel. Assim, o art.

508.º devia considerar-se parcialmente revogado, atualizado pelo art. 6.º do DL 522/85: a
indemnização pela responsabilidade objetiva tem como limite máximo o montante mínimo do

seguro obrigatório.

85
FDUC – DOII 2017/2018

Em 2004, o STJ proferiu um Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, adotando a tese de


CALVÃO DA SILVA e afirmando que o art. 508.º do Código Civil havia sido tacitamente revogado

pelo art. 6.º do DL 522/85. Ainda em 2004, o DL 59/2004 veio dar nova redação ao art. 508.º: “a
indemnização fundada em acidente de viação ... tem como limite máximo o capital mínimo de

seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel”. A partir de 2012, o montante mínimo de


seguro obrigatório passou a ser, por acidente, de 5.000.000€ em caso de danos materiais e

1.000.000€ em caso de danos pessoais – art. 12.º do DL 291/2007, que consagra a Lei da
Responsabilidade Civil do Seguro Automóvel.

Muitas das pessoas que obtiveram indemnizações escassas antes de 2004 reagiram contra o
Estado Português, sendo que existe jurisprudência favorável a esta condenação.

2.5 RESPONSABILIDADE POR ENERGIA ELÉTRICA OU GÁS

O art. 509.º consagra a responsabilidade objetiva por danos causados por instalações de
energia elétrica ou gás. Aquele que tiver a direção efetiva da instalação destinada à condução ou

entrega da energia elétrica ou gás, e a utilizar no seu interesse, responde pelos prejuízos que
resultarem da própria instalação, condução ou transporte.

À semelhança do que sucede nos acidentes de viação, o art. 509.º consagra certas causas de
exclusão de responsabilidade:

 Quanto à instalação, a responsabilidade pode ser afastada mediante prova de que ela se
encontrava, ao tempo do acidente, de acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito

estado de conservação (n.º 1).


 A responsabilidade é ainda excluída nos casos de força maior (n.º 2).

Note-se que esta responsabilidade objetiva não se aplica a danos causados por utensílios de uso

de energia (fogões, radiadores, etc.).


Também aqui o art. 510.º consagra um limite máximo de indemnização.

86
FDUC – DOII 2017/2018

2.6 RESPONSABILIDADE CIVIL DO PRODUTOR OU FABRICANTE DE PRODUTOS


DEFEITUOSOS

Esta responsabilidade está prevista no DL n.º 383/89, de 6 de Novembro, alterado pelo DL n.º
131/2001, de 24 de Abril.

Vivemos num mundo em que há liberdade de iniciativa privada (pessoal e empresarial), que existe
na medida em que respeitamos a economia de mercado. Por haver liberdade de escolha, temos

aquilo a que se chama sociedade de consumo (bens e serviços oferecidos em grande abundância):
porém, se o ideal da abundância não for seguido do ideal da segurança, esta sociedade de consumo

não funciona. A própria população exige que os produtos sejam seguros.


Como é que o produtor ou fabricante deve responder perante os consumidores pelos produtos

que o mesmo lança no mercado? Se houvesse um contrato direto celebrado entre consumidor e
produtor, podíamos lançar mão da responsabilidade contratual e sendo vendedor era presumido

culpado. Mas normalmente não há esse contrato, mas sim uma cadeia de transmissão de produtos:
entre o produtor e o consumidor teremos grossistas e retalhistas. Esta cadeia gera dificuldades e

dificulta soluções, sendo que a regra é a da culpa provada: o lesado tem de provar que o produto é
defeituoso e indicar quem o produziu, que ilicitude que comete. Isto não era fácil.

Começou-se a exigir, então, que o produtor fosse responsabilizado objetivamente. Em 1985


conseguiu-se uma diretiva que consagrou a responsabilidade independentemente de culpa do

produtor, pelos danos causados pelos seus produtos defeituosos lançados no mercado. O DL de
1989 transpôs a Diretiva de 1985.

2.6.1 NOÇÃO DE PRODUTOR

O art. 2.º da Lei da Responsabilidade Civil do Produtor define produtor como o fabricante de
produto acabado, de uma parte componente ou de matéria-prima, e ainda quem se apresente como

tal pela inscrição de qualquer elemento distintivo seu no produto.

 PRODUTOR REAL
O produtor real é aquele que de facto produz o produto, a pessoa humana ou jurídica que

sob a sua própria responsabilidade participa na criação do mesmo, seja o fabricante do produto

87
FDUC – DOII 2017/2018
acabado, de uma parte componente ou de matéria prima. A opção do legislador foi responsabilizar

não só o produtor final, como todos os fabricantes a jusante: havendo vários responsáveis, gera-se
responsabilidade solidária.

Porém, enquanto que o fabricante de uma peça pode excluir a sua responsabilidade,
provando que cumpriu rigorosamente a encomenda que lhe foi feita (art. 5.º), não é possível ao

produtor final excluir a sua responsabilidade.

 PRODUTOR APARENTE
O produtor aparente é quem se apresente como tal pela aposição no produto do seu nome,

marca ou outro sinal distintivo. Há muitos produtos que não se sabe quem os fabrica porque o real
fabricante é omitido e nos produtos é aposto o nome de uma grande marca. A lei trata o produtor

aparente como se fosse o produtor real: a necessidade de responsabilizar o produtor aparente


justifica-se porque se apresentam aos olhos do público como sendo os produtores do produto. O

produtor aparente é oficialmente o produtor do produto em nome da aparência eficaz e da proteção


do consumidor. Para além disto, a responsabilidade do produtor aparente justifica-se ainda porque

geralmente o produtor real não passa de uma pequena empresa sem capacidade económica, e ainda
por uma função preventiva.

Mais: a lei não concede ao produtor aparente a possibilidade de fazer prova de que não é ele
o produtor efetivo do produto defeituoso, como forma de excluir responsabilidade, o que poderá

levar a que o produtor aparente e o real respondam ambos em regime de responsabilidade solidária.

 PRODUTOR PRESUMIDO
O art. 2.º/2/a) considera também produtor aquele que importar de fora da União Europeia

produtos: o produtor presumido é, assim, aquele que importar produtos para distribuição. Trata-se
de uma presunção absoluta e que, portanto, não admite prova em contrário. Existe por razões

práticas, nomeadamente o princípio de se dar prioridade aos tribunais da residência dos


consumidores (facilidade processual); e também razões que se prendem com o mercado interno

europeu.

88
FDUC – DOII 2017/2018
A lei considera ainda produtor qualquer fornecedor de produtos cujo importados não esteja

identificado (n.º 2, al. b)). Trata-se de uma responsabilidade subsidiária, como meio de pressionar o
fornecedor de

produto anónimo a indicar ao lesado quem é o importador europeu – se o fizer, não responde.

2.6.2 NOÇÃO DE PRODUTO


São produtos todos os bens móveis, ainda que incorporados em imóveis (art. 3.º). Isto é

importante no sector da construção civil, uma vez que os produtores dos bens móveis (materiais de
construção ou partes componentes defeituosas, como cimento, tijolos, etc.) utilizados na edificação

de imóveis ficam submetidos ao novo regime de responsabilidade. Isto acresce às regras sobre
responsabilidade de empreiteiros, engenheiros e arquitetos resultante do art. 492.ºdo Código Civil.

O mesmo se diga na responsabilidade por acidentes causados por veículos, que existe sempre,
mesmo quando o acidente tenha ocorrido por um grave defeito na produção do veículo. Há uma

vantagem na junção de responsabilidades, uma vez que na responsabilidade do produtor não há o


limite do seguro obrigatório como há no Código Civil.

2.6.3 NOÇÃO DE DEFEITO

Se olharmos para a noção de defeito no Código Civil e na Lei da Responsabilidade Civil do

Produtor, umas vezes encontram-se e outras não. No Código Civil (ex: art. 913.º), um produto é

defeituoso na medida em que não tenha as qualidades necessárias e adequadas para realizar o

seu fim. Uma TV que não funcione ou um carro que não ande é um produto gravemente defeituoso,
que não permite realizar o objetivo pretendido.
Mas não é por causa desta funcionalidade que a responsabilidade civil do produtor surgiu,

mas sim para a segurança. Na sociedade de consumo, o ideal de abundância dos produtos e a
inerente liberdade de escolha tinham de ser acompanhados do ideal de segurança, para que nos

possamos sentir seguros. Isto vai muito para além do âmbito tradicional do art. 913.º e outros do
CC. Assim, um produto é defeituoso quando não oferece a segurança legitimamente esperada tendo

em conta todas as circunstâncias, nomeadamente a utilização que dele possa ser esperada,
apresentação e o tempo que é posto no mercado – art. 4.º da Lei da Responsabilidade Civil do

Produtor. Esta noção é mais ampla que a do Código Civil, pois muitas vezes os produtos causam

89
FDUC – DOII 2017/2018
danos na realização da específica função para que foram concebidos, ou ainda na utilização razoável

que dele se pode esperar: é expectável que alguém que use uma esferográfica a leve à boca, logo
uma caneta que tenha um revestimento tóxico e cause uma intoxicação é um produto defeituoso

tendo em conta a utilização que razoavelmente se pode esperar.


Mas qual o grau de segurança a ter em conta? A lei não exige que o produto ofereça uma segurança

absoluta, mas apenas a segurança com que se possa legitimamente contar. Está em causa a

segurança que o homem médio possa esperar, sendo que aqui o homem médio é o consumidor

médio a que potencialmente se destina o produto.


O art. 4.º consagra vários critérios que o juiz deve ter em conta na valoração das legítimas

expectativas de segurança do público:


 Apresentação do produto: o juiz deve ter em conta o marketing e publicidade do produto,

as instruções de utilização, etc.

 Utilização razoável do produto: o juiz não deve ter em conta apenas o uso específico a que
o produto se destina, mas também outros usos razoavelmente previsíveis que do mesmo

possam ser feitos. Por exemplo, o fim pretendido da caneta é escrever, logo uma caneta que

escreva não é defeituosa à luz do Código Civil. Mas é expectável que alguém que use uma
esferográfica a leve à boca, logo uma caneta que tenha um revestimento tóxico e cause uma

intoxicação é um produto defeituoso tendo em conta a utilização que razoavelmente se pode


esperar. O mesmo se aplica a brinquedos, por exemplo. Isto tem duas vantagens: não

deixar cair nas mãos do produtor a determinação da sua responsabilidade, e pressionar o


produtos a cumprir a obrigação geral de segurança.

 Momento da colocação do produto no mercado: para determinar se um produto é ou não

defeituoso, não pode atender-se ao momento da ocorrência do dano ou do próprio


julgamento, mas sim à data da sua colocação em circulação. Se, nessa data, o produto

oferecia a segurança com que se podia legitimamente contar, não é defeituoso,


independentemente de posteriores aperfeiçoamentos pelo produtor. Por exemplo: os carros

evoluíram muito do ponto de vista da segurança. Se houve um acidente com um carro que

90
FDUC – DOII 2017/2018
não tinha airbag, o juiz tem de olhar ao momento do lançamento desse carro para ver se

nesse tempo era seguro, e não para os carros de hoje, com todos os aperfeiçoamentos.
 Outros elementos: para além disto, o juiz deve atender a todas as circunstâncias do caso.

2.6.4 CLASSIFICAÇÃO DE DEFEITOS

Desta noção geral decorrem algumas noções ou classificações de defeitos. O defeito por falta de
segurança legitimamente esperada pode ser:

 Defeito de conceção: o produto foi mal desenhado. Toda a série do produto sai defeituosa,
gerando defeitos em série.

 Defeito de fabrico: apesar de bem desenhado, saem alguns exemplares da mesma série com
defeito, devido a falhas mecânicas e/ou humanas na fase de produção ou fabrico. Foi a partir

do defeito de fabrico que a jurisprudência e doutrina começaram por afirmar a ideia de


responsabilidade objetiva: os produtores, sabendo que 2% ou 3% dos produtos da série

tinham defeitos, aceitavam esse risco e colocavam os produtos no mercado, para não suportar
os custos de produzir uma nova série.

 Defeito de informação: o produto é inseguro por falta, insuficiência ou inadequação de


informações, advertências ou instruções sobre o seu uso e perigos conexos.

 Defeito ou risco do desenvolvimento: finalmente, um produto pode ser ilegitimamente


inseguro por riscos ou defeitos incognoscíveis perante o estado da ciência e da técnica

existente ao tempo da sua emissão no comércio. O produto já era defeituoso no momento do


lançamento do mercado, mas não se conseguiu prever.

Quanto ao risco do desenvolvimento, a diretiva europeia deu a opção aos países de a incluir ou

não na responsabilidade objetiva. A opção portuguesa foi a de deixar este risco fora do âmbito da
responsabilidade objetiva, consagrando-a como causa de exclusão da responsabilidade - alínea e)

do art. 5.º. Esta foi, de resto, a opção da maioria dos países, e isto em nome da proteção das
indústrias, nomeadamente a farmacêutica e automobilística.

CALVÃO DA SILVA foi um dos responsáveis por ter deixado de fora o risco de
desenvolvimento, e com que fundamento? Esta é uma opção do legislador, que não pode estar

capturado pela indústria, nomeadamente a farmacêutica. É preciso outro fundamento que não a

91
FDUC – DOII 2017/2018
indústria: assim, temos de pensar qual é a solução que, em geral e abstrato, mais incentiva o

progresso da ciência e da técnica, mais fomenta o investimento nestas. É o progresso da


humanidade, que a ciência e a técnica servem, que explica a exclusão do risco do desenvolvimento

da responsabilidade objetiva. Uma alternativa seria a de os Estados criarem um fundo para


indemnização pelos danos causados pelo risco do desenvolvimento, um fundo do desenvolvimento

científico e técnico.
O art. 5.º consagra outras causas de exclusão da responsabilidade.

2.6.5 A REGRA DA SOLIDARIEDADE

Podemos ter uma pluralidade de responsáveis pelos danos, como vimos – produtor do
produto acabado e produtor da parte componente, produtor real e produtor aparente, etc. Havendo

vários responsáveis, a responsabilidade é solidária nos termos do art. 6.º, uma vez que a
solidariedade passiva representa uma garantia concedida ao credor pelo reforço da consistência

prática do seu direito à custa de diferentes patrimónios e o escopo da responsabilidade objetiva é


precisamente a proteção adequada e eficaz do lesado. Para além disto, o produtor parcial sente-se

impulsionado à redução do risco conexo com a sua atividade e o produtor final impelido à escolha
de produtores-fornecedores competentes e de confiança; e esta regra apresenta-se conforme com

as regras tradicionais da responsabilidade civil, uma vez que as atividades de ambos são concausas
do dano.

Muitas vezes, à vítima nem sempre é fácil ou mesmo possível identificar o responsável a
demandar na ação da responsabilidade. Nestes casos, considera-se suficiente a prova da razoável

probabilidade de o demandado ser o responsável no caso concreto – solução que vai ao encontro da
formulação negativa da causalidade adequada. Se várias pessoas forem prováveis responsáveis pelos

danos decorrentes de produto genérico, não se podendo saber quem, entre os vários produtores, os
causou real e especificamente, deve entender-se que respondem solidariamente.

Sendo uma obrigação solidária, o credor pode exigir toda a prestação de qualquer dos
devedores (art. 519.º do Código Civil), sendo que o cumprimento por parte deste libera os demais

devedores, ficando o solvens que haja cumprido do direito de regresso contra cada um dos
condevedores pela quota respetiva (art. 524.º). O legislador veio regular especificamente o direito de

92
FDUC – DOII 2017/2018
regresso no n.º 2 e 3 do art. 6.º: deve atender-se ao risco criado por cada responsável, à gravidade

da culpa e à sua contribuição para o dano; em caso de dúvida, a repartição faz-se em partes iguais.

2.6.6 DANOS INDEMNIZÁVEIS


Nem todos os danos são ressarcíveis ao abrigo da Lei da Responsabilidade Civil do Produtor:

apenas os especificados no art. 8.º, com o limite mínimo previsto no art. 9.º, sem prejuízo da
aplicação das normas de direito comum (art. 13.º). Notas:

 No caso de morte ou lesão pessoal, são ressarcíveis todos os danos, sejam patrimoniais ou
não patrimoniais.

 Porém, tratando-se de danos causados em coisas (danos patrimoniais), a lei protege apenas o
consumidor, ou seja, aquele que utilizava a coisa destruída ou deteriorada pelo produto

defeituoso para um fim privado e não pessoal. Isto evidencia o objetivo de proteção dos
consumidores e não dos profissionais. Assim ao abrigo deste regime, só são indemnizáveis os

danos causados por produtos defeituosos em coisas de uso privada (ex: A compra uma
televisão para sua casa que, em virtude de defeito grave, explode e destrói o recheio da casa).

 Já não são indemnizáveis os danos causados na própria coisa defeituosa.

2.6.7 PROBLEMA DO CONCURSO DO RISCO DO PRODUTOR COM A CULPA DO


LESADO

O art. 7.º veio consagrar, de modo direto e aberto, a possibilidade do concurso do risco do
produtor com a culpa do lesado, pelo que não temos de ir para o art. 570.º do Código Civil. Isto

pode levar à redução ou mesmo à exclusão do dever de indemnizar, sendo que o juiz atenderá à
gravidade da culpa do lesado e sua contribuição para o dano: se se tratar de mera negligência,

poderá admitir que a indemnização seja totalmente concedida; se se tratar de dolo, excluirá a
responsabilidade.

Nos termos do art. 7.º/2, a responsabilidade do produtor não é reduzida quando a


intervenção de um terceiro tiver concorrido para o dano. Assim, se houver também culpa do

distribuidor, que agrave a responsabilidade do produtor, isto não releva: a partir do momento em
que se prova o defeito na esfera produtiva, mesmo que haja uma agravante na esfera distributiva,

93
FDUC – DOII 2017/2018
isto não exclui a responsabilidade do produtor. O distribuidor só responde por culpa própria nos

termos gerais (embora haja, como vimos, certos distribuidores que se presumem produtores).

2.6.8 INEFICÁCIA DE CAUSA DE EXCLUSÃO OU LIMITAÇÃO DA


RESPONSABILIDADE

As regras constantes na Lei da Responsabilidade Civil do Produtor são imperativas, o que se


justifica para assegurar os seus objetivos – proteção de qualquer pessoa lesada na sua integridade e

do consumidor cujos bens sejam afetados. Assim, as cláusulas limitativas e de exclusão da


responsabilidade objetiva são proibidas, tendo-se por não escritas e inoponíveis ao lesado.

2.6.9 PRESCRIÇÃO

Nos termos do art. 11.º, o direito ao ressarcimento prescreve no prazo de três anos a contar
da data em que o lesado teve ou deveria ter tido conhecimento do dano, do defeito e da identidade

do produtor. O objetivo destes três critérios é a proteção da vítima.


Já o art. 12.º estabelece um prazo de caducidade de dez anos: assim, o lesado tem três anos

para propor a ação, mas dentro de um prazo de dez anos de caducidade. O prazo de caducidade
visa proteger o produtor. Após a expiração deste prazo, resta ao lesado pedir uma indemnização

pelas regras gerais, possibilidade ressalvada pelo art. 13.º.

94
FDUC – DOII 2017/2018

IV. MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES

1. QUANTO AO VÍNCULO: OBRIGAÇÕES NATURAIS E OBRIGAÇÕES CIVIS


 NOÇÃO E NOTAS CARACTERIZADORAS

Quanto ao vínculo, a distinção faz-se tradicionalmente entre as obrigações civis e as


obrigações naturais, uma vez que o vínculo jurídico é mais fraco nestas últimas. Segundo o regime

geral, o credor tem o direito de exigir judicialmente o cumprimento das obrigações (art. 817.º), e
tudo o que for prestado com intenção de cumprir pode ser repetido (art. 476.º/1). Porém, isto não

sucede nas obrigações naturais: o credor não pode exigir judicialmente o seu cumprimento e, se o
devedor cumprir espontaneamente, a prestação não pode ser repetida. Estas obrigações estão

reguladas no Código Civil, nos arts. 402.º e seguintes. Já se levantaram dúvidas quanto a saber se
esta seria ou não uma figura de carácter geral, sendo hoje isto unanimemente aceite.

Assim, podemos apontar às obrigações naturais as seguintes notas caracterizadoras:


 Correspondem a um dever cujo cumprimento não é judicialmente exigível (art. 402.º).

 Não pode ser repetido o que for prestado espontaneamente em cumprimento de obrigação
natural (art. 403.º). Mais do que excluir a repitibilidade da prestação, este preceito visa tratar o

ato espontâneo do devedor como cumprimento (não dando lugar à obrigação de restituir e
nem sequer sendo tratada como objeto de uma liberalidade).

 Correspondem a deveres de ordem moral e social, cujo cumprimento corresponda a um dever


de justiça. Esta é uma figura híbrida: tutelam-se deveres de ordem social e moral, mas há aqui

uma juridicidade. No fundo, para que haja obrigação natural, “é necessário que exista, como
fundamento de uma prestação, um dever moral ou social específico entre pessoas

determinadas, cujo cumprimento seja imposto por uma reta composição de interesses”.

95
FDUC – DOII 2017/2018

 CASOS DE OBRIGAÇÕES NATURAIS


Quando é que, na prática, estamos perante estas obrigações?

 Dívida prescrita: o exemplo mais frequente e mais importante é o cumprimento de obrigação


prescrita (art. 304.º, n.º2). A dívida prescrita extingue-se como vínculo jurídico, uma vez

decorrido o prazo prescricional e invocada pelo devedor a prescrição. Porém, se o devedor


cumprir espontaneamente, a prestação corresponde ainda a um dever de justiça e não pode

ser repetida.
 Dívidas provenientes de jogo ou aposta: o jogo e a aposta não são contratos válidos;

porém, as dívidas provenientes de jogo ou apostas, quando sejam lícitas e não haja sobre elas
legislação especial, são fontes de obrigações naturais (art. 1245.º). Porém, no caso de haver

legislação especial sobre jogo (art. 1247.º), o contrato de jogo não só é válido, como é fonte
de obrigações civis.

 Prestação de alimentos: a prestação de alimentos efetuada a favor de certas pessoas que


não tenham o direito a exigi-los é uma obrigação natural. Nos núcleos familiares alargados há

pessoas que não têm direito a exigir alimentos mas que os recebem em virtude de obrigações
naturais.

ANTUNES VARELA menciona o caso (já datado) em que um homem sustentava uma
mulher, mas em que não eram casados: o convívio dava origem à obrigação de assistência,

sustentado o senhor o enteado. Hoje, isto aplica-se à união de facto.


 Dever imposto aos pais de dar parte aos filhos nos bens produzidos através de trabalho

por eles prestados aos progenitores, com meios pertencentes a estes, ou de os


compensarem por outra forma de trabalho: este é outro exemplo mencionado por ANTUNES

VARELA, previsto no art. 1895.º.

Para além destes casos, podemos ter outros. Exemplo real: uma senhora falece, era casada, e o
marido não permite que os pais dela visitem a urna. O STJ viu aqui uma obrigação natural, um dever

social.

96
FDUC – DOII 2017/2018

 REGIME
Para além das regras especiais do art. 402.º e 403.º, o art. 404.º dispõe que “as obrigações

naturais estão sujeitas ao regime das obrigações civis em tudo o que não se relacione com a
realização coativa da prestação, salvas as disposições especiais na lei”. A regra é, assim, a da

equiparação das obrigações naturais às obrigações civis, com duas ressalvas: as disposições que se
referem especialmente a e a inaplicabilidade das normas que pressuponham a realização coativa da

prestação.
 Disposições que se referem especialmente às obrigações naturais: é exemplo o art. 615.º

(no âmbito da impugnação pauliana, os credores podem impugnar os atos efetuados em


cumprimento de obrigações naturais), o art. 495.º/3 (no caso de lesão da qual provenha a morte ou

incapacidade do ofendido, concede-se o direito à indemnização não só aqueles que podiam exigir
alimentos ao lesado, como aqueles a quem ele os prestava no cumprimento de uma obrigação

natural) e o art. 403.º/1 (admite a repetição do indevido quando o devedor seja incapaz).

 Inaplicabilidade das normas que pressuponham a realização coativa: são inaplicáveis ao


cumprimento da obrigação todas as normas que se relacionem com a realização coativa da

indemnização (modo, lugar e tempo de cumprimento, mora do devedor e credor, incumprimento e


efeitos, etc.).

 NATUREZA JURÍDICA

Por último, releva referir a natureza jurídica das obrigações naturais. Aqui, encontramos três
teorias/doutrinas:

1. OBRIGAÇÃO JURÍDICA IMPERFEITA: apesar de ser uma obrigação jurídica, falta-lhe o vinculo
no seu sentido pleno, ou seja, a possibilidade de reagir contra o incumprimento do devedor.

Era a tese defendida por MANUEL DE ANDRADE.

2. PURA SITUAÇÃO DE FACTO: foi a posição defendida por CARNELUTTI. Segundo este, a
obrigação natural é uma situação material sem relevância jurídica mas, quando cumprida, é

tida como uma obrigação de facto, para todos os efeitos jurídica. Só releva se cumprida, antes

97
FDUC – DOII 2017/2018
não há obrigações jurídicas. Esta é a teoria da juridicidade póstuma, facilmente afastada: há

regras especiais nas obrigações naturais que revelam já antes do cumprimento.

4. DEVER MORAL OU SOCIAL JURIDICAMENTE RELEVANTE: foi defendida por autores como
OPPO e, entre nós, ANTUNES VARELA. As obrigações naturais prendem-se com deveres de

outras ordens morais e sociais, ainda que acauteladas pelo direito.

2. QUANTO AO SUJEITO: OBRIGAÇÕES DE SUJEITO ATIVO INDETERMINADO; OBRIGAÇÕES


SINGULARES E OBRIGAÇÕES PLURAIS

2.1 OBRIGAÇÕES DE SUJEITO ATIVO INDETERMINADO


A obrigação diz-se de sujeito indeterminado quando um dos seus titulares (credor ou devedor)

só é individualizado em momento posterior à sua constituição. Esta possibilidade é expressamente


reconhecida pela lei, mas apenas quando ao sujeito ativo: a obrigação pode constituir-se

validamente sem ficar determinada a pessoa do credor, desde que ela seja determinável.
A indeterminação do sujeito ativo pode resultar de duas circunstâncias:

 A determinação depende de um evento futuro e incerto. É o exemplo das promessas públicas


(art. 459.º e segs.) e dos legados a favor de uma generalidade de pessoas ou a favor de

pessoa que terceiro nomeará entre as designadas pelo testador (art. 2182.º/2).
 A identificação do credor faz-se mediante a ligação do vínculo obrigacional com outra

relação: é o caso típico dos títulos do portador, em que o credor da obrigação se determina
pela posse do documento; e dos títulos à ordem, livremente transmissíveis por endosso e nos

quais o credor se determina pela posse legítima do título no momento do vencimento Já as


obrigações ambulatórias não são obrigações de sujeito passivo indeterminado, uma vez que

não há indeterminação – mudam de titularidade com a mudança de titularidade dos direitos


reais.

98
FDUC – DOII 2017/2018

2.2 OBRIGAÇÕES PLURAIS E SINGULARES


As obrigações plurais são aquelas obrigações em que encontramos vários sujeitos, quer do

lado ativo, quer do lado passivo.

2.2.1 REGRA: AS OBRIGAÇÕES CONJUNTAS


Dizem-se conjuntas as obrigações plurais cuja prestação é fixada globalmente mas em que a

cada um dos sujeitos compete apenas uma parte do crédito comum. No fundo, as prestações dos
devedores ou dos credores conjuntos resultam do fracionamento da prestação global, distinguindo-

se desta forma daquelas relações obrigacionais que, ligadas por um nexo de complementaridade,
nascem logo como obrigações separadas.. A conjunção tanto pode ser originária como

superveniente.
A regra, quando temos uma obrigação plural, é a da conjunção: isto resulta do art. 513.º, a

contrario.
A solidariedade ativa ou passiva só existe se for determinada por lei ou estipulada pelos

interessados: há certas normas que impõem a solidariedade, como o art. 497.º. Porém, no ramo do
direito comercial, a regra é a da solidariedade, art. 101.º e 102.º do Código Comercial.

Notas sobre o regime das obrigações conjuntas:

 Por via de regra, a parte de cada um dos credores ou devedores no crédito ou débito comum
é igual à dos restantes, logo a sua prestação determina-se dividindo a prestação global pelo

número de sujeitos do lado plural da obrigação. Porém, nem sempre assim acontece.
 Cada vínculo é autónomo, podendo cada sujeito dispor livremente do seu direito. Os factos

relativos a cada um dos credores ou devedores (ex: se uma das obrigações for declarada nula)
não exerce nenhum efeito sobre as restantes obrigações.

99
FDUC – DOII 2017/2018

2.2.2 OBRIGAÇÕES SOLIDÁRIAS


Vamos apenas ver a solidariedade passiva. A obrigação diz-se solidária, pelo seu lado passivo,

quando o credor pode exigir a prestação integral a qualquer dos devedores e a prestação efetuada
por um destes os libera a todos perante o credor comum (art. 512.º/1). Assim, são duas as notas

típicas da solidariedade passiva:


 O dever de prestação integral, que recai sobre qualquer dos devedores.

 O efeito extintivo recíproco da satisfação dada por qualquer deles ao direito do credor.

Isto no plano das relações externas; no plano das relações internas, cada um dos obrigados deve
apenas uma quota ou uma parte da prestação, em regra proporcional ao seu número. Este é, porém,

um aspeto secundário, uma vez que pode acontecer que toda a prestação deva recair sobre um só
ou apenas alguns dos devedores (ex: acidente provocado por culpa do comissário).

A solidariedade nas obrigações justifica-se, não só para facilitar a exigência do crédito, mas
sobretudo para acautelar o credor contra o risco da insolvência de algum dos obrigados (por ex., na

responsabilidade extracontratual, art. 497.º, por forma a melhor acautelar os interesses da vítima).

2.2.3 REGIME JURÍDICO DA SOLIDARIEDADE PASSIVA


 FONTES

Como vimos, sendo a conjunção a regra geral, a solidariedade só é admissível quando resulte
da lei ou vontade das partes (art. 513.º). Porém, a nossa lei não foi ao ponto de exigir, para a sua

estipulação entre as partes, uma declaração expressa: qualquer expressão (todos por um, um só por
todos, um pelos outros) que mostre a intenção de as partes consagrarem a solidariedade basta para

este regime ser aplicável à obrigação.


Apesar da regra geral da conjunção, no domínio das relações civis há ainda um vasto campo

de aplicação da solidariedade passiva: em matéria de responsabilidade civil, quer por factos ilícitos,
quer objetiva é solidária a obrigação dos vários responsáveis (art. 497.º/1 e 507.º/1 e 2).

100
FDUC – DOII 2017/2018

 EFEITOS NAS RELAÇÕES EXTERNAS


1) DIREITO DO CREDOR: o credor tem o direito de exigir toda a prestação de qualquer dos

devedores, podendo fazê-lo extrajudicialmente ou, se for caso disso, judicialmente (art. 519.º/1).
Porém, o credor pode prescindir deste benefício, exigindo de qualquer dos obrigados uma parte

apenas da prestação.
Notas:

 Se o credor tiver demandado judicialmente um dos devedores e tiver obtido condenação, fica
inibido de proceder judicialmente contra os outros, salvo se houver entretanto insolvência ou

risco de insolvência do condenado, ou se a execução contra ele se mostrar, por qualquer


razão, particularmente onerosa (art. 519.º/1, 2ª parte).

 O interpelado pode, querendo, realizar a prestação por inteiro (art. 763.º/2); caso o credor se
recuse a recebê-la, incorrerá em mora.

 Sendo demandado pela totalidade da prestação, ou por uma parte dela superior à quota que
lhe compete nas relações internas, o devedor tem a faculdade de chamar os outros à

demanda, para com ele se defenderem.


 Os devedores também têm liberdade de iniciativa, logo que o crédito se vença, quanto à

realização da prestação: qualquer um deles pode cumprir, desde que realize a prestação por
inteiro.

2) MEIOS DE DEFESA DOS DEVEDORES: uma das questões mais importantes é saber em que

medida os factos relativos a um dos devedores se repercutem na posição jurídica dos outros. O art.
514.º diz que o devedor solidário demandado pode invocar:

 Meios de defesa comuns: são aqueles que podem ser invocados contra o credor por qualquer
devedor demandado, uma vez que afetam a relação obrigacional no seu todo. Ex.: o credor retende

o pagamento da prestação. Se um dos devedores invocar a exceção de não cumprimento, isso é um


meio de defesa comum, que todos os devedores poderiam usar, ao afetar a relação obrigacional no

seu todo.

101
FDUC – DOII 2017/2018

 Meios de defesa pessoais: são factos que apenas podem ser invocados pelo devedor a que
digam respeito, podendo tornar impossível a realização da prestação a título temporário ou
definitivo. Enquanto que os meios de defesa comuns atingem a relação obrigacional complexa no

seu todo, os meios pessoais atingem apenas uma das várias relações obrigacionais através das quais
o credor pode exigir de cada um dos devedores a prestação integral a que tem direito.

Os efeitos pessoais dos meios de defesa variam consoante a natureza do facto em que assentam:
 Meios de defesa que, apesar de apenas poderem ser invocados pelo devedor a que se

referem, aproveitam a todos os devedores. É o caso típico da compensação.

 Meios de defesa que prejudicam os outros devedores, pois não só não libertam os outros
devedores do dever de efetuar toda a prestação, como os prejudicam no seu direito de regresso. É o

caso da incapacidade do devedor e da anulabilidade proveniente de qualquer vício da vontade. Se


for demandado, pode invocar a incapacidade; quanto aos outros devedores, não podem invocar a

incapacidade por ser um meio de defesa pessoal. A quota-parte de B é repartida pelos restantes
credores. É um meio que prejudica: nas externas tem de pagar tudo, e nas internas a sua quota-parte

fica acrescida. É ainda o caso da insolvência de um dos devedores: se um dos devedores ficar
insolvente, os outros arcam com a sua quota, pagando a deles mais a do outro devedor solidário –

art. 526.º. Este é um meio de defesa pessoal que os vai prejudicar, pois a nível de relações internas
não podem exigir nada ao devedor insolvente.

 Meios de defesa que não prejudicam os outros devedores, embora também não lhes
aproveitem – neutros. São factos que liberam o devedor perante o credor, mas não em face dos

outros devedores que contra ele exerçam o direito de regresso. É o caso da prescrição e da remissão
concedida a um devedor, quando o credor reserve para si o seu direito por inteiro contra os outros

devedores.

102
FDUC – DOII 2017/2018

3) MODOS DE SATISFAÇÃO DO DIREITO DO CREDOR: ficando o direito do credor satisfeito,


a obrigação extingue-se em relação a todos os devedores, art. 523.º. Para além do cumprimento,

que outros meios de extinção temos?


 Dação em cumprimento (art. 837.º e segs.): traduz-se na prestação diversa daquilo que for

devido, desde que haja acordo entre o credor e o devedor. Há uma figura muito próxima, a
dação pro solvendo (art. 840.º): aqui, o efeito de entrega de uma prestação diferente não é

extintitvo, serve apenas para facilitar o cumprimento da prestação.


 Consignação em depósito (art. 841.º e segs.): o devedor desonera-se da obrigação

depositando a coisa devida.


 Compensação de créditos (art. 847.º e segs.): qualquer devedor pode livrar-se da sua

obrigação invocando um crédito que tenha face ao seu credor. Temos aqui duas relações
obrigacionais: o credor e o devedor são simultaneamente credores e devedores um do outro.

Há requisitos para a compensação, art. 847.º:


 A compensação não funciona ope leges, não é pelo facto de haver créditos

recíprocos que há a extinção. Tem de haver uma declaração nesse sentido,


unilateral, ainda que não seja necessário acordo.

 O crédito tem de ser exigível judicialmente, o que não sucede, como vimos, nas
obrigações naturais. O credor desta obrigação não pode pedir compensação, o seu

crédito não é judicialmente exigível – se o fizesse, estaria a coagir de forma indireta


o devedor, e o legislador não quer que nas obrigações naturais haja uma

intervenção legislativa.
 As duas obrigações têm de ter por objeto coisas fungíveis, em regra dinheiro. Note-

se que a compensação não ocorre só nas situações em que o valor é o mesmo.


Haverá compensação na parte correspondente (art. 847.º, n.º2).

 Novação (art. 857.º e segs.): traduz-se na criação de uma obrigação nova para substituir a

anterior, podendo ser objetiva (substitui-se a obrigação) ou subjetiva (substitui-se um dos


sujeitos). Na dação em cumprimento estamos na mesma relação obrigacional, só se muda a

prestação. Aqui há uma nova relação obrigacional.

103
FDUC – DOII 2017/2018

 Remissão da dívida (art. 863.º e segs.): trata-se de um acordo, com natureza contratual,
entre credor e devedor, que permite a renúncia do direito a exigir a prestação. A ideia geral é

que, havendo uma obrigação solidária e perdoando o credor apenas a um deles, os outros
beneficiam, por a dívida passa a ser menor, a pare perdoada é descontada no valor total da

dívida. Releva porque os outros devedores descontam sua parte na dívida – meio de defesa
pessoal relevante.

 Confusão (art. 868.º e segs.): ocorre sempre que na mesma pessoa se reúnem devedor e
credor. Funciona de imediato, ope leges, art. 868.º. O que acontece quando há confusão no

caso de uma obrigação solidária= Se por alguma razão na mesma pessoa, B, temos as
qualidades de credor e devedor, aqui há a questão de a obrigação não ser singular: temos

que saber de C e D continuam vinculados e se continuam vinculados na mesma medida. É


justo que C e D paguem tudo? Não, uma parte ficou extinta, art. 879.º: logo, exonera-se os

restantes da parte relativa ao devedor em que ocorreu a confusão.

As causas de extinção podem funcionar como meios de defesa.


 Compensação: A, credor, tem um crédito de 15.000€ contra B, C e D. Ao mesmo tempo, B

tem um crédito de 100€ contra A. B pode invocar a compensação (meio de defesa pessoal),
extinguindo-se a dívida. A extinção da dívida aproveita igualmente a C e D, ou seja, estes

ficam desonerados perante o credor nas relações externas. E nas relações internas? B tem o
direito de regresso contra C e D, que vão ter de pagar sua quota parte, 5.000€ (o legislador

presume, quando as partes nada dizer, que as quotas são iguais, art. 516.º). Este é um meio
de defesa que aproveita a todos os devedores: C e D ficam desonerados face ao credor, e

nas relações internas pagam um valor inferior ao valor inicial da prestação.

 Confusão: B, C e D são devedores solidários de A. A morre e sucede-lhe como herdeiro o


devedor B. Os devedores restantes, C e D, continuam devedores solidários perante B, mas

deduzem-se à prestação integral a quota correspondente ao antigo devedor (art. 869.º/1).

104
FDUC – DOII 2017/2018
Quer nas relações externas, quer nas relações internas, ficam beneficiados: é um meio que

aproveita a todos os devedores.

 Remissão:

 Remissão simples: A, credor, tem um crédito de 15.000€ contra B, C e D. A quer remitir a


dívida, mas apenas em relação ao devedor B (meio de defesa pessoal, pois apenas um dos

devedores beneficia do perdão). Os restantes devedores, C e D, aproveitam da remissão


na quota correspondente ao devedor exonerado, passado a dever apenas 10.000€ (art.

864.º/1). Este é um meio de defesa pessoal que favorece os outros devedores, que vêem

a sua dívida diminuída na proporção da quota do devedor desonerado.


 Remissão com reserva: o credor pode, apesar de remitir a sua dívida contra B, reservar o

seu direito por inteiro contra os outros devedores (art. 864.º/2). Apesar de C e D

continuarem a dever 15.000€, nas relações externas conservam o seu direito de regresso

por inteiro contra B, ou seja, o devedor desonerado continua a ter de suportar a sua

quota nas relações internas. Este é, assim, um meio neutro.

 Prescrição: imaginemos que apenas a obrigação de B prescreve (por exemplo, porque os

prazos de prescrição em relação aos outros devedores se interromperam): se A intentar a

ação contra B, B invoca a prescrição (é um meio pessoal). Nas relações externas, nada se

altera, os devedores têm de pagar tudo; nas relações internas, C e D não saem

prejudicados porque B tem de pagar, art. 521.º. É, à semelhança da remissão com reserva,

um meio neutro.

Outro meio de defesa possível é o caso julgado – imaginemos que há uma ação prévia entre o

credor e um dos devedores, art. 522.º. Aqui, temos duas hipóteses:


 A ação é favorável ao credor: o devedor é condenado, tendo sido reconhecido o direito do

credor em relação aquela dívida. Será que o credor pode, com aquela ação, exigir aos demais a

prestação ou não? O art. 522.º proíbe a oponibilidade deste caso julgado: o credor apenas pode
intentar uma ação de execução contra o devedor condenado, ou demandar e pedir a condenação

105
FDUC – DOII 2017/2018
dos restantes devedores. Esta solução justifica-se para permitir a todos os devedores a arguição de

todos os meios de defesa e a produção dos meios de prova que disponham.


 A ação é desfavorável ao credor: será que os outros devedores podem invocar o caso

julgado entre o credor e um dos devedores? Sim, o caso julgado desfavorável ao credor pode ser

oposto, mas desde que não se baseie em fundamento que respeite pessoalmente aquele

devedor. Ou seja, em princípio, o caso julgado pode ser convocado, mas apenas se se tiver baseado
num meio de defesa comum, como a invalidade do contrato. Se se baseou num meio de defesa

pessoal (ex: incapacidade do credor), não pode ser invocado.

 EFEITOS NAS RELAÇÕES INTERNAS


O devedor solidário que houver satisfeito o direito do credor para além da parte que lhe

competia goza do direito de regresso contra os outros devedores pela quota respetiva, art. 524.º. Na
falta de convenção ou disposição em contrário, as quotas de cada um dos devedores solidários

presumem-se iguais (art 497.º/2, 500.º/3 e 507.º/2).


Pelo facto de um dos devedores ter cumprido, os outros não perdem a faculdade de invocar

contra ele, quando exerça o direito de regresso, os meios de defesa que lhes seria lícito opor ao
credor – art. 525.º.

Ou seja, os meios que vimos podem também ser invocados nas relações internas.

 NATUREZA JURÍDICA DA SOLIDARIEDADE: BREVE REFERÊNCIA


A obrigação solidária é vista, não como uma só obrigação, mas como uma pluralidade de

obrigações, ligadas entre si por um certo nexo – a comunhão de fim (colaboração na satisfação do
interesse do credor). Esta é a visão mais conforme a certos aspetos do regime das obrigações

solidárias – a possibilidade de os devedores estarem obrigados em termos diversos ou com diversas


garantias e de ser diferente o conteúdo das suas prestação (art. 512.º/2), e a eficácia restrita que têm

vários dos factos relativos a cada um dos devedores.

106
FDUC – DOII 2017/2018

2.2.3 SOLIDARIEDADE ATIVA: BREVE REFERÊNCIA


Na solidariedade ativa (art. 528.º e segs.), qualquer dos credores tem a faculdade de exigir do

devedor a prestação por inteiro, e a prestação efetuada pelo devedor a qualquer deles libera-o em
face de todos os outros credores. O devedor tem a liberdade de escolher o credor a quem quer

satisfazer a prestação /art. 528.º).


No plano das relações internas, cada um dos credores tem apenas direito a uma quota ou

parte do crédito comum. O credor cujo direito foi satisfeito além da parte que lhe competia tem de
satisfazer aos outros credores a parte que lhes cabe nesse crédito (art. 533.º).

3. QUANTO AO OBJETO:

3.1 OBRIGAÇÕES DIVISÍVEIS E INDIVISÍVEIS


 Diz-se divisível a obrigação cuja prestação é suscetível de fracionamento sem prejuízo do seu

valor económico global;


 E indivisível aquela cuja prestação (seja pela sua natureza, por exigência da lei ou por

estipulação das partes) não comporta fracionamento, ainda que sejam vários os credores ou
os devedores.

O problema surge nas obrigações indivisíveis em que há uma pluralidade de devedores: o credor

não pode exigir a cada um dos obrigados uma quota da prestação global, pois a tal se opõe o
carácter indivisível da prestação debitória. O credor reclama de todos os devedores a prestação

devida ou pode exigi-la, por inteiro, de um só deles? O art. 535.º consagra a primeira solução, salvo
se houver entre os devedores um vínculo de solidariedade.

3.2 OBRIGAÇÕES GENÉRICAS

 NOÇÃO

As obrigações genéricas são aquelas obrigações cujo objeto está apenas determinado pelo

seu género (mediante a indicação das notas ou características que o distinguem) e pela sua

quantidade. Estão previstas no art. 539.º (que menciona apenas o género, pelo que devemos
acrescentar a quantidade).

107
FDUC – DOII 2017/2018

Distinguem-se das obrigações específicas, cujo objeto imediato é individual ou


concretamente fixado. A transmissão do prédio X é uma obrigação específica, enquanto que a

entrega de 100 kg de maçãs é uma obrigação genérica, por não indicar a sua qualidade.
A determinação do objeto da obrigação genérica pressupõe mais das vezes uma operação de

escolha, quando as coisas compreendidas no género fixado não tenham todas a mesma qualidade.
Outras vezes é a própria lei que concentra a prestação num dos objetos compreendidos no género;

outras ainda, quando os objetos compreendidos no género têm todos a mesma qualidade, a
determinação faz-se por meio de especificação, que pode constar de uma simples operação de

contagem, pesagem ou medição. A estas obrigações dá-se o nome de obrigações de quantidade,


que são um subtipo das obrigações genéricas.

 REGIME

Aspetos do regime das obrigações genéricas:

 CONCENTRAÇÃO DA OBRIGAÇÃO: através da concentração da obrigação, esta passa de


obrigação genérica a obrigação específica, ou seja, o obrigado passa a dever apenas a coisa

determinada dentro do género. São quatro as causas de concentração previstas na lei (art. 541.º):
 Acordo das partes: a escolha, na falta de estipulação em contrário, compete ao

devedor (art. 539.º) – isto porque a maior parte das normas do regime das obrigações
genéricas visa a proteção do devedor. As partes podem, porém, confiá-la a terceiro

(art. 400.º/1). Se a escolha competir ao credor, tem de ser notificada ao devedor; se


competir a terceiro, precisa de ser declarada a ambas as partes (art. 542.º).

 Extinção parcial do género: o género extingue-se ao ponto de restar apenas uma das
coisas nele compreendidas. A concentração dá-se logo que não haja margem para a

operação de escolha do objeto da prestação debitória.


 Mora do credor: se o credor se recursar a receber a prestação da coisa escolhida, a

obrigação tem-se por concentrada a partir do momento da oferta da prestação.


 Entrega ao transportados, expedidos ou recetor da coisa: tratando-se de coisa que

deva ser enviada para local diferente do lugar do cumprimento, a concentração dá-se

108
FDUC – DOII 2017/2018
logo com a entrega ao transportados ou expedidor da coisa ou à pessoa designada

para a execução do envio (art. 797.º).

 EXONERAÇÃO DO DEVEDOR: enquanto houver coisas dentro do género fixado, mesmo que
as coisas perecidas ou inutilizadas sejam aquelas com que o devedor pensava cumprir, continua

adstrito ao vínculo obrigacional (art. 540.º). Só poderá ser exonerado quando, sem culpa sua, se
extinguir todo o género dentro do qual aprestação está compreendida.

 RISCO: aqui, os princípios fundamentais são os de que o risco corre por conta do proprietário

(art. 796.º) e de que o domínio nas obrigações genéricas só se transfere com a concentração da
obrigação (art. 1317.º/a) e 408.º). A partir da concentração, há lugar à transferência do domínio, que

implica a transferência do risco: é esta a relevância prática de saber qual o momento da


concentração. Assim, se a coisa perece antes da concentração, o prejuízo corre por conta do

devedor, quer ele continue ainda vinculado, quer fique exonerado por ter desaparecido todo o
género.

3.3. OBRIGAÇÕES ALTERNATIVAS

 NOÇÃO
As obrigações alternativas são obrigações que compreendem duas ou mais prestações,

exonerando-se o devedor mediante a realização de uma delas. O vínculo abrange várias prestações,
mas o cumprimento fixa-se apenas em uma delas. Estão previstas no art. 543.º e segs. e distinguem-

se facilmente das obrigações genéricas: enquanto que nas obrigações alternativas as partes têm em
vista os diversos objetos da prestação na sua individualidade própria; nas obrigações genéricas, têm

em vista apenas o género em que a prestação se integra, as qualidades comuns das múltiplas
prestações em que a obrigação se pode concentrar no momento do cumprimento.

109
FDUC – DOII 2017/2018

 REGIME
Aspetos principais do regime das obrigações alternativas:

 Escolha: a escolha é o ato pelo qual se opera a concentração da obrigação numa das
prestações em alternativa a que o devedor se encontra adstrito. O poder de escolha tanto pode

pertencer a uma das partes como a um terceiro (art. 400.º, 543.º e 549.º). Na falta de convenção em
contrário, é ao devedor que a escolha compete (art. 543.º/2). Ver arts. 548.º e 549.º (que remete

para o art. 542.º: se a escolha compete ao devedor e este não escolhe, a escolha passa a competir
ao credor).

 Impossibilidade: no caso de impossibilidade originária, se só uma prestação restar como


possível, elimina-se a falsa alternativa e fica de pé apenas uma obrigação simples. Já no caso de

impossibilidade superveniente, podemos ter as seguintes hipóteses:


 Por causa não imputável às partes: se todas as prestações se tornarem

impossíveis, é aplicável o regime da impossibilidade superveniente nas obrigações


simples (art. 790.º e segs. e 801.º e segs.). E se a impossibilidade abranger apenas

uma ou algumas das prestações em alternativa? Se a impossibilidade se dá antes da


escolha estar feita, provoca a concentração na outra (esta é uma concentração ope

legis, art. 545.º). Se se dá depois da escolha estar feita, uma vez que a escolha
converte a obrigação alternativa numa obrigação simples, temos duas hipóteses: se

a impossibilidade abrange a prestação não escolhida, não perturba a vida da


obrigação; se abrange a prestação escolhida, aplica se o regime da impossibilidade

supervenientes das obrigações simples por causa não imputável às partes (art.
790.º e segs.).

 Por causa imputável ao devedor: aqui, temos várias hipóteses (art. 546.º).
o Se o direito de escolha for do devedor, a obrigação reduz-se às

prestações possíveis. Não se concede assim ao devedor o poder de


escolha, como sanção.

o Se o direito de escolha for do credor, não é justo que a impossibilidade


limite o seu poder de escolha, pelo que este pode fazer uma de três

coisas: optar entre qualquer das prestações possíveis; pedir uma

110
FDUC – DOII 2017/2018
indemnização pelos danos provenientes de não ser efetuada a prestação

que se tornou impossível; ou resolver o contrato.


 Por causa imputável ao credor: temos novamente várias hipóteses, art. 547.º:

o Se o direito de escolha pertencer ao credor, a obrigação considera-se


cumprida, como se o culpado tivesse escolhido a prestação cuja

realização tornou impossível.


o Se o direito de escolha pertencer ao devedor, a obrigação tem-se

igualmente por cumprida. Porém, este pode optar pela prestação possível
e exigir, simultaneamente, a indemnização pelos danos que haja sofrido.

 Pertencendo a escolha a terceiro: sendo a impossibilidade imputável ao credor, a


obrigação deve ter-se por cumprida, salva a possibilidade de o terceiro optar pela

prestação possível, com os efeitos previstos na parte final do art. 547.º. Se for
imputável ao devedor, o terceiro poderá optar por qualquer das prestações

possíveis ou pela indemnização correspondente à impossibilidade da outra (art.


546.º, não pode optar pela resolução do contrato).

3.4 OBRIGAÇÕES COM FACULDADE ALTERNATIVA

As obrigações com faculdade alternativa são aquelas obrigações que têm por objeto apenas
uma prestação, mas em que o devedor tem a faculdade de se desonerar mediante a realização de

uma outra, sem necessidade da aquiescência posterior do credor. O credor não pode exigir a
prestação alternativa, mas terá de a aceitar se o devedor optar por ela, sob pena de incorrer em

mora.
Distinguem-se:

 Das obrigações alternativas: enquanto nestas há na sua génese uma opção, nas obrigações
com faculdade alternativa apenas há uma obrigação, mas mediante determinadas

circunstâncias há a possibilidade de realizar outra prestação.


 Da dação em cumprimento: esta é uma forma de extinção da obrigação em que, por acordo

das partes, é realizada prestação diferente da convencionada. Já nas obrigações com


faculdade alternativa, as partes convencionam logo de início que se pode realizar outra

prestação.

111
FDUC – DOII 2017/2018

4. OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS
4.1 NOÇÃO

Aparecem reguladas nos arts. 550.º e segs. As obrigações pecuniárias são aquelas obrigações
que, tendo por objeto uma prestação em dinheiro, visam proporcionar ao credor o valor que as

respetivas espécies possuam como tal. Para termos uma obrigação pecuniária, não basta que esta
verse sobre um montante em dinheiro: o dinheiro tem de ser visto na ótica do seu valor. Não se tem

em conta, apesar de o devedor e credor entregarem uma determinada quantidade de espécies


monetárias, estas enquanto coisa certa e determinada: pretende-se atribuir ao credor o valor

representado por essas espécies pecuniárias. Podemos ter obrigações cujo objeto é um montante em
dinheiro mas não são obrigações pecuniárias:

 Se entregamos a um colega uma moeda para que este a guarde e amanha a entregue
(depósito singular), a obrigação de entregar a moeda não é uma obrigação pecuniária, mas

sim de entrega de uma coisa certa e determinada. Não está em causa o dinheiro enquanto
valor.

 Outro exemplo: um colecionador entrega determinadas espécies monetárias com um valor


histórico para uma exposição a uma galeria. A galeria fica com a obrigação de devolver, não o

quantitativo, mas aquelas espécies que foram expostas. Esta é uma obrigação que não é
pecuniária, pois o que a caracteriza e que e vista tendo em conta o valor das espécies

monetárias e não as espécies monetárias em si mesma.

4.2 DIFERENTES VALORES DA MOEDA


O dinheiro pode ter vários valores:

 Valor nominal: é aquele com que as espécies monetárias são postas a circular. Quando se diz
que uma moeda vale 1€, este é o seu valor nominal.

 Valor metálico ou intrínseco: é o valor do metal ou liga metálica contida em cada espécie

monetária. Normalmente o valor metálico é inferior ao valor nominal – caso contrário, as


moedas têm tendência a sair do mercado.

 Valor aquisitivo: traduz-se no conjunto de bens que se pode adquirir com aquele conjunto
de moedas. Quando os preços aumentam, o valor aquisitivo diminui.

112
FDUC – DOII 2017/2018

Normalmente, referimo-nos ao valor nominal – princípio nominalista.

4.3 ESPÉCIES DE OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS

1) OBRIGAÇÕES DE SOMA OU DE QUANTIDADE: nas obrigações de soma ou quantidade,


indica-se apenas a soma ou quantia sem se indicar as espécies monetárias em que esta deve ser

feita. Estas são as mais frequentes.


Colocam um problema: entre o momento do nascimento e o momento do cumprimento, o

valor aquisitivo pode variar. Será que o valor nominal a entregar ao credor é o mesmo do momento
do cumprimento ou a obrigação deve ser atualizada em termos de facultar ao credor um poder

aquisitivo real semelhante ao que a prestação lhe proporcionaria no momento em qua obrigação foi
constituída? O legislador, no art. 550.º, opta pela primeira hipótese: o valor nominal deve ser o

mesmo, salvo estipulação em contrário. Isto significa que as partes podem defender o poder
aquisitivo da prestações através da inserção de cláusulas de atualização ou indexação adequadas,

nos períodos de mais acentuada instabilidade económica.

Ao princípio estabelecido no art. 550.º dá-se o nome de princípio nominalista: a obrigação

é paga tendo em conta o seu valor nominal. Mas o que justifica este princípio, que é uma regra

supletiva?
 O critério do art. 550.º é um critério mais cómodo, pois as atualizações e indexações não são

muito seguras.
 Por outro lado, a atualização das prestações poderia levar a certas injustiças. Por exemplo,

não é seguro que o credor tivesse conseguido colocar o dinheiro numa aplicação segura e
rentável se o tivesse logo recebido.

Para além da hipótese de as partes inserirem cláusulas de indexação ou atualização, muitas vezes

o próprio legislador manda proceder a atualizações. Estas situações configuram exceções ao


princípio nominalista: por exemplo, nas obrigações de alimentos (art. 2009.º), o valor dos bens

doados à família é o valor ao momento da sucessão.

113
FDUC – DOII 2017/2018

Nestas obrigações de soma ou quantidade, a doutrina distingue as chamadas dívidas de valor.


As dívidas de valor acabam por se traduzir também em obrigações pecuniárias, mas em que a
pecunia é apenas um meio de liberação do respetivo devedor. Trata-se de dívidas que não têm
diretamente por objeto o dinheiro, mas a prestação correspondente ao valor de certa coisa ou ao
custo real e mutável de determinado objeto sendo o dinheiro apenas um ponto de referência ou um

meio necessário de liquidação da prestação. São exemplos:


 Obrigação de indemnizar: é uma dívida de valor, pois não se define à partida que o credor

tem direito a um dado montante em dinheiro, tem direito a reparação dos prejuízos que
sofreu. No momento do cumprimento, quando a reparação natural não é possível, vai ficar

com uma quantia em dinheiro (art. 566.º).


 Enriquecimento sem causa: é outro exemplo de uma dívida de valor, em que a prestação em

dinheiro é determinada com um dado objetivo.

Relativamente a estas dívidas de valor, não vale o princípio nominalista. Nestas dívidas de

valor, o princípio nominalista só passa a valer a partir do momento em que é fixado o montante em
dinheiro, pois a partir desse momento o objeto é esse dado montante. Por ex., no caso da obrigação

da indemnização, o momento que se deve atender para a fixação dos danos (art. 566.º/2) é a data
mais recente possível.

2) OBRIGAÇÕES DE MOEDA ESPECÍFICA: contrapõem-se às obrigações de soma ou quantidade.

As obrigações de moeda específica são aquelas obrigações em que se estipula que o cumprimento
tem de ser feito em determinada espécie monetária, estando previstas no art. 552.º e segs. Isto é

feito com o intuito de as partes se precaverem contra a desvalorização monetária.


O art. 552.º distingue as duas variantes distintas que a obrigações de moeda específica por

revestir:

 Cláusula-ouro ou cláusula-prata: as partes especificam que o cumprimento tem de ser feito


em moeda metálica (ouro ou prata).

114
FDUC – DOII 2017/2018

 Cláusulas valor-ouro ou cláusulas valor-prata: as partes convencionam o pagamento em


moeda corrente, mas pelo valor de determinada espécie monetária (ouro ou prata). Estão
previstas na parte final do art. 552.º.

O art. 553.º vem dizer que, se for estipulado que o cumprimento deve ser feito numa espécie

monetária, o cumprimento deve ser feito nessa espécie, ainda que tenha variado de valor. Se se
convencionou que a divida era de 50 libras de ouro, o devedor terá de entregar 50 libras de ouro

independentemente de o seu valor tiver variado entre a data da constituição e a data do respetivo
cumprimento. Já o art. 554.º prevê a hipótese de se fixar a quantia devida em dinheiro corrente e

estipular-se ao mesmo tempo que o cumprimento será feito em certa espécie monetária.
Mas pode acontecer que não haja moedas para fazer o cumprimento: tem de fazer prova da

impossibilidade de arranjar o metal, e o pagamento pode ser feito, na parte da divida que não se
conseguir cumprir, em moeda corrente que perfaça o valor dela segundo a cotação que a moeda

tiver na bolsa no dia do cumprimento (art. 555.º).

3) OBRIGAÇÕES VALUTÁRIAS: são obrigações cujo cumprimento se estipula que seja feito em
moeda estrangeira (art. 558.º). Quanto à moeda convencionada, o pagamento obedecerá em regra

ao princípio nominalista.
O art. 558.º reconhece ao devedor a possibilidade de cumprir com moeda nacional, calculando-

se o câmbio no dia do cumprimento. Estas são as obrigações valutárias impróprias: é valutária por
ser fixada em moeda estrangeira, mas imprópria por ser cumprida na moeda com curso legal. As

obrigações valutárias impróprias são obrigações de faculdade alternativa. Note-se que as partes têm
a possibilidade de estabelecer que o cumprimento tem de ser feito na moeda estrangeira sem a

possibilidade de pagar na moeda corrente.


Pode acontecer que as partes fixem a moeda sem curso legal apenas como um valor de

referência e não um modo de cumprimento – esta não é uma obrigação valutária.

115
FDUC – DOII 2017/2018

4.4 OBRIGAÇÃO DE JUROS


 NOÇÃO

Os juros são os frutos civis, constituídos por coisas fungíveis, que constituem o
rendimento de uma obrigação de capital; ou seja, são a remuneração do capital. Podem ser

convencionais ou legais: convencionais quando a taxa é fixada pelas partes aquando da celebração
do respetivo negócio, e legais quando está fixada na lei. Quando as partes não fixam uma taxa,

supletivamente aplica-se a lei.


Também existem os chamados juros de mora, que não são mais do que uma espécie de valor

pago pelos danos moratórios. Quando o devedor não paga, no prazo previsto, a respetiva obrigação,
e esses atraso lhe é imputável, dizemos que o devedor está em mora. Esse atraso, só por si, causa

danos ao respetivo credor. Nas obrigações pecuniárias, o legislador presume a existência desses
danos: enquanto nas restantes o credor deve fazer prova que o atraso lhe causou prejuízos, nas

pecuniárias presume a lei a existência desses prejuízos.

O legislador fixa limites para a taxa de juro: a proibição da usura (antes, proibia-se mesmo o
mútuo civil). Para prevenir a usura, o legislador fixa limites para as taxas de juro: mesmo as taxas

convencionais não podem ultrapassar, em certos limites, as taxas legais.


Há um critério genérico de fixação da taxa limites dos juros, e as taxas são fixadas uma vez por

semestre normalmente através de aviso do Ministério das Finanças e da Economia. Para este ano, as
taxas de juros são as seguintes:

 A taxa de juros comerciais para a generalidade das obrigações pecuniárias é de 7.25%; e, para
as dívidas comerciais resultantes de certas transações, é de 8.25%. Isto resulta do Decreto-lei

62/2013.
 A taxa de juro civil é de 4% (mútuo civil e pagamento de juros de mora).

Porquê o valor de 7.25%? O Decreto-lei 62/2013 é a transposição de uma diretiva que visava

combater a morosidade no pagamento das obrigações pecuniárias, tentando onerar os devedores


que se atrasassem no cumprimento das respetivas obrigações. Aplica-se às dívidas resultantes às

transações comerciais entre empresas, estando de fora os débitos dos consumidores e, nas relações

entre empresas, as dívidas não resultantes de transações comerciais. Este Decreto-lei veio modificar o

116
FDUC – DOII 2017/2018
art. 102.º do Código Comercial, acrescentando o parágrafo 5: o art. 102. contém o critério de

fixação das taxas de juro, relativamente à generalidade das dívidas, tendo em conta a taxa do Banco
Central Europeu acrescida de 7 pontos percentuais. Esta taxa é de 0.25%, que mais 7 pontos

percentuais dá aquela taxa de 7.25%. Para as outras transações, é a taxa de referência do Banco mais
8 pontos percentuais, que dá a taxa de 8.25%. A Portaria 277/2013 repete o critério do 102.º do

Código Comercial.

As partes não podem convencionar taxas de juro superiores. Mas vemos que os bancos cobram
taxas de juro muito superiores. Isto porque a lei não limita o mútuo bancário, vigorando a lei da

concorrência.

Além de limitar o montante, a lei estabelece a proibição do anatocismo, art. 560.º O anatocismo
traduz-se no vencimento de juros sobre juros, sendo que o legislador proíbe isto, uma vez que tal

resultaria em subversão das regras que impõem limites aos juros (permitir que os próprios juros
vencessem juros seria aumentar a taxa). Isto a menos que essa convenção acerca da capitalização

seja posterior ao próprio vencimento: por ex., os juros de mora são 4% por cada mês de atraso. Só
ao cabo do vencimento desses mesmos juros é que se podem recapitalizar.

Os juros pressupõem uma obrigação de capital, mas a lei dá-lhes uma certa autonomia, que
consiste na possibilidade de serem cedidos. O credor pode ceder o seu direito ao capital e continuar

com o crédito de juros, ou pode ceder o seu crédito de juros e continuar com o seu direito ao
capital. Há uma certa independência, prevista no art. 561.º. Esta independência reflete-se também a

nível da prescrição, art. 307.º e 310.º. Do art. 307.º resulta que os juros são prestações periódicas e a
obrigação de capital não. Por outro lado, a dívida de juros tem um prazo de prescrição de 5 anos e o

capital, não se dizendo mais nada, vigora o prazo geral da prescrição (art. 310.º). Assim, pode haver
extinção da obrigação de pagar juros e manter-se a obrigação de devolver o capital.

117
FDUC – DOII 2017/2018

V. CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES


1. GENERALIDADES

1.1 NOÇÃO DE CUMPRIMENTO

O cumprimento é a realização voluntária, pelo devedor, da prestação debitória (art. 762.º).


Notas:

 O credor tem direito à prestação, e aqui prestação aparece com vários significados, que são
pressupostos em normas diferentes. Quando falamos em prestação, podemos supor que estamos a

falar do comportamento do devedor em abstrato: o cumprimento traduzir-se-ia apenas na realização


da atividade a que se obriga o devedor. Porém, a prestação debitória tem uma finalidade, a

realização do interesse do respetivo credor. A prestação debitória pode ser possível mas pode não
ter o valor do cumprimento, por não satisfazer o interesse e por essa perda de interesse ter sido

motivada por um comportamento do devedor. Ou seja, nem sempre a prestação corresponde ao


cumprimento: o cumprimento consiste na realização da prestação que satisfaça o interesse do
credor, interesse este que é o interesse primário, fixado aquando da constituição da relação
obrigacional.

 E se a prestação debitória for realizada por outrem que não o devedor? É possível, quando se
trata de prestação de natureza fungível, um terceiro realizar a respetiva prestação. E o credor nem

sequer se pode recusar a receber se for fungível, não prejudicando o interesse do credor a satisfação
de terceiro. Quando é o terceiro que cumpre ou realize os factos, será que podemos falar em

cumprimento? Se entendermos que é a realização da prestação, sim; mas entendemos prestação


num sentido mais estrito. Apesar de liberar o devedor e o credor ter de aceitar sob pena de incorrer

em mora, devemos entender que só há cumprimento quando se realiza o comportamento a que se


está adstrito, e o terceiro não esta adstrito a nenhum comportamento.
 Numa terceira nota, cumprimento é a realização voluntária, logo estamos a retirar do domínio
do cumprimento a realização coativa da prestação. Esta é apenas um meio que realiza o interesse do
respetivo credor.

118
FDUC – DOII 2017/2018

1.2 DIREITO AO CUMPRIMENTO E DIREITO À PRESTAÇÃO


Vista do lado do devedor, a obrigação é representada como o dever de prestar; do lado do

credor, como um direito à prestação. Dentro dos vários poderes que o direito de crédito comporta,
destaca-se o poder ou a faculdade de o credor exigir do devedor a atuação ou realização da

prestação que lhe é devida – é neste sentido que a obrigação pode ser vista como direito ao
cumprimento. Esta é a mesma realidade mas em momentos diferentes: o momento genético, com a

ordem jurídica a conferir ao credor o direito à prestação e a impor ao devedor o dever de prestar; e
o momento funcional, de realização do direito, com a lei a conferir ao credor o poder de exigir o

cumprimento da prestação.
Apesar de serem a mesma realidade vista em momentos distintos, não se confundem:

 O direito à prestação ou direito de crédito existe logo que a prestação é devida, enquanto que
para poder exigir-se o cumprimento a obrigação tem de estar vencida.

 O direito à prestação não se esgota no poder de exigir o cumprimento, encerra em si, no seu
conteúdo, outros poderes ou faculdades (por exemplo, o poder de dispor do crédito).

 Se o cumprimento da prestação não for possível, pode surgir, em seu lugar, o direito de o
credor reclamar o ressarcimento dos danos causados (que pode, no caso de mora, cumular-se

com o poder de exigir o cumprimento da prestação originária).

1.2 PRINCÍPIOS
1) PRINCÍPIO DA BOA FÉ: o art. 762.º/2 estipula que, tanto o cumprimento da obrigação,

como no exercício do respetivo direito de crédito, as partes devem proceder de boa fé. Este princípio
assume aqui o sentido de princípio norteador de comportamento, que exige que o devedor e credor

ajam de forma honesta, correta e leal. Note-se que esta regra aplica-se tanto ao credor como o
devedor: o devedor não pode ficar à mercê do credor, apesar de a relação obrigacional se constituir

no interesse deste.
O princípio da boa fé é fonte de vários deveres de conduta: apesar de ser a prestação

principal que realiza o interesse do credor, acaba por nascer um conjunto significativo de deveres de
conduta necessários para o concreto processamento da relação. Apesar de estes deveres não serem,

pela sua natureza, ser objeto da ação de cumprimento a que se refere o art. 817.º/2, a sua

119
FDUC – DOII 2017/2018
inobservância pode dar lugar a um cumprimento defeituoso (art. 762.º/2), obrigando o devedor a

reparar os danos dele resultantes ou a sofrer outras consequências.


Como vimos, estende-se quer ao devedor, quer ao credor. O credor não só não pode

dificultar o cumprimento, mas é mesmo necessário que pratique atos que facilitem o cumprimento.
Por ex., um contrato de empreitada em que o credor (dono da obra) tem de facultar ao devedor o

substrato material da respetiva prestação- dar acesso ao local, fazer trabalhos preparatórios quando
convencionados, entregar o objeto da prestação onde recai o trabalho do empreiteiro, etc. Há um

conjunto de atos preparatórios que o credor tem de cumprir, sob pena de incorrer em mora.

2) PRINCÍPIO DA PONTUALIDADE: a regra mais importante a observar no cumprimento das


obrigações é a da pontualidade que a lei enuncia desde logo a propósito dos contratos – pacta sunt

servanda, art. 406.º. Quando falamos em pontualidade, não nos referimos apenas ao cumprimento a
tempo e horas; isto significa que o cumprimento deve coincidir, ponto por ponto, em toda a linha,

com a prestação a que o devedor se encontra adstrito.

Do princípio da pontualidade retiramos três corolários.

2.1) Primeiro corolário: cumprimento integral. A prestação debitória deve ser realizada
integralmente e não por partes, não podendo ser o credor forçado a aceitar o cumprimento parcial

(art. 763.º). A prestação deve ser realiza integralmente, exceto se for outro o regime convencionado.
Quando o devedor oferece a prestação, tem de ser oferecida na totalidade; caso contrário, o credor

pode recusar a prestação em partes e o devedor incorre em mora relativamente a toda a prestação.
Porém, o credor, se assim o entender, pode aceitar o cumprimento parcial; ou, renunciando ao

benefício, pode exigir apenas uma parte do crédito (art. 763.º/2). Note-se que nem sequer é
necessário averiguar se o cumprimento parcial prejudica ou não o interesse do credor: porém, se o

não cumprimento de uma obrigação de uma parcela da prestação não tem relevo jurídico e o credor
a recusa, podemos convocar a má fé para ilegitimar o comportamento do credor.

No caso de impossibilidade parcial, não imputável ao devedor, pode acontecer que o credor
tenha de aceitar o cumprimento parcial a menos que isso prejudique o seu interesse.

O art. 763.º ressalva a possibilidade de ser outro o regime convencionado ou imposto por lei
ou pelos usos – por exemplo, nas obrigações fracionadas.

120
FDUC – DOII 2017/2018

2.2) Segundo corolário: o devedor não goza do chamado do benefício competentiae. Isto
significa que, ainda que o cumprimento da obrigação coloque o devedor em dificuldades
económicas tais que ele fica numa situação miserável, ele não deixa de estar obrigado ao respetivo

cumprimento. A doutrina, sobretudo a alemã, durante a fase da segunda grande guerra, falou muito
da chamada impossibilidade económica, do limite do sacrifício: quando o cumprimento colocasse o

devedor em circunstância económicas tais que o colocasse uma situação miserável, deixaria de ser
exigível o cumprimento. Porém, a nossa lei não acolheu a doutrina do limite do sacrifício, ainda que o

cumprimento do devedor o coloque numa circunstância de grande dificuldade económica, continua


a ser obrigado ao cumprimento.

Isto é compensado, em termos processuais, pela impenhorabilidade, relativa ou absoluta, de


alguns bens que satisfaçam necessidades básicas do devedor: por exemplo, não é possível penhorar

a totalidade do salário ou reforma do trabalhador ou pensionista; e o direito a alimentos é


impenhorável.

2.3) Terceiro corolário: o devedor não se pode desonerar ou liberar, entregando coisa

diferente da prevista no título constitutivo da obrigação, ainda que essa coisa diferente tenha
maior valor. Isto a menos que exista consentimento do respetivo credor. Quando alguém entrega

coisa diferente da que foi convencionada, temos uma dação em cumprimento, que é uma forma de
extinção para além do cumprimento. Esta só é eficaz se houver consentimento, art. 837.º.

1.3 AÇÃO DE CUMPRIMENTO: PRESCINDIBILIDADE DE CULPA E DE DANO

Se o credor não cumpre a obrigação, o credor tem a possibilidade de recorrer a ação de


cumprimento, art. 817.º e segs. Ao recorrer a esta ação, o credor está a manifestar a vontade de

obter a prestação originária a que tem direito, pedindo assim a condenação in natura do devedor.
Isto implica considerar-se o devedor em atraso ou morar, mas não em incumprimento definitivo.

Diferentemente, quanto o credor recorre à ação de reparação do dano causado pelo incumprimento,
está a renunciar ao cumprimento, passando a obrigação do devedor a ter por objeto o ressarcimento

do dano.

121
FDUC – DOII 2017/2018
Enquanto que são pressupostos da ação de responsabilidade civil do devedor por incumprimento a

culpa do devedor e a existência de dano resultante de facto ilícito (arts. 798.º e 483.º), a ação de
cumprimento não pressupõe a culpa do devedor, nem a existência de dano proveniente do atraso na

realização da prestação. Pode haver danos moratórios, mas o objetivo desta ação não é repará-los.

1.4 DISTINÇÃO ENTRE CUMPRIMENTO E RESSARCIMENTO DO DANO EM FORMA


ESPECÍFICA

O cumprimento, ainda que retardado, é a realização da prestação originária, o meio de


satisfazer plenamente o credor. Já a reparação do dano é a realização de uma prestação diversa,

sucedânea da prestação principal. Falamos em prioridade natural da ação de cumprimento pois esta
visa que o tribunal condene o devedor à realização da prestação, ou seja, tem os mesmos efeitos que
o cumprimento. A prioridade da ação de cumprimento justifica-se perante a indemnização, seja em
forma específica, seja por equivalente: esta já não realiza o interesse primário do devedor, é um

substituto. O dever de indemnizar é um dever secundário que realiza do incumprimento do dever

primário: daí a prioridade natural da ação de cumprimento, que realiza o interesse do credor,

face à ação de indemnização. Já dentro da indemnização, a prioridade é a reconstituição natural, a


indemnização em forma específica (art. 562.º e 566.º/1). Mas muitas vezes esta reconstituição

natural não é possível: aí, fala-se de uma simples compensação.

1.5 LUGAR E PRAZO DO CUMPRIMENTO


 LUGAR

O princípio geral está no art. 772.º: na falta de estipulação, a prestação deve ser efetuada no
domicílio do devedor. Esta seria uma regra geral, que se compreende pois o regime do cumprimento

e do incumprimento tem um cunho de proteção do devedor, a parte mais fraca. Mas esta é uma
regra que tem inúmeras exceções, a principal das quais tem a ver com as obrigações pecuniárias: o

art. 774.º diz que, se a obrigação tiver por objeto certa quantia em dinheiro, deve a prestação ser
efetuada no lugar do domicílio do réu. Esta é a maior exceção. O art. 773.º refere-se à entrega de

coisas móveis.
Note-se que estas são normas supletivas; porém, alguns contratos têm normas mandatórias

quando ao lugar.

122
FDUC – DOII 2017/2018

 PRAZO
Quanto ao prazo, podemos ter obrigações puras, em que não existe fixação do prazo; ou

obrigações com prazo. As primeiras são válidas, não são indeterminadas, pois quando as partes não
fixam um prazo o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim

como o devedor pode a qualquer tempo exonerar-se (art. 777.º). Ou seja, se não for fixado prazo,
pode ser exigido o cumprimento a todo o tempo. Apesar de a obrigação ser imediatamente exigível,

tem de haver um ato do credor, a interpelação (ato pelo qual pede o cumprimento da prestação);
porém, o devedor pode, se tiver interesse, realizar a prestação quando quiser, mesmo sem

interpelação.
O problema que surgiu foi o de saber se o devedor e credor são protegidos durante o

decurso do prazo.
Quem tem o benefício do prazo? Isto está previsto no art. 779.º: o prazo tem-se por

estabelecido a favor do devedor, quando se não mostre que o foi a favor do credor ou de ambos.
 Se temos um benefício do prazo a favor do devedor, isto significa que, até ao decurso do

prazo, o credor não pode exigir antes o cumprimento da prestação.


 Se for a favor do credor (ex: entrega de alimentos perecíveis), significa que o devedor não

pode oferecer-se para cumprir antes.


 Podemos ter as situações que corre a benefício de ambos: só pode ser realizada na data

acordada. Ex: catering num casamento.

Há situações em que o devedor perde o benefício do prazo, como sucede nas obrigações a
prestações: a regra geral é a do art. 781.º, segundo o qual o não pagamento de uma prestação

implica a perda do benefício do prazo (com a regra especial do art. 934.º). O art. 780.º estabelece a
regra geral da perda do benefício do prazo: há quem entenda que esta norma é inconstitucional. Se

uma pessoa se torna insolvente e tem créditos ainda não vencidos, esses credores podem logo exigir
o cumprimento: a vantagem para o credor é a de que pode imediatamente acionar as garantias que

tenha. Também há perda do benefício se diminui as garantias (por ex., se não pagar caução).

123
FDUC – DOII 2017/2018

Outras duas notas:

 Obrigações com cláusulas cum potuerit, art. 778.º/1: se tiver sido estabelecido que o
devedor cumpre quando puder, a prestação só é exigível tendo este possibilidade de cumprir. Como

se distinguem das obrigações naturais? Nestas últimas não há uma exigibilidade; nas obrigações cum
potuerit, o credor pode exigir o cumprimento quando haja possibilidade de cumprimento por parte
do devedor. O legislador estabelece uma regra para o falecimento do devedor: a prestação é exigível
aos herdeiros, independentemente da prova dessa possibilidade. Isto significa que, com o

falecimento do devedor, a obrigação torna-se exigível e deixa de ser cum potuerit, há uma conversão
da obrigação ope legis.

 Obrigações com cláusulas cum voluerit, art. 778.º/2: o devedor cumpre quando quiser. Não
existe qualquer possibilidade de interpelar; se falecer, os seus herdeiros têm de cumprir.

2. A COERÇÃO AO CUMPRIMENTO

A coerção ao cumprimento pode ser privada ou judicial.

2.1 COERÇÃO PRIVADA

A coerção privada visa compelir o devedor ao cumprimento, ou seja, fazer pressão sobre a

vontade do devedor em ordem a evitar o incumprimento e obter o cumprimento das obrigações.


Notas:

 Característica da coerção privada é, assim, a ameaça ou intimidação.


 A possibilidade do cumprimento é outro elemento característico da coerção privada:

destinada a obter o cumprimento, pressupõe que o devedor possa cumprir a obrigação válida
e eficazmente.

 Finalmente, um último elemento constitutivo é o carácter privado da sua utilização pelo


credor, sem a intervenção do juiz (podendo este intervir a posteriori, controlando e corrigindo

eventuais abusos).

124
FDUC – DOII 2017/2018

Os meios privados de tutela costumam ser divididos em dois tipos:


 Meios ofensivos.

 Meios defensivos.

A tutela privada ofensiva ou coerção ofensiva consiste em estabelecer antecipadamente formas


de constranger o devedor a cumprir, ou seja, o credor atua ativamente para prevenir o

incumprimento. Engloba a cláusula penal, o estabelecimento de sinal e a cláusula resolutiva expressa.


A tutela privada defensiva ou coerção defensiva consiste em uma das partes da relação

obrigacional defender o seu direito utilizando determinados meios ao seu dispor. Ou seja, o credor
atua passivamente, limitando-se a responder ao não cumprimento pontual do devedor, para defesa

e garantia do seu direito. O credor atua na defensiva e esta sua atuação pode revelar-se um meio
coercitivo eficaz que determine o devedor a cumprir. É o caso da exceção de não cumprimento e do

direito de retenção.

2.1.1 COERÇÃO PRIVADA OFENSIVA

1) CLÁUSULA PENAL

 Noção e função
Podemos definir cláusula penal como a estipulação negocial segundo a qual o devedor, se

não cumprir a obrigação ou não a cumprir exatamente nos termos devidos (maxime no tempo
fixado), será obrigado, a título de indemnização sancionatória, ao pagamento de uma quantia

pecuniária. Implica a fixação antecipada de um determinado montante de indemnização a pagar pelo


devedor em caso de não cumprimento da obrigação ou de não cumprimento atempado. Está

prevista no art. 810.º e segs.


Há dois tipos de cláusula penal:

 Cláusula penal moratória, que visa estabelecer o montante indemnizatório no caso de não
cumprimento no prazo estabelecido;

 Ou, mais frequente, compensatória, que visa indemnizar ou liquidar os danos resultantes do
incumprimento definitivo. Podemos ter uma, outra, ou ambas no mesmo contrato.

125
FDUC – DOII 2017/2018

Quais são as funções da cláusula penal?


 Função ressarcidora: prevê antecipadamente um montante que ressarcirá o dano resultante

de eventual não cumprimento ou cumprimento inexato. Isto significa que o devedor, vinculado à
cláusula penal, não será obrigado ao ressarcimento do dano que efetivamente causar ao credor, mas

ao ressarcimento do dano fixado antecipadamente, sempre que não tenha sido convencionada a
ressarcibilidade do dano excedente (art. 811.º/2). Desta forma, a cláusula penal simplifica a fase

ressarcidora, evitando-se o momento da liquidação dos danos do credor.

 Função coerciva: para além da função ressarcidora, a cláusula penal desempenha igualmente
uma função coerciva, que resulta do facto de, ao se estabelecer o montante apagar em caso de

cumprimento (que tende a ser muito mais elevado do que aquele que resulta dos danos sofridos), o
devedor sentir-se-á compelido ao cumprimento. O carácter elevado da pena constrange

indiretamente o devedor a cumprir as suas obrigações.

Alguns autores vêem na função coercitiva a finalidade principal da cláusula penal, e na função
ressarcidora uma finalidade secundária (sendo que outros autores ainda vêem a função ressarcidora

como principal). CALVÃO DA SILVA considera serem as duas funções essenciais à caracterização do
instituto: se tivesse apenas uma função coercitiva, isto teria duas consequências (que a nossa lei

afasta, como iremos ver):


 Admissibilidade do seu cúmulo com o cumprimento.

 Admissibilidade do seu cúmulo com a indemnização a determinar segundo as regras gerais.

 Regime jurídico: proibição de cumular o cumprimento e a cláusula penal

compensatória (art. 811.º/1)

O art. 811.º estipula que o credor não pode exigir o cumprimento coercivo e a

indemnização pela cláusula penal. Note-se que esta incompatibilidade só existe quando a cláusula
penal é compensatória; já é possível cumular a ação de cumprimento e a cláusula penal moratória. Se

a obrigação principal foi cumprida, não há dano a compensar, logo a cláusula penal não pode

126
FDUC – DOII 2017/2018
funcionar. Porém, se o dever de prestar é cumprido tardiamente, o dever de indemnizar o dano

moratório coexiste com a prestação principal.


A regra contrária – admissibilidade do cúmulo do cumprimento da obrigação principal com a

cláusula penal compensatória – aumentaria o papel coercitivo da cláusula penal, mas seria contra a
sua função ressarcidora.

 Regime jurídico: dano excedente (art. 811.º/2)


O n.º 2 do art. 811.º estipular que o estabelecimento da cláusula penal obsta que o credor

exija indemnização pelos danos excedentes. Proíbe-se, assim, o cúmulo da cláusula penal com a
indemnização segundo as regras gerais, ainda que o dano real seja substancialmente superior. Caso

contrário, sendo possível o cúmulo, isto significaria uma de duas coisas: ou admitir uma cláusula
penal puramente compulsória, ou admitir duas vezes a indemnização do credor.

A única coisa que o nosso ordenamento admite é a convenção da ressarcibilidade do dano


excedente e relação ao quantum a cláusula penal (art. 811.º/2), caso em que esta funciona como um

mínimo indemnizatório.
Este regime explica-se por considerações de certeza e de segurança do direito, alcançadas

pela fixação antecipada do montante da indemnização. Porém, CALVÃO DA SILVA considera que,
de iure condendo, deveria ser permitida a indemnização pelo dano excedente:

 Esta regra estaria mais em conformidade com o objetivo da cláusula penal, que é o de
defender e não prejudicar o credor.

 Não violaria a função indemnizatória, embora esta ficasse limitada à fixação de um mínimo
indemnizatório.

 Potenciaria a função coercitiva, pois o devedor sabe que terá de responder pela totalidade do
dano resultante do incumprimento.

 Evitaria que a cláusula funcionasse como uma cláusula limitativa de responsabilidade, o que
subverte este instituto.

A não se alterar o art. 811.º/2, o autor defende que deveria pelo menos facultar-se ao juiz o

poder de aumentar, equitativamente, a cláusula penal manifestamente irrisória, correlativo ao poder

que lhe é facultado hoje de reduzir a cláusula manifestamente excessiva (art. 812.º/1).

127
FDUC – DOII 2017/2018

 Regime jurídico: proibição da indemnização superior ao prejuízo (art. 811.º/3)


O art. 811.º/3 estipula que o credor não pode, em caso algum, exigir uma indemnização que
exceda o valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação. Se formos levar este preceito

à letra, parece que a cláusula penal nunca pode ser de montante superior ao dano real: ora, isto não
faz sentido nenhum.

Se a sua função é a liquidação antecipada, se depois do cumprimento o credor só pudesse


exigir o valor real, esta função perderia o sentido; e também não teria qualquer função coerciva.

Qual é, assim, a interpretação que devemos fazer deste preceito? O legislador terá querido
reforçar a ideia de que não é admissível o cúmulo da cláusula penal e da indemnização, ou seja, não

se admite uma cláusula penal puramente sancionatória. Este artigo terá alguma utilidade, ainda que
redundante, quando haja convenção no sentido da possibilidade de indemnização dos danos

excedentes: aí, esta indemnização não pode exceder os danos reais. Se assim não fosse, ou seja, se a
cláusula penal nunca pudesse ser de montante superior ao dano real, também não faria sentido o

art. 812.º, que ficaria sem utilidade: este permite precisamente um a redução da cláusula penal
quando manifestamente excessiva.

Para além disto, se existir uma convenção de cúmulo da cláusula penal e da indemnização,
deve, por redução teleológica, valer como cláusula de ressarcibilidade do dano excedente.

Fica, assim, definido o sentido do art. 811.º/3: o credor não pode em caso algum, mesmo que
o tenha convencionado expressamente, exigir uma indemnização que exceda o valor do prejuízo

resultante do incumprimento da obrigação principal, sem prejuízo do funcionamento de cláusula


penal superior ao valor do dano efetivo.

 Regime jurídico: poder moderador do juiz

Na prática, é muito frequente as partes estabelecerem um quantitativo elevado da pena,


nitidamente superior ao do dano provável, precisamente com o fim de compelir o devedor ao

cumprimento. Isto pode levar a abusos e iniquidades, pelo que o nosso Código consagrou, no art.
812.º, o poder judicial de redução equitativa das cláusulas penais. Este poder tem, porém, de ser

excecional e limitado à correção de abusos, sob pena de aniquilar a função sancionatória da cláusula

penal. O requisito estabelecido por lei para a intervenção do tribunal é a existência de uma cláusula

128
FDUC – DOII 2017/2018
manifestamente excessiva, ou seja, de uma cláusula cujo montante desmesurado e desproporcional
ao dano seja clamoroso. Na apreciação do carácter excessivo da cláusula penal, o juiz deverá atende

às condições de formação do contrato, à situação económica das partes, aos seus interesses
legítimos, etc.

Isto não significa, porém, que o juiz deva reduzir a cláusula penal manifestamente excessiva ao
montante do dano real, pois aí estaria a desrespeitar-se o seu valor coercitivo. A redução deve

manter a cláusula penal num montante razoavelmente superior ao dano efetivamente causado.

2) SINAL
Já vimos no último semestre. Aspetos a relembrar:

 Está previsto nos arts. 440.º a 442.º.


 Tem uma dupla função: coagir ao cumprimento e fixar o montante da indemnização.

 Há dois tipos de sinal: sinal confirmatório e penitencial.


 Não é uma figura exclusiva do contrato-promessa. É exigido quando houver uma situação de

incumprimento.
 São duas formas de constituição:

 Convenção;
 Caso funcione a presunção do art. 441.º, já não é necessário a convenção das partes

(contrato-promessa de compra e venda).


 Em caso de incumprimento, é preciso distinguir se é uma situação de mora ou incumprimento

definitivo. Só nestas últimas é que funciona o sinal.


 Pode acontecer que ambos os sujeitos num contrato bilateral tenham culpa no

incumprimento. Nesse caso, havendo incumprimento do devedor mas com culpa de ambos
os sujeitos, aplica-se o art. 570.º: é preciso analisar o grau de culpa de ambas as partes (não

há nenhuma razão para excluir a aplicação deste artigo na responsabilidade contratual). Se a


culpa for igual, exclui-se o sinal; se houver diferença, aquele que tiver mais culpa tem de pagar

mais.
 Se o incumprimento for um incumprimento não culposo, a obrigação principal extingue-se e

não há fundamento jurídico para uma indemnização calculada nos termos do sinal (esta é

uma obrigação secundária que se extingue com a principal).

129
FDUC – DOII 2017/2018

3) CONDIÇÃO RESOLUTIVA EXPRESSA

 Noção e pressupostos
O art. 432.º dispõe que é admitida a resolução do contrato com fundamento na lei ou

convenção. Assim, este artigo admite a resolução convencional, facultando às partes, de acordo com
o princípio da autonomia da vontade, o poder de atribuir a ambas ou a uma delas o direito de

resolver o contrato quando ocorra certo e determinado facto (por exemplo, não cumprimento ou
não cumprimento nos termos devidos). A esta estipulação negocial dá-se o nome de cláusula

resolutiva expressa.
Para que haja cláusula resolutiva expressa, esta não pode ter um conteúdo meramente

genérico: as partes têm de fazer uma referência explícita e precisa às obrigações cujo cumprimento
dá direito à resolução, identificando-as. Ocorrendo a inadimplência da obrigação especificamente

prevista, o credor tem o poder jurídico de, por um simples ato livro de vontade e por si só (sem
necessidade de intervenção judicial e sem ter de recorrer ao art. 808.º), produzir a resolução.

Se as partes se limitarem a fazer uma mera referência genérica à violação de obrigações

emergentes do contrato, isto não passa de uma referência à condição resolutiva tácita. A condição

resolutiva tácita é a possibilidade que qualquer credor tem de resolver o contrato com base no
incumprimento, estando prevista no art. 801.º/2. Note-se que as partes não precisam de mencionar
este artigo para resolver o contrato com base no incumprimento, e a sua existência não é perturbada

pela cláusula resolutiva expressa – coexistem simultaneamente

 Valor coercitivo
A cláusula resolutiva expressa tem uma certa força coercitiva: a ameaça nela contida de
resolver imediatamente, de pleno direito, o contrato por simples declaração à parte inadimplente,

uma vez verificada a inadimplência prevista, é um poderoso incentivo para o devedor cumprir as suas
obrigações.

A certeza e carácter imediato da resolução conferem à cláusula resolutiva expressa uma


função cominatória importante, tanto mais que a resolução importa a extinção do contrato e tem

eficácia retroativa.

130
FDUC – DOII 2017/2018

A condição resolutiva clássica também tem este valor coercitivo, que também pode operar por
simples declaração à outra parte (art. 436.º). A diferença é que este é um meio legal e não

convencional.

2.1.2 COERÇÃO PRIVADA DEFENSIVA


1) EXCEÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO

 Noção
A exceção de não cumprimento está prevista no art. 428.º e segs., e legitima a recusa do
credor a cumprir a prestação enquanto o devedor não cumprir a sua ou não oferecer o seu

cumprimento simultâneo. Na base da exceção de não cumprimento está a sinalagmaticidade dos


contratos, que só existe nos contratos bilaterais: justifica-se a recusa do credor a cumprir porque a
sua prestação é o correlativo da contraprestação do devedor. Se as obrigações são correlativas e
interdependentes, o seu cumprimento deve ser, em princípio, simultâneo, já que a realização de cada

um das prestações constitui o pressuposto e correspetivo lógico da outra. Assim, a exceção de não
cumprimento é exclusiva dos contratos bilaterais, não se aplicando sequer aos contratos bilaterais

imperfeitos.
Porém, o princípio da simultaneidade do cumprimento de obrigações recíprocas pode não

existir por convenção das partes (ex: o comprador beneficia de um prazo para o pagamento do
preço), da lei, da boa fé, dos usos ou da própria natureza da obrigação. Neste caso, a exceptio non

adimpleti contractus não pode ser invocada pela parte que está obrigada a cumprir em primeiro
lugar, mas já o pode ser por aquela cuja prestação deva ser realizada em segundo lugar. Porém, se

posteriormente à celebração do contrato se verificar alguma das circunstâncias que importam a


perda do benefício do prazo, o contraente que estava obrigado a cumprir em primeiro lugar tem a

faculdade de recusar a respetiva prestação, enquanto o outro não cumprir ou não der garantias de
cumprimento (art. 429.º).

Processualmente, não é de conhecimento oficioso, e é uma exceção material dilatória.

131
FDUC – DOII 2017/2018

Alguns problemas a resolver:


 Será que a exceção também se aplica quando não estiverem em causa prestações

principais? Imaginemos que num contrato de compra e venda de um computador o devedor


não entrega uma peça acessória: pode o credor recusar-se a pagar o preço? Não, pois falha a

sinalagmaticidade.
 Será que a exceção pode ser invocada no caso de incumprimento parcial? Não pode, a não

ser que haja a possibilidade de redução parcial da contraprestação. O credor pode não pagar
uma parte da sua contraprestação.

Esta figura é extremamente forte, uma vez que não é possível afastar a sua aplicação através da

prestação de garantia (art. 428.º/2).

 Função de garantia e função coercitiva


A exceção de não cumprimento desempenha uma dupla garantia:
 Função de garantia: pode constituir, indiretamente, uma eficaz garantia para o credor contra

a impotência do devedor. É preferível para o credor não cumprir a sua obrigação, recíproca da
obrigação não cumprida pelo devedor, a estar a cumprir e a sofrer as consequências da

impotência económica do devedor inadimplente.


 Função coercitiva: a exceção constitui também, e sobretudo, um meio de pressão sobre o

devedor em mora, na medida em que este tenha interesse ou necessidade da prestação de


coisa ou de serviço que o credor lhe deva.

 Problema do afastamento da exceção

É possível afastar a exceção? Em bom rigor, trata-se de um instituto que defende ambas as
partes do contrato. O legislador pretendeu que este instituto fosse uma solução meramente

facultativa ou mandatória? Quanto a muitas situações de proteção do credor, o legislador tomou


posição (art. 809.º): é nula a cláusula pela qual o credor renuncia antecipadamente a quaisquer

direitos que lhe são concedidos.

132
FDUC – DOII 2017/2018

Assim, as partes não podem afastar os direitos do credor, mas apenas “aqueles que se situam
na secção anterior” – que não é o caso da exceção. Porém, a opinião da doutrina e jurisprudência

maioritária diz que se deve alargar o art. 809.º e incluir a exceção. Esta é uma opinião não unânime,
pelo que há decisões dos tribunais que permitem o afastamento.

2) DIREITO DE RETENÇÃO

 Noção
Nos termos do art. 754.º, o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do
direito de retenção se, estando obrigado a entregar uma coisa, o seu crédito resultar de despesas

feitas por causa da coisa ou de danos por ela causados. É um direito real de garantia, mas tem
sentido aqui convocá-lo pois garante uma obrigação. São três os pressupostos necessários para que

haja direito de retenção:


 Que o devedor obrigado a entregar a coisa detenha esta lícita e legitimamente (art. 756.º, al.

a)).
 Que o devedor seja simultaneamente credor da pessoa a quem deve entregar a coisa

legitimamente detida.
 Que o direito de crédito da pessoa obrigada a entregar a coisa detida tenha estreita conexão

causal com essa mesma coisa, resultante de despesas feitas por causa dela ou de danos por
ela causados.

Notas:
 Ao lado do direito de retenção, previsto com carácter geral no art. 754.º, o legislador regula

certas figuras específicas no art. 755.º, como a do art. 755.º/1/f) (contrato-promessa).


 Não é necessário registo, funciona ope leges, o que nos permite concluir que este direito não

tem fonte convencional.


 VAZ SERRA foi mais longe, propondo o direito de retenção na hipótese de os dois créditos se

fundarem na mesma relação jurídica, mas esta posição não vingou.


 O direito de retenção tem uma força especial na lei porque prevalece, por exemplo, quanto à

hipoteca (art. 759.º). Isto tem consequências gravosas na prática.

 O exercício do direito de retenção tem as seguintes consequências:

133
FDUC – DOII 2017/2018

 Não há devolução da coisa.


 O bem pode ser executado, e o titular do direito vai ser pago com preferência face aos

demais credores, tem uma posição privilegiada.

Como é que o direito de retenção e a exceção de cumprimento se distinguem?


 Desde logo, pelo fundamento: na exceção, é o sinalagma funcional (uma existe porque outra

existe); e, no direito de retenção, há fundamento para não se entregar uma coisa quando se
devia.

 O direito de retenção pode ser afastado mediante caução (art. 756.º/d)) mas não a exceção
(há aqui uma maior proteção).

 O direito de retenção aplica-se a mais casos: não se exige um contrato bilateral, que haja uma
sinalagmaticidade em relação aquela prestação. Apenas se exige que haja despesas ou danos

com a coisa.

 Função coercitiva e função de garantia


O direito de retenção tem uma dupla função: a função de garantia e a função coercitiva.
 Função de garantia: o direito de retenção é um direito real de garantia, pelo que, recaindo

sobre coisa móvel, o seu titular goza dos direitos do credor pignoratício, salvo no que respeita à
substituição ou reforço da garantia (art. 758.º) – nomeadamente, goza do direito de preferência

sobre os demais credores (art. 666.º/1) e pode executar a coisa retida (art. 675.º). Recaindo o direito
de retenção sobre coisa imóvel, o respetivo titular tem a faculdade de a executar, nos mesmos

termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência sobre os demais
credores (art. 759/1 e 2).

 Função coercitiva: cumulativamente, o direito de retenção exerce uma função de pressão

sobre o devedor para este pagar as despesas feitas por causa da coisa ou por causa dos danos por
ela causados. Este meio de pressão pode revelar-se de grande eficácia, sobretudo se a coisa retida é

de valor muito superior à dívida com ela conexionada.

134
FDUC – DOII 2017/2018

2.2 COERÇÃO JUDICIAL: A SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA


2.2.1 NOÇÃO

A sanção pecuniária compulsória vem prevista no art. 829.º-A, podendo ser definida como a
condenação pecuniária decretada pelo juiz para constranger o devedor a cumprir a sua obrigação. É,

pois, um meio de defesa judicial, que visa exercer pressão sobre o devedor para cumprir a sua
obrigação, sob a ameaça de uma sanção pecuniária. Apesar de ser um meio judicial, não pode ser

decretada ex officio, mas apenas a requerimento do credor (algo que CALVÃO DA SILVA critica).

2.2.2 ÂMBITO DE APLICAÇÃO: PRESTAÇÕES DE FACTO INFUNGÍVEIS


Nas prestações de facto infungíveis, o credor pode requerer em execução que o facto seja

prestado por outrem à custa do devedor (art. 828.º). Este é um caso de execução específica da
obrigação, com o credor a conseguir o resultado prático da prestação e a satisfazer plenamente o

seu interesse.

Tratando-se de uma prestação de facto infungível, a substituição do devedor por terceiro


não é idónea para dar satisfação ao interesse do credor, uma vez que este só se satisfaz pela

atividade do devedor. A impossibilidade de execução específica das prestações de facto não impede
o credor de pedir o cumprimento, tal como não impede o juiz de condenar o devedor no pedido

(art. 817.º). Na hipótese de o devedor continuar a não cumprir a prestação, a lei criou o mecanismo
da sanção pecuniária compulsória para garantir a efetividade da condenação, coagindo o devedor ao

cumprimento.
Assim, a sanção pecuniária compulsória é, numa primeira fase, uma medida coercitiva, de

carácter patrimonial, seguida de sanção pecuniária na hipótese de a condenação principal não ser
obedecida e cumprida.

Como CALVÃO DA SILVA nota, a sanção pecuniária não é nenhuma forma de execução
específica, ou seja, não é uma medida executiva mas sim um meio de constrangimento do devedor.

Isto significa que a sua colocação sistemática no Código Civil é errónea: devia estar na ação de
cumprimento de execução.

135
FDUC – DOII 2017/2018

2.2.3 MODOS DE DETERMINAÇÃO


O juiz deve, em função das circunstâncias do casos (art. 829.º-A/1) e segundo critérios de

razoabilidade (n.º 2), decretar uma sanção que possa ser eficaz na consecução dos seus objetivos.
Nos termos do n.º 1, o juiz pode optar entre duas modalidades de fixação da sanção (sem prejuízo

de poder fixar um só montante global:


 Em função dos dias de atraso. É a modalidade mais frequente.

 Em função do número de prestações em atraso.

Quais são os critérios que o juiz deve ter em conta para saber qual o montante a fixar? O juiz
vai apreciar o montante em falta, o conteúdo da prestação, mas não só – deve também ter em conta

critérios de razoabilidade, nomeadamente a situação económica do devedor.

2.2.4 TERMO INICIAL E TERMO FINAL


O juiz também decide o termo inicial ou a quo, ou seja, o momento a partir do qual a sanção

pecuniária compulsória decretada começa a produzir efeitos. No caso de silêncio do juiz, o termo a
quo deve ser a data do trânsito em julgado da sentença.
Quanto ao termo final, este não tem de ser fixado pelo juiz, o que se compreende tendo em
conta as finalidades da sanção pecuniária compulsória. Quando o juiz ordena uma sanção pecuniária

compulsória sem duração, o devedor sabe que ela valerá e produzirá efeitos até ao momento do
cumprimento da obrigação principal.

2.2.5 DESTINO

No n.º 3, diz-se que o montante da sanção se destina em partes iguais ao credor e ao Estado.
A participação do Estado explica-se por um motivo individual – está a facultar ao credor meios de

assegurar os seus direitos – e social – visa assegurar o respeito pela justiça.

136
FDUC – DOII 2017/2018

2.2.6 INDEPENDÊNCIA DA INDEMNIZAÇÃO


O n.º 2 dispõe que a sanção pecuniária compulsória é fixada sem prejuízo da indemnização a

que houver lugar. A sanção pecuniária compulsória não tem, pois, natureza indemnizatória, sendo
independente da existência e da extensão do dano resultante do não cumprimento. Assim, deve ser

decretada mesmo que o devedor não faça prova da ausência de dano sofrido pelo credor, e o seu
quantum não é fixado em função da extensão do dano. Sem esta autonomia e independência, a
sanção pecuniária compulsória não desempenharia a sua função coercitiva.
Porque independentes, a sanção pecuniária compulsória e a indemnização são cumuláveis.

Assim, se a sanção não é eficaz e o incumprimento se tem por definitivo, o credor tem direito à
indemnização compensatória e à sanção pecuniária compulsória, ambas suscetíveis de execução.

2.2.7. A SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA LEGAL (ART. 829.º-A, N.º 4)

O n.º 4 fixa uma sanção pecuniária legal para as obrigações pecuniárias, estipulando que são
automaticamente devidos 5% de juros ao ano, a contar da data do trânsito em julgado da sentença

de condenação. CALVÃO DA SILVA critica este preceito, que vai contra o carácter subsidiário da
sanção pecuniária compulsória afirmado no n.º 1: a ser assim, mais coerente seria consagrar o

carácter geral da sanção pecuniária compulsória, aplicável a todas as obrigações.

137
FDUC – DOII 2017/2018

VI. DO INCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES


1. GENERALIDADES

1.1 NOÇÃO
O incumprimento (ou não cumprimento, expressão mais correta) é a situação objetiva de não

realização da prestação debitória e de insatisfação do interesse do credor, independentemente da


causa de onde a falta procede, e sem que se tenha entretanto verificado qualquer das causas

extintivas típicas da relação obrigacional.

1.2 MODALIDADES
As modalidades do cumprimento distinguem-se tipicamente quanto a:

 Causa;
 Efeitos.

Na distinção quanto à CAUSA, temos:

 Incumprimento imputável ao devedor: trata-se de um incumprimento culposo, existe culpa


do devedor.

 Incumprimento inimputável ao devedor: não há culpa do devedor, podendo haver:


 Culpa do credor.

 Culpa de um terceiro.
 Causa de força maior.

Note-se que, quando estamos perante uma situação de incumprimento, podemos dizer que

esse incumprimento é culposo pois se presume a culpa do devedor – art. 799.º/1. É o devedor que
tem de provar que agiu sem culpa. Em Coimbra, entendemos que esta presunção é restrita à culpa.

No entanto, seguindo a escola de MENEZES CORDEIRO e outros, há quem entenda que o que está
aqui em causa é não só uma presunção de culpa, mas de ilicitude.

Na distinção quanto aos EFEITOS, temos:


 Não cumprimento definitivo: pode provir da impossibilidade da prestação (fortuita ou

causal, imputável ao devedor ou imputável ao credor) ou da falta irreversível de cumprimento;

138
FDUC – DOII 2017/2018
 Mora;

 Violação positiva do contrato ou cumprimento defeituoso.

Esta última figura é a mais complexa: há cumprimento do contrato, há um ato do devedor, mas
não é conforme às expectativas – daí se chamar “violação positiva”. No direito das obrigações, não

temos uma norma geral, um regime, que se aplique ao cumprimento defeituoso. Temos de analisar
se eventualmente algumas regras se aplicam por analogia (ex: incumprimento parcial); ou, se

tivermos perante um contrato tipificado na lei, se há normas especiais (ex: compra e venda e
empreitada) O próprio artigo 799.º menciona cumprimento defeituoso, o legislador não se esqueceu

dele mas não previu um regime geral.

Cada uma destas modalidades pode ser imputável ou inimputável.

2. INCUMPRIMENTO OU IMPOSSIBILIDADE INIMPUTÁVEL AO DEVEDOR


2.1 IMPOSSIBILIDADE DEFINITIVA

A prestação torna-se impossível quando, por qualquer circunstância, o comportamento


exigível do credor se torna inviável: se o obstáculo ao cumprimento for permanente, estamos perante

uma impossibilidade definitiva. Note-se que estamos a falar de uma impossibilidade superveniente e
não originária, uma vez que esta resulta na nulidade do contrato.

A impossibilidade definitiva pode ser objetiva ou subjetiva:


 Objetiva: ocorre quando a prestação se torna impossível para qualquer pessoa – por ex., o

legislador proíbe a comercialização daqueles bens ou o bem é destruído.


 Subjetiva: o próprio devedor não pode realizar a prestação, a impossibilidade diz apenas

respeito à pessoa do devedor.

 Efeitos: a exoneração da prestação


A principal consequência da impossibilidade definitiva é a extinção da obrigação (art. 790.º),
com a consequente exoneração do obrigado – o credor perde o direito a exigir a prestação e não

tem, por conseguinte, o direito à indemnização pelos danos provenientes do não cumprimento.

Efeito que se verifica, quer a impossibilidade provenha de facto do credor ou de terceiro, quer resulte

139
FDUC – DOII 2017/2018
de caso fortuito ou da própria lei. Nada obsta também que a impossibilidade proceda de um facto

da autoria do devedor e a obrigação se extinga de igual modo: basta que este afaste a presunção de
culpa do art. 799.º.

Para que a obrigação se extinga, basta que a prestação seja impossível para o devedor, ou é
ainda necessário que a impossibilidade se estenda a toda e qualquer pessoa? O art. 791.º responde a

esta questão: a impossibilidade relativa à pessoa do credor comporta igualmente a extinção da


obrigação, se o devedor, no cumprimento desta, não se puder fazer substituir por terceiro.

Assim, os efeitos são diferentes consoante estivermos perante uma impossibilidade objetiva
ou subjetiva:

 Ocorrendo uma impossibilidade objetiva, extingue-se a obrigação, art. 790.º. O credor não
pode exigir a prestação, o devedor invoca que a prestação não é exigível porque a obrigação
se extinguiu.

 Tratando-se de uma impossibilidade subjetiva, temos de determinar se a prestação é

fungível ou infungível, art. 791.º:


 Fungível: é a regra no direito civil. Não há extinção da obrigação e o devedor tem

de se fazer substituir por terceiro, faz parte da sua obrigação.


 Infungível: há extinção da obrigação.

Há quem relacione a distinção entre impossibilidade objetiva e subjetiva com a classificação

das obrigações em obrigações de meios e obrigações de resultado. Temos uma obrigação de


resultado quando o devedor se compromete a garantir a produção de certo resultado em benefício,

e uma obrigação de meios quando o devedor promete apenas realizar determinado esforço ou
diligência para que tal resultado se obtenha. Nas primeiras, diz-se que só a impossibilidade objetiva

exoneraria o credor, ao passo que, as outras, tanto a impossibilidade objetiva como a subjetiva
constituiriam causa liberatória do obrigado.

ANTUNES VARELA recusa este critério, afirmando que aqui se aplicam à mesma as regras
gerais.

Para além da exoneração da prestação, a impossibilidade tem outros efeitos.

140
FDUC – DOII 2017/2018

 Commodum de representação
Está previsto no art. 794.º, e refere-se aquelas situações em que ocorre uma interferência de
um terceiro, que impossibilita a realização da prestação. Se o devedor, em virtude do facto que

determinou a impossibilidade, adquirir um direito contra o terceiro, o commodum de representação


permite que o credor se coloque no lugar do devedor (sub-rogação).

Se a obrigação tiver por objeto a prestação de coisa determinada, só haverá lugar ao


commodum de representação se o domínio não se tiver transferido para o credor no momento em
que a prestação se torna impossível. Se, nesse momento, a coisa já pertencer ao credor, o direito
contra terceiro nascerá diretamente no património do credor – havendo destruição do bem,

enquanto proprietário, é o credor que reage. Por este motivo, o commodum de representação
ocorre de forma residual: a regra, entre nós, é o princípio da consensualidade (a transferência da

propriedade opera com o mero acordo das partes).

 Commodum de representação
Num contrato bilateral, tornando-se uma das prestações impossível por causa não imputável

ao credor, o art. 795.º/1 diz-nos que a contraprestação se extingue. Se o credor já tiver realizado a
sua prestação, tem direito a pedir de volta a sua prestação nos termos do enriquecimento sem causa:

em bom rigor o credor, que já realizou a sua prestação, não pode exigir tudo aquilo quanto prestou,
mas apenas aquilo com o qual o devedor se enriqueceu.

E se o próprio credor tiver contribuído para a impossibilidade, ou seja, se esta for por

causa imputável ao credor? Neste caso, não se justifica que fique desobrigado – é esta situação
particular que o legislador regula no n.º 2. O credor tem de realizar a contraprestação; porém, se o
devedor tiver algum benefício com a desoneração, o valor de benefício será descontado na

contraprestação.

 O problema do risco
Nos contratos com efeitos reais, não aplicamos o art. 795.º, mas sim o art. 796.º: é nesta

medida que se diz que o art. 796.º tem prevalência sobre o art. 795.º. Se a prestação se torna
impossível, temos de saber se o outro sujeito vai ou não ter de realizar a contraprestação: se

141
FDUC – DOII 2017/2018
aplicássemos o art. 795.º, diríamos que a outra prestação deixaria de ser exigida; porém, temos de

saber quem é o proprietário, para saber sobre quem corre o risco do perecimento da coisa.
O art. 796.º/1 estipula que, nos contratos com efeitos reais, o perecimento ou deterioração da

coisa por causa não imputável ao alienante corre por conta do adquirente.

Por exemplo, A vende a B certa coisa móvel, que é destruída por um incêndio não

imputável a A. Como o domínio da coisa se transferiu para B no próprio momento do contrato, é


por conta de B (credor e adquirente da coisa) que corre o risco da destruição da coisa.

Assim, o credor não goza dos benefícios do art. 795.º/1, tendo de entregar o preço à

mesma. Isto resulta da aplicação do princípio geral res perit domino, ou seja, o risco segue a
propriedade.

O n.º 2 diz que, se o alienante tiver a coisa em seu poder por força de termo a seu favor, o
risco corre por força deste. Por exemplo, A vende um barco a B mas constituem um termo a favor

de A, por força do qual A pode ficar com o bem durante 15 dias para uma exposição. Nestes casos,
quem sofre o risco não é o proprietário, mas sim o alienante.

O n.º 3 refere regras especiais sobre a condição resolutiva e suspensiva.


 Se houver um contrato de compra e venda com uma condição resolutiva, temos uma
“propriedade temporária”, ou seja, o proprietário da coisa é o adquirente e é ele que suporta

o risco. “O risco do perecimento, durante a condição, corre por conta do adquirente” – mas
isto só se a coisa lhe tiver sido entregue, pois caso contrário há uma certa fragilidade da

posição do adquirente, que não só não tem a coisa, como tem a propriedade.
 Se a condição for suspensiva, os efeitos do contrato não se produzem e o proprietário

continua a ser o vendedor, logo o risco corre sobre o próprio alienante (n.º 3, in fine).

Numa última nota, o que acontece quando está em causa um contrato com cláusula de reserva

de propriedade? Em bom rigor, a cláusula de reserva de propriedade tem características da condição


resolutiva e da condição suspensiva: é resolutiva para a propriedade do alienante; mas, ao mesmo
tempo, suspende-se o efeito da transmissão da propriedade, ou seja, é suspensiva para o adquirente.

142
FDUC – DOII 2017/2018
Porém, todos os outros efeitos produzem-se: o vendedor tem de entregar a coisa e o comprador

tem de pagar o preço. O proprietário continua a ser o alienante, logo talvez se justifique que seja ele
a suportar o risco. O legislador não se pronunciou sobre isto, mas podemos fazer uma analogia: se

não se produz o efeito real (transferência da propriedade), tratamos a cláusula de reserva de


propriedade como uma cláusula suspensiva. Pode ser injusto quando a coisa tiver sido entregue, mas

está a cumprir-se a regra geral segundo a qual o risco segue a propriedade.


Já o art. 797.º refere-se ao caso especial de a coisa, por força da convenção, dever ser enviada

para lugar diferente do cumprimento. Neste caso, quando se trate de coisa transportada, a
transferência do risco corre por conta do transportador. O alienante não é a pessoa que sofre o risco

de destruição, transfere o risco através da entrega da coisa ao transportador.

2.2 IMPOSSIBILIDADE TEMPORÁRIA E PARCIAL


A impossibilidade pode ser, não definitiva, mas meramente temporária, art. 792.º. O legislador

diz-nos que, se a impossibilidade for temporária, não há indemnização porque não há culpa do
devedor (n.º 1), mas este não fica desonerado da obrigação, visto ser apenas temporário o obstáculo

ao cumprimento. O legislador distingue impossibilidade temporária e mora: temos uma


impossibilidade temporária quando esta se deve a causa não imputável ao devedor; e mora quando

há culpa do devedor no atraso da prestação.


No fundo, numa situação de impossibilidade temporária, o contrato mantém-se, mas os seus

efeitos estão suspensos. Isto pode não interessar ao credor, pelo que o legislador, no n.º 2,
determina a impossibilidade só se considera temporária quando o interesse do credor se mantiver.

Em suma, nunca há lugar à indemnização e mantém o dever de realizar a prestação, mas apenas

se o credor mantiver também o seu interesse.


Podemos ter também uma impossibilidade parcial. Nestes casos, o art. 793.º/1 dispõe que, no

caso de ser cumprida parte apenas da prestação devida, por virtude da impossibilidade da restante, a

contraprestação deve ser reduzida proporcionalmente. Ou seja, o devedor exonera-se mediante a

prestação daquilo que for possível, devendo ser reduzida a contraprestação.


Porém, mais uma vez, o credor pode não ter interesse no cumprimento parcial, até porque o

princípio nas obrigações é o cumprimento integral. Se tal suceder, o n.º 2 estabelece uma situação
excecional, de resolução do contrato (excecional porque a resolução assenta, normalmente, num

143
FDUC – DOII 2017/2018
incumprimento com culpa do devedor, e aqui não há culpa). Por exemplo, alguém compra um cavalo

a um criador alemão e um material acessório; e surge uma lei que impede o comércio desses cavalos
mas não do material. Não interessa ao comprador apenas receber o material acessório e não o

cavalo, pelo que pode resolver o contrato.

1.3 OUTRAS SITUAÇÕES: FRUSTRAÇÃO DO FIM, REALIZAÇÃO DA PRESTAÇÃO POR


OUTRA VIA E NÃO EXERCÍCIO DEFINITIVO DO DIREITO POR CAUSA IMPUTÁVEL AO

CREDOR
A impossibilidade pode igualmente resultar de:

 Frustração do fim: ocorre quando se torna impossível, não o comportamento do devedor,


mas o próprio interesse do credor nesse comportamento. Por exemplo, o aluno, a quem o professor

dava aulas de canto, ensurdece por completo. Estas situações cabem dentro do conceito de
impossibilidade.

 Realização da prestação por outra via: por exemplo, A mandou vir um reboque, com o fim
de retirar o veículo que obstruía a saída da sua garagem, mas entretanto apareceu o dono da viatura,

que a retirou. Enquanto que nos casos normais de impossibilidade o interesse do credor fica
definitivamente por satisfazer, aqui este foi preenchido por outra via que não o cumprimento. Isto

torna a prestação impossível (o rebocador já não pode retirar o caso), caindo igualmente dentro do
conceito de impossibilidade.

 Não exercício definitivo do direito, por causa imputável ao credor: diferente destes casos é
o de não exercício definitivo do direito, por causa imputável ao credor. Por exemplo, A reserva

passagem num cruzeiro turístico mas, a caminho do barco, sofre um acidente que o impossibilitou de
partir. A prestação não só era possível no momento aprazado, como foi inclusivamente realizada: o

que não houve foi o exercício do direito por parte do credor. Este não é um caso de verdadeira
impossibilidade.

144
FDUC – DOII 2017/2018

3. INCUMPRIMENTO IMPUTÁVEL AO DEVEDOR


3.1 NOÇÃO

A violação do dever de prestar, por causa imputável ao devedor, pode assumir uma dupla
forma: ou a impossibilidade culposa, ou o não cumprimento definitivo. O incumprimento definitivo

pode resultar de dois fatores:


 Conversão da mora em incumprimento definitivo: pode ser realizada de duas formas, art.

808.º.
 Prova da perda do interesse na prestação;

 Interpelação admonitória: interpelação do devedor com fixação de um prazo razoável


para cumprir, findo o qual se declara o incumprimento definitivo.

 Recusa do devedor em cumprir.

O regime para estas duas situações, incumprimento definitivo e impossibilidade culposa, é

exatamente o mesmo (art. 801.º).

3.2 RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL

O efeito fundamental do não cumprimento imputável ao devedor consiste na obrigação de

indemnizar os prejuízos causados, art. 798.º. O devedor incorre em responsabilidade contratual:

mas quais são os pressupostos da obrigação de indemnizar a cargo do devedor? Os pressupostos da


responsabilidade contratual são os mesmos da responsabilidade extracontratual, com algumas

diferenças.
1) ILICITUDE: a ilicitude resulta, no domínio da responsabilidade contratual, da relação de

desconformidade entre a conduta devida (a prestação debitória) e o comportamento observado.


Note-se, porém, que o incumprimento da obrigação pode excecionalmente constituir um ato lícito,

sempre que proceda do exercício de um direito ou do cumprimento de um dever. Entre os casos de


não cumprimento da obrigação, legitimados pela circunstância de consistirem no exercício de um

direito ou de uma faculdade, destacam-se a exceção de não cumprimento e o direito de retenção.

145
FDUC – DOII 2017/2018
2) CULPA: o art. 799.º/2 determina que a culpa é apreciada nos termos aplicáveis à

responsabilidade civil.
Isto significa que também aqui a culpa é apreciada em abstrato, tendo por padrão a diligência

típica de um bom pai de família (art. 497.º/2). Também aqui se distingue entre os diferentes graus
de culpa (dolo e negligência), apesar de esta distinção não assumir tanto relevo como na

responsabilidade civil extracontratual: não é aplicável à responsabilidade contratual o art. 494.º


Porém, naquilo que toca à prova da culpa, as coisas correm de forma diferente: a principal

diferença entre os pressupostos da responsabilidade civil contratual e extracontratual prende-se com

a presunção de culpa do devedor, estipulada no art. 799.º. Assim, presume-se que o


incumprimento é culposo, podendo o devedor afastar esta presunção – na maior parte dos casos na

prática, o afastamento desta presunção faz-se com base na prova de que houve cumprimento.

O art. 800.º/1 prevê um caso de responsabilidade objetiva, a responsabilidade do devedor

pelos atos dos seus representantes legais e auxiliares. Se o devedor utilizar auxiliares, ele próprio é

responsabilizado independentemente de culpa: isto compreende-se pois, se a atividade do


representante legal se exerce no interesse e em nome do representado, é justo que as consequências

do exercício da sua atividade recaiam sobre o património deste. A responsabilidade do devedor


estende-se ainda aos atos dos seus auxiliares (mandatários, comissários, depositários, etc.), desde

que o sejam no cumprimento da obrigação. Trata-se aqui de uma verdadeira responsabilidade


objetiva, na medida em que para ela não se exige culpa do devedor (culpa in eligendo, culpa in

instruendo, culpa in vigilando).


Esta responsabilidade tem alguma analogia com a responsabilidade do comitente (art. 500.º),

com as algumas diferenças. Por exemplo, havendo responsabilidade do comissário, há direito de


regresso, o que não há aqui: a obrigação é assumida apenas pelo devedor. Se uma pessoa tem um

contrato com uma clínica e o médico que a opera causa danos à pessoa, o médico não assume
nenhuma obrigação; mas pode-se intentar uma ação contra este nos termos da responsabilidade

extracontratual (violação de direitos absolutos).

146
FDUC – DOII 2017/2018

3) DANO E NEXO DE CAUSALIDADE: a falta de cumprimento da obrigação só dá lugar à


obrigação se o credor sofrer com ela algum prejuízo. No dano indemnizável cabe, não só o dano

emergente, como o lucro cessante. O cálculo da indemnização faz-se nos termos gerais, com a única
diferença da inaplicabilidade do art. 494.º.

3.3 DIREITO DE RESOLUÇÃO

Os direitos do credor não se esgotam, porém, no direito à indemnização. Tornando-se a prestação


impossível por causa imputável ao devedor, ou tendo-se a obrigação por definitivamente não

cumprida, se a obrigação se inserir num contrato bilateral tem o credor direito à resolução do

contrato, art. 801.º/2.

É possível cumular a resolução e o pedido indemnizatório? Aqui, temos duas hipóteses:

 Indemnização pela violação do interesse contratual positivo: está em causa um pedido


indemnizatório pelos danos que a pessoa sofreu por não ter recebido a prestação. Por exemplo, num

compra e venda do cavalo, o credor iria comprar o cavalo por 10.000 e vender por 20.000. Se
houvesse cumprimento do contrato, teria um benefício de 10.000.

 Indemnização pela violação do interesse contratual negativo: através da indemnização


pela violação do interesse contratual negativo, o sujeito pretende ser recolocada na situação em que

estaria se não tivesse sido celebrado o contrato. Por exemplo, no caso de compra e venda do cavalo,
o credor tinha arrendado um estábulo para o receber – vai pedir uma indemnização para cobrir estas

despesas, que no fundo são as despesas que teve com o contrato.

Se o credor optar pela resolução do contrato, apenas pode pedir a indemnização pela violação
do interesse contratual negativo: se a resolução goza de eficácia retroativa, visando colocar o

sujeito na situação em que estaria se tivesse sido celebrado o contrato, apenas faz sentido que peça
uma indemnização pela violação do interesse contratual negativo, que visa igualmente a reposição

do estado anterior ao contrato. Se pedir uma indemnização pela violação do interesse contratual
positivo, pretende ser colocado na situação que estaria se houvesse cumprimento, logo é ilógico que

ao mesmo tempo peça a extinção da relação contratual através da resolução.

147
FDUC – DOII 2017/2018

Esta é a posição tradicional, seguida pela doutrina e jurisprudência maioritária: porém, há quem
entenda (PAULO MOTA PINTO) que não há nenhum limite legal a este pedido indemnizatório.

Em suma, o credor tem duas hipóteses:


 Opta pela manutenção do contrato e pede uma indemnização pela violação do interesse

contratual positivo.
 Opta pela resolução do contrato e pede uma indemnização pela violação do interesse

contratual negativo.

3.4 COMMODUM DE REPRESENTAÇÃO


Um terceiro efeito é o commodum de representação, art. 803.º. A particularidade aqui é que o
n.º 2 estipula que, se o credor se substituir ao devedor no direito contra terceiro, o montante da

indemnização devida pelo devedor será reduzido. Diferentemente daquilo que sucede no art. 794.º,
o credor reage contra terceiro e contra o devedor; assim, não pode pedir uma indemnização

cumulativa.

3.5 IMPOSSIBILIDADE PARCIAL


O art. 802.º diz-nos que, se a prestação se tornar parcialmente impossível, o credor:

 Tem a faculdade de resolver o contrato.


 Pode exigir o cumprimento do que for possível, ocorrendo neste caso uma redução da sua

contraprestação.
 Em qualquer dos casos, tem direito a uma indemnização.

Note-se que a possibilidade de resolução só ocorre se o não cumprimento parcial tiver relevância,

art. 802.º/2.

4. MORA DO DEVEDOR
4.1 NOÇÃO

A mora do devedor é o atraso culposo no cumprimento da obrigação, continuando a prestação a

ser ainda possível (art. 804.º/2). Assim, são três as notas definidoras da mora:

148
FDUC – DOII 2017/2018

 Atraso na prestação;
 Imputável ao devedor (senão, temos uma impossibilidade temporária);

 Prestação ainda possível.

Note-se que, se a prestação for negativa, nunca há mora: se a obrigação for violada através de
um comportamento positivo, o devedor incorre em incumprimento. Também há casos em que,

tendo a prestação um prazo certo, o facto de ela não ser realizada no tempo previsto implica desde
logo o incumprimento definitivo, pela perda do interesse para o credor (art. 808.º/1).

4.2 CONSTITUIÇÃO EM MORA: MORA EX PERSONA E MORA EX RE


Quanto ao momento da constituição em mora, esta pode ser:

 Mora ex persona, art. 805.º/1: só há mora depois de o devedor ser interpelado para cumprir,
ou seja, a mora está dependente da interpelação feita pelo credor, que tanto pode ser efetuada
judicial como extrajudicialmente. Ocorre nas obrigações puras.

 Mora ex re, art. 805.º/2/a): tendo a obrigação prazo certo, não é necessária a interpelação
para que haja mora, esta verifica-se logo que, vencida a obrigação, o devedor não cumpra. Ao lado

das obrigações com prazo certo, há mais dois casos em que a mora prescinde da interpelação:
quando a interpelação tiver sido impedida pelo devedor e quando a obrigação provir de facto ilícito

(a mora conta-se a partir da prática do facto ilícito).

4.3 EFEITOS DA MORA


A mora tem dois efeitos fundamentais:

 Por um lado, obriga o devedor a reparar os danos que causa o credor o atraso culposo no
cumprimento (art. 804.º/1);

 Por outro, lança sobre o devedor o risco da impossibilidade da prestação.

Assim, a mora faz surgir na esfera do credor o direito à indemnização pelos danos moratórios,
entre os quais avultam as despesas que o credor seja forçado a realizar para satisfazer, entretanto, o

interesse a que achava adstrita a prestação em falta e os benefícios ou lucros que ele deixou de obter

149
FDUC – DOII 2017/2018
em virtude da falta do devedor. Nas obrigações pecuniárias, a lei presume que há sempre danos

causados pela mora e fixa o seu montante (art. 806.º/1, corresponde aos juros legais).
Por outro lado, o art. 807.º determina que, com a mora, se inverte o riso: o devedor torna-se

responsável pelo prejuízo que o credor tiver em consequência da perda ou deterioração daquilo que
deveria entregar, mesmo que estes factos lhe não sejam imputáveis.

Porém, o n.º 2 ressalva a possibilidade de o devedor em mora alegar que a perda ou


destruição da coisa se teria igualmente verificado na hipótese de a obrigação ter sido oportunamente

cumprida. Esta sanção refere-se especialmente às obrigações de prestação da coisa, nos casos em
que tenha havido transferência do domínio ou de outro direito sobre a coisa: pelas regras gerais, o

risco correria por conta do credor; porém, a lei estabelece uma inversão do risco como forma de
sanção.

4.4 A CONVERSÃO DA MORA EM INCUMPRIMENTO DEFINITIVO

Há duas formas de conversão da mora em incumprimento definitivo, art. 808.º:


 Perda de interesse do credor: a mora do devedor pode eliminar o interesse do credor na

prestação. Quando assim seja, a mora equivale desde logo ao incumprimento da prestação; porém,
nos termos do n.º 2, esta perda de interesse é apreciada de forma objetiva.

 Interpelação admonitória: o art. 808.º/1 atribui ao credor o poder de fixar ao devedor um


prazo para além do qual declara que considera a obrigação como não cumprida. Este prazo tem de

ser um prazo razoável, e fixado com a cominação de uma sanção, a do incumprimento definitivo.

5. CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
5.1 NOÇÃO

Ao lado da falta de cumprimento e da mora, a doutrina alemã desde há muito reconhece uma
terceira forma de violação do dever de prestar – o cumprimento defeituoso ou violação contratual

definitiva. Há um ato do devedor, porém este ato não é conforme às expectativas.

150
FDUC – DOII 2017/2018

5.2 REGIME JURÍDICO


O Código Civil faz referência ao cumprimento defeituoso no art. 799.º/1, porém o legislador não

prevê qualquer regime geral: assim, o seu regime encontra-se disperso pelas normas reguladoras de
contratos especiais – nomeadamente, a compra e venda, locação e empreitada. A consequência mais

importante do cumprimento defeituoso é a obrigação de ressarcimento dos danos causados ao


credor. Para além desta consequência, destaca-se:

 O direito conferido ao credor, em certos casos, de exigir a reparação ou substituição da coisa


(art. 914.º).

 O direito de exigir a eliminação dos defeitos, quando a coisa seja material e economicamente
viável (art. 1221.º).

 O direito de redução da contraprestação (art. 911.º).

6. MORA DO CREDOR
6.1 NOÇÃO

Diz-se que há mora o credor sempre que a obrigação não foi cumprida no momento próprio,
porque o credor, sem causa justificativa, recusou a prestação que lhe foi regularmente oferecida ou

não realizou os atos de cooperação da sua parte necessários ao cumprimento.

6.2 REGIME
São três os efeitos fundamentais da mora do credor:

 Atenuação da responsabilidade do devedor (art. 814.º): o devedor passa apenas a


responder, quanto à guarda e conservação da coisa, pelos danos provenientes do seu dolo. Só tem

de restituir os frutos percebidos e não os percipiendos (art. 1271.º); e as somas devidas deixam de
vencer juros.

 Especial oneração do credor, em matéria de risco: o risco passa a correr por conta do
credor, pelo que não ficará desonerado da contraprestação mesmo que se perca, parcial ou

totalmente, o seu crédito por impossibilidade superveniente da prestação. Isto com duas limitações:
se o devedor obtiver alguma vantagem com a extinção da obrigação, o benefício será descontado no

valor da contraprestação a que o credor continua vinculado (art. 815.º/2, 2ª parte); e, se a prestação

151
FDUC – DOII 2017/2018
impossibilitada for divisível, a contraprestação a que o credor fica adstrito terá apenas o valor

correspondente à parte dessa prestação.


 Direito de indemnização do devedor pelos encargos e despesas a mais, que a mora lhe

acarrete: o credor fica obrigado a indemnizar o devedor das despesas que este fez com o
oferecimento infrutífero da prestação e com a guarda e conservação do respetivo objeto (art. 816.º).

152

Você também pode gostar