Do Jardim Inverso Ao Plantio Da Terra - Final

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Do jardim inverso ao plantio da terra: a poética crítica de Ferreira Gullar

Naiara Barrozo

Um dia, em um lugar chamado São Luiz do Maranhão, um menino percebeu que


existia a vida, a sua vida, e o mundo. Neste momento, percebeu também que para a sua vida,
a vida do mundo era pouca e sufocante, mas aquela não existiria sem esta. Mesmo assim, o
menino, já feito homem, em seu espírito bárbaro decidiu fugir:

Fugi pela poesia, inventei um mundo feérico e feroz. Um suicídio esplendente: ateei
fogo ao verbo, minhas vestes mortais, como se fosse meu corpo. E sobrevivi,
sobrevivi, sobrevivi. Abati a poesia, calquei-a sob os pés, mijei nela. Lavei as mãos,
virei concretista, neoconcretista, enterrei o poema numa casa da Gávea. E sepultei
com ele a metafísica.

É exatamente com essas palavras que Ferreira Gullar descreve, no início de seu artigo
"Corpo a corpo com a linguagem", sua trajetória até 1961, quando, desiludido com a
vanguarda, iniciou o processo de reformulação de sua proposta poética, para a qual a poesia
torna-se a vida mesma, deixando de lado qualquer pretensão metafísica. A poesia até então
havia sido o outro mundo: a demanda da vida seria suprida na perfeição e na pureza de um
mundo como o platônico das idéias, que, no caso de Gullar, era o mundo constituído pela
linguagem, era o mundo da poesia, que deveria ser capaz de encerrar o puro sentido no puro
sentir. Seu objetivo, afirma no mesmo ensaio, era o de resgatar a vida na literatura,
conferindo um significado a ela. Podemos entender melhor o que ele diz a partir da leitura de
"As rosas que eu colho", poema publicado em seu primeiro livro.

As rosas que eu colho


não são essas, frementes
na iluminação da manhã;
são, se as colho, as dum jardim contrário,
nascido desses, vossos, de sua terrosa
raiz, mas crescido inverso
como a imagem nágua;
aonde não chegam os pássaros
com o seu roubo, no exasperado coração da terra,
floresce, tigre, isento de odor.
Nele, Gullar parte a realidade em duas esferas. Uma é aquela em que estão as rosas
“frementes/ na iluminação da manhã”, a outra é aquela “dum jardim contrário”, “como
imagem nágua”. Estes mundos não são desvinculados, já que o jardim contrário origina-se no
primeiro, é “nascido desses, vossos, de sua terrosa/ raiz (...)”. Neste verso, o eu –lírico afirma
para o leitor que o mundo de rosas frementes é o “vosso” próprio mundo. Esta demarcação é
apresentada desde o primeiro verso, com o uso do pronome demonstrativo esse. No quinto
verso, ele é retomado pelo uso de um pronome demonstrativo e ratificado imediatamente em
seguida pelo pronome possessivo. A partir desta revelação, pelo distanciamento construído
com os pronomes, o eu-lírico demarca o campo ao qual pertence. Este campo não é
autônomo, pois sua existência deve-se ao outro, àquele da manhã iluminada. Para que neste
jardim floresçam rosas, é preciso haver a terrosa raiz de um roseiral que não é imagem, pois é
apenas a partir dela que algo crescerá “inverso”, como se espelhada.
Inverso: in-verso, no verso, em verso. A leitura desta palavra guarda duas
significações. A primeira é visualmente direcionada, e corresponde ao sentido mais imediato
de coisa que segue um sentido contrário, como se diz do jardim. Mas foneticamente ela
explicita outra direção: a rosa colhida no jardim contrário cresce em verso, como imagem
n'água. Determina-se, deste modo, o mundo outro, de rosas-tigre que nascem sem odor, como
sendo o mundo da poesia. No poema, as flores são ferozes, e não têm haste. Ligam-se sem
toque à raiz terrosa, são elas mesmas um outro mundo, que, por sua vez, é gerado pelo e
integra aquele do qual são imagem, acrescentando-lhe, pela imagem autonomamente
espelhada, a vida que deveria ser sua. Não se trata de tentar captar na figura devolvida todos
os aspectos da realidade e de retratá-los, representá-los, mas de fazer do jardim contrário um
jardim em si, de apresentá-lo sem nome, como imagem anterior ao conceito.
Este poema integra A Luta Corporal, publicado em 1954, que inicia a trajetória de
Gullar como poeta. O livro é, antes de tudo, segundo o escritor, a recusa do modelo
parnasiano, que desde os treze anos de idade era seu instrumento de expressão. O motivo
desta recusa estava na necessidade de relacionar vida e literatura, não sendo possível,
portanto, pensar qualquer modelo poético cujo mote fosse arte pela arte. Abandonado o
sistema que preformatava sua realidade até então, não havia agora meios para expressá-la ou
apreendê-la. Este estado de anomia leva Gullar ao reencontro da experiência viva, e o
apresenta a um novo mundo que demandava fidelidade à vida, isto é, que demandava a não
mortificação da materialidade por qualquer poética prescritiva, por qualquer forma que não
fizesse jus à vivacidade, que não fizesse do próprio poema uma experiência viva. Esta
fidelidade, portanto, implicava fazer do poema uma realidade viva: uma realidade que só se
desse através dele.
O desafio de Gullar a partir de então era “não se deixar condicionar pelas técnicas da
expressão, pela habilidade, e pelas fórmulas poéticas”. Este desafio incluía a busca por uma
nova linguagem que não poderia partir de nada que não fosse dado pela própria experiência
poética, nada que pudesse ser encontrado no passado. Ela deveria nascer com o próprio
poema, e, assim, resguardar sua pureza, sendo constantemente reelaborada. O instante da
fulguração vívida de cada experiência cabia apenas naquela forma que o expressaria a partir
dela mesma, considerando exatamente a primazia do momento pontual no qual a vida da
experiência exprimia-se com todo seu frescor. Este instante não cabia entre as paredes da
sintaxe da língua, por isso, a reconstrução permanente desta nova linguagem era também a
reconstrução permanente de sua estrutura.
A conseqüência desta proposta foi o que o próprio Gullar chamou de implosão da
linguagem usual, que ele relaciona com o início do fim de sua poesia. Este movimento
implosivo pode ser nitidamente observado nos estilhaços que compõem “Roçzeiral”, um dos
últimos poemas que formam A Luta Corporal:

Au sôflu i luz ta pom-


pa inova’
orbita
FUROR
tô bicho
’scuro fo-
go
Rra
UILÁN
UILÁN,
lavram z'olhares, flamas!
CRESPITAM GÂNGLES RÔ MASUAF
Rhra
Rozal, ROÇAL
l’ancêndio Mino-
Mina TAURUS
MINÔS rhes chãns
sur ma parole -
ÇAR
ENFERNO
LUÍZNEM
E ÔS SÓES
LÔ CORPE
INFENSOS
Ra
CI VERDES
NASCI DO
CÔFO
FORLHAGEM, fo-
lhargem
q’abertas
ffugas acêças
GUERRAS
dê pomos -
pomares riste
MON FRÈRE MA FRÊLE -
te roubo o roubo
CÃO das Haspéridas
Dê seque peles
perseques rijes
curraçanádus
pur flór
oblófs!
LO MINÇA GARNE
Mma!
Ra tetti mMá
Mu gargântu
FU burge
MU guêlu, Mu
Tempu - PULCI

MU
LUISNADO
VU
GRESLE RRA
Rra Rra.
GRESLE
RRA
I ZUS FRUTO DU
DUZO FOGUARÉO
DOS OSSOS DUS
DIURNO
RRRA

MU MAÇÃ N’ÃFERN

TÉRRE VerroNAZO
OASTROS FÓSSEIS
SOLEILS FOSSILES
MAÇÃS Ô TÉRRES
PALAVRA STÊRCÃ
DEOSES SOLERTES PA-
LAVRA ADZENDA PA-
LAVRA POÉNDZO PA-
LARVA NÚ-
MERO FÓSSEIL
LE SOLÉLIE PÓe
ÉL FOSSIL PERFUME
LUMEM LUNNENi
LUZZENM
LA PACIÊNÇA TRA-
VALHA
LUZNEM

O que temos aqui é a quebra total da sintaxe e da morfologia, e uma extensa rede de
cacos fonéticos. A linguagem é palavra rasgada: a própria dissipação. Esta forma é a intenção
levada ao extremo de fazer da poesia a experiência viva do mundo, tentando encerrar no
poema todas as sensações abarcadas pela fulguração. Concretizada a tentativa, ela acaba por
mostrar o maior risco deste projeto. Rozçeiral apresenta a própria experiência de um
solipsismo poético, para o qual o vínculo da flor sem haste foi absolutamente desfeito. O
risco é o de que agora ela permaneça solta em seu jardim inverso, e nada mais possa
acrescentar de vida à vida comum. O poema torna-se um “’scuro fo-/ go”, lugar no qual
pouco se vê, pouco se ouve além de urros e ruídos:

LO MINÇA GARNE
Mma!
Ra tetti mMá

No escuro, entretanto, algumas imagens se apresentam como pontos de luz. O


primeiro destes pontos está ressaltado na primeira estrofe pelo emprego da caixa-alta,
prenunciando todo o poema: FUROR: exaltação de ânimo; delírio violento; arrebatamento,
frenesi; impetuosidade. Neste mesmo trecho aparece a expressão já mencionada “’scuro fo-/
go”, que traz a imagem do fogo, elemento retomado ao longo de todo tecido poético. No
terceiro verso da segunda estrofe, temos a presença do primeiro verbo explicitamente
conjugado: lavram. O sentido do verbo é direcionado pela continuidade do verso: “lavram
z´olhares flamas!”. Flamas, flama, chama, labaredas: vemos um incêndio no Rozçeiral. Este
verbo aparecerá adiante como integrante da própria pa-lavra. O verbo na terceira pessoa do
singular aparece unido àquele que é seu sujeito. Palavra lavra. Cultiva a rosa, ara, trabalha, e
espalha o fogo que a destrói.
A potência fanopaica do poema não permite, contudo, uma articulação entre as
imagens capaz de construir uma constelação significativa, pois suas estrelas estão
demasiadamente esparsadas para que seja possível enxergar o contorno de um corpo
qualquer. Ao desarticular todos os aspectos da linguagem, o poeta provoca seu delírio. No
Roçzeiral, ela e as rosas incendeiam. Se a linguagem é o mundo da poesia, a palavra calada
por sua desconstrução vê destruída desta maneira a condição de possibilidade para a
existência do próprio poema.
Ferreira Gullar mergulha, então, em um novo estágio de anomia, um novo estágio de
questionamento literário. Aliás, o período antecedente ao livro dA Luta Corporal parece ser o
primeiro momento que a literatura é questionada. Este questionamento é formulado em seu
ensaio “Augusto dos Anjos ou Vida e morte nordestina” como o “ter a consciência implícita
ou explícita de que a literatura é um instrumento de conhecimento e transformação da
realidade, através do qual o homem atualiza (formula, comunica) um tipo específico de
experiência vital”. Este movimento literário, por sua vez, será definido por Gullar, em Corpo
a corpo com a linguagem, como a atitude que constitui a origem de sua própria poética.
Observando, contudo, seu caminho, o que podemos perceber é que este movimento não é
apenas o que dá origem a esta poética, mas é o que a constitui mesmo durante todo o percurso
do poeta.
Até o ano de 1974, por exemplo, podemos perceber três destes momentos. O
primeiro, supramencionado, culminou na produção de seu primeiro livro. Ao final deste, a
poesia mostrou um limite sobre o qual Gullar parece ter desenvolvido posteriormente seus
trabalhos concretistas e neoconcretistas. A linguagem implodida o obrigou a buscar o poema
além do discurso. Neste contexto, as artes plásticas ganham terreno. Primeiro, o poeta
recorreu ao concretismo, mas logo reconheceu seus limites e o abandonou. O
neoconcretismo, adotado em seguida, foi uma reação ao dogmatismo matemático (morus
geometricus) do concretismo, que impunha limites à configuração de uma forma capaz de dar
conta da experiência viva, tal como era pretendido por Gullar.
Se formos ao manifesto neoconcreto, vemos que ele explicita deste modo sua
concepção de obra de arte:

Acreditamos que a obra de arte supera o mecanismo material sobre o qual repousa,
não por alguma virtude extraterrena: supera-o por transcender essas relações
mecânicas (que a Gestalt objetiva) e por criar para si uma significação tácita (M.
Pority) que emerge nela pela primeira vez. Se tivéssemos que buscar um símile para
a obra de arte, não o poderíamos encontrar, portanto, nem na máquina nem no
objeto tomados objetivamente, mas, como S. Lanoer e W. Wleidlé, nos organismos
vivos. (MANIFESTO NEOCONCRETO, 1959)

Tendo como base esta idéia de obra orgânica, a pesquisa poética de Gullar o direciona
progressivamente da palavra ao gesto. Primeiro, o poema extrapola os limites físicos do livro.
A linguagem dá lugar ao silêncio. Com o livro-poema, surgido em 1959, adota-se o corpo do
livro como estrutura a ser desconstruída. Esta forma conjuga palavra e silêncio em uma obra
na qual o poema é espacializado. O leitor aqui é incorporado ao poema, já que este
constitui-se pelo próprio desdobrar das páginas nas quais as palavras estão escritas. A mescla
de poema e leitor mina a diferença entre sujeito e objeto na relação de conhecimento da
realidade que se apresenta na obra. Mais tarde, a busca pela poesia no silêncio, extrapola o
livro e procura sua forma no mundo. O ápice desta proposta foi o projeto Poema Enterrado,
que, como o nome sugere, seria um poema enterrado em uma casa na Gávea. Para ser lido,
ele demandava do leitor que descesse uma longa escadaria, colocando em movimento todo
seu corpo. O vínculo com esta estética de vanguarda durou até 1961, quando o poeta assumiu
a direção da Fundação Cultural de Brasília.
Em 1962, tem início a busca, de fato, por um novo caminho. Gullar ingressa no
Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), assumindo um
trabalho mais engajado politicamente. A trilha seguida até então, por meio da qual a
expressividade de uma linguagem não-conceitual era perseguida, o distanciava do espírito
comunista que o movia. Era preciso outra vez repensar a poesia considerando a sociedade, ou
seja, sem deixar de lado o lugar do homem na história, o que implicava, no momento
histórico vivido, não deixar de lado também o lugar do homem na cadeia produtiva. O autor
como produtor, como ser histórico está sempre posicionado na sociedade, voluntária ou
involuntariamente, devendo ele mostrar-se sempre consciente de sua posição. O materialismo
expulsa a metafísica em um novo retorno à realidade viva. Assumindo esta postura, Gullar
adota a literatura de cordel, como vemos em “Peleja de Zé Molesta com Tio Sam”:

Tio Sam também chegou


todo de fraque e cartola.
virou-se pra Zé Molesta
e lhe disse: ‘Tome um dólar,
que brasileiro só presta
para receber esmola.
Está acabada a disputa,
meta no saco a viola.
Zé Molesta olhou pra ele,
lhe disse: ‘Não quero não.
Não vim lhe pedir dinheiro
mas lhe dar uma lição.
Não pense que com seu dólar
compra minha opinião,
que eu não me chamo Lacerda
nem vivo de exploração.
Neste fragmento, vemos o extremo oposto do trabalho realizado anteriormente. A
forma marcada pela musicalidade característica do cordel é simples e expressa uma
mensagem clara por meio da linguagem usual. Nesta simplificação, entretanto, ela ganha
status de instrumento para a transmissão de uma mensagem ideológica, pedagógica, de
resistência à dominação capitalista. O foco é o conteúdo. Tio Sam e Zé Molesta configuram o
quadro da dominação social: aquele é o burguês explorador, e este, o proletário explorado.
Mais que isso, eles configuram a situação política internacional, da dependência econômica
do Brasil frente aos Estados Unidos. A explicitação destes quadros se dá com o
posicionamento de Zé Molesta como um agente de resistência, não como submisso,
mostrando também qual deve ser a posição do brasileiro.
Apesar de, segundo o próprio Gullar, esta fase configurar a renúncia da poesia em
prol do homem comum, o abandono da linguagem poética pela supremacia da linguagem
usual, este período parece ter sido fundamental para o amadurecimento de sua própria poesia,
em crise desde A Luta Corporal. Deste modo, se até o neoconcretismo a forma construía ela
mesma a realidade que nela se apresentava viva, na forma do cordel ela se deixa
instrumentalizar dando origem ao germe de uma nova rosa, que não será imagem, mas rosa
concreta, viva, com haste, presa ao chão.
Este terceiro momento de crítica literária começa em 1962, e ganha fôlego em 1964,
com o golpe militar e a prisão do artista. O exílio o faz repensar a relação com a revolução e a
literatura, e Gullar conclui que não era possível naquele momento uma ação política que não
fosse ao mesmo tempo poética. Era preciso encontrar um caminho no qual poesia e política,
engajamento e qualidade literária se unissem. Uma pista fora dada pelo cordel: não se poderia
mais ignorar a linguagem comum. Ao invés de implodi-la, como fora feito em A Luta
Corporal, a poesia engajada precisava reconhecer, nesta matéria-prima, o instrumento para
manter-se vinculada ao mundo, era preciso incorporar a historicidade da língua comum para a
produção de um poema que se quisesse agente histórico. Não havia mais espaço para o
poema puro, apenas para a forma que incorporasse a sujeira da vida, o odor das rosas do
mundo não invertido. Um poema engajado não poderia mais ser rosa sem odor ou sem haste.
Este novo projeto é explicitado em “Meu povo, meu poema”.

Meu povo e meu poema crescem juntos


como cresce no fruto
a árvore nova
No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar
No povo meu poema está maduro
como o sol
na garganta do futuro
Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil
Ao povo seu poema aqui devolvo
menos como quem canta
do que planta

O texto apresenta o livro Dentro da noite veloz, explicitando, desde a primeira página,
em que está situado o fundamento da nova poética, cujo desenvolvimento o leitor
acompanhará ao longo do livro. Sua base está na equivalência entre povo e poema, construída
no texto a partir do estabelecimento do paralelismo entre os sintagmas. Nesta construção, a
vírgula é um elemento de separação que une, soma. Ela funciona como uma conjunção
aditiva que ao definir os espaços de cada um permite que o leitor estabeleça a relação de
equivalência entre ambos. A nova poética propõe que se dê o mesmo peso a ambos. Com esta
relação, Gullar nega a radicalidade das propostas desenvolvidas até então e afirma a
imbricação necessária entre os termos.
Esta coexistência necessária é afirmada nas duas primeiras estrofes. A primeira
apresenta poema e povo como sendo dois elementos cuja relação é semelhante à da árvore
nova que cresce no fruto. Entretanto, não se afirma neste ponto o que seria o fruto e o que
seria a árvore, apenas é colocada a interdependência existencial que determina ambos. A
partir da segunda estrofe, ambos são situados. O poema assume-se como lugar que contém o
germe daquilo que nasce: “no povo meu poema vai nascendo,/ como no canavial/ nasce verde
o açúcar”. O povo é o fruto, o canavial, a garganta do futuro. Ele contém o poema em germe.
Ao poeta resta trabalhar a cana para germinar dela o açúcar, refiná-lo. A terceira estrofe
retoma a imagem do espelhamento, semelhante ao que vemos em “As rosas que eu colho”.
Contudo, aqui o poema não é mera imagem, jardim invertido, mas plantas que se volta à terra
fértil, fundindo-se a ela pela raiz
Ao escrever o poema, publicá-lo em um livro, o poeta, portanto, apenas devolve ao
povo aquilo que lhe pertence. Tendo colhido a cana, produzido o açúcar, tomado a árvore
nova que nascia no fruto colhido, ele agora devolve as sementes, devolve o produto refinado.
Não como quem canta – e aqui Gullar refere-se explicitamente ao seu poema Galo Galo de A
Luta Corporal, mas como quem planta, ou seja, como quem, consciente do papel social da
literatura na transformação da realidade, devolve a matéria à terra, para que no movimento
cíclico da existência, seja sempre reformulada a experiência histórica e vital.

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