Cacadores de Nazistas Andrew Nagorski
Cacadores de Nazistas Andrew Nagorski
Cacadores de Nazistas Andrew Nagorski
JOHN DEMJANUK (1920-2012): Dos anos 1970 até a sua morte, Demjanuk foi
o centro de uma das batalhas judiciais mais complexas do pós-guerra,
travada nos Estados Unidos, em Israel e na Alemanha. Aposentado da
indústria automobilística em Cleveland, tinha sido guarda num campo de
extermínio e inicialmente foi confundido com “Ivan, o Terrível”, guarda
particularmente notório de Treblinka. Em 2011, um tribunal alemão
concluiu que Demjanuk era culpado por ter sido guarda em Sobibor, e
ele morreu menos de um ano depois. Seu caso estabeleceu um novo
precedente para como os tribunais alemães deveriam julgar o número
cada vez menor de supostos criminosos de guerra ainda vivos.
Um dos filmes alemães mais famosos logo após o fim da Segunda Guerra
Mundial foi Os assassinos estão entre nós (Die Mörder sind unter uns, no
original). Susanne Wallner, personagem sobrevivente de um campo de
concentração representada por Hildegard Knef, volta para seu
apartamento arrasado em meio às ruínas de Berlim. Encontra Hans
Mertens, antigo cirurgião do exército alemão, residindo lá, entregue ao
alcoolismo e ao desespero. O médico se depara por acaso com seu antigo
capitão, que ordenara o massacre de uma centena de civis de uma aldeia
polonesa na véspera do Natal de 1942, levando a vida de um próspero
negociante. Perseguido por essas lembranças, Mertens decide matar o
capitão na primeira véspera de Natal depois da guerra.
No último momento, Wallner o convence de que fazer justiça com as
próprias mãos seria um erro. “Não podemos julgar as pessoas”, diz ela.
“Você tem razão, Susanne”, responde Mertens, na cena final. “Mas
devemos apresentar acusações. Exigir reparação em nome dos milhões de
inocentes assassinados.”
O filme teve imenso sucesso, atraindo um público enorme. Entretanto,
houve um equívoco básico em sua mensagem: coube aos Aliados, e não
ao povo alemão, providenciar os primeiros julgamentos de crimes de
guerra. Os vitoriosos logo abandonaram esses esforços, concentrando-se
na Guerra Fria que começava, e a maioria dos alemães ansiava mais por
esquecer o passado recente do que por expiação.
Entre os principais criminosos que não foram presos de imediato e
entre aqueles que foram pegos sem serem reconhecidos por seus captores
Aliados, com certeza não se falava em expiação. Havia apenas o impulso
de fugir. No caso de Adolf Hitler e de Eva Braun, com quem o Führer
acabara de se casar, o meio escolhido foi o suicídio em seu bunker.
Depois de dar veneno aos seis filhos, Joseph Goebbels, ministro de
propaganda nazista, e a esposa, Magda, seguiram o mesmo caminho. Em
A permuta de Valhalla, romance best-seller lançado em 1976, o fictício
Goebbels explica por que fez essa escolha: “Não tenho a menor intenção
de passar o resto da vida correndo de um lugar para outro como um
eterno refugiado.”1
Porém a maioria de seus colegas, bem como outros nazistas culpados
de crimes de guerra, não tinha intenção de seguir o exemplo de Hitler.
Muitos criminosos de patentes mais baixas não sentiam sequer a
necessidade de se esconder: logo se misturaram aos milhões que tentavam
reconstruir a vida em uma nova Europa. Outros, que se julgavam em
maior perigo, encontraram maneiras de deixar o continente. Por muito
tempo, prevaleceu a impressão de que muita gente tinha conseguido
escapar da responsabilização por seus crimes, quase sempre com o apoio
de parentes leais e redes de Kameraden — camaradas do Partido Nazista.
Este livro se concentra em um grupo relativamente pequeno de
homens e mulheres que agiu — tanto em cargos oficiais quanto de forma
independente — para reverter o êxito inicial dos culpados e impedir que
o mundo esquecesse seus crimes. Essas pessoas demonstraram uma
determinação e uma coragem formidáveis, prosseguindo em sua luta
mesmo quando os países vitoriosos e o resto do mundo se tornavam cada
vez mais indiferentes ao destino dos criminosos de guerra nazistas. Em
sua perseguição, exploraram também a natureza do mal e levantaram
questões profundamente inquietantes sobre o comportamento humano.
Aqueles que tentaram levar os criminosos do Terceiro Reich à Justiça
têm sido chamados informalmente de caçadores de nazistas, mas não são e
nunca foram um grupo ligado por uma estratégia comum ou por
nenhum acordo com relação às suas táticas. Com frequência estavam em
desacordo uns com os outros e, apesar de terem os mesmos objetivos
gerais, eram propensos a recriminações, ciumeiras e rivalidades declaradas.
Em alguns casos, não há dúvida de que isso prejudicou a eficácia dos
caçados.
Contudo, ainda que todos os envolvidos na perseguição aos nazistas
tivessem posto de lado suas diferenças pessoais, os resultados não teriam
sido muito diferentes. E, avaliados segundo critérios absolutos, esses
resultados não justificariam a afirmação de que se fez justiça. “Qualquer
pessoa que busque um equilíbrio entre os crimes que foram cometidos e
a punição acabará frustrada”2, declarou David Marwell, historiador que
trabalhou na Diretoria de Investigações Especiais do Departamento de
Justiça norte-americano, no Museu Memorial do Holocausto dos Estados
Unidos, no Centro de Documentação de Berlim e foi diretor do Museu
da Herança Judaica de Nova York. Quanto à solene promessa feita
originariamente pelos vitoriosos de processar todos os responsáveis por
crimes de guerra, ele acrescentou, sem rodeios: “Difícil demais.”
Difícil demais, é verdade, obter êxito em grande escala, mas os
esforços daqueles que não desistiram de fazer pelo menos alguns
criminosos de guerra nazistas prestarem contas de seus atos cresceram e se
transformaram numa saga do pós-guerra diferente de qualquer outra na
história da humanidade.
No fim das guerras do passado, os vencedores costumavam matar ou
escravizar os vencidos, saqueando suas terras e aplicando castigos rápidos.
Execuções sumárias eram a norma em vez de julgamentos ou quaisquer
outros procedimentos legais destinados a examinar provas e determinar
culpa ou inocência. A vingança era a motivação, pura e simples.
Muitos caçadores de nazistas também foram motivados, de início, pelo
desejo de vingança, principalmente os que sobreviveram aos campos de
concentração e as pessoas que ajudaram a libertá-los e viram as espantosas
provas dos horrores que os nazistas em fuga tinham deixado para trás: os
mortos e moribundos, os crematórios, as instalações “médicas” que
serviam de câmaras de tortura. Em consequência, alguns nazistas e seus
colaboradores foram alvos imediatos das punições do fim da guerra.
No entanto, dos primeiros julgamentos em Nuremberg à caçada de
criminosos de guerra pela Europa, a América Latina, os Estados Unidos e
o Oriente Médio que se estende esporadicamente até os dias atuais, os
caçadores de nazistas concentraram seus esforços em mover ações legais
contra suas presas, numa demonstração de que até mesmo o culpado mais
óbvio merece ter seu dia no tribunal. Não foi por acaso que Simon
Wiesenthal, o mais famoso dos caçadores de nazistas, deu ao seu livro de
memórias o título Justiça não é vingança.
E mesmo quando a Justiça se mostrava obviamente inadequada, dando
penas suaves ou, em muitos casos, não dando nenhum tipo de sanção aos
culpados, outro objetivo começou a emergir: educar pelo exemplo. Por
que perseguir um guarda de campo de concentração já idoso e em seus
últimos dias? Por que não deixar os criminosos apenas definharem até a
morte? Muitos servidores americanos se satisfariam exatamente com isso,
sobretudo quando sua atenção se voltava para um novo inimigo: a União
Soviética. Individualmente, porém, os caçadores de nazistas não estavam
inclinados a deixar para lá e argumentavam que cada caso oferecia lições
valiosas.
O objetivo das lições era demonstrar que os horrendos crimes da
Segunda Guerra Mundial e o Holocausto não podem nem devem ser
esquecidos e que aqueles que instigaram ou cometeram esses crimes —
ou quem um dia cometer atos semelhantes — jamais escaparão da lei,
pelo menos em princípio.
***
***
Depois dos enforcamentos, numa entrevista para a revista militar Stars and
Stripes, Woods afirmou que a operação tinha saído exatamente como ele a
planejara: “Enforquei esses dez nazistas em Nuremberg com muito
orgulho; foi um serviço bem-executado. Tudo foi excelente. Nunca
estive numa execução mais bem-sucedida. Só estou triste porque aquele
tal Göring me escapou; eu teria feito o melhor possível no caso dele.
Não, eu não estava nervoso. Não tenho nervos. Não posso me dar ao
luxo de ter nervos em meu trabalho. Mas esse serviço em Nuremberg foi
exatamente o que eu queria — e eu queria tanto que fiquei aqui um
pouco além do tempo, mesmo podendo voltar para casa.”15
No rescaldo dos enforcamentos, entretanto, as afirmações de Woods
foram contestadas com veemência. O relato de Smith para os demais
jornalistas não deixava dúvida de que alguma coisa tinha dado errado na
execução de Streicher, e provavelmente na de Sauckel também. Uma
reportagem do The Star, de Londres, dizia que a queda tinha sido curta
demais e que os condenados não estavam devidamente amarrados, o que
significava que bateram com a cabeça ao cair no alçapão e “morreram de
lento estrangulamento”.16 Em suas memórias, o general Telford Taylor,
que ajudou a preparar a ação do Tribunal Militar Internacional contra os
principais chefes nazistas e depois se tornou o promotor-chefe nos doze
julgamentos que se sucederam, em Nuremberg, ressaltou que as fotos dos
corpos deitados no ginásio pareciam confirmar essas suspeitas. Alguns
rostos pareciam ensanguentados.
Isso despertou conjeturas de que Woods tivesse executado mal algumas
partes do serviço. Albert Pierrepoint, o experiente carrasco do Exército
Britânico, não quis criticar diretamente o colega americano, mas
mencionou notícias sobre “indícios de falta de jeito (...) devido à
inalterável queda de 1,52 metro de altura e ao nó de caubói de quatro
voltas, a meu ver antiquado”.17 Em seu relato do julgamento de
Nuremberg, o historiador alemão Werner Maser afirmou que Jodl levou
dezoito minutos para morrer, e Keitel resistiu por “um total de 24
minutos”.18
Esses pleitos não coincidem com a reportagem de Smith, e alguns
relatos subsequentes dos enforcamentos talvez tenham deliberadamente
exagerado, ou explorado de modo sensacionalista, o que houve de errado.
Apesar disso, os enforcamentos ficaram longe de ser a operação perfeita
que Woods dizia ter executado. Ele tentou rebater as críticas provocadas
pelas fotos dizendo que às vezes as vítimas mordiam a língua no processo
de enforcamento, o que explicaria o sangue em seu rosto.19
O debate sobre a atuação de Woods serve apenas para sublinhar a
questão que muitos condenados levantaram: por que haviam escolhido a
forca em vez do pelotão de fuzilamento? Woods estava genuinamente
convencido das virtudes do seu ofício. Obermayer,20 o jovem soldado
que conhecera Woods em enforcamentos anteriores, lembrou-se de um
“momento mais ou menos bêbado” em que um soldado perguntou ao
carrasco se ele gostaria de morrer na ponta de uma corda ou de outra
maneira. “Sabe que acho uma bela maneira de morrer? Na verdade, é
assim que eu provavelmente me vou.”
“Pelo amor de Deus, fale sério. Com essas coisas não se brinca”,
interveio outro soldado.
“Estou falando sério”, disse Woods. “É limpo, não dói, e é tradicional.
É tradição entre os carrascos enforcarem-se quando ficam velhos.”
Obermayer não estava convencido das supostas vantagens do
enforcamento sobre outras formas de execução. “A forca é um tipo
especial de humilhação”, disse, lembrando-se dos encontros anteriores
com Woods. “Por que é tão humilhante? Porque, no momento em que a
pessoa morre, todos os esfíncteres perdem a elasticidade. Você fica todo
coberto de merda.” Em sua opinião, não era de surpreender que as mais
altas autoridades nazistas em Nuremberg apelassem tão desesperadamente
pelo pelotão de fuzilamento.
Apesar disso, Obermayer se convencera de que Woods acreditava
sinceramente estar executando um trabalho que precisava ser feito com a
máxima eficiência e decência. Pierrepoint, seu colega britânico, cujos pai
e tio haviam trabalhado no mesmo ramo, fez uma afirmação parecida no
fim da carreira: “Eu fazia, em nome do Estado, o que acreditava ser o
método mais humano e digno de administrar a morte a um
delinquente”,21 escreveu. Entre as vítimas de Pierrepoint durante sua
temporada na Alemanha estavam as “Feras de Belsen”, incluindo Josef
Kramer, o antigo comandante de Bergen-Belsen; e Irma Grese, guarda
degradantemente sádica que tinha apenas 21 quando foi levada à forca.
Diferentemente de Woods, Pierrepoint viveu até a velhice e acabou se
opondo à pena de morte. “A pena de morte, a meu ver, não é nada além
de vingança”,22 concluiu.
Obermayer, que tinha voltado para os Estados Unidos antes dos
enforcamentos em Nuremberg, continuou convencido de que Woods
cumpria todas as suas tarefas, incluindo a mais famosa, com
distanciamento profissional. Para ele, era “apenas mais um trabalho”,
escreveu. “Tenho certeza de que sua atitude é muito mais parecida com a
do operário sindicalizado que fica na área de matança num frigorífico do
Kansas do que com a do fanático francês orgulhoso que guilhotinou
Maria Antonieta na Place de la Concorde.”
Entretanto, na esteira da guerra e do Holocausto, não era de admirar
que as noções de vingança e de justiça com frequência se misturassem,
fossem quais fossem os motivos dos próprios carrascos.
Woods errou ao prever como morreria. Em 1950, ele se eletrocutou
acidentalmente enquanto consertava uma rede de fiação nas ilhas
Marshall.
CAPÍTULO DOIS
***
***
***
***
DESÍGNIO COMUM
“Somos um povo muito obediente. É a nossa maior força e a nossa maior
fraqueza. Isso nos permite construir um milagre econômico enquanto os
britânicos fazem greve e nos leva a seguir um homem como Hitler para uma
imensa sepultura coletiva.”1
RELATO DE HANS HOFFMANN, EDITOR FICTÍCIO DE
UMA REVISTA ALEMÃ, NO BEST-SELLER DE 1972 O
DOSSIÊ ODESSA, DE FREDERICK FORSYTH.
***
***
A REGRA DO PINGUIM
“Era um homem de voz tranquila e agradável, com mãos delicadas e bem-
feitas, muito educado e seguro de si. Seu único defeito era ter matado noventa
mil pessoas.”1
JUIZ MICHAEL MUSMANNO SOBRE O RÉU OTTO
OHLENDORF DURANTE O JULGAMENTO DOS
COMANDANTES DOS EINSATZGRUPPEN, OS
DESTACAMENTOS DE EXECUÇÕES ESPECIAIS QUE
ATUAVAM NA FRENTE ORIENTAL.
***
ê d b bl d h dd dd l d
reverência às virtudes bíblicas de honestidade, caridade e limpeza de espírito. Teriam
esquecido desses ensinamentos? Não tinham mais consciência dos valores morais?”45
***
***
***
“Nas páginas seguintes, tentarei contar a história do meu ser mais íntimo
e profundo”,34 escreveu Höss, no início das suas memórias, que
posteriormente seriam publicadas em alemão, inglês e outras línguas. Ele
descreveu uma infância solitária nos arredores de Baden-Baden, em meio
a casas de fazenda isoladas perto do bosque. “O único confidente era meu
pônei, e eu tinha certeza de que ele me compreendia”, registrou. Não
tinha a menor vontade de passar seu tempo com as irmãs, e, embora
afirme que os pais se tratavam com “amoroso respeito”, eles nunca
demonstraram qualquer sinal de afeição.
Tinha sido proibido de entrar desacompanhado no bosque “porque,
quando eu era mais novo, uns ciganos que passavam me viram brincando
sozinho e me levaram”. De acordo com esse relato, um camponês que
conhecia a família encontrou os ciganos na estrada e, reconhecendo o
menino, levou-o de volta para casa.
Não é preciso ser psicólogo para reconhecer que esse fragmento de
tradição familiar, verdadeiro ou não, inculcou a noção de que havia
pessoas estranhas pelo mundo cheias de más intenções. A outra parte da
sua criação envolvia os planos do pai para que ele se ordenasse padre.
Católico devoto e ex-soldado na África Oriental Alemã, o pai era um
vendedor que passava longos períodos ausente, mas começou a viajar
menos depois que a família se mudou para Mannheim. Passando mais
tempo com o filho, insistia numa criação fortemente religiosa e lhe falava
da boa obra de missionários na África. Isso produziu no menino o efeito
desejado. “Eu estava decidido a um dia ser um missionário nas florestas
tenebrosas da África mais escura”, escreveu. “Aprendi que minha maior
obrigação era ajudar os necessitados.”
Então veio o inevitável momento de desilusão com a fé religiosa, que
Höss conta como se isso pudesse explicar o caminho subsequente que
trilhou na vida. Aos treze anos, “sem querer” derrubou um colega de sala
na escadaria da escola, e o menino quebrou o tornozelo na queda. Höss
considerou que centenas de alunos já deviam ter caído naquelas escadas e
que fora por azar que o colega se machucara, mas foi se confessar
imediatamente, “para tirar o incidente da consciência”. O padre confessor
era amigo do seu pai e lhe contou sobre a má ação do menino quando
apareceu em sua casa como convidado, naquela mesma noite. No dia
seguinte, o pai de Höss o castigou por ele não ter lhe contado o que
fizera.
O jovem Höss ficou chocado com a “traição inimaginável”,
ressaltando que um dos princípios do cristianismo é que padres nunca
revelem o que ouvem no confessionário. “Minha fé no sacerdócio
sagrado foi destruída”, escreveu. O pai morreu um ano depois. Quando a
Primeira Guerra Mundial começou, Höss sonhava em participar da luta,
apesar de ser novo demais. Alistou-se secretamente aos dezesseis anos, foi
mandado para a Turquia e em seguida para o Iraque. Na primeira batalha
com tropas britânicas e indianas, admitiu que foi “tomado pelo terror” ao
ver seus companheiros derrubados por balas, e ele sem poder fazer nada.
Mas, quando os soldados indianos chegaram mais perto, superou o medo
e acertou um deles. “Meu primeiro morto!”, escreveu, com o ponto de
exclamação traduzindo o orgulho, concluindo que nunca mais voltaria a
sentir medo diante da morte.
Não fosse a história de um futuro assassino em massa, nada haveria de
extraordinário nela. Mas isso é justamente o que importa ressaltar. Höss se
apresenta como um adolescente comum, que precisou amadurecer
depressa porque estava mergulhado na guerra na qual fora ferido duas
vezes. Os ferimentos também o puseram numa situação em que teria de
baixar a guarda, superando o instinto cultivado desde o começo da
infância de evitar “todas as manifestações de afeto”. Uma enfermeira que
tomava conta dele o deixou perturbado “com suas ternas carícias”, mas
de repente algo mudou. “Guiado por ela, passo a passo, até a consumação
final”, ele teve “uma experiência maravilhosa e inimaginável (...)
finalmente também caí sob o mágico feitiço do amor”.
Höss confessou que nunca teria sido capaz de “tomar coragem” para
iniciar o caso amoroso, e que aquilo teve grande impacto em seu jeito de
pensar. “Com toda a sua ternura e graça, aquela enfermeira me afetaria
pelo resto da vida”, escreveu. “Nunca mais consegui falar levianamente
desses assuntos; e o sexo sem afeto se tornou impensável. Dessa forma, fui
salvo de flertes casuais e de bordéis.”
Como em quase tudo na narrativa, Höss simplesmente ignorava
qualquer coisa que desmentisse o retrato que pintava de si mesmo. Em
Auschwitz, começou a prestar atenção especial numa prisioneira
austríaca, Eleanor Hodys, costureira não judia que fora flagrada forjando
um documento nazista.35 Quando a mulher foi trabalhar na vila de Höss,
ele a surpreendeu beijando-a nos lábios, o que a fez trancar-se no
banheiro. Logo estava trancada numa cela no bloco de interrogatório.
Tomando cuidado para não ser visto pelos próprios guardas, Höss
começou a visitá-la em segredo. De início, Eleanor resistiu, mas acabou
cedendo. Engravidou e foi transferida para uma cela escura e minúscula
no subsolo, onde era mantida nua e recebia uma quantidade mínima de
alimento. Quando finalmente foi solta, estava com seis meses de gestação
e, por ordem do comandante, levaram-na a um médico que fez um
aborto.
Nenhuma palavra sobre esse episódio sórdido aparece nas memórias de
Höss, é claro. Contemplando sua vida passada enquanto aguardava a
execução, ele se apegou à noção de que a história sobre o momento em
que chega à idade adulta mostrava-o como homem de princípios — e,
sim, um pouco romântico à moda antiga. Ressalta com orgulho que
comandava homens de mais de trinta anos quando ainda tinha apenas
dezoito, no fim da Primeira Guerra Mundial, e foi condecorado com a
Cruz de Ferro de Primeira Classe. “Cheguei à idade viril, tanto física
como mentalmente, bem antes da minha idade cronológica”, proclamou.
A mãe tinha morrido durante a guerra, e ele imediatamente se
desentendeu com os parentes restantes, incluindo o tio que se tornara seu
guardião e ainda queria que ele se ordenasse padre. Renunciando a
qualquer herança deixada pelos pais, Höss estava “cheio de raiva” quando
deixou os parentes e resolveu ingressar numa das unidades dos Freikorps
(“Regimentos Livres”) — como eram chamados os grupos paramilitares
de ex-soldados que diziam defender a honra do país derrotado — nos
Estados bálticos. “Eu abriria meu caminho no mundo lutando sozinho”,
escreveu. Seus novos camaradas eram, como ele, “desajustados na vida
civil”. Também ingressou no Partido Nazista em 1922, ressaltando que
estava “em firme acordo” com seus objetivos.
Höss estava disposto a tudo para administrar a versão de justiça dos
Freikorps. “A traição era punida com morte, e havia muitos traidores a
punir”, comentou. Apesar da desordem geral daquele período, quando
inúmeros assassinatos políticos ficaram impunes, em 1923, as autoridades
condenaram Höss por seu papel numa dessas mortes, sentenciando-o a
dez anos de trabalhos forçados. Höss não se arrependeu, “totalmente
convencido de que aquele traidor mereceu a morte”.
Escreveu, com indisfarçável piedade de si mesmo, que “cumprir pena
numa prisão polonesa naqueles dias não era nenhum tratamento em casa
de repouso”. Queixou-se das regras estritas e dos castigos para qualquer
violação. Mesmo depois de dirigir Auschwitz e servir em outros campos
nazistas, nunca lhe ocorreu que aquelas condições eram infinitamente
melhores do que qualquer coisa que seus prisioneiros tiveram que
aguentar.
Outro aspecto notável do relato é sua indignação — um senso de
superioridade moral — com os colegas prisioneiros. Dizia ter ouvido um
deles descrever como matara uma mulher grávida e empregada doméstica
a machadadas e silenciado quatro crianças que gritavam quebrando-lhes a
cabeça de encontro à parede. “Esse crime apavorante me deu vontade de
voar na garganta do sujeito”, afirmou Höss, apresentando-se como
verdadeiro amante da humanidade. Quanto à população carcerária em
geral, “suas almas não tinham lastro”, afirmou. Sentia o mesmo desdém
pelos carcereiros, “cujo prazer que experimentam com o poder aumenta
na proporção da baixeza de sua mentalidade”.
Ainda alimentando a mistura de autopiedade e senso de superioridade
moral, Höss foi solto em 1928, como parte de uma anistia geral. Os
nazistas não demoraram a tirar partido do desespero econômico da
maioria dos alemães em consequência do colapso de Wall Street em
1929. Um ano depois que Hitler tomou o poder em 1933, Höss
ingressou nas tropas da SS destacadas para o recém-criado campo de
concentração de Dachau, destinado a prisioneiros políticos, e começou a
treinar outros jovens para trabalharem lá. Chegara a pensar em se dedicar
à agricultura, segundo escreveu, mas acabou decidindo que desejava
permanecer no serviço militar. “Não pensei nada em referência a campos
de concentração”, afirmou. “Para mim era só uma questão de voltar à
ativa, de retomar minha carreira militar (...) a vida de soldado tinha muito
apelo para mim.”
Essa vida de soldado da SS — mesmo na versão inicial do campo de
concentração nazista — incluía níveis sempre crescentes de brutalidade.
Não havia batalhas para travar com inimigos armados; ali, a tarefa
consistia em aterrorizar e, em muitos casos, matar prisioneiros indefesos.
Em seus escritos para Sehn,36 Höss insistiu reiteradamente que era mais
sensível do que outros guardas da SS. Quando assistiu à primeira
flagelação de um prisioneiro, os gritos o fizeram “sentir calor e frio no
corpo todo”. Enquanto outros homens viam naquela imposição de dor
“um excelente espetáculo, uma espécie de folia camponesa”, declarou:
“Eu certamente não era um desses.”
Mas ele também advertia sobre os perigos de “demonstrar excessiva
bondade e boa vontade com os prisioneiros”, pessoas desonestas capazes
de se unir e de levar a melhor sobre os carcereiros. Em 1938, foi
promovido ao cargo de assistente em Sachsenhausen, outro campo de
concentração. Logo estava marchando quase todos os dias com seu
pelotão de fuzilamento, dando as ordens para disparar assim que o
prisioneiro era posicionado ao lado do poste, ele próprio desferindo o
golpe de misericórdia. Alegava que as vítimas eram “sabotadores” ou
pessoas que resistiam à guerra e minavam os esforços de Hitler. Fossem
comunistas, socialistas, testemunhas de jeová, judeus ou homossexuais,
todos os prisioneiros eram considerados inimigos.
Isso não era problema para Höss. Ele dizia que “não tinha o perfil
adequado para esse tipo de serviço”, o que significava ter que trabalhar o
dobro para não “revelar minha fraqueza”. Que fraqueza? “Nunca me
tornei indiferente ao sofrimento humano.” Mas insistia em dizer que os
primeiros êxitos de Hitler mostraram que os “meios e os fins” dos
nazistas estavam certos. No final de 1939, foi promovido a comandante
de Sachsenhausen. No ano seguinte assumiu suas atribuições em
Auschwitz.
***
Jan Sehn afirmava que seu famoso prisioneiro não foi completamente
insincero e dissimulado ao escrever sobre sua falta de entusiasmo no
desempenho de algumas tarefas — ou pelo menos que ele não tinha o
mesmo entusiasmo de subordinados seus mais francamente sádicos. “Os
comandantes ideais de campos de concentração no sentido nacional
socialista não eram as criaturas pessoalmente brutais, imorais e depravadas
da SS, mas Höss e pessoas como ele”, ressaltou Sehn. Em outras palavras,
eram tecnocratas impulsionados pela ambição de subir dentro da
hierarquia cumprindo suas tarefas, e não basicamente motivados pelo
desejo ardente de torturar e assassinar as pessoas de quem tomavam conta.
Mas, se torturas e assassinatos em massa faziam parte do serviço, então
que assim fosse.
Nos escritos que redigiu para Sehn sobre seus anos em Auschwitz,
Höss foi muito mais expansivo do que em seus depoimentos e conversas
em Nuremberg.37 Foi incumbido de organizar o novo campo
aproveitando edifícios já existentes e acrescentando o novo complexo de
Birkenau; mas disse que sua intenção original era romper com os
precedentes estabelecidos por outros campos, oferecendo “melhor
tratamento” para os prisioneiros, a fim de que trabalhassem mais,
“alojando-os e alimentando-os melhor”.
Segundo ele, no entanto, suas boas intenções foram “esmagadas pela
inadequação humana e pela pura estupidez da maioria dos oficiais e
soldados que me foram enviados”. Em outras palavras, a brutalidade dos
seus subordinados era incontrolável — e, é claro, ele mesmo não tinha
culpa. Como resultado, buscou refúgio em sua dedicação obsessiva ao
trabalho. “Decidi que nada ia me derrubar”, escreveu. “Meu orgulho não
o permitiria. Eu vivia apenas para o meu trabalho.”
Höss insistia em dizer que pagara um preço alto por desistir da
intenção original de comandar um campo mais eficiente e com menos
violência gratuita. “Tornei-me outra pessoa em Auschwitz... Todas as
emoções humanas foram reprimidas.” As pressões dos superiores, somadas
à “resistência passiva” dos subordinados no cumprimento de suas ordens,
levaram-no a beber muito. Hedwig, sua esposa, tentava organizar festas
com amigos para melhorar seu humor, mas isso não funcionou. “Até
mesmo pessoas que mal me conheciam sentiam pena de mim”,
acrescentou, cedendo mais uma vez à autopiedade que permeia o relato.
Quando em 1941 Himmler baixou a ordem para instalar as câmaras de
gás que permitiriam os extermínios em massa, Höss não hesitou em
cumpri-la. “Foi sem dúvida uma ordem extraordinária e monstruosa”,
escreveu. “Apesar disso, as razões que havia por trás dos programas de
extermínio me pareciam corretas.” Era apenas mais uma ordem a ser
obedecida, prosseguiu, indicando que só a reconheceu como monstruosa
quando se viu diante da perspectiva de ser executado. “Não pensei nisso
na época (...) Faltava-me a amplitude de visão necessária.”
Ele assistiu pessoalmente ao gaseamento de prisioneiros políticos
soviéticos usados para testar a eficácia do Zyklon B, o gás desenvolvido
para assassinatos em massa. “Durante as primeiras experiências de
gaseamento, não compreendi bem o que se passava, talvez por ter ficado
impressionado demais com o procedimento todo”, escreveu. Quando um
grupo de novecentos prisioneiros foi colocado na câmara de gás, ele
ouviu os presos desesperados se jogando contra as portas. Ao ver os
corpos, depois que a câmara foi arejada, acrescentou: “Aquilo provocou
em mim um sentimento de desconforto, e estremeci, mesmo imaginando
que a morte por gás seria pior do que de fato era.” Disse ainda que o
gaseamento “acabou com minhas preocupações”, pois ele se convenceu
de que seria possível levar adiante o extermínio em massa dos judeus.
Logo a máquina da morte do campo funcionava em sua capacidade
máxima, e Höss estava lá para garantir sua regularidade. Enquanto muitos
dos condenados caíam na conversa de estarem indo tomar banho de
chuveiro, outros percebiam do que se tratava. O comandante notou que
mães que se davam conta da situação “ainda assim encontravam coragem
para fazer piadas e dar força aos filhos, apesar do terror mortal visível nos
próprios olhos”. Uma mulher a caminho da câmara de gás foi até Höss e,
apontando para os quatro filhos, sussurrou: “Como é que o senhor pode
ter coragem de matar crianças tão lindas e fofas? O senhor não tem
coração?” Outra mãe tentou jogar os filhos para fora da câmara de gás
quando a porta estava sendo fechada. “Pelo menos deixem vivos meus
tesouros!”, suplicou — inutilmente, é claro.
Höss afirmava que ele e os outros guardas eram afetados por essas
“cenas tão perturbadoras” e que eram atormentados por “dúvidas
secretas”. Mais razões, portanto, para suprimi-las. “Todos me
observavam”, comentou, explicando por que não podia se dar ao luxo de
mostrar a menor hesitação ou misericórdia. Também afirmava jamais ter
odiado os judeus, uma vez que “a emoção do ódio é alheia à minha
natureza”. Apesar disso, admitia: “É verdade que eu os via como inimigos
do nosso povo.”
Apesar de toda a conversa sobre dúvidas secretas, o orgulho que ele
sentia da eficiência da máquina de matar que construíra é evidente em
seus escritos para Sehn. Até comenta, arrependido, que o processo de
seleção deixou vivos muitos prisioneiros doentes que “atulhavam o
campo”, e que seus chefes deveriam ter seguido seu conselho, mantendo
uma força de trabalho menor e mais saudável — em outras palavras,
deveriam ter despachado ainda mais judeus para a morte.
Embora tenha escrito, em tom despreocupado, que nunca se queixava
de tédio em Auschwitz, Höss insistiu em afirmar que “deixou de ser
feliz” quando o extermínio em massa começou. O motivo que cita revela
mais sobre seu caráter do que qualquer outra coisa em suas memórias.
Todos em Auschwitz achavam que ele levava “uma vida maravilhosa”, e
era verdade que sua esposa tinha um “paraíso de flores” no jardim, os
filhos eram mimados e podiam desfrutar de seu amor pelos animais
criando tartarugas, gatos e lagartos e visitando os estábulos e os canis.
Gabava-se de que até os prisioneiros que trabalhavam para eles viviam
ansiosos para lhes fazer favores, sem perceber por que isso ocorria. Mas
acrescentou: “Hoje eu me arrependo profundamente de não ter dedicado
mais tempo aos meus filhos. Sempre achei que deveria trabalhar mais.”
Höss redigiu essas linhas logo depois de descrever os apelos lancinantes
de mães tentando salvar ou pelo menos acalmar os filhos quando eram
empurradas para as câmaras de gás. Ele claramente não via ligação entre
uma coisa e outra. Como Sehn escreveu, na introdução à edição polonesa
das memórias: “Todas as suas descrições de assassinatos em massa”
parecem escritas “por um observador totalmente desinteressado”.38
Para Sehn e outros nos primeiros tempos de Nuremberg, Höss disse
formalmente que assumia a responsabilidade por seus atos e compreendia
que teria que pagar por eles com a própria vida, mas não parava de
transferir a verdadeira culpa ora para Hitler, ora para Himmler, que deram
as ordens. Ao mesmo tempo, explicava com orgulho que, mesmo quando
a guerra ia chegando ao fim, “meu coração se apegava a Hitler e a seus
ideais, que não devem perecer”.
Primo Levi, o escritor judeu italiano e sobrevivente de Auschwitz,
preparou uma introdução para uma edição posterior da autobiografia de
Höss. “É repleta de malignidade, narrada com perturbadora obtusidade
burocrática.” E acrescenta que o autor dá a impressão de ser “um canalha
grosseiro, estúpido, arrogante e falastrão, que por vezes mente
descaradamente”.Mas Levi também qualifica o volume como “um dos
livros mais instrutivos até hoje publicados”, capaz de demonstrar como
um homem que em outras circunstâncias provavelmente teria sido “um
tipo qualquer de funcionário enfadonho, comprometido com a disciplina
e dedicado à ordem” se transformou “num dos maiores criminosos da
história”.39
O livro mostra, prosseguiu, “a rapidez com que o mal pode substituir
o bem, assediando-o e finalmente submergindo-o — e, apesar disso,
permitindo que sobreviva em ilhotas minúsculas e grotescas: uma vida
familiar ordeira, o amor à natureza, a moralidade vitoriana”. Não
obstante, Levi reconhecia que a narrativa de Höss era basicamente
verídica, incluindo sua insistência em afirmar que não era nenhum sádico
que gostasse de infligir dor. Nesse sentido, ele foi “um homem que não
era um monstro, e nunca se tornou um, nem mesmo no auge da carreira
em Auschwitz”.
Esses temas viriam novamente à tona no caso mais famoso de outro
arquiteto do Holocausto, Adolf Eichmann. Seriam os principais
criminosos monstros ou, aparentemente, seres humanos comuns? Em
muitos sentidos, Höss deu mais munição do que Eichmann o faria em
fase posterior aos que defendem o último ponto de vista. Essa
interpretação se tornaria conhecida como a tese da “banalidade do mal”.
***
O general George Patton não era menos sarcástico com relação aos
esforços de seus superiores para punir ou pelo menos remover nazistas de
uma ampla variedade de cargos na Alemanha do pós-guerra. Quando era
governador militar da Baviera, em 1945, escreveu para a esposa: “O que
estamos fazendo aqui é destruir o único país razoavelmente modernizado
da Europa para que a Rússia possa engolir tudo.”3
Mesmo alguns judeus alemães que tinham fugido de sua terra nos anos
1930 eram friamente pragmáticos com relação às dificuldades que
encontraram quando voltaram como novos americanos para a vencida
Alemanha. Peter Sichel tinha doze anos em 1935, quando os pais o
despacharam de Berlim para uma escola britânica.4 Ele contou a
advertência feita por sua mãe quando o regime de Hitler baixou as leis
raciais de Nuremberg, naquele ano: “Todos os judeus serão mortos.”
Disse também que a maioria dos seus amigos a julgou louca por dizer
aquilo. Em 1938, seus pais também conseguiram fugir da Alemanha. Em
1941, Sichel estava nos Estados Unidos; seis meses depois de Pearl
Harbor, apresentou-se voluntariamente para servir no Exército.
Durante a guerra, Sichel serviu na OSS, a Agência de Serviços
Estratégicos, precursora da CIA. Recrutava prisioneiros de guerra
alemães para missões de espionagem, e, quando a guerra terminou, o
jovem capitão foi o último chefe do destacamento da OSS do VII
Exército localizado em Heidelberg. Mas, como o tenente que o coronel
Padover conheceu, ele não levava a sério os esforços para identificar e
punir membros do regime de Hitler, a não ser os de mais alto nível.
“Nossa missão era encontrar altos funcionários nazistas, membros do
serviço de segurança e oficiais de altos escalões da SS”, contou. Mas não
se envolveu emocionalmente na tarefa. “Não perguntem quem pegamos,
quem não pegamos”, acrescentou, indiferente.
Numa conferência em Londres, um ano antes, ele tinha dito aos seus
superiores que não deviam se preocupar com nenhuma resistência da
parte dos nazistas mais dedicados quando a guerra fosse ganha. “Não é
como a Primeira Guerra Mundial”, explicou. “Não há absolutamente
nenhuma dúvida sobre as coisas terríveis que fizeram. Eles vão se
esconder, mas não tentarão dificultar nossa vida.” Acrescentou que, apesar
de seus antigos compatriotas serem eficientes lutando em grupo, “os
alemães não se empenham muito na luta individual”. Ficou demonstrado
que tinha razão. Os temores de que as forças Werwolf, treinadas para
guerra de guerrilha contra os Aliados, seriam um adversário formidável
rapidamente se evaporaram.
Logo depois da derrota da Alemanha, Sichel foi transferido para
Berlim, onde continuou suas atividades clandestinas para a OSS e depois
para a CIA, quando a nova agência a substituiu. Foi montada uma
operação em Berlim, subordinada ao órgão central da CIA na Alemanha
Ocidental, e Sichel se tornou chefe dessa base em 1950. A prioridade de
sua equipe, ressaltou, era reunir informações de inteligência sobre os
russos, protegendo cientistas e técnicos alemães para que não fossem
arrastados para a União Soviética. Também ajudavam a levar cientistas —
independentemente do que tivessem feito para os nazistas — para a
Alemanha Ocidental, de onde alguns seguiram para os Estados Unidos.
“Não havia muita gente combatendo a última guerra”, comentou.
Quanto aos criminosos de guerra, acrescentou: “É horrível dizer, mas
eu não me importava muito. Minha filosofia sempre foi a de que
criminosos tinham que ser fuzilados e que tudo deveria ser esquecido.
Precisávamos nos livrar de todos que fossem realmente maus e, quanto
aos que tivessem sido fracos, o negócio era olhar para a frente, não para
trás.” No que lhe dizia respeito, a primeira rodada de julgamentos tinha
resolvido o problema.
***
Isso estava muito longe de ser a pretensão inicial dos novos senhores da
Alemanha. Em 10 de maio de 1945, o presidente Truman assinou uma
declaração delineando um ambicioso processo de “desnazificação” de
uma Alemanha derrotada. “Todos os membros do Partido Nazista que
tenham sido mais do que participantes nominais em suas atividades, todos
os partidários ativos do nazismo ou do militarismo e todas as pessoas
hostis aos propósitos Aliados serão removidos de cargos públicos e de
posições importantes em empresas semipúblicas e privadas”, proclamava a
declaração.5 Em seguida, definia as categorias de transgressores a serem
banidos sob esses termos, usando uma linguagem abrangente para cobrir
uma ampla gama de partidários do Terceiro Reich.
As quatro potências de ocupação — Estados Unidos, Grã-Bretanha,
França e União Soviética — concordavam que a desnazificação era
essencial. Alemães que buscavam quase qualquer tipo de emprego tinham
que preencher o Fragebogen — um questionário que logo se tornaria
infame, com suas 131 perguntas sobre tudo, desde características físicas até
antigas filiações políticas — e conselhos de desnazificação determinariam
quem estava desqualificado para exercer cargos públicos e privados. O
escritor alemão Ernst von Salomon mais tarde publicaria Der Fragebogen,
livro composto por suas longas e zombeteiras respostas a cada pergunta
sobre suas atividades na era nazista.
Mas o desafio enfrentado pelos vencedores para decidir como lidar
com um povo que basicamente marchara ao toque dos tambores nazistas
era ao mesmo tempo sério e intimidador. Oito milhões e meio de
alemães tinham pertencido ao Partido Nazista, e os seus cadastros de
filiação sobreviveram à guerra graças ao administrador de uma fábrica de
papel em Munique, que ignorou instruções para reduzi-los a pó.6 Outros
milhões estiveram envolvidos em organizações filiadas ao nazismo. Se
todos que de alguma forma serviram ao Terceiro Reich fossem excluídos
de cargos públicos e privados, sobraria pouca gente. Noel Annan, oficial
de informações na zona britânica, descreveu aquilo que até os mais
fervorosos proponentes da desnazificação sabiam por instinto: “A
democracia não poderia nascer na Alemanha sem o fórceps da
desnazificação; mas também era importante não esmagar o bebê.”7
Enquanto os alemães obedientemente preenchiam o Fragebogen, os
ocupantes tinham dificuldade para manter em dia a crescente montanha
de papéis. De início, os americanos foram particularmente ambiciosos,
mandando todo mundo que tivesse mais de dezoito anos preencher os
questionários e tentando fazer uma revisão tão completa quanto possível.
Conseguiram analisar quase 1,6 milhão de questionários até o fim de
1946, o que resultou na demissão de 374 mil nazistas.8 Mas o número de
casos acumulados chegava aos milhões, e não havia como os funcionários
darem conta de tudo. Como disse o general Lucius Clay, governador
militar da zona americana: “Não conseguiríamos julgar [todos] em cem
anos.”9 E concluiu que a desnazificação “precisaria ser feita pelos
alemães”.10
Isso coincidia com o desejo de incentivar alemães tidos como
relativamente não contaminados pela era nazista a, aos poucos, assumirem
a responsabilidade de cuidar dos assuntos locais. Os Spruchkammern,
tribunais de desnazificação na zona americana, não eram Tribunais de
Justiça no sentido técnico, mas contavam com promotores e réus e
tinham a incumbência de determinar quem era “grande delinquente”,
“delinquente”, “pequeno delinquente,” “seguidor” ou “pessoa
liberada”.11
O processo apresentava problemas desde o início. Muitos antigos
nazistas se diziam Muss-Nazis, pessoas forçadas a se filiarem ao partido
embora na realidade tivessem opiniões antinazistas.12 Como os
vencedores não se cansavam de gracejar, Hitler não teve nenhum
seguidor. Apesar de alguns membros dos tribunais tentarem cumprir a
incumbência que receberam, outros tinham pressa em liberar antigos
nazistas com base em depoimentos altamente duvidosos. Os alemães logo
popularizaram um termo para “branquear reputações”: Persilschein, um
atestado de bons antecedentes batizado com o nome de um sabão para
lavar roupa da marca Persil.13 Ainda assim, o processo inicialmente
contou com apoio alemão: em 1946, 57% dos entrevistados na zona
americana o aprovavam. Mas a confiança em sua lisura continuou caindo.
Em 1949, apenas 17% eram a favor.14 Houve casos em que edifícios dos
tribunais e veículos e casas dos integrantes foram vandalizados.15
O governador Lucius Clay admitiria, mais tarde, que tanto os
questionários quanto os tribunais foram majoritariamente um fracasso.
“Mas não sei o que mais poderia ter sido feito”, declarou,16 e era um
argumento legítimo. Numa sociedade que fora tão dominada por Hitler e
seu movimento, ninguém tinha uma receita de sucesso para a
desnazificação. Apesar disso, Clay também sustentava que os alemães que
cuidaram da desnazificação, apesar das falhas evidentes, conseguiram
expor e excluir muitos nazistas de posições de liderança. “Talvez não
tenham limpado a casa completamente, mas pelo menos tiraram o grosso
do lixo”, escreveu.17
Todas as potências de ocupação aprenderam depressa a abrir exceções à
regra, como no caso dos cientistas especializados em foguetes, que russos
e americanos disputavam. Os britânicos e os franceses não tardaram a
cancelar decisões que produziram efeitos negativos. Em junho de 1946,
179 executivos e empregados da fábrica da Volkswagen na zona britânica
foram demitidos,18 mas a fábrica produzia veículos principalmente para
os britânicos. Em fevereiro de 1947, 138 dos demitidos tinham voltado
ao trabalho. Os franceses inicialmente despediram três quartos dos
professores em sua zona, mas reconsideraram a decisão em setembro,
quando o ano letivo estava prestes a começar, e chamaram todos de volta
às salas de aula.19
As autoridades soviéticas acusavam as potências ocidentais de
colaborarem com ex-nazistas e permitirem que tivessem cargos
importantes. Quando a ocupação terminou oficialmente, em 1949, e as
Alemanhas Oriental e Ocidental foram formadas, o Kremlin continuou a
pintar a Alemanha Ocidental como um refúgio de nazistas. Embora não
haja dúvida de que muitos antigos nazistas atravessaram incólumes o
processo de desnazificação nas zonas ocidentais de ocupação e logo se
incrustaram em posições confortáveis no novo Estado Democrático, o
histórico soviético também estava longe de ser exemplar.
Na verdade, o Exército Vermelho infligiu brutal retaliação durante sua
arremetida final para Berlim, e os últimos prisioneiros de guerra alemães
na União Soviética só foram libertados em 1956. Em 1949, novos
tribunais alemães-orientais processaram muitos casos à maneira stalinista,
julgando acusados com assombrosa rapidez; em meros dois meses e meio,
eles condenaram 3.224 antigos funcionários nazistas, em processos que
duravam em média vinte minutos.20
Entretanto, exatamente como as potências ocidentais, os novos
senhores soviéticos da Alemanha tiveram que enfrentar a questão prática
de preencher um imenso número de cargos em sua zona e depois na nova
Alemanha Oriental. E, exatamente como as potências ocidentais, logo
passaram a fazer vista grossa a filiações passadas quando convinha aos seus
objetivos — em alguns casos, mais ainda que no ocidente. Antigos
membros do Partido Nazista não tiveram dificuldade para mudar de lado
e ingressar no recém-formado Sozialistische Einheitspartei Deutschlands
(SED), como era chamado o Partido Comunista Alemão. Já em 1946,
30% dos membros de grupos locais do SED eram ex-nazistas.21 Como
disse sarcasticamente o general Clay: “O SED apagava o ‘nazismo’ do
filiado.”22
O historiador alemão Henry Leide, que vasculhou imensos volumes
de arquivos da Alemanha Oriental a fim de produzir um estudo
minucioso do histórico daquele país no tratamento do passado nazista,
ressaltou que essas estatísticas não constituíam anomalia. “Junto com
muita gente inocente que foi condenada, quase todos os acusados de
crimes nazistas sérios foram soltos e puderam (erroneamente) alegar que
tinham se arrependido de seus crimes”, escreveu.23
Arrependimento e salvação na forma de adoção da causa comunista
tornaram-se meios de avançar rapidamente na carreira em todos os setores
da nova sociedade da Alemanha Oriental — universidade, medicina,
política, serviços de segurança, entre outros. Os verdadeiros inimigos, no
que dizia respeito aos novos mandachuvas da zona soviética, eram os
alemães suspeitos de qualquer tipo de anticomunismo, tidos como muito
mais perigosos do que os antigos nazistas.
***
***
***
***
***
***
***
A controvérsia começa com a questão das raízes judaicas de Bauer e de
quanta ênfase deve ser dada a esse lado da sua identidade. Sua família em
Stuttgart era tão secularista, dizia Ilona Ziok, que “para os judeus, ele não
era judeu; mas para Hitler, era”. Ou, como descreveu Bauer, ele era
judeu de acordo com as leis de Nuremberg, que levavam muito a sério a
política racial nazista — mas não em qualquer outro sentido. De acordo
com a exposição do Museu Judaico, “a família de Fritz Bauer era típica
da classe média judaica do império alemão” e, na casa onde passou a
infância, “festas judaicas só foram comemoradas enquanto uma das avós
viveu com a família”. Mas os indícios também sugeriam o seguinte: “A
família se considerava secular. A assimilação pelo Estado Alemão estava
associada à promessa de reconhecimento e igualdade social.”66
O pai de Bauer, veterano da Primeira Guerra Mundial, era um
nacionalista alemão incondicional, e a educação de Fritz foi típica da
época, o que o fazia compreender por que tantos contemporâneos da sua
geração respondiam às ordens tão obedientemente. Falando para uma
plateia de estudantes, em 1962, ele lembrou que “muitas pessoas tiveram
a mesma criação eu... era muito autoritário. Você se sentava
obedientemente à mesa e ficava calado quando o pai falava, sem direito
de dizer coisa nenhuma... conhecemos bem esse tipo de pai. Eu às vezes
tenho pesadelos quando penso no domingo à tarde em que tive o
atrevimento de mexer o braço esquerdo, em vez de mantê-lo
obedientemente debaixo da mesa”.67
“A educação autoritária na Alemanha era, de fato, o alicerce da ética
alemã”, prosseguiu. “A lei é a lei, e uma ordem é uma ordem — aí estão
o alfa e o ômega da eficiência alemã.” Mas, se isso o situava com firmeza
dentro da tradição cultural de seu país, uma advertência acrescentada
pelos pais poderia facilmente ser interpretada como produto dos seus
valores judaicos, por menos fiéis que fossem aos princípios religiosos:
“Você precisa sempre saber o que é certo”, ensinavam-lhe.
Bauer não dava muita ênfase às experiências pessoais com o
antissemitismo em seus anos de formação, mas seria difícil evitar de todo
o assunto, pois passou parte da vida universitária em Munique, justo
quando o nazismo estava em ascensão. Falando com estudantes, ele
recordava ter visto “os bandos arruaceiros de nazistas” e seus pôsteres
vermelhos que proclamavam: “Proibida a entrada de judeus.”68 Quando
o ministro do Exterior Walther Rathenau, o mais destacado judeu do
governo, foi assassinado, em 1922, ele acrescentou: “Ficamos
profundamente abalados, com a impressão de que a democracia de
Weimar, da qual esperávamos tanto, corria perigo.”
Dois anos antes, quando ainda cursava a escola secundária, Bauer se
filiara ao Partido Social-Democrata, do qual foi membro engajado
durante toda a vida. A exposição de Frankfurt o chamou de “judeu
social-democrata”, o que fez Ilona Ziok e Irmtrud Wojak avaliarem que
os dois termos tinham ganhado o mesmo peso. Na verdade, as primeiras
dificuldades que Bauer teve com os nazistas vieram de suas opiniões
políticas, sobretudo de sua defesa à República de Weimar diante dos
ataques tanto da extrema-direita como da extrema-esquerda. Acreditava
piamente numa ordem social de tendência esquerdizante que aderisse a
princípios democráticos.
Quando se tornou o mais jovem juiz de Stuttgart, em 1930, o maior
interesse de Bauer era tornar a lei mais favorável para jovens delinquentes,
dando-lhes oportunidade de se reabilitarem. Um ano depois, NS-Kurier,
o jornal nazista local, publicou uma reportagem com o título “Juiz de
Comarca judeu abusa do cargo com fins partidários”.69 O autor queria
saber se o Ministério da Justiça estaria “defendendo a conduta do juiz
Bauer”. Sem dúvida o pecado básico de Bauer, aos olhos dos nazistas,
eram suas convicções políticas social-democratas, mas eles aproveitaram
sua identidade judaica para chamar atenção para o assunto.
Nesse caso, fracassaram, mas não de todo. Bauer resolveu mover uma
ação por calúnia contra o jornal. O tribunal lhe deu ganho de causa, mas
foi uma vitória ambígua. O NS-Kurier proclamou: “A expressão ‘juiz de
comarca judeu’ é difamatória.”
Hitler assumiu o poder em janeiro de 1933; no fim de março, Bauer,
junto com Kurt Schumacher e outros sociais-democratas de destaque,
foram despachados para Heuberg, o primeiro campo de concentração
nazista em Württemberg. Não havia dúvida de que ele tinha sido
selecionado por causa da filiação partidária. Foi solto em novembro
daquele ano, e tanto a biografia de Steinke como a exposição de
Frankfurt declararam que isso aconteceu porque ele e vários prisioneiros
assinaram um juramento de lealdade ao novo regime. “Apoiamos
incondicionalmente a pátria na luta alemã pela honra e pela paz”, dizia o
documento. Schumacher, que se tornaria líder dos sociais-democratas no
pós-guerra, recusou-se a assinar e foi movido por vários campos de
concentração, até ser libertado pelos britânicos no fim da guerra. Bauer
sempre manifestou admiração a Schumacher pela “crença e coragem
incríveis”.70
Na exposição de Frankfurt, havia um exemplar do jornal que publicou
o juramento de lealdade, relacionando os prisioneiros soltos que o
assinaram. O segundo nome da lista era “Fritz Hauer”. Os organizadores
da exposição registraram isso como um erro tipográfico, ressaltando que
não havia nenhum outro prisioneiro importante com nome tão parecido
com o de Bauer. Também afirmaram que outros registros não deixavam
dúvida de que Bauer assinara o documento. Contudo, em sua longa
biografia, Irmtrud Wojak não faz menção ao juramento de lealdade, e
Ilona Ziok também o ignora em seu documentário. Ambas afirmaram ter
omitido o fato porque não havia prova cabal de que Bauer o assinara.
“Se assinou, foi pela família”, acrescentou Ilona. “Ele fazia tudo para
protegê-la.” Apesar da irritação com o que lhe parecia uma atenção
excessiva à identidade de Bauer como judeu, admitia que ele devia saber
que as políticas antissemitas dos nazistas significavam que ele e a família
poderiam ser perseguidos justamente por esse motivo, ainda que Bauer
inicialmente tenha sido preso por questões políticas.
Se a controvérsia sobre o juramento de lealdade parece relativamente
pouco importante, a polêmica em torno de outro aspecto da vida de
Bauer — sua orientação sexual — foi muito mais acalorada. Em 1936, ele
fugiu para a Dinamarca, onde a irmã e o cunhado tinham se estabelecido
dois anos antes. De início, achou o país um paraíso liberal. “Os
dinamarqueses aproveitam a boa sorte do país com uma praticidade
despreocupada que sempre maravilha os estrangeiros”,71 escreveu.
Mas, segundo a biografia escrita por Steinke e a exposição de
Frankfurt, mesmo naquele país aparentemente liberal a polícia o seguia
com frequência e o interrogava sobre seus supostos contatos com homens
gays. Em 1933, a Dinamarca foi o primeiro país da Europa a
descriminalizar o sexo consensual entre homens, mas a prostituição gay
continuou sendo ilegal. Um relatório da polícia exposto em Frankfurt
afirmava que ele tinha admitido dois encontros sexuais, embora negasse
ter pagado por sexo.
Irmtrud Wojak sugeriu que a divulgação de relatórios policiais
duvidosos parecia ter como objetivo macular a reputação de Bauer. “É
apelar para os preconceitos que ainda existem contra homossexuais”,
alegou. Ilona Ziok estava convencida de que Bauer era “assexual — acho
que ele não tinha contatos sexuais com ninguém”. Mas acrescentou:
“Ainda que fosse [gay], isso era assunto dele.” Ambas evitaram esse tópico
no retrato que fizeram de Bauer.72
Monika Boll, curadora da exposição de Frankfurt, justificou a decisão
de incluir essa parte da história. “Não se trata de querer tirá-lo do
armário”, insistiu, numa conversa que tivemos enquanto ela me mostrava
a exposição no dia da abertura. “Era de se esperar que ele estivesse
politicamente a salvo na Dinamarca. Mas lá, de repente, voltou a ser
perseguido de uma forma que afetava sua vida pessoal. É um lado que
precisa ser reconhecido historicamente. É a única razão legítima para
tornar públicos esses arquivos. Eles não mancham a imagem de Fritz
Bauer; mancham a de autoridades responsáveis por essas observações.”
Ironicamente, a disputa interna entre os que deram à vida de Bauer
novo destaque costuma obscurecer o fato de que todas as partes
envolvidas estão basicamente de acordo quanto às principais conquistas
dele. Trata-se a rigor de uma discórdia entre aqueles que acham que ele
só deveria ser mostrado sob uma luz favorável e aqueles para quem
divulgar essas controvérsias sobre sua vida pessoal não reduz, de forma
nenhuma, sua estatura.
Quando as forças alemãs invadiram e ocuparam a Dinamarca, em
1940, Bauer mais uma vez ficou em perigo. Com a ajuda de social-
democratas dinamarqueses, ele passou a maior parte do tempo escondido.
Em 1943, casou-se com Anna Marie Petersen na Igreja Luterana
Dinamarquesa, medida essa que, segundo consta, visava protegê-lo.73
Naquele mesmo ano, Hitler ordenou a deportação de judeus da
Dinamarca, mas a Resistência dinamarquesa respondeu organizando uma
lendária operação de resgate que permitiu a cerca de sete mil judeus
escaparem para a Suécia. Bauer, a irmã, o cunhado e seus pais estavam
entre eles.
Na Suécia, Bauer foi editor da Sozialistische Tribüne, publicação
emigrante destinada aos sociais-democratas alemães. Um dos seus jovens
coeditores era Willy Brandt, futuro chanceler da Alemanha Ocidental,
que impressionou Bauer por sua capacidade de fazer amigos em círculos
internacionais. Bauer o descreveu como “esperto como um
americano”.74
Quando a guerra terminou, Bauer e a família decidiram voltar para a
Dinamarca. No discurso de despedida para um grupo de militantes
antinazistas, em 9 de maio de 1945, logo após a rendição da Alemanha,
ele deixou bem claro o que achava do futuro da sua pátria:
A Alemanha é uma tábula rasa (...) uma Alemanha nova e melhor pode e deve ser construída a
partir das fundações (...) Reconhecemos que o país tem obrigação de pagar pelos crimes de
guerra cometidos em seu nome (...) Os criminosos de guerra e os criminosos (...) que levaram
o nazismo ao poder e iniciaram a guerra, os criminosos de Buchenwald, Belsen e Majdanek
devem ser punidos com a máxima severidade (...)Nenhum de nós exige piedade do povo
alemão. Sabemos que precisaremos trabalhar duro para conquistar respeito e simpatia pelos
próximos anos e décadas (...)75
***
***
***
***
Harel escolheu Aharoni para ir à Argentina daquela vez a fim de verificar
se eles poderiam finalmente identificar e localizar Eichmann no endereço
original fornecido por Hermann. O chefe do Mossad o considerava “um
dos melhores investigadores” de Israel. Nascido na Alemanha, tinha
fugido para a Palestina em 1938 e depois servido no Exército britânico
interrogando prisioneiros de guerra alemães.19
Primeiro Aharoni tinha que terminar outra missão, o que significou
mais um atraso de dois meses que deixou Harel “fervendo de
impaciência”.20 Entretanto, durante esse período, Aharoni se preparou
para a tarefa estudando os antecedentes do caso e encontrando-se com
Bauer. Em 1º de março de 1960, ele finalmente aterrissou em Buenos
Aires, munido de um passaporte diplomático israelense com nome falso.
Para disfarçar, dizia trabalhar no departamento de contabilidade do
Ministério do Exterior.21
Acompanhado por um estudante local que concordara em ajudar,
Aharoni alugou um carro e foi à Calle Chacabuco, em Olivos, em 3 de
março.22 Mas, quando chegou à casa e o estudante se aproximou,
fingindo procurar outra pessoa, ficou claro que não havia inquilinos nos
dois apartamentos. O estudante viu pela janela que eles estavam vazios e
havia pintores trabalhando lá dentro. Eichmann e família, se haviam
morado ali, tinham se mudado.
No dia seguinte, Aharoni arquitetou um plano para descobrir mais.
Lembrando-se, a partir da leitura do prontuário de Eichmann, de que o
filho mais velho fazia aniversário em 3 de março, instruiu um jovem
voluntário chamado Juan a voltar à casa deserta levando um presente e
um cartão para ele. A história inventada como disfarce era que um amigo,
que trabalhava como mensageiro num dos grandes hotéis de Buenos Aires
lhe pedira para entregar o pacote, mandado por uma jovem; se o
pressionassem, ele diria que não sabia mais nada.
Não encontrando ninguém na casa da frente, Juan deu a volta e, lá
atrás, avistou um homem falando com uma mulher que limpava algo
perto de um barraco.
“Desculpem, mas vocês sabem se o sr. Klement mora aqui?”,
perguntou. Os dois confirmaram o nome imediatamente, e o homem
indagou: “Você quer dizer os alemães?”
Para evitar suspeitas, ele disse que não sabia nada sobre sua
nacionalidade. O homem acrescentou: “Você quer dizer o que tem três
filhos adultos e o pequeno?”
Mais uma vez, Juan alegou ignorância, dizendo que estava ali apenas
para lhe entregar um pequeno pacote. O homem informou então que a
família tinha se mudado quinze ou vinte dias antes, mas ele não sabia para
onde.
Poderia ter sido uma notícia arrasadora, uma sugestão de que, se
Aharoni tivesse chegado um pouco antes, encontraria todo mundo na
casa. Mas o homem evidentemente acreditou na história contada por
Juan e o levou até um dos pintores que trabalhavam num quarto dos
fundos. O pintor foi igualmente solícito, dizendo que os Klements
tinham se mudado para San Fernando, outro subúrbio de Buenos Aires.
Ele não sabia o endereço, mas sugeriu que falassem com um dos filhos de
Klement, que trabalhava numa oficina de automóveis ali perto.
Com roupa de mecânico, o jovem alemão confirmou que era um dos
filhos de Klement, e Juan ouviu outras pessoas o chamarem de um nome
parecido com Tito ou Dito. Como disse Aharoni mais tarde, tratava-se
obviamente de Dieter, o terceiro filho de Eichmann. Dieter foi mais
desconfiado que os operários argentinos. Interrogou Juan sobre sua
história e quis saber quem mandara o pacote. Quando Juan repetiu a
história, Dieter disse que a rua onde moravam agora não tinha nome nem
números. Percebendo que não arrancaria mais nada diretamente, e para
evitar novas perguntas, entregou o pacote a Dieter, pedindo que o
entregasse ao irmão.
Vigiando a oficina, Aharoni e seu pequeno grupo resolveram seguir
Dieter depois do trabalho.23 Na primeira noite, não o viram sair; depois,
avistaram duas pessoas numa bicicleta motorizada e deduziram que o
passageiro na garupa era Dieter. O veículo seguiu na direção de San
Fernando, e o condutor deixou o carona perto de um quiosque.
Descobriu-se que aquele ponto ficava a uns cem metros de uma pequena
casa recém-construída na rua Garibaldi, para onde a família Eichmann
acabara de se mudar.
Aharoni estava convencido de que “Klement” era mesmo Eichmann,
mas continuou em busca de confirmação. Pediu a Juan que procurasse
Dieter na oficina mecânica com a falsa história de que a remetente
reclamou que o pacote não tinha sido entregue. Na conversa que se
seguiu, Dieter reafirmou que tinha entregado o pacote, revelando
também que ele deveria ter sido endereçado a Nicolas “Aitchmann”,
segundo a grafia anotada por Juan, e não “Klement”. Juan achou que era
má notícia, significando que não tinham encontrado seu homem. Mas
Aharoni, que não queria que Juan soubesse quem eles de fato
procuravam, lhe assegurou que ele tinha feito “um trabalho fantástico”.
Aharoni fez repetidas viagens a San Fernando, de início puxando
conversa com os vizinhos a pretexto disso ou daquilo. Confirmou que a
família se mudara recentemente, e um arquiteto conseguiu um
documento mostrando que o lote 14 da rua Garibaldi, onde estava
situada a nova casa, fora registrado no nome de Veronika Catarina Liebl
de Eichmann, constando os nomes de solteira e de casada. Depois de
passar várias vezes para observar a casa, Aharoni teve o primeiro
vislumbre, em 19 de março, “de um homem de estatura e porte
medianos, de cerca de cinquenta anos, testa alta e parcialmente calvo”. O
homem pegou as roupas do varal e voltou para dentro da casa.
Agitado, Aharoni passou um telegrama para seus superiores dizendo
que tinha localizado, na casa de Vera Eichmann, um homem
“definitivamente parecido com Eichmann” e que não havia mais dúvida
sobre sua identidade. Também propôs voltar imediatamente a Israel a fim
de ajudar a planejar a operação para sequestrá-lo. Antes disso, porém,
tinha a intenção de obter uma foto da sua presa.
Sentado na traseira de uma caminhonete coberta com lona, Aharoni
mandou o motorista estacionar perto do quiosque e ir comer alguma
coisa. Enquanto isso, observou a casa apontando a câmara por um buraco
na lona. Fotografou a casa e as imediações. Mas teve que delegar a tarefa
de fotografar Eichmann com uma câmera escondida dentro de uma pasta
a outro assistente local que falava espanhol sem sotaque. Parando
Eichmann e o filho Dieter quando estavam fora da casa, o assistente
puxou conversa para ter tempo de acionar a câmera.
Aharoni partiu da Argentina em 19 de abril, e Harel se juntou a ele no
voo de Paris para Tel Aviv. “Tem certeza absoluta de que é o nosso
homem?”, perguntou. Aharoni lhe mostrou a foto e respondeu: “Não
tenho a menor dúvida.”
***
***
***
“A SANGUE-FRIO”
“É fato comprovado, que inúmeras testemunhas confirmam, que muitos (eu
inclusive) tenham sentido ‘vergonha’ — ou seja, culpa, durante o seu
encarceramento e depois. Pode parecer absurdo, mas é fato.”1
PRIMO LEVI, SOBREVIVENTE DE AUSCHWITZ,
QUÍMICO E AUTOR ITALIANO, EM OS AFOGADOS E OS
SOBREVIVENTES, SEU DERRADEIRO LIVRO SOBRE O
HOLOCAUSTO. ELE COMETEU SUICÍDIO EM 1987.
***
***
***
***
Não há dúvida de que Hannah Arendt, que se baseou acima de tudo nas
transcrições do interrogatório de Eichmann e em seu depoimento pessoal
na fase final do julgamento, interpretou o sentido literal de algumas
declarações dele sobre um suposto papel subordinado e a ausência de
inimizade pessoal contra os judeus. Ela estava ansiosa para provar sua tese
de que sistemas totalitários se utilizam com eficácia de indivíduos
medíocres sem convicções próprias. É inegável também que ela foi
arrogante, convencida de que tinha apresentado o único fundamento
intelectual adequado para a compreensão do homem e de seu papel na
história.
Mas Arendt tinha razão ao dizer que suas opiniões costumavam ser
distorcidas por críticos furiosos a ponto de ficarem irreconhecíveis e
revidou numa série de entrevistas às televisões alemã e francesa na década
seguinte à publicação de Eichmann em Jerusalém. Era fácil interpretá-la
mal, e ela não ajudava muito, pois repetia justamente as frases que tinham
provocado a confusão. Numa das primeiras entrevistas,65 insistiu em dizer
que Eichmann era um “bufão”, acrescentando que “ri alto” ao ler a
transcrição de seu interrogatório.
Nas entrevistas seguintes, ela apresentou explicações mais claras do que
queria dizer. Falando com o historiador alemão Joachim Fest, ressaltou
que não dava à expressão “comportamento banal” uma conotação
positiva — pelo contrário. Criticou severamente a “existência fingida” de
Eichmann e dos réus dos julgamentos de Nuremberg, que alegavam não
ser responsáveis pelos assassinatos em massa porque estavam simplesmente
cumprindo ordens, o que os isentava de qualquer responsabilidade por
suas ações. “Há qualquer coisa de atrozmente estúpido nisso”,
acrescentou. “A coisa toda é simplesmente cômica!”66 Em suas
entrevistas, “cômica” claramente não significava “divertida”.
Apesar disso, ela mantinha a tese de que Eichmann era “um mero
burocrata” e que a ideologia não desempenhou papel importante no seu
comportamento. A interpretação de muitos críticos de que ele era um
monstro e a encarnação do diabo era bastante perigosa porque dava aos
alemães um álibi para sua conduta. “Se você sucumbe ao poder do animal
das profundezas, você é naturalmente bem menos culpado do que se
sucumbe a um indivíduo completamente mediano do calibre de
Eichmann”,67 declarou. Era por isso que fazia tanta questão de rejeitar a
explicação demoníaca para ele e sua laia.
Embora Hannah Arendt apresentasse um argumento altamente
sofisticado sobre sua visão de Eichmann que no mínimo deveria ter feito
alguns dos seus nervosíssimos acusadores se calarem, ela não recuou muito
na acusação de colaboração judaica. Mesmo assim, demonstrou maior
simpatia pelos líderes dos Conselhos Judaicos como “vítimas”,68
observando que, por mais questionável que fosse o comportamento deles,
jamais poderiam ser equiparados aos criminosos. Isso representava uma
concessão indireta de que seu relato original foi percebido como
excessivamente crítico.
Um trecho sobre o qual se costuma passar por cima em Eichmann em
Jerusalém demonstra que Arendt não estava pondo a culpa nas vítimas,
como seus críticos gostavam de dizer. Um dos objetivos dos líderes
israelenses ao realizar o julgamento, como ressaltou Bach, era mostrar à
geração mais nova os métodos usados pelos alemães, dando às vítimas
uma ilusão de esperança até o último minuto. Tendo mencionado a
noção popular de que os judeus “iam para a morte como ovelhas”,
Arendt escreveu: “Mas a triste verdade é que a ideia é incorreta, porque
nenhum grupo não judeu, nenhum povo, se comportara de modo
diferente.”69 Nesse sentido, Arendt e os promotores estavam de acordo.
Da perspectiva que se tem, meio século depois, é que é possível
argumentar que Eichmann incorporava muitas das características que lhe
foram atribuídas por diferentes versões — a de Arendt e a dos críticos de
Arendt. Ele era ao mesmo tempo um carreirista num sistema totalitário,
pronto a fazer qualquer coisa para agradar a seus superiores, e um
virulento antissemita que se comprazia com o poder de despachar suas
vítimas para a morte, perseguindo de modo sistemático qualquer um que
tentasse escapar da rede nazista. Eichmann era mais conscientemente
perverso do que Hannah Arendt estava disposta a admitir, embora ao
mesmo tempo encarnasse o seu conceito de banalidade do mal. As duas
noções não são necessariamente excludentes. Ele cometeu atos
monstruosos em nome de um sistema monstruoso, mas rotulá-lo de
monstro isenta muita gente de responsabilidade e deixa de levar em conta
a facilidade com que regimes tirânicos podem incorporar cidadãos
medianos ao seu comportamento criminoso.
Um dos efeitos imediatos dos escritos de Hannah Arendt foi estimular
novos estudos sobre a propensão do indivíduo comum a cumprir ordens
sem pensar. No exemplo mais famoso, o psicólogo Stanley Milgram, da
Universidade de Yale, realizou experimentos no começo dos anos 1960
com voluntários que de nada suspeitavam e que acreditavam estar
infligindo poderosos choques elétricos a pessoas na sala ao lado.
Informados de que se tratava de um experimento educacional, os
participantes tinham liberdade para desistir quando quisessem — mas na
maioria dos casos continuavam a cumprir ordens para dar o que
acreditavam ser choques cada vez mais dolorosos, mesmo quando ouviam
gritos e pancadas na parede. As vítimas eram atores e não recebiam
choque nenhum.
Milgram concluiu que esse tipo de comportamento indicava “que o
conceito de Arendt sobre a banalidade do mal está mais perto da verdade
do que se ousaria supor”.70 Segundo suas conclusões, a Alemanha nazista
e outros países conseguiram fazer as pessoas obedecerem cegamente
tirando proveito do “desaparecimento do senso de responsabilidade”71
nas sociedades modernas; em vez disso, os indivíduos se concentram em
tarefas técnicas limitadas, respondendo a ordens de cima. “A pessoa que
assume plena responsabilidade por seus atos desapareceu”, escreveu.
“Talvez esta seja a característica mais comum do mal organizado na
sociedade moderna.”72
Milgram descreveu o experimento em seu livro Obediência à autoridade,
que, exatamente como Eichmann em Jerusalém, de Arendt, provocou novos
debates apaixonados. Suas conclusões estavam claramente alinhadas com
um ponto de vista sobre o comportamento humano e os sistemas
totalitários que começara a surgir mesmo antes do Holocausto. Depois de
assistir à ascensão de Hitler na Alemanha, Sinclair Lewis publicou o
romance Não vai acontecer aqui, em 1935, — com uma mensagem que era
exatamente o oposto do que dizia o título: um regime como o nazista
poderia, sim, chegar ao poder nos Estados Unidos. Em outras palavras, o
maior perigo para a humanidade não é representado por monstros, mas
pelas pessoas que cumpririam cegamente suas ordens monstruosas.
O impulso de identificar características perversas em determinados
seres humanos é muito forte, sobretudo quando se confronta com um
comportamento verdadeiramente horrendo. Poucas pessoas querem
acreditar que elas ou seus vizinhos sejam capazes de violência
aparentemente sem sentido só porque uma figura autoritária decidiu que
esses atos são necessários. A maioria concorda por instinto com o
primeiro-ministro britânico David Cameron, que chamou de
“monstros”73 os terroristas que decapitaram reféns americanos e
britânicos em 2014, assim como muitas pessoas tinham a propensão de
caracterizar os chefes nazistas da mesma forma.
Porém os esforços para identificar traços de personalidade peculiares
aos grandes criminosos nazistas, onde quer que fossem capturados e
julgados, não produziram nenhum consenso entre os psiquiatras e
investigadores que os interrogaram. Havia características recorrentes: a
zelosa dedicação ao que consideravam seu trabalho, a total falta de
empatia com as vítimas, o senso de que não eram responsáveis por suas
ações, uma vez que havia sempre alguém mais acima para culpar, e
avultadas doses de autopiedade. Além disso, em muitos casos, havia uma
espantosa capacidade de se iludir. Göring, que era visto como o mais
inteligente e sociável dos réus de Nuremberg, disse ao psiquiatra
americano, Douglas Kelley, que estava “determinado a ficar na história da
Alemanha como um grande homem”. Insistia que, mesmo sem ter
convencido o tribunal, convenceria o público alemão. “Dentro de
cinquenta ou sessenta anos haverá estátuas de Hermann Göring em toda a
Alemanha”, disse. “Pequenas estátuas, talvez, mas uma em cada casa
alemã.”74
O psiquiatra americano G. M. Gilbert concluiu que alguém como
Höss, o comandante de Auschwitz, exibia as características de um “puro
psicótico”.75 Mas Kelley teve persistentemente frustrados seus esforços
para identificar qualquer coisa que indicasse que esses criminosos eram
insanos em algum sentido ou que diferiam fundamentalmente de outros
seres humanos. Em outras palavras, não foram produzidos por um “gene
de monstros”.
“Insanidade não é explicação para os nazistas”, escreveu Kelley. “Eles
eram apenas criaturas do seu meio, como o são todos os seres humanos; e
eram também, em grau maior do que a maioria dos humanos, os
criadores do seu meio.”76 Para alguém que esperava encontrar rigorosas
respostas científicas aplicando testes de Rorschach, essa vaga explicação
era, a rigor, uma confissão de fracasso. Mas Kelley chegou também a uma
conclusão mais nítida e assustadora: se não havia indício de franca loucura
entre os nazistas, o argumento de que “poderia acontecer aqui” — ou em
qualquer lugar, para falar a verdade — estava certo.77
Debates como esses não foram resolvidos pelo julgamento de
Eichmann, ou pela interpretação e pelas primeiras críticas de Arendt. A
rigor, suas discussões na TV na década seguinte ao julgamento indicavam
que ela tinha revisto boa parte do seu pensamento sobre o valor daquele
exercício. Apesar de suas pungentes críticas a muitos aspectos do
julgamento, Hannah reconhecia cada vez mais o papel que ele
desempenhou, servindo de “catalisador”78 para futuros julgamentos na
própria Alemanha e para o começo do autoexame moral que permitiria a
seu antigo país começar a recuperar sua reputação internacional.
Arendt não foi a única a rever suas opiniões. Boa parte do ceticismo
inicial sobre a capacidade de Israel conduzir um julgamento imparcial, tão
evidente na primeira fase da cobertura do sequestro de Eichmann, foi
desaparecendo aos poucos quando o processo começou. Com seis
semanas de julgamento, uma pesquisa Gallup mostrou que 62% das
pessoas consultadas nos Estados Unidos e 70% das consultadas na Grã-
Bretanha achavam que Eichmann estava tendo um julgamento justo.79
Em 15 de dezembro de 1961, Eichmann foi condenado à morte na
forca, sendo essa a primeira e única vez que um tribunal israelense
aprovou a pena de morte. Em 29 de maio de 1962, a Suprema Corte
rejeitou seu apelo, e, dois dias depois, às 19 horas de 31 de maio, ele foi
informado de que Ben-Gurion recusara seu pedido de clemência. Mas o
mundo só tomou conhecimento dessa decisão às 23 horas, sem qualquer
menção a quanto tempo ainda faltava para a execução. Bach tinha
sugerido um intervalo não superior a duas horas, para impedir que
simpatizantes de Eichmann tivessem a chance de fazer reféns e tentar
impedir o enforcamento. “Meu medo era que, se houvesse um longo
período, eles pegassem uma criança judia em algum lugar, fosse no Havaí,
em Portugal ou na Espanha”, disse o vice-promotor.80
Antes do anúncio, Bach não sabia exatamente quando Eichmann seria
enforcado. Em 30 de maio, tinha visitado o prisioneiro pelo que seria a
última vez. Estava no banho às 23 horas da noite seguinte, no mesmo
apartamento perto da residência presidencial em Jerusalém onde os Bachs
moram até hoje, quando sua mulher, Ruth, gritou que tinha acabado de
ouvir no rádio a notícia de que o presidente rejeitara o pedido de
clemência. Bach fazia parte do pequeno grupo de autoridades que sabiam
que aquilo significava que a execução ocorreria uma ou duas horas
depois. “Veja, eu não tinha dúvidas sobre o assunto, mas empalideci um
pouco”, disse. “Quando você se encontra com uma pessoa praticamente
todos os dias durante dois anos...”81
O carrasco designado foi Shalom Nagar, judeu iemenita de 23 anos
que era um dos guardas da prisão. O último pedido de Eichmann foi
vinho branco e cigarros. Quando lhe ofereceram um capuz, ele rejeitou.
Para Nagar, isso indicava que ele não temia o que o esperava.82
Eichmann fez uma declaração final: “Viva a Alemanha. Viva a
Argentina. Viva a Áustria (...) Tive que obedecer às leis da guerra e da
minha bandeira. Estou pronto.”83
Nagar, que de início se perguntara por que teria que desempenhar
aquela tarefa, puxou a alavanca à meia-noite. Como explicaria muito
tempo depois, numa entrevista para a revista judaica americana Zman,
todos os presentes “sentiram o gosto da vingança; é uma coisa humana”.
E logo acrescentou: “Mas não se tratava de vingança. Se pudesse, ele teria
feito isso com todos nós. Eu estaria na sua lista também; iemenita ou
não.”
A tarefa seguinte de Nagar foi preparar o corpo para a cremação.
Como fez questão de dizer, era totalmente inexperiente no assunto e
ficou apavorado ao ver o cadáver, que parecia encará-lo fixamente.
Também não fazia ideia de que, quando alguém é estrangulado, os
pulmões retêm ar. “Assim, quando o levantei, todo o ar que estava dentro
soprou no meu rosto, e um som terrível escapou da sua boca:
‘grrrreeererere...’. Foi como se dissesse: ‘Você aí, iemenita...’ Senti que o
Anjo da Morte tinha vindo me buscar também.”
Duas horas depois da cremação, as cinzas foram coletadas numa urna e
levadas até um navio-patrulha que aguardava no porto de Jafa. Depois
que o capitão o conduziu para fora das águas territoriais de Israel, as
cinzas de Eichmann foram jogadas ao mar.
Nagar voltou para casa e explicou para a esposa o que tinha feito, e ela
não conseguiu acreditar. Ele deveria ter ido a Jafa para a última jornada
com as cinzas, mas ficou tão abalado com a provação de enforcar
Eichmann e depois cuidar do cadáver que foi dispensado dessa obrigação.
Contou que, pelo ano seguinte, “vivi em estado de terror”. Quando a
mulher lhe perguntou por que estava tão nervoso, ele disse que tinha a
impressão de estar sendo caçado por Eichmann.
“Na verdade, não sei bem do que eu tinha medo”, admitiu. “Eu
simplesmente tinha medo. Uma experiência como aquela mexe com a
pessoa de um jeito que a gente nem desconfia.”
CAPÍTULO DEZ
“GENTE COMUM”
“O que nossa segunda geração deveria ter feito, o que queriam que
fizéssemos com o conhecimento dos horrores do extermínio dos judeus... que
ficássemos calados, sentindo repulsa, vergonha e culpa? E para quê?”1
BERNHARD SCHLINK, EM O LEITOR, ROMANCE BEST-
SELLER INTERNACIONAL SOBRE A GERAÇÃO ALEMÃ DO
PÓS-GUERRA.
***
***
***
***
***
Jah Sehn seguia uma rotina regular sempre que deixava seu escritório de
diretor do Instituto de Pesquisas Criminalísticas em Cracóvia para fazer
uma viagem ao exterior.62 Entregava as chaves de quase todas as gavetas
da sua escrivaninha para Maria Kozłowska, vizinha e colega de trabalho
mais jovem, menos as do meio, que continham documentos pessoais. Para
surpresa de Maria, ele mudou o procedimento ao embarcar para uma
nova viagem a Frankfurt, no fim de 1965. “Na última vez que saiu, ele
me deu também as do meio”, contou. Então, como se ainda refletisse
sobre o significado da atitude, ela explicou o óbvio: “Fiquei com todas as
chaves.”
Para ela, o gesto do chefe adquiriu, retrospectivamente, um significado
particular, porque Sehn morreu durante aquela visita a Frankfurt. Em 12
de dezembro de 1965, antes de ir para a cama, ele mandou seu segurança
oficial, que também estava incumbido pelas autoridades comunistas
polonesas de monitorar seus contatos com estrangeiros, ir buscar um
maço de cigarros. Quando o segurança voltou, Sehn estava morto. Tinha
apenas 56 anos. Maria revelou que, enquanto os atônitos colegas em
Cracóvia pranteavam a sua morte, havia rumores de que talvez “alguém o
tivesse ajudado a morrer”.
Ela e quase todos os colegas rejeitaram essa teoria por falta de provas.
Além disso, Sehn era fumante inveterado, e sabia-se que já se submetera a
tratamento médico por causa de problemas cardíacos. A hipótese mais
aceita era a de que sofrera um infarto. A pergunta não respondida, porém,
era se sua decisão de confiar todas as chaves à colega não teria sido sinal
de premonição do fim próximo.
Em várias ocasiões, Sehn tinha recebido cartas com ameaças. Algumas
traziam as mensagens compostas com letras impressas recortadas. Umas
eram em alemão, outras em polonês, mas Maria Kozłowska tinha a
impressão de que a maioria era escrita por falantes de alemão. Em tese,
vinham de pessoas irritadas com os esforços dele para levar à Justiça
operadores e guardas de Auschwitz e outros criminosos de guerra.
Mas Jan Sehn era uma figura bem menos polêmica — e bem menos
pública — na Polônia do que Bauer na Alemanha Ocidental. Bauer,
apesar de ter permitido que seus promotores mais novos cuidassem do
Segundo Julgamento de Auschwitz, costumava falar em público,
incluindo na televisão, sobre a necessidade de os responsáveis por
homicídios em massa prestarem contas dos seus atos. “O julgamento
deverá mostrar ao mundo que uma nova Alemanha, uma nova
democracia, está disposta a proteger a dignidade de todos os seres
humanos”, declarou, na abertura dos processos.63 Ao mesmo tempo, não
escondia sua exasperação com o comportamento dos réus no Segundo
Julgamento de Auschwitz. Numa entrevista no meio do julgamento, ele
lembrou que a acusação esperava que “um dos acusados (...) dirigisse às
testemunhas que sobreviveram e tiveram suas famílias aniquiladas uma
palavra humana (...) para limpar o ar”.64 Isso jamais aconteceu.
Bauer insistia também numa limpeza entre os juízes e promotores da
Alemanha Ocidental, cujas fileiras ainda estavam infectadas de antigos
nazistas. Exasperado com a indiferença de sua geração a esse continuísmo
entre o velho e o novo, ele passava cada vez mais tempo discutindo as
amplas implicações dos esforços para levar nazistas à Justiça com pessoas
mais jovens, com as quais tinha uma relação fácil. Costumava misturar-se
aos jovens em bares ou em salas de estar para longas conversas, enquanto
fumava um cigarro atrás do outro e bebericava seu vinho. Quando os
protestos dos jovens ganharam ímpeto, em 1968, alguns detratores o
acusaram de instigar a violência subsequente.65
Muitos alemães ficavam furiosos com as ações e palavras de Bauer.66
Ele recebia mais ameaças do que Sehn por carta e também por telefone,
embora seu número não constasse da lista telefônica. “Quando saio do
meu escritório, entro num país hostil”,67 comentou Bauer. Durante o
Segundo Julgamento de Auschwitz, uma suástica foi pintada na parede do
prédio onde tinha um apartamento; quando a apagavam, ela reaparecia.
Bauer tinha em seu apartamento uma pistola 6.35 milímetros e um
guarda-costas foi designado para sua proteção. O Frankfurter Rundschau
publicou, em 14 de outubro de 1966, uma reportagem sobre uma suposta
conspiração para assassiná-lo: “Quiseram Matar o Procurador-Geral”.68
Mas Bauer nunca se deixou intimidar. Falava abertamente sobre a
necessidade de mais julgamentos de criminosos nazistas nos anos
vindouros e sobre o “ardente antissemitismo”69 da Alemanha. Em 1967,
impediu o confisco do Braunbuch, “Livro Marrom”, na Feira do Livro de
Frankfurt.70 O volume, publicado na Alemanha Oriental em 1965, trazia
os nomes de aproximadamente 1.800 alemães-ocidentais importantes que
teriam ocupado cargos oficiais no período nazista. O governo de Bonn o
denunciou como propaganda, mas Bauer se manteve firme. Nessa época,
o chanceler da Alemanha Ocidental era Kurt Georg Kiesinger, que
ingressara no Partido Nazista em 1933 e trabalhara no departamento de
propaganda do Ministério do Exterior durante a guerra. O contraste
entre os pronunciamentos de Bauer e a atmosfera geral que permitia que
um ex-nazista assumisse o cargo mais alto do país não poderia ser maior.
Bauer sempre asseverou que não criticava seus compatriotas por não
terem minado ativamente o regime de Hitler; apesar disso, estabeleceu
um padrão que implicava milhões deles. “Existe apenas um dever de
resistência passiva, apenas um dever de abster-se de praticar o mal, apenas
um dever de não ser cúmplice de injustiça”, declarou, num dos últimos
discursos. “Nossos processos contra os criminosos nazistas se baseiam
exclusivamente no pressuposto dessa obrigação de desobedecer. Esta é a
contribuição destes julgamentos para a derrota do Estado injusto no
passado, no presente e no futuro.”71
Em 1º de julho de 1968, faltando poucas semanas para completar 65
anos, Bauer foi encontrado morto na banheira; ao que parece teria
falecido cerca de 24 horas antes. Logo surgiram conjecturas de que teria
sido assassinado ou cometido suicídio, mas o médico-legista que fez o
exame do corpo refutou as duas teorias. Como Jan Sehn, Fritz Bauer era
fumante inveterado. Também sofria de bronquite crônica, e, como
mostrou a exposição de 2014 em Frankfurt sobre sua vida, às vezes
misturava álcool e comprimidos para dormir. Bauer dava pouca
importância às preocupações com seus hábitos poucos saudáveis. Quando
um repórter lhe perguntou quantos cigarros fumava, respondeu: “De
quanto em quanto tempo acha que preciso de um cigarro?” O palpite do
repórter foi cinco minutos. “Então divida dezoito horas por cinco
minutos e terá meu consumo”, declarou.72
Mas nem todos estavam convencidos de que Fritz Bauer tinha
morrido em consequência dos efeitos adversos desses hábitos sobre seu
corpo. Em seu vigoroso documentário sobre Bauer, que estreou em
2010, Ilona Ziok ressalta que nenhuma autópsia foi feita e apresenta
depoimentos de pessoas que levantam dúvidas sobre sua morte. Rolf
Tiefenthal, o sobrinho dinamarquês de Bauer, aparece admitindo que o
que existe são apenas conjecturas, mas acrescenta: “Seus inimigos, seus
muitos inimigos, podem tê-lo ajudado, podem tê-lo obrigado a tirar a
própria vida ou podem tê-lo assassinado. Havia motivos suficientes.”
No debate em curso na Alemanha sobre que aspectos da vida de Bauer
deveriam ser destacados, há uma nítida linha divisória também com
relação à sua morte. A exposição sobre Fritz Bauer feita em 2014 no
Museu Judaico de Frankfurt parecia aceitar o veredicto do médico-
legista. Ilona Ziok não chegou a fazer uma acusação direta de assassinato
em seu filme e admitiu que “não há provas”. Contudo, quando indagada
à queima-roupa se acredita que ele foi morto, respondeu que sim.73
No sepultamento de Bauer, Robert Kempner, judeu nascido na
Alemanha e integrante da equipe americana de acusação em Nuremberg,
falou sobre seu legado. “Foi o melhor embaixador que a República
Federal da Alemanha já teve”,74 declarou. “Ao contrário de tantos
homens míopes, ele tinha uma clara visão do que precisava ser feito para
ajudar a Alemanha, e a ajudou.” O semanário Die Zeit disse, sem meias
palavras: “Ele conquistou para nós no exterior um respeito que não
merecemos.”75
Até o recente despertar do interesse pela vida de Fritz Bauer, muitos
alemães nada sabiam a seu respeito. Na Polônia, Jan Sehn está quase
completamente esquecido, exceto entre aqueles que continuam a
trabalhar para o instituto que ele dirigiu, cujo nome foi trocado para
Instituto Jan Sehn de Pesquisa Criminalística. E o que ninguém parece ter
notado em nenhum dos dois países é que esses dois homens que
trabalharam juntos para levar nazistas à Justiça morreram em Frankfurt,
com um intervalo de dois anos e meio entre as mortes, em circunstâncias
até hoje nebulosas. As teorias conspiratórias podem estar erradas, mas as
semelhanças são perturbadoras.
CAPÍTULO ONZE
Beate Klarsfeld sem dúvida não tinha sido criada para assumir riscos.
Nascida em Berlim em 13 de fevereiro de 1939, meses antes da invasão
alemã da Polônia que marcou o início da Segunda Guerra Mundial, era
nova demais para se lembrar de muita coisa do conflito. Mas ela ainda se
recordava de, pouco antes de a luta finalmente terminar, com a rendição
da Alemanha, “recitar poeminhas em homenagem ao Führer no jardim
de infância”.2
O pai serviu na Wehrmacht na França, em 1940,3 até que sua unidade
foi transferida para a frente oriental no ano seguinte, quando Hitler
ordenou o ataque contra a União Soviética. Ele teve a sorte de contrair
pneumonia dupla, tendo que voltar para a Alemanha, onde foi trabalhar
como arquivista do Exército. Depois de um breve período em cativeiro
britânico no fim da guerra, reuniu-se novamente à família, numa aldeia
onde tinham se refugiado durante o bombardeio Aliado de Berlim. No
fim de 1945, eles voltaram para a capital, onde Beate foi matriculada no
ensino fundamental e brincava de esconde-esconde com os amiguinhos
entre prédios bombardeados e montes de escombros.
Ela se lembra de ter sido uma “aluna responsável e comportada” no
ensino fundamental. “Naquele tempo, ninguém falava em Hitler”,
acrescentou.4 Pais e mestres evitavam ao máximo comentar o que tinha
acontecido na Alemanha sob seu governo. Os pais dela não pertenceram
ao Partido Nazista, mas votaram em Hitler, como tantos compatriotas.
“Apesar disso, não se sentiam nem um pouco responsáveis pelo que
aconteceu sob o domínio nazista”, comentou. Em vez disso, eles e os
vizinhos lamentavam o que perderam na guerra, “sem jamais dizer uma
palavra de piedade ou simpatia por outros países”. Quando era jovem,
nunca ouviu uma explicação real para a situação em que viviam. Tudo o
que ouvia era as pessoas dizerem: “Perdemos uma guerra e agora vamos
ter que trabalhar.”
Na adolescência, ao contrário dos pais, que apoiavam os democrata-
cristãos do chanceler Adenauer, ela preferia os sociais-democratas de
Willy Brandt. Mas isso tinha mais a ver com o fato de que “o rosto jovem
e franco de Brandt contrastava com o dos outros políticos” do que com
qualquer compreensão das diretrizes do partido. Ela desenvolveu uma
típica impaciência adolescente pelo que lhe parecia a “atmosfera
sufocante” de casa. O pai começou a beber muito, e a mãe queria que ela
se dedicasse a procurar um bom marido. Em vez disso, depois de
completar um curso na escola técnica, arranjou emprego de estenógrafa
numa grande empresa farmacêutica. Sua ambição era ganhar o suficiente
para viver por conta própria.
Em março de 1960, aos 21 anos, foi parar em Paris, onde estudou
francês e trabalhou como au pair. Dormia num “sótão nojento e morria
de medo de aranhas”, narrou. Mas, o que não é de surpreender, logo se
apaixonou pela cidade, achando-a mais animada e mais elegante do que a
Berlim Ocidental. Logo se apaixonou também pelo futuro marido.
Em 11 de maio de 1960, dois meses depois de chegar a Paris, Beate
aguardava o trem na Porte de Saint-Cloud, sua estação de metrô. Um
jovem de cabelos pretos não tirava os olhos dela. “Inglesa?”, perguntou.
Como Beate comentou depois: “Claro que era um truque.” O jovem,
Serge Klarsfeld, admitiria mais tarde que era uma tática comum para
puxar conversa com jovens alemãs. Depois que elas respondiam “não”,
era difícil cortar a conversa. Quando Serge desceu na sua estação, perto
da Escola de Ciência Política, onde terminava seu trabalho de pós-
graduação antes de iniciar o que esperava ser uma carreira de professor de
história, tinha o número do telefone de Beate.
Naquele mesmo dia, em Buenos Aires, o grupo israelense se articulou
para capturar Eichmann. Na ocasião, Serge e Beate não sabiam de nada
disso, é claro. Mas, sentados juntos no apartamento do filho, em 2013,
examinando o que fizeram na vida, não puderam deixar de sentir que
houve qualquer coisa além de mera coincidência nisso. O casal, que
ficaria famoso — e até mesmo notório — como novos e agressivos
caçadores de nazistas, fez seu primeiro contato no dia em que o Mossad
começou a agir na Argentina.
***
Três dias depois, em seu primeiro encontro, os dois foram ver o filme
Nunca aos domingos; depois trocaram experiências pessoais pela primeira
vez, sentados num banco no Bois de Boulogne. Foi quando Beate
descobriu que Serge era judeu e que seu pai tinha morrido em
Auschwitz. Para uma jovem alemã que, como ela mesma admitiu, era
muito “ignorante sobre a história do próprio país”, foi um choque.
“Fiquei surpresa e comovida, mas também, de certa maneira, meio
retraída”, comentou. “Em Berlim, eu praticamente nunca tinha ouvido
nada de positivo sobre os judeus. Por que uma complicação como aquela
ia acontecer logo comigo?”
Mas Serge não desanimou, instruindo-a com gentileza durante suas
infindáveis discussões. “Não parávamos de falar”, lembrou-se Beate. “Ele
me apresentou história, arte, um mundo de ideias.” Acima de tudo,
mostrou-lhe a história recente do seu país, “a pavorosa realidade do
nazismo”, nas palavras dela. E essa realidade era visível demais na biografia
dele.
Arno e Raissa, pais de Serge, eram judeus da Romênia que se
estabeleceram na França nos anos 1920. Arno era armênio, e Raissa vinha
de uma área de etnia russa na Bessarábia. Serge nasceu em 1935, em
Bucareste, quando os pais visitavam parentes naquela cidade. O pai se
alistou na Legião Estrangeira em 1939, lutou contra os alemães durante
sua rápida conquista da França em 1940, fugiu de um campo de
prisioneiros de guerra e ingressou na Resistência em Nice. Apesar da vida
de riscos do pai, a família não corria perigo por qualquer coisa que ele
tivesse feito, mas simplesmente por serem judeus.
Em junho de 1943, o capitão da SS Alois Brunner foi enviado à
França para supervisionar as detenções de judeus; em pouco tempo
despacharia cerca de 25 mil deles para os campos de extermínio no
Leste.5 Trabalhando em estreita colaboração com Eichmann, já tinha
realizado tarefas parecidas em sua Áustria natal e na Grécia, onde o
número de vítimas foi ainda maior. Quando Brunner começou a deter
judeus em Nice, Arno preparou um fundo falso de madeira compensada
em um armário. Nele havia espaço suficiente para toda a família se
esconder.
No começo da noite de 30 de setembro de 1943, tropas alemãs
cercaram a área onde os Klarsfelds moravam e começaram a vasculhar
apartamento por apartamento. Quando chegaram ao do vizinho, os
Klarsfelds ouviram os gritos e apelos deles, incluindo os da menina de
onze anos, que teve a temeridade de pedir que os alemães mostrassem
algum tipo de identificação. O oficial da Gestapo arrebentou o nariz dela
com a pistola, provocando mais pânico. O pai gritou pela janela
chamando a polícia francesa: “Nos ajudem! Nos salvem! Somos
franceses!”
Ao escutar tudo isso do esconderijo da família dentro do armário,
Arno tomou uma decisão rápida. Virou-se para a esposa, Serge e a filha,
Tanya, e disse: “Se os alemães nos prenderem, eu sobrevivo porque sou
forte, mas vocês, não”. Raissa tentou impedi-lo, mas ele saiu do armário
rastejando. Quando os alemães bateram à porta, Arno abriu sem hesitar.
Serge ouviu um alemão perguntar em francês: “Onde estão sua esposa e
seus filhos?” Arno respondeu que tinham ido para o campo enquanto o
apartamento era desinfetado.
Os alemães se puseram a vasculhar a casa, e um deles chegou a abrir a
porta do armário, mas apalpou as roupas sem atingir a divisória.
Posteriormente, ao documentar as detenções de judeus franceses por
Brunner e os outros, Serge escreveu: “Eu o conhecia bem, apesar de
nunca o ter visto.” Acrescentou que, naquela noite, o fundo falso de
compensado “era tudo o que havia entre nós dois”.6 Refletindo mais
tarde sobre aquele momento, Klarsfeld observou que não tinha certeza se
Brunner estivera mesmo no apartamento. “Pode ser que tenha ido lá
pessoalmente, mas eu não teria como provar”, disse, ressaltando que
Brunner trabalhava com um grupo de oficiais austríacos da SS e franceses
pagos pela Gestapo. Independentemente de quem entrou no
apartamento, foi Brunner que orquestrou as prisões, o transporte dos
prisioneiros para o centro de detenção de Drancy e, em seguida, sua
viagem só de ida para Auschwitz.
Raissa fugiu com os filhos para o Haute-Loire, a região do centro-sul
da França. Moraram em Saint-Julien-Chapteuil, vilarejo que era “um
lugar muito hospitaleiro para judeus”, segundo Serge. Talvez fosse, mas
Raissa procurou manter em segredo sua identidade judaica. Dizia que o
marido estava num campo de prisioneiros de guerra e pôs os filhos na
escola católica local. Quando achou que Nice não era mais alvo de buscas
para prender judeus, Raissa voltou com Serge e Tanya para o
apartamento da família. Mesmo assim, nunca baixou a guarda. Dizia para
os filhos: “Se os alemães vierem, vocês correm para o esconderijo, e eu
abro a porta.”
A história de Serge fez Beate refletir sobre a conclusão que deveria
tirar como alemã. Como indivíduo, não se sentia responsável pelo
nazismo, “mas, na medida em que era uma parte minúscula da nação
alemã, eu me tornei consciente das minhas novas obrigações”, narrou.
Quando ela se perguntou se não seria o caso de deixar de se considerar
alemã, Serge rejeitou a ideia no ato, dizendo que isso seria fácil demais.
“Era emocionante e também difícil ser alemão depois do nazismo”,
concluiu Beate.
Serge lhe contou também sobre Hans e Sophie Scholl, os irmãos
alemães que formaram um grupo responsável por um desesperado ato de
resistência em Munique, em 1943, distribuindo panfletos antinazistas.
Logo foram presos, condenados e guilhotinados. Para Beate, esse foi um
exemplo inspirador dos alemães que decidiram não se submeter ao
regime de Hitler. “Apesar de parecer estéril e sem sentido em 1943, a
importância daquele ato cresceu com o tempo até atingir Serge e, através
dele, me atingir”, escreveu. “Eu me via naqueles jovens.”
Porém, tudo demorou para acontecer. Serge e Beate se casaram em 7
de novembro de 1963 e começaram a trabalhar em empregos que
pareciam normais. Serge se tornou vice-diretor do Ofício de
Radiodifusão Televisão Francesa (ORTF), e Beate foi trabalhar como
secretária bilíngue na Aliança Franco-Alemã para a Juventude (OFA),
organização recém-criada que contava com o respaldo do chanceler
Adenauer e do então presidente da França, Charles de Gaulle. A ideia era
forjar novos laços em todos os níveis entre os antigos vizinhos
beligerantes.
Segundo Beate, nada havia ainda que indicasse a trajetória real que a
vida dos dois seguiria. “Tínhamos estabelecido as condições para levar
uma vida estável e ordeira, como a de milhares de jovens casais”,
comentou. Em 1965, Beate deu à luz um menino. O casal resolveu dar-
lhe o nome de Arno, em homenagem ao pai de Serge.
***
***
***
***
“CIDADÃOS MODELOS”
“Para a polícia e para a imprensa, ele é um velho chato e incômodo, com um
arquivo repleto de fantasmas; matem-no, e serão responsáveis por transformá-
lo num herói negligenciado, com inimigos vivos ainda a serem capturados.”1
DR. JOSEF MENGELE, O “ANJO DA MORTE” DE
AUSCHWITZ, FALANDO A RESPEITO DO PERSONAGEM
INSPIRADO EM SIMON WIESENTHAL NO BEST-SELLER
OS MENINOS DO BRASIL, DE IRA LEVIN.
***
Desde o início, Wiesenthal achava que sua missão era tanto educar a
geração seguinte como buscar certa dose de justiça para os milhões de
vítimas da sua própria geração. Os dois objetivos se entrelaçavam, bem
como os métodos para alcançá-los. A revelação e, na melhor das
hipóteses, a captura e o julgamento de antigos nazistas forneciam provas
capazes de rebater esforços empreendidos no pós-guerra para dar pouca
importância aos horrores do Terceiro Reich ou até mesmo negá-los por
completo. Em alguns casos, a mera revelação — na verdade, a
personalização de ações que, do contrário, pareceriam imensas e abstratas
demais para causar impacto — já bastava para fazer Wiesenthal sentir que
obtivera uma vitória genuína, ainda que a proeza não tivesse
consequências jurídicas.
O exemplo mais dramático foi seu esforço para encontrar o oficial da
Gestapo que prendeu Anne Frank. Em outubro de 1958, quando
Wiesenthal ainda morava em Linz, o Landestheater encenou O diário de
Anne Frank.13 Um amigo ligou para lhe dizer certa noite que fosse ao
teatro assistir a uma clara demonstração de antissemitismo. Chegando ao
teatro logo depois que a peça terminou, Wiesenthal soube que
adolescentes provocadores tinham gritado “Traidores! Bajuladores!
Inventores de histórias!”.14 Além disso, espalharam panfletos no teatro,
alegando que a famosa menina que escreveu o diário nunca tinha
existido: “Os judeus inventaram essa história toda para conseguir mais
indenizações. Não acreditem numa palavra disso. É tudo pura
invenção.”15
Wiesenthal via aquilo como parte de um esforço mais amplo de
antigos nazistas e simpatizantes para desacreditar o livro imensamente
popular que personalizava o Holocausto de uma forma que lhes parecia
ameaçadora. Tentavam “envenenar a mente” da geração mais jovem. Dois
dias depois, quando ele e um amigo estavam sentados num café, falando
sobre o incidente, viram alguns estudantes de ensino médio conversando
na mesa ao lado. O amigo de Wiesenthal perguntou a um deles o que
achava de toda aquela polêmica, e o rapaz repetiu a alegação de que Anne
Frank não existia de verdade.
“Mas e o diário?”,16 perguntou Wiesenthal. O rapaz respondeu que
podia muito bem ser forjado, e não era prova da existência de Anne
Frank. Ele também não se deixou convencer pelo fato de Otto Frank, pai
de Anne e único sobrevivente da família, ter declarado em depoimento
que a Gestapo os prendera e que isso resultara na deportação de todos
para Auschwitz. (Mais tarde, Anne e a irmã mais velha, Margot, foram
transferidas para Bergen-Belsen, onde morreram quando a guerra já
estava no fim. Anne tinha apenas quinze anos.)
Finalmente, Wiesenthal perguntou ao rapazinho se ele ficaria
convencido se ouvisse o que aconteceu da boca do oficial que executara a
prisão. “Ok, se ele mesmo admitir”, respondeu o rapaz, convencido de
que aquilo jamais aconteceria.
Wiesenthal tomou aquilo como um desafio. Durante anos, não
conseguiu avançar nada, mas um apêndice do diário da jovem
mencionava um ex-empregado da firma de Otto Frank que tinha ido à
sede da Gestapo depois que a família foi presa para tentar ajudá-la. O
homem se lembrava de ter falado com o oficial que executara a prisão,
um sujeito da SS proveniente de Viena cujo nome começava com
qualquer coisa “Silver”. Wiesenthal deduziu que deveria ser “Silber” em
alemão. Encontrou vários “Silbernagels” no catálogo telefônico de Viena
que tinham pertencido à SS, mas não era nenhum deles.
A descoberta ocorreu numa visita a Amsterdã, em 1963. Um policial
holandês lhe deu uma fotocópia da lista telefônica da Gestapo na Holanda
em 1943, contendo trezentos nomes. Durante o voo de volta para Viena,
lendo a lista, ela encontrou sob um título que dizia “IV B4, Joden
(judeus)”, ele encontrou o nome “Silberbauer”. Sabendo que quase todos
os oficiais daquele departamento eram policiais, Wiesenthal entrou em
contato com um funcionário do Ministério do Interior, que prometeu
que fariam uma investigação. E fizeram, mas sem revelar que Karl
Silberbauer, o oficial que admitiu ter prendido Anne Frank, ainda
trabalhava na polícia de Viena. Silberbauer foi suspenso de suas funções,
mas o Volksstimme, o jornal do Partido Comunista austríaco, entrou na
história depois que Silberbauer se queixou a um colega de estar “tendo
um probleminha por causa de Anne Frank”. A Rádio de Moscou
também alardeou a história.
Wiesenthal não conseguiu que ninguém movesse uma ação contra
Silberbauer, mas seus esforços foram recompensados quando outros
jornalistas entraram em cena. Avisado por Wiesenthal, um repórter
holandês foi entrevistar Silberbauer em Viena. “Por que vocês resolveram
me atormentar depois de tantos anos?”, queixou-se o antigo oficial da SS.
“Apenas cumpri o meu dever.” O repórter quis saber se ele se arrependia
do que fez. “Claro que me arrependo”, respondeu. “Às vezes me sinto
humilhado.” Por quê? Porque tinha sido suspenso da força policial e
perdera o privilégio de andar de bonde de graça; passara a ter que pagar a
passagem, como todo mundo.
O repórter lhe perguntou se tinha lido o diário de Anne Frank.
“Comprei o livrinho na semana passada para ver se apareço nele”,
respondeu Silberbauer. “Mas não me vi lá.” Aparentemente não lhe
ocorrera que o fato de ele ter prendido a autora significava que ela nunca
mais teria oportunidade de escrever.
Silberbauer só ficou conhecido por causa de sua vítima famosa, mas
não passava de um funcionário menor do Terceiro Reich. Como tantos
outros que despacharam para a morte pessoas menos famosas, ele jamais
pagou por suas ações. Wiesenthal teria gostado de ver algo mais do que
seu simples desmascaramento público, mas as autoridades não estavam
interessadas em mover uma ação contra ele.
Apesar disso, Wiesenthal tinha muitas razões para se sentir justificado.
Até hoje, o diário de Anne Frank é um dos mais poderosos testemunhos
do Holocausto, instruindo sucessivas gerações de estudantes. Os esforços
para desacreditá-lo não deram resultado. Nem mesmo o mais ardoroso
simpatizante do nazismo poderia desmentir o depoimento direto de um
antigo oficial da SS que não via nada de errado no que tinha feito.
***
***
Mais tarde, Lelyveld, falou com Russell Ryan por telefone. “Senhor,
minha esposa seria incapaz de matar uma mosca”, garantiu o homem.
“Não há pessoa mais decente no mundo. Ela me explicou que era um
dever que tinha de cumprir.” Mas ele também admitiu para o repórter
que a mulher nunca lhe contara que tinha sido guarda num campo de
concentração e que já cumprira pena em uma prisão.
Não contar ao marido sobre seu passado era uma coisa, mas mentir
para o Serviço de Imigração e Naturalização (INS, na sigla em inglês) era
outra, bem diferente. Lelyveld escreveu na reportagem que um
funcionário do INS disse que isso poderia levar a uma revisão da sua
cidadania, mas “sugeriu que essas revisões raramente resultam na
revogação de direitos”.
Foram necessários sete anos para provar que o funcionário estava
enganado. Depois de longas batalhas judiciais, Hermine Braunsteiner teve
sua cidadania revogada em 1971.22 Tanto a Polônia como a Alemanha
Ocidental tinham pedido sua extradição, e ela declarou que preferia ir
para a Alemanha Ocidental por medo de ser tratada com muito mais
severidade a Polônia. Mandada para a Alemanha Ocidental em 1973, ela
se tornou a ré mais famosa no julgamento do pessoal de Majdanek,
iniciado em Düsseldorf dois anos depois. Os processos se arrastaram até
1981, resultando em prisão perpétua. Em 1996, ela foi solta por
problemas de saúde e mandada para uma casa de repouso onde o marido
americano, que nunca a abandonou, já vivia. Ela morreu em 1999.
Para Lelyveld, aquela reportagem foi um acontecimento singular, e ele
nunca voltou ao assunto. No mesmo dia em que retornou de Maspeth,
soube que seu pai, o rabino Arthur Lelyveld, tinha sido espancado no
Mississippi, onde o Verão da Liberdade degenerara em violência. O
jovem repórter logo passaria a cobrir os motins raciais que ocorriam na
época, partindo para a África no outono. Estava prestes a tornar-se
repórter célebre, editor e autor consagrado com o Prêmio Pulitzer. De
1994 a 2001, foi diretor executivo do The New York Times, o cargo mais
alto desse lendário jornal.
Sentado num café perto do seu apartamento no Upper West Side, no
começo de 2014, Lelyveld pareceu genuinamente espantado quando
mencionei o fato de que sua reportagem sobre Braunsteiner, resultado de
uma rápida viagem a Maspeth, provocara os primeiros sinais de interesse
sério pela história geral do nazismo nos Estados Unidos. Não sabia do
impacto mais amplo da sua reportagem? “Até agora, não”, respondeu-
me.
***
É claro que Mark Cain, nome dado por Elsner à versão ficcional de
Rosenbaum, acaba protagonizando as fantásticas aventuras de vida ou
morte compatíveis com a imagem popular dos caçadores de nazistas que
o verdadeiro Rosenbaum considera bobagem.
Nascido em 1955, de pais judeus que fugiram da Alemanha no fim
dos anos 1930, Rosenbaum foi criado na cidade de Westbury, em Long
Island. Apesar de ele e os colegas terem lido O diário de Anne Frank no
ensino médio, naquela época o Holocausto não recebia nem de longe a
atenção que mais tarde passaria a receber. Ele sabia que muitos parentes
seus na Europa não tinham sobrevivido, mas não era assunto sobre o qual
os pais quisessem conversar. “O fato de não se tocar no assunto em minha
casa na verdade me dizia quanto era sério, doloroso demais para ser
mencionado”,24 explicou.
Contudo, Rosenbaum começou a colher indícios do assunto que os
pais evitavam. Quando tinha uns doze anos, assistiu em sua TV preto e
branco a O interrogatório, de Peter Weiss, recriação do julgamento de
Auschwitz em Frankfurt apresentada primeiro na Broadway e em seguida
transmitida pela NBC. “Foi a primeira vez que ouvi falar no que tinha
acontecido nos campos de concentração”, observou. “E fiquei chocado,
muito chocado.” Eis uma lembrança particularmente vívida: o
depoimento de uma católica polonesa sobre os grotescos experimentos
médicos realizados em sua perna. “Fiquei atordoado”, acrescentou. Dois
anos depois, leu The Murderers Among Us [Os assassinos entre nós], de
Simon Wiesenthal, que o fez perceber que muitos daqueles criminosos
nunca foram punidos — mais uma vez, ficou escandalizado.25
Quando tinha mais ou menos quatorze anos, uma revelação inesperada
feita pelo pai tornou tudo mais pessoal. Os dois viajavam de carro de
Long Island para o norte do estado de Nova York, onde o pai planejava
participar de reuniões de negócios e em seguida levá-lo para esquiar.
Dirigindo devagar por causa de uma nevasca na New York Thruway, o
pai voltou ao seu passatempo favorito: contar ao filho suas aventuras no
exército durante a guerra. A princípio servira no Norte da África, depois
fora transferido para a seção de guerra psicológica do 7º Exército na
Europa, que precisava desesperadamente de pessoas que falassem alemão.
Contou a Eli que eles instalavam megafones perto da linha de frente e
exortavam as tropas alemãs a se renderem, garantindo-lhes que seriam
bem-tratadas. Narrou também com detalhes histórias de lutas de boxe em
sua unidade, falando da vez em que se embebedara com os companheiros
— o que aparentemente divertiu o oficial no comando, em vez de irritá-
lo.
Porém, naquela viagem para o norte do estado, o pai talvez tenha
esgotado o repertório de histórias conhecidas e, de repente, contou a Eli
um incidente sobre o qual o filho jamais tinha escutado. “Sabe de uma
coisa, eu estive em Dachau no dia seguinte ao da libertação”, revelou. Eli
já sabia o que era Dachau. O pai não fazia parte da unidade que libertou
o campo, mas estava perto e logo se espalhou a história de que algo
terrível tinha acontecido lá. Ele e outro soldado receberam ordem para
obter informações sobre o campo e relatar o que viram. Naquela parte da
história, Eli quis a resposta à pergunta óbvia: o que o pai vira ao chegar
ao campo?
Nevava forte naquele momento. “Era assustador dirigir naquela
nevasca”, contou Eli. “Portanto, estamos os dois encarando fixamente a
estrada à frente. Fiquei esperando uma resposta, mas não ouvi nada.”
Quando se virou para o pai, viu que seus olhos estavam cheios de
lágrimas, a boca tremia como se quisesse articular alguma coisa, mas as
palavras não saíam. Finalmente, depois de uma longa pausa, o pai mudou
de assunto. “Entendi”, disse Eli, sua reação ecoando a dos pais ao
evitarem esses assuntos. “O fato de ter sido tão arrasador que ele não
conseguia falar a respeito me disse tudo o que eu precisava saber.”
A partir de então, o radar do jovem Rosenbaum viveu particularmente
sintonizado nas histórias sobre o nazismo — e, nos anos 1970, havia um
volume crescente dessas histórias. O repórter do The New York Times
Ralph Blumenthal investigou mais sobre o caso Hermine Braunsteiner e
escreveu extensamente sobre outros criminosos nazistas nos Estados
Unidos, e um jovem escritor chamado Howard Blum publicou Wanted!
The Search for Nazis in America [Procurado! A caça aos nazistas nos Estados
Unidos]. O herói desse livro de não ficção, que entrou de imediato na
lista dos mais vendidos, era Anthony DeVito, veterano da Segunda
Guerra Mundial que, como o pai de Rosenbaum, estivera em Dachau
logo depois da libertação do campo. Voltando para os Estados Unidos
com uma esposa alemã, DeVito foi trabalhar como investigador do INS,
que o designou para cuidar do caso Braunsteiner. A partir de então, ele
seguiu tentando investigar a fundo uma lista de 59 criminosos nazistas que
moravam nos Estados Unidos, que um pesquisador do Congresso
Mundial Judaico lhe passara.26
DeVito brigava muito com os chefes, até que, por fim, pediu demissão
do INS em 1974, alegando que a cúpula fazia tudo para obstruir a
investigação de nazistas que moravam nos Estados Unidos. “Era uma
figura solitária clamando por vingança”,27 escreveu Blum. O dramático
retrato de um homem sozinho em luta contra o acobertamento de
nazistas, alguns dos quais tinham trabalhado para a CIA e outras agências
governamentais, capturou a imaginação popular — e também a de
Rosenbaum, que, àquela altura, se preparava para entrar na Faculdade de
Direito de Harvard. “Não há dúvidas de que acreditei em tudo”, disse
Rosenbaum. “Aceitei a história toda.”
Posteriormente, Rosenbaum concluiria que Blum tinha ido longe
demais, ignorando esforços anteriores dos Estados Unidos para impedir a
entrada de nazistas e exagerando o papel de DeVito. Com relação ao
próprio DeVito, Rosenbaum acabou acreditando no retrato pintado por
Blum, misturando fato e ficção quando o assunto era a caça aos nazistas.
“Sua vida se tornou um thriller”, disse Rosenbaum. “Era um desses caras
que leram demais esse tipo de romance.” Apesar disso, não havia dúvida
de que o livro de Blum contribuiu para a crescente convicção de que
alguma coisa tinha dado muito errado e permitira que uma enorme
quantidade de criminosos nazistas encontrasse refúgio nos Estados
Unidos.
Blum e DeVito não foram os únicos a chegarem a essa conclusão.
Logo depois de se tornar deputada, em 1973, Elizabeth Holtzman,
democrata do Brooklyn, foi procurada por um funcionário do INS que
queria conversar com ela extraoficialmente. O encontro desencadeou
uma série de acontecimentos que, seis anos depois, culminaria na criação
da Diretoria de Investigações Especiais do Departamento de Justiça, que,
segundo Holtzman, era para ser “uma eficaz unidade de combate aos
nazistas”.28 O escritório não tinha poderes para levar nazistas aos
tribunais por crimes cometidos fora do país, nem para pedir penas de
prisão para eles, mas podia desmascarar as mentiras que eles tinham
contado sobre seu passado quando entraram nos Estados Unidos,
resultando em perda de cidadania e deportação — na melhor das
hipóteses, para países que pudessem processá-los.
***
***
***
***
***
***
***
Rosenbaum voltou a Nova York para contar aos chefes o que tinha
descoberto. O presidente do Congresso Judaico Mundial, Edgar M.
Bronfman, o bilionário diretor da Seagrams, de início teve dúvidas se o
grupo deveria ir a público divulgar o que já sabia. “Nosso negócio não é
caçar nazistas”,7 disse. Todos sabiam que aquilo seria visto como
“campanha de difamação política” para impedir a eleição de Waldheim,
lembrou Rosenbaum. Mas sabiam também que, se ficassem calados até
depois da votação, poderiam ser acusados de proteger Waldheim. Armado
com um memorando de Rosenbaum, Singer insistiu para que Bronfman
aprovasse ação imediata. Depois de refletir sobre os diversos argumentos,
o presidente devolveu o memorando de Rosenbaum com um despacho
escrito à mão: “Executar. EMB.”
Rosenbaum procurou o The New York Times, e John Tagliabue, um
dos seus mais talentosos correspondentes, entrou no assunto. A Profil
também continuou sua investigação e, no número publicado em 2 de
março, deu em primeira mão a notícia da filiação de Waldheim à
organização estudantil nazista e à SA.
Tagliabue tinha entrevistado Waldheim um dia antes para confrontá-lo
com as informações obtidas até então, e o The New York Times publicou
sua reportagem em 3 de março. A história causou furor no mundo
inteiro. “Arquivos mostram que Kurt Waldheim serviu sob comando de
criminoso de guerra”, proclamava a manchete. Tagliabue explicava que
Waldheim estivera ligado ao comando que suprimira brutalmente
unidades guerrilheiras na Iugoslávia e deportara judeus gregos de Salônica
para Auschwitz e outros campos. Também ressaltava que ele tinha sido
designado para o comando do exército em Salônica em março de 1942 e
servira como intérprete para oficiais alemães e italianos na Iugoslávia.8
Cobrindo a história para a Newsweek, logo fui até Waldheim em
Semmering, cidade turística montanhosa onde ele passava a noite depois
de um longo dia de campanha.9 Ele não estava nem um pouco ansioso
para lidar com perguntas sobre as revelações da Profil e do The New York
Times, mas concordou em me dar uma entrevista em seu hotel,
claramente calculando que poderia aproveitar para minimizar os danos.
Estava irritadiço, mas conseguia manter as emoções suficientemente sob
controle para dar a impressão de que todo aquele repentino alvoroço era
resultado de um “mal-entendido” que ele não teria dificuldade para
esclarecer.
Ao abordar a questão da SA e da organização estudantil nazista,
Waldheim usou exatamente essa palavra. Nunca tinha pertencido à SA
nem a qualquer outra organização nazista, insistiu em dizer. Como
estudante da Academia Consular em Viena, participara em “uns poucos
exercícios esportivos” de um grupo de alunos de equitação, disse. Só mais
tarde, e sem seu conhecimento, as listas de participantes desses grupos
foram incorporadas à SA. Da mesma forma, tinha assistido “a algumas
reuniões, nada mais” de um grupo estudantil de discussões. “Não fui
membro de nenhuma dessas organizações. Parece haver um mal-
entendido.”
Ao contrário da SS, a SA nunca foi declarada uma organização
criminosa pelos Aliados vitoriosos, e seus membros não carregavam o
mesmo estigma. Além disso, quando ingressavam no exército, jovens
como Waldheim não podiam continuar pertencendo à SA. Portanto, a
questão dizia mais respeito à credibilidade de Waldheim: teria ele
mentido sobre seu passado ao longo de todos aqueles anos durante os
quais abrira caminho até chegar ao topo da maior organização
internacional do mundo? Teria, deliberadamente, ocultado o tempo de
serviço nos Bálcãs sob o comando de Löhr? Em caso positivo, o que mais
estaria escondendo?
Em contraste com seus protestos de que nunca tinha pertencido à SA
ou ao grupo de estudantes nazistas, ele não negava ter sido designado para
os Bálcãs. “Meu tempo de serviço no Exército alemão não é segredo
nenhum”, disse. Mas até então só falara abertamente sobre a primeira
parte da carreira militar. Os documentos não deixavam dúvida de que
tinha voltado à ativa depois que se recuperou do ferimento na perna
sofrido na Rússia e de que tinha sido mandado para o comando do
Exército em Salônica, enquanto, ao mesmo tempo, prosseguia
intermitentemente os estudos de direito.
Perguntei por que sempre ocultava essa parte da história, até mesmo
na recém-publicada autobiografia. “Não entrei nesses detalhes, que em
minha opinião não tinham tanta importância”, respondeu. Era uma
explicação pouco convincente, mas ele pareceu acreditar que seria
possível se safar com ela.10
Ficou bem mais animado quando indaguei sobre sua afirmação, na
entrevista para o The New York Times, de que não sabia nada sobre a
deportação de judeus de Salônica. Em 1943, quando estava baseado lá,
milhares de judeus foram postos em trens que partiam um atrás do outro
para campos de extermínio. Reafirmou que suas tarefas nos Bálcãs eram
basicamente as de intérprete, o que explicava sua foto com os generais
italiano e alemão. Disse que em Salônica ele se concentrava também na
análise de relatórios de campanha sobre movimentos de tropas inimigas.
“É claro que lamento profundamente”, afirmou, referindo-se às
deportações. “Isso é parte da terrível experiência do Holocausto, mas só
posso lhe dizer que eu não tinha nenhum conhecimento (...) é a primeira
vez que ouço falar dessas deportações.”
Enquanto conversávamos, ele foi ficando mais insistente. “Acredite ou
não, a verdade é esta, e eu gostaria muito de encerrar o assunto, porque
não existe um pingo de veracidade na afirmação de que eu soubesse disso.
Nada. Nunca me envolvi nessas coisas. Eu não tinha conhecimento disso.
É uma campanha muito bem-organizada contra mim.”
Mas “o assunto” dificilmente seria encerrado; estava apenas
começando.
***
***
***
***
PERSEGUINDO FANTASMAS
“Aqui, nesta parada, os inocentes aguardam; quando seu algoz chega,
precisam infligir uma pequena dose de vingança. Deus diz que vingança faz
bem à alma.”1
“BABE” LEVY, HERÓI DO BEST-SELLER DE 1974
MARATONA DA MORTE, DE WILLIAM GOLDMAN,
CONVERSANDO COM O FICTÍCIO DENTISTA DE
AUSCHWITZ CHRISTIAN SZELL ANTES DE MATÁ-LO.
Se você acredita em tudo o que lê, vai achar que os caçadores de nazistas
infligiram muito mais do que uma pequena dose de vingança. Em 2007,
por exemplo, Danny Baz, coronel reformado da Força Aérea israelense,
publicou um suposto livro de memórias em francês chamado Ni oubli ni
pardon: Au coeur de la traque du dernier Nazi [Nem perdoado nem
esquecido: Na pista do último nazista]; a obra foi seguida pela versão
inglesa intitulada The Secret Executioners: The Amazing True Story of the
Death Squad Who Tracked Down and Killed Nazi War Criminals [Os algozes
secretos: a incrível e verdadeira história do esquadrão da morte que
perseguia e matava criminosos de guerra nazistas].
Naquela época, ainda se procurava Aribert Heim, um dos mais
destacados fugitivos nazistas depois da guerra. O médico, nascido na
Áustria, tinha servido em Mauthausen, onde recebera o apelido de
“Doutor Morte”. Matava judeus injetando-lhes gasolina e outras
substâncias venenosas no coração; além disso, realizava experimentos
particularmente sádicos, abrindo o corpo de prisioneiros saudáveis para
remover seus órgãos e abandonando-os na mesa de operação para
morrerem à mingua. Como resultado, era procurado por todo mundo,
desde o governo alemão até o Centro Simon Wiesenthal, que o colocara
no topo de sua lista de mais procurados. Mas Baz fez uma afirmação
surpreendente: havia 25 anos que caçavam um fantasma.2
Segundo o relato de Baz, ele fizera parte de um esquadrão da morte só
de judeus que executou Heim em 1982. Apelidado de “Coruja”, o
grupo foi criado por sobreviventes ricos do Holocausto e era formado
por americanos e israelenses altamente treinados que tinham pertencido a
vários serviços de segurança. “Os nomes dos meus companheiros de
armas foram alterados para não violar a confidencialidade da nossa
organização, que contava com um orçamento ilimitado, digno dos
maiores serviços secretos”, escreveu. “Este livro narra fatos rigorosamente
verdadeiros...”3
Partindo daí, ele contou uma história dramática, afirmando que o
Coruja foi responsável pela captura e o fuzilamento de dezenas de
criminosos de guerra nazistas, mas seu maior desafio foi encontrar Heim
e capturá-lo vivo. Depois disso, ele seria posto diante de um tribunal de
sobreviventes do Holocausto, antes de ser executado. “Queríamos que os
canalhas olhassem para suas vítimas antes de morrer”,4 explicou Baz, um
dos mais antigos membros do Coruja. Descobriu-se que Heim estava nos
Estados Unidos, e não em lugares exóticos, como se costumava noticiar, e
os vingadores o localizaram primeiro no norte do estado de Nova York,
depois no Canadá, e o sequestraram num hospital em Montreal; por fim,
entregaram-no a outros integrantes do Coruja na Califórnia, que
organizaram o tribunal e cuidaram da execução.
E essa estava longe de ser a única história de um proeminente
criminoso de guerra nazista supostamente morto no mais absoluto sigilo.
Martin Bormann, poderoso secretário pessoal de Hitler e chefe da
chancelaria do Partido Nazista, desapareceu do bunker de Hitler em
Berlim depois do suicídio do Führer. O Tribunal Militar Internacional de
Nuremberg condenou à morte doze dos mais importantes nazistas:
Bormann foi o único condenado à revelia. Seu suposto desaparecimento
deu margem a relatórios contraditórios sobre se teria ou não sobrevivido.
Havia alegações de que tinha sido morto ou pusera fim à própria vida
mordendo uma cápsula de cianureto pouco depois de sair do bunker.
Como no caso de Heim, havia também numerosos relatos informando
que ele teria sido visto no norte da Itália, no Chile, na Argentina e no
Brasil, entre outros lugares. Mas, em 1970, o sensacionalista News of the
World lançou em fascículos um relato de autoria de Ronald Gray, ex-
agente de inteligência do Exército britânico, posteriormente publicado
como livro sob o título I Killed Martin Bormann! [Eu matei Martin
Bormann!].
“Bormann está morto, com o corpo crivado por uma saraivada de
submetralhadora Sten”, escreveu. “E foi meu dedo que apertou o
gatilho.”5 Gray contou que estava estacionado no norte da Alemanha
depois da guerra, perto da fronteira dinamarquesa. Abordado por um
misterioso contato alemão para levar alguém clandestinamente pela
fronteira por 50.000 coroas (então 8.400 dólares) em março de 1946, ele
aceitou, imaginando que assim desmascararia parte da rede que garantia
aos criminosos de guerra nazistas uma saída segura do país. Já dentro da
sua van militar, ele percebeu que o passageiro era Bormann. Era tarde da
noite, mas a luz da lua foi suficiente para confirmar a identificação
quando chegaram a seu destino no lado dinamarquês da fronteira e
pararam perto de dois homens que os aguardavam. De repente, Bormann
saiu correndo rumo a seu comitê de recepção, e Gray se deu conta de
que tinha caído numa emboscada. Abriu fogo e viu Bormann tombar. Os
dois homens que o aguardavam dispararam uma saraivada em sua direção.
Gray se jogou no chão, fingindo-se de morto. Daquela posição,
observou os homens arrastarem Bormann. Seguindo-os, viu-os
colocarem o corpo num pequeno barco num fiorde, remarem uns
quarenta metros e o jogarem no golfo. “Pelo impacto na água, imaginei
que os dois compatriotas de Bormann prenderam algum peso ao corpo,
talvez correntes”, escreveu. “Ocorreu-me que o barco e as correntes
talvez estivessem reservados para mim.”6
O relato de Gray não pôs fim a outras versões da história de Bormann.
Em 1974, o historiador militar e autor de best-sellers Ladislas Farago
publicou Aftermath: Martin Bormann and the Fourth Reich [Rescaldo:
Martin Bormann e o Quarto Reich]. Na obra, dizia ter encontrado
Bormann num hospital no sul da Bolívia, depois de subornar contatos e
guardas na fronteira daquele país com o Peru. Todo esse esforço, segundo
ele, teve como resultado um breve encontro com o homem. “Quando
me levaram a seu quarto para uma visita combinada de cinco minutos (...)
vi um velhinho numa cama grande com lençóis recém-lavados,
encarando-me com um olhar vazio e murmurando qualquer coisa para si
mesmo.”7 Eis as únicas palavras que Bormann teria dito ao visitante:
“Caramba, não vê que sou um velho? Por que não me deixa morrer em
paz?”
Esses relatos alimentavam os tabloides, às vezes até jornais sérios, mas
havia um problema: eram todos produto da ardente imaginação dos
autores, não as “histórias verídicas” anunciadas. No caso de Aribert
Heim, o The New York Times e a emissora de TV alemã ZDF divulgaram
provas convincentes de que, depois da guerra, o Doutor Morte morou no
Cairo, onde converteu-se ao islamismo, e adotou o nome de Tarek
Hussein Farid.8 As provas consistiam numa maleta cheia de cartas suas,
registros médicos e financeiros e um artigo sobre a procura por ele. Os
dois nomes — Heim e Farid — apareciam nesses documentos, e a data
de nascimento que constava era 28 de junho de 1914, a de Heim. O
atestado de óbito mostrava que Heim tinha morrido em 1992, uma
década depois de supostamente ter sido executado pelo grupo de
vingadores de Baz.
Em entrevista ao The New York Times, Rüdiger Heim, filho de
Aribert, não só confirmou a identidade do pai (“Tarek Hussein Farid é o
nome que meu pai adotou quando se converteu ao islamismo”, disse)
como revelou que o visitava no Cairo quando ele morreu de câncer
colorretal. Os dois jornalistas que trabalharam na reportagem, Nicholas
Kulish e Souad Mekhennet, escreveriam um livro narrando
detalhadamente a vida de Heim na Alemanha do pós-guerra, onde
continuou trabalhando como médico na estância termal de Baden-Baden
até 1962, quando fugiu para o Egito porque lhe pareceu que as
autoridades finalmente iam prendê-lo. Os autores contaram com a
colaboração do filho, de outros parentes e dos egípcios que o conheceram
pelo novo nome.
Entre os escritos de Heim, foram encontradas repetidas referências a
Simon Wiesenthal, que o fugitivo considerava o orquestrador do complô
sionista para localizá-lo e capturá-lo. O caçador de nazistas fracassou nessa
missão, mas, no que dizia respeito a Heim, ele era o “mandachuva
absoluto de todas as agências alemãs”.9 Isso demonstra, no mínimo, que
Heim — e, muito provavelmente, todos os demais criminosos de guerra
em fuga — tinham medo de Wiesenthal e acreditavam em sua imagem
popular de vingador quase todo-poderoso. Tal ideia era um exagero,
claro, mas ilustrava uma das grandes forças de Wiesenthal: ele conseguia
cumprir parte da sua missão, instilando medo no caçado ao se aproveitar
dessa visão aumentada de seu papel.
No tocante a Martin Bormann, a história de Gray, de que atirou nele,
e a de Farago, de que o visitou na Bolívia, foram totalmente desmentidas.
Os supostos restos mortais de Bormann foram encontrados num canteiro
de obras em Berlim, em 1972, mas só em 1998 testes de DNA mostraram
clara compatibilidade com o de um parente do outrora poderoso
nazista.10 Chegou-se à conclusão de que ele morreu em 2 de maio de
1945, pouco depois de deixar o bunker de Hitler, enquanto tropas do
Exército Vermelho tomavam a cidade. Nos anos que se seguiram, houve
ainda mais histórias de pessoas que diziam ter visto Bormann, quase
sempre na América do Sul.
Baz tinha razão ao afirmar que, em certos casos, os caçadores de
nazistas estavam atrás de fantasmas, mas isso costumava resultar da falta de
informações confiáveis combinada com conjeturas e palpites. Pelo menos
eles não inventavam lorotas sobre assassinatos por vingança. Mas, em
termos de cultura popular, esses relatos deixaram sua marca, contribuindo
para a ideia equivocada de que o roteiro de todas as aventuras de caça aos
nazistas poderia ter sido escrito em Hollywood.
***
Normalmente, a caça de criminosos nazistas, conduzida pelo governo ou
por investigadores particulares, transcorria de acordo com roteiros muito
mais lentos, sobretudo quando havia disputas judiciais que pareciam
intermináveis. E com certeza não apresentavam os tiroteios dramáticos
nem os confrontos violentos que eram pano de fundo comum das
“histórias verídicas”. Mas houve raras exceções. Nesses casos, a vida
parecia imitar a ficção, com vingadores escondidos na sombra para atacar.
Um dos vilões de Wanted! The Search for Nazis in America [Procurado!
A caçada de nazistas na América], livro inovador de Howard Blum
lançado em 1977, era Tscherim Soobzokov, que tinha sido criado no
norte do Cáucaso, na União Soviética, como parte da minoria circassiana.
À primeira vista, “Tom” Soobzokov, como era conhecido em sua cidade
natal de Paterson, Nova Jersey, era uma típica história americana de
sucesso. De acordo com uma reportagem de The Paterson News, quando
os alemães capturaram o Cáucaso, em 1942, ele foi despachado “quase
como trabalhador forçado para a Romênia”. No fim da guerra, juntou-se
a outros exilados circassianos na Jordânia, antes de ir para os Estados
Unidos, em 1955. Estabelecendo-se em Paterson, começou a trabalhar
num lava a jato, mas logo passou a coordenador do Sindicato de
Caminhoneiros e, depois, filiado ao Partido Democrata local, arranjou
emprego como chefe dos inspetores de compra do condado de Passaic.
Era a pessoa que todos procuravam para resolver um assunto,
principalmente entre seus companheiros imigrantes do Cáucaso. Era
tranquilo, bem-relacionado e cada vez mais próspero.11
Contudo, alguns dos imigrantes circassianos da região não engoliam
nem sua biografia nem sua pretensão de representá-los. Seu nome foi
posto na lista de criminosos de guerra nazistas nos Estados Unidos, que
acabou indo parar nas mãos de Anthony DeVito, investigador do Serviço
de Naturalização, no começo dos anos 1970, e seus vizinhos em Paterson
não viam a hora de explicar por quê. Kassim Chuako, um dos circassianos
citados por Blum, disse que Soobzokov tinha oferecido seus préstimos às
tropas alemãs assim que elas chegaram à sua região do Cáucaso. “Nós o
vimos entrar na aldeia com os alemães e reunir as pessoas, comunistas e
judeus”, declarou. “Eu o vi com tropas das SS que levavam pessoas.”12
Houve quem dissesse tê-lo visto usando um uniforme da SS na Romênia,
onde tentou recrutar refugiados para uma unidade militar caucasiana
patrocinada pela SS.
Apesar de ter servido até 1945 na Waffen-SS, o braço combatente da
SS, Soobzokov não tivera a menor dificuldade para se apresentar como
refugiado de guerra quando o conflito terminou. Em 1947, tinha feito
parte de um grupo de circassianos que emigrou da Itália para a Jordânia,
onde trabalhou como engenheiro agrícola. Logo conseguira novo
emprego: na CIA. A agência queria usá-lo para identificar companheiros
circassianos que pudessem ser mandados como agentes secretos para a
União Soviética, e ele não se fez de rogado.13
Os novos chefes de Soobzokov tinham poucas ilusões sobre seus
antecedentes. “Indivíduo tem reações consistentes e pronunciadas a
perguntas relativas a crimes de guerra, e sem dúvida esconde de nós
numerosas atividades no momento”,14 informou um funcionário da
CIA, em 1953. Apesar disso, era evidente que a prioridade da agência era
utilizar seus serviços da melhor maneira possível, independentemente do
que ele ocultava. Chegando aos Estados Unidos, em 1955, Soobzokov
continuara a trabalhar para a CIA, mas suas histórias absurdas e
inconsistentes levaram outro funcionário da agência a concluir que se
tratava de “um impostor incorrigível”,15 e ele foi deixado de lado em
1960.
Apesar disso, quando começou a investigar seus antecedentes nos anos
1970, um alto funcionário da CIA alegou que, apesar de haver “questões
não respondidas”16 a seu respeito, ele desempenhara “serviços úteis” para
os Estados Unidos, e a agência jamais encontrara provas concretas de que
estivesse envolvido em crimes de guerra. Diante disso, o INS
interrompeu a investigação. Quando a recém-criada Diretoria de
Investigações Especiais do Departamento de Justiça tentou retomar o seu
caso em 1980, os investigadores descobriram que Soobzokov apresentara
uma lista das suas filiações nazistas ao pedir visto americano. Como a
estratégia da OSI era pedir o cancelamento da cidadania norte-americana
de supostos criminosos de guerra demonstrando que tinham mentido
para conseguir entrar no país, tiveram que desistir, ainda que relutantes.
Suas confissões, por mais incompletas que fossem, bastavam para minar
qualquer alegação de que ele ocultara seu passado.
A despeito da controvérsia que o cercava, Soobzokov pareceu ter saído
da situação abalado, mas vitorioso. Chegou até a processar Howard Blum
por calúnia pelo que ele tinha escrito a seu respeito em Wanted!, e o autor
teve que fazer um acordo extrajudicial, apesar de não retirar nada do que
disse.17
Em 15 de agosto de 1985, uma bomba caseira explodiu na frente da
residência de Soobzokov, em Paterson. O homem que estivera no centro
de tantas controvérsias foi gravemente ferido e morreu em 6 de setembro
em decorrência dos ferimentos. Mais tarde, o FBI diria que a Liga de
Defesa Judaica talvez fosse responsável pelo atentado, mas o caso nunca
foi resolvido.18
Oito anos depois, houve outro assassinato que bem poderia ter saído
das páginas de um thriller. Dessa vez o cenário foi um apartamento
parisiense no chique 16º Arrondissement, e a vítima foi René Bousquet,
o octogenário ex-chefe de polícia que tinha orquestrado a deportação de
judeus da França ocupada, incluindo milhares de crianças. Apesar de
Bousquet ter sido julgado e condenado depois da guerra, o tribunal não
exigiu que cumprisse pena, com a justificativa de que ele teria ajudado a
Resistência. Depois disso, ele iniciou uma bem-sucedida carreira nos
negócios, e sua entusiástica participação no Holocausto pareceu ter sido
quase esquecida. Mesmo depois de seu passado ter sido investigado
novamente como parte dos esforços da França para expiar um legado de
colaboração, e apesar de ter havido um movimento para apresentar novas
acusações contra ele, Bousquet jamais manifestou arrependimento,
aparentemente por julgar que nada tinha a temer, e continuou a passear
com seu cão duas vezes por dia no Bois de Boulogne.19
Em 8 de junho de 1993, um homem chamado Christian Didier
chegou ao apartamento de Bousquet a pretexto de entregar-lhe
documentos do tribunal. Quando o ex-chefe de polícia abriu a porta,
como Didier contaria mais tarde às equipes da televisão francesa, “puxei o
revólver e disparei à queima-roupa”. Apesar de atingir o alvo, Bousquet
correu em sua direção. “O sujeito tinha uma energia incrível”,
acrescentou. “Fiz um segundo disparo, mas ele continuou vindo para
cima de mim. No terceiro tiro, começou a cambalear. Na quarta vez, eu
o atingi na cabeça ou no pescoço, e ele caiu, perdendo muito sangue.”20
Didier fugiu e depois convocou as equipes de TV para fazer sua
confissão, mas em nenhum momento disse que se arrependia. Bousquet
era a “encarnação do mal” e sua atitude fora como “matar uma
serpente”, declarou, acrescentando: “Eu representava o bem.” Na
realidade, o homem que se descrevia como um escritor frustrado parecia
movido pelo desejo de alcançar a fama a qualquer preço. Antes tinha
tentado matar Klaus Barbie, entrado nos jardins do palácio presidencial
francês e tentando chegar à força a estúdios de TV. Passara uma
temporada num hospital psiquiátrico e, depois de matar Bousquet, foi
condenado a dez anos de prisão. Solto após cumprir metade da pena,
mostrou-se arrependido, mas acrescentou: “Se o tivesse matado cinquenta
anos atrás, eu receberia uma medalha.”21 Também modificou a
explicação dos seus motivos, apresentando uma lógica distorcida. “Achei
que, matando Bousquet, eu mataria o mal em mim.”22
Para Serge Klarsfeld e outros que esperavam levar Bousquet a um novo
julgamento, o assassinato foi um grande revés. “Os judeus querem justiça,
não vingança”,23 disse ele. Apesar de um dia ter pensado em matar
Barbie, ele sempre preferiu levá-lo a julgamento e condená-lo, como
acabou acontecendo. Isso servia à causa da justiça e ajudava a instruir mais
o público sobre o Holocausto. Um julgamento de Bousquet teria tido a
vantagem extra de oferecer um exemplo prático de como os
colaboracionistas franceses participaram ativamente nos crimes dos
alemães. Isso tudo significava que, diferentemente dos filmes de
Hollywood, ninguém aplaudiu quando o pistoleiro matou o vilão. Neste
caso, a justiça foi negada.
***
CÍRCULO COMPLETO
“Sobreviver é um privilégio que implica obrigações. Não paro nunca de me
perguntar o que posso fazer por aqueles que não tiveram a mesma sorte.”1
SIMON WIESENTHAL
***
***
***
***
***
1. Associated Press
2. Associated Press/Ronald Zak
3. Associated Press/Max Nash
4. Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos
5. Associated Press/Hanns Jaeger
6. Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos
7. Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos
8. Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos
9. Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos
10. Gabinete de Imprensa do Governo de Israel
11. Copyright Yossi Roth
12. Gabinete de Imprensa do Governo de Israel
13. Gabinete de Imprensa do Governo de Israel
14. Associated Press
15. Bettmann/Corbis/AP
16. AF Archive/Alamy
17. Pictorial Press Ltd/Alamy
18. Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos
19. Associated Press/Fritz Reiss
20. Associated Press/Lionel Cironneau
21. Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos
22. Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos, cortesia de
Miriam Lomaskin
23. Copyright Eli Rosenbaum
24. Associated Press/W.Vollman
25. Associated Press/Martha Hermann
26. Museu Estatal de Auschwitz-Birkenau
27. DB/ picture-alliance/ dpa/Associated Press
28. Associated Press/Gregorio Borgia
29. Associated Press/Kerstin Joensson
30. Associated Press/Oliver Lang, Pool
SOBRE O AUTOR
Andrey Rudakov
Inferno
Max Hastings
Toda luz que não podemos ver
Antony Doerr