Quem Me Roubou de Mim - Padre Fabio de Melo
Quem Me Roubou de Mim - Padre Fabio de Melo
Quem Me Roubou de Mim - Padre Fabio de Melo
Sobre a obra:
Sobre nós:
Padre
Fábio de Melo
http://groups.google.com.br/group/digitalsource
Esta obra foi revisada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de
maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem
comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa
forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer
contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A
generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este
livro livremente.
Apresentação, 5
A CONDIÇÃO DE VÍTIMA, 12
O SEQÜESTRO DA SUBJETIVIDADE, 20
SEQÜESTRADOS E SEQÜESTRADORES, 22
LIBERDADE ELETIVA, 47
SUPERANDO AS IDEALIZAÇÕES, 71
O EQUÍVOCO DO AMOR, 74
APRESENTAÇÃO
Toda relação que priva o ser humano de sua disposição de si, de sua pertença,
ou seja, a capacidade de administrar a própria vida, alguma fôrma
caracteriza-se como "seqüestro da subjetividade"!
O livro partirá desta forma de seqüestro. Sempre que uma pessoa é retirada de
seu mundo particular, e subjugada aos maus tratos de um cativeiro, inicia-se
nela um processo terrível de rendição que a colocará na condição de vítima.
Vitimada, deixa de ser proprietária de seu destino e passa a obedecer às
ordens de seu seqüestrador.
Fragilizando profundamente o ser que sofre, uma vez que o seqüestro lhe
retira da centralidade de suas próprias decisões.
Este livro quer ser simbólico, porque está comprometido com o desejo de lhe
fazer bem. Ele é uma aventura desejada. Considere-o como uma pequena
viagem, cujas estradas passam pela vida de muitas pessoas que cruzaram o
nosso caminho.
Para que esta viagem seja tranqüila, algumas "placas" serão nossos guias. São
conceitos da Filosofia e da Teologia cristã que serão explicitados. Se, em
algum momento da leitura, o texto lhe parecer difícil, vença o desafio. Não
permita que a preguiça lhe seqüestre. Vá adiante. Todo livro precisa nos
acrescentar algo novo. Toda forma de saber nasce de um não saber.
Queiramos isso. Sempre. Até o fim. O fim que não tem fim.
Trinta e dois anos se passaram. Oito filhos; sete homens e uma mulher. Cinco
netos e uma história de sofrimento que parece ter vindo de algum clássico da
literatura. Nunca houve amor entre ela e o marido. Nos primeiros dias de
convivência ele deixou claro, por meio de sua conduta, que a vida ao seu lado
não seria fácil. Ela não soube discordar. As primeiras agressões foram
mantidas em segredo. Mais tarde, elas se tornaram publicas. Pouco a pouco, o
respeito deixou de existir por completo.
Aquela mulher tinha, diante de si, uma longa viagem a ser feita.
SIGNIFICADOS
É a partir, deste mundo, que enxergamos o outro mundo, que não é somente
nosso, mas também nosso, assim como o mirante proporciona ao observador
a visão que só é possível a partir de sua posição geográfica.
A identidade nos diz sobre nós mesmos. Diz a nós e aos outros. Há dois
aspectos interessantes na identificação: uma afirmação e uma negação.
Ao dizer "eu sou isso", naturalmente estou dizendo também "que não sou
aquilo que negaria o que sou". Parece jogo de palavras, mas não é. Ao
identificar que sou Fábio, naturalmente estou dizendo que não sou Fernando.
A identificação é também diferenciação, porque em toda afirmação há
sempre uma infinidade de negações latentes.
Essa identidade necessita ser cultivada. Vivemos constante-mente esse
processo. O tempo todo reivindicamos o que somos e também renunciamos o
que não somos. Identidade estabelece limites, assim como os conceitos
limitam a realidade. Limite que não pode ser considerado como negativo.
No mundo das pessoas é a mesma coisa. Nossa identidade nos limita, não
para nos empobrecer, mas ao contrário, para nos favorecer o crescimento.
Quem sabe bem o que é e o que não é terá mais facilidade de explorar suas
possibilidades, uma vez que os limites já estão apreendidos também.
Quando digo o que sou de alguma forma eu o faço para também dizer o que
não sou. O “não ser está no avesso do ser, assim como o tecido só é tecido
porque há um avesso que o nega, não sendo outro, mas complementando-o”.
O que não sou também é uma forma de ser. Eu sou eu e meus avessos.
A CONDIÇÃO DE VÍTIMA
Ameaça matar os que ela ama, ameaça atentar contra os seus valores, subjuga
e faz questão de demonstrar quem é a autoridade, o centro de todas as
decisões. Os maus tratos, a vida na precariedade, o local inóspito, a comida
qualquer, o desprezo, tudo estará a serviço desse objetivo único: vitimar.
Temer uma realidade ou uma pessoa é o mesmo que lhe entregar o direito de
nos assombrar constantemente. Sempre que estamos paralisados pelo medo,
de alguma forma, estamos privados de nós mesmos.
O senso comum nos ensina que o cão tem o poder de perceber o nosso medo,
e isso o encoraja para nos agredir. Olhá-lo nos olhos é um recurso que inibe o
ataque. Isso é interessante. Toda relação de domínio é sempre estabelecida a
partir do medo. Sentir medo é o mesmo que legitimar no outro o comando da
situação. Se eu temo o escuro, de alguma forma estou lhe atribuindo mais
poderes que a mim. O MEDO nos faz vítimas, acentua ainda mais o
esquecimento do que podemos. O que pode me fazer uma sala escura: Porque
tenho medo de ficar sozinho? São perguntas simples para as quais geralmente
não temos respostas. A razão não dá conta de jogar luzes sobre certas
situações justamente porque ela está paralisada pelo medo. O medo nos priva
da inteligência, ainda que temporariamente.
A pessoa seqüestrada, que até então foi vítima dos seqüestradores, agora
também está entregue nas mãos daqueles que compõem o seu horizonte de
sentido, Diferente, mas continua vitima. Eles decidirão o que fazer; decidirão
como pagar, como negociar. É o momento em que a pessoa é exposta ao peso
e à medida do seu valor.
Não são raros os casos em que a vitima experimenta nesta: hora uma grande
insegurança. A fragilidade do cativeiro lhe faz duvidar até mesmo da
predileção de quem está lá fora negociando sua vida. O cativeiro minou seu
amor próprio, prejudicou sua auto-estima. “É aí que lhe ocorre uma dúvida
cruel: será que existe alguém interessado em me retirar daqui” Será que valho
o valor que está sendo pedido?
Antes, vitima de quem nem sequer sabia o nome, agora, vítima daqueles que
a viram nascer e crescer. Condições distintas, mas costuradas pelo mesmo fio
da insegurança.
o medo assumindo sua dolorosa face do desespero. Medo que cega; que faz
esquecer o que temos de mais sagrado. Medo que nos acorrenta aos pés dos
nossos seqüestradores, e que nos encoraja a pedir que eles tenham piedade de
nós, como se fossem deuses, com o poder de nos livrar de nossa fragilidade.
Medo que nos faz esquecer o que amávamos; que dilui nossa identificação e
que não nos permite mais a diferenciação do mundo.
Olhamos a tudo e a todos do mesmo modo. Olhos com lentes do medo; são
os olhos pessimistas, e muito pouco podem na vida.
O medo tem o poder de nos fazer pedir o que não queremos. No caso do
seqüestro do corpo, o seqüestrado, por causa do medo que sente torna-se
capaz de pedir, mesmo sem uma formulação expressa nas palavras, que o
seqüestrador, o proteja com seu domínio. A condição de vítima lhe faz viver
o absurdo de uma dependência cega. O intruso, o recém - chegado, assume a
centralidade de seus afetos. A relação, fortemente marcada pela dependência,
fortalece ainda mais a entrega e a rendição. O dominador reconhece nos olhos
do dominado o pedido.
Comungamos uns aos outros assim como o corpo se incorpora da vida que o
alimento lhe devolve. A mesa é o lugar onde as fomes se manifestam e são
curadas.
RETORNO
A mim mesmo.
Instigante. Ser o que somos requer cuidados. Não é possível ser somente na
solidão. O singular é tocado o tempo todo por outro singular e assim nascem
os encontros. Toda relação é um encontro de subjetividades. A vida é feita
desses encontros.
a dor de quem está compondo o mosaico sem saber o que é. Entrou no todo,
mas não tomou posse da parte. Misturou-se ao mar, mas não sabe o no que é.
O SEQÜESTRO DA SUBJETIVIDADE
Um mês depois, ao sair do terrível castigo que lhe foi imposto, alguém o
interroga de como foi possível suportar todo aquele tempo de silêncio e
solidão.
Curiosamente ele respondeu que ouvia música o tempo todo, e que isso
ajudou o tempo a passar. Indignado, aquele que o questionara recorda que na
solitária não há aparelho de som, e o personagem sabiamente concluí que não
precisava de aparelhos de som para ouvir músicas, pois elas já estavam
dentro dele.
Ele não aprendeu a ser livre, e por isso resolveu morrer depois de perder o
direito de ficar na prisão.
Há prisões que são mais que paredes e celas. Há prisões que não são
concretas, e por isso não há nada que possa concretamente ser quebrado.
No seqüestro do corpo há um cativeiro localizado que precisa ser aberto. Já
no seqüestro da subjetividade os cativeiros não possuem localização para que
possamos chegar pela força de nossos pés. Trata-se de uma prisão mais sutil,
mas nem por isso menos cruel.
ALGUÉM
SEQÜESTRADORESESEQÜESTRADOS
Trata-se de uma invasão suave, mas nem por isso menos violenta, de
territórios que pertencem ao singular, a subjetividade; e o acesso
inescrupuloso àquelas realidades do sujeito particular, forçando-o a
desprender-se de si mesmo para viva uma forma estranha e socializada de
escravidão e dependência.
Ela chegou em mim com os olhos cheios de medo. Bonita, nascida em uma
família bem estruturada, a menina começou a relacionar-se com um amigo de
colégio. No início, era apenas uma aproximação despretensiosa, e por isso a
família não viu a necessidade de intervir. "Coisa de adolescente", como
dizem os mais velhos.
Aquela menina que, até então, tinha uma vida tranquila, cheia de sonhos e
amigos, agora tinha que enfrentar um quadro depressivo profundamente
perigoso.
A menina estava apaixonada pelo rapaz há mais dez anos e, desde que
ficaram juntos pela primeira vez, ele a transformara num objeto de seu prazer.
Ao contrário do que ela sempre dizia, nunca namorou o rapaz. Ele mantinha
um relacionamento de mais dois anos com uma outra menina. Ela era a
"outra" e sempre soubera disso.
Sem dizer "não", consentia uma espécie de invasão, uma violência velada que
tinha o poder de minar e fragilizar sua subje-tividade, colocando-a novamente
nas mãos de seu seqüestrador.
E estranho, mas essa menina é o retrato de uma realidade muito comum entre
nós. Sequestrados que aceitaram a condição de vítima; aprenderam a perder
sempre e não acreditam em alguma vitória reservada para eles. São pessoas
que se condicionaram ao fracasso e vivem retrocedendo ao invés de avançar.
Por meio deste caso, firmamos ainda mais nossa mmu çâo. Toda relação
humana necessita de cuidados, porque sempre transita nos limites ténues
entre amor e posse. Do amor à posse o caminho é curto. Basta que percamos
o foco de nossa identidade para que corramos o risco de alguém administrar
nossa vida, roubando-nos de nós mesmos.
Pois bem, a palavra "imundo" indica a negação do mundo, uma vez que na
língua portuguesa ela significa "aquilo que está sujo, impuro".
É por isso que podemos dizer que o ser humano é dotado de capacidade
recriadora. A inserção da vida humana no espaço criado teve o intuito de que
nos tornássemos sujeitos da criação. Como já vimos anteriormente, ao sujeito
cabe a função de realizar a ação do verbo. Neste mundo de tantos verbos, os
sujeitos movimentam e transformam o mundo.
A vida cristã é quase uma afronta aos inteligentes. Deus confere realeza aos
mais fracos deste mundo. Os miseráveis foram revestidos de um manto de
glória. Os fracassados foram olhados nos olhos; receberam o convite para a
festa principal. Qualquer um pode aceitar este convite. Os títulos reais estão à
disposição. Basta querer.
O imundo é o lugar dos desumanizados. E fácil viver esse projeto, não requer
muito esforço. A santidade, o aprimoramento, requer coragem. A
desumanização requer fraqueza. E mais fácil ser fraco. É mais fácil justificar-
nos na preguiça existencial que nos aquieta nas expressões que são próprias
de quem já perdeu a batalha. "Sou assim mesmo e não quero mudar!"
Existir de qualquer jeito não requer esforço. Basta entrar no movimento das
estruturas que tornam a vida humana cada vez mais artificial.
Esta reflexão pode ser belamente amparada nos versos de Eduardo Alves da
Costa quando nos diz:
"Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E
não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores,
matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada."
Eles entram pela porta da frente . Alguns são capazes de roubar-nos a luz.
Fora da luz de nossa identidade, isto é, esquecidos de nós mesmos, somos
presas frágeis diante do medo. Ao medo cabe o poder de paralisar os que não
sabem do que são capazes. Esta ocupação do nosso território não é feita com
alarde.
No mundo das representações, os seqúestradores não estão encarapuçados,
tampouco nos surpreendem em vielas escuras. Eles andam às claras, e nem
sempre sabem que estão a serviço dos desumanizados. Também eles foram
vítimas de sequestro. Também eles não sabem que estão nos cativeiros do
mundo moderno, transitando entre as condições de sequestrado e
seqüestrador.
Internações, terapia, mas nada deu certo. O menino morria gradualmente aos
olhos de todos. Por muitas vezes a mãe vasculhava o seu esconderijo, seu
cativeiro, para procurar a droga que o viciara tanto, mas de nada adiantava.
Ela sempre soube que não adiantaria muita coisa retirar a droga de suas
gavetas e bolsos. Ela precisava era retirar a droga de dentro dele, lá na raiz da
dependência, onde um dia os traficantes, os seqüestradores de seu filho,
plantaram suas sementes tão maléficas.
Outra história. Ela era uma moça bonita. Beleza não convencional; beleza
rara. Tinha quinze anos quando conheceu o rapaz. Ele chegou quando ainda
não era tempo de chegar. Pediu da menina o que ela ainda não estava
preparada para oferecer. Ela não soube dizer não. O encanto tem o poder de
cegar os que estão encantados. Os encantadores sabem disso. Pouco a pouco,
ele foi invadindo a sua casa, a sua vida, os seus valores. Feito um posseiro,
desrespeitou as cercas e proclamou ser proprietário da vida daquela moça,
que ainda tinha ares de criança. Aquela que até tão pouco tempo brincava de
boneca agora tinha nos braços uma criança de verdade. Maternidade
prematura.
Ele não a assumiu como esposa. Sumia e aparecia quando bem entendia. Ela
era apenas um objeto de sua satisfação. Ela deixava que fosse assim.
Não tinha forças para discordar. O encanto ainda continuava. Ele fez com que
ela esquecesse todos a quem amava. Tornou-se uma estranha dentro de sua
própria casa; perdeu a liberdade de pedir afeto, de demonstrar fragilidade, de
voltar a ser menina, ainda que já tivesse uma outra criança nos braços.
Um destino cruel para quem poderia ter sido tanto na vida. Aquela manhã de
primavera selou um sequestro que não teve resgate. Trágico fim, trágica
continuidade na vida de seus pais e amigos.
Duas vidas, duas histórias escritas com tintas carregadas de sofrimento. Dois
exemplos clássicos de sequestro da subjetividade. Ambas as histórias têm
como protagonistas gente de pouca idade, vulnerável às imundícies de nosso
tempo. Seduções que resultaram em tragédias. Realidades comuns nos nossos
dias, em que as pessoas se tornam incapazes de romper com as forças que as
destroem. Perdem o amor próprio, deixam de olhar o que amam;
desamparam-se aos poucos até perder o senso de díreção.
Isso traz ao conceito de pessoa uma dinâmica que nos possibilita dizer que,
enquanto estivermos vivos, estaremos constantemente aumentando nossa
propriedade. Estaremos nos aventurando no duro processo do
autoconhecimento, desbravando fronteiras, retirando as travas das porteiras
que nos impedem de ir além do que já pudemos avançar em nós mesmos.
Martim Buber, grande nome da filosofia personalista, nos propõe esta bela e
fecunda verdade. No encontro entre um eu e um tu, uma terceira pessoa de
existência própria se estabelece3. Nossos olhos não podem enxergá-la, mas a
nossa sensibilidade nos aponta para ela. O nós é o que sobra do encontro
entre o eu e o tu.
Talvez seja por isso que os outros nos despertem simpatias e antipatias.
Gostamos mais de estar com uns que com outros justamente por causa disso.
O que nos atrai no outro é a terceira pessoa que conseguimos fazer nascer
com o nosso encontro.
O namorado que chega não tem amor de pai para oferecer. E por isso não terá
o direito de afastar a menina de seu pai. Ele não tem amor de mãe, de irmão.
Ele é portador de um amor novo que chegou, e por isso encantou, mas não é
o amor único. Ele é recém-chegado, e ainda que a menina não tenha sido
amada o suficiente em sua casa, o amor de que ela dispõe na família é muito
importante para que continue se construindo como pessoa.
Vivendo a condição de novo que acaba de chegar, seu papel será, num
primeiro momento, observar. Amar é antes de tudo conhecer. É investigação
da história, dos sentimentos, dos desejos, medos e anseios. Só quem ama tem
disposição de ir além da superfície.
Não é tão simples saber se o outro nos ama ou não, mas há uma pergunta que
podemos nos fazer e que contribuiria para que nos aproximássemos de uma
resposta. Depois que ele chegou, a nossa vida, nosso mundo, diminuiu ou
dilatou-se?
Sempre que alguém chega à nossa vida nunca vem sozinho. Ele traz o seu
horizonte de sentido. Pessoas, coisas, valores, ideias. Traz o alicerce que o
faz ser o que é.
Se nossas relações com as coisas já são assim, cheias de cuidados, muito mais
deveriam ser com as pessoas. Nossos encontros, ainda que rápidos e
transitórios, deveriam ser moitivados pelo desejo de fazer crescer, melhorar,
avançar aqueles que encontramos, e a nós mesmos.
É muito interessante perceber que onde existe uma pessoa de verdade, isto é,
no sentido exato do termo, ali outras pessoas também estão sendo feitas. Isso
se explica por uma razão muito simples. O processo de tornar-se pessoa é
contagiante. Quando encontramos alguém que verdadeiramente está
desbravando seu universo de possibilidades e limites, de alguma forma nos
sentimos motivados a fazer o mesmo.
Não me leve de mim.
PEDIDO
Eu já tenho a mim.
Perto de mim...
Eu já tenho a mim.
todos os cantos.
O eu, na solidão, sem interação, não poderá crescer. O outro tem o poder de
indicar nossas possibilidades e limites. O que dispõe de si mesmo carece de
entrar na disponibilidade das relações. Elas o aperfeiçoarão.
Por outro lado, a conjugação deste nós, sem que antes tenha ocorrido a
disposição do eu, caracteriza-se como forma de comu-nitarismo infértil. A
qualidade da vida social está diretamente relacionada à qualidade das pessoas
e suas articulações particulares.
Relações que sequestram são aquelas em que um eu tenta sufocar outro tu,
reduzindo-o a mero instrumento de sua afirmação. O outro não é considerado
em sua alteridade, mas é visto como extensão das necessidades de quem o
enxerga.
outro é visto como um isso e não como um tu. Não há epifania da sacralidade
do outro. Feito um objeto, o outro perde o direito de ser ele mesmo,
desprende-se de sua identidade, de sua condição real, e passa a ser "coisa" na
mão de quem o desconsidera.
Por isso a dificuldade em tomar iniciativas. O cativeiro, por pior que seja,
acabou por se tornar um lugar seguro. O sequestrado está esquecido da vida
livre; já não sabe como é ser gente fora das prisões. Esqueceu que é rei e vive
como se fosse escravo. O tempo no cativeiro o fez acostumar-se com a
comida qualquer, com o amor qualquer, com o cuidado qualquer.
que temos é uma vítima acostumada com a violência que sofre. A vítima
torna-se a principal responsável pela condição mantida. É a violência
assumindo o seu caráter destruidor e definitivo. Violência sutil, velada, que
não tem as mesmas características do ato violento declarado.
Ato violento é tudo aquilo que atenta contra a pessoa e lhe causa danos. O
contexto da violência é bastante amplo. Ela pode se manifestar de formas
muito diversas, de maneira que podemos falar de violências declaradas e
violências veladas.
Por outro lado, as violências veladas são as invasões sutis que não podem ser
vistas com facilidade. Trata-se de um processo silencioso com o poder de
minar a subjetividade humana e privá-la de sua autonomia.
As relações humanas estão sempre vulneráveis aos riscos dos atos violentos
velados. Podemos identificar muitas delas, mas, neste momento, queremos
observar uma relação profundamente problemática nos dias de hoje: pais e
filhos.
Pais que não sabem como dosar a liberdade de deixar que os filhos cresçam.
Pais que não sabem realizar a intervenção necessária para ajudar a nortear o
crescimento. E a crise dos papéis. Filho já não sabe ser filho, na mesma
medida que pais não sabem ser pais.
AGRESSOR...
A boca com um pequeno corte no canto esquerdo dificultava sua fala. Voz
mansa, embargada por rompantes de choro doído. Choro de quem não sabe
pedir ajuda.
Ela era uma mulher bem-sucedida, emancipada. Bancária, mãe de três filhos
que já cursavam faculdade na capital, dividia o lar com seu marido, um
empresário que não se especializou na arte de amar.
Ele entrou na sua vida quando ela ainda era uma adolescente. O
casamento aconteceu dois anos depois de iniciado o namoro. Ela não teve
muita escolha. Vida no interior é assim. O casamento parece ser obrigação a
ser cumprida, ainda que não exista amor.
No dia em que me pediu ajuda, ela já acumulava cinquenta e dois anos, dos
quais trinta e quatro vividos ao lado do seu agressor.
Reconheceu que não sabia mais o que fazer, mas já sabia que tinha que fazer
alguma coisa. As agressões não estavam apenas na sua pele. Estavam em
toda a sua alma. Cicatrizes no corpo nos recordam o sofrimento do corpo,
mas há outras cicatrizes mais profundas que não conseguimos enxergar com
facilidade.
Perguntei a razão de sofrer calada até aquele dia, e ela me confessou que
tinha medo de que, ao contar para alguém, pudesse perdê-lo. Os filhos não
sabiam das agressões. Tudo foi muito velado ao longo da vida, e aquele
último episódio veio a público porque um vizinho escutou os objetos sendo
quebrados durante a agressão e entrou na casa.
Ela não conseguia olhar nos meus olhos enquanto me dizia tudo isso. Preferia
fixar a atenção no movimento das mãos que seguravam um pequeno pedaço
de barbante. Enquanto contava os fatos, aquele pequeno barbante era
enrolado e desenrolado nos dedos, como se aquele movimento representasse
o movimento da sua vida.
Ouvia sem saber o que dizer. Estava indignado. Indignação costuma cortar a
fluência das palavras. Ousei perguntar se ela queria separar-se dele, e
prontamente ela me disse que, se isso acontecesse, ela não saberia o que fazer
da própria vida. E o barbante continuou sendo enrolado nos dedos...
Não pude fazer muita coisa. Ela não quis denunciá-lo à polícia.
Embora eu soubesse que esta seria a atitude correta, tive que respeitá-la.
Aquela senhora não sabia viver longe de seu agressor. Amor de domínio,
amor estragado. O tempo prolongado no cativeiro, quase uma vida inteira,
retirou-lhe a coragem de falar dela mesma. Aprendeu a engolir o choro, a não
reclamar dos maus tratos. Subjugou seu coração ao domínio de um homem
frio e insensível que se proclamou proprietário de sua história. Ela permitiu.
A surra que deformara seu rosto começou leve. Antes de ser tapa, foi grito.
Permitido o grito, vieram os empurrões. Dos empurrões aos golpes violentos
foi um salto pequeno. Tudo começa pequeno nessa vida; e só cresce se o
permitirmos.
Aquela mulher autorizou o invasor. Abriu o portão para que ele viesse pisar o
seu jardim. E, depois de tanto tempo, descobriu que não possuía voz nem
coragem para proclamar a ordem de despejo.
O PEQUENO AGRESSOR...
Uma outra história, uma outra mulher. Nessa mulher não existiam marcas de
violência. O que havia era uma expressão de cansaço num rosto que parecia
ter envelhecido antes do tempo. O rosto é o retraio da história vivida.
Ela disse que não fez muito esforço para que o marido permanecesse.
Alimentava a ilusão de que com sua ausência o filho pudesse se tornar mais
dócil, mas isso não aconteceu.
Confessou-me que, mais doído que receber uma agressão física do próprio
filho, foi ouvi-lo gritar o desejo de matá-la.
Depois disso, ela percebeu que precisava de ajuda. Recorreu a uma psicóloga,
mas o menino se recusou a entrar no consultório. A psicóloga a alertara para
a necessidade de retomar a autoridade sobre a criança, mas ela não soube nem
tentar.
Reconheceu que errou por amar de um jeito errado. Não, ela não queria errar.
Queria apenas livrar o seu menino da infância triste que ela vivera ao lado de
um pai agressor. No ímpeto de fazer-lhe bem, acabou por alimentar no filho
uma personalidade sem controle e monstruosa.
Admitiu temê-lo. Reconheceu que escolhe as palavras para falar com ele,
porque teme sua reação. A relação está invertida. O filho assumiu o controle
da mãe. Ele tem acesso ao seu medo, sabe que é soberano porque reconhece a
fragilidade da mulher que não quer errar.
Não querer errar é uma fragilidade terrível. O medo do erro nos neutraliza as
forças e não nos permite ir além de nosso pequeno mundo.
A dura experiência de uma mulher que aos trinta e sete anos de idade é refém
de seu filho de nove é a prova concreta dessa afirmação. Os dois estavam
marcados por limitações fecundas: o menino, privado de ser educado de
maneira correta, e a mãe, privada de sua autoridade e de sua própria
liberdade. O
amor não pode ser cego. Caso contrário, ele nos coloca no cativeiro, gera
privações.
Ouvi o desabafo daquela mulher e confesso que não soube muito o que dizer.
Reverter um quadro como esse requer muita sabedoria. Sugeri ajuda
terapêutica para os dois.
Eles não sabem o que são na relação que estabeleceram. A mãe precisa saber
que é mãe e o filho que é filho. Como vimos anteriormente, a identidade
assumida nos posiciona a partir do que podemos, mas também do que não
podemos. Que mudem as mentalidades, porém uma coisa não poderá ser
mudada: pais e mães não têm o direito de abdicar da responsabilidade de
educar os seus filhos, e educação é o processo amoroso de estabelecer limites
não está acontecendo, então temos alguma subjetividade cortada, isto é, uma
pessoa ausente de si mesma, distante de seu papel.
Já somos livres, mas ainda não. Parece um jogo de palavras, mas não é.
Trata-se de uma perspectiva muito interessante que pode ser explicitada de
maneira simples a partir de uma frase: nem tudo o que temos já é nosso,
porque carece ser conhecido e conquistado.
É simples. Já parou para pensar nos inúmeros talentos e habilidades que você
possui, mas que ainda não desenvolveu por falta de cultivo? E disso que
estamos falando. Há talentos que só poderemos saber que os possuímos se
fizermos alguma coisa para despertá-los. É processual, isto é, carece de
tempo, disciplina, projeto.
Ao "tomar posse de si mesma", a pessoa torna-se livre para ser para o outro.
Um movimento gera o outro, de maneira que serei mais pessoa à medida que
for mais livre, e mais livre à medida que for mais pessoa.
Toda vez que sofremos uma violência, de alguma forma nossa liberdade é
ameaçada, isto porque um ato de violência tem o poder de repercutir
diretamente na estrutura do ser. A violência, declarada ou velada, aprisiona
nossa humanidade e a priva de viver o desafio de alcançar a si mesma.
Por isso, o desafio humano da liberdade consiste em tomar posse do que se é,
mas que ainda não foi totalmente alcançado. Para entendermos melhor essa
questão, vamos nos remeter ao contexto da filosofia de Aristóteles.
É "ato" tudo aquilo que já é. É "potência" tudo aquilo que o ato ainda pode
ser. Difícil? Creio que não.
Essência é o fundamento que gera a realidade, isto é, que a faz ser o que é, A
essência dá identidade ao ser. Refere-se ao âmago daquilo que é. Já o
acidente é apenas um elemento que se refere à essência, mas que não é
determinante para o que é essencial. Exemplo que ajuda a entender: uma flor
(essência) pode ser grande ou pequena (acidente). O tamanho da flor não
modifica a sua condição essencial. E uma flor, mesmo pequena.
Trazemos aqui as categorias aristotélicas para que elas nos ajudem a entender
o processo da liberdade em nós.
É por isso que podemos nos compreender como realidades processuais, isto é,
estamos em constante processo de feitura. O ser humano se constrói aos
poucos. Tudo já está nele, mas é preciso conquistar-se, alcançar a essência;
caso contrário, corre-se o risco de morrer sem ter chegado ao que
essencialmente se é.
O fundamental já nos foi entregue, mas o que agora temos diante de nossos
olhos é a árdua tarefa de levantar as paredes da construção que podemos ser.
Cada ser humano, ao seu modo e tempo, vive esta aventura de desvendar-se.
LIBERDADE ELETIVA
A liberdade está para o ser humano assim como a semente está para a árvore.
E potência. E vocação, mas é também luta e empenho.
Quando falamos dessa liberdade que já está no ser humano, mas que precisa
ser conquistada, estamos nos referindo a uma liberdade fundamental, que
também pode ser chamada faculdade entitativa, isto é, uma condição
irrenunciável, um estatuto que nos identifica e nos diferencia. Essa liberdade
fundamental é elemento constitutivo do ser humano. Está na semente, na
essência que se desenvolverá ao longo da vida.
Quando fico atento às escolhas mais simples, aquelas que a todo momento eu
realizo na minha história, de alguma forma já posso saber se estou
aprisionando ou se estou libertando a minha liberdade fundamental. Se nas
circunstâncias da existência faço escolhas que confirmam a minha liberdade
fundamental,, estou sendo livre de fato. Estou regando bem a minha semente,
para que ela se transforme na árvore que traz dentro de si.
O amor verdadeiro é o amor que faz ser livre, que faz ir além, porque não
ama para reter, mas para promover. Amor e liberdade são duas vigas de
sustentação para qualquer relação que pretenda ser respeitosa.
Se Deus nos fez livres, o amor de quem nos encontrar pela vida não pode ser
contraditório ao amor que nos originou. O outro que acabou de chegar não
tem o direito de se tornar obstáculo para "Aquele" que nos sustenta em nossa
condição primeira.
Se quiser nos amar, se quiser fazer parte de nossa vida, terá que ter diante dos
olhos o que somos, o que ainda podemos ser, e não o que ele gostaria que
fôssemos. O amor só acontece quando deixamos de imaginar. Só a realidade
autentica o amor, demonstra sua verdade.
Essas são as pessoas que nos ajudam a conquistar o que não sabíamos
possuir. Elas nos mostram o avesso de nossa realidade, porque o amor é uma
espécie de lente que amplia nossa autopercepção. O olhar de quem nos ama é
um olhar que nos devolve, abre portas. Por outro lado, se não somos amados,
corremos o risco de sermos roubados de nós. Corremos o risco de nos tornar
vítimas nas mãos dos outros e de sermos fechados nas estruturas minúsculas
de um cativeiro.
Uma coisa é certa: quanto maior é o bem que nos provocam, maior é o desejo
que temos de ficar por perto. O desejo sobrevive assim. O outro nos apresenta
um jeito novo de interpretar o que somos, e por essa nova visão nos
apaixonamos. O que nos encanta no outro é o que ele nos conseguiu fazer
enxergar em nós mesmos. Egoísmo? Não. Apenas o primeiro pilar do
conceito de pessoa alcançando uma profundidade ainda maior dentro de nós.
VIR A SER
que ainda não sei, mas que de alguma forma já sabe em mim.
me permito ser.
E quando não sou é porque o ser eu não soube escolher.
Essa reflexão é importante uma vez que um dos grandes limites encontrados
nas pessoas é a busca desenfreada do prazer, seguida pelo desconhecimento
da força que há no desejo.
Quanto maior é a fragilidade de uma pessoa, maior é a facilidade que ela terá
de entregar-se ao mundo do prazer, que naturalmente nega qualquer forma de
sacrifício. Incapacitada de viver os limites próprios de qualquer processo de
escolha e os sofrimentos que dele provêm, a pessoa passa a interpretar a vida
de maneira ingénua e simplista. Já na perspectiva do desejo, a vida é mais
real. Há sempre o espaço para o sacrifício, a luta, o desafio.
Por isso, faremos agora uma distinção que é de suma importância neste
momento de nossa reflexão: desejo e prazer.
Vejamos.
Toda vez que identificamos um amor que realmente nos fez crescer na vida,
de alguma forma queremos preservá-lo. São as relações duradouras, que
atravessam o tempo e ultrapassam o horizonte da utilidade.
Para a Filosofia, o desejo é uma forma de tensão que dire-ciona o ser humano
para alguma finalidade. Essa tensão recebeu muitos nomes ao longo da
história da Filosofia. Platão e os filósofos cristãos associaram o desejo à
imperfeição dos seres. Só deseja aquele que carece. E carecer é o mesmo que
ser imperfeito, limitado. Talvez seja por isso que o termo "desejo" tenha sido
tão mal interpretado pelo contexto religioso ao longo dos tempos. Sabemos
que, durante muitos séculos, o discurso religioso foi perpassado pela mística
do sofrimento e do sacrifício. Com isso, naturalmente o desejo passa a ser
interpretado de maneira rasa, estreita. O que vimos foi a direta associação de
desejo e pecado.
A Psicologia nos diz que somos o tempo todo território dos desejos.
O ser humano não vive sem desejar. Desejos podem ser conscientes ou não,
tudo dependerá da capacidade que cada um tem de conhecer-se. Freud é uma
referência para este assunto.
Desejo como toda e qualquer pulsão que nos movimenta rumo a alguma
realidade. Desejo como combustível da vida.
O desejo perpassa todas as nossas relações. É por isso que podemos dizer que
a duração de uma relação está diretamente ligada à permanência do desejo. O
que nos faz querer estar ao lado de alguém é o desejo. Não o mesmo desejo
de sempre, mas o desejo que se modifica à medida que vivemos o processo
natural da vida.
A permanência nas relações sinaliza que o desejo está vivo, que ele foi
mantido, que não morreu com o passar do tempo. Desejar é uma constante na
vida humana. Vivemos em torno dos nossos desejos. Eles nos movem para
irmos além.
Não, a vida não é um conto de fadas, mas nem por isso estamos privados da
felicidade que eles nos sugerem. Detalharemos melhor este assunto daqui a
pouco.
Precisamos entender que não existe ser humano ideal. O que existe é o ser
humano certo. O ser humano ideal não possui defeitos. O ser humano certo
tem defeitos, qualidades, e na soma de tudo é um resultado em que você
resolve acreditar.
O que podemos identificar nessas paixões é que as pessoas não são focos de
desejo, mas se limitam a serem focos de prazer. O prazer é passageiro, mas o
desejo não. Quando o outro cumpre o papel de ser o objeto do meu prazer, eu
o reduzo à condição de coisa. Essa "objetificação" já se caracteriza como
sequestro. Há uma subjetividade sendo desconsiderada, uma vez que o outro
foi reduzido à matéria de minha satisfação temporária.
Comida rápida, serviços rápidos, porque a vida não pode nos esperar. É o
pragmatismo tomando conta de nosso jeito de ver, viver e de ser no mundo.
Falaremos mais detalhadamente sobre isso mais à frente.
Os programas de televisão anunciam, o tempo todo, as novidades do
mercado. Aparelhos que prometem emagrecer os gordos sem que eles saiam
do sofá. Cápsulas que capturam as gorduras dos alimentos antes de elas
serem absorvidas pelo organismo. Injeções milagrosas que fazem crescer
músculos em corpos magros. Cirurgias que retiram as gorduras — ainda que
ofereçam riscos —realizadas em clínicas que não oferecem a menor condição
de segurança ao
Neste mundo de tantas pressas, não há espaço reservado para o discurso que
exige calma e tranquilidade para ser entendido. Entrevistas fúteis ocupam
nossas tardes de domingo. Celebridades sem nenhuma opinião formada
aparecem nas telas em rede nacional para repetir seus discursos tolos sobre
questões tão sérias. Gente que posa nua nas revistas e se torna referência para
nossos filhos. Somos obrigados a suportar os canais abertos de televisão com
sua programação artificial, suas videntes tão cegas para as reais necessidades
do nosso povo. Um povo que precisa de eu li ura, informação e
entretenimento de qualidade.
O prazer é poço sem fundo. E círculo vicioso. Cria dependência que nos faz
procurar por ele o tempo todo. O desejo, ao contrário, cria permanência,
porque acalma. Sabemos onde ele fica. Ele movimenta para novas buscas,
mas não desorienta. É alimento integral, enquanto o prazer é alimento
refinado.
Essa é regra que tem prevalecido. Nada pode nos privar do prazer. Sacrifícios
não serão bem-vindos nos nossos tempos. As pessoas se esmeram por buscar
os atalhos, porque não há disposição para trilhar a estrada mais longa, ainda
que ela seja repleta de belezas e surpresas.
Prazeres temporários não podem ser definitivos para nós. Se eles passaram, é
necessário prender-se no desejo. Outros prazeres virão. É um processo
natural. Prazeres não nasceram para serem definitivos, mas o desejo sim. Isso
é fundamental para a qualidade de nossa existência. O importante é que a
gente não coloque os praxe ivs acima dos desejos.
feito de vagarczas. Assim como ter que andar mil quilómetros, mas certos de
que há um lugar a se chegar. A dureza da viagem e o cansaço serão sempre
vencidos cada vez que o desejo for relembrado. Não haverá prazer durante
todo o trajeto. Por vezes, os limites serão aflorados, mas o desejo de chegar
nos manterá firmes.
Cada vez que identificamos nossa incapacidade de manter acesa a chama dos
nossos desejos, e percebemos que somos afeitos à manutenção de prazeres
transitórios, revela-se diante de nossos olhos a oportunidade de romper com
mais essa forma de sequestro da subjetividade, tão comum nos nossos dias.
Dessa perspectiva, o que resta é a infantilização cada vez mais frequente das
pessoas; o não amadurecimento, o prolongamento da adolescência e a
incapacidade de viver o segundo pilar do conceito de pessoa: a
disponibilidade de o outro. Vida sem sacrifício é vida anestesiada, irreal,
fortemente marcada pelas estruturas romanceadas dos contos de fadas e pela
visão mágica da realidade.
A vida é o acontecimento de toda hora. Diante deste fenómeno que não pára,
o ser humano sente-se constantemente impelido a buscar respostas que o
ajudem a compreender o significado de uma gama de acontecimentos.
Assim corno o corpo precisa amadurecer para ser capaz de produzir uma
outra vida, também nosso cérebro necessita amadurecer para executar
raciocínios mais complexos.
Recordo-me que, quando era criança, sempre que trovejava eu ouvia minha
mãe dizendo que o trovão era a manifestação da braveza de Deus com
algumas pessoas no mundo. Escutava aquela explicação e nela colocava
minha confiança. Deus estava bravo, mas não era comigo. Era com outras
pessoas. A frase de minha mãe, ainda que absurda para um adulto, cessava,
no meu coração de criança, o medo dos trovões. Dar nome ao medo é, de
alguma forma, começar a vencê-lo. Os mitos nascem assim. E diante de um
não saber dizer que ele é construído.
Com o tempo, depois que aprendi que os trovões são fenómenos naturais,
causados por descargas elétricas, aquela explicação mitológica deixou de ter
valor para mim.
Conta histórias de quem já não tem mais boca para contar. Revela, por meio
do símbolo, o que só os mortos poderiam revelar.
Símbolos são testemunhas históricas. Por meio deles podemos fazer a leitura
dos pensamentos que prevaleceram ao longo do tempo, pois eles condensam
um universo inesgotável de informação.
Podemos dizer que muitos mitos são tão sedutores que podem ser
comparados às catedrais. Um deles é o mito do amor romântico.
Histórias contadas pelo povo são histórias que narram sobre o povo. E assim.
As construções míticas e as elaborações folclóricas de uma cultura revelam o
bojo de suas compreensões e estruturas. Somos nós os escritores dos contos
que nos contam.
Veja bem. Nos mais diversos relatos de amor que pertencem à literatura, o
mito do amor romântico prevalece no momento em que a realidade é
construída a partir de seres humanos idealizados. O velho chavão que
geralmente vem cravado no final das histórias — "e viveram felizes para
sempre" -
A vida real não corresponde aos relatos dos contos de fadas. Não estamos
acostumados a encontrar fadas madrinhas que transformam, num toque de
mágica, a borralheira em princesa admirável. O processo humano é doloroso.
Nossos sapatos não são de cristais, nossos cavalos são mancos e não há
carruagens paradas às portas de nossas casas esperando para nos levar aos
destinos de nossos sonhos. A vida nos mostra que transformações mágicas
não existem, da mesma forma como amores perfeitos estão distantes de
nossos olhos.
O conceito de amor não pode ser aprisionado por esta visão romântica, que
não sabe considerar os limites como positivos para o crescimento humano.
Tampouco pode reduzir o desejo à condição de prazer.
O sonho que sonhamos não pode ser projeção infértil. Ele tem que estar
sempre preso à realidade, afinal, é nela que estamos sustentados.
Somos preparados para o sonho alto, mas ainda não aprendemos a nos manter
vivos quando a vida é rasa. Nossa educação não costuma nos preparar para os
fracassos. Não somos treinados para o último lugar do pódio, mas sim para o
primeiro.
A infância é o tempo dos heróis. Homens e mulheres dotados de poderes
extraordinários povoam o universo das crianças. Era como se nosso limite
original fosse esquecido cada vez que nos colocamos nas asas do super-
homem, ou empunhamos o laço da mulher maravilha.
Um herói é, para uma criança, uma idealização que lhe permite criar um
mundo próprio. Nesse mundo, joelhos esfolados não existem. O que existe é
a força que não se dobra, é o braço que não se cansa, é o herói que sempre
vence.
Pode nos parecer estranho, mas essa compreensão também está, de alguma
forma, enraizada no mito do amor romântico, que tantas vezes determina as
realidades da vida, das mais simples às mais complexas.
Pode nos parecer estranho, mas quanto maior é a negação dos limites que nos
são próprios, maior parece ser o domínio que eles exercem sobre nós.
Acolher os limites que lhes são próprios é um jeito da pessoa reconciliar-se
consigo mesma.
Pois bem, sair do contexto dos heróis requer esforço. Olhar para si e
reconhecer que mesmo sem asas será possível alcançar sucesso na vida será
uma transposição considerável.
Um círculo não pode ser quadrado. Esta regra vale para o que estamos
dizendo. O grande problema das projeções, que são próprias dos contos de
fadas e que expressam bem o mito do amor romântico, é justamente a
tendência humana de querer que o círculo seja quadrado.
cultivo constante que nos aproxima da realidade e que nos capacita para
continuarmos desejando que o outro continue ao nosso lado.
Amar é exercício de descobrir o que o outro tem de mais lindo, mas também
de mais vergonhoso. Amores perfeitos só existem nas projeções. Ou nos
jardins. .
O único amor perfeito que conheci ao longo de minha vida foi nos jardins. E
uma florzinha miúda que tem uma beleza simples e que requer muito
cuidado. O outro amor perfeito só existe nos livros e nas histórias das fadas.
O mito do amor romântico parece fortalecer nas culturas o desejo que o ser
humano tem de encontrar no seu mundo exterior a solução para suas
imperfeições. E quase uma camuflagem. Desejosos de curar as consequências
de nossas precariedades, passamos a buscar nas coisas, nas pessoas e nas
situações, o remédio que nos sanaria de nossas incompletudes.
Aqui nasce o grande problema que queremos analisar. Veja bem, diante da
vida, que não é estática, tal conceito apresenta-se como amórfico e pouco
sugestivo. Diante da ideia de que para ser perfeito é preciso que já esteja
pronto e irretocável, nasce uma contradição com a existência, que é processo
constante de feitura e re-feitura.
Mas nem sempre o que ocorre é isso. É quase um movimento natural na vida
humana a busca pelas pessoas perfeitas que venham suprir nossas
imperfeições. O poder do mito é que move essa procura. Inconscientes ou
não vivemos uma busca desonesta de pessoas que correspondam às
expectativas de nossas projeções e idealizações.
Já tinha envelhecido.
Passa a querer e desejar o que não existe, o que não é real. E, quando
desejamos dizer a verdade, nem sempre temos a possibilidade.
SUPERANDO AS IDEALIZAÇÕES
O ideal, o projetado, só tem sentido para a vida humana se ele a conduz para
o movimento que a aprimora. Em outras palavras: o sonho só vale a pena se
estiver preso à realidade.
Estando preso ao que é real, o sonho perde o perigo de ser infértil, mas passa
a representar, para aquele que sonha, um motivo a mais para ir além.
Uma coisa é certa: nós sabemos quem somos, mas os outros nos imaginam.
Essa frase expressa bem o processo de inadequação a que anteriormente nos
referíamos. No ato de imaginar, o outro constrói a pessoa ideal, e essa pessoa
ideal não existe, pois o próprio conceito já nos diz. Ideal só existe na idéia.
É dessa perspectiva que nasce a compreensão dita anteriormente, mas que
vale ser ressaltada. Não existe pessoa "ideal", mas sim pessoa "certa". A
pessoa certa condensa defeitos e qualidades, e a somatória de tudo resulta
uma realidade pela qual o outro se apaixona.
Acredito que haja uma forma interessante de abrir as portas desse cativeiro
em que tantas vezes entramos, ou somos colocados. Não acredito que
tenhamos que procurar as realidades ideais, mas sim as realidades certas. A
profissão ideal não existe. O que existe é a profissão certa. Pronto. Com o
conceito de "certo" podemos resolver o impasse.
"Certo" também diz respeito àquilo que é verdadeiro. Pois bem, a verdade
não é expressão de perfeição, mas é demonstração da realidade como ela é. A
verdade é a coerência estabelecida entre o discurso e a realidade sobre a qual
o discurso foi feito.
E por isso que as relações humanas são como pontes. Estamos sempre em
travessia. Há sempre uma distância a ser percorrida, um passo a mais a ser
dado no conhecimento do outro.
O EQUÍVOCO DO AMOR
O rapaz pensou que amava. A moça estava certa do amor que sentia. Duas
pessoas numa mesma relação e com perspectivas distintas. Namoro e
casamento em um curto espaço de um ano. Ele, um advogado já bem-
sucedido, apesar da pouca idade. Ela, uma contadora formada que ainda não
sabia o que fazer com o diploma que recebeu da faculdade.
O rapaz cresceu num contexto de muitas exigências. Ele não fora educado
para perder. Desde muito cedo fez da sua vida uma coleção de
reconhecimentos e premiações. O melhor no colégio, o melhor nos esportes e
o melhor na faculdade. Em casa, prevalecia uma frieza na relação com os
pais. Amor real, mas amor distante, coisa de quem não descobriu a beleza de
poder ser frágil e de ter um colo de mãe onde se possa chorar.
Carinho não lhe faltou, mas, no excesso de íelo que lhe dispensaram, os pais
esqueceram de educá-la Dará a coragem.
Depois de alguns anos juntos, o casamento se desfez. A moça foi embora sem
deixar muito clara a razão da desistência. O rapaz não conseguiu assimilar a
perda.
Quis saber o jeito como ele foi criado. Notei que em sua educação não havia
muito espaço para a fragilidade. Desde muito cedo sua relação com os pais
lhe conduzira pelos caminhos das exigências. Aquele rapaz não sabia perder.
Pude perceber que todas as justificativas que ele usava para explicar o
rompimento eram formas de eximir-se do fracasso. Ele não queria
recohhecer-se perdedor.
Não quis mergulhar muito nesse mérito. Durante nossa conversa, resolvi
desafiá-lo ao reconhecimento do fracasso. Pedi que não justificasse nada, mas
que apenas reconhecesse que, naquele momento da vida, o lugar do pódio
que lhe pertencia era o último lugar.
Ele me olhou assustado. E foi então que eu tentei lhe convencer que perder
não é tão vergonhoso assim, e que não saber perder é um jeito estranho de
perder sempre. Ou assimilamos o que perdemos hoje, e assim perdemos de
uma única vez, ou então fingimos que não perdemos, e assim perderemos a
vida inteira. Ele concordou.
O rapaz, pelo pouco que pude escutar, havia investido muito para transformar
a moça na mulher dos seus sonhos. Ele acreditou que poderia libertá-la de
todos os condicionamentos que a família lhe legara. Para ele, afastá-la de seu
contexto familiar seria o melhor jeito de ajudá-la. Ele não queria que ela
continuasse levando adiante a fragilidade que tanto marcara sua
personalidade ao longo de sua vida. Para ela, fez inúmeros projetos, mas
nenhum foi adiante. Ele não soube conviver com a fragilidade da mulher que
elegera como esposa.
Por não ter tido a proteção necessária, o rapaz apreendeu boa parte da vida na
solidão. Com isso, projetou em sua cabeça que a mulher ideal deveria ser
também assim. Bonita, livre, bem-sucedida. Mas a mulher com quem ele
havia se casado não era nada disso. Ele a quis construir.
Por amá-lo de verdade, conhecedora de quem ele era e do que ele pretendia, a
moça até que tentou mudar. Mas as exigências eram demais. Ela precisou
abrir mão de quem ela era. Não havia honestidade na proposta para o seu
crescimento, mas uma competição. O rapaz não sabia ficar sem competir.
Em tudo ele queria ser o melhor. E, em nome de um amor que ele julgava
sentir por ela, empenhou-se por torná-la órfã, com o objetivo de curar um
pouco de sua orfandade.
Parece estranho, mas foi justamente isso que mais tarde ele, de modo
envergonhado, pôde admitir. Foi então que ele disse: "Eu não sei se em
algum momento eu a amei de verdade!".
Relações dessa natureza são comuns entre nós. Sequestros velados. Pessoas
que, na incapacidade de compreender os limites de suas histórias pessoais,
passam a buscar nos outros os preenchimentos de suas lacunas. Amores que
não são amores. Amores que se caracterizam como competições sórdidas,
desumanas, ainda que pareçam cuidado e atenção.
Nem sempre nossas intenções são conscientes. Nem sempre agimos com
clareza. Boa parte de nossas reações e atitudes obedecem à ordem de nosso
mundo inconsciente, em que a vida passada permanece atuando e
determinando nosso jeito de ser. Tomar consciência das intenções que
norteiam nossos atos é o primeiro passo para reorientarmos nossa conduta,
retirando do amor que amamos o poder tão destruidor que tantas vezes lhe é
inerente.
Conscientizar-se de que sua história como filho que não foi amado como
deveria ter sido era a génese de sua indisposição com a mulher com quem
havia se casado foi um grande passo para a vida do jovem advogado. Não se
trata de descobrir culpados ou inocentes. Trata-se de desvendar os papéis dos
personagens da trama. O que ele não suportava em sua esposa era o que dele
nela estava refletido. Vê-la frágil e cuidada pelos seus progenitores
recordava-lhe também sua condição de homem frágil que, ao contrário dela,
raramente encontrou abrigo para se esconder.
porque lhe faltou liberdade para isso. A família que ela tinha era a família que
ele gostaria de ter tido. Mas, na incapacidade de reconhecer tudo isso,
justamente por ser um processo inconsciente, ele revestiu esse desejo de uma
forma cruel de aversão, minando cada vez mais a relação dos dois.
Ao dizer "eu não suporto a família dela", aquele rapaz que já ganhou tantas
causas na vida assumia, sem saber, que a maior de todas as causas ele já
havia perdido. Aquela família era o retrato de sua frustração. A fotografia
revelava o que na sua vida sempre foi ausente. Olhar aquele quadro era
insuportável, e, por isso, o desejo de ficar distante daquela cena.
O mais sábio teria sido tomar consciência de tudo isso antes da separação.
Talvez assim teriam tido tempo para não deixar o desgaste acontecer. Em vez
de rechaçar os cuidados da família dela, ele teria se deixado cuidar por eles
também, podendo assim curar suas ausências com a família recém-chegada.
Tentaria dosar a atenção exagerada com a coragem a ser alcançada. Os dois
estavam nos extremos. Ele, na necessidade de aprender a ser frágil, ela, na
necessidade de aprender um pouco de coragem para viver sem os vínculos
que não a deixavam ir adiante. Ambos precisavam assumir um pouco um do
outro.
Mas não houve tempo para essa partilha. O casamento se desfez e o fracasso
se instaurou de forma avassaladora.
Não houve tempo para o amor real. O que houve foi a construção de uma
realidade fortemente marcada pelo desconhecimento pessoal. Relação
diabólica, infértil e imatura. Ambos perderam.
EGOÍSMO
Sinto falta de você. Mas o que sinto falta é de tudo o que é seu e que me falta.
Mesmo que pareça ser. Eu não tenho o direito de adentrar o seu território
Com o objetivo de lhe roubar a escritura. Amor só vale a pena se for para
ampliar
o que já temos.
Sequestrados e seqúestradores,
A gente corre o risco De não saber exatamente quem somos.
Mas o tempo de saber já chegou. Não quero mais conviver com meu lado
obscuro,
Quem sabe assim eu possa Ainda que por um instante amar você de verdade.
Quando dizemos que uma pessoa é iluminada, nosso jeito de dizer já está
marcado pelo poder da linguagem simbólica. Há alguma coisa na pessoa que
nos faz reconhecer as características que são próprias da luz, mas ainda não
temos a perspicácia de identificar, por meio de uma linguagem lógica, o que
na pessoa reconhecemos iluminado.
O diabólico também está presente nos ritos religiosos. Cada vez que a
sacralidade do que queremos celebrar esbarra nos limites de nossa linguagem,
corremos o risco de dizer ou representar, por meio de gestos, o absolutamente
contrário do que gostaríamos.
Falar de relações simbólicas é o mesmo que falar de relações que nos fazem
avançar. O símbolo estabelece pontes que favorecem travessias.
Relações simbólicas são capazes de nos fazer voltar para o que somos.
Relações diabólicas nos distanciam de nós mesmos. Podemos aqui, de
maneira simbólica, reportar-nos à temática que já apresentamos
anteriormente a respeito do conceito de pessoa.
diabólico desintegra, mas o simbólico congrega. Por isso, quanto maior for o
número de relações simbólicas estabelecidas, maior será o processo de
conquista de si mesma que a pessoa viverá.
Todo modelo de santidade cristã tem sua raiz na pessoa de Jesus, Deus
encarnado na história. Jesus representa para o cristianismo a grande
manifestação do Sagrado no tempo. Nele, toda uma Antropologia é proposta,
de maneira que, na expressão bíblica de Pilatos — "eis o homem"—, toda a
humanidade recebe a revelação máxima de sua condição. Vale considerar que
aTeologia Cristã considera que todo discurso sobre Deus é também um
discurso sobre o ser humano, de maneira que a plenitude da revelação de
Deus, em seu filho Jesus, está a serviço do autoconhecimento que a
humanidade precisa viver.
Vale a pena recordar uma sequência narrada nos evangelhos sinóticos que
testemunha muito bem a força desses seus gestos.
A cena é dramática, mas é também fascinante. Uma mulher está prestes a ser
apedrejada. Foi pega em adultério e a lei de Moisés prescrevia condenação
pública para esses casos. A multidão está convencida de que o certo se
cumprirá. Matar em público é um jeito de manter a ordem, de fazer
prevalecer a força da lei.
No meio de tantas vozes que gritavam, Jesus não tinha muito o que fazer. É
muito difícil ser voz única, gritando uma sentença diferente no meio de uma
multidão que grita absolutamente o contrário. Certamente ele fez um esforço
de adentrar a multidão para que tivesse um acesso maior à condenada. Deve
ter aberto discretamente espaços entre as pessoas que circundavam e
compunham a moldura daquela cena.
Jesus chegou perto. Preferiu não gritar. Utilizou-se de uma linguagem que é
infinitamente superior à linguagem das palavras: o olhar. Fixou os olhos na
mulher e começou a dizer, sem dizer, tudo o que ela precisava ouvir naquela
hora. Aquela criatura jogada ao chão protagonizava a dura experiência de um
sequestro que durou sua vida inteira. Entregue à prostituição desde muito
cedo, a mulher experimentava naquela hora o risco de morrer sem que
alguém lhe pagasse o valor do resgate.
Jesus, no ato de olhar, começa a devolver àquela mulher tudo o que a vida lhe
havia retirado. Era como se os portões de um porão escuro recebessem uma
chave iluminada de novas esperanças. A mulher não sabia que sabia.
Esquecera do valor que possuía. A vida vivida na condição de objeto de
prazer, o corpo entregue à condição de praça pública, lugar comum que não
merecia cuidado, tudo era fator que a prendia ao chão e que a convencia de
que estava recebendo o destino merecido.
Mas os seus olhos encontram os de Jesus. Ela percebe que eles não falam a
mesma coisa que a multidão. Nos olhos daquele homem recém-chegado ela
identifica um poder superior a tudo o que ela já tinha encontrado na vida.
Eram olhos que possuíam o dom de realizar devoluções. Naquele olhar estava
sendo devolvida a sua dignidade, o seu desejo de continuar viva, de
reencontrar o sentido do seu corpo, e até mesmo alimentar a esperança de um
amor que a pudesse amparar na vida.
Ela, que tantas vezes fora roubada, levada de si, agora estava diante de um
homem que lhe devolvia novamente o que aos poucos a vida lhe levara.
Aquela que estava prestes a ser morta retoma a vida. O cativeiro foi aberto. O
resgate foi pago. Tudo por causa de um gesto simbólico, pleno de significado,
que foi capaz de devolver à mulher a condição de pessoa.
Nem sempre também é fácil ser portador de um olhar raro. É mais fácil
integrar a multidão e suas soluções simplórias. Interpretar a lei ao pé da letra
dá menos trabalho que descobrir as chaves que nos possibilitam
interpretações mais profundas.
Olha devagar para cada coisa. Aceita o desafio de ver o que a multidão não
viu. Em cascalhes disformes e estranhos diamantes sobrevivem solitários.
Não importa o que fizemos até agora, mas o sim o que podemos fazer com
tudo o que fizemos até agora.
Creio que sempre é tempo de abrir cativeiros. Ou para que o outro saia ou
para que nós saiamos. A qualidade da nossa vida depende da qualidade de
nossas relações. Reorientar a conduta, sobretudo quando identificamos os
desvios que nos levam para longe de nós mesmos, é a atitude mais sábia que
podemos adotar. Reassumir a capacidade de voltar à posse do que somos e
conseqúentemente dar ao outro o melhor que podemos oferecer é um jeito
interessante que temos de humanizar-nos ainda mais.
Preconceitos,
visões
apressadas,
conceitos
distorcidos,
Eu não acredito que você tenha chegado ao fim deste livro sem que tenha se
confrontado com algumas coisas que aqui foram ditas. Este não é um livro de
teorias, mas é um livro ditado pela vida. Ele não nasceu das teorias que me
acompanham. Foi o contrário. Ele nasceu da vida que antes eu vi, ouvi e vivi.
Somente depois eu quis escrevê-lo. Antes, a vida; depois, o livro.
E por isso que eu gostaria de finalizá-lo do mesmo jeito que ele começou em
mim: com perguntas. Dessa forma ele não termina, mas continua em você,
permitindo-me a proeza de continuar escrevendo de maneira tão eficaz e
frutuosa. Se este livro continuar em você, conduzindo-o pelos caminhos
tortuosos de sua construção humana, então já valeu tê-lo escrito.
E assim, dando continuidade ao processo que não pode parar, deixo algumas
perguntas para que este livro não termine em sua última página escrita.
O contrário também precisa ser perguntado. Quais foram as pessoas que mais
deixaram marcas negativas dentro de você? Quais são as piores lembranças
que estão registradas em sua memória afetiva?
Será que você já foi capaz de pagar o resgate de alguém? Com sua palavra,
com sua atitude, com o seu jeito de viver?
Se hoje você tivesse que classificar sua postura no mundo, você se definiria
como uma pessoa simbólica ou diabólica?
Sejam quais forem as respostas, não tenha medo delas. Mais vale uma
verdade amarga que tenha o poder de nos fazer crescer do que uma mentira
adocicada que nos mantenha acorrentados no cativeiro da ignorância. Hoje é
dia de resgate. A porta já foi aberta. E só sair.
De seu mármore.
(Fim)
http://groups.google.com.br/group/digitalsource
http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros