Quem Me Roubou de Mim - Padre Fabio de Melo

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Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais


lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a
um novo nível.
QUEM ME ROUBOU DE MIM?

O seqüestro da subjetividade e o desafio de ser pessoa.

Padre

Fábio de Melo

http://groups.google.com.br/group/digitalsource

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livro livremente.

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pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.

EDITORA CANÇÃO NOVA

Apresentação, 5

UMA HISTÓRIA PARA COMEÇAR, 7

O SEQÜESTRO DO CORPO: A TRAMA DO ESQUECIMENTO DOS


SIGNIFICADOS, 8

A CONDIÇÃO DE VÍTIMA, 12

O PREÇO DO RESGATE E SEU VALOR SIMBÓLICO, 13

DEPOIS DO CATIVEIRO, O APRENDIZADO, 15

A SUBJETIVIDADE E SUAS IMPLICAÇÕES, 18

O SEQÜESTRO DA SUBJETIVIDADE, 20

SEQÜESTRADOS E SEQÜESTRADORES, 22

O MUNDO E SEUS CATIVEIROS, 25

DOIS CASOS DE SEQÜESTRO, 30

O ENCANTO DE SER PESSOA, 33

RELAÇÕES QUE SEQÜESTRAM, 38

VIOLÊNCIAS DECLARADAS E VIOLÊNCIAS VELADAS, 40

DUAS HISTÓRIAS PARA AJUDAR A ENTENDER, 43

LIBERDADE: DO SIGNIFICADO À REALIDADE, 45

EXERCITANDO LIBERDADES: LIBERDADE FUNDAMENTAL E

LIBERDADE ELETIVA, 47

ENTRE O DESEJO E O PRAZER, 49

A VIDA SOB O FOCO DO DESEJO, 55

A VIDA SOB O FOCO DO PRAZER, 57

O MITO E SUAS SUGESTÕES, 60


O MITO DO AMOR ROMÂNTICO, 63

AMOR PERFEITO? SÓ NOS JARDINS, 67

SUPERANDO AS IDEALIZAÇÕES, 71

O EQUÍVOCO DO AMOR, 74

CONSTRUINDO RELAÇÕES SIMBÓLICAS, 78

JESUS E SEU OLHAR SIMBÓLICO, 81

ABRINDO OS CATIVEIROS QUE EXISTEM EM NÓS,

APRESENTAÇÃO

Este livro não é um ensaio teológico. Também não é um tratado de


antropologia especializada. É apenas a satisfação de um desejo simples,
menor.

Desejo de abrir portas, romper cativeiros, acender Iuzes, propor liberdade.


Desejo de expor o assombro que tenho experimentado ao ver as dores do
mundo, os calvários da humanidade.

As dores são muitas. Então quis eleger uma delas: o seqüestro da


subjetividade. Um roubo silencioso que nos leva de nós: acontecimento
comum, mas não noticiado, que fragiliza e impossibilita o humano de viver a
realização para a qual foi feito.

A vida humana é uma constante experiência de travessia. Estamos em êxodos


contínuos, em processos de deslocamentos intermináveis, porque, enquanto
estivermos vivos, seremos convidados para o movimento que nos
proporciona a superação de estágios, condições e atitudes.

O ser humano se encontra cm constante evolução. Nunca estará completo. A


morte nos surpreenderá e ainda estaremos em processo de feitura. Um destes
processos é a travessia: "da condição de indivíduos à condição de pessoas".
É simples. Nascemos indivíduos, mas a condição de pessoa é um lugar a ser
alcançado. Precisamos, pela força do aperfeiçoamento, chegar aos dois
pilares sobre os quais o conceito de pessoa se estabelece. Ser pessoa consiste
em "dispor de si e dispor-se aos outros".

O seqüestro da subjetividade é um acontecimento que atenta diretamente


contra o primeiro aspecto deste processo: "a disposição de si".

Toda relação que priva o ser humano de sua disposição de si, de sua pertença,
ou seja, a capacidade de administrar a própria vida, alguma fôrma
caracteriza-se como "seqüestro da subjetividade"!

A palavra "seqüestro" já é absolutamente familiar a todos nós.

Habitualmente acompanhamos pelos noticiários casos de pessoas que são


separadas de suas famílias e mantidas em cativeiros. E o seqüestro do corpo.

Estabelecida à ruptura, começa a negociação entre familiares e


seqüestradores, O

desfecho desta modalidade de violência dependerá do resultado da


negociação.

O seqüestro do corpo é uma fôrma de roubo. Alguém foi materialmente


levado de seu meio.

O livro partirá desta forma de seqüestro. Sempre que uma pessoa é retirada de
seu mundo particular, e subjugada aos maus tratos de um cativeiro, inicia-se
nela um processo terrível de rendição que a colocará na condição de vítima.
Vitimada, deixa de ser proprietária de seu destino e passa a obedecer às
ordens de seu seqüestrador.

Paralelamente ao seqüestro da materialidade, colocaremos a questão do


seqüestro da subjetividade, uma espécie de roubo que não é material, não
possui cativeiros materiais, localizados, e que pode ter início nas relações que
estabelecemos.
A partir dessa forma de seqüestro nasce o mal-estar psicológico, o sofrimento
que não tem localidade no corpo, mas possui o poder de adoecê-lo.

Fragilizando profundamente o ser que sofre, uma vez que o seqüestro lhe
retira da centralidade de suas próprias decisões.

São muitas as modalidades de seqüestro da subjetividade. Qualquer forma de


relação humana corre o risco de se transformar.

Em roubo, perda de identidade, basta que as partes se percam de seus


referenciais e se ausentem de si mesmas. Marido e mulher, namorados, pais e
filhos, traficantes e dependentes, amigos, dirigentes e dirigidos, enfim, são
muitas as relações que representam perigo a nossa subjetividade. Requer
prudência, cautela, para que não sejamos vitimas ou vitimadores.

É importante salientar que aqui a reflexão está amparada nos princípios


evangélicos. O porto do qual partimos é a experiência concreta de Jesus e sua
palavra, capaz de promover a vida e a liberdade necessária para bem vivê-la.

O contexto da palavra de Jesus é o simbólico. Símbolo é a realidade que


estabelece pontes, gera entendimento e superação. A vida e a postura de Jesus
estão sempre em oposição declarada às realidades diabólicas de seu tempo.

Diferente do simbólico, o diabólico quebra, desagrega, impede. Seqüestros da


subjetividade possuem o poder de quebrar a estrutura daqueles que o
experimentam. É a partir disso que analisaremos as relações humanas como
simbólicas e diabólicas, identificando nelas os caminhos dos seqüestros e das
devoluções.

Relações simbólicas são aquelas que nos permitem o crescimento e a


superação de nossos limites porque são capazes de estabelecer pontes que nos
permitem travessias. Relações diabólicas são aquelas que nos paralisam e nos
fazem retroceder porque obstaculizam os caminhos.

Este livro quer ser simbólico, porque está comprometido com o desejo de lhe
fazer bem. Ele é uma aventura desejada. Considere-o como uma pequena
viagem, cujas estradas passam pela vida de muitas pessoas que cruzaram o
nosso caminho.

Para que esta viagem seja tranqüila, algumas "placas" serão nossos guias. São
conceitos da Filosofia e da Teologia cristã que serão explicitados. Se, em
algum momento da leitura, o texto lhe parecer difícil, vença o desafio. Não
permita que a preguiça lhe seqüestre. Vá adiante. Todo livro precisa nos
acrescentar algo novo. Toda forma de saber nasce de um não saber.

Pronto. A viagem vai começar. Agradecemos sua presença.

Precisamos dilatar as consciências que temos de nós mesmos, É assim que


Deus ganha espaço em nós. Quanto mais consciente* do que somos, fazemos
e podemos, seremos homens e mulheres mais realizados, prontos para o
desafio de transformar o mundo.

A Teologia Cristã tem avançado muito na compreensão de que a realização


humana é o mesmo que a revelação de Deus. Esta tem sido nossa crença.
Onde houver um ser humano realizado, nele Deus estará revelado.

Queiramos isso. Sempre. Até o fim. O fim que não tem fim.

UMA HISTÓRIA PARA COMEÇAR...

Ela veio de longe, filha de uma família libanesa, chegou ao Brasil


acompanhado de um parente distante. Os pais já estavam mortos. Veio ao
encontro de um tio que morava por aqui. A idade era pouca. A solidão era
muita.

Chegou, e já tinham arranjado um casamento para ela. Não soube se opor.


Estava frágil demais para querer alguma coisa. Casou-se na primeira semana
que pisou em nossas terras.

Trinta e dois anos se passaram. Oito filhos; sete homens e uma mulher. Cinco
netos e uma história de sofrimento que parece ter vindo de algum clássico da
literatura. Nunca houve amor entre ela e o marido. Nos primeiros dias de
convivência ele deixou claro, por meio de sua conduta, que a vida ao seu lado
não seria fácil. Ela não soube discordar. As primeiras agressões foram
mantidas em segredo. Mais tarde, elas se tornaram publicas. Pouco a pouco, o
respeito deixou de existir por completo.

A mulher não sabia sorrir. Em nenhum momento de nossa conversa consegui


identificar nela algum rastro de alegria ou esperança. Os filhos já criados
herdaram do pai a mesma personalidade. A única filha mulher rebelou-se
contra a estrutura familiar e foi embora para nunca mus voltar.

A mulher não sabia o que me pedir. Estava profundamente aliviada com a


morte trágica de seu marido. Estava confusa. Sentia no peito um alivio, mas
ao mesmo tempo sentia o peso de não saber por onde recomeçar. Confessou
ter medo de tudo. Medo da vida. Medo da morte, medo dos filhos, medo do
marido morto.

Suas noites de sono eram poucas. Vivia constantemente ansiosa, como se o


marido fosse voltar a qualquer momento. Ouvia os seus gritos, e tinha sempre
a sensação de que ele estava andando pela casa.

Aquela mulher tinha, diante de si, uma longa viagem a ser feita.

Viagem de retorno Viagem no tempo. Ela precisava retornar ao momento em


que permitiu que o homem recém-chegado tomasse posse de sua vida.
Precisava voltar para ela mesma. Precisava redescobrir as estradas que a
reconduziriam à sua subjetividade, e nela reapreender a viver.

Ela foi vítima de um seqüestrador. Foi vitima de um roubo cruel.

Não, não foi um roubo material, mas um roubo mais profundo. O


seqüestrador chegou no momento em que sua vida estava frágil. Descobriu
nela uma vítima fácil.

Agiu de forma violenta. No princípio, uma violência velada; depois, a


violência declarada, gritada para quem quisesse ouvir.

Sem muitas possibilidades na vida, a mulher submeteu-se ao tratamento


cruel; assumiu a condição de vítima. Com o tempo, desaprendeu a ser livre.
Mesmo agora, com as portas de seu cativeiro abertas e sem a ameaça de seu
agressor, ela não sabia mais dar o passo em direção à liberdade que lhe cabia.
A violência foi tão profunda que mesmo com a morte do seqüestrador, ele
ainda mantinha sua vítima acorrentada.

Este é um caso clássico de seqüestro da subjetividade; esta espécie de roubo


da alma; este absurdo que costuma morar ao nosso lado, ou dentro de nós.

O SEQUESTRO DO CORPO: A TRAMA DO ESQUECIMENTO DOS

SIGNIFICADOS

O seqüestro do corpo é uma das mais cruéis modalidades contemporâneas da


violência. Ritual de profundo desrespeito à condição humana, esta forma de
seqüestro consiste em retirar uma pessoa do local de sua identificação, de
seus significados, subordinando-a a um tratamento que tem por finalidade
estabelecer uma fragilização, que resultará num estado de total dependência e
rendição, em que o seqüestrador torna-se um legitimo proprietário da
existência do seqüestrado.

O seqüestro do corpo é uma privação total e absoluta daquilo que chamamos


de "horizonte de sentido". O nosso mundo, este particular, mas integrado ao
grande mundo, este solidificado a partir de significados e significantes que
constituem o nosso horizonte de sentido.

Sentido é tudo aquilo que atribui coerência, liga, orienta e estrutura.

É a partir deste horizonte de sentido que pensamos, agimos, amamos,


desejamos, vivemos. Somos e estamos estruturados a partir de realidades que
significam, isto é, realidades que nos revelam e que condensam um poder de
nos fazer avançar os territórios da existência, de irmos além.

Estes significados assumem os mais diversos formatos em nossa condição


humana. Eles evoluem para a condição de valores e assim se tornam
fundamentais para a qualidade de nossa atuação no mundo. Os significados
qualificam nossa existência.

Essa gama de significados, de valores, ocupa espaços muito diferentes na


vida das pessoas, de maneira que se para uma pessoa aquilo é fundamental
em termos de significado, para outra pode ser mero detalhe.

Na vida, estamos constantemente descobrindo o que nos faz buscar nossa


inteireza. A metáfora é interessante e pode nos ajudar a compreender melhor:
o mosaico é feito de partes; essas partes se conjugam e compõem uma única
peça.

São inúmeros e pequenos significados que constroem a trama do mosaico. A


pequena peça é fundamental para a construção do todo, e por isso não pode
ser negada, separada. Assim somos nós.

Se pensarmos no espaço humano em que vivemos como peças de um


mosaico, nós entraremos no cerne dos significados que nos constituem: nós
estaremos no coração de nosso horizonte de sentido.

Quando nos referimos aos significados, nós estamos tratando de realidades


materiais e imateriais. Estamos talando do quarto onde dormimos com nossos
travesseiros e lençóis, mas também das pessoas que nos rodeiam c dos
amores que nos despertam. O quarto nos identifica, mas os amores também.
O

horizonte de sentido é uma conjugação de inúmeros fatores. A cidade onde


moramos, a história já vivida, a casa que nos abriga, os lugares que
freqüentamos, os amigos que temos, as crenças que professamos, as relações
cotidianas, enfim, tudo isso compõe o nosso mundo particular.

É a partir, deste mundo, que enxergamos o outro mundo, que não é somente
nosso, mas também nosso, assim como o mirante proporciona ao observador
a visão que só é possível a partir de sua posição geográfica.

Quando uma pessoa é seqüestrada, o primeiro rompimento se dá com a


materialidade de seus significados. Não dormirá em sua casa estará privada
de seus sabores favoritos, de seus ambientes, coisas particulares, de seu
travesseiro, de seus livros, de seus perfumes, de suas paredes. Será
violentamente exposta a outra realidade que não a sua. O corpo sofrerá a
violência de não poder ir e vir.
Terá que obedecer às ordens do recém-chegado, daquele que até então não
pertencia ao seu mundo. Uma pessoa estranha, que definitivamente não fazia
parte de seus significados, mas que agora lhe acorrenta o corpo e o faz
experimentar uma privação para a qual não estava preparado.

O seqüestrador inicia no seqüestrado um processo de privações extremamente


doloroso. Ao ser afastado dos locais de sua identificação, e passando a viver
num ambiente estranho, inóspito e distante de tudo que o realiza, o
seqüestrado mergulha num profundo estado de solidão. Não se trata de uma
solidão comum, dessas que experimentamos ocasionalmente e que faz parte
do cotidiano de todo mundo. Trata-se de uma solidão muito mais profunda,
caracterizada como "ausência de si mesmo".

Ao ser afastado de seu mundo particular e de tudo o que ele representa, o


seqüestrado sente-se privado de ser ele mesmo. É como se ele tivesse sido
levado para longe de tudo o que para ele faz sentido. O seu mundo não é o
que agora lhe é oferecido. O cativeiro é a negação do seu direito de ser e
estar. Esse profundo estado de ausência pode agravar-se com o tempo e
evoluir para o que denominamos de "esquecimento do ser".

O esquecimento do ser, realidade muito comum nos casos de seqüestro do


corpo, é uma forma de aniquilamento de nossa condição primeira, nosso
estatuto original, e que chamamos de identidade.

A identidade nos diz sobre nós mesmos. Diz a nós e aos outros. Há dois
aspectos interessantes na identificação: uma afirmação e uma negação.

Identificar-se é um jeito que a pessoa tem de afirmar o que é, mas é também


um jeito de afirmar o que não é. Ao identificar-se, a pessoa estabelece uma
autenticação, mas também uma separação.

Ao dizer "eu sou isso", naturalmente estou dizendo também "que não sou
aquilo que negaria o que sou". Parece jogo de palavras, mas não é. Ao
identificar que sou Fábio, naturalmente estou dizendo que não sou Fernando.
A identificação é também diferenciação, porque em toda afirmação há
sempre uma infinidade de negações latentes.
Essa identidade necessita ser cultivada. Vivemos constante-mente esse
processo. O tempo todo reivindicamos o que somos e também renunciamos o
que não somos. Identidade estabelece limites, assim como os conceitos
limitam a realidade. Limite que não pode ser considerado como negativo.

Limitar é delimitar o local do encontro. É um jeito que temos de não nas


perdermos neste mundo de tantas coisas. O limite favorece a compreensão da
realidade existente. Um espaço delimitado é um espaço encontrado,
identificado.

Ao identificar o que sou, assumo a legitimidade de minha natureza. Digo o


que posso e o que não posso. Pos isso o limite é positivo. Ele me proporciona
um agir coerente, porque me posiciona a partir do que sou e não do que o
outro gostaria que fosse.

No mundo dos objetos isso é constante. Identificamos o tempo todo. Uma


mesa é uma mesa e não pode ser uma porta.

No mundo das pessoas é a mesma coisa. Nossa identidade nos limita, não
para nos empobrecer, mas ao contrário, para nos favorecer o crescimento.
Quem sabe bem o que é e o que não é terá mais facilidade de explorar suas
possibilidades, uma vez que os limites já estão apreendidos também.

Apreender e conhecer os limites que se tem é um jeito interessante de


potencializar as qualidades que nos são próprias.

Portanto, ao negar a identidade de uma pessoa, todas as suas potencialidades


ficam fragilizadas. É por essa razão que o seqüestro do corpo é uma agressão
contra a identidade da pessoa, porque a confunde profundamente a respeito
daquilo que ela pode e daquilo que ela não pode. É uma forma de provocar
um esquecimento do que se é.

Ao ser retirada de seu horizonte de sentido, a pessoa tem negados todos os


seus elementos de identificação no mundo e com o mundo. Dessa negação
nasce a ausência de si mesmo: uma forma de estar sem estai, de viver sem
viver. Trata-se de uma forma terrível de desolação, desespero e angústia. O
corpo, privado de tudo o que lhe faz feliz, vive o limite de não ter o que
buscar para nutrir-se de alegrias e descanso. Ele perde a capacidade
identificação, uma vez que está privado de seu espaço.

Fora de seu horizonte de sentido, o corpo adoece, perde a vitalidade, sofre na


carne a saudade de tudo o que o completa e o faz ser o que é.

Privado de sua liberdade, o corpo sofrerá os limites que desencadearão a


condição de vitima.

Quando digo o que sou de alguma forma eu o faço para também dizer o que
não sou. O “não ser está no avesso do ser, assim como o tecido só é tecido
porque há um avesso que o nega, não sendo outro, mas complementando-o”.
O que não sou também é uma forma de ser. Eu sou eu e meus avessos.

A CONDIÇÃO DE VÍTIMA

Estabelecido o seqüestro do corpo, inicia-se então um processo mais


destruidor que é a "condição de vítima".

Ao separar a pessoa seqüestrada de seu espaço de identificação, e confiná-la


num espaço de negação, o seqüestrador estabelece com o seqüestrado uma
relação de dependência.

A manutenção da vida agora depende do estranho recém-chegado.

O que antes era um direito da pessoa, direito inalienável, agora esta


inteiramente ameaçado, nas mãos de outras pessoas totalmente
desconhecidas. A consciência da dependência e a certeza de que a vida agora
já não lhe pertence, porque está em outras mãos, colocam o seqüestrado
numa condição de inteira e total fragilidade.

Essa fragilidade vira atitude, postura. Desencadeia o que chamamos de


"condição de vitima", uma vez que a rendição è o único jeito de garantir a
sobrevivência.

Uma vitima é alguém cujas fraquezas podemos explorar, e é justamente este


o método utilizado na maioria dos seqüestros do corpo. O
seqüestrador faz questão de abalar todas as estruturas da pessoa seqüestrada.

Ameaça matar os que ela ama, ameaça atentar contra os seus valores, subjuga
e faz questão de demonstrar quem é a autoridade, o centro de todas as
decisões. Os maus tratos, a vida na precariedade, o local inóspito, a comida
qualquer, o desprezo, tudo estará a serviço desse objetivo único: vitimar.

Quanto maior a sensação de vitima no seqüestrado, maior será o controle do


seqüestrador. Quanto pior for o tratamento no cativeiro, maior será o medo e,
conseqüentemente, a rendição da vítima.

Sentir medo é um jeito estranho de atribuir autoridade a alguém.

Temer uma realidade ou uma pessoa é o mesmo que lhe entregar o direito de
nos assombrar constantemente. Sempre que estamos paralisados pelo medo,
de alguma forma, estamos privados de nós mesmos.

O senso comum nos ensina que o cão tem o poder de perceber o nosso medo,
e isso o encoraja para nos agredir. Olhá-lo nos olhos é um recurso que inibe o
ataque. Isso é interessante. Toda relação de domínio é sempre estabelecida a
partir do medo. Sentir medo é o mesmo que legitimar no outro o comando da
situação. Se eu temo o escuro, de alguma forma estou lhe atribuindo mais
poderes que a mim. O MEDO nos faz vítimas, acentua ainda mais o
esquecimento do que podemos. O que pode me fazer uma sala escura: Porque
tenho medo de ficar sozinho? São perguntas simples para as quais geralmente
não temos respostas. A razão não dá conta de jogar luzes sobre certas
situações justamente porque ela está paralisada pelo medo. O medo nos priva
da inteligência, ainda que temporariamente.

Temer alguém e obedecer às suas ordens são desdobramentos estranhos da


perda de identidade. No caso do seqüestro do corpo, o medo nasce da
convicção de que o outro decidirá o destino da vida. Viver ou morrer será
uma decisão do seqüestrador. É o absurdo de reconhecer que o bem mais
precioso que se tem está nas mãos de quem acabou de chegar; de quem nunca
fez pane dos seus significados. Talvez seja por isso que em muitos casos de
seqüestro, a vítima faça questão de estabelecer uma relação amistosa com o
seqüestrador.
Talvez seja um reconhecimento, ainda que inconsciente, da necessidade de
ser amada pelo inimigo, de despertar-lhe alguma predileção que lhe favoreça
a preservação da vida, ou até mesmo de evitar a mutilação de órgãos, tão
freqüentes em casos de seqüestros.

O medo do inimigo pode conduzir a pessoa a esta relação amistosa.

O medo tem o poder de gerar gentilezas agressivas, silenciosas, a manutenção


de uma fria guerra entre as pessoas.

Assim que estabelecida, a condição de vítima traz uma tranqüilidade para a


relação entre seqüestrado e seqüestrador. Não havendo mais resistência da
parte de quem está subjugado à violência, o seqüestro pode arrastar-se no
tempo sem dificuldades. Enquanto houver alguma resistência ao
reconhecimento do domínio, o seqüestrado ainda representará perigo para o
seqüestrador, forçando-o a ter atitudes ainda mais violentas. A condição de
vitima cessa a violência dos alardes, para dar lugar a violência mais sutil,
silenciosa.

O PREÇO DO RESGATE E SEU VALOR SIMBÓLICO

O fim do seqüestro do corpo está sempre ligado ao pagamento, ou não, do


valor do resgate. O valor estabelecido pelos seqüestradores é comunicado aos
que se interessam pela vida seqüestrada. As negociações têm como único
objetivo a tentativa de trazer de volta o que fora levado, preservando-lhe a
vida e a integridade.

A pessoa seqüestrada, que até então foi vítima dos seqüestradores, agora
também está entregue nas mãos daqueles que compõem o seu horizonte de
sentido, Diferente, mas continua vitima. Eles decidirão o que fazer; decidirão
como pagar, como negociar. É o momento em que a pessoa é exposta ao peso
e à medida do seu valor.

Não são raros os casos em que a vitima experimenta nesta: hora uma grande
insegurança. A fragilidade do cativeiro lhe faz duvidar até mesmo da
predileção de quem está lá fora negociando sua vida. O cativeiro minou seu
amor próprio, prejudicou sua auto-estima. “É aí que lhe ocorre uma dúvida
cruel: será que existe alguém interessado em me retirar daqui” Será que valho
o valor que está sendo pedido?

Essas perguntas estão intimamente ligadas à condição de vitima.

Antes, vitima de quem nem sequer sabia o nome, agora, vítima daqueles que
a viram nascer e crescer. Condições distintas, mas costuradas pelo mesmo fio
da insegurança.

O cativeiro minou suas convicções, deixou o registro do esquecimento do ser.


Quem está esquecido de "quem é" geralmente cai no equivoco de colocar
familiares e criminosos no mesmo patamar. É o medo ditando suas ordens.
Medo absoluto, indistinto, tomando todos os espaços da existência. É

o medo assumindo sua dolorosa face do desespero. Medo que cega; que faz
esquecer o que temos de mais sagrado. Medo que nos acorrenta aos pés dos
nossos seqüestradores, e que nos encoraja a pedir que eles tenham piedade de
nós, como se fossem deuses, com o poder de nos livrar de nossa fragilidade.

Medo que nos faz esquecer o que amávamos; que dilui nossa identificação e
que não nos permite mais a diferenciação do mundo.

Olhamos a tudo e a todos do mesmo modo. Olhos com lentes do medo; são
os olhos pessimistas, e muito pouco podem na vida.

O medo tem o poder de nos fazer pedir o que não queremos. No caso do
seqüestro do corpo, o seqüestrado, por causa do medo que sente torna-se
capaz de pedir, mesmo sem uma formulação expressa nas palavras, que o
seqüestrador, o proteja com seu domínio. A condição de vítima lhe faz viver
o absurdo de uma dependência cega. O intruso, o recém - chegado, assume a
centralidade de seus afetos. A relação, fortemente marcada pela dependência,
fortalece ainda mais a entrega e a rendição. O dominador reconhece nos olhos
do dominado o pedido.

É a postura da vítima que fortalece a figura do seqüestrador. Ela lhe autoriza


aos poucos a negociar a sua vida, a ser dela um proprietário. E neste
momento que se confundem ainda mais os papéis e se acentua a condição
total de vítima. Estranhos negociando com familiares e amigos, mas todos
dentro da mesma moldura da insegurança. O mais próximo é o seqüestrador.
Ele passou a representar uma espécie de "segurança", e por isso a vitima a ele
se apega.

Este é o quadro. O seqüestro do corpo é uma violência terrível, porque, ao


retirar a pessoa do seu horizonte de sentido, expõe-lhe ao absurdo do
esquecimento de suas potencialidades. O seqüestrado perde a coragem de
lutar por ele mesmo, mas aliena nas mãos de estranhos o poda de decidir o
desfecho de sua existência.

O corpo é levado de uma vez. O cativeiro cerceia o corpo; priva-o de tudo o


que o faz feliz, de todas as sensações que lhe são agradáveis. O corpo é o
primeiro a ser acorrentado e rendido, para que depois, aos poucos, bem aos
poucos, seja também medida e acorrentada a sua alma1.

Resgatar o corpo dessa condição de aprisionamento consiste em devolver-lhe


a si mesmo. O corpo, antes acorrentado e negado, volta a se pertencer. Volta
para o seu quarto, para seus familiares, para sua casa. Retorna ao seu mundo.

O pagamento do resgate é concreto, mas resguarda também um precioso


valor simbólico. Ele concretiza a certeza do amor. Ao ser resgatada, a vitima
se reconhece querida, desejada. Cessa a insegurança que antes vivera no
cativeiro. Distante do seqüestrador ela reassume a condição de identificar a
fragilidade que a tez colocar bandido e familiares no mesmo patamar de
importância.

O retorno ao horizonte de sentido lhe devolve a capacidade de reassumir a


identidade perdida. É a hora de organizar O medo, os traumas e as
recordações que certamente por muito tempo a atormentarão.

DEPOIS DO CATIVEIRO, O APRENDIZADO

A sabedoria popular nos ensina que há sempre um aprendizado a ser


recolhido depois da dor. É verdade. As alegrias costumam ser preparadas no
silêncio das duras esperas. Não é justo que o ser humano passe pelas
experiências de calvários sem que delas nasçam experiências de
ressurreições.

Por isso, depois do cativeiro, o aprendizado. Ao ser resgatado, o seqüestrado


reencontra-se com seu mundo particular de modo diferente. A experiência da
distância nos ajuda a mensurar o valor, e o seqüestrado, depois de livre,
mergulha nesta verdade.

Antes da necessidade do pagamento do resgate, da vida livre, sem cativeiro,


corria-se o risco da sensibilidade velada. A vida propicia a experiência do
costume. O ser humano acostuma-se com o que tem, com o que ama, e
somente a ruptura com o que se tem e com o que se ama abre-lhe os olhos
para o real valor de tudo o que estava ao seu redor. As prisões podem nos
fazer descobrir o valor da liberdade.

As restrições são prenhes de ensinamentos. Basta saber parturiar, fazer vir á


luz o que nelas está escondido.

A ausência ainda é uma forma interessante de mensurar o que amamos e o


que queremos bem. Passar pela experiência do cativeiro local da negação
absoluta de tudo, o que para nós tem significado, conduz-nos ao cerne dos
valores que nos constituem.

O resgate, o pagamento que nos dá o direito de voltar ao que é nosso,


condensa um significado interessante. Ele é devolução É como se fôssemos
afastados de nossa propriedade, e de longe alguém nos mostrasse a beleza do
nosso lugar, dizendo: "Já foi seu; mas não é mais. Se quiser voltar, terá que
comprar de novo! Compramos de novo o que sempre foi nosso. Estranho,
mas esse é o significado do resgate.

Distantes do que antes era tão próximo, recobramos a visão encantadora do


nosso lugar. Olhamos de um jeito novo. Redescobrimos os detalhes, as
belezas silenciosas que, com o tempo, desaprendemos a perceber. A visão ao
longe é reveladora. Vemos mais perto, mesmo estando tão longe.

Olhamos e não conseguimos entender como não éramos capazes de


reconhecer a beleza que sempre esteve ali, e que nem sempre fomos capazes
de perceber.

No momento da ameaça de perder tudo isso, o que mais desejamos é a nova


oportunidade de refazer a nossa vida. Nosso desejo é voltar, reencontrar o
que havíamos esquecido, reintegrar o que antes perdido, ignorado,
abandonado. O

que desejamos é a possibilidade de um retorno que nos possibilite ver as


mesmas coisas de antes, mas de um jeito novo, aperfeiçoado pela ausência e
pela restrição.

Depois do resgate, o desejo de deitar a toalha branca sobre a mesa, colocar os


talheres de ocasião sobre mesa farta. Fartura de sabores e pessoas que nos
fazem ser o que somos.

Refeição é devolução. Da mesma forma como o alimento devolve ao corpo


os nutrientes perdidos, a presença dos que amamos nos devolve a nós
mesmos. Sentar à mesa é isso. Nós nos servimos de alimentos e de olhares.

Comungamos uns aos outros assim como o corpo se incorpora da vida que o
alimento lhe devolve. A mesa é o lugar onde as fomes se manifestam e são
curadas.

Fome de pão, fome de amor.

Depois do cativeiro, a festa de retorno, assim como na parábola bíblica que


conta a história do filho que retornou depois de longo tempo de exílio.

Distante dos nossos significados, não há possibilidade de felicidade. Quem já


foi seqüestrado sabe disso. Por isso, depois do seqüestro, a vida nunca mais
poderá ser a mesma.

RETORNO

Somente depois de ter andado por terras estranhas

É que pude reconhecer a beleza de minha morada.


A ausência mensura o tamanho do local perdido

Evidencia o que antes estava oculto,

por força do costume.

Olhei minha mãe como se fosse a primeira vez.

Olhei como se eu voltasse a ser criança pequena

A descobrir-lhe as feições tão maternas.

Abri o portão principal como quem abria

Um cofre que resguardava valores incomensuráveis.

As vozes de todos os dias estavam reinauguradas.

Deitei-me no colo de minha mãe como se quisesse

Realizar a proeza de ser gerado de novo.

Suas mãos sobre os meus cabelos pareciam devolver-me

A mim mesmo.

Mãos com poder de sutura existencial. .

Era como se o gesto possuísse voz, capaz de me dizer:

dorme meu filho, porque enquanto você dormir

Eu lhe farei de novo. Dorme meu filho, dorme..

A SUBJETIVIDADE E SUAS IMPLICAÇÕES

Subjetividade é toda a estrutura que tem referência direta ao sujeito


particular. Ela é o que há de mais profundo e irrenunciável na criatura
humana. É o estatuto mais íntimo, o lugar onde o eu sobrevive.
A definição dos termos pode nos ajudar. Subjetividade é caráter ou qualidade
do subjetivo, e subjetivo é tudo aquilo que é pertencente ou relativo ao
sujeito.

De acordo com as regras gramaticais, o sujeito é o ser que realiza a ação do


verbo. O sujeito é que dá movimento às frases. Interessante. Sempre que age,
o sujeito age a partir de seu mundo, de sua história pessoal, de seus valores,
limites, possibilidades. Sua ação é sempre carregada de história, motivos,
razões.

A subjetividade é o contexto que engloba todas estas particularidades


imanentes à condição de ser sujeito, e é muito mais. Ser sujeito extrapola os
limites da corporeidade, que age, movimenta e cria fatos. Um sujeito é um
mosaico de desejos, temores, paixões, sentimentos, angústias, sentidos,
mistérios. Realidades que são universais, mas que acontecem de maneira
muito particular em cada um de nós. Por isso a subjetividade possui um
caráter sacral, pois confere ao sujeito a possibilidade de estar no mundo de
maneira única e irrenunciável.

Um objeto, por exemplo, pode ser repetido, mas um sujeito nunca.

Um objeto pode ser manuseado e ocasionalmente dispensado como peça que


perdeu a utilidade, mas um sujeito não. A sua subjetividade o diferencia no
mundo e o coloca como valor a ser respeitado.

Veja bem, a vida é sempre plural e singular. Viver é experimentar


constantemente a dinâmica desses dois lugares. Quando somos plurais, só o
podemos ser se estivermos na posse de nossa singularidade, caso contrário, a
pluralidade nos esmaga.

Observe um mosaico. Nele há uma multiplicidade de peças, O

mosaico é plural e só existe porque as peças saíram de suas singularidades.


Só assim ele pode ser formado. Mas, para dar forma ao mosaico, as peças não
precisaram abrir mão do que elas eram. Não foram negadas, e sim passaram a
compor um todo que jamais conseguiriam sozinhas.
A subjetividade refere-se a esta capacidade que o ser humano tem de ser
singular. Antes de ser comunidade, o ser humano é pessoal, particular,
reservado, privado, porque segue a mesma regra do mosaico. Se junta aos
outros para compor o todo, mas não deixa de ser o que é.

É por isso que o contexto da subjetividade é bastante complexo.

Ele é a casa de todas as riquezas humanas. Ele funciona como a escritura de


um território, como ponto de partida, pois é nele que o ser se firma para ser o
que é, e dele sai para ser com os outros.

Instigante. Ser o que somos requer cuidados. Não é possível ser somente na
solidão. O singular é tocado o tempo todo por outro singular e assim nascem
os encontros. Toda relação é um encontro de subjetividades. A vida é feita
desses encontros.

Nem sempre as subjetividades são materializadas. Ler um livro, por exemplo,


é receber o autor e seu jeito particular de compreender o mundo a partir
daquilo que ele escreveu. Uma subjetividade que chega, mesmo que o corpo
não tenha vindo junto. O livro o representa. O livro nos faz encontrar.

Duas pessoas que casualmente se conhecem são duas subjetividades que se


esbarram. Se crescerem no conhecimento, existe então a possibilidade de
suas singularidades se pluralizarem, se misturarem e se influenciarem.

É uma dinâmica maravilhosa. Nossos melhores amigos chegaram a nossas


vidas pela torça desses encontros casuais. Grandes amizades podem nascer de
esbarrões inusitados. O contrário também é verdadeiro, os inimigos também
chegam pela força desses encontros.

A grande questão que precisamos ter diante de nós é a seguinte: nos


encontros que realizamos, como é que fazemos para não perder de vista o que
somos? Como viver a dinâmica de um mundo que é plural, sem que nossa
subjetividade corra o risco de ser sufocada, seqüestrada?

O desafio é constante. O risco é iminente. É muito fácil perder a liga


existencial, o cordão que nos costura a nós mesmos. É muito fácil a gente se
perder na pluralidade do mundo. É muito fácil entrar nos cativeiros dos que
nos idealizam, dos que nos esmagam, dos que nos desconsideram, dos que
pensam que nos amam, dos que nos viciam, dos que pensam por nós.

É muito fácil ser roubado, levado e aprisionado no pensamento que nos


impede de crer no valor de nosso potencial.

Os cativeiros são muitos, diversificados, mas a dor é semelhante. É

a dor de quem está compondo o mosaico sem saber o que é. Entrou no todo,
mas não tomou posse da parte. Misturou-se ao mar, mas não sabe o no que é.

Subjetividade esmagada, desagregada, seqüestrada.

O SEQÜESTRO DA SUBJETIVIDADE

O seqüestro do corpo refere-se primeiramente ao aprisionamento material da


pessoa. É o corpo que é aprisionado, e o corpo é matéria, é concreto,
manuseável. O primeiro passo, portanto, é a condução violenta do corpo para
o cativeiro, lugar também material.

A diferenciação que agora faremos tem como objetivo apenas um


favorecimento didático. Tratar do seqüestro da subjetividade na comparação
com o seqüestro do corpo não significa que estamos fazendo uma ruptura
entre a materialidade do ser humano e sua subjetividade. Não queremos
compartimentar as duas realidades, tampouco legitimar no nosso discurso à
perspectiva platônica de que o corpo é a prisão da alma.

Sabemos que com o aprisionamento do corpo toda a subjetividade sofre


também. Este sofrimento é imediato, porque é brutal. É o corpo que é
roubado, levado de seu lugar e seus significados. Já no seqüestro da
subjetividade nem sempre há o sofrimento imediato do corpo. O que há é o
sofrimento psicológico que, com o tempo, refletirá no corpo. Por ser um
processo mais lento, o seqüestro da subjetividade pode, num primeiro
momento, ser sinônimo de prazer, satisfação, porque o corpo não é subjugado
a maus tratos concretos, como no caso do seqüestro da materialidade.
Há casos de seqüestro da subjetividade que desembocam em violências
físicas também, mas tais violências não fazem parte do processo inicial,
porque o seqüestrador não poderá seduzir sua vítima pela força da violência,
ao contrário, inicialmente será dócil, cortês, gentil e usará de todas as
artimanhas para que a sedução seja bem-sucedida.

Outro aspecto também interessante a ser lembrado é que em alguns casos de


aprisionamento do corpo a subjetividade consegue ser preservada livre é o
caso de pessoas que, mesmo encarceradas em celas de prisões, ainda
continuam no exercício de sua liberdade. Tudo depende da capacidade que o
ser humano tem de manter-se na posse de si, mesmo quando tudo parece
contrário.

Recordo-me de uma cena belíssima do filme "Um sonho de liberdade",


quando o personagem principal é submetido ao sofrimento da solitária.

Um mês depois, ao sair do terrível castigo que lhe foi imposto, alguém o
interroga de como foi possível suportar todo aquele tempo de silêncio e
solidão.

Curiosamente ele respondeu que ouvia música o tempo todo, e que isso
ajudou o tempo a passar. Indignado, aquele que o questionara recorda que na
solitária não há aparelho de som, e o personagem sabiamente concluí que não
precisava de aparelhos de som para ouvir músicas, pois elas já estavam
dentro dele.

Outro exemplo interessante, e que também está no mesmo filme, é a história


do velho que cuidava dos livros no presídio. Este velho, alguns dias depois de
alcançar a liberdade, enforcou-se. Durante toda a sua vida ele foi prisioneiro
e, ao se tornar livre, descobriu que não saberia viver longe das grades.

Ele não aprendeu a ser livre, e por isso resolveu morrer depois de perder o
direito de ficar na prisão.

Há prisões que são mais que paredes e celas. Há prisões que não são
concretas, e por isso não há nada que possa concretamente ser quebrado.
No seqüestro do corpo há um cativeiro localizado que precisa ser aberto. Já
no seqüestro da subjetividade os cativeiros não possuem localização para que
possamos chegar pela força de nossos pés. Trata-se de uma prisão mais sutil,
mas nem por isso menos cruel.

É importante termos claro que o seqüestro do corpo é uma realidade menos


comum, mas o seqüestro da subjetividade é um fenômeno que há todo
momento acontece em nosso meio: ou porque estamos presenciando alguém
sendo levado de si, ou porque estamos seqüestrando, ou sendo seqüestrados.

O que podemos perceber é que a estrutura social em que estamos situados é


fortemente marcada pelas relações que seqüestram. É seqüestro da
subjetividade tudo aquilo que nos priva de nós mesmos. Até mesmo nas
pequenas realidades, as mais simples, há sempre o risco de que estejamos
abrindo mão de nossos valores em detrimento da vontade de seqüestradores
que em nada estão comprometidos com nossa realização humana.

É seqüestro da subjetividade todo o processo que neutraliza e impede o ser


humano de conhecer-se, passando a assumir uma postura ditada

por outros. E sequestro da subjetividade a projeção da vida humana em metas


inalcançáveis, costurada à mentalidade de que as pessoas são perfeitas e que
há sempre um final feliz reservado, pronto para chover do céu sobre nossas
cabeças. Mas é também sequestro da subjetividade a projeção da vida
humana a partir de metas rasas, em que a mediocridade é a regra a ser
considerada e o pessimismo antropológico é a consequência.

E sequestro da subjetividade a redução da experiência religiosa ao horizonte


histórico, dissociado de uma esperança que extrapole a experiência do tempo,
assim como também é sequestro da subjetividade a experiência religiosa que
esquece o cheiro humano da dor, da desesperança e que se limita a promessas
de um céu futuro, sem implicações históricas.

É sequestro da subjetividade cada vez que o coletivo prevalece sobre o


particular, massacrando-o em vez de incorporá-lo como parte irrenunciável.
Mas é também sequestro da subjetividade cada vez que o sujeito é valorizado
em detrimento de uma multidão que perde a voz para que ele possa gritar
sozinho.

É sequestro da subjetividade quando alguém, no exercício de imaginar,


projeta o outro como personagem, e com ele estabelece uma relação baseada
na falsidade que despersonaliza e aprisiona. Jura a promessa de um amor
eterno que se desdobra em cruel forma de prisão.

É sequestro da subjetividade toda relação de trabalho que seja marcada pelo


desrespeito à dignidade do trabalhador, forçando-o a se tornar mero
mecanismo de produção, desconsiderando sua condição de ser humano que
merece descanso e remuneração justa.

É sequestro da subjetividade cada vez que, no processo educacional, as


crianças são submetidas à pedagogia do medo e o aprendizado se torna um
fardo, deixa de ser um desejo.

É sequestro da subjetividade cada vez que o sujeito é desconsiderado como


organismo vivo, colocado na condição de mecanismo, objeto manuseável.

ALGUÉM

Alguém me levou de mim Alguém que eu não sei dizer

Alguém me levou daqui.

Alguém, esse nome estranho.

Alguém que eu não vi chegar

Alguém que eu não vi partir

Alguém, que se alguém encontrar,

Recomende que me devolva a mim.

SEQÜESTRADORESESEQÜESTRADOS

Toda vez que falamos de sequestro da subjetividade, estamos evocando o


contexto de risco em que está situada constantemente a nossa singularidade.
No caso do sequestro do corpo, como já vimos, o que há é o roubo da
materialidade. O corpo é trancafiado num cativeiro e vive as limitações que
são próprias dessa forma de prisão. Mas quando falamos de sequestro da
subjetividade, não há a necessidade de cativeiro material. O roubo é mais
profundo, pois é levado muito mais que a materialidade da vida.

Trata-se de uma invasão suave, mas nem por isso menos violenta, de
territórios que pertencem ao singular, a subjetividade; e o acesso
inescrupuloso àquelas realidades do sujeito particular, forçando-o a
desprender-se de si mesmo para viva uma forma estranha e socializada de
escravidão e dependência.

Os cativeiros não podem ser localizados, nem há "pedido de resgate". O que


há é um movimento silencioso de posse de tudo aquilo que o outro é. Posse
que se transmuda aos poucos em processo destrutivo e irremediável.

Num primeiro momento, o sequestro tem as mesmas características da


conquista. O traficante, por exemplo, nunca aborda violentamente o seu
futuro dependente. Ele o seduz com gentileza, atenção. Não cobra pelas
primeiras porções, porque sabe que a vítima precisa ser conquistada. Depois
de firmada a dependência, o que se vê é a intolerância, a relação desumana.
Depois que a relação se estreita, o que se percebe é o estabelecimento de um
processo semelhante ao sequestro do corpo: a condição de vítima. O outro
exige o que não é direito seu exigir. Ultrapassa os limites que deveriam ser
preservados e pisa com pés sujos a dignidade que merece reverência, porque
é sacral.

Sequestros da subjetividade acontecem o tempo todo. Todos nós estamos


expostos aos riscos. Não é necessário muito tempo para que alguém nos leve
de nós. Uma palavra, um olhar, uma opinião, tudo pode ser laço que nos
prende e aos poucos nos leva de nós.

Foi o que aconteceu com aquela menina...

Ela chegou em mim com os olhos cheios de medo. Bonita, nascida em uma
família bem estruturada, a menina começou a relacionar-se com um amigo de
colégio. No início, era apenas uma aproximação despretensiosa, e por isso a
família não viu a necessidade de intervir. "Coisa de adolescente", como
dizem os mais velhos.

Os encontros eram ocasionais e o rapaz nem chegou a conhecer os familiares


dela. Ele não se interessava em conhecer o seu mundo, confessou-me ela na
tentativa de vencer o medo.

A história começou a ficar mais séria quando, meses depois, os pais


perceberam os maus resultados no colégio. Pela primeira vez, a garota tinha
um desempenho insatisfatório; fora brilhante até então. Com tais resultados
surgiu também uma tristeza desoladora. A menina mergulhou num processo
terrível. Tentou duas vezes o suicídio.

Aquela menina que, até então, tinha uma vida tranquila, cheia de sonhos e
amigos, agora tinha que enfrentar um quadro depressivo profundamente
perigoso.

Levada a um terapeuta, finalmente as razões foram conhecidas.

A menina estava apaixonada pelo rapaz há mais dez anos e, desde que
ficaram juntos pela primeira vez, ele a transformara num objeto de seu prazer.
Ao contrário do que ela sempre dizia, nunca namorou o rapaz. Ele mantinha
um relacionamento de mais dois anos com uma outra menina. Ela era a
"outra" e sempre soubera disso.

Com apenas dezesseis anos, aquela menina já tinha enfrentado, sem o


conhecimento de seus pais, os perigos de um aborto caseiro, feito por meio da
ingestão de comprimidos, com o intuito de expulsar o filho indesejado de seu
ventre. Ele a obrigara a fazer tudo isso.

As humilhações eram comuns. Ela confessou-me que o rapaz só a tratou


carinhosamente nas primeiras semanas. Assim que ele percebeu o sucesso da
conquista, seu comportamento mudou. Ele não tinha o menor respeito por
ela. Não a procurava, senão para sua satisfação pessoal. A menina cumpria o
papel de "prostituta socializada".
Ela sabia de tudo isso, mas não adiantava saber. A razão do seu sofrimento
era essa. Ela não conseguia romper com ele. Ela havia perdido a capacidade
de dizer "não" aos pedidos dele. Por mais que reprovasse seu próprio
comportamento, ela temia fechar o único acesso dele à sua vida.

O conflito ficou estabelecido e naturalmente a angústia e o sofrimento


chegaram. Aquele rapaz mantinha a pobre menina num cativeiro afetivo.
Tratava-a da pior maneira, mas, vitimada, ela desaprendeu a dizer "não".

Sem dizer "não", consentia uma espécie de invasão, uma violência velada que
tinha o poder de minar e fragilizar sua subje-tividade, colocando-a novamente
nas mãos de seu seqüestrador.

O medo de romper totalmente com o rapaz estava impedindo-a de tomar a


decisão certa para sua vida. Ela mesma não queria abrir as portas do
cativeiro. Preferiu reduzir a sua vida àquele espaço miserável que lhe era
oferecido.

Desprovida de amor próprio, resignou-se a viver como objeto de prazer de


seu seqúestrador. Perdeu de vista a sacralidade de sua condição humana.
Deixou de ser pessoa. Regrediu no processo. Renunciou a toda autonomia,
fruto da educação dada pelos seus pais. Preferiu perder sempre em vez de
perder de uma vez.

E estranho, mas essa menina é o retrato de uma realidade muito comum entre
nós. Sequestrados que aceitaram a condição de vítima; aprenderam a perder
sempre e não acreditam em alguma vitória reservada para eles. São pessoas
que se condicionaram ao fracasso e vivem retrocedendo ao invés de avançar.

O rapaz teve acesso à totalidade daquela menina. Certamente investigou suas


fragilidades e fez questão de utilizá-las. Ela entregou tudo nas mãos dele. Ele
se apossou de sua subjetividade pela força do afeto e estabeleceu uma
dependência dela por ele. Instalou-se como um intruso. Rendida de amor, ela
aceitou o pouco que ele lhe dava, pois temia não sobreviver sem o seu amor
de precariedades.

Mediante ajuda terapêutica, a adolescente pôde retomar as rédeas de sua vida


e expulsar o rapaz e suas artimanhas ardilosas. Foi preciso enfrentar o
sofrimento agudo do rompimento para que ela reassumisse o amor próprio, e
só assim conseguisse sair do cativeiro.

Por meio deste caso, firmamos ainda mais nossa mmu çâo. Toda relação
humana necessita de cuidados, porque sempre transita nos limites ténues
entre amor e posse. Do amor à posse o caminho é curto. Basta que percamos
o foco de nossa identidade para que corramos o risco de alguém administrar
nossa vida, roubando-nos de nós mesmos.

O MUNDO E SEUS CATIVEIROS

A vida humana é sempre uma experiência mundana. Vivemos no mundo.


.Mundo é tudo aquilo que está na ordem. É tudo aquilo que deixou a
condição de caos. Interessante esse conceito. Também nós estamos
constantemente ordenando a realidade em que estamos situados. Cada vez
que realizamos um gesto que organiza, que coloca na ordem e que
harmoniza, de alguma forma estamos recriando o mundo, isto é, estamos
desfazendo o caos.

Mas o mundo é também um lugar de movimentos contrários. Ao mesmo


tempo em que há o movimento que encaminha a realidade para a ordem, há
também o movimento que retira a vida da ordem e cria o caos. E o mundo em
sua negação. Interessante, mas, dentre os inúmeros significados da palavra
mundo, há um que a coloca como adjetivo que diz respeito àquilo que está
asseado, limpo, polido e puro.

Pois bem, a palavra "imundo" indica a negação do mundo, uma vez que na
língua portuguesa ela significa "aquilo que está sujo, impuro".

Portanto, o imundo pertence à categoria de tudo o que está fora da ordem,


desarmonizado, caótico. Realidades imundas precisam ser reordenadas para
que voltem à ordem original. E assim que consertamos a vida; é assim que
atualizamos o gesto criador de Deus no espaço em que estamos.

Toda vez que esbarramos nos cativeiros do mundo, de alguma forma,


encontramos a negação da vida humana. Cativeiro é o local imundo, da
desordem, do roubo e da desumanização. Cada vez que um cativeiro é
estabelecido, em sua materialidade ou não, alguém está perdendo a
capacidade de recriar o mundo por meio de sua própria vida.

O Tratado de Teologia Cristã da Criação nos assegura que o gesto criador de


Deus tem sempre continuidade na vida humana. Cada vez que eu me realizo
verdadeiramente como pessoa, vivendo e aperfeiçoando as capacidades que
me foram entregues, tais como minha liberdade, capacidade de amar, de
alguma forma o Criador continua criando o mundo a partir de mim.

É por isso que podemos dizer que o ser humano é dotado de capacidade
recriadora. A inserção da vida humana no espaço criado teve o intuito de que
nos tornássemos sujeitos da criação. Como já vimos anteriormente, ao sujeito
cabe a função de realizar a ação do verbo. Neste mundo de tantos verbos, os
sujeitos movimentam e transformam o mundo.

Podemos alçar um voo ainda maior. De acordo com a Teologia Cristã, o


Verbo de Deus se torna sujeito em cada criatura humana, potencializando-a a
ser como Ele e com Ele. Essa incorporação da vida divina na vida dos
humanos é um desdobramento do mistério da Encarnação. Pelo mistério de
Deus encarnado, a criatura humana legitima no tempo por meio de sua ação,
a Graça, isto é, o amor de Deus sempre presente e atuante no mundo. Graça
que salva, santifica, humaniza, transforma, gera o mundo ao desfazer o
imundo.

A Antropologia teológica cristã nos propõe que o mistério da Encarnação tem


continuidade histórica por meio do movimento humanizador que a graça de
Deus realiza. Graça que no sujeito é particular, podendo ser acolhida, ou não,
pelo exercício da liberdade.

A ação da Graça de Deus na vida humana trabalha num primeiro momento no


fortalecimento de sua identidade. Somos filhos no Filho. Somos incorporados
pela força sacramental que está manifestada no dom de Deus na tarefa
humana.

Veja bem, a intervenção divina não concederá o angélico ao humano", mas,


ao contrário, está para conceder-lhe nova condição humana, restaurada e
reconciliada em Jesus, o Verbo de Deus.

Esta compreensão antropológica cristã é riquíssima, pois nos sugere a


santidade como aperfeiçoamento do que é humano, e não como sua negação.

Em cada sujeito é colocada a presença do Verbo, o movimento que a tudo


comanda. A Graça de Deus é conferida a cada sujeito de maneira única e
particular. O sujeito e sua subjetividade. Cada um move o mundo ao seu
modo, de acordo com os atributos e limites que lhe são próprios. A Graça
esbarra nesses limites, pois nem todos estão em busca de uma forma de viver
que seja favorável ao florescimento de sua subjetividade, ao fortalecimento
de sua identidade.

O impulso da Graça na vida humana tem o poder de fortalecer essa


identidade. Vida de santidade é vida de identidade assumida, fortalecida,
aprimorada. E vida que se esmera por tomar posse da herança a que se tem
direito. Santificar é o mesmo que humanizar. É receber-se de novo; é voltar
ao molde inicial, onde o Verbo nos gera e nos faz ser o que somos. Não viver
a santidade é o mesmo que abdicar da condição de realeza. E como se um rei
resolvesse ser escravo. Deixa o trono, vai viver a condição desumana que a
escravidão confere. Esquece que é rei, abdica do trono. Deixa o mundo e
assume o imundo como casa.

A vida cristã é quase uma afronta aos inteligentes. Deus confere realeza aos
mais fracos deste mundo. Os miseráveis foram revestidos de um manto de
glória. Os fracassados foram olhados nos olhos; receberam o convite para a
festa principal. Qualquer um pode aceitar este convite. Os títulos reais estão à
disposição. Basta querer.

No mundo do caos, a situação é outra. O projeto é desu-manizar. É retirar a


dignidade, a realeza; é causar o esquecimento, da condição que nos assegura
sermos prediletos de Deus, gente de valor.

O imundo é o lugar dos desumanizados. E fácil viver esse projeto, não requer
muito esforço. A santidade, o aprimoramento, requer coragem. A
desumanização requer fraqueza. E mais fácil ser fraco. É mais fácil justificar-
nos na preguiça existencial que nos aquieta nas expressões que são próprias
de quem já perdeu a batalha. "Sou assim mesmo e não quero mudar!"

Ao contrário, existir com qualidade é desafio de toda hora.

Requer esforço constante para manter a autenticidade, mesmo necessário. É

só entrar no movimento das tran-sitoriedades e dos condicionamentos.

As estruturas sociais em que estamos situados são fortemente marcadas pela


transitoriedade. Sobreviver em meio ao caos deste mundo que passa é um
desafio constante.

Sendo tudo tão passageiro, tão artificial e representativo, torna-se muito


difícil a experiência de manter a identidade, de manter o pacto com a Graça.
E na tentativa de acertar e de sobreviver que muita gente se perde. As
estruturas imundas estão por toda parte. Elas são capazes de provocar o
esquecimento da identidade, porque neutralizam o poder da Graça de Deus na
vida humana.

Existir de qualquer jeito não requer esforço. Basta entrar no movimento das
estruturas que tornam a vida humana cada vez mais artificial.

Basta dizer sim à massificação e ao movimento brutal dos desumanizados


deste mundo. Basta se render àqueles que legitimam as forças das realidades
caóticas do nosso tempo.

No espaço dos desumanizados, a subjetividade não tem valor.

Não há preocupação para se preservar a sacralidade da pessoa e seu horizonte


de sentido. Todo o esforço direciona-se à manutenção de uma estrutura de
poder que cada vez mais fragiliza a vida humana.

Meios de comunicação, estrutura política, económica e até mesmo religiosa


parecem socializar uma proposta de espaço humano que definitivamente não
está a favor do fortalecimento da identidade, mas, ao contrário, parece
legitimar o interesse em retirar o ser humano de seu prumo, deixando-o à
deriva, num imenso mar em fúria.
Fragilizado, o ser humano fica vulnerável, e facilmente é roubado de si
mesmo. Acrítico, passa a sorver a existência sem muito pensar sobre ela.

Entra no doce movimento do mundo que o entretém em vez de desafiá-lo.

Entretido, o ser humano vai fazendo a entrega de si mesmo em pequenas


partes.

Permite que os invasores se alojem nas imediações de seus territórios e, aos


poucos, bem aos poucos, vai permitindo a invasão.

Esta reflexão pode ser belamente amparada nos versos de Eduardo Alves da
Costa quando nos diz:

"Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E
não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores,
matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada."

(Poema intitulado "No caminho com Maiakovski". O

poema é atribuído a Bertolt Brecht, mas a autoria é de Eduardo Alves da


Costa.)

A invasão é lenta. E o pior, é ato permitido. O nosso medo autoriza o invasor.


O não dizer é uma omissão terrível, é uma forma de autorizar o golpe. O
outro nos banaliza aos poucos, avança em nossos territórios; toma posse do
que amamos, pisa o nosso jardim, mata os nossos filhos; e porque nunca
dissemos nada, agora mesmo é que já não podemos dizer.

Eles entram pela porta da frente . Alguns são capazes de roubar-nos a luz.
Fora da luz de nossa identidade, isto é, esquecidos de nós mesmos, somos
presas frágeis diante do medo. Ao medo cabe o poder de paralisar os que não
sabem do que são capazes. Esta ocupação do nosso território não é feita com
alarde.
No mundo das representações, os seqúestradores não estão encarapuçados,
tampouco nos surpreendem em vielas escuras. Eles andam às claras, e nem
sempre sabem que estão a serviço dos desumanizados. Também eles foram
vítimas de sequestro. Também eles não sabem que estão nos cativeiros do
mundo moderno, transitando entre as condições de sequestrado e
seqüestrador.

O elemento-chave para que esta incapacidade de percepção prevaleça é


justamente a artificialização do mundo. Não sendo afeito à reflexão, o sujeito
não se torna capaz de analisar as relações que estabelece. Vive sem pensar,
vive sem refletir; vive para machucar e ser machucado.

Transita pelos territórios minados da estrutura dos desumanizados e sofre a


triste condição de ser solitário e errante. Por não ser dono de si, dificilmente
poderá se oferecer a alguém de verdade. Viverá trancado em seu pequeno
cativeiro, incapacitado de reconhecer que precisa de ajuda para sair. Ele, em
sua miséria, abriga o mundo inteiro. Engrossa a fila dos necessitados deste
mundo, perde a oportunidade de fazer valer a sua existência, e passa a
desempenhar um papel muito pouco digno de ser aplaudido por quem o vê
atuar. O mundo nele não se recria, mas, ao contrário, acelera ainda mais o seu
processo de destruição. Nele o caos ganha força, representação.

Uma coisa é certa: onde houver um ser humano em processo de destruição,


nele todo o universo vive a dor de morrer aos poucos. O

contrário também pode ser verdade. Onde estiver um ser humano se


renovando pela força da Graça recriadora, nele todo o universo estará sendo
recriado.

Na condição de ser primeira morada do mundo, cada ser humano traz em si o


dom de transformar o mundo inteiro, mas isso só será possível se ele viver o
constante desafio de não perder-se de si mesmo.

Quando o sequestro da subjetividade se estabelece na vida de uma pessoa, o


que acontece é justamente a perda de identidade. Fragilizada, perde o poder
de lutar e de defender-se dos ataques que lhes são altamente nocivos.
Seu mundo é transformado em imundo. O que era ordem transforma-se em
caos. E o caos dos afetos, dos pensamentos, das diretrizes.

É o caos lançando suas raízes tão destruidoras e profundas, neutralizando as


iniciativas que poderiam gerar alguma forma de superação. É o mundo
deixando de ser mundo, assim como nas histórias que veremos agora.

DOIS CASOS DE SEQÜESTRO

O quarto era sombrio, imundo. A vida de quem o habitava também. Não


parecia um espaço humano. Não insinuava vida, estímulo para felicidade.
Recordava-me os lugares reservados para colocar esquecimentos, coisas que
não necessitam estar a vista, depósito de objetos sem utilidade.

Este é o quarto do meu filho! — revelou-me com voz embargada, cheia de


tristeza, aquela mulhernem jovem, nem velha. Na confissão quase
envergonhada de que aquele lugar estranho era o lugar da casa reservado ao
seu filho, a mulher parecia pedir socorro, como se estivesse contando ter
descoberto o lugar do cativeiro do filho sequestrado. Não, não era um lugar
distante dos seus olhos. Não era como nas histórias clássicas de sequestro, em
que os seqúestradores escolhem um lugar distante para manter a vítima em
estado de rendição. Era dentro da sua própria casa que os seqúestradores
mantinham o seu filho amado em condições inumanas.

Olhou-me com indignação, como se quisesse justificar-se de permitir aquele


absurdo. Meu filho dorme aqui! — repetia com tristeza. Parecia querer
acreditar em motivos desconhecidos, estranhos à razão humana, que
pudessem justificar a escolha tão errada de seu menino.

As drogas o sequestraram. Vítima da dependência química, aquele menino


dotado de inteligência rara entregou-se aos absurdos maus tratos que os
entorpecentes causam na vida humana. O vício chegou de mansinho, assim
como tudo na vida. Um cigarro hoje, uma cerveja amanhã. Drogas mais leves
no início, depois as mais pesadas e, aos poucos, bem aos poucos, os
seqúestradores foram assumindo o controle de sua vida. Violência, roubos;
tudo o que antes era inimaginável na vida do menino tornou-se real. A droga
o fez assumir uma personalidade estranha, alheia, porque provocou nele o
esquecimento de quem ele era. Seqúestradores costumam fazer isso com seus
sequestrados. Quanto mais esquecido ele estiver de sua natureza, maior será
sua entrega aos poderes de quem o seqüestrou, de quem o levou de si mesmo.

Seqüestros do corpo; seqüestros da subjetividade. Nem sempre é preciso


levar o corpo, acorrentá-lo de maneira concreta, real. Há um jeito sutil de
levar embora, de conduzir para fora, de fazer esquecer, de perder a
identidade.

Viciados não se pertencem mais. Estão sujeitos a uma necessidade que se


opõe à liberdade. Perderam a condução da própria vida, porque foram
levados por uma necessidade estranha, alheia, mas determinante.

A família já havia tentado ajudar de todas as maneiras possíveis.

Internações, terapia, mas nada deu certo. O menino morria gradualmente aos
olhos de todos. Por muitas vezes a mãe vasculhava o seu esconderijo, seu
cativeiro, para procurar a droga que o viciara tanto, mas de nada adiantava.
Ela sempre soube que não adiantaria muita coisa retirar a droga de suas
gavetas e bolsos. Ela precisava era retirar a droga de dentro dele, lá na raiz da
dependência, onde um dia os traficantes, os seqüestradores de seu filho,
plantaram suas sementes tão maléficas.

Outra história. Ela era uma moça bonita. Beleza não convencional; beleza
rara. Tinha quinze anos quando conheceu o rapaz. Ele chegou quando ainda
não era tempo de chegar. Pediu da menina o que ela ainda não estava
preparada para oferecer. Ela não soube dizer não. O encanto tem o poder de
cegar os que estão encantados. Os encantadores sabem disso. Pouco a pouco,
ele foi invadindo a sua casa, a sua vida, os seus valores. Feito um posseiro,
desrespeitou as cercas e proclamou ser proprietário da vida daquela moça,
que ainda tinha ares de criança. Aquela que até tão pouco tempo brincava de
boneca agora tinha nos braços uma criança de verdade. Maternidade
prematura.

Ele não a assumiu como esposa. Sumia e aparecia quando bem entendia. Ela
era apenas um objeto de sua satisfação. Ela deixava que fosse assim.
Não tinha forças para discordar. O encanto ainda continuava. Ele fez com que
ela esquecesse todos a quem amava. Tornou-se uma estranha dentro de sua
própria casa; perdeu a liberdade de pedir afeto, de demonstrar fragilidade, de
voltar a ser menina, ainda que já tivesse uma outra criança nos braços.

Aquele rapaz não lhe deixara apenas um filho. Deixou-lhe também a


dependência química do álcool. Dezesseis anos, mãe e alcoólatra. O processo
de destruição foi rápido. Do álcool passou à cocaína e depois veio o craque.
Numa manhã iluminada de setembro, ela apareceu morta, vítima de overdose,
na garagem de sua casa.

Um destino cruel para quem poderia ter sido tanto na vida. Aquela manhã de
primavera selou um sequestro que não teve resgate. Trágico fim, trágica
continuidade na vida de seus pais e amigos.

Duas vidas, duas histórias escritas com tintas carregadas de sofrimento. Dois
exemplos clássicos de sequestro da subjetividade. Ambas as histórias têm
como protagonistas gente de pouca idade, vulnerável às imundícies de nosso
tempo. Seduções que resultaram em tragédias. Realidades comuns nos nossos
dias, em que as pessoas se tornam incapazes de romper com as forças que as
destroem. Perdem o amor próprio, deixam de olhar o que amam;
desamparam-se aos poucos até perder o senso de díreção.

O processo é sempre assim. O seqúestrador afasta sua vítima de tudo o que


para ela representa segurança. Quanto maior a insegurança, maior será o seu
domínio. Seqúestradores são especialistas em nos fazer esquecer nossos
portos seguros. Ao sequestrado resta pouco. Terá que se acostumar com a
comida qualquer, com o cativeiro qualquer, e depois com uma vida qualquer.

O sequestrado perde o paraíso, é expulso de sua própria casa, é deserdado,


porque perde o direito de possuir-se em sua riqueza original. Não sei se há
perda maior que essa. Perder a possibilidade de ser. Ser privado da maior de
todas as riquezas. Passar a representar o personagem que o seqúestrador
escreveu para sua atuação. Ele diz o que o sequestrado será. E, agora, o que
lhe resta é seguir a fio sua definição.

Representar o papel que o outro escreveu é o mesmo que abdicar do direito


de escrever a própria história, o próprio enredo. É permitir que a máscara seja
colada na cara, ocultando assim o que se é.

Máscaras ocultam pessoas. Privam-nas de viver a dinâmica que a verdade


proporciona, ou seja, levar o ser humano à posse do que se é e assim colocá-
lo à disposição dos que estão ao seu lado.

O conceito de pessoa, proposto pela reflexão cristã, é profundamente


enriquecedor. Ele é estabelecido a partir de dois pilares, que serão tratados
agora.

O ENCANTO DE SER PESSOA

A palavra pessoa é muito comum entre nós. Apesar de a repetirmos o tempo


todo, nem sempre a aplicamos com a devida consciência de seu significado.
Geralmente a compreendemos somente como referência primeira ao ser
humano, mas creio que valha a pena mergulhar um pouco mais nos
significados profundos para os quais a palavra pode nos apontar.

A palavra "pessoa", do latim persona e do grego prósopon, foi amplamente


sustentada na cultura como referente aos "disfarces teatrais", e por isso ficou
muito associada à personalidade representada pelo ator. Os gregos, grandes
inventores do teatro, e certamente os maiores fundadores da cultura ocidental,
legaram-nos essa palavra e essa derivação: pessoa é a máscara que o ator
sustenta no rosto. O contexto cristão ultrapassou essa concepção e plenificou
a palavra para um sentido mais profundo.

Segundo a Antropologia teológica cristã, o conceito de pessoa deve ser


compreendido a partir de dois pilares: ser pessoa consiste em "dispor de si" e
depois "estar disponível". Dispor de si é o mesmo que "ser de si, ter posse do
que se é". Esse primeiro pilar refere-se diretamente a tudo aquilo que já
mencionamos a respeito da subjetividade. O eu primeiro, o irrenunciável que
nos caracteriza em nossa singularidade.

E interessante perceber que a singularidade é um tesouro que não se esgota.


Constantemente, vivemos a aventura de desvendar nossos territórios.
E como se todos os dias fizéssemos uma caminhada pelo espaço onde está
localizada nossa casa, e sempre descobríssemos lugares nunca antes
percebidos.

Uma vez descoberto, o território passa a incorporar o que somos. Olhamos e


dizemos: isso é meu! Descobrir não é o mesmo que inventar. Nós já estamos
em nós; o único esforço é descobrir o que somos.

Isso traz ao conceito de pessoa uma dinâmica que nos possibilita dizer que,
enquanto estivermos vivos, estaremos constantemente aumentando nossa
propriedade. Estaremos nos aventurando no duro processo do
autoconhecimento, desbravando fronteiras, retirando as travas das porteiras
que nos impedem de ir além do que já pudemos avançar em nós mesmos.

Cada pessoa é uma propriedade já entregue, isto é, dada a si mesma, mas


ainda precisa ser conquistada. E como se pudéssemos reconhecer:

"Eu já sou meu, mas preciso me conquistar", porque, embora eu tenha a


escritura nas mãos, ainda não conheci a propriedade que a escritura me
assegura possuir.

A disposição de si é dom. Deus nos entrega a nós mesmos o tempo todo. E


presente que tem o poder de nos encantar pela vida inteira.

Presente imenso que requer calma no desembrulho. Vamos aos poucos,


tomando posse, retirando lacres, descobrindo detalhes. Tornar-se pessoa é
aventura constante de busca, e o resultado dessa busca é a disposição de si.

O segundo pilar do conceito de pessoa consiste em "estar disponível". O que


dispõe de si estabelece relações. Depois de assumida a propriedade, aquele
que se possui passa a ter condições de receber visitas. Ser visitado é também
um jeito de reconhecer o que possuímos. A presença do outro nos indica o
que somos. O encontro nos diferencia num primeiro momento para depois
nos congregar. No processo da diferenciação está a posse de si mesmo.

Olhamos para o que o outro é e descobrimos que não somos o outro. Já no


processo de congregação, somos desafiados a unir o que somos àquilo que os
outros não são. O contrário também é verdadeiro. Unimos o que ainda não
somos àquilo que os outros já são.

Somos semelhantes às tramas dos teares. Os fios se entrelaçam para juntos


formarem o tecido. Em suas cores diversas, eles não deixam de ser o que são.
Outro exemplo torna interessante o mundo das palavras. Uma palavra na
solidão tem um significado particular. Quando colocada no contexto da frase,
porém, ela amplia a sua capacidade de significar. E o abraço das palavras que
gera o significado da frase. Ser pessoa é, antes de qualquer coisa, ser uma
palavra, para depois ser frase.

Nisso consistem os dois pilares do conceito de "pessoa".

Possuir-se para disponibilizar-se. É a vida na prática, é a trama da existência


e sua riqueza insondável. Encontros e despedidas. Passagens transitórias,
chegadas definitivas. Vida se desdobrando em pequenas partes. Eu me
encontrando, surpreendendo-me, como se ainda não soubesse nada sobre
mim. Eu misturando minha vida na vida do outro, encontrando-o, permitindo
que nossos significados nos congreguem. Eu abandonando a solidão de
minha condição de posse de mim mesmo para alcançar a proeza de ser com o
outro.

Antes, a solidão do eu; depois, o estabelecimento do nós. Encontro de


pessoas.

Um eu que se encontra com um tu e que juntos estabelecem um nós.

Martim Buber, grande nome da filosofia personalista, nos propõe esta bela e
fecunda verdade. No encontro entre um eu e um tu, uma terceira pessoa de
existência própria se estabelece3. Nossos olhos não podem enxergá-la, mas a
nossa sensibilidade nos aponta para ela. O nós é o que sobra do encontro
entre o eu e o tu.

E importante salientar que, embora a reflexão de Buber seja importante para


o nosso contexto, ela ainda não alcança o significado a que necessitamos
chegar. Buber não se ocupa com a "subsistência". Seu empenho está em
relatar o segundo aspecto do conceito de pessoa. Sua reflexão está situada no
encontro e não nas fontes particulares que geram o encontro. Este avanço
quem o faz é Zubiri, que salienta a necessidade de pensar a relação humana a
partir do momento da subsistência, para depois chegar aos encontros e atos
dela surgidos.

Talvez seja por isso que os outros nos despertem simpatias e antipatias.
Gostamos mais de estar com uns que com outros justamente por causa disso.
O que nos atrai no outro é a terceira pessoa que conseguimos fazer nascer
com o nosso encontro.

Esse processo de agregação possibilita ao ser humano o crescimento de seu


horizonte de sentido. Tornamo-nos mais ricos com a presença dos que nos
agregam. Relações saudáveis são relações que nos devolvem a nós mesmos
— e, o melhor, devolvem-nos melhorados. O outro, ao passar pela nossa
vida, encontra-se com nossa subjetividade. Ao estabelecer conosco uma
relação, ele está nos permitindo adentrar o seu território subjetivo. Esse
encontro faz surgir uma terceira pessoa, o nós. Respeitadas as subjetividades,
isto é, as pessoas não deixam de ser elas mesmas, o encontro humano alcança
o seu poder de integrar as partes, entrelaçando-as sem que elas se confundam.

O amor talvez seja isso. Encontro de partes que se complementam, porque se


respeitam. E, no ato de se respeitarem, ampliam o mundo um do outro. O
recém-chegado não tem o direito de reduzir o mundo de quem se deixou
encontrar. O amor não diminui, mas multiplica.

As caricaturas do amor são prejudiciais porque fazem absolutamente o


contrário. Diminuem o horizonte, restringem, aprisionam, sequestram. Em
nome do amor, cometemos atrocidades. Amarramos os outros em nós, porque
nos equivocamos na compreensão do que consideramos ser amor. Amar não
é fazer do outro nossa propriedade. Ninguém é tão completo que seja capaz
de preencher totalmente as necessidades do outro. E absurdo pensar que nós
possuímos todos os elementos de que o outro precisa para o seu crescimento.
Por isso há modalidades de amor.

O namorado que chega não tem amor de pai para oferecer. E por isso não terá
o direito de afastar a menina de seu pai. Ele não tem amor de mãe, de irmão.
Ele é portador de um amor novo que chegou, e por isso encantou, mas não é
o amor único. Ele é recém-chegado, e ainda que a menina não tenha sido
amada o suficiente em sua casa, o amor de que ela dispõe na família é muito
importante para que continue se construindo como pessoa.

É nesse momento que necessitamos de muita sabedoria para não nos


prejudicarmos com nossos amores. O risco do sequestro está na pretensão do
novo que chegou. Ele não pode desconsiderar o mundo particular e subjetivo
construído antes de sua chegada. Sua presença deverá enriquecer, e não o
contrário.

Vivendo a condição de novo que acaba de chegar, seu papel será, num
primeiro momento, observar. Amar é antes de tudo conhecer. É investigação
da história, dos sentimentos, dos desejos, medos e anseios. Só quem ama tem
disposição de ir além da superfície.

No aprimoramento da visão que temos do outro seremos capazes de


identificar o quanto amamos, ou não. Quem ama quer conhecer. O objetivo é
simples: acrescentar, multiplicar em vez de subtrair.

Não é tão simples saber se o outro nos ama ou não, mas há uma pergunta que
podemos nos fazer e que contribuiria para que nos aproximássemos de uma
resposta. Depois que ele chegou, a nossa vida, nosso mundo, diminuiu ou
dilatou-se?

Sempre que alguém chega à nossa vida nunca vem sozinho. Ele traz o seu
horizonte de sentido. Pessoas, coisas, valores, ideias. Traz o alicerce que o
faz ser o que é.

O exemplo é simples e nos ajuda a entender. É impossível comprar uma casa


só com as paredes e acabamentos. Não é possível transplantar uma casa. Se
quiser a casa, terá de ver o local em que ela está construída. Comprar uma
casa pronta exige uma atenção muito especial. É

preciso que estejamos atentos quanto à sua localização: vizinhança, alicerces,


paredes, acabamentos. Para qualquer mudança que queiramos fazer, teremos
que considerar a sua estrutura fundamental.
Casas e apartamentos são construídos a partir de alicerces, paredes e vigas de
concreto. As paredes podem até sofrer alterações, mas as vigas de concreto
terão que ser respeitadas. Retirar vigas é prejudicar a sustentação da
construção. Paredes até poderão ser destruídas, mudadas de lugar, mas a
estrutura não poderá sofrer mudanças.

O processo de feitura da pessoa humana é semelhante às construções. Desde


nossa vinda ao mundo, recebemos um formato, uma estrutura. Amar alguém
consiste em observar onde estão as vigas de sustentação, para que não
corramos o risco de derrubar o que a faz permanecer de pé. O

interessante é que a construção poderá ser reformada, melhorada, sobretudo


nos acabamentos. O amor é criativo, dribla os limites, supera expectativas.

Voltamos a dizer: pessoas são semelhantes às construções.

Possuem históricos que necessitam ser respeitados. Não acreditamos que


alguém se interesse por uma propriedade, ou dela queira aproximar-se, para
torná-la pior. Se alguém precisa comprar uma casa, já o fará pensando nas
melhorias que poderiam ser feitas, mas regredir nunca.

Se nossas relações com as coisas já são assim, cheias de cuidados, muito mais
deveriam ser com as pessoas. Nossos encontros, ainda que rápidos e
transitórios, deveriam ser moitivados pelo desejo de fazer crescer, melhorar,
avançar aqueles que encontramos, e a nós mesmos.

É assim que podemos intensificar o nosso processo de "ser pessoa". Á


medida que motivamos e somos motivados para o autoconhecimento,
tornamo-nos proprietários do que somos e naturalmente colocamo-nos à
disposição dos outros.

É muito interessante perceber que onde existe uma pessoa de verdade, isto é,
no sentido exato do termo, ali outras pessoas também estão sendo feitas. Isso
se explica por uma razão muito simples. O processo de tornar-se pessoa é
contagiante. Quando encontramos alguém que verdadeiramente está
desbravando seu universo de possibilidades e limites, de alguma forma nos
sentimos motivados a fazer o mesmo.
Não me leve de mim.

Leve-me até mim.

PEDIDO

Eu não quero que você seja eu

Eu já tenho a mim.

O que quero é que você chegue

Com seu poder de chegar

E de me devolver pra mim.

Que você chegue com seu dom

De também me fazer chegar

Perto de mim...

Pra me fazer ver o que sou e que só você viu.

Pra eu ser capaz de amar também

O que só você amou.

Eu não quero que você seja igual a mim.

Eu já tenho a mim.

Não quero construir uma casa de espelhos

Que multiplique minha imagem por

todos os cantos.

Quero apenas que você me reflita


Melhor do que julgo ser.

RELAÇÕES QUE SEQÜESTRAM

Como vimos, o processo de ser pessoa está diretamente ligado à problemática


do sequestro da subjetividade. A razão é simples. Se uma pessoa está privada
de ser ela mesma porque alguém a trancafiou em uma relação de sequestro, é
bem provável que ela deixe de dispor de si mesma e conseqúentemente deixe
de dispor-se aos outros. Os sequestros da subjetividade deixam marcas nas
duas perspectivas: indispõem a pessoa para si mesma e também para o outro.
Por isso, temos duas realidades dignas de análise que podem ser assim
simplificadas: ou vivemos só para nós ou vivemos só para os outros. Nos dois
casos há um grande erro sendo cometido.

Viver a dinâmica que o conceito de pessoa nos sugere é tra-balhoso. Se nos


fecharmos na disposição do que somos, e se não dermos o passo na direção
do outro, cairemos numa espécie de solipsismo4, ou então numa negação da
subjetividade concreta.

O eu, na solidão, sem interação, não poderá crescer. O outro tem o poder de
indicar nossas possibilidades e limites. O que dispõe de si mesmo carece de
entrar na disponibilidade das relações. Elas o aperfeiçoarão.

Por outro lado, a conjugação deste nós, sem que antes tenha ocorrido a
disposição do eu, caracteriza-se como forma de comu-nitarismo infértil. A
qualidade da vida social está diretamente relacionada à qualidade das pessoas
e suas articulações particulares.

Antes da disponibilidade para o outro, é indipensável a disposição de si,


porque só assim haverá liberdade real. Só quem é dono de si pode oferecer-se
aos outros, sem tantos riscos de se perder no outro.

O desafio consiste em equilibrar os dois pilares. Não há pessoa sem a solidão


do eu, tampouco há pessoa sem a interação plural. As duas realidades se
complementam. A qualidade humana das relações depende das dosagens que
fazemos desses dois pilares. As medidas do meu ser precisam ser balanceadas
com as medidas daqueles que são e estão ao meu lado.
Um ser humano bem equilibrado e socialmente saudável consegue identificar
essas medidas, e empenha-se para que uma realidade não estrangule a outra.
Quando essa conduta não é assumida, o que temos é uma relação que tem o
poder de provocar o sequestro da subjetividade.

Relações que sequestram são aquelas em que um eu tenta sufocar outro tu,
reduzindo-o a mero instrumento de sua afirmação. O outro não é considerado
em sua alteridade, mas é visto como extensão das necessidades de quem o
enxerga.

A esse processo, Martim Buber chamou de relações objetais. O

outro é visto como um isso e não como um tu. Não há epifania da sacralidade
do outro. Feito um objeto, o outro perde o direito de ser ele mesmo,
desprende-se de sua identidade, de sua condição real, e passa a ser "coisa" na
mão de quem o desconsidera.

Alguém, quando é colocado na condição de algo, vive a negação de sua


dignidade; desumaniza-se, porque deixa de ser considerado como pessoa, e
passa a viver a condição de objeto. Deixa de ser "organismo" para se
transformar em "mecanismo".

Nos seqüestros do corpo, esse processo é evidente. O sequestrado não tem


valor como pessoa. E uma coisa a ser negociada. E um bem útil que será
avaliado e possivelmente trocado. E um mero mecanismo para se chegar a
algum objetivo. Um mecanismo que satisfará a necessidade que o
seqúestrador tem para alcançar um resultado.

No seqüestro da subjetividade, o mesmo acontece. O

seqúestrador passa a ser o proprietário. Ele definirá o ritmo da relação, e o


sequestrado, vivendo a condição de vítima, será incapaz de reagir de forma
contrária aos desejos de seu proprietário. O rapaz e sua dependência química,
a menina e seu namorado são exemplos dessa incapacidade de romper com o
seqúestrador.

O seqüestrado permite essa relação. O medo de ser deixado, abandonado, o


encoraja a sofrer todos esses malefícios. Nesse caso, vale aquela máxima
popular: "Ruim com ele, pior sem ele!"

E lamentável, mas esse discurso tão cheio de conformismo é muito comum


entre nós. Ele evidencia o quanto as pessoas estão indispostas para um
rompimento com as relações de seqüestro, justamente porque a quebra do
cativeiro gerará um sofrimento nos seqüestrados. No caso dos dependentes
químicos, o sofrimento da abstinência e, nos dependentes afetivos, o
sofrimento ao romper os vínculos.

Por isso a dificuldade em tomar iniciativas. O cativeiro, por pior que seja,
acabou por se tornar um lugar seguro. O sequestrado está esquecido da vida
livre; já não sabe como é ser gente fora das prisões. Esqueceu que é rei e vive
como se fosse escravo. O tempo no cativeiro o fez acostumar-se com a
comida qualquer, com o amor qualquer, com o cuidado qualquer.

Quem sobrevive de qualquer maneira facilmente também se considera


qualquer pessoa; inclui-se no contexto da multidão como se fosse apenas
mais um.

É a cultura do "qualquer jeito" que tem anestesiado tanto as pessoas para as


transformações necessárias. A mediocridade existencial tem sido a opção
mais fácil.

Este é o resultado psicológico desta modalidade de sequestro. O

que temos é uma vítima acostumada com a violência que sofre. A vítima
torna-se a principal responsável pela condição mantida. É a violência
assumindo o seu caráter destruidor e definitivo. Violência sutil, velada, que
não tem as mesmas características do ato violento declarado.

Façamos esta distinção.

VIOLÊNCIAS DECLARADAS E VIOLÊNCIAS VELADAS.

Ato violento é tudo aquilo que atenta contra a pessoa e lhe causa danos. O
contexto da violência é bastante amplo. Ela pode se manifestar de formas
muito diversas, de maneira que podemos falar de violências declaradas e
violências veladas.

Essas modalidades de violência, de alguma forma, são desdobramentos dos


temas que estamos abordando: o sequestro do corpo e o sequestro da
subjetividade.

Quando falamos de violência declarada, estamos lidando sobretudo com os


atos da corporeidade. A violência explícita, sem máscaras, inegável. O corpo
que sofre a violência é a prova concreta do desrespeito. Nele, há evidências
de que houve uma invasão de territórios, um delito.

O corpo sofre na carne as consequências da violência declarada.

Constantemente experimentamos os medos dessa modalidade. Medo de


assalto, sequestro, latrocínio, acidentes; tudo constitui um quadro que
contemplamos diariamente nas paredes de nossa vida.

Por outro lado, as violências veladas são as invasões sutis que não podem ser
vistas com facilidade. Trata-se de um processo silencioso com o poder de
minar a subjetividade humana e privá-la de sua autonomia.

Um exemplo simples que sempre me ocorre é a história de uma senhora que


encontrei casualmente no aeroporto. Seguimos juntos a viagem e, depois de
algumas horas de conversa, ela me contou que sempre quis ser médica, mas o
pai a proibira, porque desejava que ela fosse advogada. Tentou de tudo para
convencer o pai de sua aptidão para as ciências biológicas, mas nada fez com
que o pai mudasse de idéia.

Nascida num tempo em que filhos não costumavam se opor às determinações


dos progenitores, desistiu de seu sonho. Estudou direito, mas nunca
conseguiu trabalhar na área. Casou-se, limitou-se às atividades domésticas e
acabou não realizando o seu sonho.

Esta história retrata uma forma de violência terrível. Alguém se levanta


contra o sonho que não é seu e determina o destino do outro como se
estivesse determinando o próprio. Violência cruel que pode marcar
definitivamente a vida de alguém.

Violências semelhantes podem acontecer no seio da vida conjugal. São


violências domésticas, posturas arbitrárias une m.ir cam as relações no
casamento, quando há a prevalência de uma das partes por meio da força
psicológica que coage e medra.

Os violentados não exibem marcas no corpo que denunciem a violência,


porque não há agressão física. O que se agride é mais profundo, vai além do
que nossos olhos podem ver.

Há quem exerça o domínio sobre os outros sem ao menos aumentar a voz. A


autoridade, nesse caso, não passa pelos códigos que identificamos como
agressividade. O que há é um processo de rendição por meio do medo e da
coação. A violência velada deixa marcas no caráter, porque inibe o
florescimento e o desenvolvimento da personalidade.

As relações humanas estão sempre vulneráveis aos riscos dos atos violentos
velados. Podemos identificar muitas delas, mas, neste momento, queremos
observar uma relação profundamente problemática nos dias de hoje: pais e
filhos.

Uma das conseqüências da grande crise de valores vivida pela sociedade


contemporânea é justamente a indefinição dos papéis familiares. Se no
passado existia o risco da autoridade exacerbada, como no caso do pai que
não permitiu que a filha seguisse sua vocação profissional, hoje vivemos o
risco da ausência de referencial de autoridade.

Pais que não sabem como dosar a liberdade de deixar que os filhos cresçam.
Pais que não sabem realizar a intervenção necessária para ajudar a nortear o
crescimento. E a crise dos papéis. Filho já não sabe ser filho, na mesma
medida que pais não sabem ser pais.

Nesse descontrole, que tem sempre como foco o desejo de acertar

— afinal, ninguém quer errar na educação dos filhos —, encontramos uma


violência velada sendo praticada contra crianças e adolescentes.
Quando um progenitor permite que o filho faça o que bem entender de sua
vida, uma violência terrível é cometida. Se por um lado a proibição arbitrária
se configura como violência que impede o crescimento da pessoa, por outro,
a permissão deliberada e sem critérios torna-se fonte da mesma privação.

Cada vez que uma criança ou um adolescente é exposto ao direito de decidir


o que ele ainda não está preparado para decidir, um ato de violência é
cometido. E também violência permitir que assuntos que não são próprios do
universo infantil sejam tratados na frente de crianças. E violência cada vez
que uma criança é vestida como se fosse um adulto, e dela é solicitado um
comportamento que não condiz com sua idade.

Expor uma criança à necessidade de ser adulto ou exigir dela a compreensão


de um universo diferente do seu é o mesmo que expô-la à orfandade.

O resultado dessa violência é profundamente comprometedor na vida daquele


que a experimenta. Crianças sem limites podem se tornar adultos imaturos.

Violências veladas e violências declaradas. Violentados legitimando o poder


daqueles que os violentam. Ambos privados da relação que tem o poder de
promover a dignidade e o aperfeiçoamento do humano.

DUAS HISTÓRIAS PARA AJUDAR A ENTENDER O GRANDRE

AGRESSOR...

Ela me olhou cheia de receios. Os olhos estavam muito inchados. A pele


escurecida por hematomas era a denúncia que não carecia de palavras. A
violência havia passado por ali.

A boca com um pequeno corte no canto esquerdo dificultava sua fala. Voz
mansa, embargada por rompantes de choro doído. Choro de quem não sabe
pedir ajuda.

Ela era uma mulher bem-sucedida, emancipada. Bancária, mãe de três filhos
que já cursavam faculdade na capital, dividia o lar com seu marido, um
empresário que não se especializou na arte de amar.
Ele entrou na sua vida quando ela ainda era uma adolescente. O

casamento aconteceu dois anos depois de iniciado o namoro. Ela não teve
muita escolha. Vida no interior é assim. O casamento parece ser obrigação a
ser cumprida, ainda que não exista amor.

Os atos de violência começaram alguns meses depois de casados.

Primeiramente os gritos que não existiram durante o namoro, depois


pequenos empurrões, até chegar ao absurdo de surras que a deixavam
marcada por todo o corpo.

No dia em que me pediu ajuda, ela já acumulava cinquenta e dois anos, dos
quais trinta e quatro vividos ao lado do seu agressor.

Reconheceu que não sabia mais o que fazer, mas já sabia que tinha que fazer
alguma coisa. As agressões não estavam apenas na sua pele. Estavam em
toda a sua alma. Cicatrizes no corpo nos recordam o sofrimento do corpo,
mas há outras cicatrizes mais profundas que não conseguimos enxergar com
facilidade.

Aquela mulher chorava por razões novas e antigas. A primeira surra, já


distante no tempo, quase trinta e quatro anos, ainda doía em algum lugar da
alma.

Perguntei a razão de sofrer calada até aquele dia, e ela me confessou que
tinha medo de que, ao contar para alguém, pudesse perdê-lo. Os filhos não
sabiam das agressões. Tudo foi muito velado ao longo da vida, e aquele
último episódio veio a público porque um vizinho escutou os objetos sendo
quebrados durante a agressão e entrou na casa.

Ela não conseguia olhar nos meus olhos enquanto me dizia tudo isso. Preferia
fixar a atenção no movimento das mãos que seguravam um pequeno pedaço
de barbante. Enquanto contava os fatos, aquele pequeno barbante era
enrolado e desenrolado nos dedos, como se aquele movimento representasse
o movimento da sua vida.
Ouvia sem saber o que dizer. Estava indignado. Indignação costuma cortar a
fluência das palavras. Ousei perguntar se ela queria separar-se dele, e
prontamente ela me disse que, se isso acontecesse, ela não saberia o que fazer
da própria vida. E o barbante continuou sendo enrolado nos dedos...

Não pude fazer muita coisa. Ela não quis denunciá-lo à polícia.

Embora eu soubesse que esta seria a atitude correta, tive que respeitá-la.

Perguntei o que ela queria de mim. Olhando-me com serenidade, disse-me


que só queria desabafar; apesar de eu ter idade para ser seu filho, ela sentira
um desejo de que eu a tratasse como filha. E eu o fiz. Eu a abracei e lhe
garanti que a apoiaria seja qual fosse sua decisão.

Agradeceu-me e fui embora.

Aquela senhora não sabia viver longe de seu agressor. Amor de domínio,
amor estragado. O tempo prolongado no cativeiro, quase uma vida inteira,
retirou-lhe a coragem de falar dela mesma. Aprendeu a engolir o choro, a não
reclamar dos maus tratos. Subjugou seu coração ao domínio de um homem
frio e insensível que se proclamou proprietário de sua história. Ela permitiu.

A surra que deformara seu rosto começou leve. Antes de ser tapa, foi grito.
Permitido o grito, vieram os empurrões. Dos empurrões aos golpes violentos
foi um salto pequeno. Tudo começa pequeno nessa vida; e só cresce se o
permitirmos.

Aquela mulher autorizou o invasor. Abriu o portão para que ele viesse pisar o
seu jardim. E, depois de tanto tempo, descobriu que não possuía voz nem
coragem para proclamar a ordem de despejo.

Pequenas permissões abrem espaços para grandes invasões.

Grandes tragédias começam com pequenos descuidos. Desastres terríveis são


iniciados com displicências miúdas. São as regras da vida. Se quisermos o
fruto, é preciso que haja empenho no cultivo do broto.
O agressor não foi repreendido. Ele cresceu e alcançou força porque a própria
vítima o nutriu. Os inimigos só podem sobreviver à medida que injetamos
sangue em suas veias.

A vida nos jardins ensina-nos uma sabedoria milenar. Plantas precisam de


podas para que não ultrapassem os limites estabelecidos Não houve poda, e
por isso a árvore avançou o território que não poderia ter avançado. Arvores
crescem sem disciplina. A tesoura de poda é que dará o rumo que a árvore
poderá seguir.

O PEQUENO AGRESSOR...

Uma outra história, uma outra mulher. Nessa mulher não existiam marcas de
violência. O que havia era uma expressão de cansaço num rosto que parecia
ter envelhecido antes do tempo. O rosto é o retraio da história vivida.

Nela, o sofrimento não nasceu de agressões de um mando que não soube


amar, mas de um filho que, aos nove anos de idade, assumiu o comando da
casa. Um filho sem limites, agressivo e totalmente arredio a qualquer regra.

Contou-me que o casamento havia terminado poucos meses antes. O marido,


incapacitado de transformar a relação que ela estabelecera com o filho,
resolveu ir embora definitivamente. Deixou de ser marido, mas também
deixou de ser pai.

Ela disse que não fez muito esforço para que o marido permanecesse.
Alimentava a ilusão de que com sua ausência o filho pudesse se tornar mais
dócil, mas isso não aconteceu.

Contou-me também que o marido não teve muita influência na educação do


menino. O trabalho lhe retirava rotineiramente da vida familiar, e, nas poucas
vezes que tentava alguma forma de repreensão, a mãe o desautorizava
severamente.

Envergonhada, confessou-me que, por duas vezes, o menino a agrediu


fisicamente. Na primeira ocasião, a reação agressiva foi pelo simples fato de
ela ter passado pela sala sem pmvbiT ler levado com o pé o cabo do vídeo
game. Arremessou-lhe uma tesoura e a machucou na perna.

A segunda agressão resultou de uma pergunta corriqueira, coisa de quem


ama: a mãe apenas perguntara se o filho já havia tomado café.

A envelhecida mulher salientou um detalhe interessante.

Confessou-me que, mais doído que receber uma agressão física do próprio
filho, foi ouvi-lo gritar o desejo de matá-la.

Depois disso, ela percebeu que precisava de ajuda. Recorreu a uma psicóloga,
mas o menino se recusou a entrar no consultório. A psicóloga a alertara para
a necessidade de retomar a autoridade sobre a criança, mas ela não soube nem
tentar.

A vida não estava fácil. Estava sendo refém do seu amor.

Reconheceu que errou por amar de um jeito errado. Não, ela não queria errar.

Queria apenas livrar o seu menino da infância triste que ela vivera ao lado de
um pai agressor. No ímpeto de fazer-lhe bem, acabou por alimentar no filho
uma personalidade sem controle e monstruosa.

Admitiu temê-lo. Reconheceu que escolhe as palavras para falar com ele,
porque teme sua reação. A relação está invertida. O filho assumiu o controle
da mãe. Ele tem acesso ao seu medo, sabe que é soberano porque reconhece a
fragilidade da mulher que não quer errar.

Não querer errar é uma fragilidade terrível. O medo do erro nos neutraliza as
forças e não nos permite ir além de nosso pequeno mundo.

O pequeno homem de apenas nove anos de idade é o seu agressor. No relato


daquela mulher, pude identificar o sofrimento que nasce da boa intenção.
Mas boas intenções não salvam o mundo. É preciso um algo a mais. E

preciso a constante vigilância do discernimento que nos assegura se nossas


intenções estão de fato alcançando o melhor resultado. Amores cegos podem
nos conduzir ao caos.

A dura experiência de uma mulher que aos trinta e sete anos de idade é refém
de seu filho de nove é a prova concreta dessa afirmação. Os dois estavam
marcados por limitações fecundas: o menino, privado de ser educado de
maneira correta, e a mãe, privada de sua autoridade e de sua própria
liberdade. O

amor não pode ser cego. Caso contrário, ele nos coloca no cativeiro, gera
privações.

Na tentativa de livrar seu filho do sofrimento que um dia havia


experimentado, ela o privou da disciplina que gera caráter. Filho que não é
criado a partir de limites estabelecidos é filho sem pai e sem mãe. O limite é a
expressão concreta do amor dos pais. Eles delimitam o território para que o
filho cresça sem ser tão vitimado pelos males que são próprios dos dias de
hoje.

Ouvi o desabafo daquela mulher e confesso que não soube muito o que dizer.
Reverter um quadro como esse requer muita sabedoria. Sugeri ajuda
terapêutica para os dois.

A necessidade de ambos diz respeito à posse de suas identidades.

Eles não sabem o que são na relação que estabeleceram. A mãe precisa saber
que é mãe e o filho que é filho. Como vimos anteriormente, a identidade
assumida nos posiciona a partir do que podemos, mas também do que não
podemos. Que mudem as mentalidades, porém uma coisa não poderá ser
mudada: pais e mães não têm o direito de abdicar da responsabilidade de
educar os seus filhos, e educação é o processo amoroso de estabelecer limites
não está acontecendo, então temos alguma subjetividade cortada, isto é, uma
pessoa ausente de si mesma, distante de seu papel.

Duas histórias de agressões originadas de fontes tão distintas. Um marido


agressivo e um filho sem limites, mas ao mesmo tempo comportamentos tão
semelhantes. Vítimas que construíram seus agressores, aos poucos, bem aos
poucos.
Isso nos leva a entender que a seriedade da violência não depende do
tamanho de quem agride. Uma criança tem o mesmo poder que um adulto,
desde que a ela seja dada a autoridade. O que legitima a violência é a
autoridade que entregamos ao agressor.

O desafio constante das relações humanas é preservar a liberdade das


pessoas. Quando a liberdade é negada, a relação passa a representar um sério
risco, porque atenta diretamente contra a fonte geradora da pessoa. Não há
pessoa sem a experiência da liberdade.

LIBERDADE: DO SIGNIFICADO À REALIDADE

Já somos livres, mas ainda não. Parece um jogo de palavras, mas não é.
Trata-se de uma perspectiva muito interessante que pode ser explicitada de
maneira simples a partir de uma frase: nem tudo o que temos já é nosso,
porque carece ser conhecido e conquistado.

É simples. Já parou para pensar nos inúmeros talentos e habilidades que você
possui, mas que ainda não desenvolveu por falta de cultivo? E disso que
estamos falando. Há talentos que só poderemos saber que os possuímos se
fizermos alguma coisa para despertá-los. É processual, isto é, carece de
tempo, disciplina, projeto.

Liberdade é semelhante a um talento. É um elemento constitutivo humano


desencadeado à medida que o ser humano se esmera no processo de torná-lo
real. A conquista da liberdade se dá no mesmo processo do "tornar-se
pessoa".

Ao "tomar posse de si mesma", a pessoa torna-se livre para ser para o outro.
Um movimento gera o outro, de maneira que serei mais pessoa à medida que
for mais livre, e mais livre à medida que for mais pessoa.

Toda vez que sofremos uma violência, de alguma forma nossa liberdade é
ameaçada, isto porque um ato de violência tem o poder de repercutir
diretamente na estrutura do ser. A violência, declarada ou velada, aprisiona
nossa humanidade e a priva de viver o desafio de alcançar a si mesma.
Por isso, o desafio humano da liberdade consiste em tomar posse do que se é,
mas que ainda não foi totalmente alcançado. Para entendermos melhor essa
questão, vamos nos remeter ao contexto da filosofia de Aristóteles.

Há duas categorias filosóficas explicitadas na reflexão de Aristóteles, ambas


de fundamental importância para uma compreensão mais acertada do que
pretendemos analisar.

No afã de explicar a realidade, Aristóteles estabelece as categorias de "ato e


potência". Para ele, o movimento da vida parte sempre da potência ao ato, da
privação à posse. O interessante é que as categorias aristotélicas sugerem uma
interação constante.

É "ato" tudo aquilo que já é. É "potência" tudo aquilo que o ato ainda pode
ser. Difícil? Creio que não.

E possível simplificar. Uma árvore é um ato em potência de se tornar


inúmeras cadeiras. Afinal, uma árvore é matéria-prima que poderá ser
transformada naquilo que o marceneiro determinar. A árvore é ato, mas é
cadeira em potência, da mesma forma como pode ser também uma mesa.

As categorias de ato e potência conferem uma dinâmica para a vida. Além


delas, Aristóteles estabelece duas outras que serão fundamentais para nossa
reflexão. São as categorias de "essência e acidente".

Essência é o fundamento que gera a realidade, isto é, que a faz ser o que é, A
essência dá identidade ao ser. Refere-se ao âmago daquilo que é. Já o
acidente é apenas um elemento que se refere à essência, mas que não é
determinante para o que é essencial. Exemplo que ajuda a entender: uma flor
(essência) pode ser grande ou pequena (acidente). O tamanho da flor não
modifica a sua condição essencial. E uma flor, mesmo pequena.

Trazemos aqui as categorias aristotélicas para que elas nos ajudem a entender
o processo da liberdade em nós.

Para a Antropologia teológica cristã, a liberdade é considerada a partir do


dom que se concretiza aos poucos, por meio do esforço humano. Apesar de
livres, ainda não somos totalmente o que somos, isto é, somos livres mas
ainda experimentamos prisões em nossa vida.

É por isso que podemos nos compreender como realidades processuais, isto é,
estamos em constante processo de feitura. O ser humano se constrói aos
poucos. Tudo já está nele, mas é preciso conquistar-se, alcançar a essência;
caso contrário, corre-se o risco de morrer sem ter chegado ao que
essencialmente se é.

O fundamental já nos foi entregue, mas o que agora temos diante de nossos
olhos é a árdua tarefa de levantar as paredes da construção que podemos ser.
Cada ser humano, ao seu modo e tempo, vive esta aventura de desvendar-se.

O autoconhecimento é condição irrenunciável para uma existência feliz e


realizadora. É por meio dele que a pessoa alcançará o instrumental de sua
realização, visto que ele é desvelamento de possibilidades e limites. Nenhuma
realização é possível quando se desconsideram os elementos constitutivos da
sua condição. Ser humano é poder, mas também é carecer. Se por um lado
temos as possibilidades, por outro temos as carências.

A liberdade é elemento constitutivo do humano; é estatuto, condição, mas


precisa ser considerada como dom que se desdobra na tarefa.

Parece estranho, mas é simples. A liberdade que há em nós precisa ser


libertada. Assim como a semente (uma árvore em potência) condensa todas
as possibilidades da árvore que um dia virá (uma semente em ato), também o
ser humano condensa em si inúmeras possibilidades que dependerão de atos
que as desencadearão.

A semente já é a árvore, mas em potencial. Terá que passar pelo processo de


superar todas as adversidades de seu espaço, para finalmente chegar a ser o
que já era em potencial. Será necessário crescer, lutar para alcançar tudo o
que já é, mas em potencial.

EXERCITANDO LIBERDADES: LIBERDADE FUNDAMENTAL E

LIBERDADE ELETIVA
A liberdade está para o ser humano assim como a semente está para a árvore.
E potência. E vocação, mas é também luta e empenho.

Quando falamos dessa liberdade que já está no ser humano, mas que precisa
ser conquistada, estamos nos referindo a uma liberdade fundamental, que
também pode ser chamada faculdade entitativa, isto é, uma condição
irrenunciável, um estatuto que nos identifica e nos diferencia. Essa liberdade
fundamental é elemento constitutivo do ser humano. Está na semente, na
essência que se desenvolverá ao longo da vida.

Por outro lado, temos a liberdade circunstancial, categorial. Essa experiência


de liberdade se dá nas circunstâncias da existência. A vida humana é
exercício constante do que chamamos de liberdade eletiva, isto é, liberdade
que nos ajuda a fazer escolhas. E a resposta que damos a nós mesmos e aos
outros, diante das inúmeras interpelações e alternativas. Essa liberdade é
relativa, porque sofre variações. O inegável é que a moldura da vida é
composta dessas pequenas escolhas.

Liberdade eletiva é liberdade de toda hora. São as respostas para as perguntas


mais simples. Aonde vou? Que roupa usarei? O que faremos para o almoço?
Coisas simples que passam pela nossa eleição de toda hora.

Liberdade entitativa é mais profunda. São as respostas para as perguntas mais


fundamentais. O que tenho feito da minha vida? Por que tenho medo? Quem
me roubou de mim? Questões mais elaboradas e que deveriam passar o
tempo todo pela nossa reflexão.

O interessante é perceber que essas duas formas de liberdade estão


naturalmente entrelaçadas. A liberdade mais profunda é construída o tempo
todo no exercício das pequenas escolhas. Aqui está uma chave que vale a
pena levarmos conosco. Ela nos abrirá muitas portas.

Quando fico atento às escolhas mais simples, aquelas que a todo momento eu
realizo na minha história, de alguma forma já posso saber se estou
aprisionando ou se estou libertando a minha liberdade fundamental. Se nas
circunstâncias da existência faço escolhas que confirmam a minha liberdade
fundamental,, estou sendo livre de fato. Estou regando bem a minha semente,
para que ela se transforme na árvore que traz dentro de si.

Mas se nas circunstâncias da minha vida faço escolhas que me aprisionam,


estou deixando de fazer aflorar o meu fundamento. A liberdade fundamental
depende das liberdades categoriais.

O exemplo é simples e pode nos fazer entender. Temos uma escultura


preciosa, rica de detalhes, mas que está muito empoeirada. Cada pedaço dessa
escultura submetido a um processo de limpeza revelará a beleza que a poeira
insiste em esconder.

A liberdade fundamental é uma escultura belíssima que todos nós trazemos


cravada no mais profundo de nossa condição humana. A liberdade
circunstancial, categorial, é a oportunidade que temos de trazê-la à tona, ou
não.

A experiência humana nos ensina que o amor condensa o poder de fazer o


outro ser livre. E disso que estamos falando. Amar concretamente alguém
consiste em viver a responsabilidade, a proeza de ter que retirar os excessos
que ocultam suas belezas. Amar é assumir a responsabilidade de viabilizar o
florescimento da liberdade fundamental que há no outro. Todo gesto humano,
por menor que seja, pode se tornar significativo no processo de conquista e
alcance dessa liberdade fundamental.

Somos históricos, isto é, vivemos situados, contextualiza-dos, e essa


experiência histórica é determinante para nossa busca. Cada um, ao seu modo
e intensidade, está intervindo no processo dos que estão mais próximos. Creio
que seja sempre necessária uma análise minuciosa de nossa influência na vida
dos que estão mais próximos de nós.

Nosso jeito de viver pode promover, ou não, a liberdade fundamental


daqueles que fazem parte de nosso horizonte de sentido. Se nós dizemos que
amamos, então precisamos ser instrumentos de libertação na vida dos que
dizemos amar. O que dá testemunho de nosso amor não é a declaração que a
linguagem das palavras nos permite, mas é a linguagem dos gestos que
concretizamos diariamente.
Só o amor faz ser livre, porque ele quebra os cativeiros que nos aprisionam.
Ele tem o dom de devolver a liberdade, e por isso não há experiência de amor
fora da liberdade. Ninguém pode ser amado e ao mesmo tempo ser mantido
cruelmente na prisão. Não podemos acreditar no amor de quem nos aprisiona
e nos mantém em cativeiro.

O amor verdadeiro é o amor que faz ser livre, que faz ir além, porque não
ama para reter, mas para promover. Amor e liberdade são duas vigas de
sustentação para qualquer relação que pretenda ser respeitosa.

Se Deus nos fez livres, o amor de quem nos encontrar pela vida não pode ser
contraditório ao amor que nos originou. O outro que acabou de chegar não
tem o direito de se tornar obstáculo para "Aquele" que nos sustenta em nossa
condição primeira.

Se quiser nos amar, se quiser fazer parte de nossa vida, terá que ter diante dos
olhos o que somos, o que ainda podemos ser, e não o que ele gostaria que
fôssemos. O amor só acontece quando deixamos de imaginar. Só a realidade
autentica o amor, demonstra sua verdade.

Estamos em processo de feitura, e Deus nos devolve a nós mesmos o tempo


todo. Ele nos devolve pelas mãos históricas de quem nos encontra, de quem
nos ama. É o amor humano de Deus, manifestado em minha vida pela força
de pessoas concretas, cheias de voz e de gestos.

Essas são as pessoas que nos ajudam a conquistar o que não sabíamos
possuir. Elas nos mostram o avesso de nossa realidade, porque o amor é uma
espécie de lente que amplia nossa autopercepção. O olhar de quem nos ama é
um olhar que nos devolve, abre portas. Por outro lado, se não somos amados,
corremos o risco de sermos roubados de nós. Corremos o risco de nos tornar
vítimas nas mãos dos outros e de sermos fechados nas estruturas minúsculas
de um cativeiro.

Se já afirmamos que, pelas mãos humanas, Deus toca em nossa vida,


amando-nos no amor humano que nos promove, por outro lado, também
podemos dizer que as estruturas diabólicas nos alcançam cada vez que o
amor doentio dos outros modifica nossas escolhas e afeta nossa liberdade
fundamental.

Uma coisa é certa: quanto maior é o bem que nos provocam, maior é o desejo
que temos de ficar por perto. O desejo sobrevive assim. O outro nos apresenta
um jeito novo de interpretar o que somos, e por essa nova visão nos
apaixonamos. O que nos encanta no outro é o que ele nos conseguiu fazer
enxergar em nós mesmos. Egoísmo? Não. Apenas o primeiro pilar do
conceito de pessoa alcançando uma profundidade ainda maior dentro de nós.

VIR A SER

Eu procuro por mim.

Eu procuro por tudo o que é meu

e que em mim se esconde.

Eu procuro por um saber

que ainda não sei, mas que de alguma forma já sabe em mim.

Eu sou assim. . processo constante de vir a ser.

O que sou e ainda serei

são verbos que se conjugam

sob áurea de um mistério fascinante.

Eu me recebo de Deus e a Ele me devolvo.

Movimento que não termina

porque terminar é o mesmo que deixar de ser.

Eu sou o que sou na medida em que

me permito ser.
E quando não sou é porque o ser eu não soube escolher.

ENTRE O DESEJO E O PRAZER

Como já vimos, tornar-se pessoa é estabelecer o equilíbrio entre os dois


pilares: disposição de si e disponibilidade para o outro. Uma pessoa
estabelecida nesta harmoniosa construção tem mais facilidade de lidar com
sua vida afetiva, com seus conflitos e com suas conquistas.

Sempre que falamos de vida afetiva, de alguma forma esbarramos em dois


conceitos fundamentais: desejo e prazer. Esses dois conceitos fazem parte da
vida humana, e o tempo todo estão perpassando nossas condutas, escolhas e
atitudes. Somos movidos pelos desejos e pelos prazeres.

Fundamentado como pessoa, torna-se mais fácil viver a dinâmica do prazer


sem dele tornar-se escravo, e ao mesmo tempo saber descobrir o desejo como
elemento vital que traz duração às relações humanas estabelecidas.

Essa reflexão é importante uma vez que um dos grandes limites encontrados
nas pessoas é a busca desenfreada do prazer, seguida pelo desconhecimento
da força que há no desejo.

Quanto maior é a fragilidade de uma pessoa, maior é a facilidade que ela terá
de entregar-se ao mundo do prazer, que naturalmente nega qualquer forma de
sacrifício. Incapacitada de viver os limites próprios de qualquer processo de
escolha e os sofrimentos que dele provêm, a pessoa passa a interpretar a vida
de maneira ingénua e simplista. Já na perspectiva do desejo, a vida é mais
real. Há sempre o espaço para o sacrifício, a luta, o desafio.

Por isso, faremos agora uma distinção que é de suma importância neste
momento de nossa reflexão: desejo e prazer.

Há uma diferença fundamental a ser observada. Desejo não é o mesmo que


prazer. Quando não diferenciamos essas duas realidades, incorremos no erro
de estabelecer relações objetais, isto é, tratar o outro como um objeto do
nosso prazer. A busca pelo prazer pode nos cegar para a dignidade do outro e
conseqúentemente acorrentá-lo nos cativeiros de nosso egoísmo.
Quando vivemos na esfera do desejo, isso se torna muito diferente, pois o
desejo é bem mais profundo que o prazer. O desejo parece atuar em nossas
motivações mais consistentes, e, assim, naturalmente tendemos a descobrir os
sacrifícios e as limitações como processo natural para o crescimento que
necessitamos.

Vejamos.

A VIDA SOB NOVO FOCO.

Toda vez que identificamos um amor que realmente nos fez crescer na vida,
de alguma forma queremos preservá-lo. São as relações duradouras, que
atravessam o tempo e ultrapassam o horizonte da utilidade.

São amores que se preservam pela força do desejo.

Desejo é uma palavra sugestiva. Ela já despertou muitas reflexões


interessantes.

Para a Filosofia, o desejo é uma forma de tensão que dire-ciona o ser humano
para alguma finalidade. Essa tensão recebeu muitos nomes ao longo da
história da Filosofia. Platão e os filósofos cristãos associaram o desejo à
imperfeição dos seres. Só deseja aquele que carece. E carecer é o mesmo que
ser imperfeito, limitado. Talvez seja por isso que o termo "desejo" tenha sido
tão mal interpretado pelo contexto religioso ao longo dos tempos. Sabemos
que, durante muitos séculos, o discurso religioso foi perpassado pela mística
do sofrimento e do sacrifício. Com isso, naturalmente o desejo passa a ser
interpretado de maneira rasa, estreita. O que vimos foi a direta associação de
desejo e pecado.

A Filosofia budista compreende o desejo como um sério obstáculo à


realização humana. O nirvana é justamente um estado de espírito em que o
ser humano alcança a supressão dos desejos. Entra numa espécie de nada
querer, nada desejar.

A Psicologia nos diz que somos o tempo todo território dos desejos.
O ser humano não vive sem desejar. Desejos podem ser conscientes ou não,
tudo dependerá da capacidade que cada um tem de conhecer-se. Freud é uma
referência para este assunto.

Lacan, grande nome da Psicologia, sugeriu que a duração de um desejo está


diretamente relacionada à sua satisfação. Uma vez consumado, o desejo deixa
de existir, dando espaço para um novo. Assim, podemos entender o dito
popular: "o melhor da festa é esperar por ela". A expectativa do que será
muitas vezes é bem melhor que a realização do que esperávamos.

Pois bem, as especulações são muitas. Nosso objetivo é retomar o contexto


do desejo como realidade humana que não se opõe à felicidade e à construção
da pessoa; desejo como motor que nos leva pelas tortuosas estradas de nossa
realização. Desejo que nos segura e que nos mantêm na estrada, mesmo
quando nos deparamos com realidades adversas.

Desejo como toda e qualquer pulsão que nos movimenta rumo a alguma
realidade. Desejo como combustível da vida.

Uma coisa é certa. Vivemos constantemente o ciclo dos desejos. A realização


de um já é o início de outro, e assim vamos neste movimento sem fim.

Enquanto estivermos vivos, seremos seres desejantes. O desejo é uma espécie


de visgo que nos prende à vida. Quanto mais desejamos, maior é a sensação
de estarmos vivos.

A VIDA SOB O FOCO DO DESEJO.

O desejo perpassa todas as nossas relações. É por isso que podemos dizer que
a duração de uma relação está diretamente ligada à permanência do desejo. O
que nos faz querer estar ao lado de alguém é o desejo. Não o mesmo desejo
de sempre, mas o desejo que se modifica à medida que vivemos o processo
natural da vida.

Retomemos a reflexão de Martin Buber. O que gostamos no outro é o que


sobra do encontro que realizamos com ele. E a terceira pessoa, é o que nasce
do encontro. Podemos dizer que esta terceira pessoa, que chamamos de
"nós", quando desejada, tem o poder de nos fazer permanecer.

A permanência nas relações sinaliza que o desejo está vivo, que ele foi
mantido, que não morreu com o passar do tempo. Desejar é uma constante na
vida humana. Vivemos em torno dos nossos desejos. Eles nos movem para
irmos além.

Existem desejos temporários. Passar no vestibular, por exemplo.

Depois de alcançado, ele se transforma em desejo de fazer a faculdade.


Depois da faculdade, vem a especialização, o mestrado, o doutorado, a
profissão. Um desejo ocasiona o outro.

Quando falamos de pessoas e suas relações, de alguma forma estamos


falando também de desejos temporários e desejos permanentes. E nisso há
uma questão fundamental. Relações duradouras são aquelas que o desejo
sustentou, isto é, ainda que tenha um desdobramento do desejo, percebemos
existir um detalhe fundamental, um foco que permanece. O outro mudou, foi
transformado pela vida, mas ainda continua sendo o foco do desejo.

A relação é duradoura à medida que o foco do desejo permanece. Os desejos


até foram modificados, mas o foco permaneceu, e por isso o outro não quis ir
embora.

É interessante identificar que a permanência do desejo está intimamente


ligada à preservação do mistério e da sacralidade da relação.

Preservar o mistério não significa guardar segredos, mas consiste em manter


a reverência que não permite a banalização. O outro é mistério que merece
ser preservado. Por mais que eu o conheça, jamais terei o direito de dizer que
já sei tudo sobre ele, porque sei que ele está em processo de feitura. Ele está
se fazendo pessoa.

E porque sabemos que o outro está sempre em movimento, precisamos viver


o constante processo da conquista, ainda que nossas relações já tenham
ultrapassado a idade de cinquenta anos. Preservar o mistério é continuar
conquistando, mesmo depois de trinta anos de casados.
Essa reflexão nos liberta dos malefícios do mito do amor romântico, onde os
personagens sempre perfeitos vivem felizes para sempre.

Não, a vida não é um conto de fadas, mas nem por isso estamos privados da
felicidade que eles nos sugerem. Detalharemos melhor este assunto daqui a
pouco.

Precisamos entender que não existe ser humano ideal. O que existe é o ser
humano certo. O ser humano ideal não possui defeitos. O ser humano certo
tem defeitos, qualidades, e na soma de tudo é um resultado em que você
resolve acreditar.

O grande equívoco dos nossos dias é estabelecer as relações humanas a partir


das substituições. Queremos que o outro seja a concretização humana de
nossas idealizações. Hoje nos satisfaz e amanhã não mais. Trocamos.
Tentamos de novo. Voltamos a trocar. As paixões são avassaladoras, mas os
desencantos também. E assim vamos colecionando relações e os seus
consequentes estragos.

O que podemos identificar nessas paixões é que as pessoas não são focos de
desejo, mas se limitam a serem focos de prazer. O prazer é passageiro, mas o
desejo não. Quando o outro cumpre o papel de ser o objeto do meu prazer, eu
o reduzo à condição de coisa. Essa "objetificação" já se caracteriza como
sequestro. Há uma subjetividade sendo desconsiderada, uma vez que o outro
foi reduzido à matéria de minha satisfação temporária.

A VIDA SOB O FOCO DO PRAZER

Uma das principais características do mundo contemporâneo é a busca do


prazer. As pessoas não são mais afeitas aos sacrifícios do passado, às
demoras de outros tempos. Cada vez mais socializam-se entre nós as
oportunidades que nos prometem resultados rápidos, sem muitos esforços. O
tempo de demoras já se foi.

Comida rápida, serviços rápidos, porque a vida não pode nos esperar. É o
pragmatismo tomando conta de nosso jeito de ver, viver e de ser no mundo.
Falaremos mais detalhadamente sobre isso mais à frente.
Os programas de televisão anunciam, o tempo todo, as novidades do
mercado. Aparelhos que prometem emagrecer os gordos sem que eles saiam
do sofá. Cápsulas que capturam as gorduras dos alimentos antes de elas
serem absorvidas pelo organismo. Injeções milagrosas que fazem crescer
músculos em corpos magros. Cirurgias que retiram as gorduras — ainda que
ofereçam riscos —realizadas em clínicas que não oferecem a menor condição
de segurança ao

"impaciente" que procura por elas. Enfim, uma infinidade de promessas


mágicas.

A literatura das bancas também se ocupa desses milagres. Livros que


prometem receitas de felicidade, mesmo que os autores andem sempre mal-
humorados. Guias que ensinam a influenciar pessoas, ganhar dinheiro, ficar
milionário da noite para o dia.

Neste mundo de tantas pressas, não há espaço reservado para o discurso que
exige calma e tranquilidade para ser entendido. Entrevistas fúteis ocupam
nossas tardes de domingo. Celebridades sem nenhuma opinião formada
aparecem nas telas em rede nacional para repetir seus discursos tolos sobre
questões tão sérias. Gente que posa nua nas revistas e se torna referência para
nossos filhos. Somos obrigados a suportar os canais abertos de televisão com
sua programação artificial, suas videntes tão cegas para as reais necessidades
do nosso povo. Um povo que precisa de eu li ura, informação e
entretenimento de qualidade.

Um povo que passa a gostar do tosco, porque só isso lhe é oferecido.

Cantores que nunca aprenderam a cantar repetem, no programa de grande


audiência, versinhos que ferem a inteligência e o bom gosto de uma nação
que não sabe mudar de canal, porque descobriu nisso alguma forma de
prazer. Enquanto isso, nossos reais valores, compositores de altíssimo nível,
cantores e cantoras de excelente nível técnico e artístico se tornam atração
para poucos, porque a grande massa nem sabe que eles existem.

Este é o paralelo entre o desejo e o prazer. O desejo é mais profundo que o


prazer. Ele precisa de tempo para ser despertado e vivido. O
prazer não. E produto rápido. E igual carboidrato de absorção rápida, que não
leva tempo para ser assimilado pelo organismo. Desejo é alimento integral,
demora para fazer digestão, e por isso alimenta por mais tempo.

O prazer é poço sem fundo. E círculo vicioso. Cria dependência que nos faz
procurar por ele o tempo todo. O desejo, ao contrário, cria permanência,
porque acalma. Sabemos onde ele fica. Ele movimenta para novas buscas,
mas não desorienta. É alimento integral, enquanto o prazer é alimento
refinado.

As sociedades estão cada vez mais consumindo os produtos refinados. Eles


não exigem muito do organismo. Os produtos integrais, por serem mais
substanciosos, exigem o dobro. E como não estamos dispostos a muito
esforço, optamos pelo caminho mais simples.

Essa é regra que tem prevalecido. Nada pode nos privar do prazer. Sacrifícios
não serão bem-vindos nos nossos tempos. As pessoas se esmeram por buscar
os atalhos, porque não há disposição para trilhar a estrada mais longa, ainda
que ela seja repleta de belezas e surpresas.

É muito comum encontrar entre alunos que se preparam para o vestibular os


resumos das obras que serão abordadas nas provas de literatura. Para que ler
a obra completa se podemos ler só o resumo? Essa é a pergunta prática que
geralmente é formulada por quem ainda não sabe desejar. Literatura, antes de
combinar com o prazer, combina com o desejo. Prazer é consequência do
desejo que vem antes.

Estudar nem sempre é atividade prazerosa, mas o que nos mantém na


disciplina dos estudos é o desejo de sermos alguém um dia, de termos uma
profissão. Ê o desejo de conhecer, desvendar o mundo e reconstruí-lo por
meio de uma atuação responsável na sociedade. O desejo é mais profundo,
pertence ao mundo dos significados, das realidades que são definitivas. O
prazer é mais raso, transitório, e por isso é tão pouco realizador.

O bom é conjugar os dois. Desejo e prazer. O interessante é não perder de


vista nenhuma das duas realidades, lutando cons-tantemente para manter
acesa a chama do desejo pela vida e pelas pessoas que amamos. O desejo
mantém a dinâmica da conquista. Já dizíamos anteriormente que somos
território que precisa ser conquistado o tempo todo. Já estamos entregues a
nós mesmos, mas ainda precisamos tomar posse. É o desejo de ir sempre
além, de não perder o fio da vida, o visgo, o significado.

Prazeres temporários não podem ser definitivos para nós. Se eles passaram, é
necessário prender-se no desejo. Outros prazeres virão. É um processo
natural. Prazeres não nasceram para serem definitivos, mas o desejo sim. Isso
é fundamental para a qualidade de nossa existência. O importante é que a
gente não coloque os praxe ivs acima dos desejos.

É interessante, instigante, mas existem pessoas lindas que só conseguem ser


objetos de prazer, nunca foco de desejo. As pessoas passam por elas, porém
não permanecem. E a prova de que o prazer não é o suficiente para o outro
querer ficar. O que nos faz apaixonar uns pelos outros é o desejo que somos
capazes de despertar.

Corpos perfeitos despertam prazeres, mas nem sempre despertam desejos. O


desejo é que nos faz respeitar a sacralidade que há no outro. O prazer é um
impulso rápido. Já o desejo é um impulso de demoras. É

feito de vagarczas. Assim como ter que andar mil quilómetros, mas certos de
que há um lugar a se chegar. A dureza da viagem e o cansaço serão sempre
vencidos cada vez que o desejo for relembrado. Não haverá prazer durante
todo o trajeto. Por vezes, os limites serão aflorados, mas o desejo de chegar
nos manterá firmes.

Cada vez que identificamos nossa incapacidade de manter acesa a chama dos
nossos desejos, e percebemos que somos afeitos à manutenção de prazeres
transitórios, revela-se diante de nossos olhos a oportunidade de romper com
mais essa forma de sequestro da subjetividade, tão comum nos nossos dias.

A mentalidade que apregoa a vida fácil, sem esforço e sem luta, é


instrumento de manutenção social de pessoas apáticas e sem poder de
transformação. Há uma constante socialização da ideia de que o sacrifício não
deve mais fazer parte da vida humana, e que a felicidade consiste em suprimir
qualquer realidade que possa nos desmstalar ou provocar sofrimento.

Dessa perspectiva, o que resta é a infantilização cada vez mais frequente das
pessoas; o não amadurecimento, o prolongamento da adolescência e a
incapacidade de viver o segundo pilar do conceito de pessoa: a
disponibilidade de o outro. Vida sem sacrifício é vida anestesiada, irreal,
fortemente marcada pelas estruturas romanceadas dos contos de fadas e pela
visão mágica da realidade.

Estamos diante das consequências do "mito do amor romântico".

O MITO E SUAS SUGESTÕES

Antes de tratarmos especificamente do mito do amor romântico, achamos por


bem salientar o significado das elaborações mitológicas nas culturas.

A vida é o acontecimento de toda hora. Diante deste fenómeno que não pára,
o ser humano sente-se constantemente impelido a buscar respostas que o
ajudem a compreender o significado de uma gama de acontecimentos.

No desejo de compreender, o ser humano faz perguntas. Na pergunta que


formula, expressa o seu desejo de desvendar o mundo que o envolve. Somos
seres naturalmente filosóficos.

Essa natureza filosófica, elemento que faz parte do estatuto humano,


manifesta-se naturalmente na nossa vida por meio de explicações simples que
fazemos dos fatos. Nosso desenvolvimento cognitivo, isto é, nossa
capacidade de raciocínio, passa por um processo de amadurecimento
biológico.

Assim corno o corpo precisa amadurecer para ser capaz de produzir uma
outra vida, também nosso cérebro necessita amadurecer para executar
raciocínios mais complexos.

É por isso que, no início de nossa vida escolar, os aprendizados seguem


regras que consideram nossa maturidade cerebral. Não é possível, por
exemplo, propor a uma criança de sete anos uma operação de álgebra. Ela
ainda não dispõe de amadurecimento cerebral para tal raciocínio. A mesma
criança não será capaz de compreender a teoria do Big Bang, que procura
explicar cientificamente a criação do universo. O melhor é contar a origem do
universo por meio de uma história que se encaixe no seu universo infantil.
Pois bem, na infância da inteligência, o mito é a elaboração possível.

Recordo-me que, quando era criança, sempre que trovejava eu ouvia minha
mãe dizendo que o trovão era a manifestação da braveza de Deus com
algumas pessoas no mundo. Escutava aquela explicação e nela colocava
minha confiança. Deus estava bravo, mas não era comigo. Era com outras
pessoas. A frase de minha mãe, ainda que absurda para um adulto, cessava,
no meu coração de criança, o medo dos trovões. Dar nome ao medo é, de
alguma forma, começar a vencê-lo. Os mitos nascem assim. E diante de um
não saber dizer que ele é construído.

Com o tempo, depois que aprendi que os trovões são fenómenos naturais,
causados por descargas elétricas, aquela explicação mitológica deixou de ter
valor para mim.

O inegável é que, na infância da minha vida, aquela forma de compreensão


da realidade fez parte de minhas crenças. Recordo-me também que minha
mãe não nos permitia comer manga e tomar leite ao mesmo tempo. Entre um
alimento e outro precisávamos observar um prazo de, no mínimo, oito horas.
A razão para a proibição era simples: o mito de que a mistura dos dois
alimentos era capaz de provocar a morte.

Mitos são tentativas de explicação daquilo que ainda não sabemos


compreender. São sempre contados por meio de narrativas que prevalecem no
tempo, isto é, passam de geração em geração e se perpetuam.

Um mito está sempre cheio de intenções. Depois que vem a explicação


racional para aquilo que antes era explicado por meio do mito, sempre fica o
registro da explicação mitológica em nós. O mito sempre tem alguma coisa a
nos ensinar, ainda que já tenhamos superado a sua formulação e a tenhamos
substituído por uma explicação racional. E como se preservássemos uma
inocência que pode fazer bem, mas também pode fazer mal. Depende das
influências que os mitos conseguem exercer.

Como já dissemos, o mito é sempre uma tentativa de explicação da realidade.


Fortemente marcado pela linguagem metafórica, isto é, uma linguagem que
procura fazer uma leitura do mundo através de símbolos, o mito é sempre
uma elaboração altamente sedutora, e o símbolo está no cerne de sua
estrutura.

O símbolo fala por si mesmo, não carece de explicações. Uma linguagem


simbólica não tem necessidade de ser aprisionada no que consideramos
conceituai. Podemos dizer que o símbolo supera o conceito, porque parte do
conceituai para entrar no horizonte da sugestão de um algo a mais. O
simbólico é um instrumental para interpretarmos o mundo.

As culturas são construídas e manifestadas através de símbolos. As catedrais


na Idade média representavam a supremacia do poder religioso. Os mosteiros
eram os lugares reservados à salvação das almas, ao passo que as tabernas
eram os lugares que evidenciavam a perdição assumida, a danação eterna.

As construções góticas, com seus traços suntuosos, simbolizavam o desejo


humano de alcançar o céu. As altas torres, as paredes talhadas por desenhos
de movimentos ascendentes, legitimam um desejo de alçar a eternidade com
as mãos.

As construções romanas, sempre horizontais, expressam o desejo romano de


conquistar o mundo, os territórios. Construções esparramadas, nunca voltadas
para o alto, mas estendidas para a terra, para o horizonte. Símbolo de uma
civilização que desejava incorporar o mundo como propriedade e tornar o
restante do mundo uma extensão de Roma.

Os gregos e a sabedoria que gerou a cultura ocidental. Atenas, cidade da


força intelectual. Esparta, cidade da força dos corpos. As duas cidades, de
forte valor simbólico para a Grécia, parecem condensar e sintetizar a
mentalidade de uma civilização que legou ao mundo a cultura da estética
intelectual e a cultura da estética física.

Minas e suas estruturas barrocas. O barroco é o movimento dos contrários. A


igreja majestosa condensa em sua arquitetura a glória e a decadência.

Numa mesma cena, há a grandeza de anjos sendo carregados por negros em


processo de penúria e sofrimento. O humano e a dura missão de sustentar o
peso do divino. A madeira talhada a canivete revela a mentalidade de um
tempo. É a realidade expressa e contada no símbolo de uma época. A catedral
tem boca, e fala.

Conta histórias de quem já não tem mais boca para contar. Revela, por meio
do símbolo, o que só os mortos poderiam revelar.

Símbolos são testemunhas históricas. Por meio deles podemos fazer a leitura
dos pensamentos que prevaleceram ao longo do tempo, pois eles condensam
um universo inesgotável de informação.

Mitos e símbolos são dois caminhos que se encontram constantemente. Eles


se complementam e se transformam mutuamente. Assim como a catedral é
um símbolo que varou o tempo e legitimou nas culturas a ideia de que Deus
esteve sempre presente nas cidades, por meio de paredes suntuosas, também
o mito é uma forma de edificação que atravessa o tempo, legitimando e
sugerindo um jeito de pensar.

Podemos dizer que muitos mitos são tão sedutores que podem ser
comparados às catedrais. Um deles é o mito do amor romântico.

O MITO DO AMOR ROMÂNTICO

O mito do amor romântico parece ter entrado na sociedade ocidental na Idade


Média. Algumas pistas indicam que sua primeira aparição na literatura foi por
meio do conto de amor vivido entre Tristão e Isolda. Não entraremos aqui
neste mérito. O que nos importa é evidenciar um pouco da estrutura e das
influências que este mito legou às sociedades.

O mito do amor romântico é muito mais que uma forma de amor.

É todo um conjunto psicológico, tecido de expectativas e idealizações onde


pessoas e realidades são inseridas.
No mito do amor romântico a paixão prevalece. Assim, cria-se a ilusão de
que o foco da paixão condensa todas as soluções dos problemas existentes na
vida. O outro acaba se tornando uma construção, cujos tijolos foram retirados
dos insondáveis terrenos de nossas carências e necessidades.

No mito do amor romântico, a pessoa amada é vista, de forma consciente ou


não, como a primeira responsável pela satisfação dos desejos e necessidades
de seu amante. Uma forma de encantamento parece inibir a percepção da
realidade de maneira que a relação passa a representar um perigo para aqueles
que dela fazem parte.

Sempre que falamos de mito do amor romântico, estamos, de alguma forma,


evocando um inconsciente coletivo fortemente influenciado pela
interpretação deste mito a respeito das relações amorosas.

Jung, grande nome da Psicologia contemporânea, demonstrou, por meio de


sua reflexão, que quando um indivíduo vive um importante e marcante
fenônemo psicológico, um grande potencial inconsciente está vindo à tona,
emergindo, prestes a manifestar-se ao nível da consciência. Segundo ele, o
mesmo pode ser dito quando o assunto é coletívidade. Do inconsciente
coletivo de um povo pode surgir uma nova ideia, crença, paradigma, que é
mantida por este povo.

Histórias contadas pelo povo são histórias que narram sobre o povo. E assim.
As construções míticas e as elaborações folclóricas de uma cultura revelam o
bojo de suas compreensões e estruturas. Somos nós os escritores dos contos
que nos contam.

A literatura é o lugar desta revelação. As histórias construídas são expressões


vivas do inconsciente coletivo que o escritor representa. Um exemplo disso
são os contos de fadas. E impressionante o quanto eles são capazes de serem
densos de significados.

Podemos identificar que o mito do amor romântico está naturalmente


expresso em alguns contos de fadas. Sabemos, por experiência, que contos de
fadas são histórias fascinantes. Elas evocam o sonho que o ser humano tem
de protagonizar uma história de amor perfeito: amores homéricos entre
príncipes e plebeias, bela adormecida, princesa acorrentada na torre
esperando por seu príncipe que virá montado em um cavalo branco...

Tudo construído para tentar ilustrar o profundo psicológico de um povo que


precisa resolver suas carências e necessidades. O amor e seus personagens
fascinantes protagonizam aquilo que a humanidade gostaria de experimentar
na carne real da existência.

Os personagens dos contos de fadas seguem nesta ordem. As histórias


seguem o mesmo fio de trama. O sofrimento da restrição. A plebeia, odiada
pela madrasta, é impedida de ir ao baile. O sofrimento do borralho, a
humilhação das enteadas, o desprezo de todos. A fada, por sua vez, bondosa e
complacente, retira a pobre moça de seu abandono e lhe confere uma magia
que a possibilita de participar do grande baile. O encanto está lançado. Mas
este encanto tem tempo definido para durar. Meia-noite é o limite para que o
amor aconteça. E assim acontece. O príncipe reconhece na menina pobre, que
agora não aparenta ser pobre, a mulher de sua vida. O encanto prevalece até
que os ponteiros do relógio anunciam meia-noite.

Desfeita a magia, o príncipe se põe a procurar a proprietária dos sapatos de


cristal que ficaram esquecidos na escadaria do palácio real. Depois de
prolongada busca, príncipe e plebeia se encontram, e, contrariando as
expectativas da madrasta, casam-se c vivem felizes para sempre.

Veja bem. Nos mais diversos relatos de amor que pertencem à literatura, o
mito do amor romântico prevalece no momento em que a realidade é
construída a partir de seres humanos idealizados. O velho chavão que
geralmente vem cravado no final das histórias — "e viveram felizes para
sempre" -

retira o amor de sua continuidade processual, que consiste em dores e


alegrias.

No mito do amor romântico, o sofrimento é sempre portal da casa. Não há


sofrimento na continuidade dos relatos. A expressão "felizes para sempre"
funciona como uma negação do processo comum dos humanos, como se o
amor fosse uma realidade que está distante de ser precária. O beijo final
parece selar uma história em que não caberão limites e aborrecimentos. E a
idealização da relação, em que cada parte deverá cumprir o papel de projetar
e ser projetado como personagem que viverá feliz para sempre, ainda que
sem esforço.

A vida real não corresponde aos relatos dos contos de fadas. Não estamos
acostumados a encontrar fadas madrinhas que transformam, num toque de
mágica, a borralheira em princesa admirável. O processo humano é doloroso.
Nossos sapatos não são de cristais, nossos cavalos são mancos e não há
carruagens paradas às portas de nossas casas esperando para nos levar aos
destinos de nossos sonhos. A vida nos mostra que transformações mágicas
não existem, da mesma forma como amores perfeitos estão distantes de
nossos olhos.

O que temos e podemos é a aventura de encontrar alguém, e ao lado dele


construir uma história de vida comum, felicidade que nasce do duro processo
de sermos promotores uns dos outros por meio do amor que sentimos.

O conceito de amor não pode ser aprisionado por esta visão romântica, que
não sabe considerar os limites como positivos para o crescimento humano.
Tampouco pode reduzir o desejo à condição de prazer.

O sonho que sonhamos não pode ser projeção infértil. Ele tem que estar
sempre preso à realidade, afinal, é nela que estamos sustentados.

A vida nos demonstra que a génese das frustrações humanas está na


inadequação entre aquilo que sonhamos para nossa vida com aquilo que de
fato nos acontece. Somos incentivados a sonhar alto, a projetar grandes
empreendimentos e a colocar nossos esforços para extrair o máximo que
pudermos da vida. Não há nenhum erro em tudo isso. O grande problema não
está em sonhar alto. Isso é fácil. O difícil está em continuar vivos quando o
pedestal do sonho não suportar o nosso peso e dele cairmos.

Somos preparados para o sonho alto, mas ainda não aprendemos a nos manter
vivos quando a vida é rasa. Nossa educação não costuma nos preparar para os
fracassos. Não somos treinados para o último lugar do pódio, mas sim para o
primeiro.
A infância é o tempo dos heróis. Homens e mulheres dotados de poderes
extraordinários povoam o universo das crianças. Era como se nosso limite
original fosse esquecido cada vez que nos colocamos nas asas do super-
homem, ou empunhamos o laço da mulher maravilha.

A construção do herói está a serviço da projeção que nos retira da realidade.


Infância é o tempo das idealizações. Todos nós fomos marcados pelos heróis
de nossos tempos. Eles legitimavam nosso desejo de não sermos comuns.

Legitimavam nossa insatisfação com nossa condição de limite e precariedade.

Um herói é, para uma criança, uma idealização que lhe permite criar um
mundo próprio. Nesse mundo, joelhos esfolados não existem. O que existe é
a força que não se dobra, é o braço que não se cansa, é o herói que sempre
vence.

Na saga dos heróis, todas as fragilidades humanas parecem redimidas. Neles


e por eles deixamos de esbarrar nos limites que nos envergonham e nos
expõem frágeis.

Pode nos parecer estranho, mas essa compreensão também está, de alguma
forma, enraizada no mito do amor romântico, que tantas vezes determina as
realidades da vida, das mais simples às mais complexas.

Podemos identificar na verdade que, antes de o mito do amor romântico


atingir as relações, ele atinge a forma como o ser humano interpreta a si
mesmo. A visão romanceada do humano parece estabelecer uma inimizade
entre a pessoa e seus limites.

Pode nos parecer estranho, mas quanto maior é a negação dos limites que nos
são próprios, maior parece ser o domínio que eles exercem sobre nós.
Acolher os limites que lhes são próprios é um jeito da pessoa reconciliar-se
consigo mesma.

Pois bem, sair do contexto dos heróis requer esforço. Olhar para si e
reconhecer que mesmo sem asas será possível alcançar sucesso na vida será
uma transposição considerável.

Um dos elementos que acena para nosso amadurecimento como pessoa é


justamente nossa capacidade de enfrentar a realidade sem as facilidades da
fuga.

E claro que a vida não é possível sem as projeções. O importante é


estabelecer um equilíbrio entre aquilo que projetamos e aquilo que podemos
esperar de nós mesmos. Em cada pessoa existe uma condição, um estatuto
que a identifica, como limites e possibilidades. O equilíbrio se dá nessa
junção. Entre o que podemos e o que não podemos está o espaço do
crescimento que nos favorece a conquista da condição de pessoa.

Um círculo não pode ser quadrado. Esta regra vale para o que estamos
dizendo. O grande problema das projeções, que são próprias dos contos de
fadas e que expressam bem o mito do amor romântico, é justamente a
tendência humana de querer que o círculo seja quadrado.

Toda vez que recusamos os limites de nossa condição e nos imaginamos


como heróis invencíveis, de alguma forma estamos desfazendo o equilíbrio
que pode nos fazer crescer. A mesma coisa acontece nas relações. Há sempre
o risco de querermos fazer o outro ser a medida de nosso desejo. Por uma
insatisfação pessoal, projetamos no outro uma perfeição que gostaríamos de
encontrar em nós mesmos.

No momento em que identificamos essa inadequação, no instante em que


percebemos que o outro não é perfeito, desfaz-se o encanto. A Cinderela
volta a ser gata borralheira, o príncipe volta a ser sapo, e o que antes dizíamos
ser experiência de amor eterno transforma-se em amor que valeu enquanto
durou.

As velhas histórias registradas no inconsciente coletivo das pessoas

— em que heróis salvam suas princesas acorrentadas nas torres e depois


vivem felizes para sempre — são registros que seguram esta desilusão
constante no tempo. Elas se opõem radicalmente ao que consideramos ser
amor de fato. Amar não é cultivo de perfeição, mas o contrário. Ê empenho
de superação de limites. É

cultivo constante que nos aproxima da realidade e que nos capacita para
continuarmos desejando que o outro continue ao nosso lado.

Amar é exercício de descobrir o que o outro tem de mais lindo, mas também
de mais vergonhoso. Amores perfeitos só existem nas projeções. Ou nos
jardins. .

AMOR PERFEITO? SÓ NOS JARDINS.

O único amor perfeito que conheci ao longo de minha vida foi nos jardins. E
uma florzinha miúda que tem uma beleza simples e que requer muito
cuidado. O outro amor perfeito só existe nos livros e nas histórias das fadas.

O mito do amor romântico parece fortalecer nas culturas o desejo que o ser
humano tem de encontrar no seu mundo exterior a solução para suas
imperfeições. E quase uma camuflagem. Desejosos de curar as consequências
de nossas precariedades, passamos a buscar nas coisas, nas pessoas e nas
situações, o remédio que nos sanaria de nossas incompletudes.

Como já falamos, o mito foi fortemente explicitado e incorporado nas


culturas por meio de histórias que narram sagas de amores impossíveis e, por
isso, perfeitos. O amor perfeito é sempre o amor impossível, o amor
inacessível, o amor que não corresponde à realidade e que só se realiza nas
obras de ficção.

Primeiramente, valeria a pena voltar nossa atenção ao próprio conceito de


perfeição. Esse conceito está muito presente na cultura grega. No contexto da
reflexão grega, a perfeição é colocada como fim a que se destina o
movimento do artista. A perfeição não é o caminho, mas a chegada. Dessa
forma, o conceito não favorece o movimento, mas, ao contrário, sugere lugar
já alcançado, chegado. É perfeito porque é irretocável, pronto. É perfeito
porque já está definitivamente estabelecido e já não necessita de qualquer
forma de intervenção ou retoque.

Aqui nasce o grande problema que queremos analisar. Veja bem, diante da
vida, que não é estática, tal conceito apresenta-se como amórfico e pouco
sugestivo. Diante da ideia de que para ser perfeito é preciso que já esteja
pronto e irretocável, nasce uma contradição com a existência, que é processo
constante de feitura e re-feitura.

A partir do conceito grego de perfeição, nenhuma pessoa pode ser


considerada perfeita, afinal, ninguém está pronto. Essa verdade fere
profundamente a expectativa de todos os que esperam encontrar pessoas
perfeitas para estabelecer suas relações humanas.

Nós, que sentimos regularmente na carne as consequências de nossas


imperfeições, e não temos outro jeito de sobreviver a elas senão assumindo o
movimento da vida como oportunidades contínuas de superação e
aperfeiçoamento, quando nos encontramos com os outros, precisamos
considerar que eles estão vivendo o mesmo processo que nós.

Somos imperfeitos, mas não estamos condenados a ser vítimas de nossa


imperfeição, uma vez que a beleza da vida está em descobrir o movimento
que pode diminuir as consequências do que em nós é imperfeito. O outro
também não está condenado a morrer com seus defeitos. Dessa forma, num
encontro de imperfeitos, nasce um desejo concreto de juntos lapidarem suas
humanidades, na busca de uma harmonia que podemos chamar de amor.

Mas nem sempre o que ocorre é isso. É quase um movimento natural na vida
humana a busca pelas pessoas perfeitas que venham suprir nossas
imperfeições. O poder do mito é que move essa procura. Inconscientes ou
não vivemos uma busca desonesta de pessoas que correspondam às
expectativas de nossas projeções e idealizações.

O que temos diante de nós é uma contradição da existência. Não somos


perfeitos, mas queremos realidades perfeitas. O mito nos retira do contato
com a realidade.

A partir dele, as pessoas passam a procurar realidades ideais. A pessoa ideal


para casar; o lugar ideal para morar; o lugar ideal para trabalhar, e por aí
segue uma lista interminável. E o conflito se estabelece ainda mais quando
percebemos que pessoas que se sabem imperfeitas estão constantemente
buscando pessoas e realidades perfeitas.

Aqui está a força da inadequação. As pessoas, no afã de encontrarem a pessoa


ideal, a pessoa perfeita, começam a imaginar. Olham, mas não vêm, porque
estão motivadas a enxergar só o que estão imaginando.

Esbarram, mas não encontram, porque o encontro requer autenticidade. E

justamente aqui que nascem os sequestros. É deste "não encontro" e deste


"não ver" que as pessoas começam suas relações.

Começam a projetar umas nas outras suas necessidades e lacunas. Aos


poucos, vão sendo preparados os cativeiros dos condicionamentos. Esses
cativeiros se estabelecem a partir de pedidos de mudanças de
comportamentos, atitudes e até mesmo de mudanças estéticas. O

que percebemos é uma tentativa de adequação entre o que o outro sonhou


com aquilo que verdadeiramente ele encontrou.

Desse encontro nascerão duas condições: sequestrado e seqúestrador. O que


determina os lados da mesma tragédia é a capacidade de rendição e de
domínio de cada um. Há pessoas que têm uma facilidade imensa de dominar
e determinar as relações que estabelecem. Há outras que são facilmente
determinadas.

Consciente ou não, a pessoa parece inventar a outra. E inventar é uma forma


de estabelecer cativeiros, uma vez que a "disposição de si" fica ameaçada.
Aquele que imagina retira do imaginado o direito de ser o que é.

Imaginar é um jeito de negar a realidade. Sobrepõe-se à personalidade uma


espécie de máscara, que poderá se tornar definitiva, processo irreversível e
causador de profunda infelicidade. Fernando Pessoa nos fala desta realidade
em alguns versos do poema "Tabacaria":

Fiz de mim o que não soube

E o que podia fazer de mim não o fiz.


O dominó que vesti era errado.

Conheceram-me logo por quem não era

E não desmenti, e perdi-me.

Quando quis tirar a máscara,

Estava pregada à cara.

Quando a tirei e me vi ao espelho,

Já tinha envelhecido.

Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó

Que não tinha tirado.

Deitei a máscara e dormi no vestiário

Como um cão tolerado pela gerência

Por ser inofensivo

Eu vou escrever esta história para provar

Que sou sublime.

O universo da reflexão do poeta é riquíssimo. O personagem que reconhece a


"não vida" que a máscara lhe conferiu reassume, ao final da estrofe, a
condição de "ser sublime". Tornar sublime é o mesmo que purificar e, para
que a purificação aconteça, é mister que reconheçamos o que é precário, o
que necessita de sublimação.

Para o poeta, retirar a máscara é assumir a precariedade que o falseamento lhe


trouxe. A autenticidade lhe confere o direito de reassumir a vida, ainda que
ao final.
O poema nos ajuda a pensar melhor. As máscaras são as concretizações dos
sequestros. Elas atestam que o processo de negação do ser chegou ao seu
ponto alto. "Fiz de mim o que não soube e, o que podia fazer de mim não o
fiz."

O roubo foi tão profundo que o outro, incapacitado de resgatar a parte


roubada, viu-se obrigado a revestir-se de personagens e de máscaras.
"Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me."

Veja, há uma permissão. A não autenticidade abre portas para os equívocos.


Os outros nos imaginam e nós permitimos a imaginação e suas inadequações.

Quando essa relação se prolonga no tempo, as pessoas en-volvidas se


fragilizam muito, porque em ambas há o processo da negação do ser.

Aquele que imagina de alguma forma também se torna refém de sua


projeção.

Passa a querer e desejar o que não existe, o que não é real. E, quando
desejamos dizer a verdade, nem sempre temos a possibilidade.

"Quando quis tirar a máscara, estava pregada à cara. Quando a tirei e me vi


ao espelho, já tinha envelhecido." Os mascarados sofrem sozinhos. É

um processo doloroso que atinge a muitos.

Conviver com quem optou pela inautenticidade causa uma infelicidade


profunda. O gasto de energia para a mentira é muito mais elevado que para a
verdade. Viver de projeções que não podem ser adequadas à realidade é o
mesmo que não viver.

A experiência das projeções nos coloca dentro de um mundo sem


sustentação; e mundo projetado não é mundo que realiza, nem faz realizar.

SUPERANDO AS IDEALIZAÇÕES

Mundo projetado é mundo idealizado. Ideal é tudo aquilo que compõe o


objeto de nossa mais alta aspiração. O ideal pode ser muito benéfico na vida
humana porque ele a movimenta constantemente, evitando assim sua
estagnação, mas ao mesmo tempo pode se tornar altamente nocivo no
momento em que impossibilita a vida real, fixando a pessoa em projetos de
perfeições inatingíveis e idealizações impossíveis.

O ideal, o projetado, só tem sentido para a vida humana se ele a conduz para
o movimento que a aprimora. Em outras palavras: o sonho só vale a pena se
estiver preso à realidade.

Estando preso ao que é real, o sonho perde o perigo de ser infértil, mas passa
a representar, para aquele que sonha, um motivo a mais para ir além.

Ainda na perspectiva dos malefícios que o mito do amor romântico provoca


na vida das pessoas, continuamos a identificar a idealização do outro como
forma de sequestro. A literatura que socializa a mentalidade do mito do amor
romântico, perfeito, assegura que a pessoa ideal existe, e que é preciso
intensificar o processo de busca. Termos como "alma gémea" e "cara metade"
são muito comuns nessa literatura.

Essa mentalidade é responsável pelas relações tão marcadas pela


transitonedade nos dias de hoje. Pessoas se elegem e se desprezam com muita
facilidade. Juras de amor eterno hoje, e amanhã nem uma satisfação pelo
sumiço. E

a vida e suas relações tão estranhas. É o trânsito intenso de pessoas pelas


avenidas da alma. Procura incessante que nem sempre tem final feliz como
nos contos de fadas.

Trata-se de uma compreensão desencarnada do amor. Nesse mito há uma


projeção constante de que o amor do outro resolverá todos os problemas de
nossa vida.

Uma coisa é certa: nós sabemos quem somos, mas os outros nos imaginam.
Essa frase expressa bem o processo de inadequação a que anteriormente nos
referíamos. No ato de imaginar, o outro constrói a pessoa ideal, e essa pessoa
ideal não existe, pois o próprio conceito já nos diz. Ideal só existe na idéia.
É dessa perspectiva que nasce a compreensão dita anteriormente, mas que
vale ser ressaltada. Não existe pessoa "ideal", mas sim pessoa "certa". A
pessoa certa condensa defeitos e qualidades, e a somatória de tudo resulta
uma realidade pela qual o outro se apaixona.

Acredito que haja uma forma interessante de abrir as portas desse cativeiro
em que tantas vezes entramos, ou somos colocados. Não acredito que
tenhamos que procurar as realidades ideais, mas sim as realidades certas. A
profissão ideal não existe. O que existe é a profissão certa. Pronto. Com o
conceito de "certo" podemos resolver o impasse.

Tudo o que é "certo" refere-se a uma forma de regularidade. O

relógio está certo? A pergunta quer saber se o relógio trabalhou com


regularidade, isto é, se fez o que tinha que fazer. Se tiver trabalhado, estará
marcando a hora certa.

"Certo" também diz respeito àquilo que é verdadeiro. Pois bem, a verdade
não é expressão de perfeição, mas é demonstração da realidade como ela é. A
verdade é a coerência estabelecida entre o discurso e a realidade sobre a qual
o discurso foi feito.

Essa perspectiva é muito interessante. Muitos relacionamentos não são


verdadeiros justamente por causa da ausência de coerência entre o discurso e
a realidade. Aquilo que digo ser o outro não condiz com sua realidade. O
outro não é absolutamente nada do que falei sobre ele. Ele é o fruto de uma
projeção. Ele é ideal, e por isso não existe concretamente. Só existe na minha
invenção.

Quando o encontro supera essas expectativas, e as pessoas descobrem a graça


de se olharem como são, a relação passa a ser construída a partir da verdade
de cada um. Com isso, deixam de viver a procura da pessoa ideal e passam a
descobrir a pessoa certa. A regularidade do conhecimento, da conquista e a
constante vigilância para que a verdade prevaleça favorecem o surgimento de
um amor maduro e sem idealizações.

Essa idealização só poderá deixar de existir no momento em que as pessoas


se tornarem capazes de encarar o amor como uma equação matemática. Ê
somatória de defeitos e qualidades. O resultado final é fator decisivo para
saber se a relação é satisfatória ou não. Enquanto as pessoas estiverem
imaginando príncipes montados em cavalos brancos e princesas indefesas,
acorrentadas em suas torres, a idealização continuará privando-as do melhor
da vida.

O grande problema é que a idealização provoca uma compreensão


equivocada do amor. Na idealização, o amor é reduzido à paixão. A paixão é
uma espécie de ante-sala do amor, mas ainda não é amor, porque não
condensa os elementos necessários para um conhecimento do outro. Paixão é
uma forma de visão turva. Vemos e, no fascínio do que vemos, imaginamos.

A paixão é diferente do amor justamente por causa disso. A paixão sobrevive


de idealizações e o amor sobrevive de realidade. A paixão desinstala de uma
forma infantil, tornando a pessoa vítima de suas fragilidades. O amor, ao
contrário, amadurece e favorece a superação daquilo que a fragiliza.

Como já dissemos, a paixão sobrevive de prazer. Já o amor sobrevive de


desejo. Paixão só aprendeu a ficar por pouco tempo. O amor gosta é de
permanecer a vida inteira.

Esse caráter temporário da paixão é necessário para a construção do amor. O


processo que nos leva a conhecer outras pessoas sempre começa em visões de
superfície. A profundidade só é alcançada à medida que avançamos os
territórios do outro.

A paixão é o resultado da primeira vista, dos primeiros detalhes do território


encontrado, da mesma forma como a antipatia natural. A pessoa apaixonada
vive uma experiência estranha de projetar o outro como o maior
acontecimento de sua vida. E sempre assim. Todo apaixonado acha que agora
encontrou o amor de sua vida. Mas, com o passar do tempo, se esse
conhecimento não o conduzir ao encontro real, concreto, de defeitos e
virtudes pelos quais ele ainda continua apaixonado, a paixão dá espaço à
desilusão e ao rompimento. O

amor só pode acontecer nas pessoas que atravessaram a ante-sala da paixão.


Somente depois de conhecidos limites e virtudes é que o amor é real.

E por isso que as relações humanas são como pontes. Estamos sempre em
travessia. Há sempre uma distância a ser percorrida, um passo a mais a ser
dado no conhecimento do outro.

Pontes são simbólicas. Elas estabelecem vínculos. Por elas cruzamos os


obstáculos que dificultam nossa chegada ao outro lado. Quanto mais
construímos pontes, muito maior será a possibilidade de conhecermos
verdadeiramente aqueles que fazem parte do nosso mundo.

E a atitude simbólica, que constrói e facilita os vínculos.

O EQUÍVOCO DO AMOR

O rapaz pensou que amava. A moça estava certa do amor que sentia. Duas
pessoas numa mesma relação e com perspectivas distintas. Namoro e
casamento em um curto espaço de um ano. Ele, um advogado já bem-
sucedido, apesar da pouca idade. Ela, uma contadora formada que ainda não
sabia o que fazer com o diploma que recebeu da faculdade.

O rapaz cresceu num contexto de muitas exigências. Ele não fora educado
para perder. Desde muito cedo fez da sua vida uma coleção de
reconhecimentos e premiações. O melhor no colégio, o melhor nos esportes e
o melhor na faculdade. Em casa, prevalecia uma frieza na relação com os
pais. Amor real, mas amor distante, coisa de quem não descobriu a beleza de
poder ser frágil e de ter um colo de mãe onde se possa chorar.

A moça, ao contrário do rapaz, possuía uma fragilidade assumida. Cresceu


num ambiente mais afetuoso, porém menos exigente.

Carinho não lhe faltou, mas, no excesso de íelo que lhe dispensaram, os pais
esqueceram de educá-la Dará a coragem.

Os dois tinham riquezas; os dois tinham pobrezas. E assim :les se casaram. A


relação foi fortemente marcada por conflitos. O rapaz quis que a moça se
transformasse numa vitoriosa da noite para o dia. Ela não soube ser. Ele a
projetou em tudo o que pôde, mas o resultado que ele esperava não
aconteceu.

Depois de alguns anos juntos, o casamento se desfez. A moça foi embora sem
deixar muito clara a razão da desistência. O rapaz não conseguiu assimilar a
perda.

Buscou todas as justificativas para o rompimento. Alegou que a família não a


deixava crescer e que as inúmeras interferências afetaram profundamente a
relação dos dois.

Eu ouvi a história pelo lado do rapaz. Havia um sofrimento muito real em


suas palavras. Desconforto por não saber a exata razão do rompimento.

Depois de demorada conversa, eu o desafiei a pensar a respeito de sua


condição humana. Não queria que ele se resumisse ao momento presente,
mas que tivesse coragem de olhar-se com um pouco mais de inteireza.

Compreender o momento presente requer recuo no passado. Há sempre um


cordão costurando as histórias que precisa ser identificado.

Quis saber o jeito como ele foi criado. Notei que em sua educação não havia
muito espaço para a fragilidade. Desde muito cedo sua relação com os pais
lhe conduzira pelos caminhos das exigências. Aquele rapaz não sabia perder.
Pude perceber que todas as justificativas que ele usava para explicar o
rompimento eram formas de eximir-se do fracasso. Ele não queria
recohhecer-se perdedor.

Preferia relacionar a perda de sua mulher às influências da sogra, que,


segundo ele, insistia em infantilizar a filha.

Não quis mergulhar muito nesse mérito. Durante nossa conversa, resolvi
desafiá-lo ao reconhecimento do fracasso. Pedi que não justificasse nada, mas
que apenas reconhecesse que, naquele momento da vida, o lugar do pódio
que lhe pertencia era o último lugar.
Ele me olhou assustado. E foi então que eu tentei lhe convencer que perder
não é tão vergonhoso assim, e que não saber perder é um jeito estranho de
perder sempre. Ou assimilamos o que perdemos hoje, e assim perdemos de
uma única vez, ou então fingimos que não perdemos, e assim perderemos a
vida inteira. Ele concordou.

Continuei desafiando-o. Perguntei se a razão de sua tristeza estava no fato de


ter perdido alguém que ele realmente amava ou se estava somente
lamentando ter fracassado na vida, colocando o casamento na mesma
perspectiva que um fracasso ocasional de sua vida profissional. Ele não soube
dizer.

O rapaz, pelo pouco que pude escutar, havia investido muito para transformar
a moça na mulher dos seus sonhos. Ele acreditou que poderia libertá-la de
todos os condicionamentos que a família lhe legara. Para ele, afastá-la de seu
contexto familiar seria o melhor jeito de ajudá-la. Ele não queria que ela
continuasse levando adiante a fragilidade que tanto marcara sua
personalidade ao longo de sua vida. Para ela, fez inúmeros projetos, mas
nenhum foi adiante. Ele não soube conviver com a fragilidade da mulher que
elegera como esposa.

Achei interessante a história. Fiquei intrigado ao perceber o quanto as nossas


idealizações são frutos de nossa história pessoal.

O rapaz não suportava o fato de a família da moça continuar paparicando-a,


mesmo após o casamento. Conviver com aquela situação parecia evidenciar-
lhe tudo o que na vida lhe fora ausente. Ele não teve a família que ela tinha.
O seu ambiente não foi acolhedor como fora o dela. Ter que ver o que ele
nunca teve naquela que agora estava ao seu lado era um jeito de evidenciar o
seu fracasso e suas carências.

Ele a quis à sua imagem e semelhança. Toda sua postura de querer


desvinculá-la de sua mãe era um jeito estranho de punição, como se ao
romper os vínculos que ele considerava infantilizadores ele pudesse amenizar
suas carências de filho. Suas atitudes estavam constantemente motivadas por
um processo inconsciente que pode ser bem explicitado a partir da frase: "Já
que eu não tive, você também não pode ter!" E claro que essa frase nunca
fora assumida, mas ela estava como pano de fundo o tempo todo,
perpassando o esforço do rapaz em tornar a esposa uma mulher independente.

Por não ter tido a proteção necessária, o rapaz apreendeu boa parte da vida na
solidão. Com isso, projetou em sua cabeça que a mulher ideal deveria ser
também assim. Bonita, livre, bem-sucedida. Mas a mulher com quem ele
havia se casado não era nada disso. Ele a quis construir.

Por amá-lo de verdade, conhecedora de quem ele era e do que ele pretendia, a
moça até que tentou mudar. Mas as exigências eram demais. Ela precisou
abrir mão de quem ela era. Não havia honestidade na proposta para o seu
crescimento, mas uma competição. O rapaz não sabia ficar sem competir.

Em tudo ele queria ser o melhor. E, em nome de um amor que ele julgava
sentir por ela, empenhou-se por torná-la órfã, com o objetivo de curar um
pouco de sua orfandade.

Parece estranho, mas foi justamente isso que mais tarde ele, de modo
envergonhado, pôde admitir. Foi então que ele disse: "Eu não sei se em
algum momento eu a amei de verdade!".

Relações dessa natureza são comuns entre nós. Sequestros velados. Pessoas
que, na incapacidade de compreender os limites de suas histórias pessoais,
passam a buscar nos outros os preenchimentos de suas lacunas. Amores que
não são amores. Amores que se caracterizam como competições sórdidas,
desumanas, ainda que pareçam cuidado e atenção.

Nem sempre nossas intenções são conscientes. Nem sempre agimos com
clareza. Boa parte de nossas reações e atitudes obedecem à ordem de nosso
mundo inconsciente, em que a vida passada permanece atuando e
determinando nosso jeito de ser. Tomar consciência das intenções que
norteiam nossos atos é o primeiro passo para reorientarmos nossa conduta,
retirando do amor que amamos o poder tão destruidor que tantas vezes lhe é
inerente.

Conscientizar-se de que sua história como filho que não foi amado como
deveria ter sido era a génese de sua indisposição com a mulher com quem
havia se casado foi um grande passo para a vida do jovem advogado. Não se
trata de descobrir culpados ou inocentes. Trata-se de desvendar os papéis dos
personagens da trama. O que ele não suportava em sua esposa era o que dele
nela estava refletido. Vê-la frágil e cuidada pelos seus progenitores
recordava-lhe também sua condição de homem frágil que, ao contrário dela,
raramente encontrou abrigo para se esconder.

A fragilidade da esposa lhe recordava o que nele era insuportável.

Ele também sempre foi frágil, mas nunca soube assumir

porque lhe faltou liberdade para isso. A família que ela tinha era a família que
ele gostaria de ter tido. Mas, na incapacidade de reconhecer tudo isso,
justamente por ser um processo inconsciente, ele revestiu esse desejo de uma
forma cruel de aversão, minando cada vez mais a relação dos dois.

Ao dizer "eu não suporto a família dela", aquele rapaz que já ganhou tantas
causas na vida assumia, sem saber, que a maior de todas as causas ele já
havia perdido. Aquela família era o retrato de sua frustração. A fotografia
revelava o que na sua vida sempre foi ausente. Olhar aquele quadro era
insuportável, e, por isso, o desejo de ficar distante daquela cena.

O mais sábio teria sido tomar consciência de tudo isso antes da separação.
Talvez assim teriam tido tempo para não deixar o desgaste acontecer. Em vez
de rechaçar os cuidados da família dela, ele teria se deixado cuidar por eles
também, podendo assim curar suas ausências com a família recém-chegada.
Tentaria dosar a atenção exagerada com a coragem a ser alcançada. Os dois
estavam nos extremos. Ele, na necessidade de aprender a ser frágil, ela, na
necessidade de aprender um pouco de coragem para viver sem os vínculos
que não a deixavam ir adiante. Ambos precisavam assumir um pouco um do
outro.

Mas não houve tempo para essa partilha. O casamento se desfez e o fracasso
se instaurou de forma avassaladora.

Não houve tempo para o amor real. O que houve foi a construção de uma
realidade fortemente marcada pelo desconhecimento pessoal. Relação
diabólica, infértil e imatura. Ambos perderam.

EGOÍSMO

Sinto falta de você. Mas o que sinto falta é de tudo o que é seu e que me falta.

Sinto falta de minhas faltas que em você não faltam.

Sinto falta do que eu gostaria de ser e que você já é.

Estranho jeito de carecer, de parecer amor.

Hoje, neste ímpeto de honestidade

que me faz dizer, Eu descobri minhas carências inconfessáveis Que insisto


em manter veladas.

Acessei o baú de minhas razões inconscientes

E descobri um motivo para não continuar mentindo.

Hoje eu quero lhe confessar o meu não amor,

Mesmo que pareça ser. Eu não tenho o direito de adentrar o seu território
Com o objetivo de lhe roubar a escritura. Amor só vale a pena se for para
ampliar

o que já temos.

Você era melhor antes de mim, e só agora posso ver.

Nessa vida de fachadas tão atraentes e fascinantes;

Nestes tempos de retirados e retirantes,

Sequestrados e seqúestradores,
A gente corre o risco De não saber exatamente quem somos.

Mas o tempo de saber já chegou. Não quero mais conviver com meu lado
obscuro,

E, por isso, ouso direcionar meus braços

Na direção da dose de honestidade que hoje me cabe.

Hoje quero lhe confessar meu egoísmo.

Quem sabe assim eu possa Ainda que por um instante amar você de verdade.

Perdoe-me se meu amor chegou tarde demais,

Se meu querer bem é inoportuno e em hora errada.

É que hoje eu quero lhe confessar meu desatino,

Meu segredo tão desconcertante:

Ao dizer que sinto falta de você

Eu sinto falta é de mim mesmo.

CONSTRUINDO RELAÇÕES SIMBÓLICAS

O mundo começa na palavra que dizemos. A próxima palavra a ser proferida


é sempre a nova oportunidade que recebemos de mudar a história.

Palavras possuem o poder de mover as estruturas. Por meio delas vivemos o


processo da "metanóia", palavra de origem grega que significa "mudança de
mentalidade".

Uma mudança só é consistente se, de fato, a palavra alcançou as profundezas


da mentalidade. Nenhum comportamento será modificado se a mente que o
produz não estiver verdadeiramente transformada. Mudar de mentalidade é
assumir um novo jeito de interpretar os fatos, as pessoas e o mundo. Por isso
as palavras são ditas, são escritas. Para que tenham o poder de transformar as
mentalidades.

A palavra pode ser simbólica ou diabólica. Depende do contexto e da forma


como é dita. Símbolo é tudo aquilo que estabelece vínculo e que favorece
alguma forma de compreensão. Diabólico é tudo o que corta o caminho e
favorece a perda do rumo. O símbolo encurta as distâncias, porque estabelece
pontes. Por ele torna-se possível uma travessia que nos favorece alcançar
outros lugares. Já o diabólico intrinca a compreensão, torna difícil chegar ao
lugar a que nos propusemos.

O simbólico e o diabólico estão presentes em todas as formas de linguagem.


Eles não se limitam ao contexto das palavras ditas, ou escritas, mas
perpassam também o horizonte dos gestos.

Dentro dos ritos religiosos, o símbolo se presta a estabelecer um vínculo entre


o que é material e o imaterial. Uma vela, por exemplo, assume o papel de ser
ponte para nos levar ao horizonte da luz que não podemos ver, mas que por
inúmeras razões humanas queremos alcançar. Religião é o contexto do desejo
que ainda não sabemos identificar. Experiência de fé é experiência de não
saber dizer, mas que de alguma forma nos faz intuir que já sabemos.

Quando dizemos que uma pessoa é iluminada, nosso jeito de dizer já está
marcado pelo poder da linguagem simbólica. Há alguma coisa na pessoa que
nos faz reconhecer as características que são próprias da luz, mas ainda não
temos a perspicácia de identificar, por meio de uma linguagem lógica, o que
na pessoa reconhecemos iluminado.

O diabólico também está presente nos ritos religiosos. Cada vez que a
sacralidade do que queremos celebrar esbarra nos limites de nossa linguagem,
corremos o risco de dizer ou representar, por meio de gestos, o absolutamente
contrário do que gostaríamos.

A problemática do simbólico e do diabólico perpassa todo o contexto da vida


humana. Como já mencionamos, as culturas humanas são construídas a partir
de realidades simbólicas e diabólicas.
Nossas relações cotidianas também são construídas dessa forma. O

tempo todo, conscientes ou não, estamos estabelecendo pontes com as


pessoas que encontramos, isto é, estamos sendo simbólicos; ou então estamos
destruindo os lugares de travessia, assumindo assim a condição de diabólicos.
Na história que vimos anteriormente, o que prevaleceu foi a falta de
linguagem simbólica.

Marido e mulher não construíram pontes, mas, ao contrário, aumentaram as


distâncias.

Falar de relações simbólicas é o mesmo que falar de relações que nos fazem
avançar. O símbolo estabelece pontes que favorecem travessias.

Passamos pelas histórias que encontramos, tocamos e somos tocados pelas


pessoas que cruzam nossos caminhos. Falamos e ouvimos, sorrimos e
choramos, enfim, toda nossa vida está constanternente contextualizada nas
estruturas do simbólico e do diabólico.

Pensar nas estruturas simbólicas e diabólicas que sustentam nossas relações


consiste em apurar ao máximo o destino que damos a nós mesmos e aos
outros. Somos o resultado final dessas duas conjugações. Ninguém consegue
ser simbólico o tempo todo, mas não creio que alguém possa ser
constanternente dominado pelos impulsos que geram o diabólico. Estamos
sempre cruzando o perigoso limiar que nos separa das duas perspectivas.

Relações simbólicas são capazes de nos fazer voltar para o que somos.
Relações diabólicas nos distanciam de nós mesmos. Podemos aqui, de
maneira simbólica, reportar-nos à temática que já apresentamos
anteriormente a respeito do conceito de pessoa.

A "disposição de si" carece o tempo todo de ser alcançada para que o


segundo passo do conceito, a "disposição ao outro", possa acontecer.
Disposição de si e disposição ao outro são duas realidades simbólicas. Nas
duas formas de disposição há uma integração necessária e fundamental sem a
qual não é possível dispor de si, tampouco ser disponível ao outro. Essas duas
disposições atestam a preponderância dos elementos do simbólico sobre nós.
É com base nessa premissa que podemos compreender que uma pessoa será
mais pessoa à medida que não abrir mão das realidades simbólicas. O

diabólico desintegra, mas o simbólico congrega. Por isso, quanto maior for o
número de relações simbólicas estabelecidas, maior será o processo de
conquista de si mesma que a pessoa viverá.

Toda e qualquer forma de sequestro da subjetividade implica rupturas


dolorosas e esquecimentos de valores. Por isso os sequestros são experiências
de relações diabólicas. Não oferecem pontes, mas, ao contrário, cortam as
comunicações, impedem travessias e superações.

A prevalência de relações diabólicas, em detrimento de relações simbólicas,


provoca um empobrecimento considerável do mundo, uma vez que um
mundo diabólico é um mundo que impede os encontros, em vez de
proporcioná-los.

Estabelecer uma luta contra as estruturas que diabolizam o mundo consiste


em quebrar os cativeiros da mentalidade que nos ensinou a reproduzir, nas
pequenas relações, as estruturas do diabólico. Insensibilizados, nem sempre
estamos dispostos a estabelecer pontes. Conseqúentemente, nós vamos
cavando nossa própria solidão, gerando um mundo cada vez mais desprovido
do poder transformador das realidades simbólicas.

Quando deixamos de ser simbólicos, a solidão cresce no mundo.

E, o pior, cresce a partir da nossa solidão. Se em vez de construir pontes nós


as destruímos, de alguma forma estamos provocando o nosso isolamento.
Não é apenas o outro que está privado de nossa presença, mas nós mesmos,
sobretudo.

O fechamento é uma forma de suicídio. A opção por tudo aquilo que no


mundo é diabólico é uma adaga que empurramos lentamente no peito. É um
jeito de morrer aos poucos. É um jeito de assumir a solidão mais profunda, a
"ausência de nós mesmos". Aquela solidão que, mesmo quando estamos
acompanhados, ainda assim não deixa de existir.
BANQUETE

Que o seu chegar seja mais que um

simples chegar. Que seja o símbolo de um tempo

de demoras e permanência. Deitarei a toalha branca sobre a mesa e permitirei


que suas pontas venham

cobrir também a minha alma.

Cada vez que nossa mesa é posta,

muito mais que um alimento,

a vida nos é oferecida!

Que seja assim.

Que nossa fome de amor

e de fraternidade seja sempre saciada

nos olhares dos quais nos serviremos.

JESUS E SEU OLHAR SIMBÓLICO

A história humana está repleta de personagens simbólicos. São pessoas que


construíram pontes para que a humanidade pudesse atravessar, chegar e
alcançar uma evolução. O contexto cristão é de uma riqueza insondável.
Homens e mulheres que entraram na história pela força de suas travessias no
tempo histórico, vivendo de forma única. No cristianismo, essas pessoas são
elevadas à condição de santas. Para ser santo é necessário elevar ao máximo,
na história pessoal, a vivência de uma virtude evangélica.

Todo modelo de santidade cristã tem sua raiz na pessoa de Jesus, Deus
encarnado na história. Jesus representa para o cristianismo a grande
manifestação do Sagrado no tempo. Nele, toda uma Antropologia é proposta,
de maneira que, na expressão bíblica de Pilatos — "eis o homem"—, toda a
humanidade recebe a revelação máxima de sua condição. Vale considerar que
aTeologia Cristã considera que todo discurso sobre Deus é também um
discurso sobre o ser humano, de maneira que a plenitude da revelação de
Deus, em seu filho Jesus, está a serviço do autoconhecimento que a
humanidade precisa viver.

Jesus é um construtor de pontes em seu tempo. Sua vida e missão estão


sempre voltadas para repatriar os que estavam fora da vida social, política e
religiosa de seu tempo. A categoria sempre usada em seu discurso —

"Reino de Deus" — refere-se a uma forma de antecipação histórica de toda


uma promessa bíblica de "terra prometida" e lugar de "felicidade definitiva".
Sua pregação não é projeção de um céu imaginário, ideal, mas é uma
pregação que não desconsidera o fio da história, atando-o constantemente às
promessas escatológicas e futuras.

As palavras de Jesus são simbólicas o tempo todo. Há sempre um


ensinamento que extrapola o significado das palavras. As palavras são
sempre pontes. O principal era a travessia que elas poderiam favorecer. Havia
sempre um algo a mais, um lugar mais profundo a ser alcançado.

E muito interessante perceber que, no contexto histórico de Jesus, o sequestro


da subjetividade era constantemente aplicado pelas autoridades religiosas e
políticas. Cultos e impostos serviam como instrumentos de fragilização do
tecido social, por meio da exclusão dos menos favorecidos. Veja bem que a
palavra de Jesus está sempre comprometida com a libertação dos que estavam
cativos. Os cativeiros daquele tempo ele resolveu enfrentar por meio de uma
força incomum: a palavra simbólica e os gestos poéticos. Sua força não era
física. Aos sequestrados do seu tempo ele dirigia a força de seus gestos
poéticos, e assim os libertava de seus cativeiros.

Vale a pena recordar uma sequência narrada nos evangelhos sinóticos que
testemunha muito bem a força desses seus gestos.

A cena é dramática, mas é também fascinante. Uma mulher está prestes a ser
apedrejada. Foi pega em adultério e a lei de Moisés prescrevia condenação
pública para esses casos. A multidão está convencida de que o certo se
cumprirá. Matar em público é um jeito de manter a ordem, de fazer
prevalecer a força da lei.

Jesus observa os acontecimentos enquanto a multidão enfurecida se prepara


para o ato definitivo. As vozes uníssonas gritam a sentença. Não há o que
fazer. A mulher será morta. O que agora descrevemos não está relatado, mas
podemos imaginar.

No meio de tantas vozes que gritavam, Jesus não tinha muito o que fazer. É
muito difícil ser voz única, gritando uma sentença diferente no meio de uma
multidão que grita absolutamente o contrário. Certamente ele fez um esforço
de adentrar a multidão para que tivesse um acesso maior à condenada. Deve
ter aberto discretamente espaços entre as pessoas que circundavam e
compunham a moldura daquela cena.

Jesus chegou perto. Preferiu não gritar. Utilizou-se de uma linguagem que é
infinitamente superior à linguagem das palavras: o olhar. Fixou os olhos na
mulher e começou a dizer, sem dizer, tudo o que ela precisava ouvir naquela
hora. Aquela criatura jogada ao chão protagonizava a dura experiência de um
sequestro que durou sua vida inteira. Entregue à prostituição desde muito
cedo, a mulher experimentava naquela hora o risco de morrer sem que
alguém lhe pagasse o valor do resgate.

Tratava-se de um sequestro da subjetividade. Os muitos homens que deitaram


em sua cama a sequestraram aos poucos. Levaram dela todo amor próprio,
todo valor, toda dignidade. Por isso ela se entregava ao suplício do
apedrejamento. Ela tinha consciência de sua culpa. Vivera a condição de
vítima, internalizou o poder dos seqúestradores que um dia a fizeram
acreditar que o cativeiro era o seu destino único.

Jesus, no ato de olhar, começa a devolver àquela mulher tudo o que a vida lhe
havia retirado. Era como se os portões de um porão escuro recebessem uma
chave iluminada de novas esperanças. A mulher não sabia que sabia.
Esquecera do valor que possuía. A vida vivida na condição de objeto de
prazer, o corpo entregue à condição de praça pública, lugar comum que não
merecia cuidado, tudo era fator que a prendia ao chão e que a convencia de
que estava recebendo o destino merecido.

Mas os seus olhos encontram os de Jesus. Ela percebe que eles não falam a
mesma coisa que a multidão. Nos olhos daquele homem recém-chegado ela
identifica um poder superior a tudo o que ela já tinha encontrado na vida.
Eram olhos que possuíam o dom de realizar devoluções. Naquele olhar estava
sendo devolvida a sua dignidade, o seu desejo de continuar viva, de
reencontrar o sentido do seu corpo, e até mesmo alimentar a esperança de um
amor que a pudesse amparar na vida.

Aqueles olhos tinham o poder de lhe devolverem a ela mesma.

Ela, que tantas vezes fora roubada, levada de si, agora estava diante de um
homem que lhe devolvia novamente o que aos poucos a vida lhe levara.

E eis que a coragem a domina. Ergue-se; e no ato de erguer-se assusta a


multidão que não entende o gesto. A multidão se cala; e só neste momento as
palavras de Jesus quebram a lógica da lei. Uma frase simples, mas uma frase
capaz de ser simbólica, de estabelecer pontes.

Aquela que estava prestes a ser morta retoma a vida. O cativeiro foi aberto. O
resgate foi pago. Tudo por causa de um gesto simbólico, pleno de significado,
que foi capaz de devolver à mulher a condição de pessoa.

Gestos simbólicos são salvíficos, redentores, ao passo que gestos diabólicos


são condenatórios, desagregadores. A mulher experimentou esta verdade.

No meio de uma multidão diabólica surgiu um olhar simbólico, e o milagre


da reversão dos fatos aconteceu. Na experiência de sermos o que somos
estamos constantemente vivendo a metáfora da multidão. Ou porque estamos
na condição de acusadores, ou porque estamos na condição de acusados. Nem
sempre é fácil prestar atenção no olhar raro. A multidão parece ter mais força.

Nem sempre também é fácil ser portador de um olhar raro. É mais fácil
integrar a multidão e suas soluções simplórias. Interpretar a lei ao pé da letra
dá menos trabalho que descobrir as chaves que nos possibilitam
interpretações mais profundas.

O inegável é que, no ato de sermos o que somos, há sempre uma cena


semelhante à cena do evangelho sendo construída ao nosso lado, diante dos
nossos olhos. Como reagimos? Não sei. Tudo é uma questão de escolha. Ou
vivemos para simbolizar, e assim fazemos a diferença no mundo, ou vivemos
para gritar o grito que é comum a todos; o grito fácil e a diabolização
democrática.

Olha devagar para cada coisa. Aceita o desafio de ver o que a multidão não
viu. Em cascalhes disformes e estranhos diamantes sobrevivem solitários.

ABRINDO OS CATIVEIROS QUE EXISTEM EM NÓS

E hora de reação. A provocação foi feita. Neste mundo de sequestrados e


seqúestradores, há sempre um detalhe da história que nos toca. Ou porque
vivemos um dos lados da trama, protagonizando o sequestro de alguém, ou
porque estamos vivendo os lamentos de um cativeiro em que fomos
colocados, ou porque simplesmente descobrimos que há muitas aplicações
deste texto em nossa vida. Não importa onde estamos. O que importa é aonde
podemos chegar.

Não importa o que fizemos até agora, mas o sim o que podemos fazer com
tudo o que fizemos até agora.

Creio que sempre é tempo de abrir cativeiros. Ou para que o outro saia ou
para que nós saiamos. A qualidade da nossa vida depende da qualidade de
nossas relações. Reorientar a conduta, sobretudo quando identificamos os
desvios que nos levam para longe de nós mesmos, é a atitude mais sábia que
podemos adotar. Reassumir a capacidade de voltar à posse do que somos e
conseqúentemente dar ao outro o melhor que podemos oferecer é um jeito
interessante que temos de humanizar-nos ainda mais.

Humanidade é processo a ser construído. Somos mais humanos à medida que


somos livres, resgatamos os cativos e lhes devolvemos o direito de serem
livres também. Promover a liberdade, defender e propagar a força da
linguagem simbólica é uma forma interessante de traduzir o Evangelho nos
dias de hoje.

Há muitos cativeiros a serem abertos. Há muitas prisões a serem quebradas.

Preconceitos,

visões

apressadas,

conceitos

distorcidos,

desumamzações em nome de Deus, cativeiros em nome do amor. Gente


dominada, sem vontade própria, entregue aos domínios dos diabólicos de
plantão.

Uma coisa é certa. O perigo do sequestro da subjetividade mora ao lado, e de


alguma forma ele já nos atingiu. Em proporções diversas, em mtensidades
diferenciadas, esse malefício contemporâneo já nos esbarrou.

O importante é a reflexão que podemos fazer. Repensar as relações que foram


marcantes em nossa vida ajuda-nos na análise que precisamos fazer.

Perguntas são sempre bem-vindas na vida de quem cresce. Há perguntas que


não precisam ser respondidas com pressa. Elas pertencem ao mundo da
reflexão que não pára. São perguntas que possuem o dom de fertilizar o
plantio que somos nós.

Perguntar-se é uma maneira interessante de se descobrir como pessoa. Por


isso as perguntas são pontes que nos favorecem travessias.

Eu não acredito que você tenha chegado ao fim deste livro sem que tenha se
confrontado com algumas coisas que aqui foram ditas. Este não é um livro de
teorias, mas é um livro ditado pela vida. Ele não nasceu das teorias que me
acompanham. Foi o contrário. Ele nasceu da vida que antes eu vi, ouvi e vivi.
Somente depois eu quis escrevê-lo. Antes, a vida; depois, o livro.
E por isso que eu gostaria de finalizá-lo do mesmo jeito que ele começou em
mim: com perguntas. Dessa forma ele não termina, mas continua em você,
permitindo-me a proeza de continuar escrevendo de maneira tão eficaz e
frutuosa. Se este livro continuar em você, conduzindo-o pelos caminhos
tortuosos de sua construção humana, então já valeu tê-lo escrito.

Se minhas palavras o fizerem pensar, e conseqüentemente agir com mais


clareza e qualidade, então já valeu ter-me feito a primeira pergunta, a que
originou o assombro inicial.

E assim, dando continuidade ao processo que não pode parar, deixo algumas
perguntas para que este livro não termine em sua última página escrita.

Dos relacionamentos que você já teve, quais foram as ocasiões em que


verdadeiramente você foi modificado para melhor? Quais são as pessoas que
passaram pela sua vida, que lhe deixaram saudades e que você faz questão de
cultivar?

Quem foram as pessoas que mais favoreceram seu crescimento afetivo,


proporcionando-lhe uma relação em que pudesse entrar em contato com seus
defeitos, qualidades, e conseqúentemente lhe ajudaram no processo de tornar-
se pessoa?

Onde é que você pode identificar, nas páginas de sua história, os


acontecimentos em que sua liberdade foi promovida por alguém?

O contrário também precisa ser perguntado. Quais foram as pessoas que mais
deixaram marcas negativas dentro de você? Quais são as piores lembranças
que estão registradas em sua memória afetiva?

Quantas e quais pessoas desempenharam em sua vida o papel de


seqúestradoras, mantendo-o nos territórios minguados de um amor
possessivo, desumanizador?

Quantas vezes você pôde identificar em seu coração um jeito estranho de


querer possuir o outro, impedindo-o de exercer sua liberdade? Será que você
é lembrança doída na vida de alguém? Será que já construiu cativeiros?

Será que já viveu em algum?

Será que você já foi capaz de pagar o resgate de alguém? Com sua palavra,
com sua atitude, com o seu jeito de viver?

Será que já idealizou demais as situações, as pessoas e por isso perdeu a


oportunidade de encontrar as situações e as pessoas certas?

Se hoje você tivesse que classificar sua postura no mundo, você se definiria
como uma pessoa simbólica ou diabólica?

Sejam quais forem as respostas, não tenha medo delas. Mais vale uma
verdade amarga que tenha o poder de nos fazer crescer do que uma mentira
adocicada que nos mantenha acorrentados no cativeiro da ignorância. Hoje é
dia de resgate. A porta já foi aberta. E só sair.

Eu procuro por mim

Tal qual o artesão procura sua arte

Escondida nos excessos da matéria bruta

De seu mármore.

(Fim)

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