12 - Uma Promessa É para Sempre

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Série Cris

Uma Promessa é Para Sempre

Editora Betania
Digitalização: deisemat

WWW.PORTALDETONANDO.COM.BR/FORUMNOVO/
Uma Promessa é Para Sempre
12

ROBIN
JONES
GUNN
Vá em Frente, Garota!
1

- Será que vamos conseguir? perguntou Cris Miller, quase sem fôlego, à sua melhor amiga, Katie, enquanto o bonde

do aeroporto as levava até o terminal.

- Temos de conseguir! replicou Katie, colocando a mochila nas costas. Assim que o bonde der uma parada, saímos

daqui. Pegue sua mala para sermos as primeiras a descer.

Cris tirou sua sacola preta do bagageiro e aproximou-se da porta, logo atrás de sua amiga de vontade forte e

cabelos ruivos.

- Você lembra qual é o nosso portão de embarque?

- Cinquenta e quatro, disse Katie, olhando sobre os ombros no momento em que o veículo parou com um

solavanco.

Dezenas de outros passageiros se levantaram.

- Vamos! gritou Katie.

Passou pela porta em disparada, com Cris logo atrás. Caminharam pelo pátio do Aeroporto Internacional de San

Francisco e subiram a escada do terminal, dois degraus a cada passo.

- Este portão é o 87, disse Cris, olhando o quadro de informações, assim que entraram no prédio.

- Para que lado fica o portão 54? perguntou Katie em voz alta para quem estivesse por perto e pudesse indicar.

- Vire à esquerda, no final deste corredor, respondeu um atendente de uniforme que estava na recepção. Atravesse

o corredor "E" e continue em frente até chegar ao Terminal Central Internacional.

Cris estava prestes a pedir informações mais exatas, mas Katie já ia correndo por entre a multidão.

- Espere aí! gritou ela.

Já fora ruim o falo de que o vôo do aeroporto da cidade delas tivesse se atrasado mais de uma hora. Cris não queria

também ficar separada da Katie e perder o vôo para Londres.

- Temos só vinte minutos! explicou Katie quando Cris chegou perto. Douglas linha razão. Devíamos ter tomado o

vôo que saiu mais cedo, e que a Trícia pegou. Este está uma loucura!

- Espero que Douglas tenha conseguido vir de San Diego sem problemas

Cris ofegava e seus cabelos estavam enroscados na alça da bolsa a tiracolo. Ela arrancou do ombro direito e alguns

fios foram juntos.

- Aaai!!

- Esquerda, aqui, orientou Katie no final do setor.

Agora corria, a mochila verde saltando com suas manobras atléticas por entre a multidão, como se ela estivesse

numa corrida de obstáculos. Cris corria atrás, de olho na mochila verde.


Isso é impossível. Não vamos conseguir. Nem acredito que deixei a Katie me convencer a entrar em outra de suas

aventuras malucas!

Katie parou à entrada de outro corredor e perguntou a um homem que usava roupa de executivo.

- É aqui a ala internacional?

Ele deu de ombros e continuou andando. Katie se aproximou de outro homem que descia na escada rolante.

- Continue seguindo nessa direção.

- Obrigada, replicou ela.

Agora Katie corria a todo vapor e Cris ia só seguindo. Sentiu o suor escorrendo pela testa, e lamentava ter vestido

tanta roupa, uma sobre a outra.

Tinham sido instruídas pela organização missionária da Inglaterra a se agasalharem bem para essa viagem, já que

era tempo de frio. Mas naquele momento Cris desejou que tivesse colocado o casaco na mala, em vez de vesti-lo. A bolsa

parecia pesar cem quilos, e ela se arrependeu de não ter atendido o conselho de Katie para levar mochila. O que mais havia

ela calculado mal? Será que essa viagem toda seria um erro?

- Ande! gritou Katie ao notar que a amiga estava ficando para trás.

Com um último surto de adrenalina, Cris forçou o passo para acompanhar Katie, sabendo que entre todos os

viajantes, elas eram as únicas que corriam.

- Douglas! ouviu Katie gritar. Estamos aqui!

O rapaz estava junto à entrada do corredor internacional, cabeça e ombros acima de todo o resto da multidão. Seu

habitual sorriso de garotão fora substituído por um ar carrancudo, que ela raramente vira nos poucos meses em que

andavam namorando. Sua vontade era receber um abraço dele, sentir o conforto e a segurança dos seus braços, mas não

havia tempo.

- Depressa! Entrem na fila do detector de metais. Ali. Depressa! Nosso vôo sai dentro de cinco minutos.

As duas seguiram suas instruções imediatamente e passaram pelo arco. Felizmente o alarme não disparou.

- Passagens, por favor, disse uma mulher por trás do balcão de check-in, que parecia tranquila.

As garotas pegaram as passagens e os passaportes. A atendente destacou uma parte da passagem e continuou:

- Portão 54 à direita. Já embarcaram.

- Vamos, gente!

O grito de treinador do Douglas contrastava totalmente com a atitude tranquila da funcionária da companhia aérea.

Cris percebeu que Trícia devia estar sozinha no avião, esperando-os. Elas tinham de conseguir pegar esse vôo. Os três

correram até o portão no momento em que a porta começava a fechar-se.

- Esperem! gritou Douglas, dando um pulo até lá. Estamos neste vôo.

O homem manteve a porta aberta com o pé enquanto outro atendente pegava as passagens e as verificava

rapidamente.
- Vocês alcançaram por pouco.

Mais alguns passos e estavam dentro do avião.

- Não acredito, suspirou Cris.

Entregou à atendente de vôo o comprovante de passagem.

- Seu lugar é na fileira 34, lá nos fundos.

- Naturalmente, murmurou Katie, com sua mochila à frente, abrindo caminho no estreito corredor.

Cris foi a primam a ver Trícia, no meio da ala 34. Seu rosto em forma de romeno tomara um aspecto sério, como

que a guardar o lugar delas.

- Isso não foi nada engraçado, gente! disse ela, franzindo o nariz delicado e tentando não parecer brava nem

apavorada, ou ambas as coisas. Quase desci do avião! Resolvi que, se vocês não chegassem em dois minutos, eu ia

desembarcar. Sem essa de ir sozinha para Londres!

- Conseguimos chegar. Eu diria que um pouco em cima da hora, mas estamos aqui.

Douglas abriu o guarda-volumes e enfiou nele as bagagens de mão de Cris e Katie ao lado das suas e da bagagem de

Trícia.

- Faça o favor de sentar-se, senhor, disse o atendente de vôo, num carregado sotaque britânico.

Douglas sentou-se no lugar ao lado do corredor, perto de Cris. Katie, ao lado dela, começou a contar a Trícia sobre a

demora daquela manhã. Cris fechou os olhos e respirou fundo. Tinha vontade de chorar. Ou de rir. Ou qualquer coisa

parecida. Sentiu a mão forte do Douglas sobre a sua.

- Você está bem? perguntou ele, baixinho.

Ela abriu os olhos e olhou o rosto compreensivo e terno do rapaz.

- Foi arriscado demais, disse.

Mas pensou: Isso é demais; é uma loucura. Por que estou aqui?

- Vamos à Inglaterra, disse ele, limpando o suor da testa com a ponta da manga da camisa. Com seu sorriso de

garoto feliz, disse: Dá pra acreditar?

- Não, sussurrou Cris, sentindo seu aperto de mão. Ainda não acredito. Aconteceu tão depressa!

- É, mas conseguimos, disse ele enquanto os comissários de vôo começavam a apresentar os itens de segurança do

avião. Queria que mais colegas do grupo de "Amigos de Deus" tivessem vindo. Mas é legal que nós quatro tenhamos

conseguido.

- Douglas, três semanas e meia não foram exatamente muito tempo para a gente levantar sustento e arranjar os

passaportes e tudo o mais. Se tivéssemos esperado até o verão para fazer esse estágio, tenho certeza de que muito mais

gente poderia ter vindo.

Ele deu de ombros.

- Acho que, se nós quatro voltarmos com um relatório vibrante, todo mundo vai querer ir no verão e aí poderemos
repetir a dose.

- Se fizermos isso de novo, sem dúvida vou pegar o primeiro vôo, o que Trícia pegou, mesmo que tenha de acordar

às cinco! Você estava certo com relação a isso.

Cris tirou o casaco e abanou o rosto vermelho com a mão.

Douglas sorriu. Dava para perceber que lhe agradava ouvi-la dizer que ele acertara. Não era arrogância; não havia

um pingo de arrogância no coração do Douglas. Ele simplesmente gostava quando ela o elogiava.

O avião agora ia taxiando pela pista, prestes a levantar vôo.

- A missão mandou as informações finais para você? perguntou ela. É a única parte que deixava meus pais

preocupados. Eu lhes dei o endereço onde passaremos as duas primeiras noites em Londres, e o do lugar onde treinaremos.

Mas acho que eles estavam preocupados por eu não saber onde estaria fazendo evangelismo nas duas últimas semanas da

viagem.

- A única coisa que recebi da missão no fax de ontem foi a instrução de como se chega a Carnforth Hall para a

semana de treinamento, explicou Douglas no momento em que o avião decolava, ganhando o azul do céu. Não se

preocupe. Deus dirigirá nossos passos. As próximas três semanas vão ser uma oportunidade maravilhosa para a gente

aprender a confiar nele.

Cris teve de sorrir. Conhecia Douglas desde os quatorze anos, Nesses quatro anos e meio ele não mudara nada. Na

verdade, ele já vivia qualificando tudo de maravilhoso, na época em que ela o conhecera. Ele ficara mais alto e musculoso,

mas ainda tinha o mesmo rosto, agia do mesmo modo e até se vestia do mesmo jeito. Mas, nesses anos, Cris mudara muito.

Ficara adulta. Agora, aos dezoito anos, estava no primeiro ano da faculdade e se sentia como se tivesse a mesma idade do

Douglas, que tinha vinte e três. Faltava apenas um semestre para ele se formar em Administração de Empresas.

- Douglas, perguntou Trícia, inclinando-se na frente de Katie e Cris, você recebeu a confirmação do hotel onde

vamos ficar em Londres?

- Recebi.

- E comprou as passagens de trem para irmos a Carnforth Hall?

- A gente compra no aeroporto. Tenho todas as informações.

- E o horário? perguntou Katie. Quando temos de estar em Carnforth?

- Sexta-feira à tarde.

- Você comprou aquele guia turístico de Londres? perguntou Trícia. Tem tanta coisa para ver! Como vamos

conseguir ver tudo em apenas dois dias?

- Fiquem calmas, meninas. Está tudo sob controle. Assim que apagarem o sinal de cintos de segurança, vou pegar o

livro; aí a gente começa a fazer planos.

Cris sentia que a única coisa que fizera no último mês foi planejar. Ainda estava surpresa por seus pais haverem

concordado que ela passasse o intervalo do semestre com seus três melhores amigos no outro lado do mundo.
Mais surpreendente ainda, é que os pais da Katie, que não eram cristãos, também tinham concordado. Mas eles

viam isso mais como uma experiência cultural do que uma viagem missionária. Trícia e Douglas eram mais velhos do que

Katie e Cris, e suas famílias lhes davam todo apoio. É claro que a família da Cris lhe dava a maior força, mas seus pais tinham

a tendência de protegê-la demais.

A última coisa que seu pai dissera na noite de véspera tinha sido:

"Espero que essa viagem a ajude a resolver o que vai fazer de sua vida. Você sabe que eu e sua mãe vamos apoiá-la

no que resolver. Mas é bom saber que está na hora de decidir."

Ao falar-lhe assim, ele a deixara irritada. Tomar decisões nunca fora o forte dela. Cris havia tomado bastante

decisões das quais mais tarde se arrependera. A mais importante delas ocorrera por volta de maio, quando terminara o

namoro com Ted, o melhor amigo de Douglas, para que ele pudesse entrar numa organização missionária. Na época, ela

sabia que estava agindo certo, mas levou vários meses para recuperar-se do sentimento de perda.

Levou ainda mais tempo para Douglas convencê-la de que ela deveria namorá-lo. Ela ficara indecisa durante o

período de férias, e só em outubro concordara em namorá-lo.

Engraçado é que nada tinha mudado nos três meses em que namoravam. Eram bons amigos, mas sempre tinham

sido. Agora ele segurava mais a sua mão, mas nunca a beijara. Era mais uma amizade tranquila, segura, e que inspirava aos

pais dela tanta confiança, que eram capazes de deixá-la viajar com ele para a Europa.

Douglas abriu o cinto de segurança, pôs-se de pé e tirou da mochila os guias de turismo. Durante a hora que se

seguiu, os quatro fizeram planos sobre o que veriam em Londres. Para Cris, tudo ainda parecia um sonho.

O jantar foi servido: carne assada fatiada com molho, ervilhas, salada de frutas e um pedaço de bolo com nozes

picadas, que ela deu para o Douglas. Cris detestava castanhas. Serviram também chá quente com leite e açúcar. Cris bebeu-

o devagarinho, sentindo-se adulta e importante. Talvez ela pudesse sair bem nessa aventura internacional.

Logo que as atendentes recolheram os utensílios do jantar, começou o filme. Cris não conseguia enxergar a tela por

causa da cabeça de um grandalhão, sentado à sua frente. Ela desistiu do filme e pediu ao Douglas que lhe passasse sua

sacola. Pegou seu diário e começou a escrever:

Começa a aventura! Agora, estou no avião, entre Douglas e Katie, e estamos voando para a Inglaterra. Ainda não dá

para acreditar. Sinto como se tudo na minha vida estivesse correndo à minha frente nesses últimos meses, e estou sendo

levada na correnteza.

Meu pai tinha razão quando insistiu para que eu tomasse algumas decisões quanto ao futuro. Ainda não sei o que

quero ser. Ainda não sei se gosto de ser adulta. E quando foi que isso aconteceu, afinal de contas? Devo estar crescidinha, já

que estou a caminho da Inglaterra. Nem acredito que já ingressei na faculdade. Às vezes me sinto muito independente, e

outras vezes eu queria voltar aos tempos mais simples quando eu passava o dia todo deitada na praia, não fazendo nada a

não ser olhar o Ted surfar. Êpa! Fiz de novo. Disse a palavra "T". Não ia mais fazer isso. Eu sei que...

- A palavra "T"? perguntou Katie, olhando para a página. Cris fechou o diário de supetão.
- Pensei que você estivesse vendo o filme, cochichou Cris, zangada.

Deu uma olhada na direção de Douglas, que estava com o microfone no ouvido, os olhos fitos na pequena tela à

frente.

- Não acredito que você ainda pense na palavra "T"! replicou Katie, também cochichando. Já se passaram meses -

quase um ano desde que ele foi embora. O cara sumiu. Escafedeu-se. É história antiga. Vocês não têm nenhum contato. Ele

está em alguma ilha tropical infestada de mosquitos, servindo a Deus e adorando tudo aquilo. Se ele ainda quisesse você,

teria escrito alguma coisa. Mas ele nunca escreve, não é mesmo, Cris? Jamais escreveu, em toda a sua vida. Pense nisso.

- Esqueceu-se do coco que ele me mandou do Havaí?

- Cris, disse Katie, pousando nela uns olhos verdes cheios de seriedade, eu não lhe diria nada disso se você não fosse

minha grande amiga.

Cris desviou o olhar. Sabia o que Katie ia dizer. Já tinham tido essa conversa antes no final das férias, quando Katie

tentou convence-la a esquecer-se do Ted e dar uma chance ao Douglas.

- Eu sei, sussurrou Cris, uma pequena lágrima ofuscando sua visão.

- Não, acho que não sabe, não. Senão nós não estaríamos conversando de novo sobre isso, falou Katie, ralhando

sério.

- Podemos deixar essa conversa para outra hora, Katie? disse Cris, piscando os olhos azul-esverdeados. O que eu

escrevo no meu diário é meu, não seu. Você não sabe o que estou pensando.

- Mas consigo adivinhar com boa margem de acerto.

- E daí? Não me lembro de tê-la convidado a tomar posse dos meus pensamentos!

No momento que Cris fez esse comentário, arrependeu-se. Não seria bom discutir com ela, quando começavam

uma viagem de três semanas, na qual estariam juntas dia e noite. Principalmente porque, no fundo, ela sabia que Katie

tinha razão. A questão sobre amadurecer e tomar decisões relativas ao futuro estava complicada, pois não conseguia se

esquecer de Ted.

- Ótimo! exclamou Katie, colocando de novo os fones de ouvido e fixando a atenção na tela.

Cris estendeu a mão e deu um aperto no braço da amiga para chamar sua atenção. Katie virou-se para ela

devagarinho e tirou o fone de um ouvido.

- Desculpe, pediu Cris.

- Liga não. Mais tarde a gente se fala, replicou Katie com um sorriso, apertando também o braço da amiga e

voltando a atenção para o filme.

Cris sabia que ela a perdoara. Sabia também que Katie ia tocar de novo no assunto. Olhando para Douglas, ficou

pensando se ele ouvira alguma parte da conversa. Ele sempre fora compreensivo e paciente com ela.

A maior prova disso foi ele comprar de volta sua pulseira de chapa de ouro de uma joalheria, dois anos atrás. Ela

ganhara a pulseira do Ted. Então, Rick, um cara que ela namorara, roubou-a de Cris e a penhorou numa joalheria, usando o
dinheiro para comprar um bracelete de prata para ela, com o nome dele, "Rick", gravado.

Mas acabara seu relacionamento com Rick rapidamente, e em seguida começara a pagar prestações para recuperar

a pulseira de ouro. Um dia o joalheiro lhe entregou a pulseira, dizendo que "um cara" havia liquidado o débito.

Só na primavera passada, Cris descobrira que fora Douglas quem pagara. Ele fizera isso simplesmente por amor.

Para ele, não importava que a pulseira houvesse sido dado a ela por outra pessoa, por outro cara, aliás o melhor amigo

dele, e que cativara o coração de Cris desde o dia em que o havia conhecido na praia de Newport. Durante os anos de

amizade que se seguiram, Douglas sempre ficava em segundo plano, em relação ao Ted.

Quem os conhecesse diria, sem pestanejar, que Douglas tivera a paciência de esperar Cris. Nunca deixara

transparecer seus sentimentos. Só os revelou depois que ela desmanchou com o Ted e lhe devolveu a pulseira. Só depois

que Ted já estava no avião, rumo ao desconhecido, Douglas revelou seus sentimentos por ela. Mesmo assim, o fez aos

poucos. Ele era mesmo o rapaz mais paciente sobre a face da terra. E, como Katie dissera nas férias passadas, já que l

Coríntios 13 descreve o amor tomo sendo paciente, bondoso, não ardendo em ciúmes, sempre procurando os interesses do

outro, Douglas certamente linha um amor profundo pela Cris.

Cris colocou seu braço no de Douglas, que estava equilibrado sobre o braço da poltrona, e encostou a cabeça no

ombro dele. Douglas era um tesouro. Um tesouro que ela não podia menosprezar. Ela conhecia garotas que dariam tudo

para ganhar uma pontinha da atenção dele. E ela a tinha todinha. Sabia que devia apreciá-lo mais.

Douglas ajustou sua posição para dar mais espaço a Cris. Ela fechou os olhos e disse mais uma vez para si mesma

que estava mesmo no avião, de viagem para Londres com o cara mais maravilhoso, não, mais incrível, mais fabuloso do

mundo, juntamente com suas duas melhores amigas, Katie e Trícia. Essa viagem mudaria sua vida para sempre. Disso não

tinha dúvidas.

Jurou que não deixaria nada estragar a viagem nem para ela nem para os amigos, nem mesmo a lembrança de um

Ted invisível.

O Big Ben e Outros Locais Famosos


2

- Será que troquei o dinheiro suficiente? Perguntou Katie, ajustando a alça da mochila.

Os quatro estavam na plataforma com a bagagem aos pés. Esperavam a chegada do próximo metrô.

- É, não sei não, continuou Katie. Cem dólares parece pouco quando transformado em libras. E o dinheiro deles é

tão esquisito! Parece dinheiro de brinquedo.

- Katie, disse Trícia baixinho, aproximando-se mais para que a multidão em volta deles não escutasse. Acho que

todos já viram que somos turistas. Não temos de anunciar para toda essa gente quanto temos em dinheiro ou que achamos

estranho a moeda deles.

Sacudindo seu cabelo ruivo e liso, Katie olhou em volta, verificando o “auditório” que parecia preocupar tanto
Trícia. Mudando depressa de assunto e abaixando um pouquinho a voz, perguntou:

- Tem certeza que sabe qual o trem que devemos tomar?

Douglas colocou o mapa dobrado no bolso de sua jaqueta jeans.

- Chegamos até aqui, não chegamos? Acho que consigo encontrar o hotel. Vocês estão com os passes do metro na

mão? Teremos que passá-los de novo na máquina quando sairmos da estação.

- Isso me lembra os trens de São Francisco, disse Trícia, baixinho. Só que eles são trens de superfície. Vocês já

andaram neles?

Nenhum deles conhecia.

- Este sistema aqui é um pouco mais antigo, observou Douglas. Você não viu no guia turístico que antigamente, isto

é, há mais de cem anos, os trens que rodavam aqui eram marias-fumaça?

Cris ergueu a vista para o teto arredondado e ficou a olhar os cartazes de propaganda pelas paredes de tijolo à vista

do túnel subterrâneo. Ela não conseguia imaginar pessoas e trens se movendo nesses mesmos túneis há mais de cem anos.

- Não é estranho, gente, imaginar que existe uma cidade em cima de nós? perguntou Katie. Ainda não sinto que

estamos em Londres. Acho que só vou sentir quando vir um daqueles ônibus vermelhos de dois andares.

Naquele momento um jato de ar explodiu na passagem escura. Um instante depois o trem chegava e parava na

estação. Antes que Cris conseguisse colocar a mala de jeito a empurrá-la para dentro do trem, as pessoas começaram a

empurrar-se em direção a porta aberta. Sua mala de alça e rodinhas fora presente de Marta, a tia rica.

- Consegue levar? perguntou Douglas ao notar sua dificuldade.

- Agora consegui.

Cris foi empurrando a mala em direção à porta, sentindo Douglas logo atrás, ajudando-a a entrar no trem.

Trícia arranjou logo um lugar e colocou sua mala ao lado, para que Douglas ou Cris se sentasse ao seu lado. Katie

vinha atrás de Douglas. Cris sentou-se ao lado de Trícia, e só percebeu que as portas estavam se fechando quando ouviu o

grito estridente de Katie. Olharam para cima. Só conseguiram avistar a mochila dela, presa entre as duas portas que se

fechavam.

- Gente, me ajude aqui! gritou Katie.

Cris bem que desejou cair na gargalhada, mas engoliu o riso e correu para ajudar Douglas a abrir a porta. Com muito

esforço, abriram-na, deixando entre uma folha e outra espaço suficiente para dar passagem a Katie e sua bagagem - o que

ocorreu justo no instante em que o trem dava partida.

- Katie, você se machucou? perguntou Trícia. Podia ter morrido! O que foi que aconteceu?

- Estava tentando não me perder de vocês. Parece uma constante nesta viagem, não é mesmo?

Katie deixou cair no chão sua mala de lona e segurou-se numa barra de metal perto do assento de Cris.

- Acho que precisamos bolar um plano "B" aqui, Douglas, continuou ela. Se eu não tivesse conseguido entrar no

trem, teria me perdido completamente. Nem sei onde vamos ficar! Como eu teria me encontrado com vocês? Precisamos
de um trabalho melhor de equipe.

- Você tem razão, disse Douglas, segurando-se atrás de Cris para se firmar, enquanto o trem acelerava, fazendo-os

balançar. Os quatro se aproximaram mais, Cris e Trícia sentadas, Katie e Douglas de pé, perto delas. Cris achou que estavam

chamando atenção dos outros passageiros.

- Então, principiou Douglas assumindo um tom de treinador, a gente se hospeda no hotel Miles Hampton, na Rua

Seymore. Descemos no Hyde Park. Daí a gente vai a pé para o hotel. Fica perto - alguns quarteirões apenas. Se vocês

precisarem de ajuda com as malas, é só falar. E vamos combinar de ficar juntos e cuidar um do outro, certo?

Os poucos quarteirões do Douglas acabaram sendo alguns quilômetros. Ou isso, ou estavam perdidos.

Posso ver esse mapa outra vez? perguntou Katie, parando em frente de outra fileira de casas iguais às da última rua

que haviam subido. Tem certeza que esse lugar é um hotel?

- Cama e café da manhã, gente, disse Douglas, pousando no chão a mala de lona e pegando o mapa. Meus pais

ficaram lá uns dois anos atrás. Disseram que era fácil de encontrar. Olhe, aqui é a Rua Seymore. Em que rua estamos agora?

Cris "estacionou" sua mala de rodinhas e desceu do ombro a pesada sacola que levava a tiracolo. Não dava para

acreditar como a caminhada a deixara sem fôlego. Pela primeira vez, olhou em volta, lançando a vista nas casas estreitas e

altas de tijolo a vista que ladeavam a rua. Táxis pretos passavam por eles na "contramão". O local era barulhento como uma

cidade grande, cheia de carros, ônibus buzinando e cachorros latindo. Do outro lado da rua, chegava o alegre som de um

sininho tocando no momento em que uma senhora entrava muna padaria, carregando um guarda-chuva fechado.

Ah não, disse Cris, olhando para o céu cinzento e erguendo a mão. Espero que já estejamos chegando, porque está

começando a chover.

Foi então que notou como fazia frio. Como antes estavam andando depressa, ela não tinha notado o frio úmido a

tomar conta de suas pernas. O jeans não bastava para protegê-la do frio penetrante, e suas pernas formigavam, geladas até

os ossos.

- Por aqui, disse Douglas, descendo a rua com passos largos e decididos. Só mais dois quarteirões.

Dessa vez ele estava certo. Ainda bem, porque na hora em que pararam embaixo de um toldo azul, à porta do Miles

Hampton, a garoa que brincava com eles nos últimos quarteirões, virou uma respeitável e forte chuva londrina.

A porta estava trancada; Katie tocou a campainha umas duas vezes. Uma senhora de bochechas rosadas e cabelos

brancos olhou pelas cortinas de renda da janelinha da porta.

- Quem será essa pessoa impaciente? disse, animada, ao abrir a porta. Entrem, entrem! Não vai dar certo vocês se

resfriarem logo no primeiro dia!

Minutos depois estavam todos registrados na estranha pousada como a mulher se referia ao seu estabelecimento.

Subiram com as malas quatro lances de escada em espiral, até o andar de cima, onde havia dois quartos preparados para

eles. O das garotas tinha três camas de solteiro e um banheiro separado, com uma banheira enorme, a maior que Cris vira

em toda sua vida. Era uma casa antiga, mas havia sido restaurada de modo agradável. O quarto era limpo e claro. Cris notou
que as colchas floridas eram fofas e deitou-se na cama mais próxima dela.

Trícia fez o mesmo, caindo de cara sobre a cama ao lado.

- Esse travesseiro está me chamando, disse. Está dizendo para eu ficar aqui juntinho dele o dia todo.

Cris ouviu a chuva gotejando na janela. Concordou plenamente com Trícia. Afinal de contas, lá nos Estados Unidos

eram três da madrugada, e ninguém conseguiu dormir durante as dez horas de vôo. Uma soneca agora viria a calhar.

- Pronto, gente? perguntou Katie, entrando com Douglas logo atrás. Vamos ver Londres!

As duas soltaram um gemido preguiçoso.

- O quarto de vocês, meninas, realmente é o melhor dos dois, disse Douglas, lançando a vista pelo papel de parede.

Meu quarto não é ruim. Mas parece que estou dormindo num sótão: teto inclinado, apertado. Vocês têm até banheiro.

- E o seu não tem?

- Não, tenho de usar um no final do corredor, no andar debaixo. Mas eu realmente não me importo; pelo preço,

este lugar é excelente. Além do mais, não vamos ficar muito tempo aqui. Temos de conhecer a cidade.

- É isso aí, gente, disse Katie, entrando no banheiro e abrindo a torneira para lavar o rosto. A pior coisa que

poderíamos fazer seria dormir agora. Temos de ficar de pé o dia todo para convencer nosso relógio biológico que é de dia, e

não de noite. Ei! Como será que se consegue água morna nessa geringonça?

Douglas entrou no banheiro e lhe ensinou a vedar a pia para enchê-la de água quente e fria, daí resultando água

morna.

- Quer dizer que de um lado só sai água fervente, e do outro só gelada? Que arcaico!

- Sinto muito ter de lhe dizer isso, "Totó", mas não estamos mais no Kansas, disse Douglas, imitando a "Dorothy", de

O Mágico Oz, molhando os dedos e jogando água no rosto de Katie. Esta cidade é muito antiga, a casa é muito antiga, e o

encanamento também é um pouco.

Molhou novamente os dedos, deu três passos até a cama de Cris e respingou água nela também.

- Acorde! Está na hora de se divertir.

- Trícia, disse Cris, está me parecendo que tem uma goteira no teto. Senti uma gota.

- É, ouvi um pingo cair concordou a outra.

- Ah é! exclamou Douglas.

Antes que Cris ou Trícia pudessem perceber o que ele fazia, Douglas enfiou uma toalha de mão na água da pia e

começou a torcê-la sobre a cabeça de Trícia. Ela gritou, deu um salto e começou a rir.

- Isso aqui não é a praia de Newport, seu surfista maluco! Não pode sair por aí, respingando água na gente, aqui em

Londres. Não é correto!

Todos riram do "sotaque britânico" que Trícia usou em suas últimas duas frases.

- Mas, Douglas, está chovendo lá fora, e aqui dentro está tão quentinho, disse Cris, choramingando de mentirinha.

- Então eu faço chover aqui dentro! ameaçou Douglas com a toalha molhada.
- Está bem, está bem. Espere só eu pentear o cabelo.

Cris trocou de lugar com Katie no banheiro e fechou a porta. Olhou-se no espelho, assustada. As faces estavam

rosadas e o cabelo castanho-claro, que dava um pouco abaixo dos ombros, estava achatado contra a cabeça, sem vida.

Achou o cabelo curto da Trícia uma gracinha, com o novo corte para a viagem. Era naturalmente encorpado e

bastava apenas uma rápida escovada para ficar ajeitado. Cris pensou se não teria sido melhor cortar o seu também para a

viagem. Sabia que Douglas gostava dele comprido. Ela também gostava. Mas agora não estava achando a menor graça nele.

Depois de puxá-lo para trás com um diadema, tentar um rabo de cavalo e experimentar uma rápida trança, desistiu.

- Você está viva aí dentro? perguntou Katie, batendo na porta.

- Meu cabelo está me deixando maluca!

- E você vai deixar todo mundo maluco! gritou Katie.

- Está bem, está bem.

Ela sacudiu a cabeleira, lavou o rosto e enfiou um prendedor na bolsa, caso resolvesse prendê-lo mais tarde. Abriu a

porta do banheiro, pronta para sair. Uma luz forte ofuscou lhe o rosto.

- Obrigada, Cris, disse Katie. Você foi meu primeiro modelo fotográfico em Londres. Vamos ver quais as outras

coisas esquisitas podemos fotografar!

- Ah! Muito obrigada! falou Cris em tom irônico.

Em seguida pegou o casaco e seguiu os amigos pela escadaria em espiral, que parecia interminável, e todos se

dirigiram para o saguão.

- Quero tirar uma foto perto de um daqueles guardas que ficam em seu posto, o dia inteiro sem se mexer, disse

Katie. Talvez eu consiga que ele dê pelo menos um sorriso.

- Primeiro, comida! disse Douglas assim que pisaram fora do hotel, todos bem agasalhados e segurando alto as

sombrinhas. Temos de seguir nossas prioridades.

A primeira coisa que acharam foi um restaurante do Frango Frito de Kentucky.

- Eu não vim à Inglaterra para comer frango frito do Kentucky, disse Katie, correndo os olhos pela rua à procura de

outro tipo de restaurante.

- Vamos lá, insistiu Trícia. É só um lanche. Depois, na hora do almoço, a gente procura uma casa tipicamente inglesa.

Acho que o Douglas não agüenta mais.

- Obrigado, Trícia, disse Douglas, fechando o guarda-chuva.

Entraram no restaurante cuja decoração era igual à de centenas do mesmo tipo nos Estados Unidos. A única

diferença era o dinheiro.

- É uma libra e quarenta e cinco p, senhorita, disse o homem que os atendeu.

Cris entregou-lhe uma nota de dez libras e recebeu de troco um punhado de moedas e uma nota de cinco libras.

Sentou se com os outros a uma mesa perto da janela.


- Não é esquisito esse dinheiro? disse Katie, examinando seu troco.

Trícia repreendeu-a:

- Katie, já não falamos sobre esse negócio de dizer que o dinheiro deles é estranho?

Cris percebeu que um casal idoso que se achava à mesa do lado os observava Notou também que o lugar era

silencioso, embora estivesse lotado. Todo mundo falava baixo e era discreto, menos os quatro americanos.

Em comparação, Katie parecia extremamente barulhenta. Isso incomodou Cris, que achou que Trícia também se

sentia incomodada. Douglas parecia não estar nem aí. Ele tirou do bolso o mapa e o guia turístico e perguntou:

- Então, qual é? Vamos ver primeiro o Big Ben* e depois as jóias da coroa na Torre de Londres? Acho que pegamos o

ônibus 16. Não, talvez seja o 11.

____________________

* Big Ben: um relógio famoso. localizado no alto de uma torre do Parlamento britânico. (N. do E.)

- Deixa eu ver, disse Katie, tirando o livro da mão do Douglas. Ah, a casa de Charles Dickens! Isso seria interessante.

Vamos lá depois de ir à Torre de Londres.

- É do outro lado da cidade, Katie, reclamou Douglas.

- É nada, olha aqui, fica do lado de... ah, tem razão. Tudo bem, então vamos à Catedral de São Paulo. É só dois

passos de distância da Torre de Londres.

- Vamos simplesmente ver o que der para ver, sugeriu Trícia, jogando suas vasilhas descartáveis na lixeira.

Cris sentia-se aliviada, porque não cabia a ela a escolha do caminho a seguir, nem da forma como chegariam lá.

Contentava-se apenas em seguir os outros deixando a Katie e Douglas o papel de "desbravadores".

Tomaram um ônibus perto do arco de mármore e foram até “Picadilly Circus". Douglas disse para descerem e

procurarem o ônibus n.° 12 que os levaria até o Parlamento e o Big Ben.

Era divertido viajar na parte superior do ônibus de dois andares, porque dali de cima Cris tinha uma boa vista das

ruas movimentadas e das estátuas e monumentos por onde passavam. O de que ela não gostou foi de descer dele, e depois

ficar tremendo de frio debaixo da sombrinha, ouvindo Douglas e Katie discutirem. Também detestava sentir-se meio

perdida e confusa. E parecia que as coisas pioraram quando desceram em frente do imenso prédio do Parlamento, de

linhas arquitetônicas muito complicadas, e perceberam que o Big Ben estava completamente coberto pela neblina, e não

valeria a pena tentar tirar uma fotografia. Mas tirou assim mesmo. Sua máquina, presente do tio Bob no ano passado, lhe

servira bem durante seu último ano do segundo grau. Ela fora fotógrafa da equipe do anuário da escola. Sabia que quando

voltasse para casa ficaria contente de haver fotografado locais famosos, embora cinzentos e encobertos pela neblina.

- Bem, isso foi empolgante, disse Katie ironicamente, virando e bloqueando a objetiva da Cris com sua sombrinha

rosa-chocking. O que mais vamos ver?

Sem responder, Cris deu alguns passos à direita e ajustou de novo o zoom e tirou outra foto do Big Ben.
- Ô gente, fiquem aí, ao lado da cerca, para eu tirar uma foto de vocês tendo o Parlamento como fundo.

Os três concordaram, esbarrando as sombrinhas umas nas outras, e esperando que os transeuntes se afastassem da

frente da câmara. Cris tirou a foto e depois, virando-se, fotografou a rua atrás deles com um táxi preto e um ônibus

vermelho tentando ultrapassar-se no trânsito movimentado.

- Vamos ver o rio Tamisa? convidou Douglas. De acordo com o mapa, é logo ali, depois do parque.

- E, o que tem para ver? perguntou Katie.

- É um rio famoso, respondeu Douglas. Vamos lá, tenha um pouquinho de espírito de aventura, Katie!

- Já tive. Vi o Big Ben e não achei graça. Agora quero uma grande aventura. Quero ver as jóias e os guardas de

chapéu de pelúcia.

- Estamos tão próximos do rio, interveio Trícia. Talvez devêssemos ir dar uma olhada para poder dizer que pelo

menos vimos o Tamisa.

- Seja lá o que fizermos, podemos pegar um ônibus? Minhas pernas estão congeladas, comentou Cris. Tinha se

arrependido de não ter vestido uma meia-calça grossa no hotel. Sentia muito frio. Era um frio úmido; um tormento.

- É uma caminhadinha rápida até o rio, disse Douglas, tomando a mão de Cris. Se andarmos depressa, você se

aquece. Vamos!

Foram até o rio. Como disse Katie depois, aquela corrente de água cinzenta e coberta de névoa "parecia o Big Ben,

só que na horizontal e sem números".

Estavam correndo de volta para pegar outro ônibus quando Trícia notou um prédio velho e interessante à esquerda.

- Dê uma olhada no guia turístico, Douglas, disse ela. Tenho certeza de que aquilo ali é alguma coisa importante.

Cris detestou a idéia de ficar parada debaixo da chuva fina. Bateu os pés para aquecer-se e afastar o frio das pernas.

- Olha aí, gente! exclamou Trícia. É a Abadia de Westminster!

- Legal! disse Katie, sem o mínimo de entusiasmo. E o que é isso?

- É uma igreja muito antiga, respondeu Trícia, lendo o livro. Diz aqui que a primeira vez em que foi utilizada como

local de culto foi no ano 604 de nossa era. Pode imaginar como é velha? E escute aqui: "Desde o século XI, é nessa igreja

que se realiza a coroação dos reis e rainhas da Inglaterra." Precisamos vê-la, gente! Tem um monte de gente famosa

enterrada aqui. Charles Dickens foi enterrado aí!

Katie notou que a chuva tinha parado e fechou a sombrinha enquanto Trícia lia. Comprimindo os olhos, aproximou-

se de Trícia e perguntou:

- Está falando sério? Quer mesmo ver um monte de gente morta?

- É a Abadia de Westminster. É superfamosa, Katie!

- O Big Ben também, e acabou sendo uma chatice.

Douglas fechou seu guarda-chuva e disse:

- Posso dar um palpite? Acho que estamos todos cansados e com fome. Vamos procurar um restaurante e, lá,
resolver o que faremos depois de renovar as energias.

- Excelente idéia! disse Cris. Estou gelada! Acho que minhas meias estão molhadas. Os pés estão formigando.

- E então, gentis senhoritas? Vai aí uma boa xícara de chá inglês?

Elas foram obrigadas a relaxar um pouco a tensão ao ouvirem a imitação do sotaque de mordomo inglês do na

última sentença. Voltando até a Praça Trafalgar, os quatro viajantes, cansados e ensopados, saíram à procura de um

pequeno restaurante típico e uma xícara de chá quente

Uma Xícara de Chá


3

- Não é de admirar que os ingleses gostem tanto de chá, disse Cris ao segurar com as duas mãos sua xícara de

porcelana branca.

Tomou o chá devagar, como se ele a estivesse aquecendo até os pés.

- Se eu morasse aqui, prosseguiu, também procuraria alguma coisa que me deixasse aquecida o dia todo.

Katie comeu um último pedaço de peixe e disse:

- Até que o vinagre no peixe não estava mal, mas ainda prefiro o velho molho de tártaro, americano. Quer o resto

das minhas fritas, Douglas?

- Claro, aceito os seus chips, disse ele, usando o termo britânico para batatinha frita.

- Eu queria saber uma coisa, disse Trícia. Se eles chamam as batatas fritas de chips, do que é que chamam os

salgadinhos chips que a gente compra empacotados nos Estados Unidos?

- Crisps, disse o garçom, estendendo a mão para tirar o prato de Katie.

Tinham encontrado por acaso aquele restaurante típico com uma mesa e quatro cadeiras que pareciam estar à

espera deles. O garçom era bastante amigável. As quatro porções de peixe com batatinhas fritas que pediram vieram

acompanhadas de ervilhas - as mais amassadas que Cris já vira. Comeu metade do peixe, metade das fritas e só provou da

ervilha, cujo gosto era mais ou menos igual à aparência dela.

Douglas conseguia acabar com todas as sobras de comida que as garotas deixavam, inclusive as ervilhas. Cris

concluiu que ele devia ter nascido sem a capacidade de distinguir sabores. Ou então seu estômago era sem fundo e "exigia"

tanto que não havia lugar para um paladar refinado.

O rapaz enfiou na boca os últimos pedaços de batata já frios e olhou o relógio.

- Passa um pouco das quatro. O que vocês acham? Devemos tentar a Torre de Londres agora para ver as jóias ou

esperar até amanhã?

- Amanhã teríamos mais tempo, sugeriu Trícia.

- Mas o dia já acabou!? Que dia é hoje, afinal? perguntou Cris.

- Quarta-feira, disse Douglas. Lá na Califórnia são oito da manhã, hora de começar o dia.
- Não é esquisito? Em casa todo mundo está começando o dia e nós estamos no fim dele.

Dava para Cris perceber que Trícia morria de vergonha da voz alta de Katie e suas declarações de que isso ou aquilo

era esquisito. Cris também não gostava, mas não estava tão irritada quanto Trícia.

- E então, o que vocês querem fazer? Já, já vai escurecer.

- Vamos ver tudo que pudermos, disse Trícia, ainda que esteja escuro. Só temos hoje e amanhã. Já que viemos de

tão longe e há tantas coisas para se ver, e ainda não vimos nada... Vocês topam voltar à Abadia de Westminster? Eu

gostaria muito de vê-la.

Douglas respondeu pelos quatro.

- Claro. Vamos pagar a conta e sair daqui.

Enquanto caminhavam apressados até a antiga igreja em estilo gótico, Cris notou que Katie estava estranhamente

quieta. A tensão entre ela e Trícia parecia estar crescendo e isso a incomodava.

Ao longo dos anos, Douglas e Katie haviam experimentado diversos conflitos amigáveis, mas, apesar de tudo, a

amizade deles permaneceu intacta, de pé. Katie e Douglas estimavam-se como irmãos.

Trícia e Douglas eram amigos havia mais tempo do que Cris e Trícia. Na verdade, Douglas e Trícia anos atrás tinham

até namorado durante algum tempo. Terminado o namoro, eles permaneceram bons amigos, e Cris não se lembrava de ter

ouvido qualquer um deles dizer alguma coisa negativa sobre o outro. Eles se davam bem em todas as situações.

Mas Katie e Trícia nunca tinham passado muito tempo juntas. Apesar de terem personalidades muito diferentes,

eram bem parecidas em certas áreas. Eram ambas moças fortes, de gênio vigoroso. Katie, de modo extrovertido, e um

tanto agressivo, e Trícia, de maneira gentil, firme e inflexível.

Trícia também sentiu a crescente tensão com a Katie e, prudentemente, acercou-se dela e disse:

- Aprecio muito sua flexibilidade. Estou ansiosa para ver a Torre de Londres amanhã. Tenho certeza que vamos ter

mais tempo. Também estou certa de que vai ser bem melhor assim do que tentar ver tudo agora.

A princípio, Katie nada respondeu. Porém ao atravessarem a rua na direção da abadia, Cris ouviu-a dizer:

- Você sempre consegue o que quer, não é Trícia?

Cris queria virar-se e ralhar com Katie, mas Douglas rapidamente pôs o braço em volta do seu ombro, e sussurrou:

- Deixe que as duas se entendam, Cris. Confie em mim. Assim vai ser melhor para ambas.

Cris teve de confiar no Douglas, pois não havia mais nada que pudesse fazer. Esforçou-se por ouvir o que Trícia, com

seu jeito delicado porém firme, dizia a Katie explicando que precisavam atuar em equipe e fazer o que fosse melhor para o

grupo.

- Certo, respondeu Katie. Mas seria bem melhor para todos se as decisões fossem tomadas pelo grupo, e não

apenas por você.

- Você tem razão, Katie, replicou Trícia. Depois dessa, vamos todos resolver juntos o que fazer.

Estavam à porta do velho prédio de pedras e Cris percebeu que nem tinha prestado atenção à aparência do edifício.
Entrou solenemente. Um cartaz ao lado da porta indicava uma taxa de visita de três libras.

- Três libras! exclamou Katie. Não vou pagar o equivalente a cinco dólares para entrar numa igreja! Espero vocês

aqui fora e podem entrar sozinhos.

- Acho que só cobram quando há um guia turístico dando explicações, Katie, disse Douglas, baixinho. Não

precisamos pagar só para dar uma olhada nesta parte.

Os quatro entraram no santuário cheio de turistas; Katie ficou um pouco atrás. Caminharam em silêncio,

observando as estátuas, os memoriais e as gravuras no chão de pedra, identificando quem estava enterrado em cada ponto

do lugar.

- Olhe, Cris! disse Douglas, apontando para uma inscrição grande no chão à sua frente. David Livingstone foi

enterrado aqui. Era aquele missionário famoso na África. Sabia que trouxeram o corpo dele de volta para a Inglaterra, mas

deixaram o coração enterrado na África, porque era ali que estava seu coração - com o povo africano? Não é uma

maravilha, um negócio incrível?

Cris não estava certa de que fosse uma maravilha. Bizarro talvez fosse um adjetivo melhor. Parecia algo que o Ted

teria feito.

Ted. De onde veio esse pensamento?

Impulsivamente, tomou a mão do Douglas e apertou-a.

- Douglas, você também quer ser missionário em alguma terra longínqua?

- Quer dizer, que nem o Ted?

Será que ele lê meus pensamentos? Ou estaria pensando as mesmas coisas que eu quanto ao Ted?

- Não sei, disse Douglas, pensativo, olhando de novo para o chão. É por isso que eu quis vir nessa viagem de

evangelismo. Quero ver se "dou" para a coisa. Não sou como o Ted.

- Eu sei, e nem quero que seja como ele. Quero que você seja Douglas. E você é...

Agora seus pensamentos estavam confusos e Cris sentiu raiva de não haver conseguido deixar a lembrança do Ted

no avião. Na Califórnia. Nas recordações do colégio. Ted "viera" junto com eles para a Inglaterra, e mais uma vez misturava-

se com eles.

- Eu só queria saber se você já pensou em ser missionário, continuou Cris, apertando a mão do Douglas.

Queria pensar nele, e só nele.

- Na verdade, não. Como estou cursando Administração de Empresas, o que desejo mesmo é ingressar numa grande

empresa e me integrar nas forças de produção do país, e ser uma espécie de missionário junto aos milhares de empresários

americanos que estão perdidos. Acho que não conseguiria morar em outro país.

- Nem eu, disse Trícia. Quer dizer, aqui é bom para a gente visitar, mas eu me sinto mais segura num ambiente

conhecido. E você Cris?

Cris nem tinha notado que Trícia estava do outro lado de Douglas.
- Não sei. É por isso que eu também resolvi vir nesta viagem. Não sei o que quero fazer no futuro. Ou melhor, não

sei o que Deus quer fazer com a minha vida.

Dizer isso em voz alta era mais assustador do que quando pensara ou escrevera sobre o assunto no diário. Era como

confessar que estava perdida, fazendo cursos básicos numa faculdade pequena e tentando apenas procurar respostas para

dar aos conselheiros profissionais que lhe perguntavam em que tipo de carreira ela estaria interessada. Sinceramente, não

sabia.

Um senhor uniformizado perguntou gentilmente se queriam sentar-se, porque o culto vespertino estava prestes a

começar. Katie já estava sentada numa das cadeiras de dobrar, no setor onde se encontravam. Os três foram para perto

dela. Douglas tomou a iniciativa e sentou-se ao lado da amiga.

Daí a instantes, um coro de meninos, vestindo becas brancas com detalhes vermelhos e golas de renda, desceu em

fila dupla pelo corredor central, passando exatamente por cima da pedra de David Livingstone a caminho do altar à frente

da capela.

Cris fechou os olhos e inspirou fundo, sentindo a grandiosidade do lugar, no momento em que as vozes claras e

altas do coro ressoavam pelo teto arredondado de pedra desse antigo santuário. Durante a música e a leitura da Bíblia que

se seguiram, Cris baixou a cabeça e adorou o mesmo Deus maravilhoso a quem outras pessoas haviam rendido culto nesse

mesmo lugar havia mais de mil anos. A idéia a deixava séria, sentindo uma reverência que nunca sentira em sua igreja, da

Califórnia.

Tentou explicar o fato aos amigos na manhã seguinte, quando tomavam café no pequeno refeitório do hotel. Cris

estava sentada de costas para uma imensa lareira onde crepitava uma chama alegre e acolhedora. Douglas parecia

entender o que ela dizia, e Trícia concordava entre uma mordida e outra nas deliciosas torradas. Katie comia em silêncio,

estudando o guia de turismo, sem se ligar na conversa.

As coisas não estavam bem entre Katie e Trícia naquela manhã. Katie tinha lavado a cabeça e pedira emprestado o

secador da companheira de viagem.

- Claro, mas lembre-se de ligar o adaptador de voltagem, recomendou Trícia.

Katie instalou o adaptador de voltagem numa tomada e o secador em outra. Quando ligou o aparelho, o som que

este emitia parecia o de um triturador de capim. Em menos de dez segundos, o secador começou a cuspir faíscas pelo

quarto e queimou.

O rosto da Trícia ficou vermelho ao olhar o fio do secador queimado e em seguida a tomada. Aí ela disse:

- Katie, você tinha de ligar o secador no adaptador!

- Como é que eu ia saber uma coisa dessas? Você só disse pra ligar primeiro o adaptador, e eu liguei.

Trícia arrancou o secador das mãos dela. Ele tinha um forte cheiro de coisa queimada. Esforçando-se por controlar a

voz e os nervos, ela disse:

- Tudo bem, não se preocupe mais com isso.


Na hora, Cris achou que teria sido melhor se Trícia houvesse partido para cima de Katie. Ela saberia aguentar uns

tapas. Mas desde o incidente, as duas não se falaram mais.

- Você quer o resto dos seus ovos com lingüiça? perguntou Douglas a Cris, olhando seu prato ainda quase cheio.

- Não pode comer.

Ele pegou a chaleira de prata no meio da mesa e serviu-se de outra xícara de chá, adicionando-lhe leite e açúcar.

Alguém mais quer chá? perguntou.

- Não, obrigada, disse Katie, sem tirar os olhos do livro.

- Que ônibus tomamos para ir à Torre de Londres? perguntou Douglas.

- Assim que chegarmos à Rua Oxford teremos um monte de opções. Ainda lembra como vai até lá?

Douglas achava que sabia e meia hora depois estavam agasalhados, sombrinhas e guarda-chuva na mão, e armados

de máquinas fotográficas. Cris estava com uma calça de lã colante por baixo do jeans, e ainda usava dois pares de meia.

Deu para sentir a diferença quando chegaram à calçada e caminharam até a Rua Oxford sob a chuva fina. Bem mais quente.

Agora, mais que na véspera, ela se sentia na Inglaterra, e estava gostando.

Novamente deliciou-se com o passeio no andar superior do ônibus vermelho enquanto desciam a movimentada

Rua Oxford. Minutos depois, Douglas dirigiu-se a Katie, indagando sobre o mapa.

- Rua Bloomsbury, é isso? Estamos na direção errada.

- Não estamos não, retrucou Katie. Este é o ônibus n.° 8. Ele vai para este lugar, disse indicando um ponto no mapa.

Daí mudamos para o n.° 25, que nos leva exatamente ali.

- É, mas olhe, falou Douglas apontando o mapa. Esta é a rua pela qual acabamos de passar. A Torre de Londres está

aqui embaixo. Viemos na direção oposta. Estamos aqui agora. Bem aqui em cima

- Não acredito! exclamou ela.

- Espere! disse o rapaz. Estamos perto da casa de Charles Dickens. Vocês queriam ir lá, não queriam? Vamos fazer

uma visita rápida e depois pegamos o ônibus 25.

- Excelente idéia, concordou Trícia. Adoraria ver a casa do Dickens.

Acabou sendo uma ótima idéia, apesar de terem se perdido e caminhado muitos quarteirões, tentando encontrar o

número 48 da Rua Doughty, que não era bem demarcada. Quando souberam que tinham de pagar duas libras para entrar,

Katie reclamou. Imediatamente Trícia pagou a entrada de Katie. Caminharam em direções opostas para explorar a casa do

autor que deu vida à Inglaterra com suas obras Cântico de Natal, Oliver Twist, Grandes Esperanças e muitas outras mais.

Cris achou bastante interessante, sobretudo a caneta de pena de ganso exposta no mostruário que Dickens usava

para escrever. Não dava para imaginar como seria escrever com uma caneta de pena de ganso, principalmente um livro

inteiro. E ele escreveu dezenas de livros. Escrever, naquela época, era um trabalho árduo.

Trícia e Douglas olhavam absortos tudo que estava exposto, lendo as informações com muito mais tempo do que

permitia a paciência de Cris. Ela deixou os dois no terceiro andar, examinando o imenso quadro de um farol, e desceu a
escadaria à procura de Katie. Encontrou-a sentada num banco de madeira perto da porta.

- Você está com vontade de ir embora?

Katie não ergueu o rosto quando Cris sentou-se ao seu lado. Esperou que passasse um grupo de turistas e depois

respondeu.

- Por que eu estou sendo tão chata assim?

- Nós todos estamos cansados, Katie.

- Eu sei, mas isso não devia ser desculpa. Gosto da Trícia. Verdade. Só que ela é... sei lá. Ela me enche a paciência.

- Acho que é porque vocês duas são muito parecidas.

- Não somos, não!

- Cada uma mostra isso a seu jeito, mas vocês duas são duronas; quando querem uma coisa, querem mesmo. Não

que isso seja ruim. Acho que é uma grande qualidade.

Katie ficou pensativa. Deu um suspiro.

- As coisas não estão acontecendo do jeito que eu esperava.

- Como você esperava que fossem?

- Empolgantes e interessantes e, bem... muito mais divertido do que isto. Estamos andando demais, nos perdendo,

ficando frustrados, e tudo é estranho. Eu me sinto deslocada. Não estou por dentro desse negócio de museu. E isso me faz

sentir inculta, ignorante mesmo. Nunca ouvi falar dessas pessoas famosas, cujas estátuas a gente anda vendo. E quando o

Douglas explicava as batalhas e estátuas na Praça Trafalgar ou sei lá onde, para mim era como se ele estivesse falando

sobre vida em outro planeta. Detesto estar assim por fora de tudo!

Cris sempre apreciara a sinceridade de Katie e sua capacidade de expressar claramente seus sentimentos.

- Sei o que está querendo dizer, disse Cris, procurando consolá-la.

- Então por que você não fica perturbada com isso? Quando vi você segurando aquela xícara de chá no café da

manhã, parecia fazer parte disso aqui. Era como se tudo isso lhe fosse natural. Como é que consegue?

- Não sei. Acho que ainda não deu para eu me irritar. Gosto de experimentar todas essas novidades.

Naquele instante, Douglas e Trícia desceram a escada, conversando animadamente sobre uma fotografia de Hans

Christian Anderson que viera da Dinamarca visitar Dickens, cuja obra Anderson admirava. A conversa continuou animada

mesmo depois que deixaram a casa e voltaram ao ônibus. Pelo menos eles estavam se dando bem.

Katie pareceu um pouco menos tensa depois que tomaram o ônibus e foram à Torre de Londres. Claro que ela

estava melhor depois de haver desabafado um pouco.

Em dado momento, o ônibus deu um solavanco para parar num cruzamento, e Cris viu seu próprio reflexo na

vidraça. Estava diferente. Tinha um ar de intelectual, com o cabelo para trás, numa trança, quase nada de pintura e a blusa

de gola rulê. Agora só faltavam uns óculos de aro dourado. Parecia uma pessoa que sabia o que queria da vida. A idéia fez

com que sorrisse. Pelo menos podia parecer assim. Quem sabe antes dessa viagem acabar, ela talvez pudesse também
sentir-se assim.

Ao bater os pés para aquecê-los, Cris pensou como seria agradável tomar mais uma xícara de chá.

O Castelo de Carnforth Hall


4

- Onde foi o nosso sol? perguntou Cris, olhando pela janela do trem que saía de Londres em alta velocidade,

seguindo para o norte.

Uma hora antes, tinham se dirigido com toda a bagagem para a estação de Euston. Sentiram um breve carinho dos

raios de sol nas costas. Mas agora o céu se cobrira com um espesso cobertor cinzento de inverno e mandara o sol de volta

para a cama.

Corno ninguém lhe respondesse, Cris relanceou a vista em derredor e viu que todo mundo dormia. Douglas,

sentado ao seu lado, dormia com a cabeça para trás e a boca entreaberta. Parecia prestes a roncar. Cris ficou pensando se

deveria acordá-lo, caso ele começasse a roncar.

Katie e Trícia, sentadas do outro lado da mesa, à frente dos dois, tinham encontrado, cada uma, seu pequeno

espaço. Trícia tinha a cabeça sobre uma blusa de lã enrolada contra o vidro frio e Katie, na frente de Douglas, enterrara a

cabeça nos braços dobrados sobre a mesa.

Cris não sabia como ainda estava acordada. A correria matinal para pegar o trem a tempo, tinha sido muito

cansativa. Agora o balançar constante, pra lá e para cá, devia ser bastante para ninar qualquer pessoa, principalmente

quem descansara tão pouco nos últimos três dias.

Mas ela estava ansiosa demais. Estava na Inglaterra! Não queria fechar os olhos, não queria perder nada. A

paisagem mudava. Em lugar das casas de tijolo vermelho e cercas de ferro fundido preto, apareciam longas extensões de

campo aberto, cercadas de arbustos bem podados. Os arbustos estavam escuros e sem folhas, aguardando o beijo da

primavera, que viria dar lhes uma nova roupagem. E os campos pareciam quase prateados, com apenas uma promessa de

verde-escuro da relva escondida sob a geada que agora cobria a terra.

Tenho de escrever sobre isso, pensou, procurando seu diário. Lembrou da caneta de pena de ganso de Charles

Dickens quando deu um clique na esferográfica para aparecer a ponta. Ainda bem que não tinha de escrever com pena e

tinteiro nesse trem em movimento.

Estamos no trem que vai para Lancashire, que fica no noroeste da Inglaterra, escreveu. Todos dormem, a não ser eu.

Adoro a paisagem do campo, embora esteja coberta pela geada do inverno. Estou quentinha e sinto-me bem neste trem
confortável. Se conseguirmos fazer a conexão em Manchester, deveremos chegar em Carnforth Hall antes do jantar, a

tempo de assistir à abertura do treinamento de evangelismo.

Como descrever Londres? Que cidade imensa, antiga, moderna, ativa, polida, estranha, abarrotada, exaustiva! Dois

dias não bastam para conhecê-la, nem mesmo por alto. Finalmente, vimos as jóias da coroa na Torre de Londres, como

queria Katie, e foi bastante interessante. Mas o de que mais gostei foi subir até o topo da Catedral de São Paulo e olhar a

cidade embaixo. É uma igreja incrível. Nunca estive numa igreja tão grande assim. Fiquei pasma de reverência.

Douglas remexeu -se, pondo a perna esquerda no corredor e pendendo a cabeça oscilante sobre Cris.

- Se quiser, pode deitá-la no meu ombro, cochichou ela.

Ele estava apagado demais, porque nem se mexeu. Cris continuou escrevendo:

Gostei também das palavras gravadas na pedra em frente da catedral. Cris havia copiado as palavras no verso do

seu bilhete de ingresso, que agora procurava na bolsa.

"Que Deus conceda aos vivos, graça; aos que partiram, descanso; à igreja e ao mundo, paz e concórdia; e a nós,

pecadores, vida eterna."

Quando Cris copiava as palavras, Douglas lhe dissera que "concórdia" queria dizer "harmonia e concordância". Não

sabia ao certo por que ficara tão impressionada com essas palavras, a não ser que falava de graça, paz e concórdia. Não

eram exatamente as qualidades que sua turma de quatro amigos estava experimentando até agora nessa viagem. Mas ela

esperava que isso mudasse, assim que começassem o treinamento em Carnforth Hall.

Naquele instante a cabeça de Douglas caiu sobre o ombro de Cris, acordando-o de imediato.

- Ah, desculpe. Devo ter caído no sono.

Não faz mal. Dorme mais um pouco. Pode fazer meu ombro de travesseiro.

O sorriso de "garoto" do Douglas surgiu em seu rosto sonolento.

- Como é que você ainda está acordada? Aquelas duas parecem ter desmaiado como eu.

Tem muita coisa para ver, disse Cris, retribuindo o sorriso de Douglas. Isso tudo é tão fascinante! Não quero perder

nada.

Procurando não chamar atenção para o que fazia, Cris fechou o diário e o colocou de volta na bolsa. Não é que

tivesse alguma coisa a esconder do Douglas. Só não tinha nada que quisesse mostrar a ele. Seu diário era sua coleção de

pensamentos particulares e embora gostasse do Douglas, não queria que ele partilhasse deles.

- Está com fome? indagou o rapaz.

Cris riu com ternura. Sabia que ele estava com fome. Estava sempre com fome.

- Eu tomaria uma boa xícara de chá, replicou.

Você está se tornando uma inglesinha de só tomar chá, não é mesmo? disse ele, bocejando e esticando as pernas

no corredor. Acho que vou procurar uma lanchonete ou sei lá o que eles chamam aqui, e ver se descolo uns sanduíches.

Quer um tablete de chocolate ou alguma outra coisa além do chá?


Ela encolheu os ombros e depois disse em tom de amigável brincadeira:

- Qualquer coisa. Também tenho certeza de que se eu não conseguir comer, você come por mim.

- Então vou comprar dois chocolates. Talvez três, disse, pondo-se de pé e remexendo na mochila debaixo da

poltrona.

- Precisa de dinheiro? indagou Cris. O meu está aqui.

- Não, eu tenho. Parece que esta nossa viagem é o que há de mais próximo de um encontro romântico que teremos

ainda dentro de algumas semanas. Deixa que eu pago.

Ele foi se equilibrando pelo corredor estreito e pelas portas até o vagão seguinte.

Que amor de pessoa! Ele é mesmo um cara incrível, pensou Cris, suspirando, e olhou pela janela.

O trem ia lento, porque estava prestes a parar na estaçãozinha de um vilarejo. Na plataforma de madeira havia um

menino com um boné preto, meias três-quartos, short e um blazer escuro, segurando um guarda-chuva fechado e uma

pasta de couro. Estava completamente parado, olhando o trem que arrancava. Cris observou-o por sua janela larga e sorriu.

Na sua imaginação, era "Pedro", o irmão de "Susana", "Edmundo" e "Lúcia", da série Contos de Nárnia, de C. S. Lewis.* Cris

estava certa de que "Pedro" estava prestes a passar por uma porta invisível para entrar na fantasiosa terra de Nárnia.

___________________

*Essa série foi traduzida para o português por Paulo Mendes Campos, e atualmente pode ser encontrada em edição

da Livraria Martins Fontes Editora. (N. da T.)

O seu chá, senhorita, disse Douglas, assustando-a ao chamá-la de volta ao mundo real.

Ele colocou um grande copo de papel com tampinha de plástico à sua frente e lhe entregou vários minúsculos copos

de creme e pacotes de açúcar. Em sua mão havia uma sacola de papel com alças de tamanho médio.

Ele estava urna graça. Tinha saído com o jeito seguro de homem feito, e voltava como um menino tímido, com uma

cesta de piquenique na mão. Sentou-se ao lado dela e enfiou a mão na sacola.

- Misto frio, disse ele, tirando dois sanduíches embrulhados. E Toblerones.

Cris reconheceu a caixa longa de forma triangular que continha o tablete de chocolate. Já a tinha visto em Londres.

- Aqui eles chamam esses chocolates de "docinhos", informou ele. Pelo menos foi o que disse o cara da lanchonete.

É meio difícil a gente não rir quando um homem já crescido olha no olho da gente e pergunta: "Quer um docinho?"

Cris riu e colocou leite e açúcar no chá quente.

- Eu devia ter dito a ele que já tenho o meu "docinho": você!

Seus olhos se encontraram. Cris sorriu e depois desviou os seus.

Por que me sinto tão acanhada? É o Douglas. Meu namorado. Por que ainda fico sem jeito quando ele me diz coisas

agradáveis?

Não teve tempo de chegar a uma conclusão, porque naquele instante Trícia acordou e perguntou se já estavam se
aproximando de Manchester. Era como se tivesse invadido a privacidade dos dois; no entanto Cris sentiu-se aliviada.

- Dentro de uma hora, mais ou menos, chegaremos lá, disse Douglas entre bocados do sanduíche. Quer um pedaço,

Trícia?

Bocejando, ela disse que não, mas precisava ir ao banheiro.

- É para lá, disse Douglas, apontando a direção de onde viera. Só que eles chamam de "W.C.". Quer dizer: "water

closet".*

____________________

*Water closet: literalmente significa "quarto de água", ou "de banho" (N. do E.)

- Katie, disse Trícia, sacudindo de leve a ruiva dorminhoca, desculpe, mas preciso me levantar.

Katie murmurou alguma coisa e ergueu a cabeça com má vontade. Foi para o corredor, para deixar que Trícia

passasse.

- Obrigada.

- Por que você não senta perto da janela, para não precisar levantar de novo quando ela voltar? perguntou Cris.

- As coisas delas estão todas ali.

- Então mude-as. Ela não vai se importar.

Com gestos bruscos e exagerados, Katie colocou as coisas de Trícia sobre a mesa, sacudindo e quase derramando o

chá de Cris. Em seguida entrou e encostou a cabeça na janela, fechando os olhos e desligando-se do mundo ao seu redor.

Douglas e Cris se entreolharam sem nada dizer. Cris odiava essa atmosfera,. Queria que todos se dessem bem e não

ficassem irritados com os outros. Mas parecia que a vida não era assim.

Ela mesma não era tão inocente. Já tivera sua própria carga de conflitos com amigos e fizera comentários

rabugentos dos quais mais tarde se arrependera. Era melhor deixar que Katie resolvesse sozinha seus problemas. A melhor

coisa que Cris podia fazer era orar pedindo a Deus graça, paz e concórdia durante o resto da viagem. Seria ótimo se Katie e

Trícia pudessem reconhecer suas semelhanças e usá-las para trabalhar em equipe, em vez de se voltarem uma contra a

outra.

- E o chá, está gostoso?

Estava na cara que Douglas queria mudar de assunto.

- Bom. Bom demais. Muito obrigada.

Ele olhou o relógio.

- Devemos chegar dentro do horário, o que quer dizer que teremos cerca de uma hora para nos acomodarmos nos

quartos do castelo antes do jantar.

- É um castelo de verdade? Pensei que fosse só o nome, mas a Trícia disse que um cara o comprou depois da

Segunda Guerra Mundial e o transformou num centro cristão de retiro para jovens.

- Isso mesmo. Ele comprou um castelo antigo e cerca de quarenta e dois alqueires de terreno circundante. Queria
que os jovens da Europa se unissem depois da guerra e achava que o melhor jeito era reuni-los em acampamentos bíblicos

de verão. Eles se converteriam e voltariam aos seus países prontos para levar o evangelho a outros.

- Impressionante! Esse programa de evangelismo em diversas partes da Europa é incrível, não é mesmo?

- É. Estou ansioso por conhecer o resto do grupo hoje à noite, disse Douglas entre uma mordida e outra em seu

segundo sanduíche. A última informação que tive é que vão ser uns quarenta estudantes de todo o mundo. Vão nos dividir

em equipes de oito pessoas.

- Será que nós quatro vamos ficar juntos?

- Foi o que eu pedi. Tenho a impressão que sim.

Talvez fosse melhor se Trícia e Katie se separassem, pensou ela. Não revelou o que passou por sua cabeça, embora,

pela cara do Douglas, sentisse que ele pensava o mesmo.

Naquela noite, na reunião de abertura no castelo de Carnforth Hall, foi confirmada a previsão de Douglas. Quando o

diretor leu a lista das equipes, os quatro ficaram juntos com mais três rapazes e uma garota. Sua equipe foi designada para

ir a Belfast, Irlanda.

- Não acredito, disse Katie a Cris. Exatamente onde eu queria ir. Perfeito! É como se eu já conhecesse Belfast por

tudo que o Michael me contou ano passado.

Cris ficou calada ouvindo-os anunciarem o resto das equipes. Era óbvio que Katie havia ficado feliz com o local que

foi designado para eles, pois tinha namorado um cara de Belfast. Para Cris, porém, isso foi uma decepção. Ou será que

estava um pouco assustada? Não era para Belfast que ela esperava ir. Não sabia para onde queria ir. Talvez a Suécia. Ou

Espanha. Mas a Irlanda não lhe parecia o lugar certo.

- Procurem os outros membros de sua equipe, disse Charles Benson, o diretor. Dentro de uma hora estaremos de

volta aqui no salão.

Douglas foi apontado como líder de sua equipe, e passou imediatamente a organizar seu grupo, convocando os

membros da equipe de Belfast para que se aproximassem dele. Outros líderes faziam o mesmo, gritando o nome de sua

cidade.

“Pessoal de Barcelona, por aqui."

“Oslo, aqui."

“Amsterdã."

“Edimburgo."

Parecia uma estação ferroviária internacional; cadeiras eram mudadas de lugar, e todos começaram a se entrosar.

Pela primeira vez, na viagem, Cris sentiu-se meio exausta. Talvez fosse a diferença de fuso horário que, finalmente,

a estivesse afetando, ou talvez fosse a própria realidade que a assustava. Estava num salão antigo, cheio de enfeites em

estilo rococó, num velho castelo inglês. Depois de um treinamento estaria a caminho de Belfast. Era como se uma rajada de

vento estivesse atingindo-a em cheio, deixando-a sem fôlego.


- Excelente. O pessoal de Belfast já está todo junto. Vamos para aqueles assentos lá perto das janelas, disse

Douglas.

Não eram apenas janelas. Eram janelas de castelo, seis longas colunas que chegavam até o teto cheio de enfeites de

madeira rendilhada. As grossas cortinas estampadas com motivos florais desciam até o piso. Ainda bem que o sofá e as

poltronas azuis em frente as janelas eram comuns. Cris estava começando a sentir-se como Katie na casa de Charles

Dickens: sobrecarregada com tantas experiências novas.

- Meu nome é Douglas, e estas jovens aqui são Cris, Katie e Trícia. Viemos todos da Califórnia, disse ele, assim que

os oito estavam reunidos. Agora, que tal vocês também se apresentarem?

- Meu nome é Selena, disse uma moça americana sentada ao lado de Trícia.

Cris gostou dela logo de cara. Tinha o cabelo ondulado, despenteado, da cor de caramelo, e sardas no nariz. Tinha

um jeito natural, acolhedor. Havia nela alguma coisa de sinceridade, de simplicidade, que se mostrava no seu jeans, nas

suas botas de caubói, e no seu casaco de couro marrom que ficavam muito bem nela. Até mesmo o nome diferente lhe

cabia perfeitamente.

- Meu nome é Gernot, disse um rapaz alto e magro com sotaque. Sou da Áustria. Moro perto de Salzburgo.

- Meu nome é Ian, disse outro jovem, e sou da Inglaterra, mas agora moro na Alemanha.

Ian parecia um professor, com nariz fino, óculos de aro de metal, e um grosso casaco de lã verde-escuro.

- Meu nome é Stephen. Também estudo na Alemanha e sou colega do Ian. Acho que nossa equipe deve ser a

melhor, já que todas as garotas são americanas.

Ele sorriu, e o rosto antes sério se tornou radiante. Seu cabelo escuro era penteado para trás e ele tinha barba - algo

que Cris não estava acostumada a ver nos rapazes de sua turma. Fazia com que se parecesse mais velho que o resto do

grupo.

Cada um apresentou as razões por que viera participar daquele trabalho missionário. Katie pareceu ganhar vida ao

falar animada dos seus motivos e explicar por que Belfast parecia o lugar perfeito para eles evangelizarem. Os dois alemães

pareciam estar se divertindo bastante.

Cris gaguejou um pouco quando chegou sua vez. Disse que queria descobrir o plano de Deus para sua vida e saber

se ele a queria na obra missionária. Não podia dar mais explicações além dessas. Douglas lhe sugerira fazer essa viagem e

ela achara uma excelente idéia. Depois o dinheiro chegou a tempo. Assim concluiu que deveria vir.

- Minha razão é mais ou menos a mesma, disse Selena. Deu tudo certo. Eu precisava encarar esse mundo que eu

não conhecia. Não sei o que quero ser no futuro, mas espero que esta viagem me ajude a decidir.

Agora Cris tinha certeza de que gostava de Selena. Acabara de descobrir uma alma gêmea, alguém que pensava

igual a ela. Sorriu para ela. Selena retribuiu-lhe o sorriso. A amizade estava selada.
Cavaleiros Montados em Cavalos Brancos!
5

Cris só sentiu o impacto na manhã seguinte. Acordou antes do despertador soar e com os olhos turvos correu a

vista em volta do dormitório do segundo andar. As outras sete garotas do quarto ainda dormiam.

Estou na Inglaterra, num castelo, e não estou sonhando.

Lembrou-se de um desejo que formulara dois anos atrás, num acampamento de verão, quando estava numa canoa,

no meio de uma lagoa. Ela dissera que desejava ir à Inglaterra e visitar um castelo. E agora, aqui estava! Na Inglaterra.

Durante uma semana esse castelo seria o seu lar.

Saiu da cama e andou de meia até a janela. Fizera frio na noite de véspera. Mesmo de moletom e meia, sentira um

frio úmido enquanto tentava dormir. Agora, chegando até o vidro com camada de geada, teve a primeira vista diurna do

terreno em volta do Carnforth Hall.

A manhã estava linda, apesar do gelo. Parecia um conto de fadas. Hectares e mais hectares de campos verdes,

cobertos de geada, árvores retorcidas erguendo galhos desfolhados ao céu acinzentado, e o espesso musgo agarrado aos

troncos e postes, e até mesmo às baixas divisórias de pedra. Uma neblina fina envolvia todo o cenário, dando à paisagem

tons de uma pintura impressionista. Era tudo tão diferente do clima de praia de sua casa. Ela estava adorando tudo.

- Lindo, não é mesmo? sussurrou Selena por cima do um ombro de Cris, que deu um salto.

Não tinha percebido a outra se aproximar. Cris concordou e deu um sorriso.

Selena estava bem próxima a ela, o cobertor enrolado nos ombros como uma jovem índia, olhando lá para fora, o

rosto revelando seu contentamento.

- Estou tão contente por estar aqui! falou Selena.

- Eu também, concordou Cris. Fico alegre por você ter vindo.

- Vai ser uma experiência e tanto, não vai?


Naquele instante, o alarme de alguém disparou e um braço saiu de baixo do cobertor, tateando a mesinha do lado

várias vezes, para, afinal, conseguir desligar.

- Que horas são? gritou Trícia do seu casulo debaixo dos cobertores quentes.

- Seis e meia, veio a resposta abafada da dona do despertador. O café é daqui a uma hora.

- Não seria bom se eles servissem chá quente aqui no quarto? perguntou Selena com uma risadinha.

- É mesmo, disse Cris. Amenizaria um pouco o frio da manhã. Não suporto a idéia de ter de tirar essas roupas para

me vestir! Minha vontade era vestir mais alguma roupa por cima e calçar as botas.

- E por que não? comentou Selena franzindo o nariz sardento. Você podia lançar uma nova moda. Parece muito

prático. É capaz de "pegar".

Cris decidiu que não lançaria moda nenhuma e conseguiu se trocar rapidamente, vestindo a calça colante de lã, uma

calça preta mais quente que tinha, várias blusas, umas sobre as ou e mais dois pares de meia esporte de lã. Os castelos

podem parecer encantadores, mas ficam gelados!

O grupo se reuniu para o desjejum, todos os quarenta, num pequeno refeitório com um lustre alto e três janelas até

o teto a iluminar o ambiente. Cris se alegrou de ver um bule de chá quente no meio de cada mesa, juntamente com um

açucareiro e uma jarra de leite.

Douglas sentou-se ao lado dela, usando uma camisa verde e azul de rúgbi e uma blusa branca de gola rulê por

baixo. Trícia se juntou a eles, sentando-se do lado oposto, o cabelo curto perfeitamente penteado, as bochechas rosadas.

Depois da oração e um cântico, Douglas perguntou a opinião de Trícia sobre a organização da equipe, e ela respondeu, feliz,

com seu modo ponderado e doce.

Cris se inquietou por não ter ele perguntado a opinião dela. Mas se o tivesse feito, ela não teria sabido o que dizer.

Nem pensara no assunto. Mas ficava claro que Trícia tinha pensado bastante.

Douglas utilizou as idéias de Trícia quando sua equipe se reuniu após o café da manhã.

- Antes de mais nada, gostaria que cada um desse seu testemunho. Sabe, dizer um pouco sobre como veio a ser

cristão, o que Deus tem feito em sua vida deste então, e quais os seus dons espirituais, se souber. Quem quer começar?

Cada membro da equipe contou sua história. Todas eram diferentes e interessantes. Cris foi a última.

- Minha família sempre foi da igreja e meus pais são cristãos. Acho que eu sabia sobre Deus, mas era como se ele

estivesse fora de mim, e não dentro de mim. Não sei se entendem o que quero dizer.

Ela contou como conhecera Ted, Douglas e Trícia na praia, nas férias quando fizera quinze anos. Explicou que Trícia

e Ted lhe deram uma Bíblia como presente de aniversário. Foi legal ter a Trícia lá como exemplo vivo do seu testemunho.

- No dia seguinte ao meu aniversário... bem, algumas coisas aconteceram que me fizeram reconhecer que eu

precisava conhecer melhor a Deus e não apenas vê-lo como um ser que me vigiava à distância. Entreguei minha vida a ele.

Acho que é o melhor jeito de descrever. Simplesmente entreguei tudo a Deus e pedi perdão pelos meus pecados. Prometi a

Deus meu coração. Meu coração inteiro


Cris não esperava chorar, mas as lágrimas estavam à porta, enchendo-lhe os olhos de repente. Douglas estendeu o

braço e deu-lhe um abraço confortante. Buscava agora na lembrança a que se seguiu à entrega de sua vida a Jesus. Douglas

também estava ao seu lado junto à fogueira da praia naquela noite. Foi o primeiro do grupo a parabenizá-la por ter se

tornado cristã, e seu abraço aquela noite foi tão caloroso e confortante quanto o dessa manhã.

Mas havia alguma coisa que incomodava Cris. Algo lá no fundo. Sabia que suas lágrimas não eram de alegria. Eram

lágrimas que ela havia engolido antes, talvez não de uma só vez, mas devagar. Deliberadamente. Estavam enfiadas no

fundo do Coração.

Teve vontade de sair da sala, correr para fora, fazer uma longa caminhada e remexer o baú dos seus íntimos

tesouros até descobrir de onde vinham essas lágrimas.

Aparentemente, o resto do grupo achou que ela estava emocionada com o milagre da salvação, porque todos

passaram a dizer-lhe palavras de consolo e segurança. Todos, menos Selena.

O testemunho de Selena tinha sido bastante simples. Fora criada em lar cristão. Aceitara Jesus aos cinco anos de

idade com sua mãe, e desde então ela tinha sido uma boa menina. Será que havia alguma coisa no coração de Selena que a

fazia entender o de Cris?

Cris ficou quieta no seu lugar e, com o resto da equipe, participou do planejamento do primeiro estágio de

treinamento. A sondagem da alma que esperasse. A primeira tarefa era para daí a uma semana, no sábado seguinte.

Tinham de planejar um trabalho de evangelismo de um dia inteiro numa pequena cidade ali perto. Junto com a igreja que

recebia a equipe, deveriam apresentar uma dramatização, música, programa para as crianças e uma mensagem à noite. Era

uma versão em miniatura do tipo de trabalho que estariam fazendo em Belfast com uma igreja local.

Katie se ofereceu imediatamente para dirigir o teatro e Selena e Stephen se juntaram a ela, dizendo que a

dramatização também era sua área de interesse. Como Douglas era o único que tocava violão, aceitou a responsabilidade

da música, e Trícia ofereceu-se para ajudá-lo. Ian, que parecia professor, queria dar a mensagem da noite. Gernot se

ofereceu para dirigir um jogo de futebol com os meninos da cidade, para atraí-los ao culto noturno. Para Cris só sobrou o

programa das crianças, o que para ela estava ótimo. Ela havia trabalhado muitas horas no departamento infantil de sua

igreja e gostava dos pequeninos.

- Foi fácil, disse Douglas, verificando o relógio. Temos que estar na capela dentro de quinze minutos. Vou procurar

um violão por aqui. Nossa equipe tem de cuidar do almoço; por isso, quando terminar o culto na capela, vamos todos direto

para a cozinha.

Cris estava feliz porque a capela era em outro prédio. É verdade que teria de se agasalhar e carregar uma

sombrinha, mas a caminhada ajudaria a desanuviar a cabeça.

Apesar da geada, o jardim parecia lindo. Fileiras de roseiras limpas, podadas, ladeavam a calçada. Cris tinha certeza

de que na primavera e no verão ali seria seu lugar predileto. Passou por baixo de uma treliça em arco com uma trepadeira

sem folhas entremeando a grade. Pensou no jasmim perfumado da sua casa, na varanda da frente, e pela primeira vez,
sentiu saudades de sua mãe, seu pai e seu irmãozinho. Tinha lhes mandado um cartão-postal de Londres. Hoje seria um

bom dia para escrever uma carta de verdade.

A capela ficava no fim da calçada do jardim. O velho prédio de pedras tinha sido a igreja dos antigos moradores do

castelo. Passando pelas grossas portas de madeira entalhada da capela, Cris sentiu a mesma reverente maravilha que

experimentara na Abadia de Westminster. Havia centenas de anos que esse local era um lugar de oração e adoração. Agora

ela era uma das muitas pessoas que adentravam o templo em busca da presença do Senhor.

Sentou-se sozinha num banco de madeira maciça, mais ou menos no meio. Na frente, em vez de um púlpito, havia

um palco, um teclado e vários microfones. De relance, pareciam fora de lugar. Mas daí a pouco chegaram os outros

estudantes, a capela começou a ficar cheia e diversos músicos subiram ao palco e se puseram a afinar seus instrumentos.

- Está guardando o lugar para alguém? perguntou uma garota com um largo sorriso e cabelo loiro curto.

Sua camiseta trazia a inscrição Aika on kala. Cris não conseguia imaginar que língua seria aquela.

- Não, pode sentar-se, disse automaticamente, nem se lembrando de que talvez o Douglas estivesse esperando que

ela lhe guardasse o lugar.

- Meu nome é Cris.

- Meu nome é Merja. Sou da Finlândia. E você, de onde é?

- Califórnia.

- Verdade? Você pratica surfe e dirige um carro conversível? perguntou a garota com um sorriso brincalhão.

- Você anda vendo televisão demais, disse Cris.

- Mora em Beverly Hills? perguntou Merja, ainda importunando.

- Não exatamente. Mas conheço vários rapazes que praticam surfe e meus tios tinham um conversível. Vale alguma

coisa?

- Já serve. Agora podemos ser amigas. Estou na equipe que vai a Barcelona. Para onde é que vocês vão?

As duas novas amigas ficaram conversando por algum tempo. Cris estava gostando da oportunidade de fazer novas

amizades com gente do mundo inteiro.

Quando olhou para o palco, viu Douglas, o violão na mão, afinando o instrumento com o resto da turma. Acharam

um violão para ele.

- Vamos começar entoando alguns cânticos de louvor, disse O dirigente. O primeiro é o Salmo 5.

Os cânticos soavam majestosos na pequena capela. Foi a primeira vez que Cris sentiu que todo mundo era parte de

um só grupo, enquanto cantavam esses corinhos conhecidos, todos em inglês, mas com sotaques diversos. Douglas tocou

com o conjunto. Sabia os acordes de todos os cânticos. Houve um momento em que ele ergueu os olhos e lançou seu

sorriso de garoto para a multidão. Cris achou que estivesse sorrindo para ela, mas o olhar dele pareceu ir mais longe. Ao

final de um corinho, ela virou-se devagarinho e olhou para trás e viu Trícia sentada duas fileiras atrás.

Ah! É a Trícia.
Perguntou a si onde estaria Katie e se as duas já haviam resolvido suas diferenças. Certamente, isso ficaria evidente

durante o resto da semana.

Não precisou esperar. Depois da capela a equipe se reuniu na cozinha. Tão logo se juntaram de novo, Katie e Trícia

começaram a discutir sobre como deveriam estender a mesa. D. Joanna, a cozinheira, interferiu, deixando claro:

- Só a faca do lado direito. No esquerdo, fica o garfo. A colher em cima do prato, assim.

- Mas não é assim que fazemos em casa, protestou Katie.

- Você não está em sua casa, disse com firmeza D. Joanna. E com um sorriso bem-humorado, acrescentou:

- Aqui, é assim que se faz. E nessa semana sua casa é aqui, e eu sou sua mãe. Então, obedeça à mamãe!

Trícia tinha todo direito de dizer a Katie: "Eu não te disse?" Mas preferiu calar-se. Tranquilamente continuou a

arrumar as suas mesas, enquanto Katie, dando volta na sua, ia arranjando de novo cada lugar, pondo a colher por cima do

prato. De repente, ela disse:

- Gente, me perdoe. Não sei por que estou sendo assim tão chata. Fico querendo fazer tudo do jeito que sei, e não é

assim. Tudo é tão estranho e esquisito para mim!

Ai, não! aí vem a palavra esquisito de novo!

Cris achou que Trícia iria se virar para ela e replicar irritada. Mas não. Ela aproximou-se calmamente de Katie e

disse:

- Eu sei, não é fácil se encaixar em uma cultura diferente, não é mesmo?

- Mas você não está tendo dificuldades com isso. E mais ninguém aqui está achando difícil, comentou Katie fazendo

um gesto com a mão cheia de facas indicando a sala. Só eu. Eu é que não consigo me encaixar.

Douglas já provara ser um excelente conselheiro para Katie por mais de uma vez. E aí vinha ele de novo, enlaçando-

a com o braço, e dizendo:

- Vamos conversar na outra sala, Katie? Acho que os outros podem acabar de pôr as mesas.

Ela deixou as facas caírem sobre a mesa com um barulho.

- É, sem mim eles trabalham melhor, falou.

E os dois saíram do refeitório. Douglas passava o braço em torno dos ombros dela.

O resto da equipe continuou as tarefas sem mais comentários. Trícia aproximou se de Cris, e disse:

- Posso conversar com você uma hora dessas?

- Claro! Que tal logo depois do almoço?

O almoço era a principal refeição ali. Nesse dia era linguiça com batatas gratinadas e, mais uma vez, ervilhas

amassadas. Douglas e Katie voltaram ao refeitório a tempo de almoçar, e apesar de terem se sentado do outro lado da sala,

deu para Cris ver que Katie havia chorado.

Logo que terminaram a limpeza, Trícia e Cris foram para um canto onde havia um banco almofadado debaixo de

uma janela alta, em arco. A vista do gramado estendia-se até o riacho, e depois dele havia um bosque.
- Quero lhe fazer uma pergunta, disse Trícia.

Cris gostava da Trícia, com seu jeito sereno mas direto. As duas se conheciam havia muito tempo e se falavam com

frequência. Ao que parecia teriam mais uma conversa de coração para coração.

- Que é que posso fazer para mudar essa minha situação com a Katie? Estou me sentindo péssima. Pensei que nossa

estada em Londres fosse ser muito divertida. E foi, de certo modo. Mas o tempo todo eu sentia que a Katie estava com

raiva de mim. Não sei o que fazer.

Cris tentou intermediar o problema entre as duas de modo acertado. Mas não era fácil.

- Sei que a Katie não quer agir de modo, bem... na falta de uma palavra melhor, esquisito. Creio que esta viagem

está sendo mais difícil para ela do que ela pensava. Mas você não é a culpada, Trícia. Deve ser porque é tudo muito

diferente. Esse chá, por exemplo, parece que não agrada a ela. Sei que ela está se esforçando. Acho que você não poderia

agir de modo diferente do que está agindo.

- Cada vez que abro a boca parece que a ofendo. Não sei qual é o problema. O que será que devo fazer?

- Acho que vocês duas devem conversar. Vocês duas são amigas muito queridas para mim. Tenho que ser sincera.

Fico muito inquieta com as coisas tão tensas assim. Acho que as duas têm de se sentar e conversar.

- Você quer ficar junto da gente?

- Não; acho que isso não ajudaria. Seria melhor só vocês duas.

Trícia deu um suspiro.

- É, você tem razão. Vou procurar conversar com ela ainda hoje. Ore por nós, está bem?

- Vou orar.

Cris apertou a mão de Trícia e as duas ficaram em silêncio por alguns minutos, olhando para fora. Depois de alguns

instantes, fazendo um gesto teatral com as mãos, Cris indagou:

- Você não consegue imaginar uma princesa sentada neste lugar muitos séculos atrás, esperando seu príncipe

encantado vir montado num cavalo branco para levá-la embora até os confins da terra?

- Mas você não precisa esperar o seu príncipe, disse Trícia num tom firme, medindo as palavras.

- O que você quer dizer?

Trícia olhou-a com ar de incredulidade.

- Sabe, o Douglas? Seu namorado. É o próprio cara com tipo de príncipe encantado. O seu cavaleiro montado num

cavalo branco já chegou.

- Ah, é! exclamou Cris, surpresa e envergonhada, porque não estava pensando no Douglas. Quer dizer, sabe, alguma

princesa de muitos séculos passados. Não estava pensando em mim, nem em você, nem nos nossos príncipes.

Mas assim que disse essas palavras, Cris teve vontade de as engolir de novo. Não havia nenhum príncipe na vida de

Trícia. Ela não tinha ninguém, havia muito tempo. Resolveu perguntar um pouco mais.

- Como estão as coisas no seu departamento de príncipes, afina? Deu certo seu princípio de namoro com aquele
cara da faculdade que você mencionou no Natal passado?

- Não, murchou, explicou Trícia.

- Então, você não se interessa por ninguém?

Trícia pensou um instante. Pela expressão de seu rosto arredondado, via-se que da estava ponderando com cuidado

a resposta. Ela nunca mentia. Sempre dizia a verdade, o que a deixava numa situação difícil quando alguém fazia uma

pergunta assim, e a colocava contra a parede.

- Eu não disse que não me interesso por ninguém. Mas nos meus muitos anos de experiência, aprendi que é melhor

quando o rapaz se interessa por mim.

- Espere aí. Eu me lembro claramente de uma conversa como essa que tivemos certa vez na casa dos meus tios.

Estávamos fazendo brownies. Você se lembra? Você gostava de alguém na época, mas não queria me dizer quem.

Trícia era transparente nos sentimentos. Lembrava-se da conversa, mas não queria comentar sua situação atual.

- Naquela tarde você não me disse nada, continuou Cris. Mas acabei descobrindo que você gostava do Douglas.

Vocês chegaram mesmo a namorar. Ou parece que isso foi há muito tempo?

A expressão de Trícia pouco mudou.

- Parece. Isso foi há mais de três anos e nós só namoramos alguns meses.

- Por que vocês terminaram? Trícia fez uma pausa mais longa.

- O que foi que Douglas lhe contou? indagou.

- Nada, replicou Cris. Nunca conversamos a respeito. Sabe esse negócio dele nunca ter beijado uma garota e de

dizer que seu primeiro beijo vai ser no altar no dia do casamento? Bem, isso torna nosso relacionamento bem diferente. Eu

não preciso ficar pensando nas outras namoradas dele ou no que poderia ter acontecido entre eles. Isso me deixa bem

tranquila. Ele nunca me beijou e assim não me sinto pressionada. Não fico questionando se ele vai ou não vai me beijar.

Sabe o que estou dizendo? Claro que você sabe.

Trícia olhou pela janela, perdida nos seus pensamentos.

- Hã, hã! replicou.

Fizeram silêncio, cada uma perdida no seu próprio mundo interior, mergulhada em seus pensamentos, em seus

sonhos.
Comunhão e Concórdia
6

O culto de domingo pela manhã foi na capela. O diretor da missão, Charles Benson, apresentou a equipe de louvor:

- E agora, o conjunto Indivisível dirigirá o período de louvor.

O nome pareceu irônico para Cris. Trícia e Katie ainda não tinham conversado, e no quarto, pela manhã, ficara claro

que a tensão estava só aumentando. Agora no culto, Cris sentara-se ao lado de Trícia enquanto Katie, no outro lado da

capela, havia sentado com dois rapazes da equipe. Selena preferiu um lugar perto de Cris e Douglas, junto ao corredor, e ao

lado de Trícia. A equipe deles podia ser muita coisa, menos indivisível.

Era difícil para Cris concentrar-se enquanto cantavam, e ainda mais difícil aplicar a mensagem deles para si. Tudo

parecia se aplicar a Katie, não a ela.

O Dr. Benson falou sobre João 17.

- Sabiam que Cristo orou por nós? Olhem o versículo 21. Cristo aqui orou para que fôssemos um, como ele e o Pai

são um. Em geral é esta a maior dificuldade das equipes de ministério. Cada um de vocês vem de um lugar diferente, com

opiniões e pontos de vista diferentes. Não é fácil sermos "um", um coração. Uma mente. Uma equipe unida.

Certamente o Dr. Benson sabia o que estava acontecendo na sua equipe, pensou Cris, embora falasse para o grupo

todo. A seguir, ele falou sobre perdoar e começar de novo. Insistiu com as equipes para que aprendessem a exercitar graça

e paz.

Cris se lembrou dos dizeres que vira na Catedral de São Paulo, em Londres. Graça e paz, e qual era a outra palavra
que significa harmonia? Concórdia. É o de que precisavam. Graça, paz e concórdia. No momento, parecia impossível.

- Vou pedir que façam uma coisa que talvez nunca tenham feito antes. Vamos tomar a ceia hoje, e precisamos nos

aproximar de Deus de coração limpo. Alguns precisam se reconciliar Com seus irmãos nesta sala. Antes de servirmos a ceia

do Senhor, teremos dez minutos nos quais, se alguém precisa pedir perdão a outro, deve fazê-lo. Seria uma falsidade total

participar da comunhão e depois partir para uma viagem de evangelização se algum de vocês estiver guardando rancor no

coração.

Cris fechou os olhos e vasculhou a alma. Queria estar em paz com Deus com toda a certeza. Teria de confessar

várias coisinhas. Mas cria que não precisava procurar ninguém para pedir perdão.

Enquanto orava em silêncio, ouviu a voz de Katie atrás dela chamando Trícia para um bate-papo.

Trícia passou pelo Douglas, e Cris ficou a olhar na direção delas, enquanto se deslocavam até os fundos da capela,

para poderem conversar. Tinha vontade de escutar. Estava vibrando de alegria por ver as duas se acertando.

Naquele momento, Douglas deslizou no banco para aproximar-se mais de Cris. Inclinou-se junto ao ouvido dela e

sussurrou:

- Cris, você me perdoa? Por essa ela não esperava.

- Por quê? replicou sussurrando também.

Douglas parecia ter dificuldade para encontrar as palavras.

- Bem, eu não tenho honrado você como deveria. Cris não sabia a que ele se referia. Fitou-o bem nos olhos para

encontrar uma dica. Ele parecia preocupado com alguma coisa.

- Claro que o perdôo. Eu fiz alguma coisa que chateou você?

- Não, não, claro que não, explicou ele, parecendo aliviado. Em seguida sorriu e comentou:

- A vida às vezes fica complicada, não acha?

Cris concordou e retribuiu o sorriso, embora sem saber direito o que ele queria dizer. Talvez se referisse à situação

entre Katie e Trícia e achasse que deveria ter sido mais compreensivo com Cris por ela estar no meio da briga. Fosse qual

fosse a situação, não tinha importância agora.

Naquele momento, Katie e Trícia voltavam, ambas com os olhos cheios de lágrimas e no rosto uma expressão de

humildade. Douglas chegou mais perto de Cris para dar espaço às duas. Cris deu um pequeno suspiro de alívio e inclinou a

cabeça e se pôs a esperar que a ceia fosse servida.

Foi a ceia mais significativa de que ela já participara. Depois, todos ficaram de pé e o diretor da missão,

acompanhado de diversos líderes, orou pelos quarenta, comissionando-os com suas tarefas de evangelismo da semana

seguinte. Quando o culto terminou, Douglas pediu que sua equipe ficasse ali mais alguns minutos. Reunidos todos, ele

perguntou se alguém tinha alguma coisa a dizer. Cris teve a impressão de que todos estavam se esforçando para não olhar

para a Katie, ou pelo menos esperando que ela falasse primeiro, para depois olharem para ela.

- Tenho de pedir perdão a todos vocês, disse Katie quebrando o silêncio.


Todos os olhos se fixaram nela.

- Aprendi muito nesses últimos dias, e Deus tem me ensinado coisas que eu não queria aprender. Tenho tentado me

agarrar a muitas coisas. É como se eu tivesse a mão cheia de bugigangas e não quisesse entregá-las a Deus, e ele está

pacientemente puxando meus dedos, abrindo minhas mãos para retirar esse lixo delas.

Katie estendeu o braço e demonstrou a mão imaginária de Deus puxando-lhe os dedos fechados.

- Só posso dizer que quero começar de novo, com uma atitude nova de abertura para com Deus e para com vocês. A

Trícia já me perdoou, e quero dizer a vocês que estou arrependida de ter sido uma chata. Espero que também me perdoem.

Um coral de "sim" ecoou pela sala.

- Você está entre amigos, Katie, disse Selena. Nunca é tarde para a gente começar de novo.

A seguir, deu um abraço nela e o resto da equipe fez o mesmo. Acho que devemos orar, disse Douglas. Vamos orar

neste instante para que nossa equipe seja unida pelo amor, como disse o Dr. Iknson. Temos de ter um só coração, uma só

alma.

Oraram todos. Foi como se um sopro de ar fresco tivesse vindo sobre eles. Deixaram a capela de braços dados,

rindo e caminhando em passo de marcha até o refeitório. Cris tentou pensar no comentário do Douglas. Era passado.

Acabou. Ela o tinha perdoado - fosse lá o que fosse.

Naquela tarde, eles tinham quatro horas de tempo livre e Cris achou que seria divertido dar uma longa caminhada

com o Douglas. Aproximou-se dele depois do almoço, quando ele e Trícia Conversavam, e perguntou se algum deles (ou

ambos) queria dar uma caminhada com ela.

- Talvez mais tarde um pouquinho, disse Douglas. Eu e Trícia temos que ensaiar a música de nosso programa.

- Vocês podem ir agora, se quiser, Douglas, disse Trícia. Podemos ensaiar outra hora.

Houve um momento de silêncio e desconforto para Cris, mas logo respondeu.

- Tem nada, não. Vocês não dispõem de muito tempo para ensaiar, não é mesmo? A gente faz a caminhada mais

tarde. Não se preocupem comigo.

- Tem certeza? perguntou Douglas, olhando-a nos olhos.

- Claro que sim. Você precisam ensaiar. Divirtam-se, está bem?

Então Douglas lhe deu um abraço que Cris recebeu de boa vontade.

- Mais tarde, eu procuro você, disse ele.

- Tudo bem.

Agora Cris não tinha mais certeza do que deveria fazer. Queria dar uma caminhada sozinha mesmo, mas pensou

que tirar uma soneca seria uma boa. O que não queria era sentir pena de si mesma. Principalmente depois daquele culto

com a celebração da ceia e a equipe começando a se unir.

Resolveu ir até o quarto. Passava pelo corredor quando o som de risadas a atraiu à sala de estar. Alguns membros

da equipe de Barcelona estavam sentados em volta da imensa lareira de mármore onde crepitava um fogo alaranjado,
aquecendo a sala toda.

Merja viu Cris e chamou-a para o grupo.

- Precisamos de mais um jogador. Quer entrar no nosso time?

À frente deles, na mesa baixa, havia um jogo de palavras que Cris já vira antes, mas nunca jogara. Juntar-se a um

grupo de amigos alegres e risonhos parecia mais atraente do que o ambiente silencioso e apertado do dormitório gelado.

- Claro, mas nunca joguei antes.

Cris se acomodou no tapete ao lado de Merja, que rapidamente a apresentou aos outros jogadores. Cris ficou no

time dela e de outra garota da Finlândia, de nome Satu, que disse que seu nome significava “conto de fadas” e caiu na

risada.

- Verdade, é isso mesmo que quer dizer. Ninguém acredita...

- Eu acredito, disse Cris.

- E o seu nome, o que quer dizer? Perguntou Satu a Cris.

- Significa “seguidora de Cristo”.

- Perfeito!

Satu puxou seu cabelo loiro comprido para trás da orelha e continuou:

- Ainda bem que tenho uma americana jogando esse jogo em inglês comigo. O inglês é a quarta língua que eu falo, e

não sou muito boa nela.

- Que outras línguas você fala?

Cris lembrou-se que não conhecia um só americano que falasse mais de uma língua, ou no máximo duas.

- Finlandês, espanhol, italiano e depois inglês. Sei um pouquinho de russo e de alemão, mas não muito.

Satu não estava se gabando ao dizer isso. Estava quase a pedir desculpas por não falar melhor o inglês. Aos ouvidos

de Cris parecia perfeito.

O jogo começou e daí a pouco, Cris ria alto, que as lágrimas lhe corriam pela face. Era a primeira vez que ela ria

tanto desde que viajara. Tinha passado alguns momentos engraçados em Londres, mas o nervosismo e o cansaço fizeram

com que os primeiros quatro ou cinco dias da viagem fosse tensos. E, durante algumas horas, todos – ela, Merja, Satu e os

outros – caíram na risada. O riso era-lhes como um bálsamo.

Só viu o Douglas de novo durante o jantar. Cris estava sentada ao lado de Satu quando ele e Trícia entraram. Ela

acenou para ele, mas pareciam não tê-la visto e ocuparam uma mesa perto da porta. Após o jantar realizaram na capela

uma reunião de oração e louvor, que durou quase duas horas. Cris gostou muito, mas agora esse sentimento misterioso

quanto ao Douglas começava a incomodar.

Depois do culto, sua equipe foi para a sala de jantar onde comeram bolo e tomaram chocolate quente. Douglas

estava ao lado de Selena, segurando uma xícara de chocolate, quando Cris resolveu que era hora de chamar a atenção dele.

- Posso falar com você por um minuto, Douglas? Perguntou, surpresa, por haver saído trêmula a voz.
- Claro, disse ele virando-se para ela, surpreso com a expressão de seus olhos. Algum problema?

- Atenção, por favor! Interrompeu Dr. Benson. A hora está passando e vocês precisam estar em seus aposentos

dentro de dez minutos.

O grupo reclamou em uníssono.

- Eu sei, eu sei, disse o Dr. Benson, bem-humorado Mas os bons soldados são disciplinados, e agora é a

oportunidade de vocês exercitarem disciplina. Amanhã o dia será muito atarefado, começando com o café da manhã às

sete e meia. Preciso falar um momento com todos os chefes de equipe ali no saguão. Que todos experimentem a verdade

de Provérbio 3.24: “Quando te deitares, não temerás; deitar-te-ás e o teu sono será suave.” Boa noite. Eu os vejo amanhã

cedo.

- Então amanhã a gente conversa, certo? Disse Douglas colocando a xícara na mesa e se encaminhando até o

saguão de entrada para a reunião dos líderes de equipe.

Cris engoliu o sentimento de frustração e subiu a escada com Selena ao seu lado. Detestava quando essas nuvens

de desânimo pairavam sobre ela como a neblina da manhã nos campos em derredor do castelo. Tentou esquecer o assunto

e prestar atenção no que Selena estava dizendo.

- Não parece que estamos aqui há meses, e não alguns dias?

- Mais ou menos, respondeu Cris.

Selena continuou tagarelando de modo amigável mesmo depois de prontas para dormir. Ela se enrolou no cobertor

e sentou-se ao pé da cama de Cris enquanto as outras meninas se aprontavam. Estava sendo bom conhecer Selena. A cada

dia que passava, Cris gostava mais dela e achava bom estarem na mesma equipe.

Katie se enrolou num cobertor e aproximou-se das duas ao tentar repetir uma piada que um cara da Suécia contara

para ela no jantar. Trícia também enfiou-se debaixo dos seus cobertores na cama diretamente oposta à de Cris e aí ficou a

escutar a conversa.

- Não entendi, disse Trícia quando Katie terminou de contar a piada e deu uma gargalhada gostosa.

Katie repetiu o final da piada "Ela vem de Honda".

Ninguém riu.

- Deve ser uma daquelas piadas que a gente só acha engraçada estando perto. Ele é uma parada. Queria que ele

fizesse parte de nossa equipe.

- Pois acho que nossa equipe está perfeita, observou Selena. Ou você esperava encontrar uns rapazes mais

promissores, mais "casadouros" no nosso grupo?

Cris gostava de papear com suas amigas, conversar com elas sobre rapazes. Era como uma "festa da camisola",

daquelas que faziam no tempo de estudante. Sobretudo, achava bom que Katie estivesse de volta, a velha, divertida e

descontraída Katie, se dando bem com todo mundo.

- Os nossos rapazes são bem legais, comentou Katie. Mas um pouco calados. Gosto de rapazes um pouco mais
animados.

- Eu não, disse Trícia. Prefiro o tipo de líder forte, o cara que tenta fazer todo mundo se sentir à vontade e que não

chama atenção para si mesmo.

- Parece a descrição do Douglas, disse Selena, escovando para trás um cacho rebelde de cabelo que tinha caído na

testa. Pensando bem, você e o Douglas fariam um casal perfeito. Por que você não vai atrás dele?

Katie, Trícia e Cris ficaram em silêncio.

- O quê? O que foi que eu disse? Tem alguma coisa errada com o Douglas? Eu acho que ele é um excelente rapaz.

Tudo em vocês dois se encaixam, personalidade, dons, interesses... Fariam uma gracinha de casal. Que mal há nisso?

Katie resolveu responder.

- Só tem um pequeno problema: Douglas é o namorado da Cris.

- Está brincando!

Selena olhou para Cris para ver se era verdade. Cris não disse nada. Mordeu o lábio inferior. Como responder?

- Desculpe, disse Selena depressa. É que eu nunca teria imaginado. E talvez isso seja bom. Vocês não se afastam dos

outros. Agem como amigos, e ele parece tratá-la do mesmo jeito que trata as outras garotas e, bem... simplesmente não

sei.

- Nós três somos bons amigos, explicou Katie. Já nos conhecemos há muito e Douglas namorou a Trícia uns tempos,

mas isso foi há muito tempo, certo, Trícia?

Trícia acenou que sim.

- É que a Cris namorava um surfista de nome Ted, explicou Katie. Sabe o tipo: alto, loiro de olhos azul, cristão de

uma firmeza incrível.

- Parece bom demais para ser verdade, comentou Selena.

- Exatamente. E acontece que o Ted é o melhor amigo do Douglas.

Katie ajustou a posição de suas pernas, sentando-se à indiana e passou a contar para Selena toda a história do

namoro de Cris, como se ela não estivesse presente. Isso teria incomodado Cris, se não fosse verdade. E ouvir a história de

Katie lhe causava menos sofrimento do que ter de contá-la.

Quando ela já narrava que Ted recebera a carta de uma organização missionária, pedindo que se filiasse a eles em

trabalho integral, uma batida na porta lembrou às garotas que era hora de apagar as luzes. Trícia puxou a cama para perto

da de Cris, e Katie continuou a contar a história, cochichando no escuro. Quando terminou, Selena perguntou:

- Então, Trícia, por que você e o Douglas terminaram?

Ela demorou para responder.

- Ah! Acho que isso agora não importa. Como disse a Katie, foi há muito tempo e agora a Cris e o Douglas estão

juntos. Sei que o Douglas queria namorar a Cris há muito tempo, e acho que isso interferiu nos sentimentos dele para

comigo, mesmo quando estávamos namorando.


- Gente, isso parece uma novela de televisão! exclamou Selena. Nunca teria imaginado nada disso. E onde está esse

cara, o Ted, agora?

- Quem sabe? disse Cris.

- Você realmente não sabe? Ele não escreveu para nenhum de vocês?

- O Douglas teve notícias dele umas duas vezes quando estava levantando o sustento, disse Trícia, mas o Ted é um

cara bastante independente. Está fazendo o que sempre quis, provavelmente em alguma ilha do Pacífico Sul. Não nos

surpreende muito.

- Mais uma pergunta, disse Selena. Trícia, Katie, vocês estão interessadas em algum dos rapazes daqui?

- Cheguei à conclusão, disse Katie, de que passei muitos anos tentando não ter inveja da Cris, porque sempre teve

algum cara interessado nela. Nós esquecemos de contar sobre o Rick. Aquele era um cara esquisito. Houve uma ocasião em

que tentei fazer o Rick se interessar por mim. Puxa, que coisa estúpida! Nessa história toda, quem acabou perdendo foi ele.

Ouvi dizer que está morando com uma garota e se afastou do Senhor.

- Ainda me sinto mal quando penso nele, comentou Cris.

- Mas não foi sua culpa.

- Eu sei, mas eu queria que ele não tivesse se afastado de Deus.

- É duro, concordou Selena.

- E depois teve o Michael, continuou Katie. Outro momento marcante de minha vida. Michael era de Belfast, uma

das coisas boas que resultaram de nosso relacionamento. Provavelmente estou mais interessada em Belfast do que

qualquer outra pessoa de nossa equipe. De qualquer jeito, meu novo lema é: "Buscai apenas colegas." Estou tão

despreparada para um romance que nem acho graça nisso.

- Eu me sinto do mesmo jeito, disse Selena.

- De certa forma, disse Katie, estou tentando voltar atrás e compensar aqueles anos de tolice no colégio, quando eu

me esforcei tanto para conseguir um namorado, que perdi algumas amizades excelentes. Aprendi muito sobre amizades

não românticas com um cara, o Fred, com quem fui à festa da minha formatura. Claro, o Fred também já estava louco pela

Cris há muito tempo, e só foi comigo porque ela se recusara a acompanha-lo. Mesmo assim, o Fred é um cara legal. Agora

tudo que desejo é arranjar mais amigos aqui. Quero amadurecer um pouco mais emocionalmente, antes de começar a

procurar um namorado.

- É exatamente o que eu penso, disse Selena. Faço minhas as suas palavras. Não é engraçado como a gente faz as

coisas ao contrário? Devíamos ter sido assim na oitava série, e aqui estamos, meio adultas e tentando descobrir como

poderemos ser amigas dos rapazes. Só posso dizer que fico contente que Deus não tenha atendido a todas as minhas

orações sobre alguns dos rapazes pelos quais cheguei a me interessar nos últimos anos.

- Amém! disse Katie. E olhe, Trícia, você está bem à nossa frente nesse negócio de apenas curtir a amizade dos

rapazes. Você também é a mais velha de nós três.


- Também é provável que eu esteja mais desejosa de um romance nessa etapa da minha vida, e isso não é fácil de

admitir, confessou Trícia com certo tom de tristeza. Eu adoraria me casar logo que terminasse a faculdade, ter minha casa,

uns dois filhos enquanto ainda sou jovem. De certo modo, sinto que estou preparada para isso. Mas parece que falta

alguma coisa.

- O rapaz certo! disse Selena.

- Isso mesmo! concordou Trícia. Selena inclinou-se para frente, e disse:

- Quem sabe, Trícia. Talvez o rapaz certo esteja aqui esta semana. É possível que você tenha precisado vir até a

Inglaterra para conhecê-lo. Você crê que Deus satisfaz os desejos do nosso coração? Quer dizer, desde que esses desejos

não sejam pecado ou coisa parecida. O seu não parece ser. Este mundo precisa de muitos casais cristãos que criem filhos

conforme a vontade de Deus. Como é aquele versículo que fala sobre deleitar-se no Senhor e ele satisfará os desejos do

coração?

- Mas o tempo dele nem sempre é o mesmo que o nosso, disse Cris, e o jeito dele fazer as coisas não é como nós

pensamos.

- É, Deus é esquisito, disse Katie. É o que penso. Deus é esquisito e nós temos a mente distorcida. Ele está cheio de

surpresas, e nós tornamos a vida mais complicada do que precisava ser. Seria ótimo se tudo caminhasse do jeito que a

gente queria, mas parece que muitas vezes não é assim.

- Sabe o que devemos fazer, gente? indagou Selena. Devemos orar. Orar umas pelas outras e orar pelo nosso futuro

marido.

- Eu escrevo cartas ao meu, disse Cris.

De repente ela sentiu-se surpresa por ter confessado isso. Sentiu o olhar penetrante das outras meninas.

- Eu não sabia disso, disse Katie. O que você escreve?

- Sei lá. O que estou sentindo. Às vezes fico a pensar como será quando eu me casar com ele, seja lá quem for. Digo

que estou orando por ele e às vezes escrevo as orações. Já estou escrevendo a ele há uns três anos.

- Que legal! disse Katie.

- Vou começar a escrever também, disse Selena.

- O que você faz com as cartas? perguntou Trícia.

Cris sorriu, sentindo-se um pouco sem jeito por revelar um segredinho que guardava havia tantos anos.

- Deixo numa caixa de sapatos debaixo da minha cama.

- Eu queria ter guardado a minha carta a sete chaves, disse Trícia num sussurro.

- O que quer dizer? perguntou Cris.

- Nada, replicou a outra. Acho sua idéia maravilhosa. Também acho que é bom guardar as cartas em lugar seguro,

secreto, até a hora certa.

'Ilido ficou quieto por um momento, e depois Selena disse:


- Cris, você já imaginou como vai ser sua noite de núpcias? E ela fungou parecendo estar chorando. Seu futuro

marido vai se sentir o cara mais feliz do mundo quando você lhe entregar aquela caixa de sapatos cheia de orações e

promessas. Que incrível presente de casamento!

Cris virou se para dormir pensando em como seria entregar a caixa forrada com um papel cor-de-rosa florido, a seu

futuro marido. Imaginava umas mãos fortes, bem másculas, recebendo seu presente com alegria. Mas em seu devaneio,

quando ergueu os olhos para ver o rosto do futuro esposo, viu apenas uma grande nuvem fofa.

A Equipe Fabulosa
7

- Ontem à noite você disse que queria conversar comigo! Douglas alcançou Cris, colocando-se ao lado dela,

passando pelas roseiras a caminho da capela do castelo. A chuva fina da manhã se transformara num leve chuvisco de

flocos de neve que se acumulavam nos cílios de Cris.

- Seria melhor se tivéssemos mais tempo, respondeu ela, não sabendo ao certo o que queria dizer a ele, e ainda

menos à vontade com a idéia de que alguém poderia passar por eles e escutar.

- A reunião de nossa equipe é só daqui a uns dez minutos. Temos treinamento a tarde inteira. Provavelmente nossa

melhor oportunidade de conversar é agora. Depois disso, só após o juntar. Por que você não me diz o que está pensando e

sentindo? Quero ouvi-la.

Douglas tinha assumido seu tom de conselheiro, e Cris não estava gostando muito disso. Queria conversar com ele

de amiga para amigo, ou de namorada para namorado. Não de paciente para um terapeuta que tudo sabe.

- Na verdade, não é nada.

- Tem certeza?

- É. Tenho.

Cris forçou um sorriso e piscou para fazer cair um floco de neve dos cílios. Tudo estava indo muito bem com a
equipe deles A última coisa que ela queria era dividir o grupo por questionar o Douglas sobre a razão por que ele achava

que não a estava honrando. Pior ainda seria dar lugar à insegurança que surgiu durante a conversa na noite de véspera,

quando Selena dissera que nunca teria imaginado que eles estivessem namorando. Por causa dessa confusão, ela bem que

gostaria de questionar o Douglas sobre os sentimentos dele por ela. Estava dominada por muitas emoções. Seria melhor

deter esses sentimentos a tempo, para que a equipe completasse o trabalho evangelístico sem desunião. Ela sempre

poderia sentar-se com o Douglas quando estivesse de volta na Califórnia e passar com ele quantas horas precisasse para

discutir o relacionamento deles, e o futuro dos dois.

- Ontem você disse que queria dar uma caminhada, continuou ele ainda com seu tom de conselheiro. Talvez a gente

consiga hoje à tarde.

- Claro, seria ótimo.

Poderiam andar, mas não precisariam conversar.

Agora Douglas e Cris estavam em frente do portal do castelo. Pela primeira vez, ela notou nele a figura de uma

cabeça de leão com uma argola de bronze entre os dentes, usada para chamar à porta. Naquele momento, sentiu que ela

também tinha uma argola de bronze entre os dentes. Mas, como aquele leão silencioso, ela conseguiria segurar a barra.

Aparentemente, ele segurava essa argola havia séculos. Ela aguentaria algumas semanas mais.

- Nossa equipe vai se reunir perto dos janelões da sala de estar, disse Douglas, abrindo a porta e segurando-a para

que ela passasse. Vou ver se consigo de novo tomar emprestado aquele violão. Eu encontro você lá.

Cris parou junto ao carrinho de sobremesa para se servir de uma xícara de chá e uma bolachinha antes de ir para a

sala. Todos os outros membros da equipe estavam fazendo sua pausa para o chá e andando pelo saguão. Quando Cris

passou por eles, notou a variedade de sotaques e os diferentes modos de rir e fazer piadas dos diversos estudantes.

Katie estava num canto com um rapaz que Cris ainda não conhecia. Pareciam empenhados numa séria discussão.

Ela percebeu a presença de Cris e fez sinal para que ela se aproximasse.

- Cris, este aqui é o Jakobs. Ele é da Letônia. Esta é a Cris.

Jakobs inclinou a cabeça cumprimentando-a e deu um aperto de mãos em Cris.

- O Jakobs está dirigindo a dramatização da equipe de Amsterdã. Está me passando umas idéias geniais.

Naquele momento, Selena, Stephen e Trícia se aproximaram e Katie fez a apresentação deles também. Alguns

minutos mais tarde, quando se dividiam para as reuniões das equipes, Katie agarrou o braço de Cris e comentou:

- O avô do Jakobs passou vinte e cinco anos na Sibéria. Dá pra acreditar? Ele foi tirado de sua casa e exilado por ser

pastor. Estou lhe dizendo, Cris, não temos a mínima idéia do que significa ser perseguido por causa de nossa fé.

As palavras de Katie davam o que pensar. Parecia que nas últimas vinte e quatro horas ela passara da fase de

resistência a qualquer mudança cultural para a fase de aprender tudo que pudesse com os estudantes internacionais que se

encontravam no castelo. Era a Katie. Impulsiva. Direta. Alguém que, assim que decidia a fazer algo novo, raramente olhava

para trás.
Exatamente o contrário de mim.

Entender isso não a perturbou, mas fez com que admirasse mais a Katie e desejasse ser mais flexível e aberta.

Cris anotou esses pensamentos em seu diário naquela noite. Foi cedo para o quarto, sendo a primeira a chegar lá. A

caminhada da tarde com o Douglas não dera certo. Ele nem se sentou ao lado dela no jantar. Agora ele e Trícia estavam

ensaiando as músicas e o resto das colegas de quarto estavam na sala, batendo papo na última hora livre que tinham, antes

de apagar as luzes.

Cris queria ficar sozinha para tomar fôlego. Era mais ou menos nessa hora, uma semana atrás, que ela acabava de

arrumar a mala, deixando que sua imaginação se enchesse de expectativas sobre tudo que experimentaria nessa viagem.

Não esperava a confusão e o estresse emocional que essa última semana lhe trouxera.

O diário sempre lhe fora como um espelho, um lugar onde podia expor seus sentimentos, dar um passo para trás e

refletir. E essa reflexão quase sempre mudava sua expectativa. Hoje ela queria fazer esse exame sem ter colegas de quarto

olhando por cima do seu ombro. E durante uns quinze minutos teve o que desejava. Mas depois Avril, uma das garotas

inglesas, entrou chorando no quarto.

- O que houve? indagou Cris.

Avril chorava tanto que não conseguia responder. Cris pôs de lado o diário e foi até ela, abraçando-a e oferecendo-

lhe o ombro. Tão forte era o pranto de Avril que Cris sentiu suas lágrimas penetrar-lhe o pijama de moletom.

- Desculpe, disse Avril, por fim, sentando-se e limpando os olhos com as costas da mão.

- Tudo bem. Posso fazer alguma coisa por você?

- É meu irmão. Minha mãe ligou e disse que ele sofreu um acidente de automóvel. Tenho de juntar minhas coisas

para ir embora. O Dr. Benson vai me levar até a estação do trem.

- Que coisa terrível, Avril! E ele está bem?

- Ainda está vivo, mas em estado grave, explicou ela com as mãos tremendo. Não sei o que fazer primeiro.

- Espere, vou arranjar uns lenços de papel para você, disse Cris, pondo-se de pé e olhando ao redor. Agora sente-se

aí e me diga onde está sua mala, e qual a sua gaveta.

- Debaixo da cama. Minha gaveta é a segunda de cima para baixo.

Cris tirou para fora a mala azul e começou a colocar rapidamente na mala as roupas que tirava da gaveta. Avril

pegou a sacola pendurada no pé da cama e começou a colocar a Bíblia, caderno e outros objetos dentro dela.

- Quer que eu pegue o seu xampu e as outras coisas do banheiro?

- Claro. O meu nécessaire é um de listas vermelhas com o zíper quebrado. Você não precisa ter esse trabalho todo,

Cris.

- Não faz mal, não.

Ela pegou o nécessaire em cima do balcão do banheiro e enrolou um elástico em volta dele, antes de enfiá-lo na

mala.
- Agora o que falta? Seu casaco?

- Já peguei. Acho que é só. Estou tão triste de ir embora.

Avril ficou de pé e colocou a bolsa no ombro enquanto Cris fechava a mala.

- Talvez eu possa voltar a tempo de participar do evangelismo.

- Não se preocupe com isso, disse Cris. Ela queria saber dizer alguma coisa que realmente confortasse, mas o que

lhe ocorreu foram as palavras de Katie.

- Às vezes Deus é um tanto esquisito, continuou. Tenho certeza de que é difícil entender o que está acontecendo.

Prometo orar por você e pelo seu irmão.

- Obrigada, Cris, replicou Avril e deu-lhe um abraço apertado antes que começasse a chorar de novo. Ainda bem que

você estava aqui me dando a maior força. Também vou orar por você.

Ela se afastou e olhou Cris de frente com uma nova expressão de dor.

- Se eu não conseguir voltar, não sei quando nos veremos outra vez. Talvez só no céu.

Cris abraçou-a e disse-lhe no ouvido:

- Então vou ficar ainda mais na expectativa da minha ida para o céu.

Ambas choravam agora. Avril pegou a mala e atravessou o quarto. Parou à porta e olhou para o céu como quem

dizia: "Até lá!” Cris acenou e Avril se foi.

Nisso Cris desmoronou. Jogou-se na cama e deixou cair as lágrimas de adeus até o céu. Eram lágrimas só de pensar

como seria doloroso se tivesse sido seu próprio irmão o acidentado. Eram lágrimas acumuladas numa semana de es forço

para ser forte, corajosa e compreensiva com os problemas de todo mundo, fazendo porém vista grossa para sua própria

insegurança, que chegava agora ao ponto de desmoronar.

- Ficou sabendo sobre o irmão da Avril? perguntou Katie, correndo porta adentro. Ah, claro que sim! Dá para

imaginar como deve ser horrível? É, acho que você já imaginou.

Agora Katie também chorava.

- Não acredito que esteja dizendo isso, mas estou mesmo é com saudade da minha família!

Ela se jogou na cama e chorou também, quando Cris já estava parando de chorar. Naquele momento, um elo

especial se criou entre as duas através do pranto. Cris entrou debaixo dos cobertores e com mais alguns soluços, caiu num

sono profundo, exausta.

Na manhã seguinte, ela ficou na cama. Com voz rouca, disse à Trícia que a garganta doía e precisava dormir pelo

menos mais uma hora. Era difícil voltar a dormir com a correria das meninas a se aprontarem. Assim que desceram para o

café, Cris não teve mais dificuldades em pegar no sono de novo. Acordou algum tempo depois. O quarto estava vazio.

Numa cadeira ao lado da cama havia uma bandeja com um copo de suco de laranja, um bule de chá, torradas e um vidrinho

de geléia de laranja. Em cima da torrada, havia um bilhete que dizia:

"Espero que você se sinta melhor logo, logo. Com amor, Trícia."
Cris aprumou-se na cama e serviu-se de chá. Já estava frio. Certamente ela colocara a bandeja lá bem antes. Tomou

o suco e deu uma mordida na torrada antes de olhar o relógio. Já era 11:40. Quase hora do almoço. A garganta já não doía

tanto. Sentia-se descansada e com um pouco de sentimento de culpa por ter faltado às reuniões da manhã. Mas sabia que

precisara daquele sono mais do que imaginara. Um lado dela queria voltar ao país dos sonhos e outro achava que deveria

levantar-se e fazer o que devia. Venceu o lado responsável.

- Cris, você melhorou? indagou Selena.

Foi ela a primeira a notar quando Cris entrou no refeitório. Douglas também notou. Levantou-se do seu lugar no

outro lado do salão, foi até ela e lhe deu um abraço.

- Como está se sentindo? perguntou.

- Estou bem. Parece que juntou tudo e me derrubou um pouco.

Katie também veio ao encontro dela.

- Finalmente foi pega pela diferença de fuso horário, hein? Pelo menos você apenas dormiu demais; não virou

monstrinho que nem eu.

- Ainda bem que você está bem, continuou Douglas. Logo depois do almoço todas as pessoas que trabalham com

crianças vão se reunir na sala de conferências. Você está disposta a ir?

- Claro. Estou muito bem. Verdade.

O frango do almoço com seu molho de creme estava insosso, mas Cris estava com fome e comeu tudo. Notou que

quase tudo que comiam tinha alguma espécie de molho branco, fosse carne ou batata, ou até mesmo torta, tudo vinha com

creme de leite.

Ainda estava se sentindo um pouco aérea, quando foi para a reunião do ministério de crianças. Mas logo se animou,

ouvindo o que a liderança estava dizendo. Tinham uns lindos fantoches para a equipe usar, uma caixa inteira de material de

trabalhos manuais para cada equipe, e sugestões úteis sobre como fazer as crianças se interessarem pela história bíblica.

Cris olhou a apostila de histórias bíblicas, e ficou contente ao ver que conhecia todas e que até mesmo tinha dado aulas

sobre algumas às crianças da sua igreja.

Mais tarde na reunião da equipe, Cris apresentou um relatório excelente.

- Eu precisava de mais uma pessoa para me ajudar na apresentação dos fantoches. Eles nos deram um roteiro e

tudo o mais. Parece fácil, e acho que isso vai acrescentar bastante à nossa apresentação de sábado.

- Eu ajudo, disse Katie. Talvez a gente trabalhe os fantoches junto com o ministério de dramatização e aproveite os

dois recursos.

- Gente, isso vai ser uma ma-ra-vi-lha! falou Douglas, todo entusiasmado. E a sua reunião, como foi, Ian? Você acha

que vai estar preparado para pregar, irmão?

- Bem, na verdade é mais uma mensagem devocional curta do que um sermão, sabe? disse ele e levantou os óculos

de aro metálico. Preciso ensaiar na frente do nosso grupo antes de sábado.


- Certo. Foi o que nos disseram na reunião dos líderes hoje. Até quinta-feira todo mundo deve apresentar para os

outros a parte do programa. Vamos começar com o teatro, depois as crianças, a mensagem e a música. Gernot, seria ótimo

se você pudesse ajudar a Cris com o programa infantil, já que você está dirigindo o programa de futebol para atrair

crianças. Talvez ela fique com os menorzinhos, e você com os de idade escolar.

Gernot fez que sim.

- Principalmente os mais bagunceiros, disse Cris. Você pode ficar com todos eles.

- Minha especialidade, disse Gernot, sorrindo.

Cris achou difícil crer que aquele rapaz alto e magro quisesse enfrentar uma turma de meninos de rua.

Mas percebeu outro lado da personalidade de Gernot depois do jantar. Na hora livre, a equipe de Belfast desafiou a

equipe de Barcelona para um jogo de charadas bíblicas no salão. Gernot teve de fazer o papel de Balaão e sua mula falante.

De alguma forma, ele conseguiu ser o anjo, a mula e Balaão em tempo recorde, e sem falar uma só palavra. Todos riram até

não poder mais.

As charadas acabaram sendo ótimas para aliviar a tensão da semana. Cris riu e se sentiu cheia de vida, sobretudo ao

observar Douglas fazendo o papel de Moisés a descer o monte Sinai com os Dez Mandamentos. Era como nos velhos

tempos. Ele riu e depois de desempenhar seu papel, sentou-se no sofá, ao lado de Cris, passando o braço sobre os ombros

dela. Cris sentiu que tudo estava normal, do jeito que vinha sendo nos últimos meses. Será mesmo que ela estava do outro

lado do mundo, na Inglaterra?

Fora bom terem realizado a brincadeira das charadas, naquele dia, pois o resto da semana foi de correria sem

trégua. Cris passou a quarta-feira preparando o programa das crianças. Ela e Katie ensaiaram o trabalho com os fantoches

durante quase duas horas. Após o almoço, Cris e Gernot passaram a história bíblica. Tiveram boas idéias sobre como fariam

para mesclar a apresentação dos fantoches com a história bíblica para tornar tudo mais interessante e divertido.

Na quinta-feira de manhã, Cris sentiu que estava e tudo estava certo para apresentar à equipe sua parte no

programa. Sentia-se animada, tranquila e confiante.

Primeiro, Katie, Selena e Stephen apresentaram sua dramaticidade ao grupo. Foi impressionante. Os três atuavam

muito bem, juntos, e a lição da peça ficou clara sem ser exagerada.

- Alguém tem alguma sugestão? perguntou Douglas ao grupo depois que terminaram.

- Stephen, no início você estava um pouco de costas para o auditório, observou Gernot. Não dava para ver direito o

que vocês estava fazendo.

- Está certo. Vou me lembrar disso.

- Mais alguma coisa?

- Foi muito bom. Eu senti aqui dentro, disse Trícia, colocando a mão no rumo do coração. Apesar de eu já saber o

que vocês iam fazer.

- Foi fabuloso! concordou Cris.


Ficou a pensar em como o grupo estava coeso e como tudo ia dando certo.

- Pronto, Ian, agora é sua vez, disse Douglas.

Quando Ian se pôs de frente para eles, Cris percebeu o quanto as aparências enganam. Ian parecia tão quietinho,

cara de professor sisudo, mas quando apresentou a mensagem, todos fizeram silêncio, absortos em suas palavras. Em

menos de quinze minutos, ele apresentou o evangelho de modo poderoso e fez o apelo para quem quisesse saber mais a

respeito dele. A equipe começou a dar uma salva de palmas espontâneas quando ele terminou.

- Gente, isso aqui é de empolgar! exclamou Douglas. Ian, foi perfeito. Não mude uma só palavra. Agora, lembrem-se

de que a mensagem fica por último, e Ian vai dizer que, se alguém quiser conhecer mais a respeito de Deus, pode ficar e

conversar com qualquer um de nós.

Todos fizeram que sim.

- Agora é sua vez Cris.

De repente ela se sentiu despreparada. Todos os outros tinham feito tudo tão bem! E se ela errasse tudo? Procurou

suas anotações e percebeu que as tinha deixado no quarto, tão confiante que estava.

- Vamos fazer os fantoches primeiro?

- Claro, disse Douglas.

Katie ajudou Cris e as duas enfiaram as mãos nos fantoches, que pareciam personagens da Vila Sésamo. Fizeram a

apresentação conforme tinham ensaiado. Tudo correu bem. Todos acharam que havia sido maravilhoso e riram nos

momentos certos, mas Cris estava tão nervosa, que não teve certeza de haver dito tudo o que precisava. Enquanto falava,

ela tentou imaginar que em vez de estar diante de seus amigos via a carinha das crianças, e começou a se acalmar.

- Bom trabalho, elogiou Douglas quando ela se sentou. Parece que nossa equipe realmente é ótima, gente. Agora, a

musica. Nós vamos cantar um corinho com a congregação toda, mas vamos ensaiá-lo amanhã. Além disso, eu e a Trícia

vamos apresentar um dueto antes da mensagem. Pronta, Trícia?

Ela se posicionou ao lado de Douglas. Ele fez uma introdução no violão e em seguida os dois começaram a cantar

em perfeita harmonia. Era uma música que Trícia compusera nas férias passadas e que dizia que Deus nunca desiste de nós

e espera que o convidemos a entrar em nossa vida. Mesmo reconhecendo que todos haviam apresentado excelentes

trabalhos, havia algo na apresentação do Douglas e da Trícia que era muito comovente. A música era muito harmoniosa e a

letra era comovente e poderosa. Cris reteve o fôlego quando deram a nota final. Assim que terminaram, houve uma pausa

de alguns segundos antes de alguém abrir a boca. Bater palmas parecia falta de respeito.

- Foi a canção mais linda que já ouvi, disse Selena. Se eu não fosse crente, estaria disposta a me entregar a Cristo

depois dessa. Vocês dois sempre cantam juntos?

- Não, disse Trícia, enrubescendo.

Douglas passou o braço em torno dela e lhe deu um abraço.

- O que foi que eu lhe disse? Somos uma equipe fabulosa!


Naquela noite, enquanto tentava dormir, Cris rememorou a cena. Douglas estava dizendo que a equipe inteira era

fabulosa? Então por que ele estava olhando para Trícia e abraçando-a enquanto falava?

Cris não cantava bem, pelo menos não como Trícia. Ás vezes Cris e Douglas cantavam juntos no carro só de

brincadeira, mas sua voz não soava daquele jeito, não era como a de Trícia cantando ao lado de Douglas.

De repente, como uma imensa onda se quebrando sobre ela e puxando-a com toda força, Cris ficou furiosa com

Trícia. Teve vontade de estender o braço até a cama dela, ao lado da sua, sacudi-la e gritar com ela, dizer que ela não tinha

direito de ficar tão próxima de Douglas. Mas estava zangada demais para chorar. E sentida demais para pensar com clareza.

Como Trícia podia fazer uma coisa dessas com ela?

Mas fazer o quê? A única coisa que tinham feito fora cantar juntos. Trícia nada fizer a de errado. O que será que

estou pensando?

Ela rolou na cama e lutou contra o que já sabia ser a verdade. Uma voz fraquinha sussurrava em seu ouvido. Ela já a

escutara antes. Uma vez, no colegial, ela ouvira essa voz dizendo que devia desistir de ser líder de torcida. E a ouviu outra

vez na praia de San Clemente, quando devolveu a pulseira de chapinha para o Ted. Em ambas as ocasiões, a voz indicou os

passos que deveria tomar. Cobriu então os ouvidos com o travesseiro, para que a estranha voz fosse embora e a deixasse

em paz.

- Esqueça, Deus! murmurou.

Mas em seguida começou a derramar lágrimas amargas, e se corrigiu.

- Perdoe-me. Na verdade eu não odeio a Trícia. Estou arrependida.

Isso foi o suficiente para aliviar a dor e dar-lhe uma noite de sono inquieto. Seu subconsciente lhe dizia que as

lágrimas não eram de raiva da Trícia. Eram lágrimas há muito reprimidas por ter perdido o Ted. Eram lágrimas de

nervosismo ao pensar que estava prestes a perder o Douglas. E depois, o que faria? Não havia mais ninguém.

Sir Douglas, o Sincero


8

No dia seguinte, Cris evitou conversar com seus companheiros, principalmente com a Trícia. Não foi difícil, por que

todas no quarto dormiram demais e tiveram de correr muito para chegar a tempo do café da manhã. Era o último dia antes

do trabalho evangelístico local e todos tinham muito que fazer, para colocar tudo em ordem.

Cris sentou-se ao lado da Selena no café, e Douglas à sua frente. Foi um alívio ver Trícia entrar e sentar-se em outra

mesa sem entreolhar-se com qualquer um deles.


Depois do café houve uma hora para devocionais e uma hora silenciosa, individual, que Cris passou escrevendo

cartões-postais para a família, dando informações superficiais, tentando parecer animada, como se tudo estivesse às mil

maravilhas. Juntou em seguida o material das crianças e foi para o local da reunião da equipe, pois queria ser a primeira a

chegar lá. Os outros chegaram alguns minutos depois. Todos, menos Trícia.

Douglas pediu ao Stephen para iniciar a reunião com uma oração. Ele parecia estranhamente sério e pigarreou

várias vezes antes de falar.

- Tenho uma comunicação a fazer, disse ele.

Cris sentiu o coração dar um salto.

- Trícia pediu que a transferissem para outra equipe, disse Douglas.

Ele simplesmente deu a informação sem maiores explicações ou comentários pessoais.

Foi um choque para Cris. Não dissera uma palavra a Trícia. Tinha pedido a Deus que lhe perdoasse por sua raiva, e

nada fez para dar a Trícia a impressão de que ficara zangada com ela. Não podia ser por culpa dela.

- O que há de errado? perguntou Gernot. Por que ela quer mudar de equipe?

Douglas deu de ombros.

- Só sei que ela pediu.

- Temos que nos reunir agora mesmo? perguntou Selena. Não dava para fazer um pequeno intervalo e a gente se

reunir logo depois do almoço?

- Boa idéia, concordou Ian.

- Está certo, disse Douglas. Nós nos encontraremos aqui, assim que terminarmos de almoçar.

Cada um foi para o seu lado, a não ser Cris e Douglas. Ele sentou-se cabisbaixo, e Cris nem tinha certeza de que ele

sabia que ela estava ali de pé.

- Talvez devamos fazer aquela caminhada agora, disse ele, sem olhar de frente para ela.

- Claro, disse ela, timidamente.

Será que ele estava zangado? Sentido? Não dava para ela saber.

Cris pegou a sombrinha, vestiu o casaco e esperou Douglas se levantar. Estava se sentindo muito mal interiormente.

Certamente a Trícia deixara a equipe por causa dela. Era a única explicação que podia imaginar. Talvez houvesse alguma

coisa muito forte acontecendo entre ela e o Douglas. Cris sabia que Trícia preferiria assumir sozinha a responsabilidade por

tudo e sacrificar-se a si mesma para não causar problemas de relacionamento entre as pessoas.

Douglas andou a esmo e em silêncio pelo castelo, depois ele e Cris tomaram a saída da frente e caminharam na

direção do campo, em silêncio. Então chegaram à ponte de pedra que atravessava o riacho e ligava o campo à floresta.

Cris lutava consigo mesma sobre o que deveria dizer, pensar ou sentir. Queria que Douglas falasse primeiro. Ele

continuou em silêncio.

Pararam na ponte. Ele jogou uma pedrinha na água espumante.


- Não tenho sido justo com você, Cris, disse finalmente Mas não falou mais nenhuma palavra. Cris não sabia o que

pensar.

- O que você quer dizer com isso, Douglas? Mais um instante de silêncio, aí ele perguntou:

- A Trícia lhe falou por que nós terminamos o namoro?

- Não.

- Foi por causa de uma carta que ela me escreveu. Na verdade, uma poesia.

Cris lembrou-se do comentário de Trícia, feito algumas noites antes, dizendo que achava uma boa idéia guardar

todas as suas cartas em segredo. Estava começando a entender. Certamente Trícia gostava mais do Douglas do que ele

gostava dela, e tinha revelado seus sentimentos numa carta.

- Sabe, continuou ele, foi há três anos e eu não estava preparado para namorar a sério com ninguém. Além do mais,

eu tinha essa coisa com você.

- Essa "coisa"?

- Espero que você me entenda, Cris. Douglas parecia um garotinho.

- Quando alguma coisa nos parece inatingível, às vezes a gente começa a desejá-la tanto, que não descansa

enquanto não consegue conquistá-la. Faz sentido?

- Você quer dizer que eu era inatingível?

- Sim, de certa forma. Por muito tempo você só se interessou pelo Ted, e quanto mais eu via vocês dois juntos, mais

achava que eu seria um namorado melhor para você do que ele. Não quero magoá-la ao dizer isso, Cris.

Cris respirou fundo e olhou de frente para Douglas.

- Você não precisa dizer mais nada, Douglas. Eu entendo e concordo com você. Devemos terminar.

- Terminar? Parece tão duro quando você fala desse jeito. Não é o que eu quero.

- Olhe, disse ela, calmamente. Eu e você somos bons amigos há muito tempo. Devíamos saber que seria melhor

continuarmos amigos e não tentarmos nada além da amizade.

- A culpa é minha. Você estava certa quando disse que não devíamos namorar. Eu era turrão. Tentando provar

alguma coisa a mim mesmo, certamente. Me perdoe, Cris.

- Não há nada a perdoar, Douglas. Quer dizer, pensando bem, mesmo depois que começamos a namorar,

continuamos agindo do mesmo jeito - como se fôssemos apenas bons amigos. Admiro você por não ter me beijado. Agora

fica mais fácil terminar.

Douglas abanou a cabeça.

- Não gosto de dizer que estamos terminando, comentou.

- Então o que estamos fazendo?

- Não sei. O que estávamos fazendo? Quer dizer, por que eu esperei tanto e a pressionei tanto para sair comigo? Eu

sou um chato.
- Não é, não. Não é assim que vejo as coisas, Douglas. Acho que nós dois precisávamos testar o relacionamento para

ver se havia algo mais nele. Não havia. Somos bons amigos, e pronto. Você está livre, Douglas. Não me deve nada. Nem um

pedido de desculpas. Eu o admiro e aprecio. Acho que você é um cara excepcional.

- E você é uma moça incrível, Cris. É esse o problema. Sempre a admirei, e durante muito tempo pensei que talvez

pudesse haver algo mais entre nós. Quer dizer, um grande amor.

Cris comprimiu os lábios e olhou a água correndo embaixo da ponte. Tinha de admitir que gostava do Douglas, mas

ele nunca lhe causara a menor emoção. Era humilhante saber que ela também nunca mexera com ele a fundo. Mas essa

sinceridade era muito boa. Boa mesmo. Os sentimentos eram mútuos. Era um pena não terem sido capazes de confessá-los

um ao outro mais cedo.

- Sinto como se estivesse ainda no primeiro grau, desabafou Cris.

- Acho que quando se fala em emoções num sentido mais íntimo, nenhum de nós vai muito além do nível de pré-

adolescentes. Só achamos que somos adultos porque aprendemos a jogar jogos mais complicados. Sinto muito ter jogado

este com você por tanto tempo. Nunca quis magoá-la.

- Eu sei, disse ela, sentindo lágrimas quentes a em encher-lhe olhos. E já que estamos sendo sinceros, preciso lhe

dizer que também brinquei nesse jogo. Para mim, era mais fácil manter as coisas do jeito que estavam do que soltar você,

porque aí eu não teria mais ninguém.

Douglas, o conselheiro de coração bondoso, abraçou-a e disse:

- Eu sempre serei seu amigo, Cris. E agora, que renovamos nossa amizade, com base na sinceridade, na

transparência, sinto que posso honrá-la. E você pode me honrar.

Cris ficou imóvel por um longo instante, a cabeça apoiada no ombro de Douglas, a vista, meio embaçada, vagando

pelo campo, além do riacho. Reconheceu nele o mesmo campo que ela e Trícia tinham avistado de uma janela do castelo.

Era o campo onde Cris imaginara um cavaleiro portando uma armadura brilhante, montando um belo cavalo prestes a

invadir o castelo e levar a princesa. Agora ela estava ali, tremendo sobre a velha ponte, liberando o seu cavaleiro de faz-de-

conta.

- Ajoelhe-se, disse ela de repente. Ajoelhe, Douglas. Douglas obedeceu em silêncio, dobrando-se lentamente, o

olhar confuso de quem nada entendia.

- Eu te declaro Cavaleiro, Sir Douglas, o Sincero, disse Cris, tocando-lhe de leve o ombro com a sombrinha fechada.

Põe-te de pé, gentil amigo. Acredito que uma princesa verdadeira te aguarda no castelo.

Douglas ergueu os olhos. Nenhuma palavra mais foi trocada por eles, apenas sorrisos de admiração, entre dois bons

amigos.

- Quer voltar? perguntou ele, levantando-se.

- Na verdade, quero passar aqui alguns momentos a sós. Pode ir. Você e a Trícia têm uma vida a compartilhar agora.

Douglas saiu em disparada pelo campo. Cris sorriu de novo, achando que esse "cavaleiro" não precisava nem de
cavalo branco.

Ficou ouvindo o borbulhar do riacho e o gorjear distante de um passarinho solitário na floresta, e sentiu um arrepio

de contentamento. Tinha agido certo. Reconhecia que não tinha mais sentimentos confusos e ocultos, enterrados no

coração. Douglas e Trícia combinavam bem um com o outro e eram o tipo de casal que Deus usaria para estender o seu

reino aqui na terra. Saindo do nada, de repente sobreveio-lhe um forte sentimento de perda. Ela não tinha ninguém. Katie

estava certa naquela noite quando dissera a Selena que Cris sempre tinha um rapaz em sua vida. Mesmo quando terminou

com o Ted, lá estava Fred, fazendo-lhe "as honras da casa". Não importava se ela não gostava dele. O que importava é que,

durante mais de quatro anos, Cris sempre teve algum rapaz em sua vida. Agora não havia ninguém. Ninguém que lhe

despertasse interesse, e ninguém interessado nela. O vazio interior pareceu não ter fim.

Começou a chuviscar. Cris abriu a sombrinha e bateu os pés para aquecer-se. Agora sentia frio de verdade, por

dentro e por fora. Nem mesmo uma xícara de chá agora iria melhorar as coisas.

O bosque desolado do outro lado da ponte convidava-a a correr e se esconder entre os espinheiros. Ela poderia

passar dias ali, e ninguém saberia.

O frio que sentia nos pés fez com que despertasse desses devaneios dramáticos e caminhasse de volta ao castelo.

Nuvens finas agora cobriam as torres mais altas do castelo. A casa estava fria e sombria, do jeito que ela se sentia por

dentro.

Quando chegou à porta da frente, viu a cabeça de leão de bronze. A argola ainda estava entre seus dentes cerrados.

Talvez ela estivesse contente por não precisar mais se agarrar ao Douglas, sentimentalmente. Talvez agora estivesse livre.

Livre para quê? Para conhecer outro rapaz? Livre para continuar a vida sem nenhum rapaz? E se não houver mais

ninguém? Se eu nunca conseguir um namorado na vida, e morrer solteirona?

Cris fez um afago no focinho do leão e sacudiu a sombrinha antes de entrar. Sentiu o cheiro do almoço e entrou em

silêncio no refeitório, onde a maioria dos estudantes já acabava de comer.

- Pode-me passar o chá por favor?

Sentou-se no primeiro lugar vago que encontrou, bem ao lado da porta. Douglas estava de costas para ela, três

mesas à frente, e Trícia sentada ao lado dele. Cris concluiu que os dois haviam conversado. Tudo entre eles agora estava

resolvido e o relacionamento deles poderia firmar-se. A equipe teria unidade novamente. Tudo estaria ótimo.

Simplesmente maravilhoso

Ela tomou um gole de chá e recolocou a xícara no pires bem depressa. Estava morno e forte demais.

- Com licença, disse ela, afastando a cadeira.

Cris saiu do refeitório tão depressa quanto o apetite que havia sumido. Subiu correndo as escadas, retirando-se

para o quarto, onde trocou de roupa, começando pela meia molhada. Estaria melhor, se se enxugasse e vestisse uma roupa

um pouco mais quente. Quando amarrava as botas, Selena entrou. Parecia surpresa por vê-la.

- Você está aí! Estava imaginando onde estaria. Almoçou?


- Não estava com fome. Caminhei nas imediações do riacho e tomei uma friagem de amargar. Só vim colocar uma

roupa seca.

- Douglas cancelou a reunião da tarde. Temos de arrumar as malas para sairmos às 6:30 da manhã. Acho que uma

soneca ia bem.

- Realmente, vai bem dormir um pouco.

- Ah, e você soube? indagou Selena tirando os sapatos e enfiando os pés debaixo dos cobertores. A Trícia voltou

para a equipe. Não sei qual era o problema. Douglas disse que ela mudou de idéia no almoço e vai ficar conosco. Só disse

isso e ficou ali com cara de pateta, sorrindo. Cris, vou lhe contar, isso aqui está parecendo uma novela!

- Eu terminei com o Douglas, desabafou Cris. Ou melhor, nós dois concordamos em terminar o namoro e voltar a ser

apenas amigos.

- Está brincando! Cris, desculpe. Eu não sabia!

- Ele e a Trícia precisam ficar juntos.

Selena olhou admirada para Cris.

- Você é a pessoa mais nobre que conheço. Depois de tudo que a Katie me contou uma noite dessas e agora você

terminando o namoro para que ele e Trícia fiquem à vontade... Selena fez uma pausa.

Nesse momento a porta do quarto se abriu e Trícia e Katie entraram.

- Eu estava certa, disse Katie sacudindo seus cabelos ruivos, olhando para Cris e depois para Trícia. Eu não lhe disse

que ela estaria se escondendo debaixo dos cobertores? Eu tinha certeza!

Trícia foi para sua cama e sentou-se na beirada, olhando Cris. Seu rosto arredondado parecia muito delicado.

- D. Joanna, a cozinheira, vai à cidade daqui a pouco. Eu perguntei a ela se eu e você podíamos pegar uma carona

com ela. Há por lá um pequeno restaurante onde pensei que talvez pudéssemos tomar chá e aproveitar a oportunidade

para conversar.

Cris sabia que Selena e Katie estavam escutando, embora fingissem que olhavam uma coisa na cama da Selena.

Talvez fosse melhor se pudessem ir conversar noutro lugar.

- Claro. A que horas?

- Primeiro tenho de me encontrar com umas pessoas que vão participar da parte musical das outras equipes para a

gente terminar de escrever a letra dos corinhos. Que tal nos encontrarmos com a D. Joanna na cozinha às 2:30?

- Está certo. Estarei lá.

Trícia pegou um caderno na sua cama e foi correndo para a reunião.

- Está tudo bem com você? perguntou Katie, voltando toda a sua atenção para Cris. Cris suspirou fundo.

- Sinto-me uma burra total. Por que comecei a namorar o Douglas? Não tinha nada a ver comigo!

- Quer fazer parte do nosso clube? perguntou Selena. Eu e Katie vamos iniciar um clube chamado Caixa A. A.

- É, acrescentou Katie com um brilho nos olhos verdes. A. A. quer dizer “Apenas Amigos" e "Caixa" significa as caixas
de sapato onde vamos começar a guardar cartas.

Cris sorriu abanando a cabeça.

- Vocês são demais. Uma piada!

- E então, que é que acha? Não vale a pena sofrer tanto por causa dos rapazes. Para nós são "apenas amigos", disse

Selena.

Selena e Katie bateram um "toque aqui" em sinal de camaradagem.

- A. A., disse Selena.

- É isso aí, A. A. reina para sempre!

Cris levantou a mão direita no ar. Katie também ergueu a mão e deu uma batida no alto, na mão da amiga. Selena

atravessou o quarto correndo e fez o mesmo sinal. Com um grito de guerra, exclamou:

- Sócia número três! Viva! A. A. para sempre!

Cris tinha de rir.

- Vocês estão vibrando como os “Alcoólicos Anônimos", celebrando a recuperação de um companheiro. Katie

disparou a rir.

- É isso aí. É a nossa arma secreta para manter os rapazes afastados. A. A. para sempre!
O Jardim do Coração
9

A primeira coisa que Cris notou quando ela e Trícia entraram no carro de D. Joanna é que o volante estava do lado

"errado". Não tinha notado isso no carro que as levara da estação de trem até o castelo na primeira noite porque viajara no

banco traseiro. Agora parecia estranho, porque ela estava sentada na frente, no lugar do passageiro, que era na verdade

onde ela se sentava para dirigir seu carro em sua terra.

Mais estranha ainda era a sensação de descer a estrada rural pelo lado errado, com carros pequenos e velozes

passando por elas no lado oposto.

- É um lindo passeio, disse Trícia. Muito obrigada por estar nos levando.

- Não há de que, respondeu a D. Joanna. Eu levo vocês até a casa de chá e depois, se concordarem, passo lá para

apanhá-las às quatro e trinta.

Cris achou estranho o jeito como ela disse "apanhá-las às quatro e trinta".

- Excelente. Muito obrigada, disse Trícia.

Continuaram pela estrada estreita. Passaram por baixo de uma ponte, dobrando ao lado de um muro de pedra

coberto de musgo e passando por dois homens calçando botas pretas de cano longo, casacos e chapéus escuros, montando

cavalos muito altos.

Não havia dúvidas de onde estavam. Cris sempre imaginara a zona rural inglesa assim. Seu único sonho era voltar na

primavera, ou até mesmo no verão, quando os campos estariam cobertos de grama verde, pontilhadas de ovelhas

branquinhas, e as árvores exibindo sua roupagem de gala, a exuberância de sua folhagem. Devia ser absolutamente lindo

então.

Assim que chegaram na cidade, D. Joanna parou o carro num espaço estreito para que as meninas descessem.

Pararam em frente de um prédio onde uma placa dizia: Casa de Chá O Bule Feliz.

- Então, quatro e trinta?

- Sim, até lá, respondeu Trícia e, com um aceno, disse adeus.

Um sininho pendurado na porta tocou alegremente quando entraram no restaurante. Uma música clássica,

reconfortante, enchia o ar. Havia na pequena sala cinco ou seis mesas redondas com um vaso de flores alegres e uma

toalha de renda branca em cada uma. Nas paredes viam-se muitas fotos e quinquilharias. Uma estante de livros, guarnecida

com um friso de madeira de fino lavor, estendia-se de uma parede à outra, próxima ao teto. Na prateleira havia livros

antigos, pratos de porcelana e fotografias em porta-retratos de estanho; em um canto da sala um majestoso relógio de

pedestal que deu três batidas na hora que elas se sentaram.

Por um momento Cris se esqueceu que tinham ido ali para ter uma conversa franca, de coração aberto. Estava

encantada com esse lugar antigo.


- Você não acha lindo isso? cochichou à Trícia. Parecia que tudo à volta dela era calmo e quieto.

- É uma gracinha, concordou Trícia. Tão diferente!

Uma senhora gorda, de avental azul, aproximou-se da mesa na hora em que mais duas mulheres de chapéu

entravam e sentavam-se à mesa, no outro lado.

- Queremos um pouco de chá, disse Trícia, pedindo pelas duas.

- E um docinho para a senhorinha? perguntou a senhora.

Ela parecia um personagem de um dos livros infantis da Cris, que quase esperava que ela oferecesse cerejas

cobertas de chocolate, como na história da Srt.a Rosey-Posey. Em vez disso, ela ofereceu-lhes torta de maçã ou scones* de

passas de uva.

__________________

* Scones: quitanda tipicamente inglesa, um misto de bolo, biscoito e pão de minuto. (N.da T.)

- Eu aceito os scones, disse Cris, que não sabia o que eram, mas achou que devia ser algo tipicamente inglês, como

torta de maçã.

- Eu também.

- Creme de leite para ambas?

Cris achou que queria dizer creme para o chá e disse sim, mas acabou foi recebendo uma tigela de creme de

chantilly para acompanhar os scones.

- O que fazemos com o chantilly? perguntou ela quando a mulher se afastou.

- Acho que é para comer com isso. Parecem pãezinhos ingleses, mas um pouco mais maçudos, como biscoito. Trícia

abriu seu scone e colocou chantilly dentro.

- Humm! Que delícia! exclamou.

Cris preparou seu chá a gosto, com leite e açúcar, e acompanhou Trícia, colocando chantilly no scone. Era mesmo

uma delícia. Sentia-se como uma menina que estivesse brincando de "tomar chá" vestida com as roupas da mãe, fazendo

uma festa de chá de bonecas. Será que a Trícia também se sentia assim?

- Foi bom a gente ter vindo aqui. É um lugar agradável, calmo, para conversarmos.

Cris concordou, lambendo um pouco de chantilly do lábio superior e pensando se deveria tocar no assunto a

respeito do Douglas. Não sabia o que dizer. Estava na cara que Trícia já tomara conhecimento de que não estavam mais

"juntos", e que ele tinha liberdade de procurá-la. Não havia muito que conversar.

- O Douglas lhe contou por que terminamos daquela vez?

- Ele me disse que você escreveu uma carta, mas que ele não estava querendo um relacionamento sério com

ninguém. Eu me lembrei do que você falou naquela outra noite no quarto, e calculei que você tivesse derramado o coração
naquela carta e ele como que a rejeitou.

- Bom, eu não senti como se ele estivesse me rejeitando, disse Trícia com cautela. Ele apenas se afastou. Desistiu.

Então resolvemos acabar o namoro. Foi uma decisão mútua, mas nunca conversamos sobre o que eu tinha escrito.

Ela bebeu um pouco do seu chá, e depois continuou.

- O Ted sempre dizia que o cara é que tem de tomar a iniciativa, e a garota aceitar ou não. Você sabia? Bem, foi mais

ou menos o que aconteceu. Eu escrevi uma poesia para o Douglas e estava tomando muito as iniciativas. Nos últimos três

anos tenho ficado para trás, imaginando se eu teria outra chance de reagir sem tomar a dianteira.

Cris lembrou-se do que Katie dissera sobre o Douglas - que o amor dele era paciente. Se o Douglas era paciente,

Trícia tinha sido ainda mais. Estava na cara que Douglas de há muito significava bastante para ela, mas Trícia guardara tudo

dentro do coração e esperara. O que Cris mais admirava era que Trícia nunca houvesse demonstrado nem uma pontinha de

ciúme para com ela quando do namoro com Douglas.

- O que eu queria saber, Cris, se você não ficar chateada de me dizer, é por que você terminou com o Douglas.

- Primeiro, quero lhe perguntar uma coisa. Por que você pediu para ir para outra equipe?

As lágrimas começaram a encher os olhos castanhos de Trícia.

- Depois que eu e o Douglas cantamos juntos ontem à noite, compreendi que não agüentaria mais. Eu não podia

ficar perto dele e continuar escondendo meus sentimentos. Umas duas vezes nesta viagem eu e o Douglas estivemos

sozinhos. Como quando ensaiávamos. Ele me disse umas palavras muito bonitas, e eu tive a impressão de que ele sentia

por mim algo mais do que havia demonstrado.

De repente Cris sentiu-se traída. Douglas chegara a dar atenção a outra enquanto era seu namorado. Sua expressão

deve ter refletido sua indignação, porque Trícia disse:

- Ele nunca disse nada, nem falou contra você. Era mais a impressão de que talvez gostasse de mim. Era complicado

e eu não queria magoá-la de jeito nenhum, Cris. Nem ferir ao Douglas nem a mim mesma. Achava que seria mais fácil se eu

me afastasse.

- Mas era eu quem devia se afastar, não você, disse Cris. E para responder à pergunta sobre por que terminei o

namoro, foi porque se tornou evidente, para nós dois, que o relacionamento com ele não ia dar em nada, nunca ia passar

de uma boa amizade. Foi até bobeira dizer que estávamos namorando, porque não nos sentíamos "namorados" nem

agíamos assim. Reconheci isso na noite em que Selena se surpreendeu quando soube que éramos namorados. Não

estávamos sendo completamente sinceros um com o outro. No fundo, nenhum de nós se sentia "namorando" o outro, e

nenhum de nós agia assim.

Trícia envolveu as mãos na xícara de chá como se as quisesse aquecer. Olhando para Cris, disse:

- Tem certeza? Certeza mesmo?

- Completamente. Acho que vocês dois têm mais é que ficar juntos. É incrível como demoramos tanto para perceber

isso. Trícia sorriu.


- Não dá para lhe dizer como estou contente neste momento. Quando o Douglas me procurou, pouco antes do

almoço, eu estava perto das roseiras, voltando da capela. Ele correu pela relva, me chamando. Nunca vou me esquecer da

cara dele. Ele me contou como foi a conversa com você e que você o chamou de Sir Douglas, o Sincero, e perguntou se eu

estava disposta a destrancar o portão do jardim, porque desta vez ele estava querendo entrar.

Trícia parecia ter estrelas nos olhos ao dizer isso.

- Ele se referia ao jardim de rosas? Não tem portão lá.

- Não, ele se referia à poesia que eu tinha escrito três anos atrás.

- Uma poesia?

- É, a carta era uma poesia. Quer ouvir?

- Você sabe de cor? disse Cris erguendo o bule de prata e servindo chá para as duas.

- Acho que sei. Vou tentar e vamos ver o que consigo.

Dentro do meu coração cresce solto

um jardim de violetas e perfumadas rosas.

Alegres narcisos do prado se alinham ao longo do estreito caminho,

silentes a ouvir meus passos.

Doces tulipas acenam em repouso;

eu me ajoelho e busco em Deus o bem maior.

Pois em volta do meu jardim há uma cerca firme

que guarda meu coração para eu decidir

quem pode entrar, e quem deve esperar, do outro lado da cerca...

Prendo a chave no pescoço

e indago se a hora é já.

Se hoje o portão se abrisse,

você entraria ou embora iria?

Cris ficou parada, maravilhada com a poesia.

- Foi você que a escreveu?

- Um tanto ousada, não acha?

- Acho linda, disse Cris.

- Bem, quando a dei para o Douglas há três anos, acho que o assustei. Ele fugiu. Mas guardou-a na memória, disse

Trícia, voltando para Cris o olhar sonhador. É por isso que ele disse hoje que se eu abrisse o portão do meu jardim, ele

entraria.
Cris tomou seu chá, pensando nas palavras da amiga.

- Isso é tão romântico que nem acredito! Por que você deixou que eu ficasse entre vocês dois todo esse tempo? Eu

não tinha a mínima idéia de tudo isso!

Trícia encostou-se mais à mesa.

- Se eu lhe tivesse falado sobre meus sentimentos para com o Douglas, você teria se afastado e nunca o teria

namorado.

- Isso não teria a menor importância.

- Não. Você não entende? As coisas tinham de seguir o curso natural. O Douglas tinha que namorá-la para saber

com certeza se poderia haver algo entre vocês. E você também precisava saber se havia alguma possibilidade de romance

com ele. O Douglas tem um coração muito puro e sincero. Não foi difícil esperar. Bem, até ontem à noite. Depois daquele

dueto eu achei que fosse me arrebentar!

As duas amigas terminaram de tomar o chá, pensando nos acontecimentos dos últimos dias, meses e anos.

- Katie tinha razão, disse Cris. Deus é esquisito. O jeito dele fazer as coisas é tão estranho!

Um sorriso cobriu o rosto de Trícia:

- Eu não iria querer que Deus fosse de outro jeito.

- Você me promete uma coisa? pediu Cris.

- Claro! O quê?

- Se, ou melhor, quando você o Douglas se casarem, posso ser sua dama de honra?* Quero ver de camarote quando

ele beijá-la pela primeira vez.

___________________

* Entre norte-americanos e ingleses, não há padrinhos de casamento. A noiva escolhe as damas ou acompanhantes

entre suas melhores amigas, para fazerem parte na cerimônia de casamento, por isso a "dama de honra" não é uma

criança, mas uma moça ou até uma senhora, amiga da noiva. (N. da T.)

Trícia deixou explodir uma risada e as senhoras do outro lado da sala olharam as duas com jeito de censura. Trícia

pegou então, rapidamente, o guardanapo branco e o levou à boca para abafar o som.

- Você é uma amiga de verdade, Cris. Se nós nos casarmos, é claro que adoraria que você fosse uma de minhas

damas. Desde que prometa que serei sua dama no seu casamento.

Toda a alegria, todo o deslumbramento de Cris dissipou-se naquele momento. Não conseguia imaginar que para ela

houvesse casamento. Não dava nem para imaginar que seus sentimentos por algum homem pudessem manifestar-se de

novo. Mas podia se imaginar de pé junto ao portão do jardim do coração, verificando se estava trancado. Tinha vontade de

engolir a chave.

- Alô, meninas! soou a voz alegre da D. Joanna atrás delas.

- Ah, já é hora? perguntou Cris, olhando o relógio antigo no canto da sala. Tomara que não a tenhamos feito
esperar.

- De maneira alguma. Tenho de arranjar algumas coisas no porta-malas; por isso me encontro com vocês lá no carro

quando vocês tiverem terminado.

Trícia e Cris calcularam quanto pagariam pelo agradável chá e pagaram a conta. Lá fora notaram que D. Joanna

estava organizando uma variedade de caixas e pacotes como verdadeiro quebra-cabeças no porta-malas do carro.

- Precisa de ajuda? perguntou Trícia.

- Esses pacotes não estão cabendo direito no porta malas.

- Posso levar algumas coisas no meu colo, no banco traseiro, ofereceu-se Trícia.

- Na verdade, é minha vez de viajar atrás, disse Cris. Eu levo.

- Brilhante.

D. Joanna fechou o porta-malas e entregou vários pacotes a Cris, que os equilibrou no colo, assim que conseguiu se

enfiar no já lotado banco traseiro.

Foram pela estrada rural com D. Joanna e Trícia tagarelando o tempo todo. Cris carregou os pacotes em silêncio. Era

aqui que ela tinha de ficar, no banco traseiro da Trícia, que durante anos ficara no banco de reserva dela. Era uma

experiência humilhante.

Uma vez no castelo, as duas garotas correram para preparar tudo pois partiriam para Noelsbury na madrugada

seguinte.

- Será que devemos levar uma muda de roupa?

- Estaremos de volta amanhã à noite. Acho que só precisamos de um casaco e do material de evangelismo.

- Não sei como guardar esses imensos fantoches e o material de trabalhos manuais, comentou Cris.

De repente ela teve uma idéia. Forçou tudo dentro de sua mala e fechou o zíper. Com o cabo de puxar e as

rodinhas, certamente, seria fácil subir e descer do trem.

- Brilhante! exclamou Trícia, olhando a mala.

- Brilhante. Não é uma palavra engraçada? Todo mundo por aqui vive dizendo. É melhor tomar cuidado, ou o

Douglas vai substituir "maravilhoso" por "brilhante".

Trícia sentou-se na beira da cama e passou a escova no cabelo, verificando seu reflexo num pequeno espelho de

mão oval. Cris reparou como Trícia era bonita, doce, bondosa e perfeita em tudo para o Douglas.

A conversa com ele na ponte parecia ter acontecido há séculos. Muita coisa tinha mudado nos seus sentimentos

depois disso e depois que ela passou a conhecer o jardim do coração da Trícia.

Mas uma coisa não mudara: a dor aguda que sentia no profundo do seu coração: a dor da solidão.

A Verdadeira Princesa
10
- Tinha de chover, murmurou Cris.

Ela estava na pequena estação com os outros membros de sua equipe, esperando que o pastor anfitrião chegasse e

os levasse até a igreja para o trabalho de evangelismo. A viagem de trem levara pouco mais que duas horas, e embora fosse

quase nove da manhã, ainda se sentia como se fosse noite.

Uma van vermelho-vivo chegou ao estacionamento e um homem de capa de chuva preta desceu e correu para a

estação.

- Vocês chegaram! Desculpem fazê-los esperar. Sou o Reverendo Allistar.

Douglas o cumprimentou e apresentou a todos.

- Então vamos? disse o pastor, abrindo a porta da estação para que saíssem em meio à chuva torrencial.

- Deixe eu levar isso para você, Cris, ofereceu-se Douglas, pegando a mala com os fantoches.

Ele sorriu. Ela ficou aliviada. Parecia que tudo voltara ao normal. Era tão natural que fossem amigos. Também fora

natural ver Trícia sentada ao lado dele durante a viagem e Douglas estar com o braço atrás das costas dela, escutando-a

com toda a atenção.

A equipe teve de se apertar para caber na van. Ainda bem que o percurso até a igreja foi só de quinze minutos. Ao

chegar, todos saíram na chuva de novo. Assim que entraram na pequena igreja, uma construção de pedras, Gernot

entregou a mala a Cris.

- Eu vou ajudá-la no trabalho com as crianças, já que pode ser que os outros não queiram jogar futebol nessa chuva.

- Brilhante, disse Douglas, que ouviu a conversa entre Cris e Gernot.

Trícia e Cris caíram na gargalhada.

- Temíamos que isso acontecesse, disse Trícia. Você está se transformando num homem "brilhante".

Douglas olhou no fundo dos olhos de Trícia. Os dois trocaram uma mensagem silenciosa. Cris sentiu-se um pouco

sem jeito.

- Na verdade, você sempre foi um homem brilhante, disse Trícia.

Douglas adorava receber elogios. Ele sempre sorria quando Cris o elogiava. Agora as palavras da Trícia o faziam

brilhar.

- Onde vamos fazer o trabalho com as crianças? perguntou Cris ao pastor, afastando-se de Douglas e Trícia.

- Venha por aqui.

Ele levou Cris e Gernot para uma grande sala carpetada.

- Fiquem à vontade para arranjar o ambiente da maneira que acharem melhor.

Gernot começou a mudaras cadeiras, criando um palco para os fantoches. Cris abriu a mala e tirou o material dos

trabalhos manuais. Daquele momento em diante, quase não parou o dia todo.

O primeiro grupo de crianças chegou com energia de sobra. A tarefa de Cris e Gernot era manter os pequeninos
ocupados enquanto os pais estavam no culto, no santuário. Como era uma igreja pequena, Cris se perguntou se lá no

corredor, não se ouviria o barulho das crianças. Mas, no final, o programa da manhã foi tranquilo. Ela ficou contente por ter

material de trabalhos manuais suficiente também para as crianças maiores, e sentiu-se feliz porque todos gostaram dos

fantoches.

Gernot salvou o dia nos últimos quinze minutos quando as crianças já começavam a ficar cansadas e com fome.

Conhecia uma série interminável de jogos de sala e as crianças vibraram. Após as reuniões da manhã, um almoço de frios

foi servido na cozinha da igreja. Douglas perguntou a Cris como fora o programa das crianças.

- Ótimo, graças ao Gernot. Mas precisamos de mais gente. Se mais alguém quiser nos dar uma mão no programa da

tarde, vai ser ótimo.

O trabalho recomeçou à 1:30 com novo grupo de crianças No começo não eram muitas. Cris pensou que talvez

fosse ser mais fácil do que o turno da manhã. Mas daí a pouco começaram a chegar mais crianças, e depois mais ainda. Não

demorou muito, o barulho na sala já era quase ensurdecedor. Resolveram passar diretamente para a história bíblica, se

conseguissem fazer as crianças sentar-se e ficarem quietas. Deu certo.

No meio da apresentação dos fantoches, Trícia e Selena entraram na sala e foram para os fundos.

- lan vai dar a mensagem agora, no início, explicou Trícia depois do show de fantoches, enquanto juntavam as

crianças em grupos de cinco para fazerem os trabalhos manuais. Temos um pouco de tempo antes da dramatização e da

música. Como podemos ajudar vocês aqui?

- Estamos fazendo coroas de papel, disse Cris. Essas estrelas não saem muito facilmente. Podem ajudar nessa

tarefa. E vai ser ótimo se uma de vocês quiser distribuir lápis de cera. Geralmente, as crianças menores quebram os lápis.

Por isso, vamos dar os mais grossos para elas, ou os que já estão quebrados.

- Você tem um jeito natural para o ministério infantil, disse Katie.

Em seguida, fazendo uma pose com os braços musculosos como quem levanta pesos, acrescentou em voz baixa:

- Sou a "missionária" do ministério infantil.

Mexeu os braços de novo e Cris riu-se. Algumas crianças notaram a pose de levantadora de peso de Katie e riram-se

também.

- Vocês querem ouvir uma música? perguntou Trícia. Ela sentou-se num círculo de meninas que, empunhando

tesouras, iam recortando a borda das coroas, e cantou uma música sobre um passarinho no seu ninho que confiava no Pai

celeste, como nós também devemos confiar.

- Canta outra! pediram as crianças.

Ela cantou outra que falava que as montanhas, os campos e até as árvores cantam louvores a Deus, e nós também

devemos louvá-lo. Cris entendeu que eram cânticos que a própria Trícia havia composto. Podia imaginá-la cantando junto

com o Douglas.

- Sou do ministério de cânticos! cochichou Katie e reajustou a pose da musculatura.


- E você, Katie, o que é? indagou Cris.

- Sou do ministério de teatro, replicou ela, reajustando a pose para verificar o relógio. E tenho de ir.

Fez sinal para Selena, que estava sentada no chão ajudando uma menina pequena a colar estrelas na coroa.

Selena levantou-se, e dirigiu-se para onde Katie estava. Ao passar por Cris, sussurrou-lhe:

- Depois eu volto. Isso aqui é divertido!

Trícia também saiu. Logo que terminaram com as coroas, as crianças trouxeram-nas para Cris medir o tamanho

certo da cabeça e grampear atrás.

Quando os pais vieram buscar as crianças, um menino colocou a coroa na cabeça e disse a sua mãe:

- Mamãe, olha aqui. Jesus é o Rei de tudo!

A mãe sorriu e disse a Cris:

- Obrigada, gente. Gostei muito do trabalho. Vou ter muito o que pensar.

- Mamãe, insistiu o menino, Jesus me ama.

Cris sentiu se bem por saber que o garotinho havia assimilado a mensagem. Seria muito bom se sua mãe não

estivesse com uma cara tão séria e insegura.

- Tenho uma coisa para lhe dar, disse ela.

Pôs a mão na caixa de trabalhos manuais e tirou um dos livretes que a equipe estava distribuindo às pessoas que

indicavam querer saber mais sobre Cristo.

- Tome, falou. Talvez isso ajude a pensar melhor no que ouviu aqui. Nós estaremos de volta às dezoito horas, se

quiser vir de novo.

Não sabia se estava ou não forçando a barra. O programa da noite seria o mesmo da tarde. Por que a mulher

voltaria; Mas Cris estava contente por não ter deixado que ela fosse embora de mãos vazias.

No instante em que saía a última criança, Douglas enfiou a cabeça pela porta e disse:

- Peguem os casacos! Estamos prontos para ir. Podem deixar tudo isso aí.

Cris e Gernot foram os últimos a entrar na van. O pastor dirigiu muito depressa pelas ruas estreitas até o local da

praça onde seria feita a apresentação de teatro, às quatro horas. Cris respirou aliviada por não ter responsabilidade nessa

parte; assim podia descansar um pouco.

A equipe de teatro se preparou dentro da van, fazendo maquiagem e colocando algumas peças simples de fantasia.

Douglas e Ian carregaram os "cenários" até o centro da praça e procuraram o lugar mais seco para a montagem. O bom era

que a chuva tinha parado. Infelizmente a praça de paralelepípedos estava molhada e escorregadia e havia poucas pessoas

ali.

Mas a equipe ficou firme e, exatamente às quatro, deu início à apresentação perante sete pessoas da cidade. Outras

começaram a chegar e na metade da apresentação, Cris notou que já eram umas trinta pessoas.

- Olhe aqui, sussurrou Douglas para Cris perto do final. Fique preparada para distribuir isto.
E entregou-lhe um monte de livretes que ensinavam como uma pessoa podia tornar-se cristã e outros folhetos

anunciando o culto da noite na igreja.

Logo que terminou a apresentação de teatro, a multidão aplaudiu, o que para Cris era bom sinal. Havia diversos

jovens e adolescentes presentes. Cris se aproximou deles e ofereceu um livrete antes que fossem embora.

- De onde são vocês? perguntou um rapazinho.

- Alguns são dos Estados Unidos e outros da Alemanha Fazemos parte de uma equipe de evangelismo.

- Por que vocês vieram aqui?

Antes que Cris tivesse tempo de pensar bem no que estava respondendo disse:

- Porque todo mundo precisa de Jesus e queremos falar dele.

O garoto deu uma risadinha de deboche e saiu. Cris se sentiu como uma boba. As outras pessoas a quem entregou

folhetos foram mais educadas e agradeceram. Gostaria de ter tido um resultado positivo também com o garoto.

Para surpresa dela, ele apareceu na reunião das seis horas. Havia muitos jovens e o Rev. Allistar disse que muitos

deles eram da sua congregação. Cris e Gernot estavam de mãos cheias com mais de quarenta e cinco crianças. Trícia, Selena

e Katie vieram mais tarde para ajudar, o que foi bom, porque quando Cris deu a lição e fez o convite para receberem a

Cristo, treze levantaram a mão. Gernot e os outros foram conversar com essas treze, enquanto Cris distribuía os trabalhos

manuais entre as outras.

- Foi maravilhoso, disse ela quando a equipe tomou de novo a van para voltar à estação. A lição, o apelo, e tudo o

mais que aconteceu foi o mesmo nas duas outras reuniões. Mas desta vez treze crianças atenderam ao apelo. Por quê?

- Faz parte do que eles nos disseram no treinamento, disse Douglas. Nosso trabalho é ser fiel em apresentar a

mensagem de salvação em Cristo e confiar em Deus no tocante aos resultados. O Espírito Santo se move, mesmo quando

não estamos vendo. No total das reuniões tivemos dezoito pessoas desejando mais informações e quatro que oraram

conosco entregando a vida a Cristo.

- Você me deu a lista de endereços? perguntou o Rev. Allistar.

- Sim, o senhor colocou em cima da escrivaninha no seu gabinete.

- Certo.

O pastor estacionou e virou-se para eles com um olhar de extrema alegria.

- Vocês nos deram uma ajuda e tanto hoje para a expansão do ministério nesta cidade. Muito, muito obrigado.

Despediram-se dele ao descer da van. Cris sentiu que tinha feito muito pouco. Na verdade fora tudo muito

agradável. Um pouco confuso, por vezes, mas, em suma, tinha sido fácil e divertido.

Quando estavam no trem, Cris perguntou a Selena, que estava sentada ao seu lado:

- Sabe quem foram os quatro que receberam a Cristo? Um deles seria o rapaz que estava na apresentação da peça

hoje à tarde?

- Não, eram todas mulheres, replicou Selena.


Cris orou silenciosamente pelo rapaz misterioso e pelas crianças que disseram que queriam ser cristãs. Uns vinte

minutos depois que o trem partiu, quando todos os outros estavam conversando ou dormindo, Selena perguntou a Cris:

- Você acha que conseguiria trabalhar nisso de tempo integral?

- O quê? Trabalhar com crianças?

- Sim, e fazer trabalho de evangelismo como este. Cris pensou por um momento antes de responder:

- Acho que sim. Quem sabe encontrei meu lugar?

- Você fez tudo com tanta naturalidade, comentou Selena. Cris fez a pose de musculação do jeito que a Katie tinha

feito antes e disse:

- Sou a "missionária" do ministério infantil. Selena riu.

- Ainda não sei o que sou. Gosto de teatro e tudo mais, mas não sei se isso é meu ponto forte.

- O que mais você gosta de fazer? indagou Cris.

- Inventar e escrever histórias.

- Quem sabe deveria ser escritora, sugeriu a outra.

- Sabe, estive pensando em escrever uma história sobre uma princesa que era desprezada porque não era muito

bonita. Na verdade, era feia mesmo. Um dia, o castelo ficou trancado e ela não pôde entrar. E os aldeões todos a

maltrataram. Depois uma pessoa se mostrou bondosa com ela. No final descobriram que ela era a princesa e deu uma

recompensa a essa pessoa que se mostrou gentil para com ela. O que acha?

- Gostei. Você deve escrever. Este lugar é inspirador, não acha? Tenho estado sonhando com cavaleiros e princesas

desde que chegamos ao Carnforth Hall.

- É um lugar que leva a gente a pensar também em casamento. Esse negócio de A. A. está ficando cada vez mais

difícil quando observo os outros saindo aos pares. Fico questionando se existe alguém aí para mim.

Cris sorriu para a amiga sardenta de olhos claros.

- Com certeza existe. Você será um tesouro para qualquer rapaz descobrir, disse.

- Obrigada pelo voto de confiança, Cris. Acho que devo ser paciente e ver o que Deus tem em mente, certo?

Cris fez que sim, mas seus pensamentos estavam longe.

- Alô! Tem alguém aí? perguntou Selena, balançando as mãos na frente do rosto de Cris. Onde está você?

- Ah, estava só pensando nas férias passadas. Minha família foi acampar e estávamos caminhando por uma trilha na

montanha no meio da floresta. Num dado momento, quando passamos por um lugar cheio de árvores frondosas, meu pai

estava perto de mim e estendeu o braço para eu segurar.

Ela olhou para trás para ver se havia alguém escutando, e em seguida continuou sua narrativa.

- Meu pai parece um tanto rude, mas de vez em quando mostra um lado terno e diz alguma coisa que me

impressiona. Ele disse: “Algum dia estaremos andando assim no meio da igreja e eu vou entregar você ao seu noivo."

Selena abriu bem os olhos.


- E o que você disse? Eu teria começado a chorar na hora.

- Bem, quase que chorei. Ele é incrivelmente carinhoso, tem a voz rouca e suave ao mesmo tempo. Aí ele disse:

"Cristina, sei que você estará de branco nesse dia. Nunca saberei dizer o quanto me orgulho de você."

Cris piscou os olhos para afastar uma lágrima e continuou:

- Aí deu um vento que fez as árvores sacudir as folhas. Sabe quando parece que estão batendo palmas?

- Eu sei. Adoro esse som. É como aquele versículo que diz que as árvores do campo batem palmas de alegria.

- Então meu pai disse: "Você está cercada de nuvens de testemunhas, Cris. Escute só." Ficamos ali, de braços dados,

ouvindo o vento nas árvores. Aí meu pai me disse: "Estas estão batendo palmas para você, querida. Reconhecem em você

uma verdadeira princesa."

Agora as duas estavam chorando, lágrimas lentas e silenciosas rolando por suas faces.

- Estou muito contente por estar me guardando para meu futuro marido, disse Selena. Quer dizer, se houver um

marido para mim no futuro. A pressão das colegas é por pouco tempo. E casar é... ela fez uma pausa, à procura da palavra

certa.

- Para sempre, disse Cris.

- É isso aí. Para sempre.


A “Missionária”
11

Quando Cris e os demais membros da equipe voltaram ao castelo, foram reunir-se às outras equipes na capela.

Embora fosse tarde, todo mundo estava desperto, compartilhando entusiasmados tudo que Deus havia feito naquele dia. A

atmosfera do salão parecia elétrica e carregada de empolgação, enquanto os jovens davam seu testemunho para todo o

grupo.

Podiam ter continuado por mais uma hora, mas o Dr. Benson encerrou a reunião dando detalhes finais sobre

quando cada equipe partiria para seu destino missionário. Alguns haviam se comprometido a sair de manhã, porque a

viagem seria mais longa. A equipe de Belfast só sairia mais tarde. O trem os levaria até Stranraer, onde pegariam o "Gato do

Mar", uma balsa moderna de alta velocidade que os levaria direto à baía de Belfast, onde chegariam às seis da tarde.

- Vocês irão encontrar o Rev. Norman Hutchins e sua esposa, Ruby, explicou o Dr. Benson lendo em uma lista,

enquanto Douglas anotava os nomes que ele citara. Eles receberam um fax com sua foto, Douglas, e assim estarão à sua

procura.

O Dr. Benson passou para a equipe seguinte e leu seu itinerário. Cris achou que talvez devesse anotar alguns

detalhes da viagem. Só se lembrava de que tinham de estar prontos para deixar o Carnforth Hall às onze. Daí em diante, era

confiar no Douglas para chegar até Belfast.

Quando a reunião já ia se encerrando, as novas amigas da Finlândia, Merja e Satu, se aproximaram para se despedir

de Cris.

- Nosso grupo vai para Barcelona às quatro da manhã, então é melhor despedir-nos agora. Tive muito prazer em

conhece-la!

- Eu também gostei de conhecer vocês. Tudo de bom para vocês em Barcelona. A gente se vê de novo aqui nos

últimos dias da conferência.

Por toda a capela, os jovens estavam se abraçando, rindo, chorando. Alguns, reunidos em pequenos grupos, oravam

de mãos dadas uns pelos outros. Cris estava certa de que Deus estava fazendo uma obra maravilhosa em cada grupo.

Na manhã seguinte, o café foi servido às sete. Cris notou que o refeitório estava muito mais silencioso, já que duas

equipes tinham partido. A equipe de Amsterdã sairia logo após o café. Cris e Selena estavam com as malas prontas.

No momento em que Cris ia tomar a última colherada de mingau, o Dr. Benson entrou no refeitório e passou os

olhos pelos estudantes até parar em Cris. Aproximou-se dela, e disse:

- Posso falar com você no meu escritório?


- Claro.

Cris fez um gesto querendo dizer "O que será?" para Katie e Selena e o seguiu. Sentia que havia algum problema.

Pior, imaginou ela, se tivesse notícias ruins sobre alguma coisa de casa, como aconteceu com a Avril.

- Está tudo bem? perguntou ela no momento em que se sentou à frente da imensa escrivaninha de madeira.

O Dr. Benson sentou-se também e pegou uns papéis da escrivaninha, que Cris reconheceu ser sua ficha de inscrição

- Sim. Só quero lhe fazer algumas perguntas Cris engoliu o resto de mingau de aveia que ainda levava preso na

garganta. Começou a tossir.

- Diz aqui que você sabe falar espanhol.

- Eu estudei espanhol quatro anos no colegial, replicou ela continuando a tossir. Mas não falo fluentemente.

O irritante pigarro persistia. O Dr. Benson levantou-se e serviu-lhe um copo de água de uma garrafa de vidro que

estava na janela.

- Você está bem?

Cris tomou depressa a água, pigarreou e disse:

- Sim, agora estou bem. Obrigada.

- Recebemos um excelente relatório do Rev. Allístar sobre o trabalho infantil que você dirigiu na igreja dele, no

sábado. Você também tem ótimas referências do diretor de ministério infantil da sua igreja dos Estados Unidos, falou ele

colocando os papéis sobre a escrivaninha.

O Dr. Benson inclinou-se para trás e disse:

- Deixe que eu vá direto ao ponto. Talvez se lembre de Avríl, a jovem que teve de ir embora semana passada.

- Sim, fiquei sabendo que o irmão dela saiu do hospital e está bem melhor.

- É, e isso é uma boa notícia. Contudo Avril resolveu ficar em casa para ajudar o pessoal lá e não poderá participar

do evangelismo. Entendemos perfeitamente a decisão dela. Mas nosso dilema é que ela era a obreira do ministério infantil

na equipe de Barcelona.

- Ah!

- E tem mais. Hoje de manhã recebemos um fax de nosso missionário de Barcelona informando que a obreira de

tempo integral que eles empregam lá teve de retornar aos Estados Unidos. Como vê, Barcelona tem enorme necessidade

de alguém que cuide do ministério infantil, sobretudo alguém capaz, que tenha conhecimentos do espanhol.

Cris não sabia com certeza aonde ele queria chegar, até que afinal o Dr. Benson disse:

- O que estou perguntando, Cris, é: você estaria disposta a ir para Barcelona?

- Eu??!

- Sim. Você é a mais qualificada. Mas depende de você. Estaria disposta a confiar em Deus de uma maneira nova?

- Eu... eu não sei. A equipe de Barcelona já não saiu hoje de manhã?

- Sim. O que faremos é o seguinte: colocaremos você no trem com a equipe de Amsterdã. Você viajará com eles até
a França e depois irá de trem sozinha para Barcelona.

- Sozinha?

O Dr. Benson sorriu.

- O Senhor estará com você. É por isso que estou perguntando se você está disposta a confiar em Deus de uma

maneira nova.

Cris nunca esperara uma coisa dessas. Estavam pedindo que ela deixasse todos os amigos e viajasse sozinha para

um lugar para o qual não se preparara, e, pelo jeito, para cuidar sozinha do ministério infantil. O único ponto confortante

era que Satu e Merja também estavam na equipe de Barcelona. Certamente elas a ajudariam.

- Não sei. Tenho de resolver se vou ou não?

- Depende completamente da sua decisão. Gostaria que tivéssemos mais tempo, mas a equipe de Amsterdã está

saindo daqui a... ele olhou o relógio: dez minutos, e gostaríamos que viajasse com eles até Calais.

- Calais? Onde é isso?

- Na França.

O Dr. Benson pegou o fax, leu o horário e em seguida explicou:

- Você mudará de trem em Calais e fará uma viagem noturna até Port Bou. Arrumaremos um carro-leito para que

você esteja completamente segura e confortável. Chegará em Port Bou no lado espanhol da fronteira às 11:02 da manhã

seguinte e mudará de trem para Barcelona às 12:25. Chegará em Sants, a estação principal de Barcelona, às 2:55 da tarde.

De lá você pegará um trem de subúrbio às 3:15 e chegará na Playa Castelldefels às 3:30. Na verdade, é um passeio

lindíssimo daqui até Costa Brava.

Cris baixou a cabeça, fechou os olhos e comprimiu os lábios. Talvez o Dr. Benson pensasse que estava orando. Na

verdade, estava era se esforçando para não chorar. Tudo viera tão de repente e com tanto ímpeto! Aquele itinerário

apertado era de assustar. Além do mais, o pior pesadelo era ter de tomar decisões em questão de segundos, e uma decisão

que poderia afetar o resto de sua vida.

Sabia que a necessidade era grande, mas e Belfast? Gernot e os outros poderiam preencher a lacuna que se criaria

com sua ausência, supunha. Mas como mudar a direção tão instantaneamente e ir para Barcelona em vez de Belfast? Já

tinha escrito aos pais dizendo que iria para Belfast.

- Eu estaria usando as mesmas lições que preparei para Belfast? perguntou ela, procurando ganhar tempo.

- Sim. Tudo que diz respeito ao seu treinamento será absolutamente igual. O material de trabalhos manuais e os

fantoches já estão com eles. Você ficará num vilarejo perto de Barcelona, na costa do Mediterrâneo, trabalhando com o

nosso missionário local. Lá é muito mais quente do que em Belfast.

Cris ficou pensando se ele realmente achava que a temperatura faria diferença para sua decisão. O que a

incomodava não era o clima, mas a insegurança de deixar os amigos e fazer algo sozinha. E o pânico de ter apenas alguns

segundos para decidir.


- Está certo, eu vou, disse Cris.

Por um instante pensou que era a voz de outra pessoa. Então, como para certificar- se de que ouvira direito,

repetiu: Eu vou para Barcelona.

Maravilha! exclamou o Dr. Benson com um enorme sorriso. O Senhor abençoará o seu serviço consagrado a ele.

Essa é a essência da autêntica obra missionária e mostra quem são os verdadeiros servos e quem é um mero espectador.

Você tem o tipo de coração que Deus pode usar para realizar grandes obras em favor de seu reino!

Cris gostaria de sentir a coragem que ele dava a entender que ela possuía. Antes de perceber o que estava

acontecendo, ele lhe entregou uma pilha de papéis e explicou como deveria comprar as passagens ao chegar à estação de

Victoria, em Londres.

De repente, ela desejou ter dito "Não". Como iria lembrar-se de todos os detalhes e conseguir mudar de trem

sozinha? Ela estivera sempre se apoiando no Douglas a viagem inteira para tomar os ônibus e trens certos.

Provavelmente tudo isso fazia parte do que Deus queria ensinar-lhe: ser completamente independente de qualquer

rapaz, ou de qualquer ser humano - e confiar somente nele.

Não teve tempo de pensar em todas as possíveis razões dessa mudança tão maluca. Só sabia que tinha menos de

dez minutos para pegar a bagagem e achar um jeito de se despedir de Katie, Douglas, Trícia, Selena e do resto da sua

equipe.

Levantou-se para sair.

O Dr. Benson deu-lhe um aperto de mão caloroso, e disse:

- Mandaremos por fax sua ficha ao diretor da missão em Castelldefels. Sua foto está aqui para que ele a reconheça

quando for buscá-la na estação, que é muito pequena. Tenho certeza de que vocês dois não terão dificuldade de se

reconhecerem. Sabe como os americanos têm a tendência de se destacar no meio da multidão.

Cris sentia a cabeça rodar com os detalhes, ao correr para o quarto com os joelhos bambos, levando os papéis na

mão.

Gente, vou para a Espanha. Sozinha! Não acredito que isso esteja acontecendo. E só vou chegar lá amanhã à tarde!

Sete minutos mais tarde, Cris se via em frente dos carros utilitários de Carnhforth Hall, onde estava sendo colocada

a bagagem da equipe de Amsterdã.

- Até logo! disse Trícia, abraçando Cris. Minha querida amiga, estarei orando por você. Você nunca compreenderá

totalmente como foi importante para mim esta última semana que passei com você.

- Você também é uma amiga muito querida.

- Agora é minha vez de desmoronar aqui, disse Katie, dando-lhe um rápido abraço e se esforçando para não chorar.

Posso dizer só uma coisa?

Cris teve de sorrir. Katie sempre usava essa expressão quando tinha mais de uma coisa para dizer. Ela fez a pose de

musculosa e declarou:
- Você é a "missionária"!

Todos riram, o que facilitou para Cris abraçar Gernot, Ian e Stephen. Mas quando chegou a vez do Douglas, ela

quase engasgou.

- Você é incrível, Cris, disse ele, dando-lhe um de seus superabraços. Deus é incrivelmente maravilhoso. Ele vai

operar prodígios em sua vida. Muito obrigado por tudo. Obrigado mesmo. De coração.

Deu-lhe mais um abraço e ela cochichou-lhe ao ouvido:

- Às ordens, Sir Douglas, o Sincero. Cuide bem de sua princesa.

Ele se afastou e sorriu.

- Pode contar com isso. Obrigado, Cris. Selena foi a última a se despedir.

- Não sei por que estou chorando. Vamos nos ver de novo dentro de pouco mais de uma semana, quando voltarmos

para cá, disse ela abraçando-a, e depois continuou: É que sinto que ficamos tão ligadas, não é mesmo? Queria ter ficado na

mesma equipe.

- Eu sei. Eu também. Você pode vir comigo para Barcelona, se quiser.

Cris agarrou, brincando, o braço de Selena e fingiu empurrá-la para a van.

- Ei! Espere aí! exclamou Katie. Devolva a Selena! E Douglas completou:

- Não podemos abrir mão de mais ninguém. Perder você, Cris, já é o máximo de sacrifício para qualquer um de nós

numa semana.

Cris sentiu que as palavras dele tinham um sentido duplo, referindo-se ao fim do namoro. Isso tornava ainda mais

difícil ir embora. Notou mais uma vez como a equipe toda se tornara unida depois dessa semana de treinamento. Deus

havia atendido a sua oração, quando lhe pedira unidade e agora eles estavam sendo divididos por sua ida. Não fazia

sentido.

A frase de Katie ecoou em sua cabeça: "Deus é esquisito."

- Hora de partir, grifou o motorista, ligando o motor. Forçando um sorriso, Cris acenou para sua velha equipe e

entrou na van.

- Tchau. Estarei orando por vocês. Orem por mim!

A porta se fechou e os sete amigos de Cris ficaram para trás, enfileirados, abanando a mão. Ao sinal de Katie, assim

que a van se afastou, todos os sete fizeram pose de halterofïlista, e gritaram:

- Você é a "missionária"!

Ela deu uma gargalhada e um dos rapazes na van perguntou o que fora aquilo.

- Uma pequena piada, disse Cris, sem saber se ria ou se chorava.

A viagem de trem até Londres foi bem rápida. Cris sentou se ao lado de Jakobs, o cara da Letônia que Katie lhe

apresentara. Jakobs era vários anos mais novo que a Cris, mas em alguns aspectos parecia mais maduro. Era como se em

dezesseis anos ele tivesse vivido mais do que ela experimentaria em toda a sua vida. O cabelo curtíssimo de Jakobs era
escovado para cima, na frente. Ele era uns bons centímetros mais baixo que ela.

Após várias horas de viagem, Jakobs trouxe para Cris uma xícara de chá e dividiu com ela um pouco do lanche. D.

Joanna entregara um saquinho de papel a cada estudante e ao mesmo tempo plantou um beijo na bochecha de cada um.

Cris tinha enfiado o seu lanche num canto aberto da mala, que agora era quase impossível de pegar. Aceitou com prazer um

pedaço do sanduíche de Jakobs.

- Já se acostumou com a idéia de ir à Espanha? perguntou ele.

Alguma coisa como que "ligou", mecanicamente, na cabeça de Cris, e ela respondeu:

- Sim, acredito que isso é plano de Deus e sei que ele vai fazer tudo dar certo. Estou aprendendo a confiar nele de

uma maneira nova.

Um sorriso lento iluminou o rosto de Jakobs.

- Penso que você está me falando através das flores.

Embora o inglês de Jakobs fosse muito bom, às vezes não era bem claro no que desejava expressar. Cris perguntou

o que ele queria dizer com "falar através das flores".

Ele parecia um pouco envergonhado.

- É uma expressão que temos em minha terra, em Riga. Usamo-la para dizer que uma pessoa encobre suas palavras

com coisas bonitas, ao invés de expressar o que realmente sente. Assim você está "falando comigo através das flores".

Cris sabia que Jakobs tinha razão. Procurava parecer corajosa e espiritual, mas, na verdade, estava mesmo era

apavorada. Teria coragem de lhe dizer? Ele parecia uma pessoa confiável.

- Na verdade, estou com medo.

Ele olhou para ela com compaixão e perguntou:

- De quê?

- De me perder. De perder os trens.

- Aí você pega o trem seguinte.

- Mas, e se eu não conseguir achar o trem certo? E se alguma coisa acontecer e eu perder a bagagem ou o

passaporte?

- Vá à sua embaixada, peça outro passaporte e use a mesma roupa dois dias seguidos.

Cris não sabia se ele estava brincando ou tentando ajudar. Antes, naquela semana mesmo, ela o ouvira dizer a uma

garota do Texas que os americanos eram exageradamente preocupados com suas roupas e higiene. A jovem do Texas

lavava a cabeça e fazia escova todos os dias e nunca aparecia em público sem uma maquiagem perfeita. Jakobs lhe dissera

que ela deveria usar a mesma roupa dois dias seguidos para ser bom mordomo do que Deus lhe dera. A garota respondeu

que ele era louco.

Cris não o considerava louco, mas achava que ele tinha uma visão muito simplista da vida. Então apresentou-lhe o

pior fato que poderia acontecer.


- E seu eu for atacada, ou assassinada? Voltando o sorriso aos lábios, Jakobs disse:

- Então você morrerá e estará com o Senhor para sempre, e talvez eu tenha inveja de você por estar indo ao céu

antes de mim.

Cris sorriu. Jakobs tinha uma perspectiva eterna da vida. Com um pensamento tão ligado no céu, era difícil ver a

possibilidade de algo mau acontecer. No dicionário de Jakobs, parecia não existir o vocábulo "tragédia". Ela bebeu o último

gole de chá morno, e disse:

- Nos Estados Unidos certamente nós o chamaríamos de "tipo Polyana". Quer dizer, alguém que só vê o lado bom

de uma situação.

- Em Riga, você provavelmente me diria "vá soprar paios", disse Jakobs, rindo-se de sua própria piadinha.

- Soprar patos?

- É nosso jeito de dizer "ir embora". Não é todo mundo que fala assim, só alguns dos meus amigos. Se um dia for a

Riga, evite usar essa expressão com os outros. Principalmente com o oficial encarregado de examinar seu visto de entrada.

Cris não conseguiria imaginar qual seria sua impressão ao visitar um país como a Letônia. A Espanha já era

suficientemente exótica, a seu ver.

Espanha. A lembrança repentina da Espanha a deixou paralisada. Certamente os sentimentos estavam na cara,

porque Jakobs perguntou:

- Você está novamente com medo dos trens? Cris sabia que não adiantava tentar "falar através das flores" com ele.

- Um pouco.

- Qual o seu versículo? perguntou Jakobs.

- Meu versículo?

- Você precisa de um versículo. Algo da Palavra de Deus que deverá plantar no seu coração para a viagem.

- Para plantar no jardim do meu coração? perguntou ela, lembrando-se do poema da Trícia.

- Sim. Você precisa de uma promessa para... como se diz? Segurado sobre?

- Você quer dizer para me segurar, disse Cris. Você acha que eu preciso de um versículo especial para me apoiar.

- Sim. É isso.

- Você tem um versículo?

Jakobs acenou que sim e disse umas palavras no melodioso idioma letão.

- É Jeremias 1.7,8. Desculpe, mas ainda não sei no inglês. Posso ler em sua Bíblia?

Cris mexeu no fundo da bolsa, tirou a Bíblia c abriu no versículo do Jakobs. Entregou-a a ele, e no seu sotaque ele

leu:

- "Mas o Senhor me disse: Não digas não passo de uma criança; porque a todos a quem eu te enviar, irás; e tudo

quanto eu te mandar, falarás. Não temas diante deles; porque eu sou contigo para te livrar, diz o Senhor."

- Perfeito! É exatamente o que eu sinto.


- Este é o meu versículo, disse Jakobs, segurando a Bíblia de Cris junto ao peito. Você precisa procurar o seu.

- Ah, vá soprar patos, disse Cris, brincando. Posso ficar com o mesmo versículo se eu quiser. Agora, devolva a minha

Bíblia! Jakobs riu e retrucou:

- Você se sairá muito bem em sua nova cultura. Não estou preocupado com você de maneira alguma.

Cris esperava que as palavras de Jakob se confirmassem. Pareciam verdade quando o grupo fez a conexão em

Londres. Tudo saiu conforme planejado; tranquilo. Cris só teve de seguir os outros membros da equipe até o guichê e

comprar o bilhete para atravessar o Canal da Mancha. Então ela entrou de novo na fila com eles para comprar a passagem

para Barcelona, enquanto eles compravam para Amsterdã.

Sobrou um pouco de dinheiro do envelope que o Dr. Benson lhe entregara, depois de comprada a passagem. Com

duas libras e uns trocados, Cris comprou um chocolate enquanto esperavam.

Felizmente, resolveu não comer imediatamente, porque a travessia do Canal da Mancha foi bastante agitada.

Provavelmente teria vomitado tão logo o chocolate batesse no estômago.

Depois de uns vinte e cinco minutos no barco, Cris não conseguiu mais adiar o inevitável. Levantou-se e foi com

cuidado até o banheiro. Quase não conseguiu chegar lá antes de vomitar. Detestava vomitar. O pior é que, logo que achou

que ia ficar bem, ela ouviu alguém no boxe contíguo vomitando e isso fez com que o enjôo começasse de novo.

Experiência horrível. Cris se sentou no chão do banheiro, fraca demais para voltar ao seu lugar.

Isso é terrível. Não vou agüentar isso. Não dá para continuar. Esta viagem toda foi um grande erro. O que o Senhor

está tentando fazer comigo?

Sentiu outra ânsia de vomito, mas não havia mais nada para botar para fora. Passou água na boca e molhou uma

toalha de papel, com que umedeceu a testa. Sentou-se no chão novamente, ao lado de outra passageira que se sentia mal.

Gemeu baixinho:

- Não sou a "missionária".


Piquenique à Meia-Noite
12

Chegando a Calais às 6:30 da noite, Cris mal podia andar. A cabeça latejava, a garganta parecia em carne viva e

inflamada, e ela estava louca para beber um copo de água. Um dos rapazes da equipe de Amsterdã vigiou a bagagem de

Cris, enquanto ela, com a simpática ajuda de Jakobs, que também enjoara na travessia, procurava uma lanchonete onde

pudesse comprar água mineral.

Tudo ia em ritmo de câmera lenta, pois Cris e Jakobs tiveram que trocar dinheiro, pegar fila para pagar um absurdo

pela água, e depois sair à procura do resto do grupo. Cris quase desmaiou ao sentar-se num banco onde o resto da equipe

tinha se ajuntado e tomou a água devagar. Acima, anunciavam os horários de saída dos trens, em francês e diversas outras

línguas. De onde Cris estava, via um grande painel com os horários de saída dos trens.

O líder da equipe de Amsterdã disse a ela:

- Nós precisamos levar toda a nossa bagagem até aquela plataforma lá embaixo. Você ficará bem aqui, Cris?

Ela queria gritar que não, que não a abandonassem. Só conseguiu murmurar:

- Não sei de que plataforma o meu trem sairá.

- Com certeza você vai descobrir. Olhe o quadro lá em cima e procure o trem-leito das 8:24 para Port Bou. Ou

pergunte a alguém.

O cara não queria ser desagradável, mas estava tendo muito trabalho com quatro membros da sua equipe que

haviam enjoado e preocupado com o trem prestes a sair.

Com uma rodada de apressados "até logo" e um caloroso aperto de mão do Jakobs, a equipe de Amsterdã se dirigiu

para a plataforma de seu trem como uma fila de patos. Jakobs estava a uns vinte metros quando virou-se e gritou:

- Não esqueça de procurar seu versículo!

Ele ainda parecia um tanto esverdeado do enjôo e usou toda a sua energia para dar-lhe uma força.

Cris ficou parada. Confusa, via todo mundo girando à volta dela. Sentia frio, e a estação tinha cheiro de mofo. Ou

talvez fosse seu hálito que cheirava mal. Tomou mais um gole de água e juntou seus pertences para se encaminhar até o

quadro de horários de partida, como se soubesse exatamente o que estava fazendo.

Claro como o dia, lá estava o nome "Port Bou", e o trem das 8:24. Ramal número três. Não foi tão difícil! Agora era

só encontrar a plataforma número três. Ainda tinha quase meia hora pela frente, antes da partida de seu trem, mas ela
precisava encontrar o ramal certo. Caminhar a ajudaria a livrar-se do enjôo, principalmente porque o chão era nivelado e

não se mexia debaixo de seus pés como durante a travessia do Canal da Mancha. A viagem de barcaça tomara a tarde toda

e, embora fosse esse o jeito mais barato de alcançar a França, para Cris certamente não pareceu o melhor modo. Talvez

conseguisse convencer o diretor da missão a permitir que ela pagasse do próprio bolso a diferença para uma passagem de

avião, fosse lá o que fosse, para não ter de repetir essa viagem de trem e barcaça.

Quando chegou ao ramal número três, viu que não havia nenhum trem, mas várias pessoas aguardando na

plataforma a chegada do comboio. Ela imaginou que estivesse no lugar certo.

Puxando a bagagem sobre as rodinhas e levando a bolsa a tiracolo até um lugar vazio num banco, Cris achou que

fosse desmaiar. Tudo à sua frente começou a escurecer, e só via uns pontinhos girando. Sentou-se na hora certa.

Abaixou a cabeça e respirou fundo, esperando que tudo voltasse a ficar em foco. Cris tomou mais um pouco de

água e tentou acalmar seu coração, que havia disparado.

Está tudo bem. Você vai conseguir. O Senhor está com você.

Cris nunca se achou uma pessoa fraca. Detestava essa sensação de perda de controle. Queria tudo normal, calmo e

absolutamente fácil de ser percebido. Queria se sentir forte e autocontrolada, mas não conseguia. Só se sentia fraca e

trêmula, como se estivesse pendurada num muro, segurando-se nas pontas dos dedos.

Naquele instante ouviu o ruído ensurdecedor do trem que se aproximava, abafando até a voz que saía no alto-

falante.

Procurou a passagem na sacola de viagem. Não estava lá. Remexeu as coisas todas e não a encontrou. Depois, abriu

o zíper lateral e encontrou o passaporte e a passagem ao lado do secador de cabelo, o que a tranquilizou.

Não entre em pânico, Cris! Faça o que fizer, procure se controlar. Você está indo muito bem.

Foi um dos primeiros passageiros a entrar. O condutor, de casaco c chapéu pretos, olhou sua passagem quando ela

entrou, dizendo-lhe alguma coisa em francês.

Q que? Desculpe, mas não entendi, disse ela. O homem fez sinal com a mão em direção ao fim do trem enquanto

uma torrente de palavras em francês saíam de sua boca.

- Os vagões-leitos estão na parte de trás do trem, disse uma senhora atrás de Cris.

Não olhou para ela, e não falou muito alto, só o bastante para que ela entendesse.

- Ah, desculpe. Obrigada. Com licença.

Cris tentou virar-se e descer as escadas de volta à plataforma. A mala ficou presa no pequeno espaço e Cris não

conseguia tirá-la. O condutor falou bravo em francês e ela usou todas as suas forças para livrar a mala e descer os degraus.

Uma vez na plataforma, Cris apertou o passo o mais que pôde, até o final do trem. Lá tentou novamente com outro

condutor, que olhou sua passagem e apontou na direção oposta, para a frente falando de modo muito rápido.

- Mas acabei de vir de lá e eles me mandaram para cá! Cris tinha certeza de que o homem a entendia, embora

abanasse a cabeça e só falasse francês.


Antes que as conseguisse deter, as lágrimas encheram-lhe os olhos e ela sentiu a cor sumir do rosto.

- Por favor, o senhor poderia me ajudar?

Ele olhou de novo para ela e suavizou um pouco sua expressão. Fez sinal para que ela entrasse no trem, pegou sua

mala e mandou que ela o seguisse. Foi passando por diversos vagões, pelo corredor estreito do trem, alinhado de janelas de

um lado e compartimentos fechados do outro. De repente parou em frente de um compartimento e abriu a porta,

indicando que ela devia entrar.

- Obrigada, disse Cris, vendo o compartimento vazio com duas poltronas estofadas de frente uma para a outra.

Estava doida para se deitar e dormir.

O condutor entrou no pequeno compartimento e colocou sua mala no bagageiro. Puxando uma das poltronas,

revelou uma cama já arrumada com lençóis. Entregou-lhe um cobertor e murmurou mais algumas palavras em francês.

Cris pensou em pegar um dinheiro para dar uma gorjeta. Pegou tudo que tinha no bolso do casaco, o troco da água

que ela e Jakobs compraram. Não tinha idéia se o punhado de francos que ofereceu era muito ou pouco.

Ele verificou as notas e moedas que ela colocara em sua mão e olhou de novo para ela. Fazendo sinal com o chapéu,

saiu do compartimento e murmurou algo em francês.

Cris abaixou as cortinas das janelas que davam para o corredor do compartimento e em seguida fechou a janela,

que dava para a plataforma e a estação. A cama parecia convidativa. Tirou os sapatos, puxou as cobertas e entrou debaixo

delas, esperando dormir até a luz da madrugada raiar.

Caiu em sono profundo quando o trem arrancou, ninando-a com seu avanço ritmado. Infelizmente o sono durou

pouco Alguém abriu a porta do seu compartimento, falou alto em francês e acendeu a luz.

Era um condutor, mas não o que a ajudara.

- Passaporte, disse. Passaporte, repetiu ele na língua de Cris.

Cris pegou a bolsa, que tinha enfiado debaixo das cobertas por precaução. Entregou-lhe o bilhete e o passaporte.

Ele examinou-os, pareceu satisfeito e bateu a porta de correr tão bruscamente quanto a havia aberto. O mal-educado

deixou a luz acesa.

Cris guardou o passaporte no lugar seguro da bolsa e saiu do seu casulo para apagar a luz. O trem seguiu

lentamente até nova parada. Aparentemente, chegaram a uma outra estação. Alguns minutos depois o trem arrancou de

novo. Ouviam-se as vozes de novos passageiros pelo corredor. Agora Cris não conseguia dormir.

Pelo menos estava se sentindo melhor. Sentou-se na cama e acabou de beber a garrafa de água. Foi então que

percebeu que estava com muita fome. Era quase meia-noite e fazia umas doze horas que não comia nada. Acendeu de

novo a luz e remexeu na mala à procura do lanche que D. Joanna tinha preparado para ela. Cruzando as pernas como índia,

Cris entrecruzou as mãos, baixou a cabeça, orou, e ali mesmo, sobre a cama, fez o seu lanche.

- Somos apenas eu e o Senhor, Deus querido. Obrigada por estar cuidando de mim e por essa comida para esse

piquenique à meia-noite. Agradeço porque estou me sentindo melhor. Perdoe-me porque eu culpei o Senhor lá na barcaça.
É que detesto ficar enjoada.

Abriu os olhos e começou a comer o sanduíche, mas continuou falando com Jesus, como se ele estivesse sentado ao

seu lado.

- É que gosto que tudo fique assim, tranquilo, bem... confortável. Acho que gosto de estar no controle da situação.

Mas essa tarefa é sua, não é mesmo?

Foi como se tivesse recebido uma revelação. Ela se via de pé, dentro do jardim do seu coração, junto ao portão.

Jesus estava ali com ela, mas estava claro que era Cris quem detinha a chave dele.

Pôs o sanduíche na "mesa" e, relanceando a vista pelo espaço ao seu lado, continuou:

- É isso que está faltando, não é mesmo? Sou eu que estou tomando todas as decisões, segurando a chave,

tentando controlar tudo, e decidindo quem vai entrar ou sair do meu jardim. Sou eu que tenho trancado e destrancado

esse portão. Eu tenho estado no controle.

- Mas Jesus, quero que o Senhor segure a chave. Quero que decida tudo que deve acontecer no jardim do meu

coração. Quero que o Senhor deixe entrar ou mande sair qualquer coisa ou pessoa que o Senhor quiser, principalmente no

que diz respeito aos rapazes. Nunca mais quero destrancar esse portão. Quero que o Senhor só abra quando aparecer o

rapaz certo para mim. Tome a chave, Senhor. Pegue todas as minhas chaves. Eu espero no Senhor.

Por um momento Cris pensou que estivesse enlouquecendo, porque sentiu um perfume suave na cabina depois que

orou. Certamente no jardim do coração havia um perfume. Ela se sentiu livre, completamente de bem com Deus.

Continuou o "piquenique", imaginando ela e Jesus sentados juntos, debaixo de uma plumeria, no jardim do seu coração. Ao

seu lado havia um canteiro de narcisos-do-campo e um jasmineiro enlaçado numa treliça que havia sobre o portão.

Cris não se lembrava da última vez em que estivera tão contente, tão segura, tão completamente feliz. Nunca antes

sentira tanto a proximidade de Jesus.

- Será que é porque sempre tem algum rapaz no jardim comigo? perguntou em voz alta. Quero que o Senhor esteja

sempre comigo. Mesmo que traga um rapaz para minha vida, quero me sentir assim, bem juntinho do Senhor. Para sempre.

Agora muitas coisas pareciam fazer sentido. As emoções tumultuadas, contra as quais lutara toda a semana

passada, tinham desaparecido. Sabia que as semanas que estavam pela frente seriam difíceis e lhe trariam muitas lutas,

mas não tinha medo do que pudesse acontecer. Estava absolutamente segura de que agira certo ao abrir mão do Douglas.

Estava em paz até mesmo com relação ao Ted. Tinha agido certo ao abrir mão dele também. Ele estava servindo a

Deus, e era isso que ele devia fazer. Cris sabia que tinha de prosseguir, tornar-se integralmente como Deus queria que ela

fosse e não depender de nenhum homem. Iria apoiar-se somente em Deus.

Depois de comer metade do sanduíche e dois pedaços de cenoura, Cris resolveu guardar o resto do lanche para

mais tarde. Era meia-noite e precisava desesperadamente dormir.

Apagando a luz, pensou num dos versículos que o Dr. Benson citara: “Em paz me deito e logo pego no sono, porque

só tu, Senhor, me fazes repousar tranquilo.”


- Amém sussurrou e caiu em sono profundo.

Mas não dormiu muito tempo.

Para Sempre
13

De repente a porta do compartimento abriu e uma voz rude gritou no escuro.

- Quem está aí? perguntou Cris, sentando-se na cama.

A luz acendeu, cegando-a por um instante com a súbita claridade.

- O que quer? Perguntou Cris ao estranho, obviamente um bêbado que entrara no seu compartimento. Saia daqui!

Estou falando sério. Saia daqui imediatamente senão vou gritar mais alto.

O homem, confuso, tropeçou dentro do quarto e a porta fechou-se atrás dele. Nesse instante, Cris deu um grito

agudo, respirou fundo e gritou de novo. A porta se abriu e dois condutores e três passageiros entraram correndo,

agarraram o homem pelo braço e o tiraram dali rapidamente.

O condutor que a atinha ajudado a encontrar o quarto, agora estava ao seu lado, tentando acalmá-la em francês.

Ela se lembrou da palavra para “obrigada”, e com voz rouca disse-lhe:

- Merci.

Ele ficou falando e apontando para a porta, No início, ela pensou que ele queria que ela saísse, e começou a

levantar-se.

Ele fez sinal para que ela ficasse e saiu. Cris esperou um momento e, em seguida, olhou através da cortina para o

corredor. O condutor ainda estava ao lado da sua porta, aparentemente resolvido a servir-lhe de guarda-costas durante o

resto da viagem pela França.

Vai ver que eu lhe dei uma gorjeta muito boa. Ou isso, ou ele é meu anjo da guarda disfarçado.

Engoliu em seco. A garganta doía muito. Pegou uma pastilha na bolsa e procurou dormir. Durante algum tempo,

apenas cochilou.

Pouco antes do nascer do sol, Cris percebeu que não dava para esperar mais - precisava ir ao banheiro. Calçou os
sapatos e colocou a bolsa a tiracolo. Abriu a porta devagar e ficou surpresa de ver que seu guarda particular não estava

mais ali. Então ouviu um bonjour e viu que ele estava no final do corredor, fumando um cigarro perto de uma janela aberta.

Provavelmente não é o anjo da guarda.

Sorriu, disse novamente merci e apontou para o banheiro do outro lado. Quando saiu vários minutos mais tarde, o

condutor ainda se encontrava no mesmo lugar. Apontou para algo que via pela janela, e ela parou e viu o sol nascendo

atrás dos verdes montes que se iam desdobrando à sua vista. Um velho estábulo de pedras erguia-se solitário a uma

pequena distância dali. O vento frio da janela aberta soprou seu cabelo para trás. Era uma vista deslumbrante e uma manhã

maravilhosa. Cris imaginou que estivessem em algum lugar no meio da França, mas não tinha idéia de onde.

De volta ao dormitório, pulou na cama quentinha. Levantou a cortina só o suficiente para ver do lado de fora.

Durante quase uma hora ficou a apreciar a paisagem por onde o trem passava, que era linda de tirar o fôlego.

- Algum dia quero voltar aqui, disse ao seu Companheiro Silencioso. Quero visitar cada vilarejo pelo qual passamos e

experimentar todo sabor de uma nova aventura.

Pegou o diário e passou a documentar os acontecimentos dos últimos dias da melhor maneira que podia. Parecia

impossível que tanta coisa houvesse acontecido em tão pouco tempo.

Depois de anotar o caso do bêbado que invadira sua rabina e sobre o guarda-costas uniformizado, escreveu:

Acho que sei o que vou ser no futuro. Ou melhor, sei o que acho que Deus quer de mim para o futuro. Quero ser

missionária. Aqui na Europa. Gosto de trabalhar com crianças. Certamente existe algum lugar onde precisem de uma

missionária que fale de Jesus às criancinhas. Quando voltar para casa, vou tomar providências para estudar mais, e me

preparar para o trabalho, naquilo que for preciso.

Pegando seu saquinho de lanche, abriu uma garrafa de laranjada. Recostou-se na poltrona, e ficou olhando a

paisagem e tomando o suco, e comeu um Toblerone que havia comprado antes da travessia do canal.

Ao pensar no pesadelo que fora aquela travessia teve calafrios. Ao mesmo tempo, sentiu que havia conseguido

realizar algo grande e glorioso. Chegara inteira até ali. Poderia fazer qualquer coisa.

A energia e a confiança renovadas valeram quando chegou a Port Bou, onde precisaria fazer uma baldeação. O trem

para Barcelona partiu exatamente as 12:25. Mas era um comboio mais velho e estava mais cheio. Cris não pôde contar com

um compartimento só para ela; teve de ficar com mais cinco pessoas. Duas senhoras que certamente viajavam juntas,

sentaram-se de frente para ela e puseram-se a conversar tão rápido em espanhol que Cris mal conseguia entender. Um

jovem sentou-se ao seu lado, lendo um livro de bolso. Ao lado dele, estava uma senhora idosa que conversava com outra

que se achava de frente para ela, até que as duas cochilaram.

Sentiu-se meio estranha por ter de estar num compartimento junto com essas pessoas desconhecidas. Mas afinal

percebeu que elas a ignoravam. Talvez ela também não devesse demonstrar tanto interesse por elas. Agora era um bom

momento de acabar de comer o sanduíche e a maçã que haviam sobrado do lanche.

Na primeira mordida que deu no sanduíche, Cris lembrou se de Jakobs, que tinha dividido o sanduíche dele com ela.
Será que passou fome mais tarde na viagem a Amsterdã? Lembrou-se então do que ele dissera na estação ferroviária de

Calais, ela deveria procurar seu próprio versículo.

Tirou a Bíblia e começou a correr a vista pelos Salmos, para ver se encontrava aí algum versículo sublinhado que

tivesse agora maior significado para ela. Todo versículo que lia tocava-a de modo diferente. Nunca antes se sentira tão

revigorada espiritualmente ao ler a Bíblia.

Depois de quase uma hora, achou um versículo que parecia perfeito para o desejo de ser missionária e de trabalhar

com crianças. Copiou no diário o Salmo 78.4: "Não o encobriremos a seus filhos; contaremos a vindoura geração os louvores

do Senhor, e o seu poder, e as maravilhas que fez."

Esse versículo de certa forma reavivava em seu coração o desejo de servir a Deus, no entanto ainda não parecia ser

o "seu" versículo, do jeito que o de Jakobs era para ele. Assim, ela continuou lendo.

Quando chegou ao Salmo 86, versículos 11 e 12, encontrou: "Ensina-me, Senhor, o teu caminho, e andarei na tua

verdade; dispõe-me o coração para só temer o teu nome. Dar-te-ei graças, Senhor, Deus meu, de todo o coração, e

glorificarei para sempre o teu nome."

"Para sempre", repetiu Cris ao escrever o versículo em seu diário.

- De todo o coração, para sempre, sussurrou.

Era como se o Senhor estivesse sentado ali, ao seu lado, ouvindo cada palavra que ela proferia.

De repente ouviu uma voz audível ao seu lado, e teve um sobressalto.

- Me perdoe. Posso perguntar o que você está lendo? era o rapaz que viajava no compartimento.

Cris pensara que ele estivesse dormindo. Para surpresa dela, viu que ele a estivera observando e falava inglês.

- É uma Bíblia.

- Quer dizer a Bíblia Sagrada? perguntou ele, pousando a vista no livro.

Talvez o tecido com flores cor-de-rosa da capa lhe parecesse estranho.

- Sim, claro. A Bíblia. Ele pareceu surpreso.

- E você esteve lendo esse tempo todo? E com tanto interesse?

Cris fez que sim.

- Você já leu a Bíblia? indagou ela.

- Não, disse o rapaz, que era moreno e tinha cabelos escuros. Não tenho Bíblia.

Sem pensar, Cris disse:

- Quer ficar com a minha?

Ele arregalou os olhos, incrédulo.

Cris rapidamente removeu a capa cor-de-rosa.

- Verdade, pode ficar para você. É em inglês, mas você fala inglês muito bem.

Ela colocou o livro na mão dele e insistiu:


- Pode ficar com ela. É pra você.

- Muchas gracias. Obrigado.

- Agora você tem de ler, disse ela sorrindo. Estava se lembrando do jovem da Inglaterra que zombara dela depois do

programa de dramatização.

- Vou ler sim. Obrigado. Você vai a Barcelona?

- Sim; de lá sigo para um lugar chamado Castelldefels. Conhece?

- Conheço. Às vezes pratico surfe lá. Mas em Sitges, que é perto de lá, tem ondas melhores para surfar.

Surfe, pensou Cris. Talvez eu me sinta mais em casa lá.

- Chegamos agora a Sants, disse o rapaz, vendo que o trem diminuía a marcha ao aproximar-se de uma enorme

estação. Aqui você muda de trem. O que vai para Castelldefels é muito bom. É mais moderno. Vá à plataforma cinco e

pegue o trem de Vila Nova.

- Obrigada. A propósito, meu nome é Cris. E o seu?

- Carlos.

- Estou trabalhando com um grupo de jovens cm Castelldefels, fazendo apresentações de música e teatro. Talvez

você possa ir lá um dia desses. Sinto muito não saber o endereço.

- Castelldefels não é muito grande. Não deverá ser difícil encontrá-la. Mais uma vez, obrigado pela Bíblia. Você é

uma mulher muito diferente.

Logo que ela se acomodou no trem moderno, recordou as palavras de Carlos: Você é uma mulher muito diferente.

Acreditava que ele quisesse fazer-lhe um elogio. E ele dissera "mulher", não "moça". Talvez ela tivesse amadurecido tanto

nessa viagem, que todos estivessem notando isso - até mesmo os estranhos.

Cris podia imaginar-se contando esse episódio à Katie quando se encontrasse com ela em Carnforth Hall. Ela

flexionaria o braço e diria:

"Sou uma mulher muito diferente."

E na verdade, sentia exatamente isso. Olhou pela janela e viu o mar. O Mediterrâneo, para ser exato. Tinha um belo

e forte tom azul. De repente, sentiu-se em casa. Quase podia sentir o cheiro da maresia pelas janelas fechadas do trem. Deu

um sorriso ao imaginar como se sentiria dentro de alguns minutos, quando tirasse os sapatos e as meias e mexesse os pés

na areia fresca da praia.

É isso aí, Senhor! Perfeito. Obrigada por estar me trazendo aqui. Eu poderia ficar aqui para sempre.

De repente deu-se conta de que não tinha a mínima idéia de quem iria buscá-la na estação. O Dr. Benson dissera

que o diretor da missão teria sua foto anexada ao seu fichário. Resolveu procurar um homem parecido com o Dr. Benson,

no final da casa dos quarenta, cabelos brancos nas têmporas e vestindo... vestindo o quê? Uma camisa florida de surfista?

Cris deu uma risadinha imaginando a possibilidade de um diretor da missão que soubesse surfar. Provavelmente, o cara

seria capaz de ir ali de chapéu de palha, montado num burro! Esperava que Merja e Satu estivessem lá também, porque
elas a reconheceriam imediatamente.

Estava um pouco nervosa. Era agora. Conseguira chegar sozinha ao destino na costa da Espanha. Com o Senhor,

claro. Mas estava lá. Dentro de cinco minutos, o trem pararia e ela iniciaria sua semana como "missionária".

Resolveu dar uma corrida rápida ao banheiro e melhorar o visual. Não era fácil. Dezoito horas de viagem haviam

deixado marcas em seu semblante. Lavou o rosto, escovou o cabelo e já se sentia mais renovada. Tinha uma amostra de

perfume, que abriu e passou nos braços.

Muito melhor. Agora vou pegar minha bagagem e ficar perto da porta.

Logo que o trem parou, Cris desceu, toda sorridente. Olhou à sua volta. Nada de Satu. Nada de Merja. Também não

viu nenhum diretor num burro. Não via ninguém levemente parecido com alguém que a estivesse esperando.

Pensei que este era o lugar certo.

Correu os olhos pela pequena estação quase vazia. Havia uma bilheteria e um estabelecimento que parecia uma

lanchonete. A estação em si era velha e malcuidada.

O trem afastou-se em direção a Sitges. Cris olhou em volta, ansiosa. Foi quando notou as "pixações" nas paredes, e

com o cheiro que vinha do corredor, veio também o cheiro acre de urina.

Senhor, lembra-se de mim? O que é que estou fazendo aqui?

Toda a sua coragem sumiu. Fora tudo um erro. Cris remexeu a bolsa à procura dos papéis que o Dr. Benson lhe

dera. Talvez tivesse um telefone para onde pudesse ligar. Será que havia um orelhão de onde ela pudesse ligar? E como

faria a ligação? Não trocara em pesetas seus cheques de viagem. Onde estava a papelada?

Mexeu mais no fundo da bolsa a tiracolo. E foi aí que ouviu uma voz conhecida:

- Kilikina!

Seu coração parou. Só existia uma pessoa no mundo inteiro que a chamava por seu nome havaiano.

- Kilikina! gritou um surfista alto e loiro que corria para ela.

Cris fitou seus olhos azul-prateados.

- Ted? sussurrou ela, acreditando que estava tendo uma alucinação.

- Kilikina!

Ted envolveu-a num abraço tão apertado que por um instante ela nem conseguiu respirar. Ele ficou a abraça-la por

muito tempo. Chorando. Ela sentia as lágrima quentes dele no seu pescoço. Sabia que tudo isso estava acontecendo

mesmo. Mas como?

- Ted? sussurrou de novo. Como? Quer dizer, o quê...? Eu não...

Ted se afastou e foi aí que ela notou que ele estava com um grande buquê de cravos brancos na mão. Estavam um

pouco amassados.

- Para você, disse ele, os olhos brilhantes e a voz profunda, porém firme e calma.

Vendo sua expressão de choque, ele perguntou:


- Você não sabia que eu estava aqui?

Cris não conseguia encontrar palavras. Acenou com a cabeça que não.

- Mas o Dr. Benson não lhe disse? De novo ela fez que não.

- Quer dizer que você veio até aqui sozinha e nem sabia que eu estava aqui?

Agora era a vez de Ted ficar surpreso.

- Não, imaginei que você estivesse em Papua Nova Guiné, ou em algum lugar parecido. Não tinha a mínima idéia de

que você estivesse aqui!

- Eles precisavam mais de mim aqui, disse Ted. É o lugar perfeito para mim.

E dando um largo sorriso ele explicou:

- Desde ontem, quando recebi o fax deles dizendo que estavam enviando você, estou fora de mim de tanta alegria!

Kilikina, você não imagina como me sinto!

Cris nunca o ouvira falar desse jeito.

Ted colocou o buquê em cima das malas. Tomando as mãos delas e olhando nos seus olhos, disse:

- Não está entendendo? Não existe jeito de eu ou você termos planejado isso aqui. Só pode vir do Senhor.

Finalmente, as lágrimas provocadas pelo choque vieram aos olhos de Cris e ela teve de piscar para manter o Ted em

foco.

- É verdade. Deus nos conduziu de volta um ao encontro do outro, não foi? disse ela com um sorriso de alegria e

deleite.

- Lembra-se do que eu lhe disse quando você me devolveu a pulseira? Eu disse que, se Deus nos reunisse de novo,

eu colocaria a pulseira de volta no seu pulso, e, dessa vez, seria para sempre.

Cris concordou. Tinha repassado aquele momento mil vezes em sua mente. Parecia impossível que Deus os uniria

outra vez. Seu coração bateu forte ao perceber que Deus, com seu modo todo "esquisito", tinha realizado o impossível.

Ted enfiou a mão no bolso e tirou a pulseira de chapinha de ouro em que estava gravada a expressão "Para

Sempre". Segurou o pulso de Cris com carinho, envolveu-o com a corrente e prendeu o fecho.

Cris ergueu o rosto para ele. O olhar de expectativa de Ted encontrou-se com o seu olhar, e num momento santo

ele disse:

- Prometo, minha Kilikina, que será para sempre.

- Prometo, Ted. Para sempre.

Então, com a bênção do Senhor, Ted entrou no jardim do coração de Cris, e envolvendo-a nos braços, terna e

reverentemente, selou a promessa com um beijo.

No alto, uma brisa fresca do mar balançou as folhas das palmeiras, como se os aplaudisse.

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